ASSIM AMEI ZARATHUSTRA

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    W A W AWA

    Assim Amei ZaratustAssim Amei ZaratusthrArA

    Aurora RosenbAurora Rosenbachch

    Assim AmA

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    TRECHOS DO LIVRO ASSIM AMEI

    ZARATUSTRA- Olhemo-nos face a face: somos hiperbreos. Sabemos muito bem quo remota nossa morada.Nem por terra nem por mar encontraro o caminho dos hiperbreos. Alm do norte, alm do gelo,alm da morte: nossa vida, nossafelicidade. Ns descobrimos essa felicidade, ns conhecemos ocaminho... Retiramos essa sabedoria dos milhares de anos no labirinto. Antes viver no meio do

    gelo que entre virtudes e outros ventos do sul. Fomos bastante corajosos. No poupamos a nsmesmos nem aos outros, mas levamos um longo tempo para descobrir para onde direcionar a nossacoragem. Tornamo-nos tristes. Tnhamos sede de relmpagos; mantivemo-nos o mais longepossvel da felicidade dos fracos. Nosso ar era tempestuoso, nossa prpria natureza tornou-sesombria: pois ainda no havamos encontrado o caminho. A frmula de nossa felicidade: um sim,um no, uma linha reta, uma meta.

    - preciso um ponto para fazer um crculo e dizeis linha reta? Para qu? Ouo pera e me pareceque jamais fui Itlia; jamais frequentei a roda dos ursos e das guias. Sou indignada, mas tenhoargumentos fracos diante dos resignados. A vida! Quereis lembrar-me dessa vida? Prantearei mais,atravessarei quantos arco-ris, quantas tempestades, quantos abismos? Tendes obrigao de

    cicatrizar-me as feridas, j que minha sede de relmpagos tornou-se um vcio assaz perigoso. Meucorpo frequentado por outras mulheres... Perdi-me na morte suicida ou abandonei oshiperbreos?

    Mas sempre fui pobre, Michael! Bela minha alma, amigo! Posso v-la e beb-la sem medode morrer. Quando suspiro no crepsculo quando minha alma j se deitou. E eu aqui, isolada domundo, no me deito sem um comprimido. Mas minha alma j se deitou junto ao sol e dele seressente que queimada numa estrada nunca mente e o caso que a verdade que di enquanto amentira ri. Hipcritas! No o sou, juro! Se pudesse mergulhar nesse dilogo com a discpuladelirante, eu logo o convidaria para ir a uma taberna. Vamos ler? E vs dizeis: para qu? Que fareiscom tantos livros? E responderei: serei um milsimo da populao mundial. Serei uma pensante. O

    mundo no tem razo nenhuma de existir e absurdo que exista! A conscincia um ser e o ser um nada, diria Sartre.

    Atravessei multides de olhos vedados procura de gente. Ningum havia. Todos e nada.Quando olhei o horizonte, s vi mquinas andando sem rumo. Pessoas mortas vivendo sem passearpela vida. Olhei por cima do ombro de cada um: tiveram que se desviar, porque tiveram medo deserem atravessadas por uma vida. Sentindo a fora que escondia no peito, enfiei-me por dentro decada um: nem vazio havia. Havia nada. Ningum sentia a fora da vida na travessia. Contas a

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    pagar, trabalhos a fazer, amantes espera. Nem mendigos consegui ver. Pois via tudo de cima e deonde s quem escalou montanhas e desceu s profundezas de si mesmo pode ver. Olham paramonumentos mas enxergam apenas a si mesmos. Um mundo confeitado de narcisos e ninfasindiscriminadamente. Um mundo com aspecto mal cheiroso. Um mundo pobre ruindo pelasolido.

    Nesta homenagem a Nietzsche e Voltaire, uma mulher aprende a conviver com a solido e arefletir sobre os prprios conflitos. Conversando com ilustres pensadores e anotando Zaratustra, adiscpula assimila um outro mundo e constri um pensamento acerca da pluralidade dos mundos,vivenciando vrias personalidades e testando teorias epicuristas que a levam a duvidar de umnico ser e, por conseguinte, de um deus nico.. Assim Amei Zaratustra o isolamento de umapessoa que vira as costas para o sistema e, no obstante, desfruta de uma loucura assazimportante para qualquer um que pretenda defender suas idias.

    O romance convida para uma profunda reflexo, o velho trip da filosofia: de onde viemos,para que e para onde vamos. Ningum pretende responder a perguntas irrespondveis, masaprender sempre, como viver intensamente, passeando por todas as dores e emoes que a vidaoferece.

    maravilhoso poder olhar para trs, agora, que j consigo compreender e conviver com aloucura , constata a discpula, num emocionante desabafo em que se liberta de perdasaparentemente irreparveis. Noutro, ela diz:

    Quem escreve com o sangue derrama esprito.

    Assim Amei Zaratustra uma histria cheia de impossibilidades, de surrealismo, dextases e de muita solido. O romance dos espritos sutis.

    Carlos CarbonelCarlos Carbonel

    Prlogo

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    Aurora uma cigana hebraica que vai parar no deserto de Zarathustra e pensa tervisto Jesus Cristo em pessoa. Ao encontra-lo, ganha dele uma chave de ouro como smbolode poder e libertao. Torna-se sua discpula. Amante. Amiga. Mulher. Mas anotando opensamento de seu homem que comea, gota a gota, o embate: Deus morreu?-, confunde-

    se o profeta, neste retorno em que prega o paradoxo de si.Mil vises. Trs caminhos. Sete vidas. Aurora est neste eterno retorno de

    Zarathustra com as vidas paralelas, na pluralidade dos mundos em que acredita. Ao subirno topo de sua sabedoria e com o livre arbtrio nas mos, destinada a escolher um scaminho para a personagem em que se transformou.

    Zarathustra mostrado, aqui, como o mago dos aforismos e rei da cobia degovernar uma mulher livre. E por esta liberdade que Aurora vai lutar. Custe o quecustar.

    Neste mundo surreal, em que nada parece o que , nas entrelinhas que se esconde achave de cada leitor, porque cada um vive-se a si mesmo, cada alma um mundo. Semdoutrinas. Sem moral. Sem medo.

    com esta coragem que Aurora enfrenta seus prprios desertos e tempestades. E,em cada deserto e em cada tempestade, Zarathustra est de braos abertos para enchermais um clice de sim vida.

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    SUMRIO

    Prlogo................................................................................................................ 04

    1.........................................................O ENCONTRO E UMA CHAVE.......... 05

    2 ........................................................O ETERNO RETORNO........................... 063.........................................................A CORDA HOMEM .............................. 11

    4........................................................EM VRIOS TEMPOS............................ 13

    5........................................................O ESPRITO SLIDO.............................. 16

    6........................................................ A MORTE E A ESTRELA...................... 24

    7.........................................................NO STIMO CU................................... 34

    8.........................................................O ESTADO DAS MOSCAS.................... 38

    9.........................................................A LUA...................................................... 39

    10.......................................................O CASAMENTO.................................... 48

    11.............................................UMA GAIVOTA E UM CARANGUEJO........ 58

    12........................................ O JOIO QUER CHAMAR TRIGO........................ 62

    13.................................................O CHORO DO BEB ................................... 71

    14................................................ DILOGO COM A VIDA ............................ 74

    15................................................SEPARANDO................................................ 79

    16............................................... ESTRELAS................................................... 82

    17................................................ SONHOS E VIAGENS.............................. 84

    18................................................O PARADOXO.............................................. 96

    19............................................... AS PREGAES........................................... 96

    20...................................... NO BOSQUE ......................................................... 105

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    21...................................... DILOGO PELO ESPELHO................................ 124

    22...................................... EM BUSCA DO SUPERIOR................................. 126

    23...................................... A CONVERSA COM O SOL..................................129

    24...................................... FAREJANDO A VIDA.......................................... 135

    25...................................... OS RITUAIS .......................................................... 136

    26.......................................O ENIGMA DO MAL SOBRE A TERRA............ 140

    27...................................... AS VIDAS DA DISCPULA.................................. 142

    28...................................... AS CARTAS SARCSTICAS............................... 144

    29......................................O REENCONTRO.................................................. 148

    30......................................NO ARDOPADOR.................................................. 152

    31......................................O ETERNO RETORNO II....................................... 158

    32..................................... A CARTA DE DESPEDIDA.................................. 158

    33..................................... A DERRADEIRA................................................... 159

    34..................................... SOPHIA NA TERRA DOS VIVENTES............... 160

    35..................................... A CONVERSA COM MAUPERTUIS.....................163

    36..................................... PARA ALM DOS MUNDOS................................ 165

    37......................................RETICNCIAS ....................................................... 165

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    CAPTULO 1_CAPTULO 1_O ENCONTRO E UMA CHAVEO ENCONTRO E UMA CHAVE

    Eu andava no meio da multido, onde um homem pregava como Jesus e, perto, umtrapezista disputava com outro a ateno do povo. Um deles caiu e o profeta do deserto,Zaratustra, correu a socorr-lo. Sa daquela confuso para anotar o que vira. O profeta saicarregando o trapezista morto. Deparamo-nos no sop de uma frondosa rvore. Perguntou-me noseguinte termo:

    - Sois o qu? fitava-me os olhos, rindo com escrnio, como se soubesse de toda a minhaventura.

    Olhei-o soberbamente, depois aquiesci. Que homem estranho! Que homem atraente!Afundada em profundas reflexes, peneirei para ele um diamante. Dei-lhe o melhor que podianaquele momento. Respondi com a franqueza que persegue o meu carter, e, como estivesse vivademais, disse o que um moribundo diria ao atravessar a linha de fogo entre a vida e a morte:

    - No sei!

    - Bom sinal! falou. Quando no se sabe o qu ou quem sois porque procurais a verdade. Avossa, no a dos outros!

    - Assistia-vos pregar na montanha. Afastei-me para fazer uma reflexo sobre o que eu fiz daminha vida. to chato a alma estar presa ao crcere do corpo como ser um pssaro sem asas!Ter que viver... Leio as entrelinhas do mundo. Enxergo o que se esconde. Sinto-me impotentediante de tudo e de nada. Hipcritas! No o sou, profeta. Olho para o cu, para a humanidade.Que distncia! Que desproporo! Vermes a comer vermes! Queria seguir-vos...

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    - ... E por qu? Nem me conheceis! objetou.

    - No tenho com quem dividir a minha solido. Jesus morreu e nunca apareceu para mim. Precisocaminhar. Poucos enxergam, muito embora muitos vejam. Ainda no estou certa de que vivo.Penso que sonho por a um pesadelo perambulando entre a multido absorta com o sistema de

    ponteiros. Detesto-os. Tic-tac! tortura inglesa, a pontualidade britnica? Ou ser um chicote noinconsciente dos servos conformados? O nmero dos que pensam excessivamente pequeno eno tm a lembrana de perturbar o mundo, disse-me um amigo inteligente como vs. Morreu htrs sculos. Deixou os pensamentos como herana. Voltaire, meu filsofo, nico capaz defazer rir o esprito. Conheceis?

    - Muito. Tambm converso com ele.

    - Sigo, assim, nos braos do mundo deslindado por Deus que esquadrinha coraes e rins. Tudoouve de todos e se cala!

