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Assim Amei Zaratustra 3 [1]

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Aurora torna-se escrava de si mesma ao lutar por sua liberdade.

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TRECHOS DO LIVRO ASSIM AMEI

ZARATUSTRA

“- Olhemo-nos face a face: somos hiperbóreos. Sabemos muito bem quão remota é nossa morada. Nem por terra nem por mar encontrarão o caminho dos hiperbóreos. Além do norte, além do gelo, além da morte: nossa vida, nossa felicidade. Nós descobrimos essa felicidade, nós conhecemos o caminho... Retiramos essa sabedoria dos milhares de anos no labirinto. Antes viver no meio do gelo que entre virtudes e outros ventos do sul. Fomos bastante corajosos. Não poupamos a nós mesmos nem aos outros, mas levamos um longo tempo para descobrir para onde direcionar a nossa coragem. Tornamo-nos tristes. Tínhamos sede de relâmpagos; mantivemo-nos o mais longe possível da felicidade dos fracos. Nosso ar era tempestuoso, nossa própria natureza tornou-se sombria: pois ainda não havíamos encontrado o caminho. A fórmula de nossa felicidade: um sim, um não, uma linha reta, uma meta.

- É preciso um ponto para fazer um círculo e dizeis linha reta? Para quê? Ouço ópera e me parece que jamais fui à Itália; jamais frequentei a roda dos ursos e das águias. Sou indignada, mas tenho argumentos fracos diante dos resignados. A vida! Quereis lembrar-me dessa vida? Prantearei mais, atravessarei quantos arco-íris, quantas tempestades, quantos abismos? Tendes obrigação de cicatrizar-me as feridas, já que minha sede de relâmpagos tornou-se um vício assaz perigoso. Meu corpo é frequentado por outras mulheres... Perdi-me na morte suicida ou abandonei os hiperbóreos?”

“Mas sempre fui pobre, Michael! Bela é minha alma, amigo! Posso vê-la e bebê-la sem medo de morrer. Quando suspiro no crepúsculo é quando minha alma já se deitou. E eu aqui, isolada do mundo, não me deito sem um comprimido. Mas minha alma já se deitou junto ao sol e dele se ressente que queimada numa estrada nunca mente e o caso é que a verdade é que dói enquanto a mentira rói. Hipócritas! Não o sou, juro! Se pudesse mergulhar nesse diálogo com a discípula delirante, eu logo o convidaria para ir a uma taberna. Vamos ler? E vós dizeis: para quê? Que fareis com tantos livros? E responderei: serei um milésimo da população mundial. Serei uma pensante. O mundo não tem razão nenhuma de existir e é absurdo que exista! A consciência é um ser e o ser é um nada, diria Sartre.

Atravessei multidões de olhos vedados à procura de gente. Ninguém havia. Todos e nada. Quando olhei o horizonte, só vi máquinas andando sem rumo. Pessoas mortas vivendo sem passear pela vida. Olhei por cima do ombro de cada um: tiveram que se desviar, porque tiveram medo de serem atravessadas por uma vida. Sentindo a força que escondia no peito, enfiei-me por

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dentro de cada um: nem vazio havia. Havia nada. Ninguém sentia a força da vida na travessia. Contas a pagar, trabalhos a fazer, amantes à espera. Nem mendigos consegui ver. Pois via tudo de cima e de onde só quem escalou montanhas e desceu às profundezas de si mesmo pode ver. Olham para monumentos mas enxergam apenas a si mesmos. Um mundo confeitado de narcisos e ninfas indiscriminadamente. Um mundo com aspecto mal cheiroso. Um mundo pobre ruindo pela solidão.”

“Nesta homenagem a Nietzsche e Voltaire, uma mulher aprende a conviver com a solidão e a refletir sobre os próprios conflitos. Conversando com ilustres pensadores e anotando Zaratustra, a discípula assimila um outro mundo e constrói um pensamento acerca da pluralidade dos mundos, vivenciando várias personalidades e testando teorias epicuristas que a levam a duvidar de um único ser e, por conseguinte, de um deus único. . Assim Amei Zaratustra é o isolamento de uma pessoa que vira as costas para o sistema e, não obstante, desfruta de uma loucura assaz importante para qualquer um que pretenda defender suas idéias.

O romance convida para uma profunda reflexão, o velho tripé da filosofia: de onde viemos, para que e para onde vamos. Ninguém pretende responder a perguntas irrespondíveis, mas aprender sempre, como viver intensamente, passeando por todas as dores e emoções que a vida oferece.

“É maravilhoso poder olhar para trás, agora, que já consigo compreender e conviver com a loucura” –, constata a discípula, num emocionante desabafo em que se liberta de perdas aparentemente irreparáveis. Noutro, ela diz:

“Quem escreve com o sangue derrama espírito.”

Assim Amei Zaratustra é uma história cheia de impossibilidades, de surrealismo, de êxtases e de muita solidão. O romance dos espíritos sutis.”

Carlos Carbonel Carlos Carbonel

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Prólogo

Aurora é uma cigana hebraica que vai parar no deserto de Zarathustra e pensa ter visto Jesus Cristo em pessoa. Ao encontra-lo, ganha dele uma chave de ouro como símbolo de poder e libertação. Torna-se sua discípula. Amante. Amiga. Mulher. Mas é anotando o pensamento de seu homem que começa, gota a gota, o embate: “Deus morreu?”-, confunde-se o profeta, neste retorno em que prega o paradoxo de si.

Mil visões. Três caminhos. Sete vidas. Aurora está neste eterno retorno de Zarathustra com as vidas paralelas, na pluralidade dos mundos em que acredita. Ao subir no topo de sua “sabedoria” e com o livre arbítrio nas mãos, é destinada a escolher um só caminho para a personagem em que se transformou.

Zarathustra é mostrado, aqui, como o mago dos aforismos e rei da cobiça de governar uma mulher livre. E é por esta “liberdade” que Aurora vai lutar. Custe o que custar.

Neste mundo surreal, em que nada parece o que é, é nas entrelinhas que se esconde a chave de cada leitor, porque “cada um vive-se a si mesmo, cada alma é um mundo”. Sem doutrinas. Sem moral. Sem medo.

É com esta coragem que Aurora enfrenta seus próprios desertos e tempestades. E, em cada deserto e em cada tempestade, Zarathustra está de braços abertos para encher mais um cálice de “sim” à vida.

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SUMÁRIO

Prólogo................................................................................................................ 04

1.........................................................O ENCONTRO E UMA CHAVE.......... 05

2 ........................................................O ETERNO RETORNO........................... 06 3.........................................................A CORDA HOMEM .............................. 11

4........................................................EM VÁRIOS TEMPOS............................ 13

5........................................................O ESPÍRITO SÓLIDO.............................. 16

6........................................................ A MORTE E A ESTRELA...................... 24

7.........................................................NO SÉTIMO CÉU................................... 34

8.........................................................O ESTADO DAS MOSCAS.................... 38

9.........................................................A LUA...................................................... 39

10.......................................................O CASAMENTO.................................... 48

11.............................................UMA GAIVOTA E UM CARANGUEJO........ 58

12........................................ O JOIO QUER CHAMAR TRIGO........................ 62

13.................................................O CHORO DO BEBÊ ................................... 71

14................................................ DIÁLOGO COM A VIDA ............................ 74

15................................................SEPARANDO................................................ 79

16............................................... ESTRELAS................................................... 82

17................................................ SONHOS E “VIAGENS”.............................. 84

18................................................O PARADOXO.............................................. 96

19............................................... AS PREGAÇÕES........................................... 96

20...................................... NO BOSQUE ......................................................... 105

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21...................................... DIÁLOGO PELO ESPELHO................................ 124

22...................................... EM BUSCA DO SUPERIOR................................. 126

23...................................... A CONVERSA COM O SOL..................................129

24...................................... FAREJANDO A VIDA.......................................... 135

25...................................... OS RITUAIS .......................................................... 136

26.......................................O ENIGMA DO MAL SOBRE A TERRA............ 140

27...................................... AS VIDAS DA DISCÍPULA.................................. 142

28...................................... AS CARTAS SARCÁSTICAS............................... 144

29......................................O REENCONTRO.................................................. 148

30......................................NO ARDOPADOR.................................................. 152

31......................................O ETERNO RETORNO II....................................... 158

32..................................... A CARTA DE DESPEDIDA.................................. 158

33..................................... A DERRADEIRA................................................... 159

34..................................... SOPHIA NA TERRA DOS VIVENTES............... 160

35..................................... A CONVERSA COM MAUPERTUIS.....................163

36..................................... PARA ALÉM DOS MUNDOS................................ 165

37......................................RETICÊNCIAS ....................................................... 165

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CAPÍTULO 1_CAPÍTULO 1_O ENCONTRO E UMA CHAVEO ENCONTRO E UMA CHAVE

Eu andava no meio da multidão, onde um homem pregava como Jesus e, perto, um trapezista disputava com outro a atenção do povo. Um deles caiu e o profeta do deserto, Zaratustra, correu a socorrê-lo. Saí daquela confusão para anotar o que vira. O profeta sai carregando o trapezista morto. Deparamo-nos no sopé de uma frondosa árvore. Perguntou-me no seguinte termo:

- Sois o quê? – fitava-me os olhos, rindo com escárnio, como se soubesse de toda a minha ventura.

Olhei-o soberbamente, depois aquiesci. Que homem estranho! Que homem atraente! Afundada em profundas reflexões, peneirei para ele um diamante. Dei-lhe o melhor que podia naquele momento. Respondi com a franqueza que persegue o meu caráter, e, como estivesse viva demais, disse o que um moribundo diria ao atravessar a linha de fogo entre a vida e a morte:

- Não sei!

- Bom sinal! – falou. – Quando não se sabe o quê ou quem sois é porque procurais a verdade. A vossa, não a dos outros!

- Assistia-vos pregar na montanha. Afastei-me para fazer uma reflexão sobre o que eu fiz da minha vida. É tão chato a alma estar presa ao cárcere do corpo como ser um pássaro sem asas! Ter que viver... Leio as entrelinhas do mundo. Enxergo o que se esconde. Sinto-me impotente

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diante de tudo e de nada. Hipócritas! Não o sou, profeta. Olho para o céu, para a humanidade. Que distância! Que desproporção! Vermes a comer vermes! Queria seguir-vos...

- ... E por quê? Nem me conheceis! – objetou.

- Não tenho com quem dividir a minha solidão. Jesus morreu e nunca apareceu para mim. Preciso caminhar. Poucos enxergam, muito embora muitos vejam. Ainda não estou certa de que vivo. Penso que sonho por aí – um pesadelo – perambulando entre a multidão absorta com o sistema de ponteiros. Detesto-os. Tic-tac! É tortura inglesa, a pontualidade britânica? Ou será um chicote no inconsciente dos servos conformados? O número dos que pensam é excessivamente pequeno e não têm a lembrança de perturbar o mundo, disse-me um amigo inteligente como vós. Morreu há três séculos. Deixou os pensamentos como herança. É Voltaire, meu filósofo, único capaz de fazer rir o espírito. Conheceis?

- Muito. Também converso com ele.

- Sigo, assim, nos braços do mundo deslindado por Deus que esquadrinha corações e rins. Tudo ouve de todos e se cala!

Zaratustra nada comentou. Baixou os olhos para a terra, ergueu-os solenemente para o céu escarlate. Olhou-me intensamente, com benévola curiosidade, lendo a minha alma, e soltou uma gargalhada ensurdecedora. Fiquei bastante constrangida. Ele parecia rir de mim. Era um riso exático, mas ao mesmo tempo triste. O profeta acabava de parir uma grande verdade que, apenas ele, conseguia digerir e que eu nem sonharia saber. Ao me ver, viu toda a sua ventura e o futuro de todas as suas desventuras. Enterrou o morto. Voltou-se para mim, semblante sério, e determinou:

- Sereis minha discípula. A única mulher do meu pastoreio. Tendes espírito forte. Entretanto, tereis que ser sobre-humana com tudo e com todos. Estorvo? Não! É o fardo que muitos rejeitam e que retêm na caixa de Pandora. Abri-la-eis quando chegar o momento. Sereis o fim, não o meio. Largai tudo e segui-me em silêncio.

Fora os livros, abandonei pertences, ego, espelho, roupas. Apenas uma quis levar: o último agasalho usado pelo meu bebê. Ele rebelou-se e ordenou severamente:

- Enterrai-o a sete palmos debaixo da terra e a setenta vezes sete dentro do vosso coração, morada das almas.

Depois do que, deu-me uma chave de ouro com três brilhantes: um com um sol, outro com uma lua e o terceiro com uma estrela: Sírius. Entregou advertindo que apenas a usarei sob sua ordem e três rituais.

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CAPÍTULO 2CAPÍTULO 2O ETERNO RETORNOO ETERNO RETORNO

Caminhamos em profundo silêncio. Apenas falavam as estrelas e a lua minguante. Assemelhavam-se a guizos rindo e esperneando o brilho em meio à escuridão do deserto. Guiavam-nos as estrelas até o céu empalidecer – tristeza dos que reverenciam a noite – , e nascer a alvorada – alegria dos que louvam o dia. Amanhece. Aguardamos o sol para aplaudi-lo.

- Como é maravilhoso! – disse, admirando feliz os primeiros raios do dia.

Zaratustra nada fala. Então contemplamos, calados, aquela imensa bola brilhante. Vêm do céu uma águia e um corvo com frutos e, da terra, uma serpente amarela malhada de preto. Ela enrosca-se-lhe pelo pescoço, carinhosamente, como se fosse um animal doméstico. Fico tomada de pavor. Ao que o profeta me tranquiliza:

- Não vos assusteis. Encontrei mais perigo entre os homens do que entre os animais. Estes sustentam-me com amizade. Vede: obras primas da natureza acompanham-nos. Sigamos no silêncio. Vossa jornada é longa. Sereis instrumento de liberdade e poder. Fazeis idéia do vosso poder? – perguntou, como se me alertasse que vivia. – Usá-lo-eis quando a hora vier. A de Deus, não a dos homens!

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Escrevi para a Tiza:

“Estou bem! Conheci um profeta amigo da solidão e dos livros. Gosta do silêncio, da

contemplação. Tenho longo percurso. Darei notícias pela águia. Respondeis por ela quando quiserdes me falar. Pegai do vosso nublado espelho. Vede o brilho incandescente de uma alma unida a um molde talhado por Deus pacientemente, ou da costela de Adão, ou de qualquer barro onde caiba um espírito alegre. Ride, imploro! Ride até gargalhar deste mundo absurdo e vereis luz em todo o vosso corpo. ‘Se vossos olhos forem bons, todo o vosso corpo será luz’, disse o Messias. Saudades, A.”

Dormi cedo para me levantar na alva, pois a brindaremos em memória da amizade e por graças ao Pai Celestial, que faz com o sol nasça sobre bons e maus e com que a chuva desça sobre justos e injustos. Há longo caminho. Zaratustra pede que pense um pouco, enquanto a lua passeia uma das faces neste hemisfério. Como é bom ter um amigo que ama o percurso das estrelas!

Seguimos a jornada. Olhando para o astro, diz:

- O sol nasce e se põe todos os dias e a cada dia o espetáculo é único. O que o faz ser o grande astro da galáxia é o sair por detrás de ínfimas colinas. É a humildade de submeter-se aos caprichos de colinas e de monumentos. Porém, o que o faz ser realmente belo é que nasce e morre todo dia. A cada dia é único. A cada dia percorre o horizonte como bem lhe aprouver. É dono do brilho, da luz e da jornada que realiza imperiosamente. Nenhum cientista decifrou tal enigma e nenhum astro da física, nenhum deus conseguiu chegar perto desta bola de fogo. A cada nascer é uma celebração. A cada morrer permanece célebre, muito mais ainda por não sabermos se o veremos de novo.

- Mas o Ser Supremo... – retruco.

- O Ser Supremo possui bilhões de zilhões de sóis e de outros seres infinitamente maiores ou menores para sondar, amiga. É extremamente ocupado com o desenho do Universo, com o arranjo das coisas infinitamente importantes ao finito. Neste glóbulo mataram-lhe o filho, cuja passagem foi suficiente para enriquecer os falsos donos de espírito.

- O que faz do sol ser diferente e melhor do que a lua? – quis saber, por amar a lua.

- O sol é um só, embora diferente todo dia. Já a lua... A lua é caprichosa e perigosa demais. É uma a cada dia e nenhuma em algumas noites, posto que nalguns dias quer desfrutar aplausos junto ao sol, duas vezes ao mês, duas semanas. Tem quatro faces. É rasteira. Os homens parecem-se com ambos: nunca são os mesmos todos os dias e têm até mais do que quatro faces.

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Dito isto, solta um grito de dor. As lágrimas escondem-se por entre os cabelos grandes. Os olhos cor de mel tornam-se amarelos. A águia pousa no ombro, o corvo grasna. A serpente some!

- Está aqui – assegura-me um homem de olhos amarelos. – Está nos meus olhos. Vedes? É preciso que a serpente me envenene ao raiar do sol para que eu lute contra o mal a cada instante, para que ele não supere o bem. Somos bem e mal. É necessário o soro do equilíbrio. Não há enigma. Somos isto. Renasci das próprias cinzas. Sou cinza e sol. Aprendi a amar a solidão. E com o sol descobri a fórmula da grandeza do homem: não evitar, nem me conformar, mas afirmar o necessário. Amar sem mudar, com um grande sim, um enorme não, uma linha reta, uma meta.

Aquela dor me oprimiu. Mudei de assunto, para disfarçar.

- Zaratustra assemelha-se a Diógenes Laércio diante de Alexandre, O Grande. Ainda não sei o por quê.

Não respondeu. O profeta brindou os primeiros raios do dia ironicamente, o que não fez com a lua. Não compreendi nem a ironia com o sol, nem a indiferença com aquela que me enternece o coração romântico. Ele não diz boa noite à lua, nem a reverencia, muito menos a ironiza. Simplesmente a despreza. Enfim, adorou:

- Grande astro! Que seria da vossa felicidade se vos faltasse aqueles a quem iluminais? Faz setecentos anos que vos abeirais da minha caverna e, sem mim, minha águia, meu corvo e minha serpente, haveríeis cansado de vossa luz e deste caminho. Nós, porém, esperávamo-vos todas as manhãs. Tomávamos o supérfluo e vos bem dizíamos. Eu, já cansado de minha sabedoria, estou enfastiado como a abelha que acumulou demasiado mel. Necessito de mãos que se estendam para mim. Quisera dar e repartir até que os sábios tornassem a gozar da própria loucura e os pobres da riqueza!

- Visto deste ângulo, sois vós quem brilhais, e não o sol. Porque se não fosse vós, quem ele iluminaria? O sol agradece desenhando uma curva no horizonte. Agora compreendi a semelhança de Zaratustra com Diógenes: ambos são debochados com os grandes e os desafiam com eloquência. Ambos adoram o sol. Enquanto ele com o astro conversava, eu lia num livro alemão tais palavras:

“Hoje é só mais um dia. Dia de céu azul. Todavia, nem o céu nem o azul são capazes de fazer-me sair. O que iria fazer, não fiz. Fiz o que não deveria. Se tivesse feito outra coisa, lamentaria. Tudo me faz sentir mal. Viver sem um porquê. Peregrino nas estradas da vida. Meus pensamentos vão e voltam. Às vezes, anoto-os. O voo dos pensamentos só é pertinente ao voltar: aprende muito enquanto voa. Quis voar também... Céus! Amo a natureza, as pedras, as plantas, os ratos, os elefantes. Cheguei ao cúmulo de amar os homens! O que ia fazer, não fiz. Fiz o que não deveria. Se tivesse feito de outro jeito, rejeitaria! Faz sete anos que meu bebê saiu do hospital.”

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Como ele tem manuscritos meus pensamentos tão íntimos? Quem pensa que é? Elias? Isaías? Cristo? Fiquei furiosa com tal devassidão. Adverti-o intempestivamente:

- Quem pensais que sois? Deus?

- Por que perguntais se sabeis a resposta? Fostes vós, com vossos eternos martírios, que escrevestes! O chicotear a si próprio é a pior tortura. Vede os animais: dão cria e os filhotes se criam. Vamos.

Engoli em seco. O profeta tinha razão. Segui-o. O sol a pino. Ao fazer um habitual passeio, Zaratustra foi atravessado pela visão do eterno retorno.

Falou:

- Tudo retorna sem cessar. Se o Universo tivesse algum objetivo, já o teria alcançado. Se tivesse alguma finalidade, já a teria realizado. Não existe um Deus soberano, absoluto, com desígnios insondáveis. Todos os dados são conhecidos. Finitos são os elementos que constituem o Universo. Finito é o número de combinações entre eles. Só o tempo é eterno. Juro: tudo já existiu e tudo voltará a existir.

Mergulhou no rio como se lavasse a alma. Pensei:

“João batizou no Jordão e batizou até Jesus, que todavia nunca batizou ninguém. O homem, guiado pelos sentidos, acreditou que aquilo que lavava o corpo também lavava a alma.” Belo, Voltaire! Então as idéias acerca das dimensões ... Meu profeta estava sentado no topo da colina, ensimesmado. Sentei-me em profundo silêncio. Após meditar, desabafou:

- Repetidas vezes tentei compreender a indiferença que me cercava. A solidão envolve a minha vida. Em meus últimos escritos, notei que o tempo era o meu único contemporâneo.

- A água... transformou-vos no criador de vós mesmo! Sois Nietzsche!

Zaratustra oscilando. Os pensamentos voando, cruzando oceanos em segundos. O profeta grita novamente. Um grito de lamento, outro de dor, outro de solidão. Senti toda essa solidão dele. Gritei também. Transcendi do corpo à alma e não mais senti nada além da liberdade fazendo-me pluma ao vento. Voei!

O mundo explode diante dos meus olhos. Mundo colorido de coisas que não posso tocar. Emoções vãs vão-se. Diante dos meus olhos míopes, esse mundo louco gira com uma intensidade tão banal quanto oca. Estou no vácuo berrando em silêncio meus protestos, minhas loucas idéias.

“Não sois deste mundo” – diz uma voz irônica.

“E de que mundo sou, então?” – pensei.

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“Quem sou eu para responder! Nem apreendo e nem compreendo esse paraíso que o Deus judeu enfiou-me goela abaixo. Poucos entendem a Bíblia; raros tentam decifrá-la.”

Ouvi:

“Impõe-nos certamente concluir que quem entender perfeitamente este livro deve tolerar os que o não entendem. Mas aqueles que nada entendem não é por sua culpa. No entanto, os que nada compreendem devem tolerar também os que compreendem tudo!”

Respondi:

“Os que julgam compreender este livro saem a pregar dogmas, gritando mais que os profetas, tentando a explicar o inexplicável. Constróem reinados abomináveis que vós tanto combatestes, amigo Voltaire, inimigo da Santa Inquisição. Se existiu sodomia (e existe) foi com esses donos da moral. Apenas choro. Choro e incomodo com sinais visíveis o invisível do visível. O casamento é de chorar como a separação que juraram não deixar acontecer. Sinto a tristeza dos homens e Zaratustra grita.” Voo solitário. A solidão de Zaratustra é minha também. Por vezes não o compreenderei. Contudo, senti com tal intensidade que decidi anotar tudo o que ele dissesse. Rasante, pousei ao lado de meu mestre. Vejamos o que temos a presentear-nos um ao outro.

- Lastimo – disse – que não estejamos agora juntos de Voltaire. Seríamos uma só substância! Meu pranto encobre-me de vergonha, porque choro o tempo e os tesouros que perdi. A vida levou meus filhos, a morte levou meu pai. Que turbilhão cartesiano! Voltaire detestava sistemas. Queria conversar com ele também na pedra que venero, a Pedra de Dalí.

- Somos uma só e mesma substância. Não repreendais vosso pranto por vergonha de mim, amiga do sol, da lua e de todas as estrelas. Sois pura, por isso chorais tanto. E quando vossas lágrimas secarem, gritareis a vossa dor. Ficai longe dos homens. Desabafai o que quiserdes: não deixareis de ser a força que sois. Ouvistes o canto harmônico dos pássaros?

- Sim. É belo demais. Eles fazem o ninho até mesmo em árvores secas. Eis a lição da natureza!

- Não vos atormenteis. Permanecei de ouvidos abertos e boca fechada. Os sinais virão. Sabereis distingui-los. Não hesiteis, anotadora! Descemos as montanhas e sumimos no meio delas – ele a falar, eu anotando.

“Devo descer às profundidades, como vós pela noite, astro exuberante de riqueza quando transpondes o mar para levar vossa luz ao mundo inferior. Abençoai-nos, olho afável que pode ver sem inveja até uma felicidade demasiado grande! Abençoai a taça que quer transbordar para que dela jorrem as águas douradas, levando a todos os lábios o reflexo da alegria. Olhai! Esta taça quer esvaziar-se!”

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CAPÍTULO 3CAPÍTULO 3A CORDA HOMEMA CORDA HOMEM

Embrenhávamos pela mata retorcida em busca de uma paisagem bela, por que belas seriam as palavras que o homem enigmático, barba aparada, sorriso matreiro, olhos luminosos e lábios bem delineados proferiria. Palavras simples. Mergulho profundo. Zaratustra exigia que eu o entendesse como se fosse rápida na investigação e na constatação de suas meditações. Contou-me que buscava refúgio no céu todas as vezes que a solidão apertava-lhe o peito. Então, olhando para a silhueta do deserto, perguntei-lhe:

- Que é a alma, profeta, quem pode defini-la? Quem tentou – e foram muitos – errou. Quem errou, pelo menos tentou. Eis o consolo dos normais.

- Noutros tempos, a alma olhava o corpo com desdém e nada havia superior a esse desprezo. Queria a alma um corpo fraco, horrível, consumido de fome! Julgava, deste modo, libertar-se dele e da Terra. Para ela era um deleite a crueldade!

- ¿Falais de Buda? Mas ele buscou a razão!

- ¿ Que importa a razão? Anda atrás do saber como o leão atrás do alimento. A razão é pobreza, imundície... conformidade lastimosa! – bradava, enquanto passávamos diante de uma multidão que se ajoelhava e estendia o corpo ao chão.

Assombrado, Zaratustra fitava-a e dizia:

- Vede: o homem é a corda estendida sobre o abismo. Perigosa travessia. Perigoso caminhar. Perigoso olhar para trás. Perigoso tremer e parar – sentenciou. Lembrei-me do Pequeno Príncipe, de Saint-Exupérry, que diz ser necessário olhar para trás. Mas senti o perigo tremente de olhar para trás e parar. Sentei-me a refletir meu rosto num lago sem ninfas. Era somente um rosto absorto – vago – entre tantas interrogações e reticências. Vago e profundo como um rio. Achei meu rosto tão ou mais belo que na juventude. E neste abismo do pensar e refletir, quis meu reflexo ir de encontro ao meu rosto. Mas o reflexo na água não era mais o do meu rosto: transformou-se no de Zaratustra. Um rosto misturado com o que não sobrou de mim. O virtual casava-se com o real. Gritei. Ninguém me ouviu. Tornei a gritar: nenhum socorro. Afundei-me de tal forma neste abismo de mim mesma que, por mim, enlouquecia, sem que ninguém se apercebesse. Em pleno labirinto, ria, gargalhava, chorava, gritava. Teria passado para outro mundo? Onde eu estava? E Zaratustra?

- Aqui, irmã – murmurou.

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Ele estava comigo, mas também prosseguia com as parábolas no topo de um degrau bem distante. Profetizava:

- É preciso ter um caos dentro de vós para dar à luz uma estrela cintilante. Eu vô-lo digo: tendes ainda um caos dentro de vós! “O caos – prossegui em pensamento – este o tenho por demais! Mas a estrela brilhante se foi. Carrego um ventre vazio e um coração inflamado de dor. Lembranças petrificadas são como fósseis.”

- Ninguém é de ninguém – disse-me – e tudo o que vai, volta. Falais como se morta estivésseis! O que é de grande valor no homem é ele ser uma ponte para um fim. Eu somente amo aqueles que sabem viver como que se extinguindo, porque são os que atravessam de um para o outro lado. Amo os de grande desprezo, porque são as setas do desejo ansiosas pela outra margem.

- O que há na outra margem? – atalhei, querendo adivinhar o que havia atrás de uma portaça de ouro entre os labirintos da caverna.

- Cada qual descobrirá o próprio caos e o deslindará. O enigma é a chave para o outro lado. Decifrai-o! – desafiou-me e saiu a pregar no seguinte termo:

“Amo aquele cuja alma transborda a ponto de esquecer-se de si mesma e tudo quanto esteja nela, porque assim todas as coisas se farão para a sua ruína. Amo aqueles que não procuram por detrás das estrelas uma razão para sucumbir e se oferecerem em sacrifício, mas que se sacrificam pela terra, para que grato por ela o sejam.”

Zaratustra contou o que conversou com o trapezista moribundo:

“- Que fazeis aqui? – perguntou o homem ensanguentado. – Já há tempo que eu sabia que o diabo me havia de derrubar. Agora arrasta-me para o inferno. Quereis impedir? ”

“- Amigo – confortou-lhe o profeta –, palavra de honra que tudo isso de que falais não existe. Não há demônio nem inferno. Vossa alma ainda há de morrer mais depressa que vosso corpo.”

“- Se dizeis a verdade é que nada perco ao perder a vida. Não passo de uma besta ensinada a dançar a poder de pancadas e fome!”

“- Não! Fizestes do perigo o vosso ofício, coisa que não é para se desprezar.” Expirou. Zaratustra fechou-lhe os olhos. Pensei se o defunto acordou da morte para a vida ou de um sono sem sonhos.

Continuei a anotar:

- Coisa para preocupar é a vida humana, sempre vazia de sentido. Quero descobrir o sentido da existência, o relâmpago que brota da sombria nuvem homem.

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Duvidei que tão sábio profeta não soubesse o sentido da existência. E mais que nunca quis ver o relâmpago que brota de uma nuvem sombria chamada homem. O homem tem qualquer coisa de nebuloso. É a dúvida: somos imortais? Transcenderemos a matéria após a morte? Zaratustra já quis ensinar aos homens o sentido da existência, foi o que aprendi dele antes. Que sucedeu? Tudo é diferente! Um século, um instante, dá no mesmo. Meu profeta ia pregando montanha acima, a caminho da caverna. “Ó, tarde da minha vida! Quanto eu não dei para ter uma só coisa: esse viveiro dos meus pensamentos e essa luz matinal das minhas mais altas esperanças!”

CAPÍTULO 4EM VÁRIOS TEMPOSEM VÁRIOS TEMPOS

A noite quer sobrepor-se ao dia pela força da escuridão. Salta a lua azul na colina envolta de névoa. Chega a hora de voltar para a caverna. Zaratustra vai buscar lenha. Os animais acompanham. Lembro do tempo em que eu avistava a lua cheia da janela pulando da serra. Dia que antecipou o parto do meu filho. Dispara um tic-tac horrível, arrebentando os miolos. Sinto a cabeça rodar. Um filme passa rápido sempre numa sala de cirurgia. Tonta, caio com os olhos de frente para a lua engrandecida.

“Sou vossa prenhez!” –, diz a lua. O tic-tac gargalhava, advertindo-me que eu ia perdendo o meu bebê nos braços do mundo. Numa pedra à beira da caverna está escrito em letras garrafais:

“Há uma coisa forte em ser menina. É ser a menina dos olhos dos meninos, na meninice dos olhos do mundo. Ah, mundo! Menino dos olhos da menina!”

“Isso é muito antigo! Um amigo escreveu num pedaço de papel. Lembro-me que eu queria abraçar o mundo inteiro com meus ideais e paixões”. Então tirei a roupa do martírio e deduzi, um tanto agitada:

- Nandi! Zaratustra! Pelo amor de Deus, socorro! Zaratustra, Nandi! Já sei por que perdi meus filhos! Não foi o Deus do castigo que os levou de mim, nem a vida os tragou como o mar. Não! Não me cabe o perdão onde não há crime! Foi o mau tempo! Tempo! Ficção inventada pelo sistema para escravizar os tiranos, os próprios inventores, fracos subservientes. Quem é o relógio para ousar ditar o tempo? Detém vidas? Controla imbecis escravos de ponteiros. Pobre do que olha para o relógio ansioso por chegar a tempo! É o relógio o maior tirano de todos os tempos e nada conhece sobre o tempo. Se o conhecesse,

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marcaria as horas sozinho. Sem areia, corda, bateria, o que faz? Arranquemo-los das paredes, dos pulsos! Invertamos os números! Rodemos os ponteiros e os marcadores ao contrário!

Dalí, astro das artes plásticas, fostes ousado, mas nunca subversivo. Vossa propaganda serviu para vos enriquecer, enfeitar paredes milionárias, ornamento belo e inútil à humanidade. Vosso nome é Salvador; mas parece-me que a ninguém salvou. Que chance de despertar os homens com os Relógios Dobrados, Dalí! – gritei. – Dai à serpente asas para voar, porque assim o quero. Ser astuta como a víbora e leve como a águia!

“- Sereis!” – confirma uma voz desconhecida. Metódica, pausada. Quem?

- Quem me fala ao inconsciente? Eu em outra vida? Deus vestido de mim ou o pássaro com quem falei ontem?

“- Sigmund Freud vos fala. O tic-tac irrita-vos porque um dia em vosso milênio vale por dois. O tempo é uma criança rodando. Uma criança girando um pião. Girando o globo terrestre! O que crê na dança dos ponteiros ainda não sabe que nada sabe, máxima do divino Sócrates. O tic-tac apenas serve para lembrar aos homens que as horas são nada. A enfastiar os escravos. A arrebentar-lhes os ouvidos, avisando, à revelia, que a hora se vai!”

- Freud! Zaratustra foi buscar lenha... e ... e ... – engasguei.

“- É convosco que desejo falar, amiga pensante. Dizei-me o porquê de vossa angústia que breve sabereis suportá-la.”

- Como resgatar meus filhos sequestrados pela vida? Não sei em que tempo hei de encontrá-los, se é que os encontrarei. Se chegarei a tempo. Dói o meu coração! Lembranças! Preciso sepultá-las ou me enterrar de vez. Prometi ao profeta não carregá-las na bagagem e segui-lo em silêncio. Todavia, preciso muito chorar as minhas perdas. Entretanto, as lágrimas envergonham-me. Drogas lícitas sufocam-me a dor, que desce cada dia para um canto do peito. Asfixia... A dor que nunca morre!

“- Destemida discípula: prometeis chorar toda a lágrima que necessitar escorrer pela face tão singela. Sois forte. Não perdestes a guerra. Se não conquistardes vossos filhos neste tempo, juro, nalgum tempo havereis de fazê-lo. Desabafai com Zaratustra; segui-o com dedicação. Dobrai os joelhos de ter em companhia tão grande homem. Vivei tudo o que puderdes e como entenderdes, porque o esplendor cair-lhe-á pela cabeça em forma de letras, desenhando um caminho de luz e redenção. O vosso ousar pôr a face a bater será a glória. O destino assim a quis: valente! E quando um dia transformar-vos noutra, entendereis que as pequenas coisas são para os pequenos, não absolutamente para os grandes. Fostes grande. Sede corajosa, e não suportai, mas amai a vida. Encontrarmo-nos-emos nalgum tempo!”

Sumiu Freud feito fumaça, rindo com tal ironia. Entrementes, ouvi uma voz autoritária bradando como o monstro Jaguadarte, estremecendo o chão. Ora, eu não estava no País das Maravilhas, nem me chamo Alice! A voz rebelou-se:

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“- Falais de uma sala de cirurgia, conversais com o Sr. de Voltaire, com Zaratustra, com Freud... Sois mui confusa!”

- Quem me fala tão arrogante, cuja voz me irrita tanto?

“- Sou aquele cuja luz não vedes. O que falta a todos os vossos projetos e que, no entanto, sobra em demasia quando se espera. Não me apalpais nem conseguis me segurar em tão débeis mãos!” – e riu escandalosamente. Angustiou-me.

- Quem sois? – insisti. – Que mal fiz a vós?

“- Prepotente! Sou aquele que ousais transgredir todo o tempo... Sou o Tempo! O que perdeu o controle sobre vossa vida, fantoche. Sou o dono dos vossos instantes, de vossa existência! Sou eu quem permite a vossa transgressão intelectual pelos mundos!”

- Imbecil! – gargalhei sarcasticamente. – Tempo, vou dizer o que há séculos quero dizer: sou a bailarina a dançar sobre a vossa cabeça. Danço várias músicas de qualquer época, em qualquer dimensão. Quem pensais que sois? Deus é vosso dedo ordenador, que me permite bailar sobre vós, posto que moro onde quiser e sou várias ao mesmo tempo! Ah, converso convosco agora? Ora, neste instante escuto a voz de Sócrates ... a dialogar com Xenofontes. Adeus, amigo das horas!

Desapontado, aconselhou-me:

“- A vida somente pode ser compreendida olhando-se para trás, mas só pode ser vivida olhando-se para a frente.”

Chorei bastante. Invoquei aos céus que me desfizesse do nó em que me encontrava.

- Sois o inimigo de nossos objetivos. Sempre lutamos contra vós, sem, no entanto, conversarmos sobre quem de fato sois.

“- Mas este pensamento não é meu!” – explicou-se.

- Não importa! O tempo de Deus não é o dos homens. Esse pensamento reforça minha necessidade de ser o que sou, independente do que fiz.

Voltaire apareceu velhinho, de perfil, enfraquecido, sentado sobre uma pedra. Recostou-se sobre um toco de árvore seca, e, com a voz baixa – voz de ancião, sábio como o tempo permite, e respondeu o enigma de todos tempos: “- Nada é mais longo, pois que é a medida da eternidade. Nada é mais curto, pois que falta a todos os nossos projetos. Nada mais lento para quem espera. Nada mais rápido para quem desfruta a vida. Estende-se em grandeza até o infinito. Divide-se até o infinito em pequenez. Todos os homens o negligenciam. Todos lamentam-lhe a perda. Nada se faz sem ele, que faz esquecer tudo o que é indigno da posteridade e imortaliza todas as grandes coisas”– riu, olhando-me como se chorasse: um riso banguela, um olhar marcado pelo tempo.

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Engasgada pela emoção de rever meu amigo, quis tocá-lo. Mas Voltaire só estava ali por um tempo. Some o vulto, a voz, a sabedoria e toda a luz. Estamos em vários lugares do mundo – inclusive noutro tempo – , mas sempre vamos junto. Não dá para deixar a gente para trás, como um embrulho que se quer lançar ao mar.

CAPÍTULO 5CAPÍTULO 5O ESPÍRITO SÓLIDOO ESPÍRITO SÓLIDO

Entra Zaratustra com lenhas para aquecer a caverna. Trouxe um cobertor, deu-me uma erva amarga para mascar, o qat, e fumou uma erva alucinógena. Acendeu a fogueira e falou:

- Quem dá comida ao faminto reconforta a própria alma. Eis a sabedoria. Pão e vinho também trago. O que bate à minha porta deve receber o que ofereço. Comei e passai bem. Deixai o choro sair. É preciso esvaziar um poço para encher outro. As roldanas cantarão e esse belo canto vos fará espantar os fantasmas do passado. Dormi que amanhã brindaremos a alvorada.

Ele reconfortava-me o espírito, acalentando-o. Tornou a andar outras tantas horas, orientando-se pelo caminho e pela luz das estrelas, porque acostumado com as caminhadas noturnas e tudo contemplava, tudo quanto dorme. Um raio de luz atravessou-lhe a alma.

Pensou:

“Que os raios de ventura que ainda estão a caminho entre o céu e a Terra procurem um asilo numa alma luminosa! Devo falar a companheiros! Outros discípulos!”

Quis ser chamado pelo povo de ladrão de rebanhos:

“Preciso de companheiros, mas vivos, e não de mortos e cadáveres, que levo para onde quero. Preciso de companheiros que me sigam — porque desejam seguir-se a si mesmos. Homens vivos que decidam para onde vão. Darei o rio, a correnteza, os rochedos. Os que se soltarem, a estes eu denomino pastores. Mas eles se consideram os donos da verdade. Vede os bons e os justos: odeiam mais a quem lhes despedaça a tábua de valores. É este o criador! Não devo ser pastor nem coveiro! Entoarei o meu cântico aos solitários e aos que se encontram juntos na solidão”.

Dormiu muito tempo e por ele passou não só a aurora, mas toda a manhã. Por fim, abriu os olhos e ouviu, admirado, o silêncio. Perplexo, olhou para dentro de si mesmo.