    Zaratustra nada comentou. Baixou os olhos para a terra, ergueu-os solenemente para o cuescarlate. Olhou-me intensamente, com benvola curiosidade, lendoa minha alma, e soltou umagargalhada ensurdecedora. Fiquei bastante constrangida. Ele parecia rir de mim. Era um risoextico, mas ao mesmo tempo triste. O profeta acabava de parir uma grande verdade que, apenasele, conseguia digerir e que eu nem sonharia saber. Ao me ver, viutoda a sua ventura e o futurode todas as suas desventuras. Enterrou o morto. Voltou-se para mim, semblante srio, edeterminou:

    - Sereis minha discpula. A nica mulher do meu pastoreio. Tendes esprito forte. Entretanto,tereis que ser sobre-humana com tudo e com todos. Estorvo? No! o fardo que muitos rejeitame que retm na caixa de Pandora. Abri-la-eis quando chegar o momento. Sereis o fim, no omeio. Largai tudo e segui-me em silncio.

    Fora os livros, abandonei pertences, ego, espelho, roupas. Apenas uma quis levar: o ltimoagasalho usado pelo meu beb. Ele rebelou-se e ordenou severamente:

    - Enterrai-o a sete palmos debaixo da terra e a setenta vezes sete dentro do vosso corao, moradadas almas.

    Depois do que, deu-me uma chave de ouro com trs brilhantes: um com um sol, outrocom uma lua e o terceiro com uma estrela: Srius. Entregou advertindo que apenas a usarei sobsua ordem e trs rituais.

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    CAPTULO 2CAPTULO 2O ETERNO RETORNOO ETERNO RETORNO

    Caminhamos em profundo silncio. Apenas falavam as estrelas e a lua minguante.Assemelhavam-se a guizos rindo e esperneando o brilho em meio escurido do deserto.Guiavam-nos as estrelas at o cu empalidecer tristeza dos que reverenciam a noite , e nascera alvorada alegria dos que louvam o dia. Amanhece. Aguardamos o sol para aplaudi-lo.

    - Como maravilhoso! disse, admirando feliz os primeiros raios do dia.

    Zaratustra nada fala. Ento contemplamos, calados, aquela imensa bola brilhante. Vm docu uma guia e um corvo com frutos e, da terra, uma serpente amarela malhada de preto. Elaenrosca-se-lhe pelo pescoo, carinhosamente, como se fosse um animal domstico. Fico tomadade pavor. Ao que o profeta me tranquiliza:

    - No vos assusteis. Encontrei mais perigo entre os homens do que entre os animais. Estes

    sustentam-me com amizade. Vede: obras primas da natureza acompanham-nos. Sigamos nosilncio. Vossa jornada longa. Sereis instrumento de liberdade e poder. Fazeis idia do vossopoder? perguntou, como se me alertasse que vivia. Us-lo-eis quando a hora vier. A de Deus,no a dos homens!

    Escrevi para a Tiza:

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    Estou bem! Conheci um profeta amigo da solido e dos livros. Gosta do silncio, dacontemplao. Tenho longo percurso. Darei notcias pela guia. Respondeis por ela quandoquiserdes me falar. Pegai do vosso nublado espelho. Vede o brilho incandescente de uma almaunida a um molde talhado por Deus pacientemente, ou da costela de Ado, ou de qualquer barroonde caiba um esprito alegre. Ride, imploro! Ride at gargalhar deste mundo absurdo e vereis

    luz em todo o vosso corpo. Se vossos olhos forem bons, todo o vosso corpo ser luz, disse oMessias. Saudades, A.

    Dormi cedo para me levantar na alva, pois a brindaremos em memria da amizade e porgraas ao Pai Celestial, que faz com o sol nasa sobre bons e maus e com que a chuva desasobre justos e injustos. H longo caminho. Zaratustra pede que pense um pouco, enquanto a luapasseia uma das faces neste hemisfrio. Como bom ter um amigo que ama o percurso dasestrelas!

    Seguimos a jornada. Olhando para o astro, diz:

    - O sol nasce e se pe todos os dias e a cada dia o espetculo nico. O que o faz ser o grandeastro da galxia o sair por detrs de nfimas colinas. a humildade de submeter-se aoscaprichos de colinas e de monumentos. Porm, o que o faz ser realmente belo que nasce emorre todo dia. A cada dia nico. A cada dia percorre o horizonte como bem lhe aprouver. dono do brilho, da luz e da jornada que realiza imperiosamente. Nenhum cientista decifrou talenigma e nenhum astro da fsica, nenhum deus conseguiu chegar perto desta bola de fogo. A cadanascer uma celebrao. A cada morrer permanece clebre, muito mais ainda por no sabermosse o veremos de novo.

    - Mas o Ser Supremo... retruco.

    - O Ser Supremo possui bilhes de zilhes de sis e de outros seres infinitamente maiores oumenores para sondar, amiga. extremamente ocupado com o desenho do Universo, com oarranjo das coisas infinitamente importantes ao finito. Neste glbulo mataram-lhe o filho, cujapassagem foi suficiente para enriquecer os falsos donos de esprito.

    - O que faz do sol ser diferente e melhor do que a lua? quis saber, por amar a lua.

    - O sol um s, embora diferente todo dia. J a lua... A lua caprichosa e perigosa demais. uma a cada dia e nenhuma em algumas noites, posto que nalguns dias quer desfrutar aplausosjunto ao sol, duas vezes ao ms, duas semanas. Tem quatro faces. rasteira. Os homensparecem-se com ambos: nunca so os mesmos todos os dias e tm at mais do que quatro faces.

    Dito isto, solta um grito de dor. As lgrimas escondem-se por entre os cabelos grandes.Os olhos cor de mel tornam-se amarelos. A guia pousa no ombro, o corvo grasna. A serpentesome!

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    - Est aqui assegura-me um homem de olhos amarelos. Est nos meus olhos. Vedes? preciso que a serpente me envenene ao raiar do sol para que eu lute contra o mal a cada instante,para que ele no supere o bem. Somos bem e mal. necessrio o soro do equilbrio. No henigma. Somos isto. Renasci das prprias cinzas. Sou cinza e sol. Aprendi a amar a solido. Ecom o sol descobri a frmula da grandeza do homem: no evitar, nem me conformar, mas afirmar

    o necessrio. Amar sem mudar, com um grande sim, um enorme no, uma linha reta, uma meta.Aquela dor me oprimiu. Mudei de assunto, para disfarar.

    - Zaratustra assemelha-se a Digenes Larcio diante de Alexandre, O Grande. Ainda no sei opor qu.

    No respondeu. O profeta brindou os primeiros raios do dia ironicamente, o que no fez coma lua. No compreendi nem a ironia com o sol, nem a indiferena com aquela que me enternece ocorao romntico. Ele no diz boa noite lua, nem a reverencia, muito menos a ironiza.Simplesmente a despreza. Enfim, adorou:

    - Grande astro! Que seria da vossa felicidade se vos faltasse aqueles a quem iluminais? Fazsetecentos anos que vos abeirais da minha caverna e, sem mim, minha guia, meu corvo e minhaserpente, havereis cansado de vossa luz e deste caminho. Ns, porm, espervamo-vos todas asmanhs. Tomvamos o suprfluo e vos bem dizamos. Eu, j cansado de minha sabedoria, estouenfastiado como a abelha que acumulou demasiado mel. Necessito de mos que se estendam paramim. Quisera dar e repartir at que os sbios tornassem a gozar da prpria loucura e os pobres dariqueza!

    - Visto deste ngulo, sois vs quem brilhais, e no o sol. Porque se no fosse vs, quem eleiluminaria?

    O sol agradece desenhando uma curva no horizonte. Agora compreendi a semelhana deZaratustra com Digenes: ambos so debochados com os grandes e os desafiam com eloquncia.Ambos adoram o sol. Enquanto ele com o astro conversava, eu lia num livro alemo taispalavras:

    Hoje s mais um dia. Dia de cu azul. Todavia, nem o cu nem o azul so capazes defazer-me sair. O que iria fazer, no fiz. Fiz o que no deveria. Se tivesse feito outra coisa,lamentaria. Tudo me faz sentir mal. Viver sem um porqu. Peregrino nas estradas da vida. Meuspensamentos vo e voltam. s vezes, anoto-os. O voo dos pensamentos s pertinente ao voltar:aprende muito enquanto voa. Quis voar tambm... Cus! Amo a natureza, as pedras, as plantas, osratos, os elefantes. Cheguei ao cmulo de amar os homens! O que ia fazer, no fiz. Fiz o que nodeveria. Se tivesse feito de outro jeito, rejeitaria! Faz sete anos que meu beb saiu do hospital.

    Como ele tem manuscritos meus pensamentos to ntimos? Quem pensa que ? Elias? Isaas?Cristo? Fiquei furiosa com tal devassido. Adverti-o intempestivamente:

    - Quem pensais que sois? Deus?

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    - Por que perguntais se sabeis a resposta? Fostes vs, com vossos eternos martrios, queescrevestes! O chicotear a si prprio a pior tortura. Vede os animais: do cria e os filhotes secriam. Vamos.

    Engoli em seco. O profeta tinha razo. Segui-o. O sol a pino. Ao fazer um habitual passeio,

    Zaratustra foi atravessado pela viso do eterno retorno.Falou:

    - Tudo retorna sem cessar. Se o Universo tivesse algum objetivo, j o teria alcanado. Se tivessealguma finalidade, j a teria realizado. No existe um Deus soberano, absoluto, com desgniosinsondveis. Todos os dados so conhecidos. Finitos so os elementos que constituem oUniverso. Finito o nmero de combinaes entre eles. S o tempo eterno. Juro: tudo j existiue tudo voltar a existir.

    Mergulhou no rio como se lavasse a alma. Pensei:

    Joo batizou no Jordo e batizou at Jesus, que todavia nunca batizou ningum. O homem,guiado pelos sentidos, acreditou que aquilo que lavava o corpo tambm lavava a alma.

    Belo, Voltaire! Ento as idias acerca das dimenses ... Meu profeta estava sentado no topoda colina, ensimesmado. Sentei-me em profundo silncio. Aps meditar, desabafou:

    - Repetidas vezes tentei compreender a indiferena que me cercava. A solido envolve a minhavida. Em meus ltimos escritos, notei que o tempo era o meu nico contemporneo.

    - A gua... transformou-vos no criador de vs mesmo! Sois Nietzsche!

    Zaratustra oscilando. Os pensamentos voando, cruzando oceanos em segundos. O profetagrita novamente. Um grito de lamento, outro de dor, outro de solido. Senti toda essa solidodele. Gritei tambm. Transcendi do corpo alma e no mais senti nada alm da liberdadefazendo-me pluma ao vento. Voei!

    O mundo explode diante dos meus olhos. Mundo colorido de coisas que no posso tocar.Emoes vs vo-se. Diante dos meus olhos mopes, esse mundo louco gira com uma intensidadeto banal quanto oca. Estou no vcuo berrando em silncio meus protestos, minhas loucas idias.

    No sois deste mundo diz uma voz irnica.

    E de que mundo sou, ento? pensei.

    Quem sou eu para responder! Nem apreendo e nem compreendo esse paraso que o Deusjudeu enfiou-me goela abaixo. Poucos entendem a Bblia; raros tentam decifr-la.

    Ouvi:

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    Impe-nos certamente concluir que quem entender perfeitamente este livro deve tolerar osque o no entendem. Mas aqueles que nada entendem no por sua culpa. No entanto, os quenada compreendem devem tolerar tambm os que compreendem tudo!

    Respondi:

    Os que julgam compreender este livro saem a pregar dogmas, gritando mais que os profetas,tentando a explicar o inexplicvel. Constrem reinados abominveis que vs tanto combatestes,amigo Voltaire, inimigo da Santa Inquisio. Se existiu sodomia (e existe) foi com esses donosda moral. Apenas choro. Choro e incomodo com sinais visveis o invisvel do visvel. Ocasamento de chorar como a separao que juraram no deixar acontecer. Sinto a tristeza doshomens e Zaratustra grita.