Voltou animado:

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- Irmã do mar, do espaço, amei a solidão em rochedos ásperos. Desprendi-me dela. Arrebentei-me. E renasci! As pedras esperam-me para quando eu nascer de outras cinzas e tiver visões de outros lugares, iluminado por outros sóis.

“Eu aprendi a andar, por conseguinte corro. Eu aprendi a voar, por conseguinte não quero que me empurrem. Agora sou leve! Agora voo. Agora vejo por baixo de mim mesmo. Agora salta em mim um Deus!”

“Quero ver duendes! O valor que afugenta os fantasmas cria os seus próprios duendes: o valor quer rir?”

“Quereria que a loucura se chamasse verdade, ou fidelidade, ou justiça. Mas eles têm virtude demais para viver em mísera conformidade.”

“Uma coisa é o pensamento, outra a ação, outra a imagem da ação. A roda da causalidade não gira entre elas. Uma imagem fez empalidecer o homem da “boa nova” e o transformou em símbolo de sofrimento. Ele estava à altura do seu ato quando o realizou, mas não suportou a própria imagem depois de o terem consumado. Ouvi, juízes! Ainda há outra loucura: a loucura antes do ato.

A partir daquele momento, eu começava a ler os pensamentos de Zaratustra e sobretudo a ouvir a voz de Nietzsche, ditando o que ele desejava ler em meus escritos.

Amanhecia. O céu pintava-se de rosa e azul anil, anunciando o frio glacial da montanha. Eu o contemplava. Cada instante. Cada metamorfose de cores. Jamais me esquecerei desta paisagem. Ao longe, o deserto dourado escondia tesouros, segredos, códigos que ainda hei de decifrar. Tal qual o mar: secreto, misterioso. Como é belo este lugar!

Zaratustra sentou-se ao meu lado e me perguntou astutamente:

- Seríeis ladra de rebanho?

- Lógico! – respondi sem pensar. Riu-se. Viu a águia sustentando nos pés a serpente e o corvo.

- O mais arrogante segura o mais astuto e o mais humilde falastrão. Perigosas sendas. Guiem-nos os animais!

No deserto, o sol na cabeça, a areia dourada, uma caravana desfilava. O profeta ordenou que o anotasse – e pensasse:

- O espírito sólido pergunta: “O que é mais pesado? Será rebaixarmo-nos para o nosso orgulho padecer? Deixar brilhar a nossa loucura para zombarmos da nossa sensatez? Sustentarmo-nos com ervas do conhecimento e sofrer fome na alma por causa da verdade? Ou será amar os que nos desprezam? Estender a nossa mão quando se nos quer assustar? No deserto mais solitário o

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espírito torna-se leão. Quer conquistar a liberdade; ser senhor do deserto. Quer ser seu inimigo e de seus dias, lutar pela vitória contra o dragão.”

- Que dragão?

- O “vós deveis” – Em mim brilha o valor de todas as coisas. Todos os valores já foram criados. Sou todos eles.

Saltou do animal besta para o animal homem, tão besta como os outros animais:

- A criança é a inocência. O esquecimento. O recomeçar. Um lindo brinquedo. Uma roda que gira sobre si mesma. Uma santa afirmação! Dá-me saudade da criança que habita em mim – confessou-me um adulto pela força da vida.

- Santo Deus, necessito desenterrar meus filhos! Será como ouvir o canto da roldana enferrujada no deserto. Puxar água doce em meio ao Saara. Fazer o cata-vento rodar! Trazer o vento de volta até que eu possa morrer abençoando. Dai-me água, amigo?

- Darei o que quiserdes, ovelha desgarrada que estimo e respeito, mas não serei coveiro de novo. De vós espero o esplendor, não a morte. Se virdes vossas crias, morrereis de fome e sede na alma. Por que o amor do bebê entregastes a outros. Fostes sobre-humana sem saber. E não se olha para trás quando se subiu tanto! Se olhardes para trás, caireis como que de um penhasco. Nem corpo terei para enterrar! Que preferis?

Entalei. A asfixia pedia água. O corpo, decisão. Pensei no abismo de mim mesma. Então decidi:

- Viver. Vossa conduta é minha. A loucura é também.

- ... E se um dia a minha prudência me abandonar, possa sequer a minha altivez voar com a minha loucura – e riu comigo.

- Possa eu também fazê-lo, pulando daquela pedra ali. Seguir a maré controlada pelas leis física e moral. Meu amigo ficou sério de repente. Pediu que o anotasse mais, pois se lembrou de um santo ancião que muito o ensinou: “O velho”, dizia, “vivia isolado numa choupana. Era negro, fumava, e sempre me aconselhava a dormir sobre o silêncio, na letargia, a viver o dia, a bendizer a morte: ‘É santa como um bebê!’ A crer que somos menores que um grão de areia – átomos! – e a ficar bem longe dos homens sórdidos. O santo velho vivera vinte mil vezes. E aprendera nas entrevidas que se deve sofrer menos, evitar a dor, mas evitar sempre. Era um demônio, esse santo. Vós o conhecestes e havereis de revê-lo. Dava-me conselhos:

“Eu não dou esmolas! Não sou pobre demais para isso! – eu dizia-lhe.

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“Não sois pobre demais para dar esmolas? Vedes, então, como vos arranjareis para aceitarem os vossos tesouros!

Cabisbaixo, o profeta por fim levantou a cabeça, como se houvesse engolido uma dor, o olhar umedecido de lágrimas. Para mim, o ancião era muito mais do que um velho agarrado à solidão de uma choupana. Era um enigma. Meu, não de Zaratustra. Apenas não entendi o porquê das lágrimas. Então meu amigo ditou os sete mandamentos do sono, com uma fina ironia que beirava o cinismo:

Dez vezes ao dia deveis saber vencer-vos, o que fadiga muito; Dez vezes ao dia deveis reconciliar-vos convosco: é amargo vencer a si mesmo; Dez verdades havereis de encontrar durante o dia, senão procurareis verdades à noite; Dez vezes ao dia precisareis rir; Paz com Deus, paz com o próximo e paz com o diabo do próximo; Não quereis muitas honras nem muitos tesouros: exacerbam a bílis; Somente se pensa no que se fez durante o dia. Ruminando, o homem interroga-se

pacientemente como uma vaca! A sabedoria do ruminar eu não havia observado. A do tronco torto, sim. Quando um tronco está torto, não é que já nasceu torto, mas porque foi mal plantado. Assim sucede com o ser dito humano.

“ Se não ruminarmos como as vacas e não olharmos para trás, não poderemos entrar no reino dos céus”, recordava, enquanto o sono abeirava-se.

Dormimos um sono profundo. Sonhei com uma tourada: era um touro enfurecido, olhos vedados, correndo em busca daquele que me desafiava. Entrevia, apesar da cegueira, um homem agitando um pano vermelho. Quis atravessar-lhe com meus chifres. Súbito, tornei-me o toureiro. E, do nada, Gandhi apareceu flutuando, pedindo-me paz. O sonho mudou de lugar: três mulheres surgiam, face a face, uma a uma, enfurecendo-me mais do que o toureiro. Batia-lhes violentamente. Puxei uma espada, degolei-as. Cabeças ao chão, rostos mortos, olhando-me. Levantei suando. Fui para o Lago Ninfas: os rostos estavam lá, supliciados, implorando de volta a vida que roubei.

“De modo algum!” – pensei – “Vocês beberão o próprio sangue para limpar o que derramaram dentro de mim, filhas do demônio.” Será? Angustiada, quis acordar Zaratustra. Uma das mulheres falou, enquanto se afogava:

“Tudo o que tentamos foi salvar vosso filho. Vossa ingratidão não é para conosco, mas para convosco. Temos que nos indignar com as nossas próprias atitudes, não com a dos outros.”

Zaratustra ainda não sabia de minhas escapadas na madrugada, meu nome, nem as minhas conversas com os meus eternos pesadelos. Eu sugava da madrugada toda a energia da transformação. A estrela Shetah brilhou antes do sol. Pediu que a pedisse um presente:

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“A surra dos lacaios exilou-me de um caminho próspero, mas também me deu força para seguir na aridez do deserto. Conhecer Zaratustra é algo como encontrar nas profundezas do mar um baú repleto de tesouros. Peço que brilheis todos os dias para mim!”

O profeta era um baú indecifrável que, eu não sabia, iria procurar até depois de morta nas profundezas do mar. Com outro nome. Outra vida.

Acordamos a tempo de ver a aurora varrer do céu as estrelas e empalidecer a lua minguante.

- Grande astro! – bradamos juntos.

À beira da colina, ele pediu polidamente que lhe anotasse os pensamentos. Pregaria com fome de sentenciar. Amanheci com fome de ouvir.

“Bem-aventurados os pobres de espírito. Vivem abundantemente quando se lhes dá sempre razão. Assim passam o dia os virtuosos, segundo os preceitos daquele que desceu sob um grande mistério e cuja passagem pela Terra foi tão efêmera quanto obscura, mas cujas verdades traspassam todos os dogmas fraudulentos. O Cristo, que pouco viveu, deixou-nos uma incalculável herança: um enigma! Em profunda ignorância acerca da vida após a morte. Morreu a tempo: claro que o que nunca viveu a tempo não tem como morrer a tempo. Melhor é não nascer.”

Ainda que encontrasse argumentos fortes neste pensamento, sentia machucar meu peito, pela fé em Jesus Cristo. Sentia tremer os dedos por escrever palavras tão temerárias. Eu era apenas uma discípula!

“Eis os tísicos da alma. Mal nasceram e já começam a morrer. Sonham com a doutrina do cansaço e da renúncia. Queriam estar mortos e nós devemos santificar-lhes a vontade. Livremo-nos de ressuscitar esses mortos e de lhes violar as sepulturas. Encontram um doente, um velho ou um cadáver e depois dizem: ‘Reprove-se a vida!’. Os reprovados são eles, como os olhos deles, que só veem um aspecto da existência. Sumidos na densa melancolia e ávidos por acidentes que matam, esperam a morte cerrando os dentes.

Com um cálice de cristal à mão, brindei, alegremente:

- Saúde! Aos pobres de espírito desse mundo, muita saúde! Porque eles precisam enriquecer a alma.

Ironizou a criação do mundo sem brindar:

“O Criador queria desviar-se de si o olhar e criou o mundo. Para quem sofre é uma alegria esquecer o sofrimento. Alegria inebriante e esquecimento de si mesmo pareceu-me um dia o mundo. Este globo – um nada celestial –, eternamente imperfeito, é um espectro de uma grande contradição. Seria para mim um sofrimento e um tormento crer em tais fantasmas. O mundo é ébrio. Tudo é invertido. Tosco cenário de vinganças. Há algo de muito torto na alma humana,

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este espelho da criação. O homem é um rio turvo. É preciso ser um mar para, sem se toldar, receber um rio turvo.”

Fiz uma espécie de digressão da vida. Momentos de dor e prazer. Julguei-o Elias, como os judeus acreditavam sê-lo Cristo. Nada disso. Zaratustra é como um grande martelo. Tijolo por tijolo, vai demolindo a doutrina dos hipócritas. Esse prazer de estar ao lado de tão precioso amigo é indescritível.

“Foi o corpo que desesperou do corpo!” – prosseguiu. “Foi o corpo que desesperou da terra: tateou com os dedos de um espírito apavorado as últimas paredes. Viu as entranhas do ser. Quis que sua cabeça ultrapassasse as paredes: e não só a cabeça, até ele mesmo quis passar para o “outro mundo”.

Isso me lembrava uma obra de Salvador Dalí. As paredes de um ovo tecido de dúvidas, maleável, um pano elástico, um ovo chamado Terra, um ovo sufocante chamado homem. Um ovo branco e pequeno: asfixiante. Deus tentou sair do ovo, sufocado com a pequenez do globo. Havia muitos deuses!

Ele prosseguia:

“... Quis passar para o “outro mundo”, porque esse mundo descaminhado – o nada – está oculto aos homens e as entranhas do ser não falam aos homens, a não ser como homem. Ou só com o profeta Moisés, com quem Deus conversou cara a cara e não revelou o segredo da imortalidade da alma. Deus teve um acesso e criou o que se chama homem. Decepcionado, quis matar todos. Não os matou. Multiplicou-os!”

Rir... Foi o riso que me deu de presente o primeiro indício de que era correspondida. Comecei a desenhá-lo: só consegui tal prodígio conversando sobre religião. Ele adora religião! Assim, falando das Sagradas Escrituras, desenhava-o como a um sol. Iluminado, cheio de sabedoria, rugas no rosto, de uma beleza insuportável. A expressão de meu amigo ria-se com o cinismo do homem sábio. Belo retrato guardado em meu coração. As folhas voaram como as palavras ao vento. Contudo, as letras marcadas pelo desenho de pulso firme ficaram impregnadas no coração morada das almas. O olhar do meu mestre ia para não sei onde. Tamborilando, ele cantava melodias árabes, invocando a respiração do estômago e deixando passar por todo o corpo a energia:

“O ar deve penetrar nas entranhas. Tem de atravessar todos os órgãos, porque meu corpo é fogo. Quando eu voltar às cinzas, o fogo me ressuscitará.” Respirar pelo estômago... Eu já havia feito isto. “Fazei. É para conviver com o demônio. Temos energia de sobra; necessitamos equilibrar. Ponde vosso espírito em repouso – ensinava – e esquecei tudo: o dia, a vida, os desejos, o ódio. Procurai não pensar em nada. Necessita o corpo repousar, sentir apenas o ar. Esvaziar a mente. Aspirar todo o ar possível, encher o peito e expirar inteiramente, sem deixar nada, absolutamente. O ar é sagrado. E quando viaja nas entranhas, abençoa. Aprendei a respirar pelo estômago e não tereis aflição. A paz e a felicidade estão bem próximas. Na luminosidade de ambas conhecemos a divindade. Faríeis uma aliança

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com a divindade, pronta para se aliar com o demônio que impera dentro de vós?” – desafiou-me.

O divino com o demônio. Eis algo naquele tempo impossível para mim. Respirei como ensinou. Exercitei o que parecia bastante chato – exigia disciplina. Mas a paz trazia autoconfiança: “Cada um trava as próprias batalhas”, dizia para mim.

Sobrava apenas um pedaço de céu dourado. Uma enorme fatia de laranja para a noite, que lambia os beiços, estava louca para comer. Sol e vontade inefável de sol: o sol do meu amor derreteu o gelo do meu coração. Zaratustra nem sonhava com isto. Eu o estudava. Belo, muito belo, mas homem demais para se deixar vencer pelo prazer. Conviver comigo. Conviver com o demônio de mim. Era preciso desenhar muito e escrever o dia inteiro. Nem olhar para ele. Sedução bendita. Homem do deserto, sábio como a morte. Saltei do papel para um banho gelado. Furiosamente trabalhei. Escrevia sem parar. Pensei em Nietzsche. Na solidão dele. Na dor. Na loucura. Na morte. Deus, que desmazelo para a onipotência!

“Sois deusa do deserto. Não procureis os homens, ficai na montanha. Preferis a companhia dos homens à dos animais? Por que não quereis ser como eu, urso entre os ursos, ave entre as aves?” – perguntava-me, percebendo a minha insaciável tendência de rondar fora de mim. Por minha vez, eu queria saber: “Que fazíeis quando não me acompanháveis junto à neve, no alvorecer, na madrugada sem lua?”

“Eu cantava cânticos. Ria. Chorava. Assim louvava a mim. Ao deus que habita em mim, mesmo que o diga morto. Os homens estão mortos para a vida desde que fizeram de Deus um sacerdote. Eu cantava, murmurava, chorava em silêncio. Louvo ao Deus vivo, não ao que mataram.” Esse sábio solitário tem qualquer coisa de mim também. Sinto calafrio quando recordo a vida de quem o criou. Meu implacável amigo guerreador de pensamentos me deu de presente um homem furioso. Pressinto-lhe... Esqueci o pressentimento e escrevi para Nietzsche, nosso criador:

“O solitário, o pensador incompreendido em seu tempo, é um homem à frente do tempo, que depois de desprezado, criticado e caluniado, depois de enlouquecer com a dor da solidão – e nela morrer – tornou-se célebre.”

- Calhamaços de livros a dizerem calúnias de um defunto. Biltres!

“- Calma!” – disse-me uma voz sarcástica. – “Os mortos zombam da calúnia, mas os vivos podem vir a morrer...”

- Ah, Voltaire!

A solidão é o mais sublime estado da alma. Foi na solidão que conheci diversos filósofos. Sobretudo, senti a solidão dos meus amigos pensadores. Por isso saltava da cama antes do sol apresentar-se à minha janela. A solidão salvou-me!

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“- Creio. A solidão é independência. Eu a tinha desejado há muito tempo. É fria! Mas é infinitamente grande. Maravilhosamente tranquila, como o espaço sideral onde se deslocam as estrelas!” – sussurrou Herman Hesse, num breve momento.

- Hesse? Sou bastante rica para receber esmolas! Hesse!!!

“- Senti necessidade de esclarecer o que sentis por Nietzsche. Sonhei convosco no topo de uma grande montanha no dia da lua azul. Freud acalentou-vos no desespero; quero acalentar-vos na solidão.”

- Hesse? – silêncio absoluto. – E a solidão do abandono, ó sábio? Choro por Nietzsche porque ele é o meu espelho. Amou muito, foi desprezado. Dói descobrir no espelho olhos sem viço. Ser desprezada por quem se travou longa batalha. Perder guerras empreendidas em defesa da vida e morrer por ser incompetente diante do mundo. Ser um verme: um verme da terra. Escapuliram-se-me das mãos o poder e a glória por se acreditar na honestidade. Zaratustra é bom, mas é homem. Será ponte da superação a troco de pancadas.

Não compreendi Hesse. Se tinha o que dizer, por que disse tão pouco? Se não tinha, por que falou? Zaratustra respondeu por ele:

- É difícil demonstrar o ser e é mais difícil fazê-lo falar.

O profeta lia meus pensamentos deitados no papel.

- Deixai-os no papel. Serão úteis. Mas anotai agora. A mais estranha de todas as coisas acaso não será a melhor demonstrada?

- É preciso desconfiar tanto daquilo que se crê entender tão facilmente quanto daquilo que não se entende.

- Que é o macaco para o homem? Uma irrisão ou uma dolorosa vergonha. Pois é o mesmo que deve ser o homem para o macaco. Percorremos o caminho que medeia do verme ao homem e ainda em nós resta muito verme. Fomos macaco e hoje ainda somos mais macacos do que todos os macacos. O mais sábio de todos os homens não passa de uma mistura híbrida de planta e fantasma. Anotai.

Pensei nos átomos de Epicuro, nos intermundos de Swift, na pluralidade dos mundos de Fontenelle, no determinismo de Darwin e em outras teorias mais loucas que as minhas.

CAPÍTULO 6CAPÍTULO 6A MORTE E A ESTRELAA MORTE E A ESTRELA

Nos primeiros meses com Zaratustra, a aurora vinha junto com o anoitecer. Muito o que ouvir, pouco o que dizer. Menos ainda me atrever a desgarrar-me dele. Passaram-se anos.

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Longos como a sublime solidão e belos como ela. Meu profeta é (e será eternamente) demasiado humano.

“Quando ninguém aparece para nos socorrer, no auge do desespero, o Universo inteiro conspira a nosso favor. Envia-nos sinais: é só atentar para eles. Estão por todos os lados. Basta decifrar-lhes o código, o que, para os solitários, é o mesmo que conversar com Deus.” Era a voz da Tiza. Zaratustra falava ao vento e as pérolas eu as recolhia. Agarram as pérolas os que gostam de ostras. Certa noite, sentados admirando o céu, vi uma estrela desgarrar-se como uma centelha de fogo.

- Na noite – disse-lhe –, no deserto da noite, dá para ver o perfume da solidão. A dor da vida e a dor da morte deságuam juntas no oceano, porque amar dói. E só o oceano consegue aplacar tamanhas dores. Só ele segura com mãos selvagens as dores do mundo. Vede: o céu também tem um baú de diamantes e ninguém roubou as jóias dele, pois o imperador do mundo vigia as estrelas. Cada estrela é uma vida. Cada vida é um deserto. E cada estrela brilha implacavelmente. Implacavelmente brilha sem saber.

Vi uma estrela atravessar o céu feito um relâmpago. Mais uma vida morre em algum planeta, pois, ao morrermos, tornamo-nos estrelas. Por que os homens somos como os planetas: precisamos do sol para termos um pouco de luz. Entretanto, ao morrermos, viramos estrelas. E oferecemos o nosso brilho aos que ainda vivem neste vale de lágrimas. De vez em quando cai um asteróide. É um anjo a nos auscultar o coração faminto de amor e a ouvir as nossas preces, pranteando a solidão em meio a bilhões de solitários. Fazemos pedidos e nos sentimos, assim, acompanhados diante da imensa insensatez deste mundo. Mas, afinal, as lágrimas nunca param de cair! E por quê? – interrogar-me-eis. Por que a dor, que asfixia, nunca morre. Apenas finge que enfraquece. A gente é que morre de dor. Adoece. Senti uma forte pontada no peito. Nos momentos mais tristes atentava para o céu. Via animais nas nuvens, em troncos de árvores. Ouvia a voz sagrada do Universo. Não queria curar-me de mim mesma. E, se na pior depressão todos me abandonam, prefiro a morte a submeter-me aos donos da alegria. Sou eu. Morrerei eu. Meu espírito atentava-se para as nuvens passeando e comentava comigo: “Hoje as estrelas estão de folga. As nuvens são as estrelas. Aplaudamos, porque enfeitam diferente. Fazem cair gotas sagradas d’água, lavam a alma. As estrelas continuam estrelas, mas hoje elas dormem!”

Zaratustra tocou-me, porque eu o havia tocado. Meu nome de batismo surgiu, enfim:

- Apesar da noite, Mãos de Jasmim, há muito sol escondido na escuridão como a lua no eclipse. Desprezadora do corpo: desprezais aquilo a quem deveis a estima – falou muito sério. Virou-se para o céu, semblante duro: – Quem criou a estima, o menosprezo, o valor e a vontade? O próprio criador criou para si mesmo o espírito como emanação da vontade. Até na loucura e desdém sereis o ser.

Ele sabia de toda a minha existência.

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- Há mais razão no corpo que na melhor sabedoria. E quem sabe para que necessita o corpo precisamente da melhor sabedoria? O próprio ser se ri do eu e dos nossos saltos arrogantes. Que significam esses saltos e voos do pensamento? Um rodeio para um fim. O nosso ser diz ao eu: “Experimentai dores!” E sofre e medita em não sofrer mais. E para isso deveis pensar. O nosso próprio ser diz ao eu: “Experimentai alegrias!” Regozija-se e pensa em continuar a regozijar-se sempre. E para isso deveis pensar. Digo: desprezais ao que deveis a estima. E por isso deveis pensar. Quereis morrer e vos afastar da vida! Não podeis fazer mais o que desejais: criar. Quereis desaparecer, deslizando-vos furtivamente na madrugada embriagada de lua e desprezais o corpo? No vosso olhar desdenhoso se esconde uma nuvem carregada! Sangram as entranhas!

- Verdade. Amo ainda o que me estende as mãos para me assustar, por isso louvo a madrugada. O silêncio que brota no vazio cheio de segredos, de estrelas que não consigo pescar, por este motivo desprezo meu corpo à luz do dia. Que é o corpo? Carne. Que é a beleza do corpo? O ímã para a inveja. A ausência da beleza no corpo é a própria inveja. O corpo serve apenas para carregar um espírito. O espírito tem que ser sábio, do contrário possui um corpo vazio.

-... Amo a virtude terrena que não se relaciona com a sabedoria nem com os segredos, nem com o sentir comum. Criar valores novos é coisa que a humanidade moderna ainda não consegue. Mas criar uma liberdade para a nova criação, isso ela pode! Acaso a guerra e a batalha são males?

- Os piores.

- Pois são males necessários a inveja, a desconfiança e a calúnia.

- A calúnia? Qual! A calúnia é como lançar de um penhasco penas de ganso ao vento. Quem conseguirá colher uma a uma após espalharem-se?

- Reparai como uma das virtudes deseja o mais alto que há: quer todo o seu espírito para ser o arauto. Quer toda a sua força na cólera, no ódio, no amor.

Cólera. Amor. O profeta mudou o semblante bruscamente. Apresentou-se como “o íntimo do homem”, os olhos revirando em órbitas avermelhadas de ódio. Enfiou a cabeça entre as pernas, fechou os olhos, espremeu as mãos na cabeça. Ficou bastante depressivo e ordenou que não o interrompesse, enquanto falava com uma voz em tom bastante grave, num raspar de garganta que metia medo. Anotei arrepiada dos pés à cabeça:

“Aquele homem pálido estava acima de seu ato quando o realizou, mas não o suportou depois de tê-lo consumado e pediu socorro a Deus”. Após dizer isto, mudou o tom de voz: ficou mais pesada. Zaratustra vomitava tristemente a raiva contida contra a humanidade moderna, “que ama símbolos de papel e de barro”:

- Há dias em que sou visitado por um sentimento mais negro que a mais negra melancolia: o desprezo pelos homens. Que não haja qualquer dúvida sobre o que desprezo, sobre quem desprezo: é o homem. Seu hálito podre me asfixia! Em relação ao passado, como todos os estudiosos, tenho muita tolerância, um generoso autocontrole: com uma melancólica precaução

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atravesso milênios inteiros de um mundo manicômio – chame a isso “cristianismo”, “fé cristã” ou “Igreja Cristã”. Tomo o cuidado de não responsabilizar a humanidade por sua demência. Mas um sentimento irrefreável irrompe no momento em que entro nos tempos modernos, na época mais esclarecida... O que era apenas doentio agora se tornou indecente: é uma indecência ser cristão hoje em dia! E aqui começa a minha repugnância.

Olho à minha volta: não resta sequer uma palavra do que outrora se chamava “verdade”. Já não suporto mais que um padre pronuncie tal palavra. Mesmo um homem com as mais modestas pretensões à integridade precisa saber que um teólogo, um padre, um papa de hoje não apenas se engana quando fala, mas na verdade mente. Já não se isenta de sua culpa através da “inocência”, ou “ignorância”. O padre sabe, como todos, que não há qualquer “Deus”, nem “pecado”, nem “salvador”; que o “livre arbítrio” e a “ordem moral do mundo” são mentiras. A profunda autossuperação espiritual impedem que quaisquer homens finjam não saber disso. O valor de todas essas sinistras invenções do padre e da Igreja e para que fins serviram – cujo aspecto inspira náusea – o conceito de “outro mundo”, “juízo final”, “imortalidade da alma”, da própria “alma” não passam de instrumentos de tortura.

Todos sabem disso, mas nada mudou. Para onde foi o nosso último resquício de decência, de respeito, se nossos homens de Estado – em geral homens profundamente anticristãos em seus atos – agora se denominam cristãos? Quem o cristianismo nega? O que ele chama o “mundo”? Defende-se a si mesmo? Zela pela “honra”? Deseja a própria vantagem? O ser orgulhoso! Toda prática trivial, todo instinto, toda valoração convertida em ato agora é anticristã: que monstro de falsidade o homem moderno precisa ser para se denominar um cristão sem envergonhar-se! Em verdade vos digo: o padre reina desde que inventaram o pecado! Inventaram sentimentos maus, como o ódio, a inveja, o ciúmes, para que o homem transpusesse-os. Para “se elevar espiritualmente.”

O profeta soltou a cabeça das pernas para suspirar profundamente. Aliviou-se com o desabafo. “Quê!”- exclamou, desprendendo o ar preso no peito anticristão e ao mesmo tempo confortando o meu coração. Depois de um agudo grito, inspirou e expirou pausadamente para dizer o que mais desprezível havia entre os homens que as religiões dominam e instigam:

- O que anda em redor da chama do ódio, da inveja, do ciúmes, acaba qual um escorpião por voltar contra si mesmo o aguilhão envenenado. Andaríeis girando?

Empunhando uma espada, ao mesmo tempo em que me concentrava em tal pergunta, interroguei: - E vós? Giraríeis andando?

Rondar dentro de nós: eis o que ensina Zaratustra.

O céu denuncia a alvorada. Já volta manso o sol. Que espetáculo! No frio da montanha aquecemo-nos com mantos. E, após adorarmos o sol, comemos bastantes pães com sucos de damasco. Saboreamos no clima da montanha a água dourada no cálice de cristal. Brindamos à amizade. Rimos muito. “Cada estrela que brilha com certeza nos vê, irmã do mar” – dizia,

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bendizendo mais um instante sagrado de maluquez. Zaratustra ria sarcasticamente, como se fosse um homem trágico e bastante galanteador, seduzindo quem já compartilhava o ar puro da beatitude que impera entre os solitários. Bebia soro de ervas junto com ele. Conversávamos com as folhas das plantas, amantes do verde, e nos gabávamos de ser dois, em vez de apenas um. Já que um consegue ser dois – observe-se a sombra –, mas dois não conseguem ser um. Eis o que falou Zaratustra nesta intimidade quase irmã.

“Somos bem e mal. Nada mais!” – dizia-me. “Não há enigmas, discípula eterna!” Eterna.

Quanta bondade tem esse homem. Não é dado a todos fazer o espírito refletir a imundície escondida. Ele estava mais do que nunca faminto para conversar.

- Sou um anteparo na margem do rio – alertou-me. – O que puder prender-me, faça-o. Sabei, porém, que não sou vossa muleta.

Anotei. E respondi, ofendida:

- Sois um rochedo à margem de um rio. A que vos segue soltou-se de todos os rochedos. Nada como sangrar as entranhas, seja para dar à luz, seja para trazer sombra sobre si mesmo, pelo mesmo motivo por que se deu à vida a vida. A mesma entregou-lha em nome da vida e, assim, a perdeu. Cambaleante, soltou-se dos rochedos. Pensei que morreria! Qual não foi a surpresa, entretanto, ao perceber que dos pedaços de um corpo estraçalhado ainda sairia força para avançar, mesmo blasfemando o corpo? Protegi vidas e morri ao perdê-las. Minhas mãos trabalham noite e dia e minha mente rumina precisamente no momento em que não posso olhar para trás! Zaratustra gargalhou e me fez rir. Mandou que anotasse nestes termos:

- De todo o escrito só me agrada aquele que escreve com o sangue. Escrevei com o sangue e aprendereis que o sangue é o espírito. É difícil compreender o sangue alheio. Detesto todos os ociosos que leem.

- Detestai-me?

- Lógico... que não! O que escreve em máximas e com o sangue não quer ser lido, mas decorado. Nas montanhas o caminho é mais curto de cimo a cimo. Mas é preciso pernas altas. Olhais para o alto quando quereis elevar-vos?

- Lógico!

- O que escala de elevados montes ri-se de todas as cenas e tragédias da vida. A vida é uma carga pesada, mas não vos mostreis tão aflita. Todos somos jumentos carregados. Que parecença temos com o cálice de rosa que treme porque o oprime o orvalho? Amamos a vida, mas não por causa da vida, e sim pelo amor.

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“Há sempre um quê de loucura no amor; todavia, há sempre um quê de razão na loucura. Para saber de felicidade não há como borboletas e bolhas de sabão.” Vendo uma árvore frondosa, agarrou-se a ela.

- Se eu quisesse sacudir esta árvore com minhas mãos, não poderia. Mas o vento que não vemos açoita-a e a dobra como lhe apraz. Também a nós, mãos invisíveis açoitam-nos e nos dobram. E quanto mais se quer erguer para o alto, para a luz, mais o homem enterra as raízes para o tenebroso. Para o mal.

- Lembrai-vos das mãos anônimas, esquecidas no desamparo. Flores rodopiando na ventania assemelham-se a estrelas perdidas na tempestade. É todo um mar de sofrimento e angústia que nos rodeia. Apurai a vista para que o aflitivo painel não passe despercebido. Mãos, de várias cores, a se debaterem nas sombras. Chegaram à Terra como doces promessas de alegria e lutam por sobreviver à procura do bem. Pelo amor à criança que habita dentro de vós, que inspira a beleza, acendei o lume da bondade e não vos recuseis a socorrer os que acenam da onda revolta, suplicando piedade e carinho. Auxiliai esses lírios humanos a se desvencilharem do lado das trevas, para que se desenvolvam ao hálito da luz! Não negueis a vossa migalha de ternura aos anjos que choram no temporal! Recolhei as mãos enregeladas no frio do desencanto e, ao calor de sua abnegação, ajudai-as a renascer para a existência, para que possam esculturar o sonho de perfeição e grandeza no esplendor do amanhã. Descerrai as portas do coração para os seres do berço torturado. Protegei-os!

Fiquei no monólogo por muito tempo. Uma imagem cegava-me os olhos. Era um deserto brilhando; um sol insuportável amarelava o azul do céu numa praia repleta de banhistas. Comecei a gritar. Zaratustra havia descido a montanha, sumiu na neblina, enquanto o verão passeava diante dos meus olhos. Vozes faziam um barulho irritante numa praia insuportável. Gritei de novo. Um tique nervoso percorreu meu corpo, pois eu ouvia pessoas rindo de mim. “Tirem-me daqui!” – suplicava. Ninguém ouvia. Então percebi que fumei uma tora de qat, na empolgação da conversa. Enquanto a paranóia não passava, escutei uma pessoa murmurando nos meus ouvidos: era o velho negro da choupana, que dizia em alto som, em meio àquela gritaria da praia ilusória:

“A porta trancada. A arma guardada. A faca afiada. – Nojento é o ser humano – dizia o velho, calvo, barbas enormes. Calvo, setenta anos, antissemita e anticristão. “– Ó, moça, deixai de bobagem!” – dizia, a boca trancada, os olhos trancados. A porta trancada. A alma trancada. A vida arruinada. Um homem preso em um quarto. Receia abrir a caixa de todos os males e encontrar a pavorosa esperança? O revólver não teme: está engatilhado. A faca não teme. Teme a ele mesmo: às arraigadas convicções do budismo.

“O diabo, moça, o diabo reina desde que inventaram Deus.”

Olhos perplexos. Aquele velho negro não se estarreceu comigo, propriamente, mas com a mulher que renascia. Largou o olhar exático de quem não se espanta, para me espantar com uma acrobacia espiritual. O velho desapareceu. A praia sumiu. Zaratustra de repente surgiu, brilhando como o sol e pairando no ar como um fantasma. A serpente enroscou-se-lhe no

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pescoço; a águia e o corvo pousaram-se-lhe nos ombros. Irradiava uma luz violeta em redor do seu corpo. Belisquei meus braços para ver se estava acordada. Estava. O profeta soltou o grito do parto que só as mães compreendem o sentido e a histérica melodia. É de medo do monstro, do nascimento, da vida. Em meio ao brilho, sorriu bondosamente:

- Há almas que nunca se descobrirão, a não ser que se principie por inventá-las. Já não confio em mim desde que subi às alturas. Transformo-me muito depressa: o meu hoje contradiz o meu ontem. Quando chego em cima, ninguém me fala. O frio da solidão faz-me tiritar. Que é que quero nas alturas? O meu desprezo e o meu desejo crescem a par. Quanto mais me elevo, mais desprezo o que se eleva em mim. Como odeio a minha ascensão! Como odeio a minha queda! Como odeio tudo o que voa! Como me sinto cansado nas alturas!

Entrementes, pensei:

Que busca esse espírito errante que fala assim? A glória ou a confusão? Não nos é dada a glória de pairar no ar como o gênio da lâmpada! Odiar o que voa é medo de crescer e o receio de cair e levantar são sentimentos infantis!

- Sois uma criança! A santa criança quer brincar e Zaratustra não a quer, porque teme preferir sê-la! – deduzi, precipitadamente.

- Bem o dizeis – disse, sentando-se. – Ansiei por minha queda ao chegar às alturas e vós fostes o raio que eu esperava. A inveja cerca-vos e me aniquilou. Tenho o coração dilacerado. Melhor do que as palavras, dizem-me os vossos olhos. O bebê se foi. Digo-vos: ainda não sois livre. Procurais a liberdade. Temei-a, porque habitais perto demais das nuvens. Cuidai de sonhar menos e agir mais. O homem argumenta. A natureza age. Divagar! Esse espírito infantil atormenta-vos, pois vos impede de saltar as montanhas. É preciso pernas! Não cresceram... Eis a incompetência, aniquiladora de vosso áureo despertar. De vosso criar.

Uma fina linha desceu do tronco de uma árvore próxima ao abismo. A aranha surge e espreita. Some. Observei os passos dela, as pernas cabeludas calçando o monte, adentrando pela terra escorregadia. Voltei a sondar o profeta, acompanhando de olho os passos da aranha:

- Três coisas me são ininteligíveis, profeta, e uma quarta ignoro: o caminho da águia pelo ar, o caminho da cobra sobre a pedra, o caminho do corvo sobre o mar e o caminho dos homens na juventude. E quatro coisas há na Terra, muito pequenas e mais sábias do que os mais sábios homens: as formigas, fracas, fazem o provimento durante a messe; os coelhos, tímidos, fazem a habitação nos rochedos; os gafanhotos não têm rei e, todavia, saem todos ordenados em seus esquadrões; a aranha apanha com as mãos o paço e habita no palácio dos reis. A aranha mastigada preenche de veludo os venenosos corações!

Ele gostou do provérbio e do verbo. Olhava-me, atento, perigando dar o bote. Convidou-me para pensar no que havia dito e iria dizer. Tornou a me olhar, estonteante. Tocou harpa; cantou em árabe. Sedutor e distante.

Veio a advertência:

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- Quereis escalar a altura livre, mas vossa alma está sedenta de estrelas; vossos maus instintos têm sede de liberdade. Cães selvagens querem ser livres: ladram de prazer no covil, enquanto vosso espírito tende a abrir todas as prisões. Sois prisioneira e sonhais com ser livre. Ai! A alma de tais presos torna-se astuta e má!

- Astuta e má? Por quê?

- O que vos libertou o espírito necessita purificar-se. Confundem-se a miopia com a maldade, efeito de uma prisão assaz longa. Por amor de mim: não afasteis para longe a vossa esperança? Enterneciam-se os olhos de um homem machucado pela traição. Os olhos castanhos, como a barba aparada e o bigode, toda a energia envolta no corpo do profeta tornou-se verde fluorescente.

- Ajudai-me! – implorei.

Como se não me ouvisse, prosseguiu:

- Ai, que mal a palavra “virtude” lhes corre da boca! E quando dizem ‘sou justo’, sempre soa igual a ‘estou vingado’. Com sua virtude querem arrancar os olhos de seus inimigos e somente se elevam para rebaixar os outros. Reconheceis-vos nobre?

- Não.

- Em verdade nobre vos sentis ainda e nobre se sentem ainda os outros, os que vos querem mal e vos lançam olhares maus. Ficai sabendo que, para todos, o nobre é uma pedra no caminho. Novo quer o nobre criar e uma nova virtude. Velho quer o bom, e que o velho fique conservado. “Amo todos aqueles que são como gotas pesadas, caindo uma a uma, da nuvem escura que pende sobre os homens. Eles anunciam que o relâmpago, vêm e vão ao fundo como anunciadores. Vede, eu sou um anunciador do relâmpago e uma gota pesada de nuvem. Mas esse relâmpago se chama o além do homem.”

E, caminhando um pouco juntos, Zaratustra saiu a pregar.

- Vigiai e escutai, oh, solitários! Do futuro chegam ventos como misteriosas batidas de asas. E para ouvidos finos há boa nova . Vós que vos apartais, havereis um dia de ser um povo. Um povo de vós, que vos elegestes a vós próprios, há de crescer um povo eleito – e dele, o além do homem.

Dias havia em que o profeta parecia não me ver. E dias havia que não conversava comigo, porque eram para ele “dia de ser ” e não falava. Dei graças ao Criador por mais um dia. Avistando o horizonte, parei os olhos diante do crepúsculo. O sol mordendo as nuvens enquanto vai descendo; as nuvens roubando-lhe pedaços de luz. A luz vermelha derramando-se nas nuvens emprestadas de alaranjado, avermelhando-se tão rápido e forte que quase cega. Restos iluminados do sol tangido entre duas colinas, insistindo em longo êxtase, colorindo a

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atmosfera como um divino pintor de céus. Olhei para cada estrela que começava a cintilar e o brilho reluzia forte como se me respondesse. Deus tem olhos por toda a parte. Cada estrela é um olho firme sondando cada ser. Então são incontáveis os olhos divinos pelo Universo. Mas há os ‘de dentro’, a sondar os coração e os rins. Deus conhece todos, ao mesmo tempo em que pinta o céu divinamente.

Esfriava. As nuvens anunciavam uma forte, mas efêmera tempestade. Zaratustra chegou à beira da noite, sentou-se ao meu lado sem manto. Cobri-me com vontade de descobrir-me. Minha temperatura caía. Observando a luz em torno do dorso nu dele, desenhava-o: braços másculos, peitoril liso, largo, pescoço grosso. Pensava nisto, quando ele me pediu que o anotasse, polidamente, como sempre:

“Todos que amam o trabalho furioso, suportam-se mal! A atividade é fuga e desejo de esquecer-se de si mesmos. Se confiassem na vida, não se entregariam tanto ao momento corrente.”

“Loucos os que pertencem à vida. Todavia, somos todos loucos! E esta é a maior loucura da vida.”

“Todos somos como gotas pesadas que caem, uma a uma, da sombria nuvem suspensa sobre os homens e anunciam o relâmpago próximo e desaparecem. Sou o anúncio do raio e uma pesada gota procedente.”

Deitei-me no colo do profeta, trêmula. Ele acariciou-me vagarosamente os cabelos, beijou-me. Alisou-me os cabelos, descendo os dedos pelo pescoço; abriu o vestido, passeando as mãos quentes pelo meu corpo. Soltei um gemido. Deliciei-me. O turbante de Zaratustra soltou-se com uma rajada de vento. Seminus, quase nos entregamos. As mãos suaves perdiam-se nas carícias.

- Devemos procurar o nosso inimigo e empreender uma guerra por nossos pensamentos! E se o nosso pensamento sucumbe, possa a nossa lealdade cantar vitória. Devemos amar a paz como um meio de entoar novas guerras. Não é possível estar calado e continuar tranquilo senão quando se tem flechas no arco. Seja a vossa paz uma vitória. E sabei escolher bem o inimigo, pois uns são dignos de piedade. Escolhei inimigos dignos de ódio.

- Seríeis digno de ódio?

- Tudo é imprevisível. Serei capaz de qualquer coisa se me prenderdes.

Qualquer coisa, inclusive esconder a chave de ouro? Na inquietação, eu via uma porta reluzente como o sol, abrindo e fechando sem parar. O carinho foi-se. Zaratustra tinha sede de falar.

- Brindemos à paz? – disse-lhe, contente, tentando recuperar o amor.

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- À guerra. A bravura salvou os náufragos, vossos filhos. Se tivésseis piedade deles, sucumbiriam. Que me importa a piedade? Não é a piedade a cruz onde se crava aquele que ama os homens?

- Por que guerrear pelos pensamentos?

- Seja o amor à vida o amor à mais elevada esperança! Despejai vosso conhecimento generosamente.

- E a lua?

- Sol é superação. Sobrepõe-se com luz sobre as trevas – desconversou.

- Acima, embaixo, em tudo, contudo, há o Criador...

- ... O vosso Criador! Vinde, cigana!

- Quê?! – espantei-me, satisfeita. “Enfim, o dia chega!”

Não sei por que, mas tive medo. Como eu resistisse, ele rasgou minha roupa. Rasguei a dele também. Contudo, eu já não habitava mais o meu corpo: era alguém muito mais forte – e totalmente diferente. Desabotoei vagarosamente o vestido da minha alma, porque outro era o espírito que entrava no meu corpo. Acendeu um incenso de rosas, inspirou a fumaça e, levemente, sentou-me no colo. O profeta, finalmente, esqueceu-se das parábolas. Perto da aurora, um vento de morte arrancou-me do corpo e me levou ao cume de uma colina. Um trovão explodiu junto com uma voz. Conjurei o trovão. Vi um rosto sarcástico desenhado nas nuvens. Era Voltaire. Voou a minha alma. Gritamos em uníssono, gargalhando:

“- Três coisas são capazes de ridicularizar até mesmo um grande homem: a necessidade de falar, o embaraço por nada ter a dizer e o desejo de ter espírito!”

- Quando vamos nos ver?

“- No abismo do caranguejo.”

Foi-se Voltaire, jovem, olhos vivos e bem grandes. Deixou escrito num papel:

“O homem carrega o fardo, concomitantemente com a dádiva de transformar essa matéria – nada menos que a alma – que nem conhece a origem, a substância nem a extensão, porque fala por falar, inventa e se convence, sonha, afirma, prova e não lhe cresce a verdade. Somos ponte, força motriz, átomos. Com tanto orgulho e sisudez, esquecemo-nos de que fomos gerados entre a matéria fecal e a urina.”

Senti uma solidão! Dobrei os joelhos sobre as pedras. Adorei a tempestade que caía. Não senti frio. Passou um vento forte, arrastando-me agora para o lado do meu profeta. Adoramos a tempestade. Cada gota. Cada relâmpago. Cada trovão. Fui tomada do prazer de sentir a vida

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pulsar nas veias. Deitamos debaixo da chuva. Abraçados, ríamos diante daquele sagrado momento.

O corvo dormia; peguei-lhe as asas. Voei!Tinha necessidade de tudo investigar do alto. Vi a natureza sob todos os ângulos. Senti-a irmã e mãe. Abraçou-me os cabelos junto ao vento; abracei-lha com os olhos.

- É preciso dormir! – gritou Zaratustra.

Naquele momento, tudo o que eu queria era ouvir o canto da madrugada.

- É preciso viver a noite! Os ventos cantam melodias que necessito decifrar. Os ventos todos uniram-se e eu rodopio num balé involuntário... leve...! Boa noite!

- A madrugada vai-se...

- ... Sim, vai-se! Mas eu mergulho nas profundezas do abismo a ver se vos ouço mais e melhor. Todos beberão a dádiva de conversar com o póstumo. Basta principiar! – disse para o vento que chega aos quatro cantos da Terra. _________________________________________________________________

CAPÍTULO 7CAPÍTULO 7NO SÉTIMO CÉUNO SÉTIMO CÉU

São duas e dez da madrugada. Há muito céu a correr. Meu ego cresceu demais.

“Na Terra, nada há maior do que eu. Sou deusa e dedo ordenador de Deus – gritou o alterego dentro de mim. – E não só os que têm orelhas cumpridas e vistas curtas cairão de joelhos. Em vossas almas grandes murmuram vossas sombrias mentiras! Eu conheço os corações ricos que gostam de se prodigalizar!”

Em vez de árvores, abismos e nuvens branquinhas passeando, vi um aquário no céu: peixes enormes e minúsculos, cores exaustivamente vivas, um desfile de golfinhos. O mundo ficou de cabeça para baixo. Eu mergulhava profundamente. Tudo passava muito rápido, enquanto o mergulho ia-se numa lentidão enlouquecedora. Olhares amigos, hostis, passageiros, instantâneos: numa palavra, um turbilhão de acontecimentos grandes demais para pouco tempo, girando numa velocidade alternada entre a rapidez e a morosidade.

Sentei-me na abóbada de uma espetacular mesquita para ouvir o canto dos pássaros. Conversei com dois:

- Vós cantais melodias da Arábia Feliz? – perguntei.

- Todas as manhãs, antes de celebrardes com vosso adorado profeta o adorado sol.

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- Eis que ele já vem! Vamos voando? É a primeira vez de minha vida!

- Vamos!

Levantei as asas, após o que também levantei a cabeça. Alcei um voo magnífico. Cantei. Subi ao céu. O sol lançava os primeiros raios, jorrando brilho de ouro nos templos. Pensei em Zaratustra e adorei-o sozinha, de tanta felicidade:

- Grande astro! Que seria de vós... se ... vos faltásseis aqueles a quem iluminais?

Ele veio num canto alegre em redor de minha aura:

- Sim, discípula fiel! Brindemos ao sol que se levanta sobre bons e maus. Tudo o que digo será eterno!

Elevada naquela atmosfera solar, senti um calafrio, um gelo no coração que me devolvia ásperos momentos:

- Meu pai... Passou por aqui. Ouvi a voz dele! Zaratustra sumiu.

- Pai! Abraçai-me!

Caiu uma folha seca. Peguei-a logo. Foi meu pai. Ele a mandou do céu para dizer que, de onde estava, acompanhava-me. Ou acaso teria um átomo de Epicuro por ali? “- Vários, filha! Vários!”

- Quanta saudade! Pai ... por quê...?

Sumiu. O coração permanecia pesado. Corri ao amigo.

- Zaratustra, o que faz esquecer os filhos que a vida roubou e o pai que a morte levou?

- Saúdo-vos por ter enfrentado a aridez e o camelo – cumprimentou-me, mascando qat. – Ambos queriam-vos sucumbida. Superou-se dez vezes a ti e ao diabo do próximo. Ouvi vossas preces pelo diabo de cada inimigo. Quanto às lembranças de perdas a princípio irreparáveis, aconselho a seguir a Natureza. É a rainha do Tempo. Sabeis a que tempo me refiro. O momento é de conviver com o demônio: dentro de vós. Conviverdes-eis quando terminar esta jornada. Palavra de honra. Desceu a montanha a procurar discípulos. A lua saltava no horizonte tal como uma hóstia sagrada. Fiquei a contemplá-la longo tempo. Contei planetas, avistei algumas constelações. Canopus, Órion, Gêmeos, Escorpião... Dormi nua, ali, com o céu estrelado sobre mim. Pela manhã, li nas águas do Lago Ninfas:

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“A vida não me foi tirada, mas transformada. Eu estarei sempre convosco.”

A fraca estampa do rosto do meu pai nas águas estava marrom. Olhos apagados, abatidos, boca sem desenho, murcha: um morto num retrato.

- Pai! Onde estais?

“- Dentro de vós.”

- Como encontrá-lo? Como dividir uma dose de uísque com o senhor?

“- Estou no sétimo céu: tocamos harpa e tudo é violeta. Sétimo céu!”

- “Quem sabe a hora certa?”

- Quando subirdes, trazei bastante uísque. Do bom!”

- Uísque no céu???

Pulei no lago sem me preocupar com Narciso. De tanto que chorei, a água ficou salgada. Afundei-me. A água já me entrava a ponto bom. Dava para puxar de um cometa e conhecer o planeta do Pequeno Príncipe. Mas, qual não foi o arrebatamento, o martírio, a tortura, a raiva, o ódio, quando me dei por conta de que me esqueci do uísque?

- Soltai como os peixes. Vai uma, duas, três!

Zaratustra teve que fazer um grande esforço para me trazer de volta à Terra. Mas eu não queria retornar de modo algum.

“- Vou para o sétimo céu!” – pensei.

- Falai com água até na alma. Não ordenei que cuspísseis tudo?

“ - Até a raiva?”

- Principalmente. Não é momento de delírio. Não é hora de partir, anotadora do diabo!

“- Quero viajar pelos planetas do Pequeno Príncipe!”

- Traíra! Peçonha da manhã! Biltre!

“- Biltre?” – espantei-me, cuspindo e tossindo. Voltei à Terra contrariada.

- Pior. Matar Natureza! E a caixa de Pandora? Trocai-vos rápido. Providenciai tinta e pena.

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Riu, discretamente.

CAPÍTULO 8CAPÍTULO 8O ESTADO DAS MOSCASO ESTADO DAS MOSCAS

De pena à mão, comecei a anotar:

“A este frio monstro agrada acalentar-se ao sol da pura consciência. Quer ele dar tudo, se o adorar. Assim compra o brilho da virtude. Eis o Estado.

“Eu, o Estado, sou o povo. Os que armam ciladas e chamam a isso Estado são destruidores. Cada povo fala uma língua que o vizinho não entende. Mas o Estado mente em todas as línguas. Tudo o que tem roubou. Morde até com os dentes roubados.”

- Thomas Hobbes e John Locke, embora de modo diferente, indicam o Estado como o mal necessário à sociedade. O monstro social que adestra o homem lobo do homem, como forma de banir o estado de guerra e controlar o estado natural. As formigas e as abelhas têm líder...

- Abelhas alimentam-se de néctar. O Estado é a mosca anêmica: suga o sangue dos homens. Onde todos bebem veneno. Onde todos se perdem. Onde o lento suicídio chama-se vida. Roubam tesouros: virtudes. Chamam civilização ao latrocínio. Adquirem riquezas: fazem-se mais pobres.

- É necessário para o desencadeamento do Universo!

- Há muitos lugares vagos onde se aspira a fragrância dos mares silenciosos. Quem pouco possui pouco é possuído. Vedes o arco-íris?

- Vejo.

- Bom sinal.

Parou para comer pães, beber água e meditar. Era momento de orar. “Obrigado, Pai, pelo amor e pelo ódio do próximo”. Quis perguntá-lo se admirava Sócrates. Respondeu lendo-me os pensamentos:

- Fugi, amigo, para o vosso isolamento. Vejo-vos aturdido pelo ruído dos grandes homens e crivado pelos ferrões dos pequenos. Dignamente sabem calar-se contigo os bosques e os penedos. A árvore de forte ramagem escuta silenciosa, pendida para o mar.

Escutei Platão, Xenofontes, Anaxágoras, Plutarco, Tales e Pitágoras lamentarem a decisão de Sócrates de beber o cálice de cicuta. Platão implorava para que ele abdicasse das convicções

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e fugisse de Atenas. Preferiu morrer. Foi a hora do amor entre os célebres pensadores de tempos diferentes. Ouvi choros. Sócrates sumia-se como um desenho nas nuvens. Os pranteadores faziam chorar as árvores.

Voltei a anotar:

- O mundo gira em torno de valores novos. Gira invisivelmente em torno do povo e da glória. As fontes profundas precisam esperar muito para saber o que caiu na sua profundidade. Tudo quanto é grande passa longe da glória.

- Até Sócrates?

- Preferiu a glória. Preferível seria fugir para onde soprasse um vento rijo. Fugir da vingança. Não era ele uma pedra, mas já lhe haviam fendido infinitas gotas. Nunca a verdade pendeu do braço de um espírito absoluto. Sócrates e Jesus Cristo não morreram por desafiarem o Estado, mas por terem adquirido inimigos poderosos demais.

- Pregaríeis em praça pública pela glória?

Não respondeu. Continuou a falar sem prestar atenção, porque detestava ser interrompido:

- As moscas desejam o sangue com a maior inocência. Almas anêmicas reclamam sangue; picam com a doçura da virgem. Zumbem com louvores; fazem-se amáveis. Eis a astúcia dos covardes. Os covardes são os mais astutos. Desconfiam sempre. Tudo o que dá muito o que pensar torna-se suspeito. Castigam-nos pelas virtudes e só nos perdoam de verdade pelos erros.

- Têm culpa pela pequenez da existência? – objetei.

- Toda grande existência é culpada. Livrai-vos dos pequenos. Sentem-se menores e a baixeza arde em invisível vingança. Somos a consciência roedora deles, porque não são dignos. Por isso, odeiam-nos e querem nos sugar o sangue. E o que é grande em nós torná-los-ás ainda mais venenosos. “A inveja permite a apologia de sua probidade, não de seu espírito.” , ouvi Voltaire.

CAPÍTULO 9CAPÍTULO 9A LUAA LUA

As cores dos últimos suspiros do dia convidam para uma contemplação. Ante o céu iluminado, admirando a majestade dourada do crepúsculo, a lua cheia salta por entre as nuvens. Como hóstia celestial, enfeita o céu. Esconde-se, irradia sua luz, dança entre as nuvens. Brilha prateada! Quer ser mordida pelas nuvens. E gosta de reverências. Dito o “Boa Noite”, perguntei:

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- Por que tendes quatro faces em dois hemisférios e mudais de máscara ao atravessardes o horizonte?

“- Vós girais em torno de quê, cigana?” – perguntou, irônica.

- Da vida e da morte; dentro e fora de mim.

“- E os ponteiros?” – provocou.

- Que têm os ponteiros? Não creio em ponteiros, em retas e curvas que infinitamente se curvam para incomodar os sábios do mundo finito. “Se se objetar que há infinito real em geometria, respondo: não. Prova-se somente que a matéria será sempre divisível; prova-se que todos os círculos possíveis passarão entre duas linhas; prova-se que uma infinidade de superfícies não possui nada de comum com uma infinidade de cubos. Mas isto nos dá tanta idéia do infinito quanto a proposição ‘Existe um Deus’ nos dá uma idéia do que é Deus.” “ - Sois filósofa?”

- Não, Dama da Noite! Este pensamento é de Voltaire, um filósofo que fabricava relógios ... Que ironia!

“- E o sistema?” – sondou.

- Não há sistema para quem o abandonou. A existência é importante demais para se preocupar com sistemas. Disse Sartre: “O mundo não tem razão nenhuma de existir e é absurdo que exista.” O mundo angustia-se com o vazio.

Satisfeita com as respostas, a lua, enfim, respondeu:

“- Tenho quatro faces porque vou aos quatro cantos do mundo. Passeio dentro e fora de mim também. Cada percurso é diferente, embora vos pareça sempre igual. Tenho alma, vida e morte. Mas, como os homens, pergunto-me a que vim. Iluminar a noite, viajar pelo céu, observar os encontros amorosos sem amar? Penso nisso tudo como vós. Poucos, dentre os que pensam, dão-me a honra de dialogar comigo com tal profundidade. Contudo, esses são-me preciosos! São os que não se cansam de pensar. Movimentam-se em torno de si mais do que em torno dos outros. Ruminam. Os corajosos falam, leem, escrevem, vivem, sonham e realizam. Tentam. Os covardes gostam das trevas para as emboscadas. Geralmente são os donos do poder, os mais ardilosos. Ganham muitas riquezas; aprendem pouco. São os satélites da estratégia.”

- Gostaria muito de vê-la, aí... Tenho muito o que dar, mas não sei o que oferecer! Sede minha amiga?

“- Serei! Vinde. Marcai o dia!”

- Dia sete do calendário gregoriano, às sete da noite. Cantarei Ave Maria, em sinal de que estarei pronta.

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“- Soprarei as nuvens!”

- De onde estais vedes bem o sol sem tocá-lo. Que sentis?

“ - Impotência.”

- Como podeis suportar tanta solidão?

“- Entre os homens a solidão é bem maior.”

- Como sabeis? Nunca fostes homem!

“ - Filha do mar e da sereia, minha idade permite certos conhecimentos. Todos os filósofos conversam comigo há milênios. Os poetas, os enamorados... São tão ou mais sozinhos do que eu. Esquecestes de que as estrelas me falam? Ah, seres humanos! Engatinham e creem controlar o mundo! Tão previsíveis, tão fáceis de controlar!”

Senti o descontrole sobre os meus atos. O martírio do passado. Percebendo-me triste, a lua cheia fez-se metade. A imagem elíptica, uma estrela e um sol surgiram com expressão de criança. Chorei. A lua também chorou. Gotas prateadas voavam pelo céu como estrelas desprendidas do Universo. Um eclipse ímpar. Sumiram-se as imagens. A madrugada avançava. Por que meus filhos apareceram no céu? Um sinal? Então gritei, revoltada:

- Jesus! Jesus! Por que meus filhos choram? Ao meu lado apareceu um estranho, mas bonito homem. Que disse:

“- Estou como Deus ou o diabo sonhou!” Um crucifixo dourado apareceu no horizonte. Pensei que o homem fosse Jesus Cristo. Ele falou:

“- Ireis para as trevas! – disse, o riso ecoando pelo abismo. – Perdeu-vos na morte suicida; os grilhões acorrentam uma pedra de onde pulastes para fugir da vida, covarde. Ai, que tal pedra é sagrada e vos ama, cadela do inferno!”

Tremi como um jesuíta na guerra. Sentou-se outro homem, barbado, rosto triste, voz branda, que me acalentou:

“- Irmã do mar, na verdade vos digo: todos comparecerão diante do tribunal de Deus, onde serão julgados. Amai vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei o bem aos que vos odeiam, orai pelos que vos maltratam e perseguem. Praticai o que ensinei!” – berrou, estressado.

Fiquei afônica. Passado o susto, voltei a falar, desta vez ironicamente:

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- Sermão da montanha! Canção e melodia para os meus ouvidos! A vida deu fertilidade a uma mulher árida e Jesus me tirou a esperança. Pede que seja uma santa! De Deus, só repreensão.

“- Filha, não blasfemeis. Aceitai o destino. Vivei!”

- Ríeis de mim? – brinquei, sem saber que era ele mesmo que falava. Belisquei-o. E provoquei: – Por aqui, Jesus? Finalmente! Nunca vos vi, mas sempre acreditei no Senhor. Sois o meu amigo invisível. Onde estáveis?

“- Onde me procurardes.”

- As pegadas na areia... Somente vejo as minhas!

“- Carrego-vos. Na areia vedes as minhas pegadas. E blasfemais contra a Divindade!”

- Onde o Senhor vive? Há tantas perguntas! Amo vossas palavras e atos, mas é tão difícil para um verme praticá-las, Senhor! Perdoai-me as injúrias contra a Providência? Chorei tanto na crucificação... Já morri por vossa morte. Ele não estava mais. Continuei a falar ao vento.

- Por que me deixastes, Pai? Quantas vezes terei que retornar?

“- Vim para dizer que tudo isso é delírio. Nunca suicidastes. Vossas dimensões estão pelo Universo, como eu não estou agora mais aí, materializado, embora esteja em espírito” – continuou em pensamento.

- Sois todas as dimensões do mundo. A humanidade prega a Santíssima Trindade para triunfar. Empreende guerras em vosso sagrado nome. Para onde vamos é melhor?

“- Sabereis quando fordes. Não me culpeis pelo que fizestes convosco. A decisão é vossa. Acaso preguei contra o aborto?”

- Não.

“- Fabriquei vossos filhos?”

- Não, Senhor! Ou sim? Não sei. O Senhor sabe mais.

“- ...Já apontei o dedo, acusando-vos?”

- Sim, Senhor.

“- Eu, ou vós mesma, vosso inconsciente?” – perguntou-me um Jesus psiquiatra.

Engasgada com essa novidade, quis saber:

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- Sois Freud, Jung, Rogers? Quem? Psicanalista? O Filho de Deus é psicanalista?

“- Dei-lhos a inteligência. Freud colocou-se diante da sociedade sem medo do julgamento humano. Perpetua como o pai da psicanálise porque disse a verdade. Aconselho: experimentai ser a mulher livre que fostes séculos atrás. Vereis como é bom viver sem medo nem dor e, sobretudo, sem o passado atormentado. Olhai os lírios do campo: nem tecem nem fiam. Vesti-vos de felicidade e Eu vos abençoarei!”

- Vestirei, Senhor. A saudade... é como um vento frio nas costas às cinco da manhã! Soprei ao vento o nevoeiro. A neblina encobre de branco as montanhas. Sobre o mar, do outro lado, a metamorfose de cores. Um espetáculo dos deuses. Ao longe, o vento levantava a areia do deserto fazendo um lençol pardo transparente no ar.

“A verdade encobre-se da mentira para nos esquecermos de que somos o que criamos. Deuses e diabos são joguetes para cobrir com sombras a nudez da covardia. O mundo é menos redondo do que o sol. É chato. Se fosse de fato redondo seria perfeito!” – pensei, enquanto admirava o lençol de areia distante. Os raios da aurora distribuindo luz pelas colinas e por todo o deserto. O mar alaranjado. Os templos amarelando-se.

Abri a Bíblia em Jó, onde li:

“Cingi os lombos como homem e eu vos perguntarei e vós me perguntareis: acaso anulareis o meu juízo? Ou me condenareis, para vos justificardes? Ou tendes braços, como Deus, podeis trovejar com a voz como Ele? Ornai-vos de excelência e grandeza, vesti-vos de majestade e de glória. E o Senhor, no meio de um redemoinho, sumiu-se.”

Que estranho. Jesus conversando comigo? Falei para o sol:

- Narcisos todos somos no lago em que vivemos. Quando encontramos a cara-metade, perdemos a própria identidade. Grande astro! Grande! O que seria de vossa luz sem o meu aplauso?

Respondeu, a voz trovejante:

“- Seria o que sou, mortal. Não sou um enigma só para terdes o prazer de me decifrar”.

- Esquecestes de vosso eixo? Eu não sou prisioneira de eixo algum. Vou a qualquer canto com pernas e até asas de vez em quando... – ironizei.

“- Sois livre?” – perguntou-me, com deboche.

- Tudo se passa como se fôssemos livres. O sentimento da liberdade move a máquina Universo. É uma peça estratégica da escravidão. A liberdade nada mais é do que uma ilusão. Como a felicidade, a dor e tantos prazeres mundanos. O bem da sociedade exige que o homem se julgue livre para ser sociável. – respondi zombando da condição do sol preso ao próprio eixo.

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Despeitado, o sol mostrou-me más recordações – pois até os astros têm inveja:

“- Vedes o que escrevi com meus raios:” “Da minha solidão extraio a beleza do sol, impossível registrar. Choro muito na minha solidão. Entre o bem e o mal, um abismo. Entre Deus e o diabo, o pecado. Quem vai para onde? O idiota do diabo na espreita está doido para que eu pule no abismo. A luz qual um diamante gira no céu: quer levar-me. Para onde me levaria? Para o céu ou para o inferno?”

- A vida é livre, mormente quando a deixamos solta como a água: represá-la é evitá-la.

“- Dissestes: ‘não tenho coragem de falar com ninguém. Se estiver grávida, me mato.”

- Ah, sol, estou numa caverna cheia de labirintos onde mãos invisíveis batem-me na face e na alma!

- Olhemo-nos face a face: somos hiperbóreos. Sabemos muito bem quão remota é nossa morada. Nem por terra nem por mar encontrarão o caminho dos hiperbóreos. Além do norte, além do gelo, além da morte: nossa vida, nossa felicidade. Nós descobrimos essa felicidade, nós conhecemos o caminho. Retiramos essa sabedoria dos milhares de anos no labirinto. Antes viver no meio do gelo que entre virtudes e outros ventos do sul. Fomos bastante corajosos. Não poupamos a nós mesmos nem aos outros, mas levamos um longo tempo para descobrir para onde direcionar a nossa coragem. Tornamo-nos tristes. Tínhamos sede de relâmpagos; mantivemo-nos o mais longe possível da felicidade dos fracos. Nosso ar era tempestuoso, nossa própria natureza tornou-se sombria: pois ainda não havíamos encontrado o caminho. A fórmula de nossa felicidade: um sim, um não, uma linha reta, uma meta.

- É preciso um ponto para fazer um círculo e dizeis linha reta? Para quê? Ouço ópera e me parece que jamais fui à Itália; jamais frequentei a roda dos ursos e das águias. Sou indignada, mas tenho argumentos fracos diante dos resignados. A vida! Quereis lembrar-me dessa vida? Prantearei mais, atravessarei quantos arco-íris, quantas tempestades, quantos abismos e quantos desertos? Tendes obrigação de cicatrizar-me as feridas, já que minha sede de relâmpagos tornou-se um vício assaz perigoso. Meu corpo é frequentado por outras mulheres. Perdi-me na morte suicida ou abandonei os hiperbóreos?

- Na vida abundam fogosos demais, discípula! Abra o coração. Não há espírito puro. O puro espírito é a mais pura mentira, Mãos de Jasmim.

- Quê??? O sol, a lua... Jesus e o diabo... Ouço vozes desde que vim para a vossa magnífica caverna. Parece a casa dos espíritos. Ouvis também?

- Lógico, mas converso em pensamento. Breve falareis assim. São inofensivos; são pessoas vivas ao nosso lado que não vemos nesta dimensão, mas noutra.

- Vedes??? Um amigo me provou por A + B – C = Z que espíritos não existem.

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- Se não existem, como fostes arrebatada por Voltaire?

- Zaratustra, vim para o deserto em busca da verdade. Até hoje só encontrei conjecturas. Que dizeis?

- Que é a verdade? A verdade já foi posta de cabeça para baixo quando o advogado do nada foi confundido com o representante da verdade. Necessitais libertar-vos da cristandade.

- Por quais caminhos percorrerei? Isto me confunde.

Desconversou. Entalou. Pergunta à qual ele mesmo se faria quando perdido em seu próprio labirinto. Nem eu, nem ele, admitíamos ousar dizer separação. Então, principiamos por nos enlaçar o mais que pudemos, embora qualquer união seja enfraquecida pela própria miséria de dois quererem ser um. Duraria uma infinidade, até que ele mesmo se tornasse múltiplo. E até que ele próprio se confundisse.

Quase meia noite. Acabava de anotar sobre as “Câmaras Mortuárias”, quando percebi que Zaratustra se deitara comigo. Fiquei vermelha. Ele debandou, depois voltou enrolado no manto e disse:

- Vale mais cair nas mãos de um assassino do que nos sonhos de um amor ardente!

- Não – respondi taxativa. – Prefiro viver todo o amor que a vida me der. A beliscar-me para ter a sensação dos deuses!

Tirou o manto. Dormiu acariciando-me. Acordei sonâmbula; corri ao Lago Ninfas; banhei-me. A lua piscou-me um olho. Foi quando desatei a rir da minha própria loucura. Esperava o profeta ser meu. Na manhã, adorou o sol, mas me olhou como se houvesse culpa entre nós. “Céu grandioso, mostrai-me o que há de mal com uma mulher apaixonada por um homem tão belo!”

Então vi a lua nova banhar-se no mar avermelhado, despindo-se do dia e o sol impor-se sobre ela.

- Se ao menos fôssemos animais completos! Mas para ser animal é preciso inocência! Seria isso aconselhar-vos a que mateis vossos sentidos?

- Claro. “Como o mais santo, amou em seu tempo o quanto pôde e agora tem que ver a ilusão e a arbitrariedade até no mais santo, a fim de conquistar a liberdade à custa do seu amor. É preciso ser um leão para esse feito”. Decorei!

- Com gentileza, a vil sensualidade sabe mendigar um pedaço de espírito quando se lhe nega um pedaço de carne, Jasmim.

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- De carne ou de espírito, a sensualidade tem a causa primeira de Deus: promover a reprodução das espécies. Creio que reproduzindo ou não, é permitido amar. Quer que vos mostre como é importante? Zaratustra aplaudiu. E disse: - A vós agradam a tragédia e tudo o que lacera o coração?

- Lacera, arrebenta, me parte. Sede meu, profeta?

- Olho com desconfiança para a vossa sensualidade. Convosco me perderei: sois cigana, sereia, herege, anjo, sultana.

- Mitos!

- Tendes olhos demasiados cruéis. Vossa sensualidade disfarçou-se de virgem!

- Tomais para si o nome de compaixão. Vamos? E vós dizeis: “Se a castidade pesa a alguém é preciso afastar-se dela.”

- Não. Nunca fui casto!

- Por que me rejeitais, então?

- Falei de coisas imundas para vos atrair para a cama? O pior não é quando a verdade é imunda, mas quando o superficial é que o investigador mergulha de má vontade nas águas.

- Mergulhei em todas as águas profundamente. Contudo, nunca às profundidades. Sou pobre demais para não amar. Dizei-me: a castidade não é loucura?

- Essa loucura não veio ter convosco. Tenho mulheres! Buscai Voltaire!

Zaratustra falou de mulheres e da solidão:

- A solidão independe das amizades. Eu e mim estão sempre conversando incessantemente. Como suportar isso se não houvesse um amigo? Para o solitário, o amigo é sempre o terceiro, a válvula que impede a conversação dos outros dois abismarem-se nas profundidades.

Então, disse ao meu coração:

“Irei engolfar-me em delícias, em prazeres e gozarei até o fim de minha vida. Sem lamentar o passado, nem pressentir o futuro. Mas pensei que isto, isto que aprendi na infância castradora, fosse vaidade. Considerei o riso como desvario. Disse ao gozo: ‘Por que vos enganais em vão? Meu coração nada teme! Sou várias, coração ardente. Zaratustra nunca me subjugará!’ Resolvi beber muito vinho, pois não há segredos onde reina a embriaguez. O vinho adoça a amargura do coração. Não irei enganar a loucura do meu coração! Dedicarei ânimo à sabedoria, mas com loucura, muitas loucuras plantarei na terra de Zaratustra, até que...

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Zaratustra mirava o horizonte. Virou-se para mim, rindo, para encenar a primeira vez. Antes, porém, continuou a falar.

- Existem várias profundidades para o solitário, como para o que se retira para a castidade. Dizeis Eu e vos orgulhais. Maior – coisa que não quereis crer – é o vosso corpo e a vossa razão grande...Ele não diz Eu, mas procede como Eu.

- Por isso aspira a uma amizade à altura. O que os sentidos apreciam, o que o espírito conhece: nunca em si têm um fim; mas os sentidos e o espírito quereriam convencer-vos de que são o fim de tudo, soberbos! Os sentidos e o espírito são instrumentos e joguetes; por detrás deles se encontra o nosso próprio Ser. Ele esquadrinha com os olhos dos sentidos e escuta com os olhos do espírito. Sempre escuta e esquadrinha o próprio Ser: combina, submete, conquista... mas destrói! Amado, quereis destruir meus sentidos? Julgar uma mulher nua, porque esquadrinhastes todo o meu Ser?

- Aconselhei-vos a matar os sentidos?

- Qualquer um precisa deles. Sereis meu inimigo?

- Assim fala o verdadeiro respeito que não se atreve a mendigar amigos: se se quiser ter amigos, é preciso também guerrear por ele. É mister ser inimigo. Cigana! Quereis um filho? – advertiu-me, zangado. – É preciso honrar no amigo o inimigo. Podeis aproximar-vos de vosso amigo sem passar para o bando dele? Deveis ser a glória dele e mostrar-vos tal qual sois?

Pirei. Zaratustra olhava o mar. Deixava parar os olhos de soslaio em mim. Soltei meus cabelos, desenlacei o vestido, mostrei meu corpo. Nua à luz do sol.

- O que não se recata, escandaliza! Deveis temer a nudez! Sim: se fôsseis deusa ...

Mergulhei de má vontade no Lago Ninfas, o lago dos meus erros, porque queria ser mergulhada. Saí empurrada pela água e atraída pelo olhar do profeta. Sol quente, aproximava-se Zaratustra, as mãos suadas entre minhas pernas. Mordeu-as. Apalpou-as. Voltei a anotar, contrariada:

“Há quem não possa desatar as próprias cadeias e ser salvador do amigo.”

- Sois escrava?

- Sim. Sirvo até os que nada me pedem, com amor, sabendo que posso ser traída, o que sempre acontece.

- Então podeis ser amiga. Sois tirana?

- Muito. Gosto de moldar as pessoas para o bom reflexo no espelho.

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- Então não podeis ser amiga. Há demasiado tempo que ocultavam na mulher um escravo e um tirano. A mulher ainda não é capaz de amizade. Junto com ela vem o raio da surpresa.

- De que falais?

- Do Estado monárquico. Além, onde acaba o Estado começa o homem que não é supérfluo. Começa o canto dos que são necessários, a melodia única e insubstituível. A mulher há de imperar no mundo, porque, com miado suave e olhos de gata monta sobre qualquer homem. Eis o domínio da mulher: montar sobre um homem! - Bêbado!

- Bebei bastante.

Comentou:

- O mais difícil santifica-se. O que lhe permite reinar e brilhar com temor e inveja do outro é o mais elevado. A alma zelosa não deve amar ninguém.

Amei sem calcular. Além do bem e do mal. Além de todos os mundos. A ponto de sobreviver à morte para viver. Meu grande paradigma. Meu maior paradoxo. Meu melhor retorno. Meu eterno amigo.

CAPÍTULO 10CAPÍTULO 10O CASAMENTOO CASAMENTO

Embriagado, Zaratustra declarou-se:

- Hoje o meu escudo riu-se e estremeceu brandamente: era o estremecimento e o riso sagrado da beleza! A voz da beleza fala baixo: só se insinua nas almas despertas.

Caiu a noite. Noite adentro amamos. Vesti um roupão de gaze; fui respirar a madrugada. Ela me chamava. A estrela andante iniciou seu percurso, como um diamante celeste. Acompanhei no horizonte. O Universo é dinâmico! A estrela rodava no céu indicando o caminho. Zaratustra dormia um sono pesado e dificilmente acordaria. Banhei-me no Lago Ninfas. A estrela piscou. Cantei. Ela abriu os olhos dourados, mostrando na nuvem quem era: Voltaire. Tirei a roupa e pedi que descesse das nuvens. “Tenra!” “Vinde, ardente, vinde... Sol da meia noite! Meia noite morrestes, meia noite acordastes... Vinde, a lua salta... saltarei para as nuvens! Beberíeis o úbere balsâmico para o meu deleite?” “Não agora. Ide para a cama que ele vem ... Cigana!” – avisou, enquanto eu me vestia de felicidade.

Assistindo a tal cena, o profeta me pegou por trás num abraço cruzado. Meia noite! As noites maravilhosamente diferentes, eu sussurrava nos ouvidos dele, indicando que contaria

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cada vez uma história para não ser degolada. “Três, quatro, sete da manhã... Obrigada por sempre voltar. Afinal, as coisas que não quisestes e que ficaram na eternidade me faziam companhia. Meu peito vazio misturava-se com o vosso rosto em pedaços: em cada homem via uma parte de vós. Quanto tempo nos procuramos sem o saber?”

Raiou o sol. Principiavam-se os primeiros suspiros do dia. Rubis e ouros do firmamento perdiam o brilho. Deixavam apenas a lua nova pálida diante do rei da Via Láctea. Brindamos o sol como nunca. Agora Zaratustra começava a reverenciar a lua timidamente. Momentos felizes enterneciam-se-lhe os olhos, a voz e o coração. Casamo-nos diante da caverna, o sol e a lua por testemunhas. Amor debaixo d’água, em cima das rocas, no mar. Meu profeta desceu as montanhas com a dúvida na cabeça. Deixou escrito:

“Acabo de chegar. Preciso conhecer esta nova mulher, preciso pensar nela debaixo da chuva, tentar compreender o silêncio e a lembrança que nos separou e uniu tanto tempo. Visitarei o mar por caminhos tortuosos, por isso demorarei bastante. Quero beber o mar! Quero beber as águas douradas do sol. Zaratustra ficará solitário até aprender um passo sem pensar. Cada dia num lugar. Afinal, o mundo acaba e dançaremos séculos a fio. Loucos os que pertencemos à vida. Somos todos loucos demais, porque acostumados com o amor. O paraíso é um perigo. Lede Voltaire! Como o mais santo amou em seu tempo e agora tem que ver a ilusão e a arbitrariedade até no mais santo, a fim de conquistar a liberdade à custa do amor.” Zaratustra.

Mil beijos é a lua de mel. Meu mel despejava beijos. Meu mel ardia de paixão. O Tempo esqueceu-se de nós; precisávamos de muito tempo. Então o dia vinha e ia sem percebermos o sol e a lua. Zaratustra insaciável! Tivemos madrugadas indescritíveis, pois o amor faz piruetas. O profeta nem via mais os animais amigos. Comíamos nosso amor. Bebíamos nosso amor. Todavia...

Todavia, a luz do sol bate à janela de pedra. Meu trabalho ali, mulher, amante, anotadora, necessitava cumprir-se. Zaratustra queria ser decorado. E como perfeccionista, aceitei a obra do criador. Tinha muito o que aprender nas profundezas de um mar turvo. Recomeçamos o trabalho.

Ditou, acendendo o cachimbo malhado pelo uso. O cheiro de qat tornava-se insuportável. Comecei a escrever:

- O homem pôs o valor nas coisas para se conservar. Avaliar é criar. Jesus e Sócrates ousaram criar valores. Quem cria destrói. Eles destruíram tábuas e por elas morreram.

- São o código moral, um valor criado como forma de proteger a sociedade e, por conseguinte, a si mesmo, enquanto fracos seres humanos, seres que desconhecem os espíritos livres? Quereis fazer o mesmo? Não temeis a morte?

- Sim, o código moral para o igual. Temo ser igual, discípula.

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Concordei respeitosa e profundamente. Contemplamos embaixo e ao redor vimos a mata em chamas. A fumaça subindo, o sangue verde derramado em vão. Humanidade! Anotei:

- O fogo do amor e da ira ardem sob o nome de todas as virtudes. O poder dos elogios e da censura é um monstro: a vaidade come elogios em vossas mãos. Pois diz: “Sou tudo isso?” E responde: “Então quero ser mais que isso!”A vaidade incha. A vaidade serve para amar, para odiar, para manipular.

- O amor próprio é como um balão cheio de ar que explode quando se lhe dá uma alfinetada.

- Os homens fogem de si através do outro. Não andeis solícitos em redor do próximo. Aconselho a fuga do próximo e o amor ao remoto. Mais elevado é o amor às coisas e ao fantasma.

- Fantasmas impregnados no inconsciente, fósseis cerebrais. Vejo fantasmas.

- Esse fantasma que corre diante de vós é mais belo. Por que não vos dá a carne e os ossos?