    Voo solitrio. A solido de Zaratustra minha tambm. Por vezes no o compreenderei.Contudo, senti com tal intensidade que decidi anotar tudo o que ele dissesse. Rasante, pousei aolado de meu mestre. Vejamos o que temos a presentear-nos um ao outro.

    - Lastimo disse que no estejamos agora juntos de Voltaire. Seramos uma s substncia!Meu pranto encobre-me de vergonha, porque choro o tempo e os tesouros que perdi. A vida levoumeus filhos, a morte levou meu pai. Que turbilho cartesiano! Voltaire detestava sistemas.Queria conversar com ele tambm na pedra que venero, a Pedra de Dal.

    - Somos uma s e mesma substncia. No repreendais vosso pranto por vergonha de mim, amigado sol, da lua e de todas as estrelas. Sois pura, por isso chorais tanto. E quando vossas lgrimassecarem, gritareis a vossa dor. Ficai longe dos homens. Desabafai o que quiserdes: no deixareisde ser a fora que sois. Ouvistes o canto harmnico dos pssaros?

    - Sim. belo demais. Eles fazem o ninho at mesmo em rvores secas. Eis a lio da natureza!

    - No vos atormenteis. Permanecei de ouvidos abertos e boca fechada. Os sinais viro. Sabereisdistingui-los. No hesiteis, anotadora!

    Descemos as montanhas e sumimos no meio delas ele a falar, eu anotando.

    Devo descer s profundidades, como vs pela noite, astro exuberante de riqueza quandotranspondes o mar para levar vossa luz ao mundo inferior. Abenoai-nos, olho afvel que podever sem inveja at uma felicidade demasiado grande! Abenoai a taa que quer transbordar paraque dela jorrem as guas douradas, levando a todos os lbios o reflexo da alegria. Olhai! Estataa quer esvaziar-se!

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    CAPTULO 3CAPTULO 3A CORDA HOMEMA CORDA HOMEM

    Embrenhvamos pela mata retorcida em busca de uma paisagem bela, por que belas seriam aspalavras que o homem enigmtico, barba aparada, sorriso matreiro, olhos luminosos e lbios bem

    delineados proferiria. Palavras simples. Mergulho profundo. Zaratustra exigia que eu oentendesse como se fosse rpida na investigao e na constatao de suas meditaes. Contou-meque buscava refgio no cu todas as vezes que a solido apertava-lhe o peito. Ento, olhando paraa silhueta do deserto, perguntei-lhe:

    - Que a alma, profeta, quem pode defini-la? Quem tentou e foram muitos errou. Quemerrou, pelo menos tentou. Eis o consolo dos normais.

    - Noutros tempos, a alma olhava o corpo com desdm e nada havia superior a esse desprezo.Queria a alma um corpo fraco, horrvel, consumido de fome! Julgava, deste modo, libertar-sedele e da Terra. Para ela era um deleite a crueldade!

    - Falais de Buda? Mas ele buscou a razo!

    - Que importa a razo? Anda atrs do saber como o leo atrs do alimento. A razo pobreza,imundcie... conformidade lastimosa! bradava, enquanto passvamos diante de uma multidoque se ajoelhava e estendia o corpo ao cho.

    Assombrado, Zaratustra fitava-a e dizia:

    - Vede: o homem a corda estendida sobre o abismo. Perigosa travessia. Perigoso caminhar.Perigoso olhar para trs. Perigoso tremer e parar sentenciou.

    Lembrei-me do Pequeno Prncipe, de Saint-Exuprry, que diz ser necessrio olhar para trs.Mas senti o perigo tremente de olhar para trs e parar. Sentei-me a refletir meu rosto num lagosem ninfas. Era somente um rosto absorto vago entre tantas interrogaes e reticncias. Vagoe profundo como um rio. Achei meu rosto to ou mais belo que na juventude. E neste abismo dopensar e refletir, quis meu reflexo ir de encontro ao meu rosto. Mas o reflexo na gua no eramais o do meu rosto: transformou-se no de Zaratustra. Um rosto misturado com o que no sobroude mim. O virtual casava-se com o real. Gritei. Ningum me ouviu. Tornei a gritar: nenhumsocorro. Afundei-me de tal forma neste abismo de mim mesma que, por mim, enlouquecia, semque ningum se apercebesse. Em pleno labirinto, ria, gargalhava, chorava, gritava. Teria passadopara outro mundo? Onde eu estava? E Zaratustra?

    - Aqui, irm murmurou.

    Ele estava comigo, mas tambm prosseguia com as parbolas no topo de um degrau bemdistante. Profetizava:

    - preciso ter um caos dentro de vs para dar luz uma estrela cintilante. Eu v-lo digo: tendesainda um caos dentro de vs!

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    O caos prossegui em pensamento este o tenho por demais! Mas a estrela brilhante se foi.Carrego um ventre vazio e um corao inflamado de dor. Lembranas petrificadas so comofsseis.

    - Ningum de ningum disse-me e tudo o que vai, volta. Falais como se morta estivsseis!

    O que de grande valor no homem ele ser uma ponte para um fim. Eu somente amo aquelesque sabem viver como que se extinguindo, porque so os que atravessam de um para o outrolado. Amo os de grande desprezo, porque so as setas do desejo ansiosas pela outra margem.

    - O que h na outra margem? atalhei, querendo adivinhar o que havia atrs de uma portaa deouro entre os labirintos da caverna.

    - Cada qual descobrir o prprio caos e o deslindar. O enigma a chave para o outro lado.Decifrai-o! desafiou-me e saiu a pregar no seguinte termo:

    Amo aquele cuja alma transborda a ponto de esquecer-se de si mesma e tudo quanto estejanela, porque assim todas as coisas se faro para a sua runa. Amo aqueles que no procuram pordetrs das estrelas uma razo para sucumbir e se oferecerem em sacrifcio, mas que se sacrificampela terra, para que grato por ela o sejam.

    Zaratustra contou o que conversou com o trapezista moribundo:

    - Que fazeis aqui? perguntou o homem ensanguentado. J h tempo que eu sabia que odiabo me havia de derrubar. Agora arrasta-me para o inferno. Quereis impedir?

    - Amigo confortou-lhe o profeta , palavra de honra que tudo isso de que falais no existe.No h demnio nem inferno. Vossa alma ainda h de morrer mais depressa que vosso corpo.

    - Se dizeis a verdade que nada perco ao perder a vida. No passo de uma besta ensinada adanar a poder de pancadas e fome!

    - No! Fizestes do perigo o vosso ofcio, coisa que no para se desprezar.

    Expirou. Zaratustra fechou-lhe os olhos.Pensei se o defunto acordou da morte para a vida ou de um sono sem sonhos.

    Continuei a anotar:

    - Coisa para preocupar a vida humana, sempre vazia de sentido. Quero descobrir o sentido daexistncia, o relmpago que brota da sombria nuvem homem.

    Duvidei que to sbio profeta no soubesse o sentido da existncia. E mais que nunca quisver o relmpago que brota de uma nuvem sombria chamada homem. O homem tem qualquercoisa de nebuloso. a dvida: somos imortais? Transcenderemos a matria aps a morte?Zaratustra j quis ensinar aos homens o sentido da existncia, foi o que aprendi dele antes. Quesucedeu? Tudo diferente! Um sculo, um instante, d no mesmo. Meu profeta ia pregandomontanha acima, a caminho da caverna. , tarde da minha vida! Quanto eu no dei para ter uma

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    s coisa: esse viveiro dos meus pensamentos e essa luz matinal das minhas mais altasesperanas!

    CAPTULO 4EM VRIOS TEMPOSEM VRIOS TEMPOS

    A noite quer sobrepor-se ao dia pela fora da escurido. Salta a lua azul na colina envolta denvoa. Chega a hora de voltar para a caverna. Zaratustra vai buscar lenha. Os animaisacompanham. Lembro do tempo em que eu avistava a lua cheia da janela pulando da serra. Dia

    que antecipou o parto do meu filho. Dispara um tic-tac horrvel, arrebentando os miolos. Sinto acabea rodar. Um filme passa rpido sempre numa sala de cirurgia. Tonta, caio com os olhos defrente para a lua engrandecida.

    Sou vossa prenhez! , diz a lua. O tic-tac gargalhava, advertindo-me que eu ia perdendo omeu beb nos braos do mundo. Numa pedra beira da caverna est escrito em letras garrafais:

    H uma coisa forte em ser menina. ser a menina dos olhos dos meninos, na meninicedos olhos do mundo. Ah, mundo! Menino dos olhos da menina!

    Isso muito antigo! Um amigo escreveu num pedao de papel. Lembro-me que eu

    queria abraar o mundo inteiro com meus ideais e paixes. Ento tirei a roupa do martrio ededuzi, um tanto agitada:

    - Nandi! Zaratustra! Pelo amor de Deus, socorro! Zaratustra, Nandi! J sei por que perdi meusfilhos! No foi o Deus do castigo que os levou de mim, nem a vida os tragou como o mar. No!No me cabe o perdo onde no h crime! Foi o mau tempo!

    Tempo! Fico inventada pelo sistema para escravizar os tiranos, os prprios inventores,fracos subservientes. Quem o relgio para ousar ditar o tempo? Detm vidas? Controla imbecisescravos de ponteiros. Pobre do que olha para o relgio ansioso por chegar a tempo! o relgioo maior tirano de todos os tempos e nada conhece sobre o tempo. Se o conhecesse, marcaria ashoras sozinho. Sem areia, corda, bateria, o que faz? Arranquemo-los das paredes, dos pulsos!Invertamos os nmeros! Rodemos os ponteiros e os marcadores ao contrrio!

    Dal, astro das artes plsticas, fostes ousado, mas nunca subversivo. Vossa propaganda serviupara vos enriquecer, enfeitar paredes milionrias, ornamento belo e intil humanidade. Vossonome Salvador; mas parece-me que a ningum salvou. Que chance de despertar os homens comos Relgios Dobrados, Dal! gritei. Dai serpente asas para voar, porque assim o quero. Serastuta como a vbora e leve como a guia!

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    - Sereis! confirma uma voz desconhecida. Metdica, pausada. Quem?

    - Quem me fala ao inconsciente? Eu em outra vida? Deus vestido de mim ou o pssaro com quemfalei ontem?

    - Sigmund Freud vos fala. O tic-tac irrita-vos porque um dia em vosso milnio vale por dois. Otempo uma criana rodando. Uma criana girando um pio. Girando o globo terrestre! O quecr na dana dos ponteiros ainda no sabe que nada sabe, mxima do divino Scrates. O tic-tacapenas serve para lembrar aos homens que as horas so nada. A enfastiar os escravos. Aarrebentar-lhes os ouvidos, avisando, revelia, que a hora se vai!

    - Freud! Zaratustra foi buscar lenha... e ... e ... engasguei.

    - convosco que desejo falar, amiga pensante. Dizei-me o porqu de vossa angstia que brevesabereis suport-la.

    - Como resgatar meus filhos sequestrados pela vida? No sei em que tempo hei de encontr-los,se que os encontrarei. Se chegarei a tempo. Di o meu corao! Lembranas! Preciso sepult-las ou me enterrar de vez. Prometi ao profeta no carreg-las na bagagem e segui-lo em silncio.Todavia, preciso muito chorar as minhas perdas. Entretanto, as lgrimas envergonham-me.Drogas lcitas sufocam-me a dor, que desce cada dia para um canto do peito. Asfixia... A dor quenunca morre!