- Os fantasmas vivem noutra dimensão. Não os toco: vejo-os e os escuto. Amor não sinto por vós – menti. Somos apenas cúmplices da solidão. Procurai mulheres fiéis.

- Não preciso. Elas vêm como as moscas ao verem a luz. Morre breve o amor que lançam por mim, como fizestes com nossa união. Anotai, que nossa amizade é mais importante. Voltei a anotar, trêmula:

- Destes a alma aos homens, não às coisas e aos fantasmas. Antes a tiveste dado ao diabo!

- Dante colocou o amor eterno na porta do inferno.

“O amor não é um Deus, mas um demônio, porque envia aos mortais a mensagem dos deuses”, ele diria.

- Recebemos o amor dos deuses, só que somos mortais!

- Fizestes o melhor, levastes o melhor, porque ficastes com o pior.

- Pode ser um ideal?

- Os livros! As estrelas! A lua! Chamais uma testemunha quando quereis falar bem de vós e logo que haveis induzido a pensar bem da vossa pessoa, vós mesma pensais bem da vossa pessoa. Não só mente o que fala contra a vossa consciência, mas sobretudo o que fala com a vossa inconsciência. Assim enganais o próximo e, pior, a vós mesmo.

Olhou para o abismo perto do Lago Ninfas e berrou. Depois riu bastante. Um riso amargo. Riso de rancor. Chorou abundantemente, esfregando as palmas das mãos contra os olhos. Chorava por medo. Pelo que havia de vir. E, ao mergulhar o Lago Ninfas, viu escrito:

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“Adorei a frase que escrevestes relacionada com o sofrimento e com a dor: temos que nos orgulhar da dor: ela faz lembrar a nossa elevada condição humana”. Novalis, humildemente, espalhado mundo afora.

- Tal como afirmara Epicuro! Um átomo?

Novalis sumiu-se nas águas.

- Toda mentira implica inocência, sinal de boa fé.

Zaratustra de repente surgiu por cima do mar, de costas para o sol e de frente para mim, ajoelhado, com vestes de imperador. Por minha vez, eu estava dentro de um barril com um pão na mão, barba e cabelos brancos enormes. Cínica, hilária, velhaca. Perguntei, com voz de velha:

- Que quereis de uma velha?

- Pedi o que desejardes que vos darei!

- Desejo que saiais da frente do sol. – gargalhei, pisoteando o orgulho do grande homem. Pensei: “Como é bom ser velha!”

Após a cena, o profeta sumiu. Começou a escapar à noite. Voltava cansado, sonolento, nem me tocava. Nem uma palavra. Só anotações. Comecei a invocar Voltaire na madrugada; ele não aparecia. Certa vez, surgiu perto do Lago Ninfas e se explicou:

“Minha cigana, quando um bêbado morre de cólica, aprende-se a ser sóbrio.”

“Amores”, pensei comigo à beira-mar, sobre a Pedra Dalí. “Desses que tiram a roupa do nu e descem do pedestal”.

Chorei de solidão. Mergulhei no mar, desta vez para lavar a alma mesmo. Desci à profundidade da água verde cristalina e vi peixes de todas as cores. Um pequenino peixe listrado de azul e preto olhou-me fixamente, como se me conhecesse. Não era íntima do mar assim, embora o abraçasse com os olhos, venerando-o. O peixe cresceu tanto que as formas foram desenhando o rosto de um homem, mas também de um rosto inesquecível. Protestei, borbulhando:

- Fantasma, que fazeis aqui? Ide para o inferno! – sentenciei em nome do medo.

“- Chamastes-me. Esperei encontrar-vos no lugar sagrado, minha sereia!”

- Como sabíeis que eu viria às profundezas do mar?

“- Chamei-vos” – confessou.

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Marco Aurélio! Como resistir? Amamo-nos debaixo d’água. Pediu perdão por me fazer trair Zaratustra. A voz dele dizia-me, em pensamento: “Rainha e deusa do amor que cultivo por milênios, superastes a morte, mas jamais deixareis de ser minha alma. O Eterno, e só ele, sabe por que vim. Somos fantasmas um do outro.”

- Alma, minha alma, se ele apenas desconfiar, serei repudiada eternamente. Quero ver como farei para decifrar o nobre enigma. “Pandora, Pandora, Pandora... o mal sobre a Terra... O mal de Pandora...” – ecoavam estas palavras com uma voz muito bonita. Marco Aurélio despediu-se com uma prece:

“ - E me protegei, senhor dos aflitos, das divas e das medusas, desse emaranhado cipoal. Rosa rubra envolvida em negro, que traz à vida o mel da vida, doçura do pecado. Não me deixeis sonhar no desvario da loucura, porque louco sou, insano mais profundo. Quando vejo um novo mundo passar diante dos meus olhos, descaminho. Rola, pedra, sobre a frágil estrutura a que me apóio. Deixai saltar da boca os meus fantasmas. No desassombro, deixai-me falar! Ao ouvir o canto da sereia, despir-me e mergulhar o mar... Negras ondas a que me entrego! Ensandecido, já vejo rugir o chamamento. E as feras me bafejam em hálito acre que me arde nos temores. E incensam em visão premonitória o desastre prestes...

Também me declarei: pelo passado, não pelo presente: não distinguia qual vinha primeiro, ou se ambos conviviam juntos:

- E me protegei, senhor dos aflitos, dos olhos luminosos que brilham no escuro e traspassam o obscuro véu do meu ser. Das fulgurosas e insanas paixões deste mundo de infortúnio, em que de lago puro torna-se um mergulho sem volta. E do narcisismo que nos faz tão semelhantes ao amar, como no próprio reflexo do espelho. Que nesta infinita busca da cara-metade perde-se a própria identidade de um eu que nem é meu. Quero viver cada segundo a contemplar o instante fotográfico das lentes límpidas que emanam fogo em meu corpo até debaixo d’água, a transpirar – contra a lógica dos dias – a impossível arte de ousar em tempestuosas sensações. E, das últimas notas musicais, valsar por horas a fio o sonho de viver as aflições do amar.”

“- Adeus!” – despediu-se. – Até quando voltardes ao mar, amor eterno ...

Saí do mar empurrada pelas ondas, enfeitada de conchas e algas, com uma blusa cinza transparente, o corpo pronto para mais uma. Estava com muita fome. Peguei uns caranguejos vivos e comi. Não satisfeita com os frutos do mar, tornei à caverna a fim de satisfazer mais os meus caprichos de fêmea. Como não tivesse espelho, admirei meus cabelos enormes à beira do Lago Ninfas: o lago dos prazeres, dos erros e dos meus maiores enigmas. Ao passar pela caverna, ainda excitada, vi os animais tomando um sol. Com sede de uma bebida diferente, lancei minha voz, minha nova voz, ao mais astuto animal – pois queria ser como meu profeta:

- Veneno, víbora? – pedi, animada.

- Ainda não! Adiante... – prometeu, com uma voz sibilante.

- Fruto, corvo?

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- Nem maçã de Eva! Zaratustra vos espera na ponte sobre o Bosque Esperança. Envenenado! Hehe...

- De qual veneno? Da víbora, da águia ou do vosso?

- Sabeis, amiga. Que azar! – respondeu cheio de si, como se me fritasse.

Entardecia. O céu cobria-se de estrelas como a abóbada de cristal com reservas d’água que a gente imagina ao ver o Universo em meio à escuridão. Clima romântico. Queria amar! Fui recebida friamente. Antecipei-me, com cara de santa:

- Como fantasmas do passado gemem a saudade inconsciente, apareceu-me um no mar, sem que eu sequer procurasse! – falei constrangida, para disfarçar.

- Nada anotareis.

Tremi. O corvo denunciou-me? Ou a baleia que cuspiu Jonas em Nínive viu tudo? Em quem se pode confiar neste mundo e do que depende o destino: de um corvo falastrão, de uma arrogante águia, de uma astuta serpente milenar e de uma lendária baleia! Vou perder meu profeta? Ele responde:

- Amores, pretextos das almas, que não sabem por onde ir e ajeitam amores. Amores, espelhos do íntimo, que procuram o brilho e veem, no reflexo de si, a luz da misteriosa e traiçoeira paixão. Amores, esses dos dias dos deuses, que tiram a roupa do nu e descem do pedestal. Descestes, saborosa discípula, descestes! – e riu amargamente, com uma mistura de cinismo e tristeza. Aplaudi aflita. Escutei o silêncio do bosque, o cricrilar dos grilos, o silvo das cobras, o coaxar dos sapos. Após longo silêncio, o profeta começou o sermão:

- Quereis isolar-vos? Quereis procurar o caminho que guia a vós mesma? O que procura o outro facilmente se perde a si mesmo. Todo isolamento é um erro, diz-me o rebanho. E vós pertencestes ao rebanho por séculos. Enganei-me?

- Não sei. Em todo rebanho sou a ovelha negra – respondi, a boca seca, o coração no pé.

- Há de ressoar a voz do rebanho longo tempo. E quando disserdes: “Já não tenho uma consciência ressonante convosco”, isso será uma queixa comum e uma dor para mim. A última centelha ainda brilha na vossa aflição. Quereis seguir o caminho da aflição, o vosso mesmo? Demonstrai-me vosso direito e força. Acaso sois uma força nova e um novo direito, um primeiro movimento? Uma roda que gira sobre si mesma? Podeis obrigar as estrelas a girarem em torno de vós?

Fixei meus olhos na lua a procurar respaldo. Ela brilhou forte em sinal de apoio. Criei coragem e respondi:

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- O que não ama é um deserto sem poços escondidos nem tesouros encalhados. Não ouve o canto das roldanas enferrujadas, não sente lhe bater na face o vento refrescante, não consegue atentar-se para as miragens fantásticas das areias. Nem sabe, talvez, que não passa de um grão de areia! Acaso ser sobre-humana é deixar a alma encarcerada porque se entregou a um corpo faminto? Ser animal não basta aos vossos belos e eloquentes preceitos, profeta Zaratustra? Por que nós, vis átomos, que pensamos ser pensantes, não somos o que queremos ser, se é que somos alguma coisa? Serei o que desejo ser! Eu serei sempre livre!

- Como existe ansiedade pelas alturas! Convulsões de ambição! Demonstrai-me que não pertenceis ao número dos cobiçosos nem dos ambiciosos! Tantos pensamentos grandes que incham e esvaziam. Chamais-vos livre? Dizei-me vosso principal pensamento e não que vos livrais do jugo. Há quem perca o último valor ao se libertar da sujeição.

Eu nem tinha um pensamento formado. Sem resposta, pedi:

- Deixai-me com a lua, com as estrelas! Não quereis ser traído? Fostes vós quem me conduzistes a essa atitude. Ide, por favor!

Tudo voava ao vento. Pássaros, estrelas, nuvens, abelhas, grilos e cigarras. Ai, como amo o canto das cigarras! Zaratustra não respeitou o meu silêncio e continuou:

- Sois livre de quê? O vosso olhar, porém, deve anunciar claramente: livre para quê? Podeis proporcionar-vos o bem e o mal, suspender vossa vontade por cima de vós como uma lei? Podeis ser juíza e vingadora de vossa lei?

- Nem quero. O Filho de Deus não o fez, como poderei julgar?

- Terrível é estar a sós com o juiz e com o vingador da própria lei. Como estrela lançada ao espaço vazio no meio do sopro gelado da soledade. Ainda conservais vosso valor e todas as esperanças. Um dia, contudo, fatigar-vos-eis a soledade e vos abaterá o orgulho. Cerrareis os dentes. E clamareis: “Estou só!” Chegará o dia em que a sublimidade vos amedrontará como um fantasma. Um dia gritareis: “Tudo é falso!” Há sentimentos que querem matar o solitário. Não conseguem? Que morram! Sereis capaz de ser assassina?

- De mim mesmo. “Inventai o julgamento que a todos absolve, exceto àquele que julga!”

- Conheceis a palavra desprezo?

- O suficiente.

- E o tormento da justiça de ser justo para com os que nos menosprezam?

- Arrebenta os miolos.

- Obrigais muitos a mudarem de opinião a vosso respeito, por isso vos consideram. Coisa que não perdoam: vos elevastes acima deles. Mas quanto mais alto subistes, tanto mais baixo vos veem os olhos da inveja. E ninguém é tão odiado como o que voa!

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- Adulai-me, profeta Zaratustra? Não sou esse edifício que quereis construir. Eu destino para mim a vossa injustiça. Odiais me ver voar, nadar, amar, carcereiro!

- É mister consumir-vos na vossa própria chama. Como quereríeis renovar-vos sem, primeiro, vos reduzirdes às cinzas?

- Eu estava tão sozinha, traída... só tinha meus livros empoeirados!

- Que lêsseis. Ficásseis sozinha! Injustiça e baixeza é o que arrojam ao solitário. Mas se quereis ser uma estrela, nem por isso os há de iluminar menos. Livrai-vos das tentações. Todos odeiam os solitários! Livrai-vos da santa simplicidade! Apraz-me brincar é com o fogo.

Depois, retocou com um inesquecível pensamento:

- Livrai-vos dos impulsos do vosso amor. O solitário estende depressa demais a mão a quem procura. Há homens em que não deveis dar a pata! O pior inimigo, todavia, sois vós mesmo. Lançai-vos nos bosques, no lago e no mar em busca de prazer. O prazer que encontrais, no entanto, é a solidão. É mais sublime que o gozo. É digna a solidão!

- Sou caverna, bosque, ar e mar, amigo da verdade. Traspassastes meu coração ao esquecestes que o abismo sou eu mesmo. Onde estou? O que faço e por que faço? Quem amo e até quando poderei me reduzir a este grande e mesquinho sentimento? Se ao menos fôssemos eternos, se pudéssemos sacudir nossas roupas debaixo da morte! Antes a unidade que o mistério de dois. Antes o grito histérico dentro do peito que o vazio de quando se nos rouba um pedaço de nós, que se restringe à união, já que um só caminho apenas é possível quando se carrega um ao outro. Sabeis bem quem nos carrega nos braços do mundo.

- Sozinha seguis o caminho que conduz a vós mesma. Ele passa diante de vossos demônios. Sereis herege, feiticeira, adivinha, doida, incrédula, ímpia, malvada... Andais cacarejando em círculos tortuosos e torturantes. A linha reta é a meta. Esquecestes?

- Sou sete demônios e nenhum. Deus há de consertar esse relógio defeituoso. “O universo desconcerta-me e não posso supor que esse relógio exista e não haja relojoeiro”. Ando como os ponteiros do relógio, só que no sentido anti-horário, para contrariar quem inventou essa máquina tirânica. Sabei que tenho grande mistério com os demônios: Sócrates também tinha seu inferno e construiu seu próprio céu. Malvadamente circulo pelo espaço, incrédula, sim, mas sempre tentando descobrir no que acreditar. A maldita esperança presa às minhas mãos, a feitiçaria à frente, para proteger contra a inveja, o pecado na testa, avisando que nem o próprio diabo me aceitaria em caso de precisão. Amado, sois de espírito forte; entenderíeis uma pequena traição do tempo por saber de nossa condição de personagens desse teatro insano. Sou louca e assim o quero. Minha loucura maior chama-se: Zaratustra. O homem que procurarei até depois de morta.

Com uma fênix dourada no ombro, de longos bigodes, Zaratustra falava ajoelhado, como se estivesse venerando. A voz mudava: era mais lenta, porém, mais forte, ríspida.

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- Quereis consumir-vos na própria chama! Quereis renovar-vos sem primeiro reduzir-vos a cinzas? Quereis tirar um deus dos vossos sete demônios? Ide para o isolamento com vosso amor. E tarde será que a justiça vos siga claudicando.

- Praguejar contra uma herege! Esqueceis que o mal já está entre nós e este é o melhor acontecimento? Por que eu amo o que me despreza, como só desprezam os verdadeiros amantes. Que ocultais com tanta precaução debaixo dessa veste? Verdades? Mentiras? A caixa de Pandora! Seguiríeis o caminho do mal?

- Ide para o isolamento com as minhas lágrimas. Eu amo de todo o coração o que quer criar qualquer coisa superior a si mesmo e dessa arte sucumbe.

- Devo anotar?

- Na mulher tudo é enigma e uma solução apenas: a prenhez.

- Para que uma mulher, se o homem se acha tão completo?

- O homem quer duas coisas na mulher: o perigo e o divertimento. Por isso quer a mulher, o brinquedo mais perigoso. E temei o homem a mulher quando ela odeia, porque o homem é mau, mas a mulher é perversa.

- Não sou perversa!

- Não escutei direito. Que haja valentia no vosso amor, com ele deveis afrontar o que vos inspire medo. Cifre-se a vossa honra no amor: amar mais do que fostes amada!

- O que mais odeia a mulher, sábio?

- Mais que tudo vos odeio, porque me atraís não sendo forte o suficiente para me sujeitar.

- Contento-me com migalhas!

- É preciso que obedeçais e encontreis profundidade na superfície, pois tendes alma superficial... – ele riu sem querer.

Cuspi e quase rasguei as anotações. Mas decorei as máximas. Zaratustra ria escondido, olhando aquele bosque enamorado de lua. Pairando os pensamentos na ordenação do firmamento, concordei com ele. Então gargalhamos juntos. A fênix voou longe. Fixei meus pensamentos nela, no renovar-se através das cinzas. Cinzas tiram-me do mofo. As escórias guardadas no porão vão saindo aos poucos nos mergulhos dentro de nós. Zaratustra ensinou-me a respirar pelo estômago, soltar o ar, puxá-lo pelo diafragma. Então vinham as lembranças, as amargas lembranças saíam como no próprio parto. Eu gritava muito. Chorava e mordia as mãos dele. Assim, pouco a pouco, anotando, desenhando, Zaratustra sugava-me as recordações que, em chamas, viravam cinzas. Apenas cinzas. Voltei a anotá-lo:

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- Considera-se profunda a mulher. A mulher não é nem superficial!

- Zaratustra brinca com os meus dedos. Parastes no tempo, amigo de Moisés?

- Película de águas superficiais! – e ria muito. - A alma do homem é profunda, de cuja corrente brame em grutas. A mulher pressente-lhe a força, mas se entende não revela!

- Frívolos não entendem é nada. A frivolidade não é dom nem pecado só das mulheres. Pouco conheceis das mulheres, mas da superfície da minoria. Nada é impossível para as mulheres. Ficamos um bom tempo em silêncio admirando a lua.

- Lua? São sete horas do dia sete?

Entoei meu canto. A lua soprou as nuvens. Despedi-me feliz de Zaratustra. Voei como um anjo à amiga que parecia um agigantado algodão. Olhar tênue, voz suave, ajeitou-me no colo, após abrir uma das centenas de milhares de gavetas, achou a número 1112131277 e ao revelar ser a minha, perguntei:

- Que tendes aí?

“- Lembranças! Um poema para a vossa juventude.”

- Posso ler?

“- Em voz bem alta!”

- A Lua hoje está cheia do branco, alvo e puro como a brisa da madrugada. E gira encanto, e gira pelada: fazendo esse charme traz-me o pranto. É pura, ainda, e calma se beija do Céu. O alvo de seu ser ainda não lhe permite que se desnude de seu obscuro véu. Está cheia – no cio – , tão branca, úmida, desejada. No frescor perfumado um desafio, tanta beleza, ela majestosa, solitária, alta, miúda, agigantada de mel... E esse mesmo Céu forte e frio e delirante quer fazer pequena a luz da Lua. Posto que é nua, a Lua.” Mostrou-me todos os amores que tive, os que retive ou os que nunca tive. Curiosa, perguntou-me:

“- Por que não usastes véu e grinalda?”

- Não aceitei ser uniformizada para os caprichos clericais.

“- Mas com um deles vós casaríeis?”

- Voltaire! Por ele faço qualquer coisa...Vou ao topo da colina reparar o desenho das constelações, avistar-vos ao longe, respirar, traçar um mapa astral imaginário na cabeça, um dia.

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Após longa conversa, combinamos:

- Voltarei dia doze após entoar um canto árabe. Estarei no deserto, nas pregações. Até lá, lira dos vinte anos! Toda vez que chover cantarei em gregoriano.

“- Maravilhoso!”

- Olhai por mim?

“- Protegerei minha menina.”

Entrementes, a lua brilhou mais que nunca. Caiu uma bola branca à beira do Lago Ninfas. Ao pegá-la, queimei as mãos. Quando abri os olhos, percebi que havia sonhado. Fui para o lago onde me sentei e fiquei observando o perfeito reflexo da lua. “O narcisista – ela falou-me suavemente – precisa dos outros para validar sua auto-estima. Sempre carrego comigo os que me veem”. E, rindo, deu-me boa noite. Luminosa a noite, as árvores desenhavam monstros divertidos. Dentes mordiam as colinas. Os braços queriam se atracar. Zaratustra dormiu fora. Desejando subir à lua, despedi-me dela, sonolenta.

- Adeus, Senhora das Marés!

CAPÍTULO 11CAPÍTULO 11UMA GAIVOTA E UM CARANGUEJOUMA GAIVOTA E UM CARANGUEJO

Zaratustra estava pronto para amarmos no cume da montanha azul. Fazia muito calor. Que noite! Observei cada estrela; cheguei a contá-las, a navegar nas constelações, a desenhar o mapa astral na imaginação. Chorei de saudades do meu filósofo astrônomo. Voltaire! Tudo se vai na esperança de um dia reencontrar-vos... Passei a escapar ainda mais nas madrugadas, já que meu amante o fazia sempre. Saía do meu corpo, saía.... Corria pelo bosque, chegava junto ao mar, onde havia três túneis. Através deles encontrava-me comigo. Outras vidas. Vidas que, só pude perceber – após morrer várias vezes –, vivi paralelamente. Contudo, eu voltava em poucas horas. Uma personalidade só em várias mulheres diferentes, ou várias personalidades numa única mulher: desprendida de tudo, inconformada sempre, em busca de um homem que ainda não encontrava, mas que, sabia, encontraria nalguma dimensão. Eu desabotoava o decote da roupa de baixo esperando o beijo na aurora. Esperando que um dos meus íntimos amigos me amasse para sempre, sem saber que o para sempre, sempre acaba. Ainda assim, aguardava nas noites azuis da montanha, o colo nu, o beijo que me mataria de êxtase. Voltaire sempre voltava e, ao pressentir a vinda de Zaratustra, me deixava suspensa no ar, amando um fantasma. Um fantasma que o profeta discernia de longe.

Amanhecia. Sinuosa a luz solar pingindo de vermelho a escuridão, enquanto o negro transformava-se em azul. Nuvens, fracas nuvens branquinhas formavam bichos instantâneos no céu. A bola de fogo surge como um vulcão adormecido em meio às colinas. “O que faz com que o sol seja o mais belo astro da galáxia é a humildade de submeter-se aos caprichos de

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colinas e construções... Mas o que o faz ser realmente belo é que nasce e morre todo dia...”. Meus cabelos estavam presos em Zaratustra. Desvencilhei-me dele e desci a montanha para tomar um banho.

Saí do lago abençoada pelas ninfas e por todos os anjos. Depois fui à Pedra de Dalí, próxima ao mar. Abracei-a, como de costume, beijando-lhe na ponta do nariz. Ela parecia inclinada. Desci o abismo que conduzia à alta maré, tateando as pedras lodosas e as ressecadas. Vi as ondas fazerem belas piruetas. Uma gaivota voou magnificamente. Veio em minha direção. Pousou-se no meu ombro como se ele fosse um poleiro e disse, com a maior naturalidade do mundo:

“ - Vede a arrebentação... Não é glória?”

- Sim. Bela como vosso voo!

“- ...Quereríeis entrar naqueles túneis do arco-íris? São três!”

- Muito, mas não sei como. Lá de cima da pedra ouço o canto das águas que entram debaixo das rocas. É linda a melodia da Natureza.

“ - Vós iluminais o mar, sereia. Sabíeis?”

- Não. “Só sei que nada sei”. Acho que enlouqueci nesse lugar. Só falta aparecer Sócrates andando na praça de Atenas. Seria uma festa!

Deixando de lado minha resposta, a gaivota propôs:

“- Quando quiserdes viver para além dos mundos, é só chamar-me. Levarei a sereia até o infinito de todas as dimensões!”

- Assim, viva? Sois mais louca do que eu, gaivota! Como podeis?

“- Podendo. Sou primo de Fernão Capelo. Apreendi muito com ele. Quereríeis elevar-vos além do horizonte, olhar para o sol brilhando intensamente, somente sendo vista por ele?”

- Tudo o que quero! Entretanto, gostaria mesmo de reencontrar e abraçar meu amor eterno. Preciso, mas levarei séculos!

“- Nem tanto. Ao atravessardes a portaça de ouro, após os rituais, esperarei por vós. Trazei a serpente azul e não suicideis nas rocas. Em breve abraçareis vosso Voltaire. Até lá!” – e alçou um belíssimo voo, sumindo-se no horizonte.

- Adeus! – despedi-me esperançosa, mas muito mais ansiosa por jogar-me nas pedras em busca do túnel. Seriam três? Além... Vejo um arco-íris! Ou três? Que serpente azul? Como ela sabia dos rituais?

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Duvidei de tal prodígio da gaivota. Mas confesso que me senti enfeitiçada. Estranhei-lhe o nome: “morte, passagem, acabamento, vida após morte, etc..., etc...,etc.” “Assim, quando mais tarde me procure, quem sabe o desespero, chamarei a morte sem me suicidar! Sois bem engraçada, gaivota!”

O sol já havia apresentado seu espetáculo único. Subi o abismo e vi outra pedra desenhada num formato torto de rosto. Sem ar, decrépito. Era o rosto de Dalí. Era a caraça contorcida de um homem em pesadelo eterno. Desenhei o pintor na mente. Vi um caranguejinho amarelo numa poça d’água receoso de que eu, gigante para ele, o pegasse, como um Micrômegas com o barco dos filósofos que voltavam do polo norte. Batizei-o Maupertuis. Arranquei a lasca de uma unha, fiz com ela um cone para conversar com ele:

- Os caranguejos são autênticos filósofos! Têm trezentos e sessenta graus de visão e não se gabam! Nem berram. Não andam somente para os lados, nem para trás apenas. Tal prodígio nenhum homem consegue sem a ajuda da tecnologia e, mesmo assim, permanecem arrogantes. Deveriam mirar-se em vossa espécie, a ver se “andam” .

O caranguejinho permaneceu quieto e arredio. Pensou por algum tempo e, por fim, disse:

“- Tenho pavor de sereias! São belas, mas muito astutas. Comem-nos crus!”

- Quê? – pasmei. Atônita, respondi:

- Amigo, do mar só conheço um peixe listrado de azul e preto, um escorpião disfarçado de peixe, compreendeis? Ele me amou. Eu não o comi, por Deus, foi o contrário! Pensei que fôsseis um filósofo, mas pelo jeito sois um geômetra. Maupertuis... Voltaire me avisou! Conheço bem vossas intrigas contra Voltaire no castelo de Potsdam. Bem que retornastes como um bichinho rastejante para pagardes o que fizestes com meu amigo. Causa e efeito. Bem feito!

“- Almas gêmeas procuram-se e se encontram. Reencontram-se, às vezes, porém, nunca ficam unidas, senão no Eterno. Vosso fantasma sê-lo-á sempre vosso sem nunca ter sido, compreendeis?”

- Depende de qual!

Tentei enumerar os namorados do presente e do passado. Perdi-me!

- Difícil, pequeno Maupertuis. São tantas almas gêmeas! Ai, como é bom ser livre neste mundo! Cada vida é um mundo.

O caranguejo, no entanto, ficou sério e afirmou, veemente:

“- São o quebra-cabeça da pluralidade dos mundos. Muitas vezes se encaixam, o que é maravilhoso. Mas na maioria das vezes espantam-se de serem espelhos d’alma – o que consiste num desastre emocional.”

- Sim, disso sei. Até nunca, Maupertuis!

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“ - Adeus! Noutro espaço estais bailando no madrigal de vosso escorpião. Neste, Zaratustra subjugá-la-á.”

- Quê? Calculastes bem erradamente. Zaratustra subjugar-me? A mim, que vivi trezentos anos em... vinte. Adeus! Corri à montanha. Zaratustra queria-me. A águia, o corvo e a serpente saíram discretamente. Envenenou-se com o soro da víbora e falou:

- Se os esposos não vivessem juntos os bons casamentos seriam mais frequentes.

Já não sabia o que fazer ali. Assim deve ter sucedido com o nosso amor. Um vazio invadiu-me. Quis morrer nas rocas.

- Morrer assim é melhor e morrer na luta é prodigalizar uma grande alma. Seria preciso aprender a morrer. É preciso fugir a deixar-se comer no próprio momento em que vos começam a tomar gosto.

- Perdestes já o gosto ... como eu ...?

- Necessitais ler o que falo. É mais sensato.

Enfiei minha cabeça no belo Lago Ninfas, meu lago dos erros, a ver se conseguia ler o que um profeta tão sábio me dizia nas entrelinhas. Comecei, então, a tentar ler de fato os pensamentos dele, ao menos jogando mais com minha forte intuição e reparando que cada palavra dele servia para várias conotações. A sabedoria de Zaratustra já não me intimidava. Pelo contrário, incentivava-me a aguçar os meus próprios pensamentos. Reparei o capricho das colinas delineadas por um rosado bem claro, tangido pelo mesclado de azul royal com marinho. Parecia um arco-íris o céu. O sol avisava sua chegada escandalosamente, como um grito de prazer. Abracei meu profeta à beira da caverna, convidando-o para amar quem o amava tanto: a lua. Após adorar o sol, acendemos incensos e celebramos mais uma manhã. Ríamos de coisas banais, bebíamos um licor de canela para aquecer os pulmões. Assim caíam as noites como luva de cristal. Adentrávamos na beleza do céu, amando como se fosse sempre a última vez, mesmo sendo sempre igual. Esperávamos a lua saltar abraçados, sem polemizar. Como é bom amar sem polemizar!

Certa madrugada, Zaratustra esquecera-se dos sete mandamentos do sono para se deleitar. Tirei o véu do rosto maquiado de egípcia – pois ele adorava me ver enfeitada de Cleópatra. Apertou-me contra a cama, pegou-me os cabelos longos e fez uma longa trança, avisando que assim seria o nosso destino: longo e trançado. Como semeador que lançara as sementes, aguardou o momento da colheita. Dormiu nos meus braços amantes e acordou com uma pergunta intrigante:

- Que parece mais difícil: fechar para o amor a mão aberta e conservar o pudor ao dar? – e riu.

Já eu andava risonha por outro motivo. A gaivota e o caranguejo enfeitiçaram-me.

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CAPÍTULO 12CAPÍTULO 12O JOIO QUER CHAMAR TRIGOO JOIO QUER CHAMAR TRIGO

Decorreram-se anos. Os seguidores do profeta eram muitos. Ao sair da cidade Vaca Malhada, Zaratustra recebeu de presente dos discípulos um bastão. Representava uma serpente enroscada em torno do sol. Assim falou-lhes:

- Quando o nosso coração se agita, amplo e cheio como o grande rio, bênção e perigo dos ribeirinhos, então assistis à origem da vossa virtude. Quando vos elevais acima do louvor e da censura e quando a vossa vontade clama como vontade de um homem que ama e quer mandar em todas as coisas, então assistis à origem da vossa virtude. Essa virtude é poder. Um pensamento reinante e em torno dele uma alma sagaz: um sol dourado e em torno dele a serpente do conhecimento. Vou embora sozinho. Ide sozinhos também. Afastai-vos de mim e vos precavei contra Zaratustra. Envergonhai-vos dele! Talvez vos haja enganado! O homem que reflexiona não só deve amar os seus inimigos, mas também odiar os amigos. Adeus!

Todo mundo pirou com esta. Zaratustra consigo mesmo falava. E com ele mesmo conversava: “Vigiai e escutai, solitários! Sopros de adejos secretos chegam do futuro e a ouvidos apurados chega uma fausta mensagem. Solitários de hoje, vós, os afastados, sereis um povo algum dia. Vós que vos haveis entrescolhido formareis um dia um povo eleito do qual nascerá o homem superior!” Escutando no caminho a água serpenteando por entre os bosques, por entre a mata negra, brilhando ao luar, pensou: “Dai de comer aos cães, ainda que vos mordam.”

Certo dia, após ditar as parábolas, o profeta gritou, o rosto malhado, em pânico:

- Assustei tanto a sonhar que acordei, mulher. Aproximou-se de mim uma criança com um espelho?

- Quê? Água, corvo! Água, águia! Zaratustra treme de febre! Rápido!

Voaram como um raio.

- Zaratustra, o joio quer chamar-se trigo. A criança apresenta um espelho. Que vedes? Algo aterrorizante?

- Demônio sarcástico. Meus inimigos desfiguraram a imagem de minha doutrina. Perdi meus amigos! Necessito procurá-los!

- E são eles os que nos apunhalam... – falei sem querer. - Por onde andam?

- Nem sei mais. Sinto que os perco por alguma traição. Abraçai-me!

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Os animais entreolharam-se apavorados, como só ficam os verdadeiros amigos. Zaratustra empalideceu demais. Entrei em pânico. Pedi aos animais que procurassem os amigos do profeta, que perguntou, com amnésia:

- Que sucedeu?

- Nada! – gritamos em coro.

- Traíras! Meu impaciente amor transborda em torrentes. Precipita-se o Oriente até o ocaso. Até a minha alma agita-se nos vales, abandonando os montes silenciosos e as tempestades da dor. Bastante possuiu-me a solidão. Sofri. Agora esqueci o silêncio. Tornei-me qual boca e murmúrio de um rio que salta de elevadas penhas. Tenho que precipitar minhas palavras nos vales. Corre o rio do meu amor para o insuperável. Como não encontraria um rio o caminho do mar?

- Encontrastes! Não vos assusteis com os amigos, que sempre traem e adulam e apunhalam disfarçadamente. Tendes a nós! Animai, olho afável que tanto brilha ao ver a aurora e o esplendor do sol! Estamos convosco! Os animais concordaram. Entrementes, senti um calafrio dos pés à cabeça. Uma criança correndo diante de Zaratustra, espelho à mão. Espelhos da alma! Santo pesadelo! A criança mostra o reflexo do profeta. A criança está próxima? Pretenderia ela mostrar ao pai quem ele é para que não o deixe de ser? Gravidez: dois espíritos em um. Gravidez: traição e sofrimento. Gravidez: separação do inseparável. Corta-se o coto umbilical e seguem separadas as vidas como os rios para o mar. Olhei para o profeta, apavorada como ele. Ele pegou do espelho para consigo mesmo falar e, como se não me visse, conversou sozinho.

- O mar! Sem dúvida há um lago em mim. Um lago solitário que se basta a si mesmo. Mas o meu rio de amor arrasta-o consigo para o mar... para as profundezas onde canta uma bela sereia!

- Isso tocou minha alma. Quero saber do túnel... do arco-íris... – falei, para distraí-lo. – Queria tanto passar por vastos mares como uma exclamação, um grito de alegria, onde juntos riam amigos e inimigos!

- É muito grande a tensão da minha nuvem. Por entre os risos dos relâmpagos lançarei granizos às profundidades. Soprarei as tempestades. Assim aliviarei o meu peito.

- Risos dos relâmpagos! – repeti, maravilhada. O sol já se levanta sobre o mar. Vamos reverenciá-lo?

Ele estava ainda fora de si. Não me ouvia e, se ouvia, não queria conversar. Olhava distante, como se fosse de outro mundo.

- Ah, saiba eu tornar a atrair-vos com flautas pastoris, seguidores! Aprendei a rugir com ternura, minha leonina sabedoria. Já aprendemos tanto juntos!

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- Despedi-vos tão cedo?

- Sim. Também a vós assombrará a minha selvagem sabedoria. Talvez vos ponhais em fuga com os meus pensamentos e os meus amigos.

- Judas? – objetei-o, ofendida e ao mesmo tempo aliviada por ver ele que voltava a si.

- Sim. Minha sabedoria emprenhou-se nos montes solitários. Nas duras pedras pariu novo filho. Agora corre louca pelo deserto árido e procura sem cessar branco céspede... O arco-íris! Peçonha da manhã!

Aproximava-se a aurora linda como a noiva se apresenta à catedral, pura e casta, nua de pensamentos nefastos e cheia de esperança. Os primeiros raios do sol ofuscavam a lua e as estrelas, varrendo da noite a melancolia. O céu roxo empalidecia. Zaratustra adorou o sol, mas, desta vez, reverenciou a lua, no que os animais ficaram atônitos.

- Nublada lua que habita solitária este céu imenso! Que se casa com o céu no hiato da paisagem humana. Que em meu peito vazio habita. Que bela imagem!

- Belo! – aplaudi-o.

- Os figos – respondeu-me – caem das árvores. São bons e doces. Conforme caem, assim abre-se-lhes a vermelha pele. Sou vento do Norte para o figo maduro. Recebei o suco e a doce polpa. Em torno de nós reina a manhã com um céu sereno... não é com cólera, mas com o riso que se mata. Ride! Adiante! Matemos o espírito do pesadelo! Vede que plenitude na manhã! Os hiperbóreos vivem onde poucos podem entrar. Somos primícias: eternamente estamos condenados a um deus!_________________________________________________________________

Apreciei as colinas, os abismos, o lago, o mar, o deserto. Descemos a montanha. Com olhos amarelos, o profeta falou aos quatro cantos do mundo:

- Voz que clama no deserto! Quem tem ouvidos, ouvi! Deus não é conjectura. Quero que Deus circunscreva-se no imaginável. Poderíeis imaginar um Deus, Jasmim?

- Se energia, sim. Com um punhal na mão e um relógio noutra, não.

- Eu só posso crer num Deus que saiba dançar! E quando vi, o meu demônio pareceu-me sério, grave, profundo e solene: era o espírito do pesadelo. O Deus do monotonoteísmo cristão! Essa imagem híbrida da decadência destilada do nada.

Deu vontade de congelar aquele momento. Como a esperança faz a proeza de nos invocar outro mundo, se precisamos enfrentar esse, que nos olha grandiosamente, segue e mede os nossos passos? Controla a nossa caminhada, rege leis universais, as leis de Deus? O mundo tem algo de grandioso demais que mete medo. Deus é bom, mas mete medo. É enigma. Invisível. Também eu queria que um deus saltasse de mim. Mas não gostaria de imitar Deus.

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Queria mesmo era controlar os meus atos, o que, àquela altura, era tarde demais, mesmo que fosse uma deusa.

- Deus não é conjectura? Quem beberia sem morrer os tormentos todos de uma conjectura? Deus é um pensamento dos homens que infelizmente torcem tudo quanto está fixo. Chamo mal e desumano a isso: ao ensinamento do único, do pleno, do imóvel, do saciado e imutável.

- Esse ensinamento do imutável foi vencido pelo Tempo. Por que o homem transforma-se com o tempo, os conceitos mudam como o percurso da correnteza. Morremos ou renascemos a cada segundo...

Descendo as montanhas. Olhei para trás pensando em Edith, a salinificada esposa de Loth, porque o cenário da montanha ficava congelado ali e nossos melhores momentos também ficariam. Mudanças dentro de nós cicatrizaram uma relação que jamais conseguiria cicatrizar a si própria. “Pois uma relação humana é como um rio: nunca é o mesmo. Quando mergulhamos segunda vez no rio, nem nós nem ele somos os mesmos”, diria Heráclito. Pensando em Heráclito, eu pintava em minha imaginação o cenário que abandonava a contragosto. Vou sentir falta de tudo o que vejo através desta montanha. Do capim abandonado, que me inspira uma pintura com uma cadeira vazia bem no meio, de frente para o sol e para a lua. É preciso emprestar coragem ao deitar a pena sobre o papel, quando se deita a alma em letras. É como cantar sem voz. É chorar por dentro, sangrando as entranhas em silêncio. Agora compreendo o vosso criar, profeta. – dizia, com uma sensação de morte no peito.

- Conheço as últimas horas que desgarram o coração. Meu caminho mais de cem almas atravessou, cem berços, cem dores de parto. Desde que há homens no mundo, os homens têm-se divertido muito pouco: é esse o único pecado original. E quando aprendemos melhor a nos divertir, esquecemos de fazer mal aos outros e de inventar dores.

Paramos sob uma figueira para descansar um pouco. Molhei o rosto e os cabelos. Zaratustra foi trocar o manto. Ao me sentar numa encosta perto de uma árvore, relaxei as pernas. Cochilava quando uma víbora azul laçou-me pelos pés e me mordeu, bem no pescoço.

- Aaaiii! Aiiiiii! Socorro! – gritei em vão. A serpente olhou-me, como se me conhecesse. Quis retirar-se, contorcendo-se vagarosamente. Tranquilizei-a, lembrando a conversa com a gaivota: “Levai a serpente azul; não suicideis!”

- Vós atravessareis três túneis comigo. Meu percurso é distante!

“- Pelo contrário. Mais rápido do que quando Zaratustra morreu primeira vez. Morrereis!” – lamentou. Embora sentindo falta de ar e uma grande transformação em minhas veias, tive forças para gargalhar. Ri tanto que a víbora nada entendeu. Com um ponto de interrogação na cabeça, ela enroscou-se-me ao pescoço. Disse-lhe:

- Não me matareis: encurtareis o meu caminho. Ficai comigo, pois há três túneis que serão as três escolhas das vidas simultâneas que enfrentarei. Em verdade, já as sinto, mas ainda nada

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compreendo. Preciso do vosso soro para criar coragem de morder a falsa consciência dos homens. E atravessar o arco-íris.

Atônita, a serpente foi descendo para a minha cintura, formando um adorno bastante sensual.

- Já era tempo de me batizar, contemporânea de Adão e Eva. Não quero a maçã, amiga, mas o soro! – e a víbora me mordeu com força. E exclamei: – Agora estou batizada!

“ – Protegerei a discípula!”

- Contra o quê?

Respondeu-me com uma pergunta:

- Quando é que as mulheres precisam de proteção?

Preocupei-me. Gravidez mesmo? Vendo-me abatida com esses pensamentos, ela começou a prosear, para me distrair. Contou que as serpentes nunca foram expulsas do paraíso, que tudo eram fábulas, “pois as serpentes, dizia, “sempre foram muito consideradas no reino dos céus”. O resto, “eram calúnias humanas – “uma espécie tão nova na Terra que produzia mais veneno que a mais venenosa víbora.”

Troquei o manto por um vestido de seda. Sentei-me na esteira. Homens aproximavam-se, como que saindo de um ninho. Para distraí-los – porque eram lavradores e passeavam por ali – , comecei a proferir parábolas, feito uma cigana. Pedi a um a mão direita, onde vi todo o passado e o futuro dele. Em seguida, disparei:

- Irmãos! Amo-vos! Mas também sou vossa inimiga... Deixai-me, portanto, dizer: conheço o ódio e a inveja dos corações. Não sois bastante grandes para não conhecer o ódio e a inveja. E, se não podeis ser os santos do conhecimento, sede ao menos os guerreiros.

Aplaudiram, rindo, julgando-me uma cigana que agradava os homens. Prossegui:

- Se vos amaldiçoam, não abençoeis: amaldiçoai também, imbecis. Se vos fizeram uma grande injustiça, fazei cinco injustiças pequenas: assim ensinou-me Zaratustra. Ele tem muito o que dizer, mas quer pouco ensinar. Vós, ó pilares da humanidade, vós sabeis bem mais que ele. E é por isso mesmo que tendes muito o que ouvir!

Zaratustra observava. Estava nas nuvens. Eu levitava de alegria. O povaréu aumentava: uma mulher berrando no deserto com uma cobra laçada à cintura não é todo dia. Todavia, eles prestavam atenção nas parábolas, a testa franzida, entendendo sem compreender:

- Uma pequena vingança é muito mais humana do que nenhuma. Vingai-vos, hipócritas!

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Um homenzinho familiar da mesquita armou-me uma cilada, para que todos pensassem de mim charlatã.

- Vingai-vos, desprezadores, vingai-vos! Mas com honra. Vedes a águia? Vedes a serpente? Vedes o corvo? Sabem mais que todos vós juntos, ó desprezadores. Caluniai, quando a calúnia é a flecha. Que os mortos zombam da calúnia, mas os vivos podem vir a morrer... Caluniadores! Sois como os santos que enfeitam os mosteiros: amam ao próximo e ao inimigo como a eles próprios. E logo que vem a oportunidade, envenenam-nos. Envenenai o vosso próximo! Com a língua se mata, caluniadores! A língua é o chicote da alma!

- Charlatã! Mulher do diabo! – disparou um.

- Graças dou por atacar-me ousadamente, otário! Só deveis ter inimigos dignos de ódio, não de desprezo. – E se entreolharam e reviraram os olhos. – Deveis sentir orgulho do vosso inimigo. Então os triunfos dele serão também os vossos! Não só deveis amar o inimigo como também matar o amigo.

- E como escolher amigos? – perguntou um.

Eis um problema de difícil equação, mas que resolvi com... meu mestre.

- Assim me ensinou um dia Zaratustra: desatai as vossas correntes, inimigos da honra, desatai-as! Salvai primeiro a vós mesmos para socorrer algum. E tarde será que o salvo não vos mate em seguida.

- Sois digna de justiça?

- Digna? Justiça? Inventai-me a justiça que a todos absolve, exceto àquele que julga! Assim me ensinou um dia Zaratustra. A justiça é para os cegos. Sois cegos o suficiente para julgar, ó dignos? Andai na corda bamba de olhos vedados a ver se podeis julgar. Andai, ó dignos! Sois trapezistas para driblar a vida sozinhos? Já subiram as escadas sem pisar nalgum cego, ó dignos? Que todos andem de cócoras no escuro, parindo na cegueira da vida a própria verdade. Quem tem uma verdade digna de habitar um coração irreverente?

Silenciaram-se.

- Como ser verdadeiramente justo? – interrogou outro.

- Não julgueis para não serdes julgados, porque com a mesma medida com que medirdes vos hão de medir a vós também. Tirai primeiro a trave de vosso olho, hipócrita! Livrai-vos de ser injustos com os solitários. Um solitário é como um poço profundo. É fácil lançar nele uma pedra, mas se a pedra vai ao fundo, quem se atreverá a tirá-la do poço? Livrai-vos de ofender o solitário, todavia, se o ofenderdes, matai-o também. Assim me ensinou certo dia Zaratustra. Já abismastes num poço profundo e escuro de olhos vedados? Cuidado para não lançardes a pedra em vós mesmo! Porque quando um homem fica no breu, erra de propósito até para ver se ainda existe. Ele mata o próprio ego, se realmente ficar sozinho. Onde está o vosso poço, ó dignos? É nele que estão as vossas pedras... as mentiras escorrendo gelatinosas feito água podre... a

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vaidade buscando um espelho limpo, desde que tenha a par a beleza, senão vos provocará o nojo de vossa existência oca e sem fim. Já olhastes para o fim? Que cara tem? A de sempre! Botas e mãos unidas numa caixa, cenho franzido, preocupado com o monte de besteira que se fez. Preocupado com o tempo e com o outro Tempo. O implacável de Deus. O que não volta... Amedrontados, os homens pegaram pedras para me atacar. Pedi socorro ao Universo. Encorajada pela força de várias pedras atiradas no meu telhado, desafiei-os com a maior entre tantas máximas de Jesus Cristo:

- O que não tiver pecados, atira a primeira pedra.

- Eu! – mandou um. Depois, vários. Não acertaram. Vendo o grande perigo que corria, Zaratustra tirou-me dali e tomou o lugar. Desci ilesa, a cabeça erguida.

- Ouvi o que foi dito: atirai a primeira pedra o que não tiver nenhum pecado, nem em pensamento nem em atos.

Emudeceram-se os corajosos contra mulheres. E Zaratustra prosseguiu assim:

- Grandes favores não tornam ninguém agradecido, mas apenas vingativos, ó revoltados. Mesmo o pequeno benefício lembrado torna-se um verme roedor. Desgosta-se de uma pessoa por dar e se desgosta por não dar. O remorso impele a morder. O pior de tudo, no entanto, é o pensamento mesquinho. É como a lama: até que as excrescências apodreçam o corpo todo. Vale mais fazer o mal que pensar ruimente...

- ...É difícil viver! – desabafou um.

- Como é difícil guardar silêncio.

Ninguém piscava os olhos diante da autoridade do profeta.

- Assim fala todo grande amor: é preciso conter o coração, porque se o deixarmos livres, depressa perdemos a cabeça. Livrai-vos da piedade! Todo grande amor está acima da piedade. Oferecei-vos ao vosso amor e ao próximo como a vós mesmos: com desdém. Assim fica menos pesado viver. Porque amar dói. E viver dói quando não se ama. Que direis? Aplaudiram. Chamaram-no “o novo”. Para aterrorizá-los, ele disparou essa, que nem eu havia ouvido:

- Assim me disse um dia o diabo: “Deus morreu!” Foi a piedade pelos homens que o matou. Deus também tem seu inferno: o amor pelos homens. Não souberam amar a Deus senão crucificando o homem. Traçaram sinais de sangue pelo caminho e sua loucura ensinava que a verdade se prova através do sangue. Mas o sangue é, de todas, a pior testemunha da verdade: o sangue envenena até a doutrina mais pura e a converte em insânia e ódio do coração. E quando alguém atravessa o fogo por sua doutrina, que prova?

Baixaram a cabeça. O homenzinho chegou mais e Zaratustra afiou mais o discurso:

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- Os discípulos de Deus deviam ter aparência de redimidos. Queria vê-los nus, porque só a beleza deve pregar o arrependimento. Os sacerdotes causam-me pena e me são antipáticos. Vejo-os prisioneiros e marcados. O Salvador pôs-lhes as algemas dos valores falsos e das palavras ilusórias. Haja quem os salve do seu Salvador. A vossa crença ordena isto: pecadores, subi de joelhos as escadas, olhos deslocados pela devoção. Quem criou semelhantes antros e graus de penitência? Não eram os que queriam se esconder e a quem o céu límpido ofendia? E só quando o céu límpido olhar novamente através das abóbadas rendilhadas e contemplar a erva e as vermelhas papoulas dos ruinosos muros, então inclinarei o meu coração novamente ante as moradias desse Deus.

- O batismo limpa os pecados? – perguntou um despropositado.

- Com água? A alma precisa banhar-se? – gargalharam os ouvintes. – Sabeis o que é a alma? Mesmo os valores desses homens não são do sétimo céu da liberdade. Nunca andaram sobre as bases do conhecimento. O espírito estava mergulhado em piedade e sobrenadava grande loucura.

Aumentavam os curiosos.

- Escreviam com sinais de sangue! A loucura ensinava que com o sangue dava-se testemunho da verdade. Mas o sangue envenena a doutrina mais pura! Quando escreviam em sinais de sangue trouxeram “heróis”. Tal outro partiu como “herói” em busca de verdades e não trouxe por colheita senão uma mentira enganada.

Foi aplaudido. Desceu e caminhou pregando, a multidão atrás, como um rebanho:

- Na verdade, não quero cordeiros. Jesus só conheceu lágrimas e tristeza com o ódio dos bons e dos justos. Por que não ficou no deserto? Aprenderia a viver, a amar a terra e também o riso! Blasfemou contra o próprio Criador...Não seja a vossa morte uma blasfêmia contra os homens e contra a terra!

Estávamos com fome. A multidão, ávida por milagres, quis ver a multiplicação dos pães, acreditando que Zaratustra fosse um segundo Jesus Cristo. Cansado, pediu que eu pregasse segundo a doutrina cristã. Não entendi. As pessoas comiam os pães que levamos e as palavras que não preparamos.

Bíblia à mão, abri em Provérbios, onde li:

- O pão da mentira é gostoso para o homem. Mas depois a sua boca será cheia de areia. As guerras devem ser dirigidas com prudência. Se um homem revela os segredos e procede falsamente e tem os lábios abertos para falar, afastai-vos. Dizei: darei mal por mal. O que só busca palavras não terá nada, mas o que possui do coração ama a sua alma. E o conservador da prudência encontrará bens. E o que mente perecerá. Conhecemos a doutrina do homem pela paciência. A glória é passar por sobre as injúrias. Estão preparados os martelos para ferir os corpos dos bons e dos justos. Pois o espírito alegre torna florida a idade, mas o triste seca-os até os ossos. Até o insensato passa por sábio, se calado, e por inteligente, se fechar a boca. Toda a obra da virtude é como uma estrela que se apaga. A luz da virtude caminha mesmo depois da obra cumprida. O raio de luz é eterno como o do sol. Há os que andam pesadamente como

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carros transportando pedras. Falam muito de dignidade e chamam virtude ao freio. Que sabeis da virtude?

Zaratustra riu para mim. Salomão e Zaratustra agradam a gregos e troianos.

- Envenenaram as águas santas com a vossa concupiscência. E ao chamar alegria aos vossos torpes sonhos, até envenenam as palavras. A vida é fonte de alegria, mas onde quer que os hipócritas vão beber, todas as fontes se envenenam. Pergunto: a vida tem necessidade do veneno? Assim me perguntou um dia Zaratustra. Tudo o que diz será para a posteridade: o amor e o ódio, a paz e a guerra, os bons e os maus, a felicidade e a tristeza, todos ficam escondidos na grande mão do Criador: e o homem escolhe o que planta. Depois colhe tempestades cerrando os dentes. Venha um maremoto e os mate. Ventania de Deus, sopro do além, terremoto, varra esta Terra poluída de maldades! Poço de erros, secai!

Aplausos.

- Assim me disse hoje a víbora: o homem, espécie recente na Terra, possui o veneno mais poderoso que a mais venenosa víbora: fala por falar, afirma e não se convence e calunia para se vingar. Assim me disse hoje a víbora: sede vossa língua o chicote de vossa alma! Víboras do inferno! Seria o homem criatura de Deus?

“Vem a tempestade”, alertou a águia. Zaratustra pediu ao povo que pensasse, muito embora tivesse noção de que lançamos pérolas em vão:

- Sabeis o que é isso em que acreditam? Dizeis ser importante a coragem, a honra, a fé, a religião. Mas o que significam estas palavras? Amais as coisas belas, mas sabeis da beleza, do amor, da amizade? – insistiu, bondosamente. Uma bondade que se tornaria vaidade.

Saíam em bando os homens. Ruminaram? Absolutamente. Ao menos ouviram palavras diferentes, divertimento para os que trabalham demais. Mas dificilmente uma tábua de valores seria demolida. Foi-se, cabisbaixo, o gado humano.

Uma grossa névoa rodeava a montanha. Nuvens cor de rosa anunciavam o frio glacial da montanha. Abraçados, contemplávamos o horizonte. Noite sem lua. Bebendo vinho, o profeta deitou-se em meu colo, abraçando-me forte como se houvesse nele mais que uma certeza: uma tristeza. Mais que uma melancolia: uma negra depressão. Depois de longo silêncio, falou:

- Dificilmente o meu espírito subiu escadas. Esmolas da alegria consolavam-me. Minha aversão deu-me asas. Tive que voar mais alto para tornar a encontrar a fonte da alegria que insiste em brotar e quer sempre secar.

- Lançai vossos puros olhares à fonte de minha alegria. Vede: o sol leva a luz ao hemisfério inferior. A taça transborda águas douradas no crepúsculo! – consolava-o, sem saber o que se passava naquele coração disfarçado de rude.

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Quis abraçar aquele amor todo, mas eu nem tinha idéia do que o próprio grande amor fosse capaz de fazer por egoísmo. Sentia rodar a cabeça, via meu rosto inquirindo a mim mesma, à minha própria ganância de liberdade. Sacudi essa imagem e gritei para que parasse. Zaratustra deu-me uma leve batida com a palma da mão em minha nuca. Então voltei a frequentar o mesmo mundo que ele. Escutei a mais bela declaração de amor e ao mesmo tempo um aviso: amor de solitários.

- Construímos o nosso ninho na árvore do futuro. Não preparamos aqui moradias para os impuros. Queremos viver por cima deles, como ventos fortes, vizinhos das águias, dos corvos e do sol. À semelhança do vento, quero soprar entre eles um dia e cortar a respiração ao espírito. Um arco-íris, porém, anuncia grandes tormentas para nós dois.

Recolhemo-nos, porque pesavam a fome de amar e o sono do depois de amar. E o nosso manto foi a verdade.

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CAPÍTULO 13_CAPÍTULO 13_O CHORO DO BEBÊO CHORO DO BEBÊ

Amanheci com a melodia dos pássaros. Chovia. Após olhar de cima a vida dos de baixo, pus-me a escrever a pregação de Zaratustra, que deixou escrito:

“Quando a chuva cair nos dias mais solitários, lembrai-vos que sempre estarei aqui.

“A vida quer elevar-se às alturas com pilares e grades. Quer escutar os longínquos horizontes e penetrar com seus olhares nas supremas belezas. A vida sempre há de superar-se!

“Desconfiai de todos os que se gabam da sua justiça. Não é só mel o que falta nas suas almas. E se se autoproclamam bons e justos, lembrai-vos: só lhes falta o poder. “Com os pregadores da igualdade não quero ser confundido, posto que a justiça me fala: os homens não são iguais” – mas alguns são mais iguais do que os outros – acrescentei. ‘Nascemos originais e morremos cópias – diria Jung”.

“Chamo verídico àquele que vai para o deserto sem Deus por testemunha, aniquilando o coração reverente. No meio da amarela arena e abrasado pelo sol, acontece-lhe olhar ávido para as ilhas de fontes copiosas. Vossa sede, entretanto, não o decide imitar sempre os espíritos livres.

“Criar é a grande emancipação da dor. Criar é o alívio da vida. Entretanto, para o criador são necessárias muitas dores de parto. Para o criador ser o filho que renasce é preciso ser mãe com dores de mãe.”

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Escutei um choro de bebê. Chorei abundantemente, pois não sabia de onde vinha e nem o que fazer por ele. Era um choro distante, que me ordenava decifrá-lo. Então falei para o choro do bebê:

“Conheço cada nota de vossa melodia, choro de bebê. Todas estão gravadas em meu inconsciente para que eu aprenda a amar mais as crianças. E se um dia eu vos transformar em riso, minha consciência hedionda pesará menos, posto que acalentei um choro de bebê. Saberei – e creio que já saiba – distinguir cada significado! Seja a criança a redenção deste mundo! Onde houver um choro de criança, saberei convertê-lo em riso. Não permitirei, sequer, que uma lágrima escorra, porque serei o palhaço a encontrar a gargalhada. E como o bobo da corte alegrarei o mais grave choro, o choro que me faz chorar tanto. Em qualquer lugar, em qualquer instante de tempo, em qualquer dimensão. Deus, dai-me a chance de criar um bebê, para que eu possa ser mãe? – implorei, aos prantos, sabendo que jamais poderei voltar o tempo. Foi-se o choro do bebê não sei para onde, mas na minha alma ele continua sempre chorando. Sobrevivi aos choros de criança, tentando aprender a ópera da vida tão cheia de labirintos que precisamos atalhar.

“Embora ninguém possa voltar e fazer um novo começo, vós podereis recomeçar agora e fazer um novo fim.”

Fui tomar chá preto para espantar o sono. Para meu consolo – porque queria ficar sozinha – Zaratustra não estava. Para onde foi?

“- Olhai-vos no espelho. Sois o reflexo dele! Ao olhar-vos por dentro, encontrareis o vosso amor!”

- Eu não converso com fantasmas... Amigo Freud?

“- Vosso inconsciente!”

- Sigmund ... Freud! O tempo é uma criança! A criança cresceu? A criança sou eu?

“- Desejo de ser criança. Perda de criança. Chorai. Mas agora que aprendestes a gritar, gritai! Por que o grito mata mais que a dor e a asfixia vem do grito preso. Se todo grito puder ser vomitado, então seja a latrina a deusa do sofrimento.”

- Onde está vosso amigo Jung? O espírito do pesadelo se apoderou dos meus pacatos sonhos!

“- Os sonhos escondidos atrás da portaça de ouro e que quereis esquecer?”

- São eles.

“- Essas pessoas que se camuflam de outras são todas uma. Não é possível realizar a afirmação e a negação simultaneamente. Para Anaxágoras seria o delírio do melhor dos mundos... Ser e não ser.”

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- O tempo é uma espiral, não um círculo. Conheci o pensamento de Anaxágoras depois de formular a antítese.

“- E não vos tortureis. O problema reside na falta de vontade! Quereis, mas sem saber como. Fazeis, mas sem saber o por quê!”

- Ainda me ouvis?

“ - A extensão de tal alma: o espírito freudiano. Como já não reconheceis a minha voz! Estais livre, bem vejo. Eu pensava o espírito como a vida que clarifica a própria vida, como o vosso sofrimento aumenta o vosso saber. Sabíeis?”

- Hesito neste aspecto. Cada dia sinto-me mais ignorante. Quem sois?

“- A felicidade do espírito consiste em ser ungida pelas lágrimas. Em ser vítima sagrada do holocausto. Vós, profetisa azul, não sois águia. Por isso não conhecestes o gozo no assombro do espírito. Quem não é águia não deve voar sobre abismos!”

- Voei sobre abismos e fui longe demais para o tamanho das minhas asas. Por isso ouço mais e melhor e sofro por não encontrar respostas. Assim, meu coração é tormento; meu espírito, sangue; minha mente, chuva ininterrupta. Sois... vós?

“- A corrente de todo o conhecimento profundo é fria, maravilhosamente fria! São glaciais as fontes interiores do meu espírito. Ardente é o meu sangue, olhos luminosos! Subistes alto demais... Ao olhardes para trás, vedes o abismo banhado em lágrimas de chuva. É fantástico olhar para trás agora, que podeis seguir o caminho da loucura!”

Espantei-me.

- Já posso olhar para trás? – interroguei, lembrando-me do que Zaratustra havia dito no começo: “perigoso caminhar, perigoso tremer e olhar para trás...”.

“- Nunca vistes cruzar o mar uma velazinha trêmula enfunada pela impetuosidade do vento?”.

- Sim! Como velazinha que treme com a força do vento espiritual, assim cruza o mar a selvática sabedoria. Zombais da minha condição de discípula? Adeus!

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Parece que muitos pranteiam junto à chuva para disfarçar o choro, fingindo que as lágrimas são gotas da chuva. E não sou a única ovelha negra deste mundo.

“Vossos espírito e virtude devem inflamar até a vossa agonia, como o arrebol do poente inflama a terra. Senão a vossa morte será malograda. Assim quero morrer, para que por mim amai a terra. Quero tornar-me terra para encontrar repouso naquela que me gerou. A ambição é querer converter em oferendas e presentes. Por isso desejam acumular todas as riquezas na alma, que anela tesouros e jóias insaciavelmente, porque é insaciável a vontade de dar da virtude. Obrigam todas as crises a se aproximarem, para tornarem a emanar da fonte como os dons do amor. É preciso que esse amor se faça saqueador de todos os valores. Chamo são e sagrado a esse egoísmo.”

CAPÍTULO 14_CAPÍTULO 14_DIÁLOGO COM A VIDADIÁLOGO COM A VIDA

Entoei um canto árabe para chamar os pássaros da mesquita. Um deles apareceu-me, a goela sangrando. Senti-me sufocada. Fui à beira do abismo com más idéias. Disse para mim o pássaro:

“- O prazer de dar morreu à força de dar. A virtude cansou-se de si mesma por sua própria exuberância. Demasiado cedo morrestes, mãe! Não fugistes, nem nós: o destino assim quis. Nas trilhas de vossas pegadas nos encontraremos um dia. Esperamos o amor abortado pela coação do destino” – falou o pássaro sangrando em nome do abandono.

- Não somos culpados uns com os outros. – desabafei com o pássaro. – Estrangularam-me para me matar. Aves da esperança, dizei-me, que mais tendes a mostrar? Atiram sempre flechas de maldade para alcançar o meu coração. Porque fostes o mais caro para mim, o meu bem. Por isso tivestes que morrer cedo demais: para o mais vulnerável que havia em mim disparou-se a flecha inflamada de ódio: para vós, cuja pele assemelha-se ao pulmão, ainda mais o olhar que morre de olhar! Direi então aos inimigos: que é matar uma mulher em comparação com o que fizeram comigo? E com os meus filhos? Tirastes de mim o irrestituível, que nem a vida pode comprar.

- “Assim cruza o mar a minha selvática sabedoria”, diz Zaratustra. Mas o que é a sabedoria? Ainda há pouco olhei os vossos olhos, vida. O peixe Oanes, pescado por Voltaire, diria: “O que não se pode penetrar é insondável”. Sou eu, volúvel, mulher em tudo e poucas vezes virtuosa. Posto que para vós, homens, eu seja a água turva, profunda, misteriosa, obscura. Contudo, os homens emprestaram-me a sabedoria para eu apreciá-la. Assim ri da vida inacreditável desta dimensão. Pouco acredito-a, embora ame-a ainda, não sei por quê. Mas nem a vida no seu riso crê! Disfarça. Dissimula. Chora. E se derrama como um sangue hemorrágico sem perceber. Os que veem não o dizem, mas chiam como um pulmão inflamado.

Disse-me a voz da vida:

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“- Vós quereis, desejais, amais e só por isso me lisonjeais, desdenhosa de mim,a vossa vida!”

- Nem tanto. Quando lisonjeio, é à natureza e ao Ser Supremo, por gratidão. Quando desdenho, é ao que me cerca e aniquila a felicidade que em mim se animou junto à tempestade de quando nasci. Sou bastarda da vida. Choro os males da terra algemada diante de vós. Meus ouvidos distinguem o choro dos bebês. Por quê? Choro a imensidão vazia de sentido, de forma, de amor. A sociedade apedrejou-me até morrer em mim toda a luz dos meus olhos e todo o meu riso parece um crime. Sou ruga no rosto e na alma. Sou abismo, caos sem estrela cintilante. Vós fizestes comigo o que talvez a poucos faríeis. Conheço vários que querem dar cabo da vida, mas ninguém teve ainda a coragem de abandonar-vos. Por quê? Eu não sei. Pois haverá coisa mais tola do que carregar continuamente um fardo que se quer sempre lançar por terra? Ter horror à própria existência e se apegar a ela continuamente? Acariciar a serpente que nos devora até que nos haja engolido o coração? Cem vezes quis matar-me, mas ainda a amava. Essa ridícula fraqueza é talvez um dos nossos pendores mais funestos.

Falou-me, por sua vez, a sabedoria:

“- Assim sucede convosco: nada amo mais profundamente que a vida, ainda mais quando a detesto. Se me inclino para a sapiência é porque me lembra a vida. Que farei se nos parecemos tanto? E quando um dia a vida visitou-me, afirmou: – Estou diante da sabedoria e não me saciei! Olhamo-la através da bruma. Queremos alcançá-la com uma rede?”

Peguei do espelho mágico para conversar com Zaratustra:

“- Ela é formosa? Que compreendeis?”

“- É versátil, obstinada. Muitas vezes vi-a morder os lábios, eriçar os cabelos. Talvez seja falsa e má em tudo. Mas quando fala mal de si mesma é quando mais seduz. Danada!”

Então a vida riu-se escandalosamente, cerrou os olhos e perguntou:

“- Falais de mim? Conquanto tivésseis razão, falai-me cara a cara” – advertiu-nos.

Zaratustra, no meio do deserto, estava convicto de ter vivido muitas vezes, achou-se por isso muito amigo da vida. Disse-lha: “- Então tornastes a abrir os olhos? Parecíeis tornar a cair no insondável!”

Banhava-me, enquanto ele proseava com a vida. Com saudades dele, convidei-o:

- O sol já se deita... O prado está úmido... Sinto a frescura do bosque! Vinde amar-me para sentir a vida pulsar! Cantou em árabe os três ohms da natureza. De repente, entristeceu:

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“- Há algo desconhecido em torno de mim.”

Olhou-me pensativo, levitando sobre a areia alaranjada do crepúsculo. Berrou: “- Quê?! Ainda viveis? Não pulastes no abismo?”

- Vós impedistes!

“- Por quê???”

- Se morro, quem vos decorará as máximas? Vivo para descobrir o segredo daquela portaça de ouro, para decifrar o enigma de Pandora...

“- Eu pensava, preocupado, que vós estivestes chorando por mim... Onde estais e como?”

- Estou nua no Lago Ninfas, dourado pelo crepúsculo. Vinde! Quero meu outro lado junto ao meu corpo!

“- Loucura cheia de razão! Não. Não irei: voarei, bendita! Em toda loucura há um quê de razão e em todo amor há um quê de loucura!”

Chegou rápido. Mergulhou no lago, mas não me encontrava de modo algum, pois havia recantos em que eu me escondia, onde mergulhava profundamente a ver se o entendia mais – pois é preciso penetrar nas águas turvas para encontrar as pontes das palavras que correm para o mar. Quando conseguiu me pegar, segurou-me pelos pés:

“Os pés – dizia – deixam rastros pelo caminho. O melhor que tendes a fazer é cobri-los para não escandalizar os descalços. Eles não gostam de quem apanha a luz com os pés. Para os que não andam é um escândalo o que endireita as pernas.” – aconselhava.

Beijou os meus pés como se os abençoasse. Na caverna, esquentamo-nos com a fogueira.

Pernoitamos acordados. Viramos a madrugada escrevendo. Elevou-se a melodia das águas e o pio das aves junto aos silvos das cobras. Seja a natureza a dona desta música! A claridade já se impunha sobre a escuridão. Era momento de orar. À beira do abismo ficávamos horas constatando a força da luz. “Assim é o bem sobre o mal. Lutam. Mas o bem sempre vence e quem tem a verdade nas mãos carrega a mente tranquila e apanha nos dedos cada ponto de luz” – dizia-me.

- Sois como a lua que eu não conseguia ver. Ah, se eu fosse sombrio e noturno! Como bendiria a vós mais ainda, mais as estrelas que brilham e gritam para que as olhemos. Vivo da luz. Da minha própria luz!

- Vossa luz nasceu antes... Sois estrela!

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- Como uma tempestade, voam os sóis em suas órbitas. Somente vós, o obscuro e o noturno de vós bebeis o leite balsâmico do úbere da luz!

- É noite!!! – gritamos.

- Por que serei luz? E noturno? – perguntou-se, hesitante.

- É noite... Numa fonte brota um fulgor. Sois luz. Luz da vida. Luz dos meus olhos, razão do meu riso. Eleva-se mais a voz das fontes. Quero que continueis a sussurrar nos meus ouvidos o que dizeis sempre no começo...

- Sereia? Recomeçai, volúpia bendita!

Agora despertam todos os cantos dos enamorados... Busquei um chá de ervas. Como chovesse, cantei para a lua, que soprou a tempestade. Zaratustra começou a ditar parábolas na alvorada:

“Além está a ilha dos sepulcros da minha juventude. Além quero levar uma coroa cintilante da vida e atravessar o mar... Oh, imagens e visões da minha juventude! Olhares de amor, momentos divinos, como vos desvanecestes tão depressa! Penso hoje em vós como nos meus mortos. De vós, mortos prediletos, chega até mim um suave perfume que alivia o coração e faz escorrerem as lágrimas. Verdadeiramente esse perfume alivia e agita o coração do que navega solitário. O eu mais rico e invejável, o eu solitário.”

“Para onde fugiria o meu doce desejo? Como cego percorri venturosos caminhos. Vós arrojastes pureza no meu caminho! E quando consumi o mais árduo para mim e celebrava o triunfo dos meus esforços, vós fizestes calar aos que me estimavam. Assim procedestes sempre: adoçastes o meu melhor mel e a atividade das minhas melhores abelhas.”

Mascando qat como de costume, a voz do profeta pesou naquele começo da manhã, o cajado firme em minha direção:

- Uma vez quis bailar como nunca além de todos os céus. Entoastes vosso canto mais lúgubre e mais sombrio. Cantora mortífera! Sereia! Instrumento de maldade! Estava disposto para o melhor baile e vossas notas malditas mataram-me o êxtase. Vós me abandonareis! Essa luz que brilha incessante em meu corpo é o reflexo dos vossos olhos iluminados por tocar a melodia. Estais à sombra da onipotência e contente de superar-vos. Vejo-vos no arco-íris colorida, espaventosa, atravessando a ponte. Como ressuscitará a minha alma no túmulo? Há algo invulnerável em mim, qualquer coisa que se não pode enterrar e que faz saltar os rochedos. É a minha vontade. Salve a minha vontade, a destruidora de todas as sepulturas! Só onde há sepulturas há ressurreições. Vós me ressuscitaríeis?

- Cavei a minha própria sepultura – direis. Porventura aquele que não cava a própria sepultura encontrará quem o enterre? Com unhas e garras violei o meu destino, pois quereria que todos os destinos fossem rasgados à luz da noite embriagada de lua.

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Enlouqueci. Ressuscitei a roupa da solidão e me esqueci do amor. Vesti-me calmamente. Saí desapontada. Angustiada pelas escolhas que fiz, cantei para a lua minguante, que desta vez não apareceu – já vinha o sol, timidamente. O céu sufocava-me. Zaratustra amedrontava-me. A aurora aquecia os meus desejos de mulher, mas evitei. Ele desapareceu com a lua? Gritei.

“- Ah, como bendigo ser sombria e noturna! Mundo descaminhado que desprezo e amo! Que fazer, Deus, se vós não existis para os ateus? Como defendê-lo se ao tentar glorificá-lo vossa obra se reduz a um pó de poluição, fruto de uma depressão tamanha que não permite a limpeza da consciência, essa prisioneira de mim mesma! Meu bom Deus, Sócrates escolheu a morte. E eu, que escolherei com a vida insípida? Por que o Senhor não me tira desse porão solitário, sem alegria? Por que viver desta maneira, sempre só, sem perspectiva alguma, bom Deus? Se fôsseis mal – e quase o sois – eu diria, sussurrando ao mundo inteiro: Deus é mal! Vou matar-me de solidão!”

Cozinhei caranguejos. Zaratustra sete dias fora. Quando vi, a tarde entrava na caverna. Até na despedida o sol dava seu melhor. Um laranja avermelhado refletia na parede do fogão à lenha, alimentando a vontade de aquecer os pratos que deixei prontos à espera do amigo. Fiquei de frente para a ponte do Bosque Esperança, pensando na divindade e na minha pequenez diante do grandioso. Eu não queria parecer com Deus e nem imitar Deus. Mas eu gostaria muito de ter o controle sobre os meus atos. Se o tivesse, teria evitado uma série de erros. Teria sido mais feliz? Onde mora a felicidade, esse tesouro que buscamos e que se proclama um prêmio da posteridade? Amanhã vem e nos deixa ainda mais infelizes. Por que só aprendemos a ser prudentes depois das pancadas da vida? E mesmo assim continuamos a nos surpreender? Seria o caso para nos gabarmos, em vez de lamentar? A vida está aí: pronta para ser abraçada. A vida é um presente divino? Poderíamos fazer parte da essência de Deus? Somos átomos de Deus? O inatismo tem fundamento ou é uma especulação tão absurda quanto pensar em ser parte de Deus? Minha pequena inteligência não permite que a minha grande burrice me submeta aos patifes que pregam Deus como o diabo, nem me deixa envolver pelos doces convites de uma reflexão supérflua. Meu bom Deus, creio que viver seja buscar o além para se sentir acima do bem e do mal. Creio que o Senhor me fez rocha para suportar as lapidações, a fim de construir um edifício sobre um império arruinado.

Abri meus olhos para a Via Láctea. Ventava forte. Observei cada estrela e, admirando o firmamento, fiquei tão maravilhada que gritei. Eu quero atravessar o deserto sozinha, aniquilando o meu coração irreverente e sem nenhum deus por testemunha. Amo o que está acima do medo e da compaixão. Amo o que não procura por detrás das estrelas uma razão para adorar, mas adora a si mesmo por atravessar e vencer tempestades, as fúrias da vida. Teme o medo, mas o domina. Amo quem sabe tirar energia do vento, balança com as ondas do mar, dança com elas, acaricia as águas, respeita a vida. A vida merece pena, mas a pena não precisa da vida, porque escreve de mãos livres. Com mãos do Criador.

Ao chegar, Zaratustra puxou-me pelos cabelos e advertiu:

- Houve sempre muitos enfermos entre os que sonham e suspiram por Deus.

Depois, num gesto muito estranho, soltou-me, lançando-se aos meus pés:

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- Úbere balsâmico, vamos, sede das que sabem amar!

Amei automática. Ele dormiu um sono profundo, após o que partiu. Estranhamente ríspido. Os homens têm sempre uma loucura para entregar de repente. Ele, como poucos, era ímpar. Em nada mudava a minha admiração por Zaratustra, mas pelo homem com quem dormia. Tinha de aprender a lidar com um diamante entre os cascalhos. O brilho o distingue demais e é por isso mesmo que às vezes ele quer ser como um cascalho: estúpido. Mas não conseguia. Um carbono como um diamante? _________________________________________________________________

CAPÍTULO 15_CAPÍTULO 15_SEPARANDOSEPARANDO

Amanhecia. Enquanto o sol iniciava a alvorada, falávamos:

- Não é o rio o perigo, profeta. É a vontade que se despedaça na correnteza. Vontade vital, inesgotável, criadora. Quando a vida emudecia, apanhei-lhe o olhar no espelho de cem facetas para vossos olhos falarem-me. Encontrei a vontade de domínio. Escorregou-se pelos dedos. Perdi a batalha?

- Ganhareis. Sirva o mais fraco ao mais forte. Isto incita a vontade, senhora do mais fraco.

- Breve seremos adversários. Assim quer a minha vontade.

- Falai mais. Todas as verdades caladas tornam-se venenosas.

- Vede o mar. Todos os animais dançam no balanço das ondas. Todos buscam a vida e companheiros para se acasalarem. Sou a estrela solitária, a que ninguém consegue ver, mesmo que atravesse o céu milhões de vezes. Não sou de nenhuma constelação. Meu amor se quebrará numa batida da onda contra a pedra. Já levei várias pedradas atiradas ao fundo do meu poço. Meu coração angustia-se.

- Não querer mais, não estimar mais e não criar mais! Fique sempre longe de mim esse grande desfalecimento. Na investigação do conhecimento só sinto a alegria da minha vontade. E se há inocência no conhecimento é porque nele há vontade de engendrar. Deveis sobreviver a vós mesmo para criar! Que me importam as lides de touros? Zaratustra quer a obra cumprida! E as anotações?

- Também angustiam. Quantas pedras lançarão? Tudo é névoa. Frio intenso. Meu coração se esbarra no estômago. É egoísmo?

- O egoísmo é um dever. Necessário para libertar do sofrimento, rege e determina toda a dieta espiritual. O nobre impõe a si mesmo o dever de não envergonhar. Quer ter recato perante todo o que sofre. Não me agradam os misericordiosos. Os que se comprazem na piedade são demasiado faltos de pudor. Envergonho-me de ter visto sofrer o que sofre, por causa da vergonha dele. E quando auxilio, firo o orgulho do sofredor. Sede pertinaz em obter! E

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distingui ao aceitar. Aconselho isto aos que não têm o que oferecer. O homem sublime tem muitos espinhos, mas nenhuma rosa. Não conhece o riso nem a beleza. Se esse homem se enfastiasse de tal sublimidade, então principiaria a beleza. Quando se apartar da altivez saltará por cima da sombra e penetrará no sol.

- Há nos olhos dele desdém e repugnância. Vi-o assim: arrogante. Gosto de apreciar na rosa as pétalas, a rosa, não os espinhos. O sublime é arrogante. Arrogância há quando vemos defeitos em vez de qualidades. Gostaríamos de beber o sol, como o mar. É preciso ver na sombra a luz. Fazemos sombra ao sol e ele não quer ser motivo de sombra, mas de luz.

- Muita luz é como muita sombra. Não deixa ver. O homem sublime descansa agora, mas ainda não descansou ao sol. A própria ação dele não é mais do que uma sombra. A mão escurece o que atua. Não é superior ao ato. Esse homem de que falais venceu monstros, adivinhou enigmas. Precisa salvar os monstros dele e os próprios enigmas.

- Distorceram tudo até transformá-lo em crucifixo. Falsificaram a racionalidade humana de tal maneira que um cristão pode se sentir antissemita sem se dar conta de que é a consequência do judaísmo. E a confusão de Pedro e Paulo?

- Mas todas as crenças falam confundidas por meio das atitudes. Todos os tempos, todos os povos olham revoltados através do véu. O que tirasse o véu, as cores, as atitudes, não deixaria mais que um espantalho.

Saltei da cama e corri para o Lago Ninfas, embrenhando-me pelas rocas. Zaratustra mergulhou alegremente. Pensei no véu, no espantalho humano. Voltamos às anotações.

“Todo grande amor está superior à piedade, porque aquele que ama quer também criá-lo. Ofereço-me ao meu amor e ao próximo como a mim mesmo. Assim se exprimem todos os criadores. Contudo, todos os criadores são cruéis.

“O amor é o estado no qual o homem vê as coisas como elas não são. Quando se está apaixonado, a tolerância atinge o máximo: tolera-se qualquer coisa.”