    - Destemida discpula: prometeis chorar toda a lgrima que necessitar escorrer pela face tosingela. Sois forte. No perdestes a guerra. Se no conquistardes vossos filhos neste tempo, juro,nalgum tempo havereis de faz-lo. Desabafai com Zaratustra; segui-o com dedicao. Dobrai osjoelhos de ter em companhia to grande homem. Vivei tudo o que puderdes e comoentenderdes, porque o esplendor cair-lhe- pela cabea em forma de letras, desenhando umcaminho de luz e redeno. O vosso ousar pr a face a bater ser a glria. O destino assim a quis:valente! E quando um dia transformar-vos noutra, entendereis que as pequenas coisas so para ospequenos, no absolutamente para os grandes. Fostes grande. Sede corajosa, e no suportai, masamai a vida. Encontrarmo-nos-emos nalgum tempo!

    Sumiu Freud feito fumaa, rindo com tal ironia. Entrementes, ouvi uma voz autoritriabradando como o monstro Jaguadarte, estremecendo o cho. Ora, eu no estava no Pas dasMaravilhas, nem me chamo Alice! A voz rebelou-se:- Falais de uma sala de cirurgia, conversais com o Sr. de Voltaire, com Zaratustra, com Freud...Sois mui confusa!

    - Quem me fala to arrogante, cuja voz me irrita tanto?

    - Sou aquele cuja luz no vedes. O que falta a todos os vossos projetos e que, no entanto, sobraem demasia quando se espera. No me apalpais nem conseguis me segurar em to dbeis mos! e riu escandalosamente. Angustiou-me.

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    - Quem sois? insisti. Que mal fiz a vs?

    - Prepotente! Sou aquele que ousais transgredir todo o tempo... Sou o Tempo! O que perdeu ocontrole sobre vossa vida, fantoche. Sou o dono dos vossos instantes, de vossa existncia! Sou euquem permite a vossa transgresso intelectual pelos mundos!

    - Imbecil! gargalhei sarcasticamente. Tempo, vou dizer o que h sculos quero dizer: sou abailarina a danar sobre a vossa cabea. Dano vrias msicas de qualquer poca, em qualquerdimenso. Quem pensais que sois? Deus vosso dedo ordenador, que me permite bailar sobrevs, posto que moro onde quiser e sou vrias ao mesmo tempo! Ah, converso convosco agora?Ora, neste instante escuto a voz de Scrates ... a dialogar com Xenofontes. Adeus, amigo dashoras!

    Desapontado, aconselhou-me:

    - A vida somente pode ser compreendida olhando-se para trs, mas s pode ser vivida olhando-se para a frente.

    Chorei bastante. Invoquei aos cus que me desfizesse do n em que me encontrava.

    - Sois o inimigo de nossos objetivos. Sempre lutamos contra vs, sem, no entanto, conversarmossobre quem de fato sois.

    - Mas este pensamento no meu! explicou-se.

    - No importa! O tempo de Deus no o dos homens. Esse pensamento refora minhanecessidade de ser o que sou, independente do que fiz.

    Voltaire apareceu velhinho, de perfil, enfraquecido, sentado sobre uma pedra. Recostou-sesobre um toco de rvore seca, e, com a voz baixa voz de ancio, sbio como o tempo permite, erespondeu o enigma de todos tempos:

    - Nada mais longo, pois que a medida da eternidade. Nada mais curto, pois que falta a todosos nossos projetos. Nada mais lento para quem espera. Nada mais rpido para quem desfruta a vida.Estende-se em grandeza at o infinito. Divide-se at o infinito em pequenez. Todos os homens onegligenciam. Todos lamentam-lhe a perda. Nada se faz sem ele, que faz esquecer tudo o que indigno da posteridade e imortaliza todas as grandes coisas riu, olhando-me como se chorasse:um riso banguela, um olhar marcado pelo tempo.

    Engasgada pela emoo de rever meu amigo, quis toc-lo. Mas Voltaire s estava ali porum tempo. Some o vulto, a voz, a sabedoria e toda a luz. Estamos em vrios lugares do mundo inclusive noutro tempo , mas sempre vamos junto. No d para deixar a gente para trs, comoum embrulho que se quer lanar ao mar.

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    CAPTULO 5CAPTULO 5O ESPRITO SLIDOO ESPRITO SLIDO

    Entra Zaratustra com lenhas para aquecer a caverna. Trouxe um cobertor, deu-me uma erva

    amarga para mascar, o qat, e fumou uma erva alucingena. Acendeu a fogueira e falou:- Quem d comida ao faminto reconforta a prpria alma. Eis a sabedoria. Po e vinho tambmtrago. O que bate minha porta deve receber o que ofereo. Comei e passai bem. Deixai o chorosair. preciso esvaziar um poo para encher outro. As roldanas cantaro e esse belo canto vosfar espantar os fantasmas do passado. Dormi que amanh brindaremos a alvorada.

    Ele reconfortava-me o esprito, acalentando-o. Tornou a andar outras tantas horas,orientando-se pelo caminho e pela luz das estrelas, porque acostumado com as caminhadasnoturnas e tudo contemplava, tudo quanto dorme. Um raio de luz atravessou-lhe a alma.

    Pensou:

    Que os raios de ventura que ainda esto a caminho entre o cu e a Terra procurem um asilonuma alma luminosa! Devo falar a companheiros! Outros discpulos!

    Quis ser chamado pelo povo de ladro de rebanhos:

    Preciso de companheiros, mas vivos, e no de mortos e cadveres, que levo para onde quero.Preciso de companheiros que me sigam porque desejam seguir-se a si mesmos. Homens vivosque decidam para onde vo. Darei o rio, a correnteza, os rochedos. Os que se soltarem, a estes eudenomino pastores. Mas eles se consideram os donos da verdade. Vede os bons e os justos:odeiam mais a quem lhes despedaa a tbua de valores. este o criador! No devo ser pastornem coveiro! Entoarei o meu cntico aos solitrios e aos que se encontram juntos na solido.

    Dormiu muito tempo e por ele passou no s a aurora, mas toda a manh. Por fim, abriu osolhos e ouviu, admirado, o silncio. Perplexo, olhou para dentro de si mesmo.

    Voltou animado:

    - Irm do mar, do espao, amei a solido em rochedos speros. Desprendi-me dela. Arrebentei-me. E renasci! As pedras esperam-me para quando eu nascer de outras cinzas e tiver vises deoutros lugares, iluminado por outros sis.

    Eu aprendi a andar, por conseguinte corro. Eu aprendi a voar, por conseguinte no quero queme empurrem. Agora sou leve! Agora voo. Agora vejo por baixo de mim mesmo. Agora salta emmim um Deus!

    Quero ver duendes! O valor que afugenta os fantasmas cria os seus prprios duendes: ovalor quer rir?

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    Quereria que a loucura se chamasse verdade, ou fidelidade, ou justia. Mas eles tm virtudedemais para viver em msera conformidade.

    Uma coisa o pensamento, outra a ao, outra a imagem da ao. A roda da causalidade nogira entre elas. Uma imagem fez empalidecer o homem da boa nova e o transformou em

    smbolo de sofrimento. Ele estava altura do seu ato quando o realizou, mas no suportou aprpria imagem depois de o terem consumado. Ouvi, juzes! Ainda h outra loucura: a loucuraantes do ato.

    A partir daquele momento, eu comeava a leros pensamentos de Zaratustra e sobretudo aouvir a voz de Nietzsche, ditando o que ele desejava ler em meus escritos.

    Amanhecia. O cu pintava-se de rosa e azul anil, anunciando o frio glacial da montanha. Euo contemplava. Cada instante. Cada metamorfose de cores. Jamais me esquecerei desta paisagem.Ao longe, o deserto dourado escondia tesouros, segredos, cdigos que ainda hei de decifrar. Talqual o mar: secreto, misterioso. Como belo este lugar!

    Zaratustra sentou-se ao meu lado e me perguntou astutamente:

    - Sereis ladra de rebanho?

    - Lgico! respondi sem pensar.

    Riu-se. Viu a guia sustentando nos ps a serpente e o corvo.

    - O mais arrogante segura o mais astuto e o mais humilde falastro. Perigosas sendas. Guiem-nosos animais!

    No deserto, o sol na cabea, a areia dourada, uma caravana desfilava. O profeta ordenou queo anotasse e pensasse:

    - O esprito slido pergunta: O que mais pesado? Ser rebaixarmo-nos para o nosso orgulhopadecer? Deixar brilhar a nossa loucura para zombarmos da nossa sensatez? Sustentarmo-noscom ervas do conhecimento e sofrerfome na alma por causa da verdade? Ou ser amar os quenos desprezam? Estender a nossa mo quando se nos quer assustar? No deserto mais solitrio oesprito torna-se leo. Quer conquistar a liberdade; ser senhor do deserto. Quer ser seu inimigo ede seus dias, lutar pela vitria contra o drago.

    - Que drago?

    - O vs deveis Em mim brilha o valor de todas as coisas. Todos os valores j foram criados.Sou todos eles.

    Saltou do animal besta para o animal homem, to besta como os outros animais:

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    - A criana a inocncia. O esquecimento. O recomear. Um lindo brinquedo. Uma roda que girasobre si mesma. Uma santa afirmao! D-me saudade da criana que habita em mim confessou-me um adulto pela fora da vida.

    - Santo Deus, necessito desenterrar meus filhos! Ser como ouvir o canto da roldana enferrujada

    no deserto. Puxar gua doce em meio ao Saara. Fazer o cata-vento rodar! Trazer o vento de voltaat que eu possa morrer abenoando. Dai-me gua, amigo?

    - Darei o que quiserdes, ovelha desgarrada que estimo e respeito, mas no serei coveiro de novo.De vs espero o esplendor, no a morte. Se virdes vossas crias, morrereis de fome e sede na alma.Por que o amor do beb entregastes a outros. Fostes sobre-humana sem saber. E no se olha paratrs quando se subiu tanto! Se olhardes para trs, caireis como que de um penhasco. Nem corpoterei para enterrar! Que preferis?

    Entalei. A asfixia pedia gua. O corpo, deciso. Pensei no abismo de mim mesma. Entodecidi:

    - Viver. Vossa conduta minha. A loucura tambm.

    - ... E se um dia a minha prudncia me abandonar, possa sequer a minha altivez voar com aminha loucura e riu comigo.

    - Possa eu tambm faz-lo, pulando daquela pedra ali. Seguir a mar controlada pelas leis fsica emoral.

    Meu amigo ficou srio de repente. Pediu que o anotasse mais, pois se lembrou de um santoancio que muito o ensinou:

    O velho, dizia, vivia isolado numa choupana. Era negro, fumava, e sempre meaconselhava a dormir sobre o silncio, na letargia, a viver o dia, a bendizer a morte: santacomo um beb! A crer que somos menores que um gro de areia tomos! e a ficar bem longedos homens srdidos. O santo velho vivera vinte mil vezes. E aprendera nas entrevidas que sedeve sofrer menos, evitar a dor, mas evitar sempre. Era um demnio, esse santo. Vs oconhecestes e havereis de rev-lo. Dava-me conselhos:

    Eu no dou esmolas! No sou pobre demais para isso! eu dizia-lhe.

    No sois pobre demais para dar esmolas? Vedes, ento, como vos arranjareis para aceitaremos vossos tesouros!

    Cabisbaixo, o profeta por fim levantou a cabea, como se houvesse engolido uma dor, o olharumedecido de lgrimas. Para mim, o ancio era muito mais do que um velho agarrado solidode uma choupana. Era um enigma. Meu, no de Zaratustra. Apenas no entendi o porqu daslgrimas. Ento meu amigo ditou os sete mandamentos do sono, com uma fina ironia que beiravao cinismo:

    Dez vezes ao dia deveis saber vencer-vos, o que fadiga muito;

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    Dez vezes ao dia deveis reconciliar-vos convosco: amargo vencer a si mesmo; Dez verdades havereis de encontrar durante o dia, seno procurareis verdades noite; Dez vezes ao dia precisareis rir; Paz com Deus, paz com o prximo e paz com o diabo do prximo; No quereis muitas honras nem muitos tesouros: exacerbam a blis;

    Somente se pensa no que se fez durante o dia. Ruminando, o homem interroga-sepacientemente como uma vaca!

    A sabedoria do ruminar eu no havia observado. A do tronco torto, sim. Quando um troncoest torto, no que j nasceu torto, mas porque foi mal plantado. Assim sucede com o ser ditohumano.

    Se no ruminarmos como as vacas e no olharmos para trs, no poderemos entrar no reinodos cus, recordava, enquanto o sono abeirava-se.

    Dormimos um sono profundo. Sonhei com uma tourada: era um touro enfurecido, olhos

    vedados, correndo em busca daquele que me desafiava. Entrevia, apesar da cegueira, um homemagitando um pano vermelho. Quis atravessar-lhe com meus chifres. Sbito, tornei-me o toureiro.E, do nada, Gandhi apareceu flutuando, pedindo-me paz. O sonho mudou de lugar: trs mulheressurgiam, face a face, uma a uma, enfurecendo-me mais do que o toureiro. Batia-lhesviolentamente. Puxei uma espada, degolei-as. Cabeas ao cho, rostos mortos, olhando-me.Levantei suando. Fui para o Lago Ninfas: os rostos estavam l, supliciados, implorando de volta avida que roubei.

    De modo algum! pensei Vocs bebero o prprio sangue para limpar o quederramaram dentro de mim, filhas do demnio. Ser? Angustiada, quis acordar Zaratustra. Umadas mulheres falou, enquanto se afogava:

    Tudo o que tentamos foi salvar vosso filho. Vossa ingratido no para conosco, mas paraconvosco. Temos que nos indignar com as nossas prprias atitudes, no com a dos outros.

    Zaratustra ainda no sabia de minhas escapadas na madrugada, meu nome, nem as minhasconversas com os meus eternos pesadelos. Eu sugava da madrugada toda a energia datransformao. A estrela Shetah brilhou antes do sol. Pediu que a pedisse um presente:

    A surra dos lacaios exilou-me de um caminho prspero, mas tambm me deu fora paraseguir na aridez do deserto. Conhecer Zaratustra algo como encontrar nas profundezas do marum ba repleto de tesouros. Peo que brilheis todos os dias para mim!

    O profeta era um ba indecifrvel que, eu no sabia, iria procurar at depois de morta nasprofundezas do mar. Com outro nome. Outra vida.

    Acordamos a tempo de ver a aurora varrer do cu as estrelas e empalidecer a luaminguante.

    - Grande astro! bradamos juntos.

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    beira da colina, ele pediu polidamente que lhe anotasse os pensamentos. Pregaria comfome de sentenciar. Amanheci com fome de ouvir.

    Bem-aventurados os pobres de esprito. Vivem abundantemente quando se lhes d sempre

    razo. Assim passam o dia os virtuosos, segundo os preceitos daquele que desceu sob um grandemistrio e cuja passagem pela Terra foi to efmera quanto obscura, mas cujas verdadestraspassam todos os dogmas fraudulentos. O Cristo, que pouco viveu, deixou-nos umaincalculvel herana: um enigma! Em profunda ignorncia acerca da vida aps a morte. Morreu atempo: claro que o que nunca viveu a tempo no tem como morrer a tempo. Melhor nonascer.

    Ainda que encontrasse argumentos fortes neste pensamento, sentia machucar meu peito, pelaf em Jesus Cristo. Sentia tremer os dedos por escrever palavras to temerrias. Eu era apenasuma discpula!

    Eis os tsicos da alma. Mal nasceram e j comeam a morrer. Sonham com a doutrina docansao e da renncia. Queriam estar mortos e ns devemos santificar-lhes a vontade. Livremo-nos de ressuscitar esses mortos e de lhes violar as sepulturas. Encontram um doente, um velho ouum cadver e depois dizem: Reprove-se a vida!. Os reprovados so eles, como os olhos deles,que s veem um aspecto da existncia. Sumidos na densa melancolia e vidos por acidentes quematam, esperam a morte cerrando os dentes.

    Com um clice de cristal mo, brindei, alegremente:

    - Sade! Aos pobres de esprito desse mundo, muita sade! Porque eles precisam enriquecer aalma.

    Ironizou a criao do mundo sem brindar:

    O Criador queria desviar-se de si o olhar e criou o mundo. Para quem sofre uma alegriaesquecer o sofrimento. Alegria inebriante e esquecimento de si mesmo pareceu-me um dia omundo. Este globo um nada celestial , eternamente imperfeito, um espectro de uma grandecontradio. Seria para mim um sofrimento e um tormento crer em tais fantasmas. O mundo brio. Tudo invertido. Tosco cenrio de vinganas. H algo de muito torto na alma humana,este espelho da criao. O homem um rio turvo. preciso ser um mar para, sem se toldar,receber um rio turvo.

    Fiz uma espcie de digresso da vida. Momentos de dor e prazer. Julguei-o Elias, como os

    judeus acreditavam s-lo Cristo. Nada disso. Zaratustra como um grande martelo. Tijolo portijolo, vai demolindo a doutrina dos hipcritas. Esse prazer de estar ao lado de to precioso amigo indescritvel.

    Foi o corpo que desesperou do corpo! prosseguiu.Foi o corpo que desesperou da terra: tateou com os dedos de um esprito apavorado as

    ltimas paredes. Viu as entranhas do ser. Quis que sua cabea ultrapassasse as paredes: e no s acabea, at ele mesmo quis passar para o outro mundo.

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    Isso me lembrava uma obra de Salvador Dal. As paredes de um ovo tecido de dvidas,malevel, um pano elstico, um ovo chamado Terra, um ovo sufocante chamado homem. Um ovobranco e pequeno: asfixiante. Deus tentou sair do ovo, sufocado com a pequenez do globo. Haviamuitos deuses!

    Ele prosseguia:

    ... Quis passar para o outro mundo, porque esse mundo descaminhado o nada estoculto aos homens e as entranhas do ser no falam aos homens, a no ser como homem. Ou scom o profeta Moiss, com quem Deus conversou cara a cara e no revelou o segredo daimortalidade da alma. Deus teve um acesso e criou o que se chama homem. Decepcionado, quismatar todos. No os matou. Multiplicou-os!

    Rir... Foi o riso que me deu de presente o primeiro indcio de que era correspondida. Comeceia desenh-lo: s consegui tal prodgio conversando sobre religio. Ele adora religio! Assim,falando das Sagradas Escrituras, desenhava-o como a um sol. Iluminado, cheio de sabedoria,rugas no rosto, de uma beleza insuportvel. A expresso de meu amigo ria-se com o cinismo dohomem sbio. Belo retrato guardado em meu corao. As folhas voaram como as palavras aovento. Contudo, as letras marcadas pelo desenho de pulso firme ficaram impregnadas no coraomorada das almas. O olhar do meu mestre ia para no sei onde. Tamborilando, ele cantavamelodias rabes, invocando a respirao do estmago e deixando passar por todo o corpo aenergia:

    O ar deve penetrar nas entranhas. Tem de atravessar todos os rgos, porque meu corpo fogo. Quando eu voltar s cinzas, o fogo me ressuscitar.

    Respirar pelo estmago... Eu j havia feito isto. Fazei. para conviver com o demnio.Temos energia de sobra; necessitamos equilibrar. Ponde vosso esprito em repouso ensinava eesquecei tudo: o dia, a vida, os desejos, o dio. Procurai no pensar em nada. Necessita o corporepousar, sentir apenas o ar. Esvaziar a mente. Aspirar todo o ar possvel, encher o peito e expirarinteiramente, sem deixar nada, absolutamente. O ar sagrado. E quando viaja nas entranhas,abenoa. Aprendei a respirar pelo estmago e no tereis aflio. A paz e a felicidade esto bemprximas. Na luminosidade de ambas conhecemos a divindade. Fareis uma aliana com adivindade, pronta para se aliar com o demnio que impera dentro de vs? desafiou-me.

    O divino com o demnio. Eis algo naquele tempo impossvel para mim. Respirei comoensinou. Exercitei o que parecia bastante chato exigia disciplina. Mas a paz traziaautoconfiana: Cada um trava as prprias batalhas, dizia para mim.

    Sobrava apenas um pedao de cu dourado. Uma enorme fatia de laranja para a noite, quelambia os beios, estava louca para comer. Sol e vontade inefvel de sol: o sol do meu amorderreteu o gelo do meu corao. Zaratustra nem sonhava com isto. Eu o estudava. Belo, muitobelo, mas homem demais para se deixar vencer pelo prazer. Conviver comigo. Conviver com odemnio de mim. Era preciso desenhar muito e escrever o dia inteiro. Nem olhar para ele.Seduo bendita. Homem do deserto, sbio como a morte. Saltei do papel para um banho gelado.

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    Furiosamente trabalhei. Escrevia sem parar. Pensei em Nietzsche. Na solido dele. Na dor. Naloucura. Na morte. Deus, que desmazelo para a onipotncia!

    Sois deusa do deserto. No procureis os homens, ficai na montanha. Preferis a companhiados homens dos animais? Por que no quereis ser como eu, urso entre os ursos, ave entre as

    aves? perguntava-me, percebendo a minha insacivel tendncia de rondar fora de mim. Porminha vez, eu queria saber: Que fazeis quando no me acompanhveis junto neve, noalvorecer, na madrugada sem lua?

    Eu cantava cnticos. Ria. Chorava. Assim louvava a mim. Ao deus que habita em mim,mesmo que o diga morto. Os homens esto mortos para a vida desde que fizeram de Deus umsacerdote. Eu cantava, murmurava, chorava em silncio. Louvo ao Deus vivo, no ao quemataram.

    Esse sbio solitrio tem qualquer coisa de mim tambm. Sinto calafrio quando recordo a vidade quem o criou. Meu implacvel amigo guerreador de pensamentos me deu de presente umhomem furioso. Pressinto-lhe... Esqueci o pressentimento e escrevi para Nietzsche, nosso criador:

    O solitrio, o pensador incompreendido em seu tempo, um homem frente do tempo,que depois de desprezado, criticado e caluniado, depois de enlouquecer com a dor dasolido e nela morrer tornou-se clebre.

    - Calhamaos de livros a dizerem calnias de um defunto. Biltres!

    - Calma! disse-me uma voz sarcstica. Os mortos zombam da calnia, mas os vivospodem vir a morrer...

    - Ah, Voltaire!

    A solido o mais sublime estado da alma. Foi na solido que conheci diversos filsofos.Sobretudo, senti a solido dos meus amigos pensadores. Por isso saltava da cama antes do solapresentar-se minha janela. A solido salvou-me!

    - Creio. A solido independncia. Eu a tinha desejado h muito tempo. fria! Mas infinitamente grande. Maravilhosamente tranquila, como o espao sideral onde se deslocam asestrelas! sussurrou Herman Hesse, num breve momento.

    - Hesse? Sou bastante rica para receber esmolas! Hesse!!!

    - Senti necessidade de esclarecer o que sentis por Nietzsche. Sonhei convosco no topo de umagrande montanha no dia da lua azul. Freud acalentou-vos no desespero; quero acalentar-vos nasolido.