- Todo amor tem sua dor, mas nem toda dor tem seu amor...

- De manso e silencioso andam por almofadas de estrelas os pés cautelosos. Os passos do leal falam, mas o gato anda em segredo. A lua caminha deslealmente como um gato.

- Quê?

De novo a lua:

- Lascivos amam a terra e tudo quanto é terrestre. Vós pareceis com a lua! Vosso espírito convenceu-me de que se deve menosprezar tudo que é terreno: tudo.

E me confundiu:

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- Somos enigmas. Quem beberia da fonte da idiotice sendo inteligente, mas ignorante o suficiente para reconhecer-se como tal? Quem perceberia que morrer pelo homem é sagrado? Assim é a natureza, esta filha de Deus empacotada em plásticos e gaiolas. O homem não suporta a liberdade da ave e a encarcera na gaiola. Não suporta o silêncio na beleza da planta e a embrulha num vaso. Não consegue ser duro como a pedra e a dilapida. O homem não quer ser o que é, por isso mata quem consegue ser. Para mim seria a coisa mais elevada olhar a vida sem cobiça. Para mim seria o melhor amar a terra como a luz a ama. Tocar na beleza com os olhos. Encostar a ponta dos dedos na vida.

- Diz o falso espírito o que pensais. Ser feliz na contemplação com a vontade morta, isenta de espírito egoísta, fria de corpo, mas com os olhos embriagados de lua.

- Onde há inocência?

- O que cria qualquer coisa para si mesmo é inocente.

- E beleza?

- Onde é mister querer com toda a vontade. Onde se quer amar e desaparecer. Amar é também estar pronto para morrer.

- Por quê?

- Por que no ar flutuam os lascivos, os pensamentos, as mentiras e dissimulações. Aprendei a ter fé em vós. O que não a tem mente sempre. Os amores da lua estão em declive. Olhai-a surpreendida, pálida ante a aurora. Porque surge ardente a aurora? O amor pela Terra aproxima-se. Todo o amor solar é inocência e desejo do criador. Vede!

Olhei para o mar. Vi uma gaivota alçar um magnífico voo. Que inveja!

- Sentis – tornou – como passa impaciente a aurora para o mar?

- Inveja. E necessidade de voar longe...

- Quereis aspirar o mar e beber as profundidades do mar. E o desejo do mar eleva-se com mil ondas. Por que o mar quer ser beijado e aspirado pelo sol? Quer tornar-se ar e altura e senda de luz? Também querem as mil ondas lamber a terra e sugar as pegadas dos pés. O mar quer tragar os continentes. Quer piruetas de ondas. Mostrar-se, beber a luz do sol e da lua. Comer-nos! Seria belo ser aspirado pelo mar como a aurora. Elevar-se com mil ondas!

- Belo seria se elevássemos o espírito a ponto de ele vir a sugar a aurora e junto a ela distribuir raios coloridos sobre todos os telhados do mundo. Belo seria beber de nosso espírito num cálice de cristal transparente e, bebendo-o, descobrirmos se somos veneno ou suco de uva. Belo seria alçar o voo da gaivota sem arrogância nem pretensão, mas pelo simples fato de sentir a liberdade como brisa roçar a nossa pele. Belo é dar à luz à criação do Universo e compartilhar com Deus todas as dores do mundo. Seria como encostar a ponta dos dedos nas vestes de Cristo

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para beber um pouco da enorme bondade. Seria ter fé no inacreditável. Isso para mim é muito belo!

- Tal é para mim o conhecimento. Todo profundo deve subir à minha altura.

- Se me estenderdes a mão, ó sábio! “Sábios. Bons relógios, sempre que haja o cuidado de lhes dar corda, indicam a hora sem falar. Não querem ninguém sobre vossas cabeças.”

Rimos bastante. Afinal, quando Zaratustra falava sozinho, eu o decorava. E por isso se vangloriava, a ponta de riso no canto esquerdo da boca, aquele riso inigualável, que segundo Homero é próprio dos deuses.

CAPÍTULO 16CAPÍTULO 16ESTRELASESTRELAS

Quando uma ovelha negra chegou cuspindo no chão da caverna e falando:

- Zaratustra já não é mais um sábio! – e saiu desdenhosa, revirando os olhos, houve uma explosão geral de riso. Todos os animais se animaram com essa. Ele disse:

- Já não sou mais sábio nem para uma ovelha negra! Bendita seja! Vinde o azar!

Dormiu feliz de subtrair um fardo – a sapiência – quando, para irritar, chegou um dos discípulos, cismado com o “ser poeta”, polemizando meu dorminhoco profeta:

- Dissestes que os poetas mentem demais. É verdade essa grande mentira?

Sufocamos de rir. O sujeito permaneceu com a cara que tinha: de otário. Entretanto, um profeta precisa justificar-se em tudo, se quiser um rebanho atrás de si. Então o meu sábio respondeu, o riso no canto esquerdo da boca:

- Julgais que eu falava a verdade? Eu também sou péssimo, mas sou poeta!

Recitou Fernando Pessoa, para me homenagear:

- “O poeta é um fingidor: finge tão completamente que chega a fingir que é dor, a dor que deveras sente”. Sabemos muito pouco. É preciso mentir! – replicou, zombando.

- Todos os poetas julgam que aquele que se deita na erva, numa encosta solitária com o ouvido à escuta, aprende o que se passa entre o céu e a Terra. Se experimentam ternas comoções supõem que a própria natureza está apaixonada por eles. Há tantas coisas entre o céu e a Terra que só os poetas sonharam!

- É verdade. Adulteramos sempre o nosso vinho. – concordou, pois notou que Zaratustra estava de sacanagem com ele.

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Recitou um poema de Olavo Bilac, em homenagem ao Brasil:

“Ora, direis, ouvir estrelas! Certo, perdestes o senso! E eu vos direi, no entanto, que para ouvi-las, Muitas vezes desperto e abro as janelas, pálido de espanto... E conversamos por toda a noite! Enquanto a Via Láctea, como um pálio aberto, cintila. E ao vir do sol, saudoso e em pranto, Inda as procuro pelo céu deserto. Direis agora: “Tresloucado amigo! Que conversais com elas? Que sentido tem o que dizem quando estão contigo?” E eu vos direi: “Amai para entendê-las! Pois só quem ama pode ter ouvido Capaz de ouvir e entender estrelas!”

Aplausos.

- Sempre nos sentimos atraídos para o reino das nuvens! – admitiu o poeta. Antes de se retirar, o poeta disparou mais esta:

- O homem é múltiplo. E cada um de seus estados de alma, cada momento de sua vida é uma realidade. O poeta bebedor de vinho e o místico bebedor de Deus é um sagaz procurador de verdades, que ele insiste em encontrar, mais por medo de esbarrar-se em si mesmo, e que já sabe, não avançará um palmo sequer. Os seres humanos são mais impalpáveis que os mitos. É mais fácil alcançar um mito do que a essência humana. É preciso ser personagem para viver nesta grande comédia que é a vida, nesse teatro de orgulho e erro que é o mundo.

Zaratustra emudeceu, como os pensamentos dele e toda a certeza acerca de tudo o que dizia. O turbante escondia-lhe o perfil. A voz, contudo, voltou, e ele falou no seguinte termo:

- Turvam as águas para parecerem profundos? Que importam a beleza e o oceano? O próprio espírito dos poetas é o rei dos pavões. Se os pavões falassem, seria pela cauda!

Saíram recitando poemas. Por duas semanas andaram na cidade Vaca Malhada.

A madrugada chamava o céu árido. O sol estava por vir. Fui para a caverna copiar as conversações. Os morcegos saíram por gentileza. Minha serpente azul já me envenenava todas as manhãs com o soro do discernimento. Antes de recomeçar meu habitual trabalho, fumei uma tora de qat, fiquei de boa olhando para a lua... Grande demais! Lua azul! Peguei na sacola o livro dos Contos, de Voltaire. Estava enfastiada: até a sabedoria cansa. Queria rir. Li:

“Zadig lastimava: ‘Como é lamentável, meu Deus, passear num bosque por onde passaram a cadela da rainha e o cavalo do rei! Que difícil ser feliz nesta vida! Procurava consolo na filosofia e na amizade. Franqueava a biblioteca a todos os sábios e a mesa à gente de boa

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companhia. Logo viu como são perigosos os primeiros. Explodiu uma grande querela acerca da lei de Zoroastro que proibia comer carne de grifos.

- ¿Como proibir carne de grifo – diziam uns – se esse animal nem existe?

- Tem de existir! – diziam outros – visto que Zoroastro não quer que a comamos.

Zadig procurou harmonizá-los:

- Se houver grifos, não os devemos comer. Se não os houver, muito menos os comeremos. De qualquer modo obedecemos todos a Zoroastro.

Um sábio homem seria capaz de mandar empalar Zadig para a maior glória do sol, recitando o breviário de Zoroastro no tom mais satisfeito do mundo. O amigo Cador (um amigo vale mais do que cem sacerdotes) procurou Yebor e disse:

- Vivam o rei e os grifos! Guardai-vos de punir Zadig: é um santo. Tem grifos no terreiro e não os come. O acusador é um herege que ousa sustentar que os coelhos têm a pata fendida e não são imundos!

- Pois bem – disse Yebor, balançando a calva – cumpre empalar Zadig por pensar mal dos grifos e o outro por falar mal dos coelhos. Ninguém foi empalado, motivo pelo qual vaticinaram a decadência da Babilônia. “Tudo me persegue neste mundo, até mesmo os seres que não existem! – pensou Zadig.”

CAPÍTULO 17_CAPÍTULO 17_SONHOS E “VIAGENS”SONHOS E “VIAGENS”

Viajamos para a ilha Bem Aventurada. Dizem que ela é como um penhasco na porta do inferno, onde o poeta Dante pôs a placa do amor. Houve inquietação com a zombetagem dos marinheiros com o sono de sete dias de Zaratustra. Ao acordar, vagueou como um bêbado procurando sombra. Agarrou-se no mastro, onde vomitou. Ficou três dias sem comer. Caiu em sono profundo de novo. Os discípulos faziam vigílias em roda dele, que acordou angustiado. Falou de um sonho ininteligível para ele, e, sem lembrá-lo, queria que os discípulos o recordassem e o interpretassem, tal como fizera o rei da Babilônia, Nabucodonosor, com o profeta Daniel. Um discípulo pelintra lembrou-lhe o sonho como se fora ele mesmo que tivesse sonhado. Disse o adivinho para o profeta, como um profeta:

- Sonhastes que renunciáveis à vida. Converteu-vos em vigilante noturno e guardião de túmulos na montanha azul, no Palácio da Morte. Olhavam, se me lembro bem, as vidas vencidas. Vossa alma jazia sufocada. Rodeava a claridade da noite. A solidão acaçapava. Um sepulcral de agonia. Leváveis chaves ferrugentas. Abríeis as portas perras: cabeças de mulheres degoladas

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num quarto – trapaceou. O mole de chaves pingava sangue, que jorrou sangue e se tornou hemorragia. Palácio da Morte. Relutáveis para retornar à vida. Sangria desatada. Entrastes num coma profundo. Gritos roucos de cólera continham os sons por largas galerias. Uma ave piava sinistra. Quando mais vos oprimia o coração, era quando tudo outra vez se calava. Silêncio traiçoeiro arrazoava o vosso íntimo. Vossa mulher ia-se como as folhas ao vento. Vossa filha... Uma rainha e um arcanjo, mais propriamente Michael! – adulou. Também um pássaro bicava-lhe o ombro para que saísseis, pois o tal era ninguém menos que o anjo da rainha, Cassiel. Vossa velhice oprimia, enquanto a juventude de vossa mulher o sufocava.

Após enorme esforço, o discípulo de barbas longas e amareladas fingiu recuperar a memória e continuou:

- Sinto a vossa angústia – disse ao profeta, olhando para uma bola de cristal, como se enxergasse além do além. – Empurraram a porta onde uma bela mulher seria empalada por um velho de barbas longas e amareladas. Nisto o furacão os separou violentamente. Entre silvos e gritos agudos cortando o ar, atiraram-vos com um negro ataúde. Silvando, rugindo, o ataúde despedaçou-se e se despediu com mil gargalhadas. Mil visagens de crianças, de anjos, corujas, loucos, borboletas gigantes riam-se. Escarneciam. Tivestes péssimo pressentimento. Caístes, tonteando, ao chão: tal velho será vós. Segunda vez, sonhastes com um filho morto. Gritastes de pavor. Despertou-se o grito. Tornou-se em vós, o grito apavorante – revelou o sábio discípulo que nada sabia além de contar histórias para quem as acreditasse. Vós – tornou o intérprete de sonhos olhando fixamente em Zaratustra – sereis o vento de silvos que arranca as portas do Palácio da Morte, mas também o velho de barbas longas e amareladas a perseguir a mulher que desconhecerá para depois reconhecer. E amar loucamente.

Quis esbofetear aquele picareta. Precisava anotar tudo e segurar o ciúme, esquecendo-me de que tudo aquilo já havia acontecido. Ou ia acontecer. Prosseguiu outro puxa saco:

- Em verdade – falou outro pilantra – ele chega a mil gargalhadas infantis rindo de todos os guardiões noturnos dos sepulcros que agitam as chaves enferrujadas com sinistro som – ludibriou. Como! Bizarro, pensei. E imbecil. Como pode um profeta crer em tais palavras? Mitos! O grito da mulher, o sangue pingando, a hemorragia... São lendas! Zaratustra está muito doente.

Prosseguiu o discípulo pelintra a interpretar o que nem sonhou – mas que muito nos assustou:

- Vós espantareis e derribareis o vosso riso. O desmaio e o despertar provaram o vosso poder sobre eles, profeta – lisonjeou o esperto.

- Eu bem sabia. Mostrastes-nos novas estrelas e esplendores noturnos – adulou o outro, piscando o olho para o intérprete. – Estendeste-nos o riso com um toldo ricamente matizado!

- Sonhastes com nossos inimigos – emendou outro. – Mas assim como despertastes deles e voltastes, eles vão despertar a si mesmos e retornar para vós! – amedrontou o orinomante a um Zaratustra confuso com tantas adulações.

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Impávido, ele olha em volta como se não conhecesse ninguém, para descontentamento de muitos. Súbito, ergue-se e pede comida.

- Quero penitenciar-me dos meus maus sonhos, que mal lembro. Os adivinhos devem comer e beber à vontade.

Estranhei, pois ele sempre come com os animais. Depois olhou para os discípulos. Balançou a cabeça, coçou a barba. Senti-o preocupado com a idade. Com o sonho. Discutimos muito de volta à caverna: ele confiava mais nos discípulos do que em mim. Passando pela ponte do Bosque Esperança, estava rodeado de aleijados e mendigos. Um deles suplicou:

- Podeis curar cegos, fazer andar coxos, aliviar a carga pesada ao corcunda?

Responde francamente:

- Se ao corcunda se tira a corcova, tira-se-lhe o espírito. Se ao cego restitui-se a vista, verá na terra muitas coisas más. Se ao surdo devolve-se o bom ouvido, ouvirá o que não queria. Se ao mudo devolve-se a voz, falará o que não devia! O que menos me importa é ver que a este falta um olho, àquele o ouvido, aqueloutro a perna, a língua, o nariz. Não há milagres.

Zaratustra desabafou:

- Ando entre os homens como entre fragmentos e membros de homens. O mais horrível é vê-los destroçados e divididos como em campo de batalha e de morticínio.

Lembrei-me do personagem Cândido, de Voltaire, abandonando o cenário da guerra, andando absorto entre pernas e braços. Abri meu livro sagrado.

“Primeiro os canhões derrubaram cerca de seis mil homens de cada lado. Em seguida, a mosquetaria varreu do melhor dos mundos uns nove a dez mil marotos que lhe infetavam a superfície. A baioneta foi também a razão suficiente da morte de alguns milhares de homens, o que montava a umas trinta mil almas. Cândido, que tremia como um filósofo, ocultou-se o melhor possível durante aquela heroica mortandade. Enquanto os dois reis mandavam cantar Te Deum, cada qual no seu campo, tomou ele o partido de ir raciocinar alhures sobre os efeitos e as causas. Passou por cima de montões de mortos e moribundos e alcançou primeiro uma aldeia vizinha. Estava reduzida a cinzas. Velhos crivados de golpes viam agonizar suas mulheres degoladas de cujo ensanguentado seio pendiam crianças. Além, soltavam os últimos suspiros raparigas destripadas depois de terem saciado os desejos naturais de alguns herois. Outras, queimadas, gritavam para que lhes acabassem de vez com a vida. Miolos espalhavam-se sobre a terra ao lado de pernas e braços amputados. Cândido fugiu o mais depressa possível para outra aldeia: tinham-na tratado da mesma forma. Sempre a andar por sobre membros palpitantes ou através de ruínas, Cândido deixou, enfim, o teatro da guerra.”

Tornei a ouvir:

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- Se os meus olhos fogem do presente para o passado, encontram o mesmo sempre: fragmentos humanos. Quem é Zaratustra? Um profeta com vontade de clarear as mentes e os corações fatigados por doutrinas que não se explicam e, ao contrário, sempre mentem. Minha desoladora vontade! Sou escravo de um poder libertador: que é a vontade, amigos?

Todos silenciaram, receando desagradar. Os discípulos, mudos, abriram a orelha, esfregando-a como se pretendessem dilatá-la. Zaratustra respondeu:

- Vontade! Assim se chama o libertador e o mensageiro da alegria. A própria vontade é ainda escrava! O querer liberta, mas como se chama o que aprisiona o libertador? A vontade não pode querer para trás. Não pode aniquilar o tempo, o desejo do tempo e sua mais solitária aflição. Que há de imaginar o próprio querer para se livrar da aflição e zombar do seu cárcere? Todo preso enlouquece, também loucamente liberta-se a vontade cativa. A raiva concentrada é o tempo não retroceder. O que foi, assim se chama a pedra que a vontade não pode remover. A vontade libertadora tornou-se maléfica. Vinga-se em tudo que é capaz de fazer sofrer. Isto é a vingança, a repulsa da vontade contra o tempo e o que se foi.

Eu sabia o desastre que causaria por me intrometer. Mas me intrometi:

- O passado é o cativeiro do desejo enrustido, que grita de ódio, porque abortado no clímax da ansiedade: volúpia de corpos e mentes presa. O querer depende da chave do libertador. É ele quem decide o que há de ser do desejo. Quantas chaves ele terá? Quantos desejos aprisionou? Teria o libertador desejos sobre o querer? Seria ele o próprio cativo de sua vontade e, por conseguinte, impotente diante de seus desejos? Seria escravo de seu poder e de seu querer? Não é qualquer um que pode querer, absolutamente. Há que se ter demasiada imaginação para que nunca se esgote o desejo. Desejos são mitos intocáveis. Irrepreensíveis. Volúpias de mentes cativas ou livres.

Zaratustra fingiu que não escutou. Olhou-me como se ordenasse que eu fosse em linha reta para a cozinha. Prosseguiu no seguinte termo:

- E como naquele que quer há sofrimento, posto que não é permitido querer para trás, a própria vontade e toda a vida deveriam ser castigo. Acumularam-se no espírito uma nuvem após a outra. Até que a loucura proclamou: “Tudo passa, tudo deve passar!” Eis o que há de eterno no castigo da existência: deve ser sempre ação e dívida. A não ser que a vontade acabe por se libertar a si mesma e que o querer mude-se em não querer. Todo o foi-se é enigma, fragmento e espantoso azar. Acaso a vontade livrou-se da sua própria loucura?

- Mas a vontade cria – retruquei. – Se não a tivéssemos, nenhum membro se moveria. O tempo detém a chave do querer. Seria o tempo o cativeiro da vontade, ou a vontade a aniquiladora do tempo?

Então ele reconduziu o pensamento sem perder o fio do discurso e sem dar a mínima para mim:

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- Tornou-se a vontade para si mesma redentora e mensageira de alegria? Acaso esqueceu-se do espírito de vingança?

- Infelizmente não – respondeu um dos discípulos.

- Então quem lhe ensinou a reconciliação com o tempo e com qualquer coisa mais alta?

- Deus. – intervi novamente. – o dono de todos os tempos.

Ele resolveu responder, para o espanto de todos:

- Mas é preciso que a vontade queira coisa mais alta do que a reconciliação!

- Como? – perguntou outro. – Quem a ensinará a retroceder?

O profeta se confundiu e, cofiando a barba crescida, parafraseou Voltaire, olhando para mim:

- Prefiro deter-me a perder-me. Não posso sondar os desígnios do Criador, assim como não tenho a faculdade de voar quando quero voar, posto que não tenho asas.

Enrubescido da planta dos pés ao topo da cabeça, os olhos arregalados, ele me devorava. Olhar havia nele que penetrava nos meus pensamentos. Riu amargamente e disse:

- É bem complicado viver entre os homens, porque é tão difícil uma pessoa calar-se! Sobretudo para um falador. – virou-se para mim, fuzilando-me com o olhar. Tive vergonha. Quis sumir. O corcunda, temeroso, ocultou o rosto no enorme capuz. Pensou:

“Por que Zaratustra fala de um modo a seus discípulos e doutro a si próprio?”

Arrastei a sacola de livros para a caverna. Antes, ouvi:

- Vede – olhando fixamente para o corcunda. – Qual é o meu declive e o meu perigo? Meu olhar precipita-se para o cume, enquanto minha mão quereria fincar-se no abismo! Ao homem aferra-se a vontade. Do alto, atrai outra vontade, que nunca consegue realizar, por não superar o medo de si mesmo. Por isso vivo cego entre os homens, como se não os conhecesse: para que as minhas mãos não percam inteiramente a fé nas coisas sólidas – e até nas imaginárias.

Fé! – pensei. – “A fé consiste em acreditarmos não naquilo que nos parece verdadeiro, mas naquilo que se apresenta como falso e absurdo ao nosso entendimento.”

- Acredito! – gritei, depois de anotar mais esta máxima de Voltaire. – Submetem-nos a inteligência a ponto de acreditarmos que o profeta Maomé viajou por sete planetas com meia lua escondida no bolso, nas quinhentas encarnações do deus Fô, de Vishnu, na força de

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Zoroastro, do Brahma e de milhões de deuses. É mister acreditar em tudo o que vem do alto. Para descer com alhos e cebolas, basta correr atrás de um rebanho.

Zaratustra, cerrando os lábios, perguntou aborrecido:

- Quem entre vós quer me enganar? Deixo-me enganar para não estar em guarda com os enganadores. Senão, como poderia ser o homem uma âncora para o meu barco?

- Já não me sinto em uníssono convosco – disse-lhe. Lembrai do que dissestes certa vez na caverna: “Se procurardes a verdade, então pesquisai. Não sereis feliz. Mas se quiserdes ter a consciência tranquila, não serdes enganada, persigai-a. Mais uma vez: não sereis feliz. Mas estareis perto da verdade”. Pois bem. Qual é a verdade? Quem sois vós para determinar que a verdade é mais importante do que a felicidade? E acaso a felicidade está em vossas mãos? Desculpai-me o atrevimento, mas posso suspender sobre mim mesma o meu juízo. Sou bastante íntegra no que falo e faço.

Os discípulos olharam-se atônitos, pois Zaratustra se feriu. Não era a minha intenção. Lavamos roupa suja em público, atitude pela qual não me perdoo:

- O que não quiser morrer de sede entre os homens deve beber água em todos os vasos. O que preferir ser puro deve lavar-se em água suja. Não importa, velho coração, feriu-vos um infortúnio! Gloriai-vos!

- Pareceis ler os meus pensamentos. Toca o sino dos sete ventos e o que sinto? Que ainda amo o que mais me trai. A febre desse mal tornou-se convulsão.

- Não é vaidade ferida a mãe de todas as tragédias? Todos os vaidosos parecem-me bons atores. Querem divertir-se com suas falsas lágrimas e risos. São os vaidosos os maiores falsificadores da própria vida. Os médicos da melancolia! Apegam-se ao homem como a um espetáculo!

Foi a última gota. Peguei minha sacola, cruzei meus olhos com os dele, deitei na relva. Pássaros cantavam melodias relaxantes junto ao gotejar das fontes d’água. O silêncio invadiu. As águas desciam a ribeira batendo nas pedras. A melodia da natureza no ventre do bosque amorteceu o ambiente. “Que bom estar viva.”, pensei. “Como blasfemo contra mim mesmo”, deduziu o corcunda. O caolho fechou os olhos, abriu mais os ouvidos. Todos entramos em transe. Todavia, um profeta vaidoso puxou-nos da harmoniosa sensação para proferir mais parábolas sobre a vaidade. Os discípulos intérpretes de sonhos, a quem batizei “Daniel’s” adoraram. O coxo tocava flauta. Disse o vaidoso profeta:

- Não vou me privar da vista dos maus por uma timidez igual a vossa – falou, ríspido. – Vossa alma está tão longe do grande que o superado vos espantaria com a bondade. Fugiríeis ante a ardência solar da sabedoria em que o prazenteiro banha a grande nudez!

Foi um soco no meu estômago vazio. Zaratustra levantou-se. Os discípulos seguiram-no. Avisou que partiria por longo período. Pensei na solidão. Senti-me desamparada, por um lado, mas aliviada, por outro. Precisava da solidão. Ainda que doesse.

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Despediu-se olhando fixamente, segurando meu pescoço e dizendo:

- Disfarçado quero estar para vos desconhecer e me desconhecer.

Foram. A dor atravessou o hemisfério junto ao sol. Trouxe a melancolia com a lua cheia. Naquele dia o semblante dela parecia denunciar o meu espírito triste. Que fazer, Deus, se não existis para os ateus? Tenho argumentos de criança para combatê-los. Mas os grandes não lutam com as crianças! São pobres demais, porque a vida roubou-lhes tanto que eles nem creem no poder das crianças! Fingem ter um Deus vivo, mas o caso é que o Senhor está morto – e bem morto. Queria defendê-lo. Mas como travar batalha contra o mundo? Matando-me? Louvando-vos? Não quero descansar à sombra da onipotência, mas brilhar junto a ela! Onde está o meu poder? Por que sangrar sozinha todas as dores deste mundo sem louvar a Criação nem poder alçar o voo cósmico? Quero viver. Dai-me vida, Deus! Quereis enterrar-me com esse castigo infernal? Arde como o fogo do inferno. Não posso conviver comigo mesma, porque não sou eu a imagem refletida no espelho. É de uma mulher e sou uma criança. Não vedes o tamanho das minhas pernas, do meu coração e dos meus olhos? São enormes demais para um mundo tão pequeno! Sou ávida pela vida, mas o caso é que Deus me prende num corpo e não posso viajar pelo Universo.

Fiquei três dias de cama. Quando levantei, corri ao conto Micrômegas, onde Voltaire vê, do alto de sua sabedoria, a pequenez de nosso globo:

“A nossa existência é um ponto, a nossa duração um instante, o nosso globo um átomo.”

“Micrômegas apanhou o navio dos filósofos e, colocando-o na palma da mão, ainda pensava que a Terra fosse habitada apenas por baleias. Mas deduziu com o anão de Saturno que se tratava mesmo de um navio. “Alguém minúsculo pensa neste montículo de lama!” – admirou-se. Arrancou a lasca da unha para fazer um cone e conversar com os insetos filosóficos, falando baixinho, para não fazer o barulho de um trovão. Maravilhava-se por ver que seres tão pequenos como os homens tinham capacidade de conversar, medir, pensar. Chegou a crer que os terrestres eram puro espírito.

- Oh, átomos inteligentes, deveis gozar da mais pura alegria sobre o vosso globo, pois tendo tão pouca matéria e parecendo puro espírito, deveis passar a vida a amar e a pensar, o que constitui a verdadeira felicidade.

A tais palavras, todos os filósofos abanaram a cabeça. Um deles, mais franco que os outros, confessou:

- Temos mais matéria do que é necessário para fazer muito mal, se o mal vem da matéria, e temos espírito em demasia, se o mal vem do espírito.

O gigante perguntou-lhes o que entendiam sobre a alma:

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- A alma – respondeu um sujeito peripatético – é uma enteléquia, razão pela qual tem o poder de ser o que é. É o que declara expressamente Aristóteles, página 633 da edição do Louvre: “Eντεχειαέστι”.

- Não entendo bem o grego – disse o siriano.

- Nem eu tampouco – confessou o inseto filosófico.

- Por que então citais um grego? – tornou o siriano.

- É que cumpre citar aquilo de que nada se compreende na língua que menos se entende”.

Zaratustra avançava pelo caminho sem rumo.

- Que sucedeu? Estou confuso, disposto a retirar-me para longe. Um urso regressando sem alegria a seu antro.

Silenciaram.

- A lua! Teria o libertador poder sobre o próprio querer?

Silenciaram-se.

“As palavras mais silenciosas trazem a tempestade. Pensamentos que vêm com os pés de lã dirigem o mundo.” – disseram-lhe as vozes do deserto. Ele se assustou e olhou para dentro de si. Pensou:

“É preciso tornar-vos criança. Deveis vencer a mocidade se quiserdes tornar a ser criança!”

Tirando o turbante, conversou consigo mesmo:

“Vossos frutos estão maduros. Vós é que não estais.”

- Tenho o que dizer, mas não o que oferecer! – confessou, embargado. Ter o que dar! É preciso ter um universo dentro de si para ter o que dar! Mas também é bom ser bastante pobre para receber este universo. Teria Zaratustra se esquecido do conselho do sábio velho? “Vede, então, como vos arranjareis com as vossas esmolas!” Chorou, como agora choro ao vê-lo pelo espelho banhado de lágrimas. Pegou o turbante e não o colocou na cabeça: segurou-o como a um bebê. Quis ser um bebê. Eu passeava pelo Bosque Esperança, pensando na liberdade e na escravidão que fazemos com nossas escolhas. Vi o diabo trepado na árvore, rindo de mim. Gritei. Implorei que me deixasse em paz. “São os espíritos tenebrosos que vos atormentam!” Peguei minha medalha milagrosa, resplandecente de luz. O corvo grasnou e, vindo ao meu encontro, trouxe a águia, envoltos numa luz violeta que me cegava. Nossa Senhora descia do céu, radiante, a cabeça rodeada de estrelas, as mãos jorrando luz.

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E me disse desta forma, Nossa Senhora das Graças:

- “Estes raios são a figura das graças que derramo sobre todos aqueles que me pedem e aos que trazem com fé a minha medalha.”

Cantei para ela, ainda tremendo pelo susto. E, ao vir da aurora e do crepúsculo, vi Zaratustra trepado numa montanha, abandonando os discípulos. Sozinho, no deserto, sentou-se à beira de uma caravana. Cansou-se de si mesmo e de sua caminhada. Sentia-lhe morrer na pele todo o pensamento cristalizado que veio para ensinar. Ele sabia que tinha muito mais a aprender. Mesmo assim, prosseguiu no caminho da solidão, o peito morto por dentro. Doeu em mim a angústia dele. Senti um sufoco, uma grande falta de ar. Fumei qat o dia todo para melhorar, enquanto via na lareira os zig-zags de um profeta em constante dúvida sobre o que ensinar. Apaguei a lareira, mas ela acendeu-se sozinha, o rosto do profeta cansado me falava, ordenando que lhe anotasse cada vírgula:

- Tudo é sempre igual. Nada merece a pena. O mundo não tem sentido. O saber asfixia.

- E a verdade? – interroguei – Também asfixia?

- Procuramos a verdade. E não encontramos nenhuma no meio de várias!

- Que decepção vos atormenta?

Ficou, por fim, melancólico:

- O mel que tenho nas veias é que torna mais espesso o meu sangue e torna mais silenciosa a minha alma... – e sumiu.

Nas noites sonâmbulas eu descia as rocas à beira mar, procurando o caminho do túnel. Certa vez, embrenhei-me pela caverna para acender a fogueira, vi o rosto do profeta apagado, como se estivesse dormindo sobre sua dor. Sentei-me à beira da colina. Foi quando me lembrei de Zaratustra envenenado pela serpente, de olhos amarelos, cabelos desgrenhados debaixo do turbante pardo. O grito dele me assustou. A serpente e a águia entreolharam-se. O corvo grasnou. Era uma conversa muito animal e eu ainda era apenas uma simples mulher. O tempo estava parado. Avançavam os ponteiros lentamente, o relógio da vida respirava silencioso. Era uma angústia temerosa. Dia após dia esperando notícias. As traições preocupavam menos que a falta de notícias. “Precisais viajar. Trepar sobre montanhas é só para os que têm pernas altas. Vossas pernas ainda são pequenas demais!” – constatou.

A lua surgiu crescente. Sentei-me no colo dela vestida de coringa, as pernas cruzadas, a luneta na mão a investigar o Universo. Pediu-me prosa. Dei-lhe um monólogo. Recordei-me da advertência de Zaratustra no dia da traição com o peixe listrado no mar. “Cerrareis os dentes e clamareis: Estou só!”

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- Estou só. Hoje só. A música, a fumaça, a fogueira. A caverna. Tudo em ordem. Hoje estou só. Não consigo dormir, nem acordar, nem comer, nem falar. Uma pessoa lá embaixo. Tem música. O vento sopra forte. Hoje estou só. Não consigo me achar! Dúvidas, tropeços, erros, enganos, traições, deslizes, dramas. Tudo em vaivém. Tudo vai e vem. Pelejo em não suplicar a companhia de ninguém. Hoje estou só! Tem até lua crescente no céu estrelado! Converso com a lua. Não me responde mais.

Fui procurar meu profeta, que há meses sumira. Desci em meio à neve. Tudo branco, nada enxergava. Nos caminhos tortuosos da montanha azul, cantei músicas em latim para a lua, pedindo proteção. Sentei-me num rochedo para escrever. “Um sim, um não, uma linha reta, uma meta” – Nietzsche! Alguém! Acodem-nos os mortos, o Universo na solidão.

Abeirando-me das encostas escorregadias, descia. Descia olhando para o céu. Tiritava de frio. Flocos de neve caíam grossos. Dialogava comigo. Tentava evitar a dor pela ausência do profeta – era pedir um milagre. Enquanto o vento fustigava os galhos congelados das árvores, pareciam falar vozes distantes. Arrastada pela força da vontade de encontrar um fugitivo, descia a montanha. Obsessão. Que desespero sentiu Zaratustra quando, subitamente, gritei. Ecoou o grito no lugar. Flocos de gelo congelavam minha roupa, ensopava-me. Tive medo. Chorei, por fim, encorajada pela nevasca. “Vida só, branca e carregada feito um céu tempestuoso.” Noite triste. Quis chorar com a tempestade. Chover com o céu. As relampejadas furiosas enfureciam-me como a um mar. Não sabia mais onde estava. O caminho deserto, cheio de bifurcações. Caminho branco. Molhada, eu voltava. Subi com fome e frio. A imagem de um Zaratustra triste levitando na névoa como um fantasma fazia-me pensar que delirava. Mas era ele, sempre debochado:

- Olhais para o alto quando quereis elevar-vos! Eu, como estou por cima, olho para baixo!

- Idiota! Otário! – xinguei a sombra fugidia que escalava outra montanha. Era ele, disfarçado de alegre.

- Como estais saborosa toda molhada! – gargalhava, lambendo os lábios.

- Onde estais?

- Jamais me alcançareis enquanto por mim sentir amor. Agora ordeno que vos percais e vos encontrareis a vós mesma. E só quando me houverdes renegado tornarei para vós. Então vos buscarei com outros olhos, porque assim superareis o mais vil dos sentimentos: o amor.”

- Divino, incendiais o meu coração com lágrimas hipócritas! Eu te odeio!

Ele desapareceu. Voltando cheia de lama, de raiva, de fome, de frio, gritei ao morto mais vivo que conheço: “ELE!” Então berrei, congelada, esfomeada de solidão:

- Voltaaaaaaaire!!!

Nenhum sinal.

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- Não sou Rohan! Estou presa na extensão da matéria e do espírito, algemada diante da vida, algemada... feito vós na Bastilha! ... Voltaire? Socorro!

Apareceu, rindo, os olhos sagazes, os lábios sorridentes em meia lua:

“- Minha liberdade não é mais livre nas coisas que me parecem indiferentes do que naquelas em que me sinto submetido a uma força invencível. Ser livre é poder. Sois?”

- Sim? Ou não? Não sei bem, amigo. Nem sei mais o que quero e tampouco o que seja a liberdade.

“- Quando posso fazer o que quero, eis a minha liberdade. Mas quero aquilo que necessariamente quero, pois de outro modo eu quereria sem razão, sem causa, o que é impossível. Minha liberdade consiste em andar quando quero andar, desde que não sofra de gota.”

Gota! Sumiu-se Voltaire numa gota d’água. Mesmo assim, falei:

- Não somos livres para escolher o destino, Voltaire! Não pedi para amar, Voltaire! Era tudo o que eu não queria, e vós, que me acompanhastes por tanto tempo naquela vida sabeis disto muito bem. E por que esse amor insano? Que mal fiz a Deus? Quero ir embora! Me leve ou pulo naquele abismo... mas de qualquer forma vamos acorrentados a nós mesmos...

Voltou a falar:

“- Minha liberdade consiste em subjugar uma paixão, quando meu espírito me faz senti-la perigosa e quando o horror dessa ação combate poderosamente o meu desejo.”

Já estava na caverna. Troquei-me. As gotas tamborilavam no chão. Bebi um chá bem quente. A imagem de Zaratustra levitando na fogueira, escalando a montanha.

“Cada qual vive-se a si mesmo, unicamente. O melhor é não existir caminhos atrás de vós. Vossos pés mesmos apagaram o caminho detrás. Para ver muita coisa precisamos olhar para longe de nós. Esta dureza é extremamente necessária, Jasmim.”

Vi uma ebulição na panela. Os vapores convidavam para uma etérea reflexão. Pensei nos vapores como nos momentos divinos, nos raros momentos que evaporam. Meus olhos acompanhavam a fumaça distante junto ao perfume da carne, enquanto uma voz distinta descia, criteriosamente, a sussurrar-me sensualmente um doce e convidativo pecado existencial. O gentleman Dryder abeirava-se a me matar homeopaticamente:

“- Dos propósitos aos remorsos, dos erros aos desejos, os mortais passeiam sua loucura. Nas infelicidades presentes, na esperança dos prazeres, não vivemos nunca, esperamos a vida. Amanhã, amanhã, diz-se, vai cumular todos os nossos votos. Amanhã vem e nos deixa ainda mais infelizes. Qual o erro, ai de nós! Do cuidado que nos devora? Nenhum de nós quereria

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recomeçar o caminho. De nossos primeiros momentos amaldiçoamos a aurora, e, da noite que vem, esperamos ainda o que em vão prometeram os mais belos de nossos dias.”

Whisky escocês. Suco derradeiro da vida. Destilado com o melhor fermento! Vou dizer da solidão e da decadência moral por que passa o mundo: o fundo do poço é mais rico que a água mais cristalina. É nele que vemos a sujeira da terra, da água, dos homens. É no fundo do poço que gritamos por socorro e estendemos as mãos para Deus. Nele está a verdade. Não somos tão enganados; porém, mais tristes, porque sozinhos.

“- O amor! a qualquer coisa basta-lhe viver. Eis o perigo do mais solitário. Prestam-se ao riso a minha loucura e a minha modéstia ao amor. Onde já não se pode amar, deve-se passar.” – sussurrou Zaratustra, voltando a ordenar que lhe anotasse:

“- A compaixão é o abismo mais profundo: tão fundo quanto o homem vê na vida, assim vê no sofrimento. Onde há um grande amor é sinal de fecundidade. Pelo sofrimento fujo. Todos serão para a posteridade: o sofrimento e a felicidade. O vento sopra pelo orifício da fechadura e ordena: – ‘Andai!’ Estava acorrentado. A ânsia de amor estendia-me esse laço para me prender. Ansiar é já estar perdido. O sol do meu amor abrasava-me. Já desejava o inverno.”

- O sol do meu amor derreteu o gelo do meu coração. Devo partir?

“- Pelo contrário. Vossa jornada é longa...”

Ó, céu! Redonda abóbada de cristal! Abençoai-me na súplica do novo que me corrói o estômago. Que todas as coisas são batizadas na fonte da eternidade e da serenidade, além do bem e do mal. Mas o bem e o mal nada são além de sombras interpostas, úmidas aflições, nuvens passageiras. Como num jogo onde peças se encaixam.

Zaratustra sussurrou de novo:

“- O que me faz sorrir não é apenas a vergonha de ser dois: é o acaso.”

O acaso não existe. Nada é sem causa. Um efeito sem causa é apenas uma palavra absurda. Inventamos essa palavra para exprimir o efeito conhecido de uma causa desconhecida. O mundo é até mais profundo do que já pensou o dia. E essa profundidade é supérflua para os que se dão ao mundo. É um sonho que não se acaba e que não se cansa de sonhar. Uma alegria falsa: ébria. Uma tristeza falsa: bêbada. Que o sentimento é todo ilusão. Some-se feito névoa e se ri com escárnio dos que procuram apalpá-lo. A felicidade deixa-se apanhar pela fralda cosida a pano leve, com os retalhos da imaginação e com a tesoura da vida improvável. Choro trancafiada por medo do outro. O outro sou eu, mas eu não sei como é ser o outro, a não ser sendo o outro. Queria ser o outro para saber tudo o que ele sente. Queria descobrir em cada um o sentimento que passeia na vigília, nas horas boas e difíceis. Como o outro sente o outro? Como Jesus Cristo sentiu o mundo? Por que vim para o deserto? Por que deserto sou. Quero água, que meus olhos molham meu velho casaco. Estou trancafiada no breu da vida e grito: ninguém me escuta. Tamanha é a grandeza de Deus, que sente as dores do mundo e não morre de asfixia.

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Gritei aos céus por socorro. Nenhuma estrela se moveu. Ficou Zaratustra impávido diante da absurdidade que ouvia? Onde estão os argumentos do superar-se? Tenho os do amor, mas não sei se valem, porque nunca pude observar as retas e curvas com as réguas do amor. Agora observo a geometria do céu a olho nu, com olhos de quem muito viveu e que, portanto, enxerga torto. Tudo está desenhado de tal forma que não posso tocar um dedo na caricatura da vida.

Zaratustra voltou após sete meses. Era noite, mas ele queria desabafar:

- Meu olhar curioso deteve-se na hipocrisia. Quando estive acolhido numa casa de família, toda a bondade que vi foi fraqueza. Toda a justiça e piedade, fraqueza. Abraçam modestamente uma pequena felicidade – e cuspiu para o lado.

Anotei tudo sobre aquela a que designei como “A Fuga”. Como fosse noite bela demais, varamos a madrugada. Na manhã, os raios de sol douravam corpos entrelaçados. Engravidei. À tarde, voltei ao trabalho com o mestre. Eu já não passava de um lápis oval que apenas escreveria. Comecei a procurar saída para tal cilada. Enquanto eu preparava a nossa família, ele destruía a dos outros, “pequena demais para habitar um mundo superior”:

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CAPÍTULO 18CAPÍTULO 18O PARADOXO O PARADOXO

Recomeçaram as anotações... - No fundo da simplicidade só têm um desejo: que ninguém os prejudique. Por isso são amáveis com todos e praticam o bem. É covardia, mas chamam virtude. E tudo o que senti foi mesquinhez. Quando a vida emudecia, apanhava-lhe o olhar no espelho, a fim dos vossos olhos me falarem.

- Os espelhos mentem –. Quem passa pela vida vê sinais no céu, estrelas, constelações. Os olhos não espelham essas visões, porque pequenos demais para uma dimensão tão grande. Há quem passe pela vida e nem saiba o porquê, mas os que investigam de boa vontade os segredos do mundo tornam-se fantasmas. E é em torno deles que gira o mundo.

- O vosso semblante, cara mestra, ainda é sombrio. Nele se projeta a sombra da mão. Ainda está na sombra o vosso olhar. Eu falando ao anjo por detrás da discípula! Com a face e os membros pintados de mil maneiras, assim me assombrastes. E com mil espelhos à roda, adulando e repetindo o efeito de vossas cores. Quem vos reconheceria? Amo-vos eternamente!

Juras de amor são belas e eternas. A mulher que pisa firme na areia conhece bem a marca dos pés. A traição viria rápido. O mergulho tornou-se sem volta: era profundo demais.

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Acordamos quatro da manhã. Zaratustra foi buscar lenha. Voltando, ele veio com essa:

- Jasmim, quereis um homem só para vós? – disse rindo. – Amais com desdém?

- A ponto de trair o desdém também?

- Anotai:

“Para ninguém ver o fundo do meu íntimo e minha última vontade, inventei o longo e claro silêncio. É melhor calar a falar aos surdos do coração. Meus azares e revezes inspiravam piedade. Deixai vir a mim o azar: é inocente como uma criança! A criança rodopia feliz sem pressentir a teia de aranha do futuro. Queria que o tempo parasse e rodopiássemos sem causa nem efeito, sem sistemas nem anátemas. Queria ver crianças sendo de fato crianças.”

- Tranquei minha alma por se gelar com o gelo do conhecimento. O inverno cavernoso penetra em nossa morada. Para que viver assim, se na verdade não estamos juntos? Onde não se pode morar, deve-se passar. “Além, todo discurso é vão. A melhor sabedoria é esquecer e passar. O que quisesse compreender tudo entre os homens teria de aprender tudo.”

“Assim a luz da virtude caminha, mesmo depois da obra cumprida. Fique esquecida e morta: o raio de luz prossegue a viagem. Sede a vossa virtude o vosso próprio ser e não qualquer capa: eis o fundo de vossa alma, virtuosos!”

“Há os que andam pesadamente, chiando como carros pesados: falam muito de dignidade e virtude: chamam virtude ao seu freio. Sempre os vi preparar veneno com precaução, tapando as mãos com luvas de cristal.”

“O que eu não sou: isso é para mim Deus e virtude.”

“Querem despojar os inimigos com a virtude. E só se elevam para rebaixar os outros.”

- Tudo cai na água. Tudo. Mas quase nada cai em água profunda. Lançaram as vistas para o fundo do poço: agora se reflete do fundo o seu odioso sorriso. Quando, ao sair da minha soledade, atravessáveis pela primeira vez uma ponte, não dei crédito aos meus olhos, não cessei de olhar e acabei por dizer: “Isto é uma orelha! Uma orelha do tamanho de um homem!” De perto, por trás da orelha movia-se algo tão pequeno, mesquinho e débil que fazia dó. A monstruosa orelha descansava num tênue cabelo. E esse cabelo era um homem! Podia-se reconhecer uma caraça, uma alma agitada no cabelo.

- A orelha, o cabelo e a língua conversam entre si? Porque o cabelo tapa as orelhas, mas se esquece de amarrar as línguas. E da inveja nascem bastantes cabelos, inclusive nas orelhas. A inveja é a maior lástima para o que não vive.

“Todos os seres humanos querem ser contemplados e socorridos. Com verdades dissimuladas, com as mãos loucas e enlouquecido coração, ricos em piedosas mentiras. A

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piedade ensina a mentir aos que vivem entre os homens. A estupidez dos bons é insondável. Ocultar-me é minha riqueza, porque todos se mostraram pobres de espírito. A mentira da minha compaixão foi olhar e sentir em cada um o que para ele era bastante espírito e o que era espírito demais.”

Rimos de nossa condição espiritual. Depois cantamos abraçados pelo véu da tarde até adormecer.

“Onde há força, conquista-se também o número, que é o que tem mais força.”

Os números marcam dias e horas que conto a cada instante na esperança de rever os meus. A força zomba de todos os mundos infinitos!

“Amar-se a ponto de esquecer o outro, pois a compaixão e a piedade são armas perigosas. O que mais odeia o que recebe, senão ser humilhado por estender as mãos ávidas com necessidade e rancor por receber em vez de dar? O que recebe quer dar ou pagar. Por isto é fundamental não rondar fora de si, mas no próprio eixo. Como o sol. Gira, mas em seu próprio eixo, não em torno dos outros.”

Fomos para o deserto. Os códigos embaixo dos lençóis de areia escondidos como um baú de tesouros. Quando decifrarei? Dourado e azul fotografavam em minha mente uma tarde de enigmas. Ventos açoitavam-nos ao crepúsculo. Pessoas montadas em camelos lembravam o enorme fardo da vida. E do rondar fora da própria vida. O milagre da vida num grão de areia. O crepúsculo respirando no mar, arrastando junto toda a vivência do dia para o hemisfério inferior. Leis do deserto. Lençóis de areia. Senti-me no ventre da Terra, acalentada pelo amor do homem e do Criador.

A noite vinha selvagem, vermelha como Marte. Enquanto Zaratustra dormia, fui à beira da Montanha Azul. O pássaro distante piava feito coruja. E uma coruja planou sobre o meu ombro. Falou-me a sinistra coruja do deserto:

- A que carregais no ventre é vossa mãe, não filha. Será vossa libertadora no arco-íris. Por que o mal do mundo não existe por si e este será o enigma que tereis de desvendar. Assim, a origem é o meio que leva ao fim e ao começo. “Tudo eternamente retorna”, diz o profeta. E vós, profetisa azul, retornareis!

Transformou-se em camaleão. Quando eu ia perguntar quem era, o camaleão tornou-se coruja e voou longe, não sem antes piscar um olho, como se me indicasse o caminho. Uma estrela atravessou o horizonte. No que a lua, já lambendo o mar, sussurrou:

“- A lua hoje está cheia do branco, alvo e puro como a brisa da madrugada. E gira encanto e gira pelada!”

- Gostastes?

“- Homenagens massageiam o ego até de um satélite. Iluminarei vosso caminho nas duras sendas da Terra.”

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- Que sabeis dos meus caminhos?

Desconversou.

“- Átopos! Inominável! Inqualificável, vosso poema.” – elogiou a matreira.

- Eis o desejo: inominável. Não se define e se esgota nas palavras.

“- O amor, profetisa azul, é um encontro sempre frustrado e sempre repetido com um objeto escolhido, justamente para se deixar escapar e que produz, todavia, a ilusão de haver sido apreendido. Basta amar para cair no vazio... vazio...vazio...”

Transformou-se em satélite. A mão quente de Zaratustra acariciou-me o pescoço. Voltamos para a caverna. A lua estava certa: o alerta veio rápido. Cingindo-me os lombos, o profeta avisou:

- Deixareis o bebê comigo para seguirdes vosso caminho.

- Morrerei sem vê-lo?

- Não. Tereis que seguir o vosso destino. Juro-vos por Orosmade e Zoroastro: respeitarei vossa gravidez.

- Roubareis o meu bebê!

Desaprovei a conduta de Zaratustra sem polemizar e não acreditei que ele cumpriria a palavra de respeitar a gravidez. Quando se dá muita garantia, ensina a vida, é que não há garantia alguma. “Sou muito franco!”, “Sou muito honesto!”, diz o falso moedor de verdades. Pressentia uma grande tempestade – mais uma – em minha vida. Desta vez, com o direito de desaparecer. E agora? – perguntei-me.

Agora é agora. Vivei e sabereis que agora é sempre. É a hora plena. Agora, agora, os raios de sol pintam de ouro todas as colinas: correi e vereis que agora é sempre! Foi o que fiz. As abóbadas dos templos aqueciam-se e brilhavam envermelhadas. Deitei-me no chão, acendi um incenso de rosas para o sol. O corvo emprestou-me as asas. Voei como se voa quando se quer ir embora e nunca mais voltar. Avistei os monumentos persas, atravessei o golfo, as ilhas. Nas alturas reparei como é pequeno lá embaixo – nunca tinha atentado para isto. Então ri com alegria e satisfação de ser grande naquele breve instante e de ter no ventre um bebê. Deitei-me no chão novamente, adorei sozinha o sol pela primeira vez sem Zaratustra. “Como é belo ter um filho no ventre! Queria que os filhos sempre vivessem dentro de mim para nunca perdê-los”.

Gotas caíam das árvores. Choveu. Ouvi o Dr. Sidrac, o capelão Goudman – personagens de Voltaire – , o filósofo Locke e o próprio Voltaire discorrerem sobre a alma, zombando do inatismo cartesiano:

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Voltaire: “Descartes, nascido para descobrir os erros da Antiguidade, a fim de substituí-los pelos seus próprios, assegurou que se pensa sempre e que a alma vem ao corpo já provida de todas as noções metafísicas, conhecendo Deus, o espaço infinito, tendo todas as idéias abstratas, cheias de belos conhecimentos que, infelizmente, esquece ao sair do ventre da mãe!” – gargalhou.

Dr. Sidrac: “Sempre se procurou saber como age a alma sobre o corpo. Seria preciso sabermos, primeiro, se possuíamos uma alma. Ou Deus nos fez essa dádiva ou nos comunicou qualquer coisa equivalente. De qualquer modo, estamos sob o seu domínio. Ele é o nosso senhor, é tudo que sei.”

Goudman: “Dizei-me o que suspeitais: dissecastes cérebros, vistes embriões e fetos. Descobristes algum indício de alma?”

Dr.Sidrac: “Nenhum. E jamais pude compreender como um ser imaterial, imortal, pode viver inutilmente durante nove meses oculto em uma membrana mal cheirosa entre a urina e os excrementos. Pareceu-me difícil conceber que essa pretendida alma simples existisse antes da formação de seu corpo. Para que teria ela servido durante séculos sem ser alma humana? Como imaginar um ser simples, um ser metafísico que espera, durante uma eternidade, o momento de animar a matéria durante alguns minutos? Que será feito desse ser desconhecido se o feto que deve animar morre no ventre materno? Pareceu-me ainda mais ridículo que Deus criasse uma alma no momento em que o homem se deita com uma mulher. Pareceu-me blasfematório que Deus esperasse o momento de um adultério, de um incesto, para recompensar essas torpezas criando almas em seu favor. É ainda pior quando me dizem que Deus tira do nada almas imortais para as fazerem sofrer eternamente incríveis tormentos. Como! Queimar seres simples, seres que nada têm de queimáveis! Como faríamos para queimar um som de voz, um vento que acaba de passar? E ainda esse som, esse vento, eram materiais no breve instante de sua passagem. Mas um espírito puro, um pensamento, uma dúvida! Isto me confunde. Para qualquer lado que me volte, só encontro obscuridade, contradição, impossibilidade, ridículo, sonhos, impertinência, quimera, absurdo, tolice, charlatanismo. É tão belo fazer presente da vida como fazer presente da alma.”

Locke: “Eu não sei como é que eu penso, mas sei que nunca pude pensar senão com o auxílio dos meus sentidos. Que haja substâncias imateriais e inteligentes, não duvido. Mas também não nego que Deus possa comunicar pensamento à matéria. Venero o poder eterno. Não me cabe limitá-lo. Nada afirmo. Contento-me em acreditar que há mais coisas possíveis do que se pensa. A matéria está por toda a parte, mas tem em cada globo propriedades diversas. Deixo discutir aqueles que sabem mais do que eu se a nossa alma existe antes ou depois da organização do nosso corpo. Mas confesso que, na partilha, calhou-me uma alma grosseira que não pensa sempre e tenho até a infelicidade de não conceber que seja mais necessário à alma pensar sempre do que ao corpo estar sempre em movimento.”

Voltaire: “Quanto a mim, gabo-me de ser tão estúpido quanto Locke. Ninguém há de me fazer crer que penso sempre. E não estou mais disposto que ele a imaginar que algumas semanas após a minha concepção fosse uma alma muito sapiente, sabendo mil coisas que esqueci ao

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nascer, tendo possuído muito inutilmente no útero conhecimentos que me escaparam assim que precisei deles e que nunca pude reaprender direito depois.”

Tentei atravessar o véu espiritual que nos separava, mas foi em vão. No entanto, Voltaire, que nunca deixava de ver os meus pensamentos, ultrapassou a intelectualidade com humildade e disse, categórico:

“ - Caríssima! Não há uma substância alma, há apenas uma vida psíquica, função dos nossos órgãos físicos. Sois ainda de carne e osso, factível, fatual. Conversastes com O Tempo e sabeis disso.”

- Voltaire! Como posso... , se não falo o francês?

“ - Cumpre fazer o que não se compreende na língua que menos se entende!”

- Qual o enigma do mal sobre a Terra? – tentei. Ele desapareceu.

Zaratustra acordou bem humorado, banhou-se, envenenou-se como nunca.

- Vamos pregar? ____________________________________________________________________________

CAPÍTULO 19CAPÍTULO 19PREGAÇÕESPREGAÇÕES

Meio dia. Discípulos. Uma montanha de curiosos. Começa o profeta:

- Que busco no percurso da vida? Que sentido tem a nossa vida? A vida é carga pesada ou leve? A única coisa pesada para o homem levar é a si mesmo. Para onde quer que vá, arrasta o peso de toda a existência. Todos nos angustiamos por não saber de onde viemos, para onde vamos e por que estamos aqui. Além do próprio peso, a única coisa pesada para o homem carregar na cabeça é a culpa.

Todo mundo riu, por não entender muito.

- O interior de todos é feito ostra: impalpável. Uma nobre concha se oferece como pérola. Enganamo-nos muito sobre o homem, porque há muita casca podre e triste com excessiva gordura. O homem debaixo dessa pesada casca é difícil de descobrir. O que sabe e diz : “Este é meu bem e este o meu mal”, este descobriu-se.

Ninguém piscava os olhos.

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- Também não me agradam os que chamam este mundo “o melhor dos mundos”. Se é bom sustentar que o mundo corre às mil maravilhas, é melhor lembrar que é possível melhorá-lo com trabalho, higiene, ambição e egoísmo.

Bebeu água e prosseguiu:

- Nunca perguntei qual o caminho que devo seguir. Com escadas de corda aprendi a escalar montanhas. O caminho não existe!

O povo queria milagre na hora em que eu ia começar a pregar. Milagre foi conseguir, de uma sentada, lembrar tudo o que diria, sem anotações, nem a Bíblia nas mãos, quando pessoas “nobres” disfarçadas de povo dispararam com perguntas sinuosas:

- Existe milagre?

- Tudo é milagre. A ordem prodigiosa da natureza, a rotação de cem milhões de globos em torno de milhões de sóis, a atividade da luz, a vida dos animais, são perpétuos milagres. Chamam milagre à violação das leis divinas. Que haja um eclipse do sol durante uma lua cheia. Que um morto faça a pé duas léguas de caminho com a cabeça entre os braços, eis o que chamam milagre.

Bebi água.

- Um milagre é a violação das leis divinas. Basta dizer isso para ver que um milagre é uma contradição. Uma lei não pode ser eterna, imutável e violável, ao mesmo tempo. O Ser infinitamente sábio não fez leis para violá-las: nada pode fazer sem razão. Que razão poderia ter para desfigurar sua obra? Poderia fazê-lo em benefício dos homens. Então deveria ser ao menos em favor de todos os homens! Por que é impossível conceber que a natureza divina trabalhe por alguns homens em particular e não em benefício de todo o gênero humano? Os homens são bem pouca coisa, não passam de um formigueiro na imensidão. É o maior absurdo supor que o Criador perturbe em favor de três ou quatro centenas de formigas, neste montinho de lama, o jogo eterno das forças imensas que movem o Universo! Por que haveria Deus de fazer um milagre? Ousar atribuir a Deus um milagre é insultá-lo! Desonra a Divindade. Os cristãos dizem: “Cremos nos milagres operados em nossa santa religião: cremos pela fé e não pela razão, à qual não queremos dar ouvidos, porque, quando a fé fala, a razão nada tem a dizer. Permitam-me suspender o nosso juízo sobre aquilo que conta um homem simples ao qual se deu o nome de grande: o “Salvador”. Quando um trapaceiro se faz cristão está certo de fazer fortuna. Só o que cria o fim dos homens e o começo, só o Criador dá sentido e futuro à Terra! E à existência humana.

Zuniam vozes confusas. Para o velho preconceito, o novo conceito é incompreensível. Os homens não gostam de mudanças, porque sabem o que deixam para trás, mas não o que vem pela frente.

- Hipócritas! Fingem cumprir a lei de Deus! Deus tornou-se conhecido entre nós? Sim: pelas suas obras. Ditou-nos leis, falou-nos? Pela voz da consciência. Cada um sabe de si. Cada alma é um mundo!

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- Mas – perguntou um dogmático – acreditais que Jesus Cristo tenha uma natureza, uma pessoa e uma vontade? Ou duas naturezas, duas pessoas e duas vontades? Ou uma vontade, duas naturezas e duas pessoas? Ou duas vontades, duas pessoas e uma natureza? Ou...

Outro de preto veio com a Santíssima Trindade e prosseguiu no labirinto de que nem os escolásticos souberam sair e de cujas trevas nunca acenderam uma lamparina.

- Pensais que haja três pessoas em Deus, ou três deuses em uma pessoa? Procede a segunda da primeira pessoa e a terceira das duas outras, ou da segunda, ou apenas da primeira? Possui o Filho todos os atributos do Pai, exceto a paternidade? E essa terceira pessoa vem por infusão, ou por identificação, ou por expiração?

Perplexa com perguntas tão sinuosas, disparei:

- Que homem sensato está prestes a se enforcar por não saber como vê Deus face a face e porque sua razão não consegue desembaraçar o mistério da Trindade? Poderia desesperar-se também por não ter quatro patas e duas asas! O Pai Celestial criou o mundo como um arquiteto. Desenhou o Universo de tal modo que uma substância atrai outra. A lei universal é conhecida pelos físicos, mas os segredos do Criador ninguém pode desvendar. Quanto à Santíssima Trindade, aconselho-vos a consultar os sacerdotes: são especialistas em provocar dúvidas em matérias simples. Para o mistério do mundo somente a Deus cabe a resposta. O de Jesus Cristo e do Espírito Santo, os membros sapientíssimos da Igreja desvendam num passe de mágica. Quanto a mim, adoro em silêncio. Não me cabe profanar a verdade. Deus conhece unicamente a verdade, inacessível aos homens. Adoremos o Criador e pensemos no quanto nos é importante agradecer cada instante, mesmo com tantos loucos querendo pintar Deus como o diabo.

Um alvoroço se fez. Alguns riam, entendendo, outros abriam a boca rosnando sem nada compreender. Cansada, sentei-me a contemplar a multidão marcada pela dúvida e em busca de um Pai Eterno que as protegesse. Senti que este Pai estava bem ali, vigiando a todos nós indiscriminadamente. Pedi que tivessem confiança em si mesmos e que, sobretudo, agradecessem pela vida. Contemplei o céu. Olhei para a multidão. Que distância! Como somos pequenos diante da magnificência divina! Então pedi a Deus que olhasse por todos, agradecendo de joelhos dobrados a Jesus Cristo o perdão, apesar de saber que mais erros atrairiam mais repreensões.

Um tumulto formou-se. Zaratustra olhou-me preocupado. Sacudiu a cabeça, pedindo silêncio. Sentiu o peso de minha pequena barriga na própria mente. Quis que todos compartilhassem do riso pelos donos da sabedoria. Saboroso riso! Como muitos queriam juntar-se em volta, o profeta jogou pães para a gente histérica. Todos se calaram diante dos pães e da autoridade do profeta, que falou aos idólatras:

- Frequentemente o meu desejo levou-me muito longe: para o alto, por entre o risos dos relâmpagos. Voava estremecendo como uma flecha, através dos êxtases ébrios de sol. Aonde todo o tempo parecia-me uma deliciosa zombaria dos instantes. Aonde a necessidade era a

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mesma liberdade que brincava satisfeita com o aguilhão dessa liberdade. Aonde tornei a encontrar o meu antigo demônio.

A multidão atenta, os homenzinhos de preto mais atentos ainda. Ele provocou:

- Olhai estes sacerdotes. Passai diante deles silenciosamente. Também entre eles há muitos herois, pois muitos sofreram demais: por isso querem fazer sofrer os outros. São maus inimigos: nada há mais vingativo do que a humildade dos sacerdotes. E quem os ataca facilmente se machuca. O meu sangue é igual ao deles, mas eu prefiro andar debaixo das minhas próprias tempestades a acorrentar-me às imaculadas mentiras. O profeta acreditava tê-los feito ver novas estrelas, noites e dias:

“E, sobre as nuvens, o dia e a noite estendi o riso como um tapete persa de variadas cores. Ensinei-lhes – dizia satisfeito – todos os meus pensamentos e todas as minhas aspirações. O homem deve aspirar às alturas e dançar sobre as nuvens. Voar! O homem há de voar!”. “Sim, Zaratustra, ele há de voar” – concordava, com vontade de voar. “Credes mesmo que tudo o que no homem não é mais que fragmento, enigma e pavoroso azar foi unido num só pensamento?” – eu perguntava. Ele dizia:

“Ensinei-os a serem criadores de futuros e a salvar tudo o que foi. Salvar o passado no homem e transformar tudo o que foi a ponto de quererem por si mesmos”. “Eles aprenderam?” – insistia. Não respondeu mais. Olhou para o deserto como se deserto fosse, os olhos derramando o brilho do crepúsculo. Creio que a convivência raspe as cores da paixão, deixando-nos sozinhos a atravessar os nossos próprios desertos.

Meses passaram-se, minha barriga despontava bonita como a lua cheia. Zaratustra beijava-a todos os dias e noites, cuidando para não machucar o bebê. Já queria doutrinar mais que tudo. Conversava pouco. Saía muito à noite, passava semanas longe, no que muito me aliviava, pois queria estar só o mais possível com meu bebê. O profeta deixava-se mostrar como um deus. Talvez tenha sido este o meu maior erro: encontrar num homem algo semelhante a um deus. Então tive que enxergá-lo como um mortal qualquer. Seria preciso apagar da memória a mais límpida relação entre humanos imperfeitos. Caí pesadamente. Todavia, continuei a trabalhar nas anotações, objetivo maior de tudo para atravessar novas tempestades e enxergar outros arco-íris.

- Queimar um sentimento tão nobre! Como! Sidrac e Goudman tinham que me ouvir, pois há como queimar o abstrato! Queimarei o meu amor por Zaratustra! – jurei para o Universo.

“- Charlatanismo! ” – debochou o Dr. Sidrac, gargalhando.

- Quem me dera! Descobristes em meu ventre algum indício de alma?

“- Tão animada e forte quanto a vossa. Guerreira! – elogiou” .– sumiu o Dr. Sidrac.

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Um mês depois Zaratustra foi à caverna cobrar as anotações. Beijou a barriga, buscou umas vestes e foi para um palácio improvisado de uma tal princesa Missufih, com quem se casou. Continuei as anotações em pregações para uma multidão. Missufih prestigiava muitíssimo o espetáculo. Os homens comiam-na com os olhos. Ela dançava sensualmente. Reis, sultões, príncipes árabes acorriam para ver a bela. Zaratustra estava ébrio de paixão, vaidade e aflição de espírito. Usava vestes elegantes, turbante verde de cetim bordado a fio de ouro, mesma cor do vestido da princesa. Ele lançava olhares galantes às belas que lhe jogavam flores. Pregava como se fosse para o espelho, tão narcisista. A necessidade do aplauso trazia-lhe tristeza também:

- Somos uma sombra! – disse, em tom de desabafo – Olhem, não acabou por se apoderar de vós uma fé acanhada, uma ilusão dura e severa que tenta e vos reduz o que é estreito e sólido? Perdestes o alvo, desgraçado! Como vos poderíeis consolar dessa perda? Por isso perdestes também o caminho! Pobre vagabundo, espírito volúvel, mariposa fatigada! Quereis ter esta noite descanso e asilo? Ide para a caverna! Acima é o caminho que conduz à sabedoria de onde vos fatigastes. E agora quero tornar a fugir: já pesa sobre mim a necessidade de falar como uma sombra!

Foi neste dia que Zaratustra entrou embriagado na caverna. Pecou contra todos os seus argumentos. O anel de brilhante e topázio reluzia o brilho da ostentação para aumentar o meu espanto. Recuperei-me do susto e na manhã seguinte voltei ao deserto. Anotava rápido. O profeta, aplaudido e idolatrado, oferecia aos homens mais simples o mais rico dom: o sol.

- Eis o que aprendi do sol de inesgotável riqueza que ao se pôr derrama ouro pelo mar. Até os mais pobres pescadores remam com dourados remos! – aplausos esfuziantes. – Vi isto uma vez e, enquanto via, minhas lágrimas não se cansavam de correr.

“Hipócrita!” – pensei.

- Vede – prosseguiu – tendes nova tábua, mas onde estão os meus irmãos para as levarem comigo e aos corações de carne?

- Zaratustra, quebraremos as antigas tábuas e carregaremos as novas! – bradaram os fanáticos, erguendo os braços.

Trabalhava observando a reação das pessoas. Quis ver até onde chegaria a mudança de meu amigo e para onde foi o homem que conheci.

- Pode um homem superar-se por vários caminhos. Superai-vos até no vosso próximo. O que fazeis, ninguém poderá forçar! Sois a corda no abismo, ó valorosos homens!

Como o brilho do ouro e da glória ludibriam quem tanto tinha de simples e espirituoso. Prosseguiu a pregar:

- Almas nobres nada querem gratuitamente e, menos que tudo, a vida. Mas nós, a quem a vida se deu, pensamos sempre no que poderíamos dar em troca. E o gozo, a inocência não querem ser procurados. Vale mais procurar a culpa e a dor. Somos primícias. Todos sangramos no altar

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secreto dos sacrifícios. Todos ardemos em honra dos velhos ídolos. Em nós mesmos respira ainda o velho sacerdote idólatra que se prepara para celebrar um festim. Eu amo os que não se querem conservar. Amo de todo o meu coração os que desaparecem.

Mais aplausos. Braços estendidos para o alto. Um líder espiritual. Passar para outro lado! Gritaria. Missufih também já esperava um filho de Zaratustra. Prossegui nas anotações:

- Ser verídicos... Poucos o sabem! E o que sabe não o quer.

“Ele mesmo.”

- E menos que ninguém, os bons. Tudo quanto os bons chamam mau deve reunir-se para nascer uma verdade. Sois maus para essa verdade?

Zaratustra parou um momento durante os aplausos. As pessoas o admiravam tanto! Instigava a multidão, os punhos cerrados e seus seguidores já eram muitos.

- Para os que aspiram ao conhecimento e não à mendicância: por cima do rio tudo é sólido. Todos os valores. No inverno, os maliciosos aprendem a desconfiar e não apenas os imbecis dizem: “Não estaria tudo imóvel?” No fundo, tudo permanece imóvel. Mas o vento do degelo protesta contra esta palavra.

De punhos cerrados, a multidão gritava:

“Zaratustra, príncipe da verdade!”. O chão tremia:

- Não roubareis! Não matareis! Palavras santas! E, ao santificá-las, não se assassinou a própria verdade?

Fui para a caverna. Peguei lenhas, frutas, pães e comi bastante. Ele apareceu exigindo as anotações. Não podia entregá-las naquele momento, porque continham informações sobre o comportamento da multidão, o que não estava previsto.

- São do bebê! – lembrei-o, para ganhar tempo.

Percebendo a mentira, gritou:

- Usastes um homem. Por que tudo quanto tem preço, pouco valor tem. O que vos honraríeis no futuro não seria a origem donde viestes, mas o Tempo para onde ireis. A vontade e o passo querem ir longe, mais longe do que vós? Cifre-se nisto a vossa honra!

Entalei. Emudeci de medo daquele que tão distante estava de Zaratustra quanto o céu da Terra.

- Não em terdes me servido – e mal.

- Vossa obra... Superará até a doutrina! Sabíeis? – disfarcei.

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- Claro que sim!

Talvez se Zaratustra entendesse o que está acontecendo poderia me explicar. Queria uma companhia, alguém que me dissesse: “Você fez tudo o que pôde!” Tudo é vão! Viver é trilhar sobre a palha fraca. Viver é queimar-se sem aquecer-se. A podridão também enobrece? Crianças é que podem falar deste modo, porque temem o fogo.

- Há demais puerilidade nas Escrituras como nas vossas pregações. As velhas cantilenas passam ainda por sabedoria. São elas que deveis atacar. Não ataqueis o Novo Testamento! Não invejeis Jesus Cristo. Praticai o que falais. Haverá um dia em que o rebanho será ordenado para vos matar. Que se passa?

- Orgia! – riu um riso desenhado de palhaço.

Roguei a Deus que me devolvesse o homem que conheci.

- Sois a melhor amiga.

- A chave, Zaratustra!

Foi embora.

Desceu a noite. Bela a atmosfera como uma abóbada de transparente azul, semeada de estrelas de ouro. Esse espetáculo sempre me toca e inspira doces meditações. Essa cúpula azul, esse estendal de nuvens ligeiras que Deus de tal modo dispôs e combinou de tal maneira mecânica que, em qualquer ponto, estamos sempre no centro desse passeio universal e avistamos isso a que chamamos céu empíreo, um arqueado sobre as nossas cabeças, cheio de sóis, em torno dos quais giram outros mundos... Longe de estarem ligados à abóbada azul, estão a distâncias diferentes. Queria um telescópio de ponta para avistar Júpiter com as seis luas, os anéis de Saturno...

Manhã anil. Desci à pregação; anotei. O corvo pousou-se no meu ombro com frutos. A águia observou a serpente azul.

- A divindade consiste precisamente em haver deuses!- falou Zaratustra às pessoas.

Aplausos. Observei que havia reis por perto do profeta, que proferiu contra Moisés e Jesus:

- Não ao espírito a que chamam santo, que conduziu vossos ascendentes a terras prometidas! Porque no país onde brotou a pior árvore, a cruz, nada há a elogiar. Deveis redimir-vos em vossos filhos, de serdes filhos de vossos pais: assim libertareis o passado todo. Os fanáticos predicam: o próprio mundo é lamacento. Têm o espírito sujo, os que não se dão paz enquanto não veem o mundo por detrás. A esses digo: há no mundo lama demais, mas nem por isto o mundo é lamacento. Até no melhor há algo repugnante que necessita superar-se. É sensato haver muita lama no mundo. Deixai o mundo ser imundo!

Cansado, Zaratustra pediu que eu pregasse por ele. Preguei:

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- Todos os fracos perdem-se no caminho. Meu hálito quente sopra até através de paredes, penetrando nas prisões e nas mulheres de espírito preso. A vontade liberta, porque a liberdade é criadora. E só para criar necessitais aprender. Irmãos, onde se fizeram mais loucuras na Terra do que entre os compassivos? Onde o Messias pregou ainda se derrama mais e mais sangue!

Um homem gritou e caiu morto.

- Quereríeis derrubar os obeliscos do mundo porque não podeis construir algo magnificente nem dentro de vós. Detonar bombas no irmão porque ele é o vosso espelho tosco e imperfeito? Se pudésseis, em vez de atacar, construir, seríeis algo como um colosso. Se pudésseis ler sem invejar, escrever igual, seríeis o melhor poeta, porque daríeis o melhor de vossas abelhas, ó, cansados do mundo! Se não quereis tornar a correr alegremente, o melhor é desaparecer! O prostrado cai irritado na areia. Valente rendido boceja à vista do caminho da terra para acabar com ele mesmo. Não dá mais um passo! O sol derrete-o. Ele prefere consumir-se. Cada vez menos são os que escalam montanhas elevadas. Ao subir, olhai se não há parasitas convosco. Eis o verme rasteiro e insinuante que quer engordar com as enfermidades. Olhem onde estão as almas fatigadas! Até os parasitas são úteis à máquina que sustenta a fadiga. Glutões esperam por vossos vinténs para a sodomia empanada por músicas santas, irmãos!

Parei um pouco para respirar, beber água e refletir sobre o que via, ouvia e diria. E prossegui na ideologia do mestre:

- É na aflição que os roedores constróem reinos. Onde o forte é débil. O parasita habita onde o grande tem recantos doentes. É a mais alta espécie de ser que alimenta o parasita. A alma vasta quer correr, voar, extraviar-se e errar mais longe e em si mesma. A mais necessária que por prazer precipita-se no azar... A alma que se submerge na corrente do “há de vir”, a que possui e quer, a alma que foge de si mesma e que se alcança, a mais sensata, a quem a loucura convida mais docemente. A alma que ama mais a si mesma, na qual tudo ascende e descende... Como não haveria a alma mais alta ter os piores parasitas? Acaso os queijos mais caros do mundo não são os cheios de parasitas? Para que serve o parasita senão para girar a indústria mais silenciosa, mais infame, ardilosa, escamosa, milionária e nojenta, a indústria da loucura? – bradei. É mister lembrar: aquele que cai deve ser empurrado! Sol e implacável vontade de sol, pronta a destruir na vitória: reservai-nos para um grande destino!

Missufih instigou a multidão a aplaudir e dançou junto ao povo. Admirava-lhe a alegria. Voltei a pregar:

- Conheceis a voluptuosidade que precipita as pedras em profundidade? E a quem não ensinastes a voar, ensinai a cair mais depressa! Agradam-me os valentes. Mas não basta manejar bem a espada: é preciso saber a quem se fere. Muitas vezes é mais valentia abster-se e passar adiante a fim de se reservar para um inimigo mais digno: deveis apenas ter inimigos dignos de ódio, não dignos de desprezo. Por isso há muitos diante dos quais deveis passar, sobretudo diante dos canalhas que vos apedrejam os ouvidos e os olhos. O homem olha invejoso para a liberdade de aves e baratas. Nojo? Nojo teríeis se virdes esse homem cobiçar a mulher do próximo e depois voar até à igreja a implorar o perdão. Cuspam nas caras engorduradas e cheias de suor dos hipócritas!

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Todo mundo cuspiu.

- E toda verdade que não traga ao menos um riso seja falsa.

Riram.

- Grave coisa é ser sempre dois, se não estiverdes prenhe. Pensai bem antes de criar barriga, que a responsabilidade de sujeitar mais uma alma neste mundo é pior que a necessidade da sobrevivência. A existência é um fardo difícil de arrastar. Difícil suportar. Rirão comigo por causa desta mentira?

Cansei. Missufih acorreu com sucos. O profeta pediu ao povo que se afastasse. Fui levada para a caverna. Eu lia poemas quando bateram à porta. Era Missufih. Ela acomodou-se como pôde e se desculpou por ir à caverna sem avisar. Fui direto ao ponto:

- Princesa!

- Não sabeis amar – disparou .

- Viestes até minha caverna me ofender? Sumis.

O corvo e a águia pousaram-se nos meus ombros em posição de ataque.

- Sumirei com Zaratustra!

- Ninfa do inferno, infeliz princesa, cuidareis de meu bebê, que não tereis nenhum. Ide!

- Quê?

- Que Zaratustra precisa de mim. Quero dizer, que preciso dele.

- Que me importam o bastardo e o nascimento bastardo? A lua saltou bela e repetiu: “Basta amar para cair no vazio... vazio... vazio...” – ecoava em meus ouvidos cansados. Suspirei, contei números, pedi sabedoria a Buda, a Salomão, a Cristo, invocando uma paciência de Jó.

- Missufih, bela como um adorno, esperta como a raposa, astuta como a serpente: voltai para a Babilônia e deixai Zaratustra até o nascimento do bebê!

Ela concordou. Faltava pouco e revelei-lha que o filho seria deles. Então combinamos que, para o caso de emergência, nos comunicaríamos por bilhetes enviados pela águia. A cor vermelha indicaria a suprema necessidade. Foi-se Missufih insatisfeita, mas em paz comigo.

Zaratustra chegou tonto. Até o sol raiar, ficou acordado.

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- Bonito falar contra os cristãos, os maometanos, os muçulmanos, os islâmicos. Bonito apontar o dedo na ferida do outro enquanto se tem uma na testa.

- A pedra foi ao mais profundo e nada encontrou. Não sois sequer superficial... – ele adormeceu.

- Grande astro! – bradei sozinha.

Ficou sete dias febril. Sem comer nem beber, preocupou os animais, que permaneceram lealmente ao lado dele. A águia voava mais longe e rápido com o corvo a trazer frutos, ervas, pinha, pães e maçãs. Sete dias de angústia. Então o profeta pegou maçã, suco, alimentou-se. Os animais festejaram, mas o repreenderam, como o fazem os bons amigos:

- É hora de levantar-se. Saí da caverna. Saí da caverna! – clamaram, olhando-me, pedindo reforço. – O que vos ameaça?

- Caí pesadamente como massa que fermenta! – lastimou-se. Animais meus: prossegui falando assim e me deixai escutar. Animai-me!

Pegou erva aromática, cheirou-a. Cheirou-me a barriga. Disse:

- Onde se fala, o mundo parece dilatar! Como é agradável ouvir palavras e sons. Estive cansado de falar a cegos e surdos. Não serão as palavras e os sons os arco-íris e as pontes ilusórias entre as coisas eternamente separadas?

- São. As pontes ilusórias carregam a beleza do mistério: para onde nos levarão? As palavras... são assaz perigosas. Os arco-íris, prismas, perspectivas... outra energia, outras cores. Chega o momento de saltar a ponte e os arco-íris. Algo de colorido surgirá ante os nossos olhos. Outra dimensão, outro comunicar-se. Preciso descobrir o que se esconde na caverna, nos túneis onde moram os arco-íris. Não é possível querer tanto sem razão!