    - Hesse? silncio absoluto. E a solido do abandono, sbio? Choro por Nietzsche porque ele o meu espelho. Amou muito, foi desprezado. Di descobrir no espelho olhos sem vio. Serdesprezada por quem se travou longa batalha. Perder guerras empreendidas em defesa da vida emorrer por ser incompetente diante do mundo. Ser um verme: um verme da terra. Escapuliram-

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    se-me das mos o poder e a glria por se acreditar na honestidade. Zaratustra bom, mas homem. Ser ponte da superao a troco de pancadas.

    No compreendi Hesse. Se tinha o que dizer, por que disse to pouco? Se no tinha, porque falou? Zaratustra respondeu por ele:

    - difcil demonstrar o ser e mais difcil faz-lo falar.

    O profeta lia meus pensamentos deitados no papel.

    - Deixai-os no papel. Sero teis. Mas anotai agora. A mais estranha de todas as coisas acaso noser a melhor demonstrada?

    - preciso desconfiar tanto daquilo que se cr entender to facilmente quanto daquilo que no seentende.

    - Que o macaco para o homem? Uma irriso ou uma dolorosa vergonha. Pois o mesmo quedeve ser o homem para o macaco. Percorremos o caminho que medeia do verme ao homem eainda em ns resta muito verme. Fomos macaco e hoje ainda somos mais macacos do que todosos macacos. O mais sbio de todos os homens no passa de uma mistura hbrida de planta efantasma. Anotai.

    Pensei nos tomos de Epicuro, nos intermundos de Swift, na pluralidade dos mundos deFontenelle, no determinismo de Darwin e em outras teorias mais loucas que as minhas.

    CAPTULO 6CAPTULO 6A MORTE E A ESTRELAA MORTE E A ESTRELA

    Nos primeiros meses com Zaratustra, a aurora vinha junto com o anoitecer. Muito o queouvir, pouco o que dizer. Menos ainda me atrever a desgarrar-me dele. Passaram-se anos. Longoscomo a sublime solido e belos como ela. Meu profeta (e ser eternamente) demasiado humano.

    Quando ningum aparece para nos socorrer, no auge do desespero, o Universo inteiroconspira a nosso favor. Envia-nos sinais: s atentar para eles. Esto por todos os lados. Bastadecifrar-lhes o cdigo, o que, para os solitrios, o mesmo que conversar com Deus.

    Era a voz da Tiza.Zaratustra falava ao vento e as prolas eu as recolhia. Agarram as prolas os que gostam de

    ostras. Certa noite, sentados admirando o cu, vi uma estrela desgarrar-se como uma centelha defogo.

    - Na noite disse-lhe , no deserto da noite, d para vero perfume da solido. A dor da vida e ador da morte desguam juntas no oceano, porque amar di. E s o oceano consegue aplacartamanhas dores. S ele segura com mos selvagens as dores do mundo. Vede: o cu tambm tem

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    um ba de diamantes e ningum roubou as jias dele, pois o imperador do mundo vigia asestrelas. Cada estrela uma vida. Cada vida um deserto. E cada estrela brilha implacavelmente.Implacavelmente brilha sem saber.

    Vi uma estrela atravessar o cu feito um relmpago. Mais uma vida morre em algum planeta,

    pois, ao morrermos, tornamo-nos estrelas. Por que os homens somos como os planetas:precisamos do sol para termos um pouco de luz. Entretanto, ao morrermos, viramos estrelas. Eoferecemos o nosso brilho aos que ainda vivem neste vale de lgrimas. De vez em quando cai umasteride. um anjo a nos auscultar o corao faminto de amor e a ouvir as nossas preces,pranteando a solido em meio a bilhes de solitrios. Fazemos pedidos e nos sentimos, assim,acompanhados diante da imensa insensatez deste mundo. Mas, afinal, as lgrimas nunca paramde cair! E por qu? interrogar-me-eis. Por que a dor, que asfixia, nunca morre. Apenas fingeque enfraquece. A gente que morre de dor. Adoece.

    Senti uma forte pontada no peito. Nos momentos mais tristes atentava para o cu. Via animaisnas nuvens, em troncos de rvores. Ouvia a voz sagrada do Universo. No queria curar-me demim mesma. E, se na pior depresso todos me abandonam, prefiro a morte a submeter-me aosdonos da alegria. Sou eu. Morrerei eu. Meu esprito atentava-se para as nuvens passeando ecomentava comigo: Hoje as estrelas esto de folga. As nuvens so as estrelas. Aplaudamos,porque enfeitam diferente. Fazem cair gotas sagradas dgua, lavam a alma. As estrelascontinuam estrelas, mas hoje elas dormem!

    Zaratustra tocou-me, porque eu o havia tocado. Meu nome de batismo surgiu, enfim:

    - Apesar da noite, Mos de Jasmim, h muito sol escondido na escurido como a lua no eclipse.Desprezadora do corpo: desprezais aquilo a quem deveis a estima falou muito srio. Virou-separa o cu, semblante duro: Quem criou a estima, o menosprezo, o valor e a vontade? Oprprio criador criou para si mesmo o esprito como emanao da vontade. At na loucura edesdm sereis o ser.

    Ele sabia de toda a minha existncia.

    - H mais razo no corpo que na melhor sabedoria. E quem sabe para que necessita o corpoprecisamente da melhor sabedoria? O prprio ser se ri do eu e dos nossos saltos arrogantes. Quesignificam esses saltos e voos do pensamento? Um rodeio para um fim. O nosso ser diz ao eu:Experimentai dores! E sofre e medita em no sofrer mais. E para isso deveis pensar. O nossoprprio ser diz ao eu: Experimentai alegrias! Regozija-se e pensa em continuar a regozijar-sesempre. E para isso deveis pensar. Digo: desprezais ao que deveis a estima. E por isso deveispensar. Quereis morrer e vos afastar da vida! No podeis fazer mais o que desejais: criar. Quereisdesaparecer, deslizando-vos furtivamente na madrugada embriagada de lua e desprezais o corpo?No vosso olhar desdenhoso se esconde uma nuvem carregada! Sangram as entranhas!

    - Verdade. Amo ainda o que me estende as mos para me assustar, por isso louvo a madrugada. Osilncio que brota no vazio cheio de segredos, de estrelas que no consigo pescar, por este motivodesprezo meu corpo luz do dia. Que o corpo? Carne. Que a beleza do corpo? O m para ainveja. A ausncia da beleza no corpo a prpria inveja. O corpo serve apenas para carregar umesprito. O esprito tem que ser sbio, do contrrio possui um corpo vazio.

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    -... Amo a virtude terrena que no se relaciona com a sabedoria nem com os segredos, nem com osentir comum. Criar valores novos coisa que a humanidade moderna ainda no consegue. Mascriar uma liberdade para a nova criao, isso ela pode! Acaso a guerra e a batalha so males?

    - Os piores.- Pois so males necessrios a inveja, a desconfiana e a calnia.

    - A calnia? Qual! A calnia como lanar de um penhasco penas de ganso ao vento. Quemconseguir colher uma a uma aps espalharem-se?

    - Reparai como uma das virtudes deseja o mais alto que h: quer todo o seu esprito para ser oarauto. Quer toda a sua fora na clera, no dio, no amor.

    Clera. Amor. O profeta mudou o semblante bruscamente. Apresentou-se como o ntimo dohomem, os olhos revirando em rbitas avermelhadas de dio. Enfiou a cabea entre as pernas,fechou os olhos, espremeu as mos na cabea. Ficou bastante depressivo e ordenou que no ointerrompesse, enquanto falava com uma voz em tom bastante grave, num raspar de garganta quemetia medo. Anotei arrepiada dos ps cabea:

    Aquele homem plido estava acima de seu ato quando o realizou, mas no o suportou depoisde t-lo consumado e pediu socorro a Deus. Aps dizer isto, mudou o tom de voz: ficou maispesada. Zaratustra vomitava tristemente a raiva contida contra a humanidade moderna, que amasmbolos de papel e de barro:

    - H dias em que sou visitado por um sentimento mais negro que a mais negra melancolia: odesprezo pelos homens. Que no haja qualquer dvida sobre o que desprezo, sobre quemdesprezo: o homem. Seu hlito podre me asfixia! Em relao ao passado, como todos osestudiosos, tenho muita tolerncia, um generoso autocontrole: com uma melanclica precauoatravesso milnios inteiros de um mundo manicmio chame a isso cristianismo, f cristou Igreja Crist. Tomo o cuidado de no responsabilizar a humanidade por sua demncia. Masum sentimento irrefrevel irrompe no momento em que entro nos tempos modernos, na pocamais esclarecida... O que era apenas doentio agora se tornou indecente: uma indecncia sercristo hoje em dia! E aqui comea a minha repugnncia.

    Olho minha volta: no resta sequer uma palavra do que outrora se chamava verdade. Jno suporto mais que um padre pronuncie tal palavra. Mesmo um homem com as mais modestaspretenses integridade precisa saber que um telogo, um padre, um papa de hoje no apenas seengana quando fala, mas na verdade mente. J no se isenta de sua culpa atravs da inocncia,ou ignorncia. O padre sabe, como todos, que no h qualquer Deus, nem pecado, nemsalvador; que o livre arbtrio e a ordem moral do mundo so mentiras. A profundaautossuperao espiritual impedem que quaisquer homens finjam no saber disso. O valor detodas essas sinistras invenes do padre e da Igreja e para que fins serviram cujo aspectoinspira nusea o conceito de outro mundo, juzo final, imortalidade da alma, da prpriaalma no passam de instrumentos de tortura.

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    Todos sabem disso, mas nada mudou. Para onde foi o nosso ltimo resqucio de decncia, derespeito, se nossos homens de Estado em geral homens profundamente anticristos em seusatos agora se denominam cristos? Quem o cristianismo nega? O que ele chama o mundo?Defende-se a si mesmo? Zela pela honra? Deseja a prpria vantagem? O ser orgulhoso! Todaprtica trivial, todo instinto, toda valorao convertida em ato agora anticrist: que monstro de

    falsidade o homem moderno precisa ser para se denominar um cristo sem envergonhar-se! Emverdade vos digo: o padre reina desde que inventaram o pecado! Inventaram sentimentos maus,como o dio, a inveja, o cimes, para que o homem transpusesse-os. Para se elevarespiritualmente.

    O profeta soltou a cabea das pernas para suspirar profundamente. Aliviou-se com odesabafo. Qu!- exclamou, desprendendo o ar preso no peito anticristo e ao mesmo tempoconfortando o meu corao. Depois de um agudo grito, inspirou e expirou pausadamente paradizer o que mais desprezvel havia entre os homens que as religies dominam e instigam:

    - O que anda em redor da chama do dio, da inveja, do cimes, acaba qual um escorpio porvoltar contra si mesmo o aguilho envenenado. Andareis girando?

    Empunhando uma espada, ao mesmo tempo em que me concentrava em tal pergunta,interroguei:- E vs? Girareis andando?

    Rondar dentro de ns: eis o que ensina Zaratustra.

    O cu denuncia a alvorada. J volta manso o sol. Que espetculo! No frio da montanhaaquecemo-nos com mantos. E, aps adorarmos o sol, comemos bastantes pes com sucos dedamasco. Saboreamos no clima da montanha a gua dourada no clice de cristal. Brindamos amizade. Rimos muito. Cada estrela que brilha com certeza nos v, irm do mar dizia,bendizendo mais um instante sagrado de maluquez. Zaratustra ria sarcasticamente, como se fosseum homem trgico e bastante galanteador, seduzindo quem j compartilhava o ar puro dabeatitude que impera entre os solitrios. Bebia soro de ervas junto com ele. Conversvamos comas folhas das plantas, amantes do verde, e nos gabvamos de ser dois, em vez de apenas um. Jque um consegue ser dois observe-se a sombra , mas dois no conseguem ser um. Eis o quefalou Zaratustra nesta intimidade quase irm.

    Somos bem e mal. Nada mais! dizia-me. No h enigmas, discpula eterna! Eterna.

    Quanta bondade tem esse homem. No dado a todos fazer o esprito refletir a imundcieescondida. Ele estava mais do que nunca faminto para conversar.

    - Sou um anteparo na margem do rio alertou-me. O que puder prender-me, faa-o. Sabei,porm, que no sou vossa muleta.

    Anotei. E respondi, ofendida:

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    - Sois um rochedo margem de um rio. A que vos segue soltou-se de todos os rochedos. Nadacomo sangrar as entranhas, seja para dar luz, seja para trazer sombra sobre si mesmo, pelomesmo motivo por que se deu vida a vida. A mesma entregou-lha em nome da vida e, assim, aperdeu. Cambaleante, soltou-se dos rochedos. Pensei que morreria! Qual no foi a surpresa,entretanto, ao perceber que dos pedaos de um corpo estraalhado ainda sairia fora para avanar,

    mesmo blasfemando o corpo? Protegi vidas e morri ao perd-las. Minhas mos trabalham noite edia e minha mente rumina precisamente no momento em que no posso olhar para trs!

    Zaratustra gargalhou e me fez rir. Mandou que anotasse nestes termos:

    - De todo o escrito s me agrada aquele que escreve com o sangue. Escrevei com o sangue eaprendereis que o sangue o esprito. difcil compreender o sangue alheio. Detesto todos osociosos que leem.

    - Detestai-me?

    - Lgico... que no! O que escreve em mximas e com o sangue no quer ser lido, mas decorado.Nas montanhas o caminho mais curto de cimo a cimo. Mas preciso pernas altas. Olhais parao alto quando quereis elevar-vos?

    - Lgico!

    - O que escala de elevados montes ri-se de todas as cenas e tragdias da vida. A vida uma cargapesada, mas no vos mostreis to aflita. Todos somos jumentos carregados. Que parecena temoscom o clice de rosa que treme porque o oprime o orvalho? Amamos a vida, mas no por causada vida, e sim pelo amor.

    H sempre um qu de loucura no amor; todavia, h sempre um qu de razo na loucura. Parasaber de felicidade no h como borboletas e bolhas de sabo.

    Vendo uma rvore frondosa, agarrou-se a ela.

    - Se eu quisesse sacudir esta rvore com minhas mos, no poderia. Mas o vento que no vemosaoita-a e a dobra como lhe apraz. Tambm a ns, mos invisveis aoitam-nos e nos dobram. Equanto mais se quer erguer para o alto, para a luz, mais o homem enterra as razes para otenebroso. Para o mal.

    - Lembrai-vos das mos annimas, esquecidas no desamparo. Flores rodopiando na ventaniaassemelham-se a estrelas perdidas na tempestade. todo um mar de sofrimento e angstia quenos rodeia. Apurai a vista para que o aflitivo painel no passe despercebido. Mos, de vriascores, a se debaterem nas sombras. Chegaram Terra como doces promessas de alegria e lutampor sobreviver procura do bem. Pelo amor criana que habita dentro de vs, que inspira abeleza, acendei o lume da bondade e no vos recuseis a socorrer os que acenam da onda revolta,suplicando piedade e carinho. Auxiliai esses lrios humanos a se desvencilharem do lado dastrevas, para que se desenvolvam ao hlito da luz! No negueis a vossa migalha de ternura aosanjos que choram no temporal! Recolhei as mos enregeladas no frio do desencanto e, ao calor desua abnegao, ajudai-as a renascer para a existncia, para que possam esculturar o sonho de

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    perfeio e grandeza no esplendor do amanh. Descerrai as portas do corao para os seres dobero torturado. Protegei-os!

    Fiquei no monlogo por muito tempo. Uma imagem cegava-me os olhos. Era um deserto

    brilhando; um sol insuportvel amarelava o azul do cu numa praia repleta de banhistas. Comeceia gritar. Zaratustra havia descido a montanha, sumiu na neblina, enquanto o vero passeavadiante dos meus olhos. Vozes faziam um barulho irritante numa praia insuportvel. Gritei denovo. Um tique nervoso percorreu meu corpo, pois eu ouvia pessoas rindo de mim. Tirem-medaqui! suplicava. Ningum ouvia. Ento percebi que fumei uma tora de qat, na empolgao daconversa. Enquanto a parania no passava, escutei uma pessoa murmurando nos meus ouvidos:era o velho negro da choupana, que dizia em alto som, em meio quela gritaria da praia ilusria:

    A porta trancada. A arma guardada. A faca afiada. Nojento o ser humano dizia o velho,calvo, barbas enormes. Calvo, setenta anos, antissemita e anticristo. , moa, deixai debobagem! dizia, a boca trancada, os olhos trancados. A porta trancada. A alma trancada. Avida arruinada. Um homem preso em um quarto. Receia abrir a caixa de todos os males eencontrar a pavorosa esperana? O revlver no teme: est engatilhado. A faca no teme. Teme aele mesmo: s arraigadas convices do budismo.

    O diabo, moa, o diabo reina desde que inventaram Deus.

    Olhos perplexos. Aquele velho negro no se estarreceu comigo, propriamente, mas com amulher que renascia. Largou o olhar extico de quem no se espanta, para me espantar com umaacrobacia espiritual. O velho desapareceu. A praia sumiu. Zaratustra de repente surgiu, brilhandocomo o sol e pairando no ar como um fantasma. A serpente enroscou-se-lhe no pescoo; a guia eo corvo pousaram-se-lhe nos ombros. Irradiava uma luz violeta em redor do seu corpo. Belisqueimeus braos para ver se estava acordada. Estava. O profeta soltou o grito do parto que s as mescompreendem o sentido e a histrica melodia. de medo do monstro, do nascimento, da vida.Em meio ao brilho, sorriu bondosamente:

    - H almas que nunca se descobriro, a no ser que se principie por invent-las. J no confioem mim desde que subi s alturas. Transformo-me muito depressa: o meu hoje contradiz o meuontem. Quando chego em cima, ningum me fala. O frio da solido faz-me tiritar. Que quequero nas alturas? O meu desprezo e o meu desejo crescem a par. Quanto mais me elevo, maisdesprezo o que se eleva em mim. Como odeio a minha ascenso! Como odeio a minha queda!Como odeio tudo o que voa! Como me sinto cansado nas alturas!

    Entrementes, pensei:

    Que busca esse esprito errante que fala assim? A glria ou a confuso? No nos dada aglria de pairar no ar como o gnio da lmpada! Odiar o que voa medo de crescer e o receio decair e levantar so sentimentos infantis!

    - Sois uma criana! A santa criana quer brincar e Zaratustra no a quer, porque teme preferir s-la! deduzi, precipitadamente.

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    - Bem o dizeis disse, sentando-se. Ansiei por minha queda ao chegar s alturas e vs fostes oraio que eu esperava. A inveja cerca-vos e me aniquilou. Tenho o corao dilacerado. Melhor doque as palavras, dizem-me os vossos olhos. O beb se foi. Digo-vos: ainda no sois livre.Procurais a liberdade. Temei-a, porque habitais perto demais das nuvens. Cuidai de sonhar menose agir mais. O homem argumenta. A natureza age. Divagar! Esse esprito infantil atormenta-vos,

    pois vos impede de saltar as montanhas. preciso pernas! No cresceram... Eis a incompetncia,aniquiladora de vosso ureo despertar. De vosso criar.

    Uma fina linha desceu do tronco de uma rvore prxima ao abismo. A aranha surge eespreita. Some. Observei os passos dela, as pernas cabeludas calando o monte, adentrando pelaterra escorregadia. Voltei a sondar o profeta, acompanhando de olho os passos da aranha:

    - Trs coisas me so ininteligveis, profeta, e uma quarta ignoro: o caminho da guia pelo ar, ocaminho da cobra sobre a pedra, o caminho do corvo sobre o mar e o caminho dos homens najuventude. E quatro coisas h na Terra, muito pequenas e mais sbias do que os mais sbioshomens: as formigas, fracas, fazem o provimento durante a messe; os coelhos, tmidos, fazem ahabitao nos rochedos; os gafanhotos no tm rei e, todavia, saem todos ordenados em seusesquadres; a aranha apanha com as mos o pao e habita no palcio dos reis. A aranhamastigada preenche de veludo os venenosos coraes!

    Ele gostou do provrbio e do verbo. Olhava-me, atento, perigando dar o bote. Convidou-me para pensar no que havia dito e iria dizer. Tornou a me olhar, estonteante. Tocou harpa;cantou em rabe. Sedutor e distante.

    Veio a advertncia:

    - Quereis escalar a altura livre, mas vossa alma est sedenta de estrelas; vossos maus instintostm sede de liberdade. Ces selvagens querem ser livres: ladram de prazer no covil, enquantovosso esprito tende a abrir todas as prises. Sois prisioneira e sonhais com ser livre. Ai! A almade tais presos torna-se astuta e m!

    - Astuta e m? Por qu?

    - O que vos libertou o esprito necessita purificar-se. Confundem-se a miopia com a maldade,efeito de uma priso assaz longa. Por amor de mim: no afasteis para longe a vossa esperana?

    Enterneciam-se os olhos de um homem machucado pela traio. Os olhos castanhos, como abarba aparada e o bigode, toda a energia envolta no corpo do profeta tornou-se verdefluorescente.

    - Ajudai-me! implorei.

    Como se no me ouvisse, prosseguiu:

    - Ai, que mal a palavra virtude lhes corre da boca! E quando dizem sou justo, sempre soaigual a estou vingado. Com sua virtude querem arrancar os olhos de seus inimigos e somente seelevam para rebaixar os outros. Reconheceis-vos nobre?

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    - No.

    - Em verdade nobre vos sentis ainda e nobre se sentem ainda os outros, os que vos querem mal evos lanam olhares maus. Ficai sabendo que, para todos, o nobre uma pedra no caminho. Novo

    quer o nobre criar e uma nova virtude. Velho quer o bom, e que o velho fique conservado.Amo todos aqueles que so como gotas pesadas, caindo uma a uma, da nuvem escura que

    pende sobre os homens. Eles anunciam que o relmpago, vm e vo ao fundo comoanunciadores. Vede, eu sou um anunciador do relmpago e uma gota pesada de nuvem. Mas esserelmpago se chama o alm do homem.

    E, caminhando um pouco juntos, Zaratustra saiu a pregar.

    - Vigiai e escutai, oh, solitrios! Do futuro chegam ventos como misteriosas batidas de asas. Epara ouvidos finos h boa nova . Vs que vos apartais, havereis um dia de ser um povo. Um povode vs, que vos elegestes a vs prprios, h de crescer um povo eleito e dele, o alm dohomem.

    Dias havia em que o profeta parecia no me ver. E dias havia que no conversava comigo,porque eram para ele dia de ser e no falava. Dei graas ao Criador por mais um dia.Avistando o horizonte, parei os olhos diante do crepsculo. O sol mordendo as nuvens enquantovai descendo; as nuvens roubando-lhe pedaos de luz. A luz vermelha derramando-se nas nuvensemprestadas de alaranjado, avermelhando-se to rpido e forte que quase cega. Restos iluminadosdo sol tangido entre duas colinas, insistindo em longo xtase, colorindo a atmosfera como umdivino pintor de cus. Olhei para cada estrela que comeava a cintilar e o brilho reluzia fortecomo se me respondesse. Deus tem olhos por toda a parte. Cada estrela um olho firmesondando cada ser. Ento so incontveis os olhos divinos pelo Universo. Mas h os de dentro,a sondar os corao e os rins. Deus conhece todos, ao mesmo tempo em que pinta o cudivinamente.

    Esfriava. As nuvens anunciavam uma forte, mas efmera tempestade. Zaratustra chegou beira da noite, sentou-se ao meu lado sem manto. Cobri-me com vontade de descobrir-me.Minha temperatura caa. Observando a luz em torno do dorso nu dele, desenhava-o: braosmsculos, peitoril liso, largo, pescoo grosso. Pensava nisto, quando ele me pediu que o anotasse,polidamente, como sempre:

    Todos que amam o trabalho furioso, suportam-se mal! A atividade fuga e desejo de

    esquecer-se de si mesmos. Se confiassem na vida, no se entregariam tanto ao momentocorrente.

    Loucos os que pertencem vida. Todavia, somos todos loucos! E esta a maior loucura davida.

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    Todos somos como gotas pesadas que caem, uma a uma, da sombria nuvem suspensa sobreos homens e anunciam o relmpago prximo e desaparecem. Sou o anncio do raio e uma pesadagota procedente.

    Deitei-me no colo do profeta, trmula. Ele acariciou-me vagarosamente os cabelos, beijou-

    me. Alisou-me os cabelos, descendo os dedos pelo pescoo; abriu o vestido, passeando as mosquentes pelo meu corpo. Soltei um gemido. Deliciei-me. O turbante de Zaratustra soltou-se comuma rajada de vento. Seminus, quase nos entregamos. As mos suaves perdiam-se nas carcias.

    - Devemos procurar o nosso inimigo e empreender uma guerra por nossos pensamentos! E se onosso pensamento sucumbe, possa a nossa lealdade cantar vitria. Devemos amar a paz como ummeio de entoar novas guerras. No possvel estar calado e continuar tranquilo seno quando setem flechas no arco. Seja a vossa paz uma vitria. E sabei escolher bem o inimigo, pois uns sodignos de piedade. Escolhei inimigos dignos de dio.

    - Sereis digno de dio?

    - Tudo imprevisvel. Serei capaz de qualquer coisa se me prenderdes.

    Qualquer coisa, inclusive esconder a chave de ouro? Na inquietao, eu via uma portareluzente como o sol, abrindo e fechando sem parar. O carinho foi-se. Zaratustra tinha sede defalar.

    - Brindemos paz? disse-lhe, contente, tentando recuperar o amor.

    - guerra. A bravura salvou os nufragos, vossos filhos. Se tivsseis piedade deles,sucumbiriam. Que me importa a piedade? No a piedade a cruz onde se crava aquele que amaos homens?

    - Por que guerrear pelos pensamentos?

    - Seja o amor vida o amor mais elevada esperana! Despejai vosso conhecimentogenerosamente.

    - E a lua?

    - Sol superao. Sobrepe-se com luz sobre as trevas desconversou.

    - Acima, embaixo, em tudo, contudo, h o Criador...

    - ... O vosso Criador! Vinde, cigana!

    - Qu?! espantei-me, satisfeita. Enfim, o dia chega!

    No sei por que, mas tive medo. Como eu resistisse, ele rasgou minha roupa. Rasguei a deletambm. Contudo, eu j no habitava mais o meu corpo: era algum muito mais forte etotalmente diferente. Desabotoei vagarosamente o vestido da minha alma, porque outro era o

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    esprito que entrava no meu corpo. Acendeu um incenso de rosas, inspirou a fumaa e,levemente, sentou-me no colo. O profeta, finalmente, esqueceu-se das parbolas.

    Perto da aurora, um vento de morte arrancou-me do corpo e me levou ao cume de uma colina.Um trovo explodiu junto com uma voz. Conjurei o trovo. Vi um rosto sarcstico desenhado nas

    nuvens. Era Voltaire. Voou a minha alma. Gritamos em unssono, gargalhando:- Trs coisas so capazes de ridicularizar at mesmo um grande homem: a necessidade de falar,o embarao por nada ter a dizer e o desejo de ter esprito!

    - Quando vamos nos ver?

    - No abismo do caranguejo.

    Foi-se Voltaire, jovem, olhos vivos e bem grandes. Deixou escrito num papel:

    O homem carrega o fardo, concomitantemente com a ddiva de transformar essa matria nada menos que a alma que nem conhece a origem, a substncia nem a extenso, porque falapor falar, inventa e se convence, sonha, afirma, prova e no lhe cresce a verdade. Somos ponte,fora motriz, tomos. Com tanto orgulho e sisudez, esquecemo-nos de que fomos gerados entre amatria fecal e a urina.

    Senti uma solido! Dobrei os joelhos sobre as pedras. Adorei a tempestade que caa. Nosenti frio. Passou um vento forte, arrastando-me agora para o lado do meu profeta. Adoramos atempestade. Cada gota. Cada relmpago. Cada trovo. Fui tomada do prazer de sentir a vidapulsar nas veias. Deitamos debaixo da chuva. Abraados, ramos diante daquele sagradomomento.

    O corvo dormia; peguei-lhe as asas. Voei!Tinha necessidade de tudo investigar do alto. Vi anatureza sob todos os ngulos. Senti-a irm e me. Abraou-me os cabelos junto ao vento;abracei-lha com os olhos.

    - preciso dormir! gritou Zaratustra.

    Naquele momento, tudo o que eu queria era ouvir o canto da madrugada.

    - preciso viver a noite! Os ventos cantam melodias que necessito decifrar. Os ventos todosuniram-se e eu rodopio num bal involuntrio... leve...! Boa noite!

    - A madrugada vai-se...

    - ... Sim, vai-se! Mas eu mergulho nas profundezas do abismo a ver se vos ouo mais e melhor.Todos bebero a ddiva de conversar com o pstumo. Basta principiar! disse para o vento quechega aos quatro cantos da Terra._________________________________________________________________

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    CAPTULO 7CAPTULO 7NO STIMO CUNO STIMO CU

    So duas e dez da madrugada. H muito cu a correr. Meu ego cresceu demais.Na Terra, nada h maior do que eu. Sou deusa e dedo ordenador de Deus gritou o alterego

    dentro de mim. E no s os que tm orelhas cumpridas e vistas curtas cairo de joelhos. Emvossas almas grandes murmuram vossas sombrias mentiras! Eu conheo os coraes ricos quegostam de se prodigalizar!

    Em vez de rvores, abismos e nuvens branquinhas passeando, vi um aqurio no cu: peixesenormes e minsculos, cores exaustivamente vivas, um desfile de golfinhos. O mundo ficou decabea para baixo. Eu mergulhava profundamente. Tudo passava muito rpido, enquanto omergulho ia-se numa lentido enlouquecedora. Olhares amigos, hostis, passageiros, instantneos:numa palavra, um turbilho de acontecimentos grandes demais para pouco tempo, girando numavelocidade alternada entre a rapidez e a morosidade.

    Sentei-me na abbada de uma espetacular mesquita para ouvir o canto dos pssaros.Conversei com dois:

    - Vs cantais melodias da Arbia Feliz? perguntei.

    - Todas as manhs, antes de celebrardes com vosso adorado profeta o adorado sol.

    - Eis que ele j vem! Vamos voando? a primeira vez de minha vida!

    - Vamos!

    Levantei as asas, aps o que tambm levantei a cabea. Alcei um voo magnfico. Cantei. Subiao cu. O sol lanava os primeiros raios, jorrando brilho de ouro nos templos. Pensei emZaratustra e adorei-o sozinha, de tanta felicidade:

    - Grande astro! Que seria de vs... se ... vos faltsseis aqueles a quem iluminais?

    Ele veio num canto alegre em redor de minha aura:

    - Sim, discpula fiel! Brindemos ao sol que se levanta sobre bons e maus. Tudo o que digo sereterno!

    Elevada naquela atmosfera solar, senti um calafrio, um gelo no corao que me devolviasperos momentos:

    - Meu pai... Passou por aqui. Ouvi a voz dele!

    Zaratustra sumiu.

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    - Pai! Abraai-me!

    Caiu uma folha seca. Peguei-a logo. Foi meu pai. Ele a mandou do cu para dizer que, deonde estava, acompanhava-me. Ou acaso teria um tomo de Epicuro por ali?

    - Vrios, filha! Vrios!

    - Quanta saudade! Pai ... por qu...?

    Sumiu. O corao permanecia pesado. Corri ao amigo.

    - Zaratustra, o que faz esquecer os filhos que a vida roubou e o pai que a morte levou?

    - Sado-vos por ter enfrentado a aridez e o camelo cumprimentou-me, mascando qat. Ambosqueriam-vos sucumbida. Superou-se dez vezes a ti e ao diabo do prximo. Ouvi vossas precespelo diabo de cada inimigo. Quanto s lembranas de perdas a princpio irreparveis, aconselho aseguir a Natureza. a rainha do Tempo. Sabeis a que tempo me refiro. O momento de convivercom o demnio: dentro de vs. Conviverdes-eis quando terminar esta jornada. Palavra de honra.

    Desceu a montanha a procurar discpulos. A lua saltava no horizonte tal como uma hstiasagrada. Fiquei a contempl-la longo tempo. Contei planetas, avistei algumas constelaes.Canopus, rion, Gmeos, Escorpio... Dormi nua, ali, com o cu estrelado sobre mim. Pelamanh, li nas guas do Lago Ninfas:

    A vida no me foi tirada, mas transformada. Eu estarei sempre convosco.

    A fraca estampa do rosto do meu pai nas guas estava marrom. Olhos apagados, abatidos,boca sem desenho, murcha: um morto num retrato.

    - Pai! Onde estais?

    - Dentro de vs.

    - Como encontr-lo? Como dividir uma dose de usque com o senhor?

    - Estou no stimo cu: tocamos harpa e tudo violeta. Stimo cu!

    - Quem sabe a hora certa?

    - Quando subirdes, trazei bastante usque. Do bom!

    - Usque no cu???

    Pulei no lago sem me preocupar com Narciso. De tanto que chorei, a gua ficou salgada.Afundei-me. A gua j me entrava a ponto bom. Dava para puxar de um cometa e conhecer o

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    planeta do Pequeno Prncipe. Mas, qual no foi o arrebatamento, o martrio, a tortura, a raiva, odio, quando me dei por conta de que me esqueci do usque?

    - Soltai como os peixes. Vai uma, duas, trs!

    Zaratustra teve que fazer um grande esforo para me trazer de volta Terra. Mas eu noqueria retornar de modo algum.

    - Vou para o stimo cu! pensei.

    - Falai com gua at na alma. No ordenei que cuspsseis tudo?

    - At a raiva?

    - Principalmente. No momento de delrio. No hora de partir, anotadora do diabo!

    - Quero viajar pelos planetas do Pequeno Prncipe!

    - Trara! Peonha da manh! Biltre!

    - Biltre? espantei-me, cuspindo e tossindo. Voltei Terra contrariada.

    - Pior. Matar Natureza! E a caixa de Pandora? Trocai-vos rpido. Providenciai tinta e pena.

    Riu, discretamente.

    CAPTULO 8CAPTULO 8O ESTADO DAS MOSCASO ESTADO DAS MOSCAS

    De pena mo, comecei a anotar:

    A este frio monstro agrada acalentar-se ao sol da pura conscincia. Quer ele dar tudo, se oadorar. Assim compra o brilho da virtude. Eis o Estado.

    Eu, o Estado, sou o povo. Os que armam ciladas e chamam a isso Estado so destruidores.Cada povo fala uma lngua que o vizinho no entende. Mas o Estado mente em todas as lnguas.Tudo o q