- A cada alma pertence um mundo. Para cada alma, toda alma é um além-mundo. Entre as coisas semelhantes é onde é mais bela a ilusão... porque é sobre o pequeno abismo que se torna difícil lançar uma ponte. Para mim... – tossiu, a fala rouca. A águia, o corvo e a serpente baixaram a cabeça, taciturnos.

- Para mim... Como poderia haver qualquer coisa fora de mim?

- Empurraremos Zaratustra da pedra! Caireis morto. É mais digno de um profeta de belas palavras e poucos atos.

Os animais empolgaram-se.

- Não há exterior! Todos os sons, porém, fazem-nos esquecer isso! Como é agradável o esquecimento! Para o que sofre, é preciso esquecer a realidade... Anotai!

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Pedi à serpente que o envenenasse para desequilibrar, como nunca. À águia e ao corvo, que o carregassem para fora, onde o sol brilhava forte. Beijei-o na testa. Disse:

- Os sobre-humanos são excessivamente maternais e se prejudicam com os vermes. Saltai logo, que lhe corrói a alma o verme!

Impacientes, os animais advertiram:

- Zaratustra, para o que pensa como nós, tudo baila. Vão-se, dão-se as mãos, riem, fogem, mas tornam. Tornareis? – advertiram.

- Tudo vai e tudo torna...

- Não! – gritei – mil vezes não!

- Estou doente da minha própria libertação... – desabafou. – Como os homens, satisfizestes-vos assistindo às lides de touros e às crucificações? Quando inventou o inferno, esse foi o céu da Terra. Quando clama o grande homem, acorre às pressas o pequeno, a língua pendente de ânsia.

- Que belo! As coisas pequenas são para os pequenos, não absolutamente para os grandes. Sois grande!

- O que me afogava e me atravessava a garganta era o grande tédio homem. Tudo é igual. O saber asfixia.

- Asfixia.

- A terra humana transformava-se em caverna. Meu peito fundia-se.

Abracei-o, implorando que reagisse. O corvo e a águia chegaram com a serpente azul, cheia do veneno. Ainda semiacordado, Zaratustra falou, rouco:

- É demasiado pequeno o maior!

- Sim. O maior é o que enfrenta com valentia o menor e o bem maior. É preciso cuidado com as pedras pequenas, porque as grandes vemos de longe!

Os animais gritaram:

- Saí daqui. Vinde para o mundo!

Riu. Todos rimos. Zaratustra, porém, mesmo convalescente, percebeu minha profunda angústia.

- Curai vossa alma com cantos novos? – pedi. De mãos atadas diante do presente e amarrada ao passado, tento superar a mulher que mora ainda em mim.

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- Há um grande ano do sobrevir que, à semelhança do relógio de areia, tem sempre de voltar-se para correr e esvaziar outra vez. O nó da causa em que me encontro entrelaçado tornará a criar-me, como já fez por séculos. Regressarei como o sol, como a terra, como a águia, a serpente, o corvo: tal qual a fênix. Tornarei eternamente para esta mesma vida para ensinar outra vez o eterno regresso das coisas. – e tornou a repetir outras vezes.

Os animais foram-se contrariados. Zaratustra cerrou os olhos. Desmaiou. Ao se levantar – e o esforço foi grande – puxou-me pelas costas. Caí pesadamente. Quis dormir. Desabafou-me o arrependimento de ter se casado, para me convencer a ficar. E se declarou, enfim:

“Alma minha, ensinei-vos a dizer hoje, como “um dia” e “noutro tempo”. A passar dançando por cima de tudo. Livrei-vos de todo recanto, afastei-vos o pó, as aranhas. Lavei-vos do mesquinho pudor e da virtude meticulosa. Habituei-vos a estardes nua diante do sol. Como a tempestade que se chama espírito, soprei-vos sobre o mar revolto, expulsei todas as nuvens. Dei-vos o direito de dizer sim e não. Restituí-vos a liberdade sobre o que está criado e por criar. Ensinei-vos o desprezo amante, que onde mais despreza mais ama. Dei a beber a vosso domínio terrestre toda a sabedoria. Derramei, alma minha, derramei em vós todo o sol e toda a noite: crescestes para mim como uma vida. Dei-vos tudo. Por vós esvaziei as mãos. Agora estais pesada, já não há alma mais amante.”

“E agora, alma minha? Dizei-me sorrindo cheia de melancolia: qual há de agradecer? O doador ao que aceitou? Uma necessidade é o doar? Será uma piedade aceitar? Eu compreendo o vosso sorriso: é a exuberância que estende as mãos! Vossa plenitude dirige os passos. Busca. Aguarda. O desejo infinito da plenitude lança o olhar através do céu sorridente dos vossos olhos estrelados. Quem veria o vosso sorriso sem turvar em lágrimas? Os próprios anjos prorrompem em pranto vendo a enorme bondade do vosso sorriso! Não quereis lastimar nem chorar. Contudo, vosso sorriso deseja as lágrimas. Se não quiserdes chorar a vossa purpúrea melancolia, precisareis cantar com voz de soprano até os mares ficarem silenciosos. Já vossa sede bebe em todos os poços consoladores.”

Ele adormeceu. A noite caía. Fui para fora tomar a fresca. Havia uma procissão lá embaixo. Velas acesas e centenas de fiéis atrás de um sacerdote. Por que será que há tantas mentiras para consagrar verdades? E tantas palavras para dizerem tantas calúnias? Por que os homens necessitam provar o que não são? Por um momento, tive vontade de fugir. Sonhos são como o instante em que se concebe um filho: tudo ou nada.

O profeta levantou-se, adivinhando esse pensamento fugidio. Logo disse:

- Acabo de vos olhar nos olhos, vida minha. E neles vi reluzir outro nestes olhos noturnos. Essa volúpia paralisou-me o coração. Também vi brilhar uma barca dourada que se submergia em águas noturnas. Fugireis?

O ar começava a faltar. Gelei de pânico. Zaratustra enlouquece! Quer matar-me... Deus! Agora ele está próximo. Sinto que vou explodir.

- Estou farto de seguir-vos sempre feito cordeiro. Ingênuo! Feiticeira! Até agora cantei para vós. Gritai, traiçoeira! Dançai e gritai ao compasso do meu látego!

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Reagi – era a única saída. A lua apareceu forte em sinal de apoio.

- Não somos bem e mal para nada, porque não somos nada. Além de tudo há o verde prado, pardo na madrugada. Nós o encontramos. Por isso devemos amar um ao outro. Seria caso para nos enfadarmos? Enfadam-se os que não se amam de todo o coração. É que eu vos amo muitas vezes com excesso. A razão é que estou ciosa de vossa sabedoria – dissimulei.

- Cínica – repetiu três vezes e voltou a dormir até o sol raiar.

Dormi no topo da montanha azul. Zaratustra brindou o sol e veio com um olhar tênue, como se nada tivesse ocorrido.

- Se sou cheio desse espírito adivinhatório que caminha por uma alta crista entre dois mares, entre o passado e o futuro, como uma densa nuvem inimiga dos lugares baixos, de tudo quanto está fatigado e não pode morrer nem viver, disposto a acariciar este obscuro corpo e rasgá-lo, disposto a fulminar o raio de claridade redentora como o relâmpago...

Caiu. Era tarde. Tarde e cedo para saciar a vontade de tudo vingar. Apenas o começo de um eterno retorno insaciável. Por fim, acordou.

- ... Se avistei o céu com os olhos da alma através das rendilhas de abóbadas, como não estaria anelante da eternidade, do anel do eterno retorno? – disse, apontando-me uma faca.

- Retornareis para o inferno se não abaixardes a faca!

Prosseguiu:

- ... Longe de mim cintilam o tempo e o espaço! A caminho, sigamos!

Meu rosto pálido, as mãos trêmulas, o profeta delirante:

- No riso reúne-se tudo o que é mau, mas santificado e absolvido pela própria beatitude. Meu alfa é tornar leve o pesado, meu ômega é fazer bailar o espírito ave. Voai! – e me empurrou.

Tudo é redondo. Minha barriga, a lua e os planetas. Até o Universo desenho redondo, mesmo sabendo-o incógnito. E que somos neste finito temeroso de si mesmo? A que viemos? Melhor é esquecer um louco, porque todos somos loucos demais! Escorreguei, mas não caí. Descemos ao bosque.

- Pescar homens! Quem baterá na porta de Deus? Deus abre a boca e fala ao espírito:

“Que risonho silêncio tem a aurora!” Aplaudamos o autor da aurora que é chegado o momento de agradecer!”

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Dois extremos: o levante e o poente. No topo da montanha observava o crepúsculo, cuja beleza enfeitava-se com a lua crescente, a estrela d’alva e uma fina camada de nuvem. Hora dourada, em que o sol se desvalorizava. Olhos abertos. Semblante laranja iluminado. Senti voar o pensamento e vi ao longe o rosto de Zaratustra dentro da lua rir por ser pai e renovar o espírito. Após contemplar esse novo arranjo do firmamento, agradecemos ao Criador. Disse-lhe:

- Como tirar milênios de um relógio de areia? Mesmo no mundo civilizado as pessoas erguem as mãos para o alto com medo do fim do mundo. As pessoas seguem o que creem: precisam crer! Se Deus morreu, como o mundo não caiu?

- O mundo não tem sentido.

- Esse relógio mente. Esse relógio tortura. Aos relógios quero dizer: sumam da minha frente! A hora de Deus não precisa deles. A esta amargura denomino domingo. Provei do sangue no domingo. Salgou minha doce alma. Domingo que um pai morreu... que um filho foi roubado... que os meninos do mundo se enlouquecem no submundo.

- Não choreis. As estrelas estão ouvindo! O bebê ouve! Por isso direi: o mel que tenho nas veias é o que torna mais espesso o meu sangue e mais silenciosa a minha alma! Para ninguém ver o fundo da alma é preciso turvar as águas. Antes pensáveis que fosse impensável. Quem pode ressuscitar se não morrer? Carregou-me para a caverna. Afaguei-o até a aurora apresentar-se no céu e fazer chorar meu poeta Olavo Bilac. Vi pálidas as estrelas. Beijei o céu com meus olhos em pranto.

CAPÍTULO 20CAPÍTULO 20NO BOSQUENO BOSQUE

Zaratustra começou a levar beberrões para a caverna. Levou à noite um adivinho que nos fez ouvir o grito de angústia de um homem. Mais parecia de um lobo solitário, revoltado por passar várias vezes pelas metamorfoses animais e viver assim: na vontade dos deuses. Um lobisomem. Um amaldiçoado. O adivinho falou: “Em torno de vossa montanha azul sobem mais e mais ondas da imensa miséria e da aflição humanas.” Zaratustra calou-se. Após rir admirado com a nossa “surdez”, o adivinho insistiu:

- Não ouvistes ainda? Não sobe ao abismo um zumbido, um rumor surdo?

Escutamos um grito prolongado que ecoava por todos os abismos. Um som nefasto.

- Sinistro agouro – disse Zaratustra – é grito de angústia de homem! Temi o grito do parto prematuro, o de perder mais um filho, de mais tempestades. Assim desenhou-se-me o grito funesto. O adivinho falou que o último pecado do profeta seria a compaixão. O profeta passou a procurar o homem angustiado. Corri à caverna e peguei o

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espelho mágico. Vi dois reis que assistiam às pregações do deserto, percorrendo o Bosque Esperança. Conversaram nos seguintes termos:

- Deve ser um ermitão que vive neste bosque. Que a absoluta ausência de sociedade prejudica os bons costumes – falou o de verde.

O de vermelho replicou:

- Antes viver com ermitões do que com a plebe dourada, falsa e polida, onde tudo é corrompido.

- Vivemos – tornou o de verde – no reino da populaça: ali tudo está misturado: santo com bandido, fidalgo com judeu, todos os animais da Arca de Noé!

- Noé! Deus fez pacto com os animais e com esse tal de Noé! Que pacto! Em que consistiriam os atributos desse tratado? Quem sabe já morreu... – ironizou o de vermelho.

- O desgosto que me sufoca é termo-nos tornado falsos animais. Disfarçamo-nos para não sermos animais. Que somos? Medalhas de tolos. Traficantes de poder – desabafou o de verde.

- Sabíeis que alguém nos escuta, irmão?

Zaratustra surge da moita e fala:

- O que vos escuta é Zaratustra. Rejubilei quando dissestes um ao outro: “Que valemos, nós, reis?” Pois estão no meu reino!

Foram procurar o homem superior. O asno de Balaão, personagem da Bíblia passeando com os caçadores, falou por enigma: “ – I.A.” !

O rei de vermelho debochou:

- O César romano degenerou-se em besta. Até Deus tornou-se judeu! Céus! Vejo o apocalipse! Zaratustra convidou os reis para tomar vinho na caverna. Já eu sentia azia. Gritei para que falassem baixo. Vendo minha condição, resignaram-se. O profeta continuava a caçada ao homem superior, no que pisoteou o braço de um raivoso. Pediu desculpas. Era o espírito consciencioso. Que disse ao profeta:

- Antes não saber nada do que saber pela metade. Antes ser louco por seu próprio critério do que sábio segundo a opinião dos outros.

Zaratustra convidou o probo para ir beber na caverna e foi em busca do homem superior. Encontrou um infeliz moribundo:

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- Quem me dá de beber? Vinde, coração ardente! Quereis martirizar-me? Que fareis para arrancar-me com vossas torturas? Terei de arrastar-me como um cão, entregando meu amor acorrentado?

Caído, tremendo, tiritando na geada, acossado pelo pensamento, escondido por detrás da neblina, desabafou:

- Não sou cão, mas vossa presa! – prosseguiu latindo.

- O que se esconde por detrás dos relâmpagos? – perguntou Zaratustra.

- Lágrimas! Correm em vossa procura... Entregai-vos a mim, ao solitário! – chantageou.

- Detende-vos, ou lançarei fogo às vossas pernas – ameaçou o profeta.

- Parai! Chega! – gritou o velho solitário. – Foi um gracejo forte. Penetrastes bem o meu pensamento. Sois rigoroso sábio, Zaratustra!

- Não me aduleis, falso moedeiro. Histrião! Sinistro encantador, em quem devia eu crer quando lamentáveis?

- No redentor: “O poeta e o encantador que acabam por tornar o espírito contra si mesmo. Aquele a quem gelam a falsa ciência e sua má consciência”!

- Estais desencantado. Alcançastes a desilusão como única verdade.

- Estou farto! Em mim tudo é mentira. Mas que sucumbo é verdade!

Os olhos do traiçoeiro faiscavam e o profeta se desviava, olhando para o chão:

- E que prova queríeis de mim? Por que me tentar? Demônios tentam a santos e de santo nada tenho. Por que vir ao meu reino, se o que quero é pregar contra santos, embora já duvidoso até de minha própria crença?

- Zaratustra – falou sério o solitário – eu procuro alguém sincero, um vaso de sabedoria, um santo de conhecimento, um grande homem! Procuro Zaratustra!

- Procurai Jesus Cristo. Buda! Sou um profeta cheio de pecados, de arrogância, de mistérios. Já vos disse que sou maluco? Contei que larguei prenhe minha mulher entre bêbedos? Sou o egoísmo, o machismo, o desencanto, o astro maior que o sol, um fantoche de mim mesmo que nem sabe manobrar-se. Isto que pensais de mim é o mito de Zaratustra, posto que doutra vez vim à Terra pregar o eterno retorno. Desta vez sou um homem cheio de dúvidas. O Zaratustra de que falais é outro. Ide tomar vinho em minha caverna com alguns homens.

Mandou o velho encantador aconselhar-se com os outros animais. O desdentado que vi pelo espelho lembrava o Dr. Pangloss, filósofo leibniziano. Não! O velho é mais trágico.

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Enquanto se embebedavam, aumentavam as dores e contrações do parto. Zaratustra falava sozinho:

“Verdade é que não vi nenhum grande homem. Dizem: Vede: este é um grande homem! Para que serve? O sapo incha demasiadamente e acaba rebentado. Enche e esvazia o ego e depois é jogado ao chão, como se faz com um balão: rebenta-se. Quem sabe o que é grande ou pequeno como o que é bem e mal?” – perguntou-se, já sem saber o que fazia. Adiante, viu outro homem à beira do caminho. Homem alto, escuro como o bosque. - Aparecei, ó sombrio milagreiro! Compungido, difamador do mundo... Leve-o o demônio! O demônio nunca se acha onde devia, como os soldados. Sempre chega tarde esse maldito pateta!”

Depois:

- Auxiliai o extraviado! Procurei o último piedoso, único que no bosque ainda não ouvi dizer o que todos sabem ...

- O quê? Que talvez o Deus antigo já não esteja vivo? – confirmou Zaratustra.

- Servi-o até à última hora. Agora estou fora de serviço. Mesmo assim, não sou livre: para nada!

- Que fazeis aqui, ó santo pecador?

- Subi a montanha para celebrar uma festa, como convém a um antigo papa. Sois o último piedoso de todos os que não creem em Deus!

- Eu o sou. Ímpio pregador do deserto, cheio de dúvidas sobre o que prego, cheio de defeitos e erros, já pouco convicto de mim. No entanto, quem me afronta em meu reino cheio de pecado, senão Deus, o que, se morreu, logo nos deixará em tamanha confusão, e, se não morreu – como estou quase acreditando – , nos julgará em algum lugar que não sei como é, já que tudo parece tão igual no ir e vir deste eterno retorno.

Desabafou ao papa, penetrando o olhar no mais íntimo pensamento do clerical.

- Aquele que mais o amava e o possuía foi também o que mais o perdeu, ou o contrário... Entendestes?

- Muito. Por isso celebro. À perda ou ao ganho, seja lá como for, eu quero comemorar a vida – sem dores de consciência, disse o ex-papa.

Zaratustra, ensimesmado, após longo e profundo silêncio, interrogou o ex-papa:

- Sabeis como Ele morreu? Asfixiou-o a compaixão. Viu o homem suspenso na cruz e não suportou o amor pelos homens. Alcançou o filho, mas por caminhos obscuros que a todos faz crer não sei como. Quis semear um pouco de amor na Terra e lançaram as sementes no inferno.

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Às portas de sua crença encontrava-se o adultério – dizem as más línguas. – contraditou um profeta cético.

- Zaratustra não sabe o que diz! Ninguém sabe ao certo, mas pelo menos deveria respeitar o Universo que reina imperioso sobre nossas cabeças – advertiu-o o papa fora de serviço.

- “Não me importam as fraudes e os milagres, e sim as palavras e os atos. Ninguém consegue mentir tanto tempo”, diz a discípula. Conheceis minha mulher? Vá à caverna beber! Ela lá está, cheia como a lua e elétrica como a nuvem para soltar um relâmpago. Vai dar uma tremenda luz! “Ah, Zaratustra! – pensei – estais maluco demais e passo mal por vossa estupidez!”

- Juiz do Universo, papa do inferno, somos vermes desta terra e sois por demais idiota! A caverna está abarrotada de imbecis glutões. Ide para lá. Meus animais são mais inteligentes que vós todos juntos!

- Esse Deus – respondeu magoado o ex-papa – não queria ser juiz também? “O que ama, ama acima do castigo e da recompensa” – recordou.

- Antigo papa, há várias qualidades de amor. Não tenho tempo; não as discutirei. Mas desta ou doutra maneira, Deus já não existe para vós, incrédulo do esplendor da própria alma! Ide à caverna beber! – ordenou impaciente, desesperado com a angústia que girava em redor e dentro dele também.

- Incrédulo? Sondais o mundo e zombais até de Buda! De vós mesmo! – verificou o papa velhaco.

- Sois hindu? Custa respeitar a dor de quem acredita agora no insondável? – confundiu-se o profeta.

- Estais louco ou louco estou? Vou deveras à vossa magnífica caverna! – foi-se o papa.

- Com Deus ou sem. Aos diabos!

“Quereis confusão? Tereis! Quereis medir o Universo com vossos olhos ou ver a estrela Shetah desenhar bichos no céu? Vossa pequenez é não saber o mistério do mundo e querer deslindá-lo. Poetas mentem, profetas são enviados de Deus” – bradei pelo espelho mágico.

Mas a hora era mesmo de berrar. As contrações Aumentavam. “Por Deus! Acorrei que as dores são de parto! Pelo amor de Deus e de vosso filho, socooooooooorro!” – gritei, esquecendo que Zaratustra matou Deus.

- A mim – continuou Zaratustra, indiferente, pois ele escutava o grito em seu coração – agrada-me o que fala francamente. Deus tem qualquer coisa de sacerdote. Ou o sacerdote imitou Deus à sua imagem e semelhança? Invejou a cruz sem carregá-la e plagiou as palavras de Cristo para ser glorioso e poderoso diante do povo? A glória! Todos a cobiçamos em nome de qualquer

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coisa ou em nome de coisa alguma, simplesmente pela vaidade de aparecer no topo de um lugar e dizer coisas que chamem a atenção!

Eu arrumava o pequeno mole de roupas, a caminho do Lago Ninfas. “Bebê, salvai-vos!” Longe, o profeta meditava: “Vale cada qual criar o próprio destino. Vale é ser doido mesmo. Vale mais ser uma pessoa qualquer. Não é a própria impiedade que impede de crer num deus? E a excessiva lealdade há ainda de conduzir-nos para além do bem e do mal.”

“Quero pôr em terra firme todos os tristes. Quem poderá arrancar dos seus ombros toda a angústia? Muito precisaríamos esperar para ressuscitar Deus... Que esse Deus antigo não é vivo. Está morto, pois não o encontro dentre os que passam por mim, nem dentro de mim! Está morto e bem morto!”

Clamava por Missufih. “Socoooorro!” Protegei meu bebê! É horrível a dor do parto, mas bem pior é a do abandono. “Missufih, vosso bebê desce!” Escrevia-lhe um bilhete, tonta de dor. Era o primeiro dia da segunda lua cheia do mesmo mês, a lua azul: meu colo abriu-se todo. Arrastei-me nas encostas até o lago, puxada pelos animais.

“O mal – disseram os animais – o mal é parte do bem... Quando se chega ao topo do mal, é que o Universo enviará ajuda!”

A águia voou com o bilhete vermelho no bico. O corvo arrumou os panos no chão.

“Creio que todos os males por que passo são retorno do mal que causei: não fui boa comigo. Ainda assim, o céu não me caiu na cabeça, as estrelas me vigiam e guardam e... Ah! Dor terrível! – gritei, desmaiada. – Missufih!!! Quem virá, corvo?”

“Tendes a nós! ... Deus está neste ventre, como em todos os lugares.” – respondeu-me uma ave panteísta.

“Calma! – pediu a sábia serpente – tudo se encaminha no melhor dos mundos possíveis! Pois o ventre foi feito para dar à luz, por isto dais à luz um lindo bebezinho! Os lagos foram feitos para lavar, por isto vosso bebê será lançado dentro do lago!”

“Zombais de mim? Não! Estou delirando! Se este é o melhor dos mundos, como será então o pior?” – pensava desmaiada, xingando Leibniz.

Enquanto meu corpo contraía-se, Zaratustra discorria sobre a piedade, a que o adivinho disse, iria derrubá-lo do trono que construiu em imaginação na caverna:

- Quê! – admirou-se. Com essa incredulidade, sou o mais piedoso? Algum Deus converteu-me a essa credulidade! Embora queira ser o mais ímpio, percebo um secreto aroma de dilatadas bênçãos. Odor benéfico e doloroso – constatou e fugiu da responsabilidade que o chamava aos berros. – Que singulares interlocutores encontrei!

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Entrando pelas matas enegrecidas por árvores contorcidas, de cujos galhos pendiam braços enormes, assustou-se e viu outra paisagem: talvez a pior de todas naquele momento tão singular em que sua filha nascia: a da morte. Negros e vermelhos penhascos. Nem ervas nem canto de pássaros. Nem feras. Nem mesmo o demônio mais cruel! Cenário apocalíptico. Era o Vale das Serpentes. Ruborizando-se até à raiz dos cabelos, Zaratustra quis correr daquele lúgubre vale. Então o lugar povoou-se de gritos tétricos. O chão levantou-se com água pingando, como em pântanos: mas pingava sangue. Uma voz histérica zunia:

- Adivinhai o meu enigma! Qual é a vingança contra a testemunha? Julgai-vos tão sábio e nem adivinhais quem sooooooou! He, he, he... – zombava. Zaratustra, acossado pelo medo, dominou-se pela compaixão de si mesmo. Acreditou mais que nunca que Jesus o salvaria daquele caldeirão de horror. Abateu-se, revirou-se, enlouqueceu. Admirou-se de estar vivo e ficou manso como um cão doméstico.

“– Que corajosos, os homens!” – ironizei em pensamento.

Caiu pesado feito árvore cortada, tombado como tronco secular. Erguendo-se com muito esforço, disse:

- Conheço o assassino de Deus. Deixai-me ir. Não suportais aquele que vos via até ao mais íntimo de vossa fealdade...

- Detende-vos! – exigiu o inexprimível feio. Segurou-o pela roupa. O profeta sentou-se ao lado daquele que o puxava, que rosnou feito um bicho de selva e ele respondeu com uma voz medonha:

- Sei perfeitamente os sentimentos do que matou Deus... – acuou-se o feio. Ficai e sentai do meu lado – pediu, tremendo por dentro e por fora, mas dissimulando a coragem de quem se propõe ser acima do bem e do mal.

- Perseguem-me! – desabafou o feio. – Mas todo o triunfo acaso não tem sido dos que foram bastante perseguidos? E o que persegue, bem facilmente segue... Tratai da vossa compaixão! – aconselhou o endemoninhado. – Da compaixão deles fujo. Vim refugiar-me aqui, Zaratustra, o único que me adivinhou! – adulou o demônio, que gemia até nas entranhas, fazendo tremer até as estrelas. – Além de ser o mais feio dos homens, sou o que tem o pé maior e mais pesado. Todo o caminho que pisei tornou-se mau. Não tomeis o caminho por onde vim. Em silêncio envergonharíeis ao me ver. Outro jogaria esmola: compaixão com o olhar e com a palavra. Não sou mendigo! Sou feio demais, é diferente. Sou bastante rico, sabíeis? As coisas mais feias, as mais inexprimíveis, eu sou. A compaixão é contrária ao pudor. Mais nobre não auxiliar, que essa virtude solícita dissimulada de boa. Hipócritas! Odeio todos! – bramiu o demônio. Zaratustra petrificou. Escutava os ecos dos meus gritos, sem nada fazer, e ouvia nascer Sophia, louco por voltar. O monólogo do assassino de Deus era algo que o prendia – mais pelo medo do que pelo interesse.

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- Deito o meu olhar por cima dos pequenos, dos buliçosos rebanhos de ovelhas. Tempo, razão, poder deu-se a essa gente mesquinha. E hoje se chama verdade ao que dizia o pregador, que de advogado dos pequenos tornou-se santo raro, razão suficiente para poluir de pseudossantos o império dos bandidos de batina.

- Foi preciso Ele morrer. Via tudo. Via as profundidades, os abismos do homem. O homem não suporta a vida de semelhante testemunha!

Despachou o feio para a caverna, após longa meditação, e, lançando-se adiante do vale, foi em busca do homem superior.

“Como o homem se despreza a si mesmo!” – constatou. Penhascos sobrepunham-se nos caminhos pedregosos. Mãos na cintura, rondava aqui e ali sem saber ao certo o que fazia. Dançava? Sonhava? Ele não queria voltar a si, mas se repetia: “Quanto desprezo o homem tem contra si mesmo! – dizia-se, chutando pedras.” Já eu matutava, o bebê no colo: “Quanto desprezo Zaratustra tem por si mesmo! Por que não celebra a vida da filha? Por que não crê no amor do próximo? O profeta enlouquece de se ver no espelho da alma e joga a culpa no Supremo? Procura no bosque o super-homem voando como um heroi?

Andava. Peregrinava, tonteando verdades enlouquecidas. A alvorada ia massacrando a noite. As árvores contorcidas já eram frondas de beleza. Nenhuma sombra, senão a do homem desprezador do homem. O profeta corria ao vento se esquecendo de que uma luz nascia. Isso não importava.

- Amo os grandes desprezadores! – repetia-se

Viu vacas pastando:

“Estas vacas”, ele pensou, “foram muito mais longe do que nós. Inventaram o ruminar e o cair no contrário. Livram-se de todos os pensamentos pesados que incham as entranhas!

Tornou a procurar o grito de angústia do homem superior. Mas um grito pedia-o que esperasse, o que fez com que ele disparasse a correr. E era da própria sombra que ele fugia! Pois só quem já se encontrou com a tenebrosa sombra de si mesmo pode saber o por que se deve correr dela. Quem nos enforca? Quem nos apraz? Qual o brilho que incomoda mais? O nosso? O dos outros? Qual o erro! Ai de nós, do cuidado que nos devora? Será a imagem no espelho da alma uma tacanha figura do imenso castelo que construímos em imaginação? Encontrar-se com a própria sombra é algo como encontrar-se com o nada. Somos uma alma materializada. Todo mundo é importante e nada é importante. Sempre tem alguém para substituir alguém. Somos um bebê nos braços do Universo, gritando por socorro, mas quando alguém nos estende as mãos, talvez essa seja a hora de nos lançarmos no abismo. Assim me ensinou um dia um outro Zaratustra que conheci noutro deserto de mim mesma. Era um Vale Negro o que habitava o meu coração. Assim desenhou-se-me um dia a alma. Alguém ouviu um dia este grito: e ele foi tão ensurdecedor!

Era exatamente este grito de angústia que o profeta procurava: mas ele não conseguia entender! Ele só queria encontrar quem gritava, pois era muito superior gritar de tal maneira.

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Tão superior que incomodava a própria alma. Procurava o homem superior, porque não lhe caía na mente que era a mulher dele que berrava tanto. Fato é que tentei apalpá-lo com os meus pensamentos, mas ele mais se confundiu e falou:

- Minha loucura cresceu nas montanhas, mas será que eu terei o direito de me assustar com a minha própria sombra? Ela tem pernas maiores do que eu! – constatou. Enfastiado com a sombra, agarrou-a. Parecia um fraco fantasma negro. Nem era o perseguidor, mas um seguidor.

- Quem sois? – perguntou à enorme sombra. – Que fazeis aqui? Por que chamais “minha sombra”?

- Perdoai-me. Sou um viajante que já há muito tempo segue vossas pegadas. Sempre peregrino sem destino nem lugar. Pouco me falta para ser judeu errante, salvo não ser nem judeu nem errante. A roda da eterna existência! – exclamou a sombra. – O pior de tudo – disse, lágrimas nos olhos – é que somos eternos! Não morreremos nunca! Eis o maior fardo! A náusea da existência! Estou rindo, que outro jeito não há. Mas um vazio nessa sombra preenche de negro não só o meu coração, mas o de multidões que não sabem por que a vida nos maltrata tanto. Não vim perguntar o segredo do Criador, que ninguém o tem. Só queria desabafar com Zaratustra. Sede um bom ouvinte?

Ao que se espantou o profeta:

- Quê? Hei de caminhar eternamente errante? Hei de me ver arrastando sem trégua nem régua pelo redemoinho dos ventos? A Terra tornou-se redonda demais! Que pesar! E que estranho ir e voltar! É a minha teoria do eterno retorno! Então Deus existe e não quer mais que castigar? – conjeturou. – Metafísica! Minha discípula a detesta...– admitiu.

- Paradoxo, Zaratustra! Vós pregais o eterno retorno e reclamais da roda da eterna existência? – advertiu o homem sombra.

- Metafísica! “A metafísica é feita de duas coisas: daquilo que todas as pessoas de bom senso já sabem e daquilo que jamais saberão...”

Era Voltaire distraindo Nietzsche em Zaratustra. “Que pensais? Somos personagens da vida. Quereis o superior? Suportai a vida eterna sem dar um tiro nos miolos” – e sumiu-se o filósofo.

“Sois a minha sombra!” — disse com leveza.

- Não é pequeno o vosso perigo, espírito livre e vagabundo! Tivestes mau dia: cuidado não se lhe siga uma noite pior.Vagabundos como vós acabam por ficar bem até num cárcere. Já alguma vez vistes como dormem os prisioneiros? Tranquilos! Olhai, não acabe por se apoderar de vós uma fé acanhada, uma ilusão dura e severa que tenta e vos reduz o que é estreito e sólido.Perdestes o alvo, desgraçado! Como vos poderíeis consolar dessa perda? Por isso perdestes

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também o caminho!Pobre vagabundo, espírito volúvel, mariposa fatigada! Quereis ter esta noite descanso e asilo? Ide esta noite para a minha caverna!

Por ali acima é o caminho que conduz à minha caverna: para o descaminho de vós. Para a verdade. Sois bastante mentirosa para suportá-la e a vós, sombra? Agora quero tornar a fugir de vós. Já pesais sobre mim uma como sombra.Quero correr sozinho para tudo aclarar em torno de mim. Por isso tenho ainda que mover alegremente as pernas durante muito tempo.

CAPÍTULO 21CAPÍTULO 21DIÁLOGO PELO ESPELHODIÁLOGO PELO ESPELHO

@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@“- Sophia nasceu! É linda! Estamos lambendo a nossa cria. Missufih trouxe amparo e conforto. A caverna tem mais de sete bebedores. Estes animais conversam alto! Voltai!”

Não respondeu. Falei pelo pensamento, mais forte que qualquer palavra:

“- Convosco vaguei pelos mais longínquos e frios mundos, como um fantasma que se compraz em correr por caminhos invernais e glaciais. Convosco aspirei a todo o proibido, a todo o pior e ao mais impalpável e se alguma virtude há em mim, é não temer nenhuma proibição. Convosco aniquilei quanto o meu coração adorou: derribei todas as barreiras e todas as imagens, correndo após os mais perigosos desejos: realmente, passei uma vez por todos os crimes!

Convosco esqueci a fé nas palavras, nos valores, nos grandes nomes. Quando o demônio muda de pele, muda também de nome, como a serpente troca de casca. Que o nome é apenas pele. Talvez o demônio não seja mais que uma pele de cada um de nós. Revirastes os meus valores, os meus sentimentos todos, o meu corpo e a minha alma... Entreguei-me a vós sem perceber; dei o máximo que se pôde dar! E, qual foi a minha grande obra nesta vida? – perguntareis. Estar viva! Sempre fiz de mim palhaça para fazer os meus amigos rirem. Minha vida era uma verdadeira gargalhada! Todos os que riam comigo estão bem e eu continuo fazendo palhaçadas. No entanto, choro invisivelmente, interiormente, por dentro. E cada lágrima que me escorre pela face é motivo de piada para os que fiz rir. Sabeis que o pior da festa é que ela acaba e tudo continua como sempre. Minha melhor obra, direis, é um livro, um filho. Minha melhor obra é estar viva, passando por tudo o que passei.”

Respondeu: “- Assim aprendestes que é muito mais difícil dar bem do que aceitar bem. Que dar bem é uma arte! É a última e a mais astuta mestria da bondade.”

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“- Tudo é permitido. Assim me consolei na vossa ausência. Lancei-me nas águas mais frias, de coração, de cabeça. Quantas vezes fiquei nua e andando de lado como um caranguejo em redor de vós?”

“- Para onde foi tudo o que é bom e toda a fé nos bons? Para onde fugiu a inocência enganadora que dantes possui a inocência dos bons e das nobres mentiras? Com demasiada frequência pisei na verdade. Ela saltou-me ao rosto. Às vezes julgava mentir, e o caso é que só então aflorava a verdade!”

“- Qual verdade? São tantas! Cada qual tem a própria verdade dentro de si, como impressões digitais e íris nos olhos.”

“- Já nada vive do que eu amo. Como poderia ainda amar-me? Viver como agrade ou não viver de modo nenhum. Eis o que quero e o quer também o mais santo. Ó, desventura! Como eu poderia me satisfazer?”

“- Acaso tenho ainda um fim nessa história? Um bom vento que não me jogue para muito além de minha filha? Só o que sabe aonde vai sabe também qual o vento a seguir! Que me resta? Um coração fatigado e impertinente, uma vontade instável, asas trêmulas, a espinha dorsal quebrada. Esse afã de correr em busca de minha morada foi a minha obsessão. Devora-me. Porque só eu sei tudo o que passei para evitar a morte, nem sei o por quê. Penedo, mas sensivelmente sólido na pretensa sabedoria de viver, mesmo ousando sondar o porquê.”

“- Aonde está a minha morada?” – interrompeu. “- Ó, eterno! Em toda parte! Em parte alguma! Em vão, ó eterno!”

O semblante de Zaratustra dilatava-se ao me ouvir. “- Minha sombra eterna!” – disse tristemente.

Chorei. “- Afinal, nem sei o que sou, mesmo após essa longa jornada! E reconheço que não saberei. Meus filhos frequentam o céu: sol, lua, estrela. Posso viajar como Micrômegas neste Universo! Fabriquei uma constelação e não me restou nenhuma estrela! A lua me acompanha. Pelo sol, cuja luz me inspira a rir da dor, por descobertas neste caminho ora de tédio, ora de lágrimas, ora de risos, ora de horas... pelo sagrado da amizade, da verdade, da caridade, do amor, envio-vos o pedido de próprio punho, levado pela águia, para que volteis.”

“- É grande o vosso caminho e perigoso – alertou. – Espírito vagueante, apoderou-se de vós uma fé acanhada, uma ilusão dura e severa? Uma que tenta e vos reduz o que é estreito e sólido... Perdestes o alvo! Como poderíeis vos consolar dessa perda? Por isso perdestes também o caminho. Procurai os rituais. Quereis ter nesta noite descanso e asilo?” – riu amargurado pela escolha que fiz.

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“- Principia a tempestade da primavera. Há bêbedos na caverna. Estamos na tenda com um recém nascido de sete meses!”

“- Ide para a caverna! Quero tornar a fugir de vós. Já pesais como a sombra. Quero correr sozinho para clarear tudo de novo! Esta noite há de ser um baile! Ide!”

Vi a estampa de um demônio de riso sarcástico no espelho. “- Queria pôr em terra firme e com o pé direito todos os tristes. Quem poderá, contudo, arrancar-lhes dos ombros toda a melancolia? Sou demasiado débil para isso. Muito precisaríamos esperar para que ressuscitasse o deus de cada um!”

Que lindo! Não tinha prestado atenção no gesto de Zaratustra de acolher na caverna beberrões e falsos santos, porque são eles os mais desprezíveis e desprezados deste mundo! – disse a Missufih. Mas atentei para o fato de que ele se havia repetido duas vezes e que faziam falta o soro da víbora e o chás de qat. Disparei a escrever.

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CAPÍTULO 22 CAPÍTULO 22 EM BUSCA DO SUPERIOREM BUSCA DO SUPERIOR

Em montanha alguma Zaratustra encontrava o grito de angústia. Nefasto grito de que o profeta queria se compadecer. Ao ironizar o sol, celebrando-o, ou celebrar o sol, ironizando-o, ele deixava entrever que, assim, também fazia com o Ser Supremo: “Ruminarei muito tempo as palavras. Bons grãos elas são. Meus dentes devem triturá-las e moê-las bastante até correrem pela alma como o sangue.” Mudou a paisagem. Ele voou sem parar. Não tropeçou com ninguém apavorante. Tropeçou consigo mesmo, o que não deixa de ser apavorante. Ia sozinho, encontrando-se cada vez mais com o próprio ego. “Andei por todos os lugares, mas o caso é que só me encontrei comigo mesmo.” – triturava-se.

Na manhã, o sol na cabeça:

“Como um vento delicioso que passa invisível sobre a superfície do mar, tão leve, ligeiro, assim o sono passa por mim. Deixa a minha alma acordada... É tão leve... como... pena... Afaga-me com mão carinhosa. Domina-me a ponto de dilatar minha alma. Minha alma singular saboreou já demasiadas coisas, mas uma estranha tristeza a oprime. Está fatigada de longas viagens? Não beberei uma gota de felicidade dourada nem de vinho? A felicidade desliza-se: sorri. Ainda sorri um deus?

Ergueu-se como se saísse da embriaguez. Ele voltava para a caverna quando escutou o grito de angústia: estava na caverna! Estavam lá reunidos todos os bêbados. O profeta examinava um a um. Eram nove. Por fim, disse aos homens:

- Pois o homem superior está sentado bem na minha caverna! – gabou-se.

Cada um prendia a respiração, vaidoso, pensando: “Um homem como eu é superior.”

“Todo o que contempla um desesperado julga-se bastante forte!”

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- Superior significa o implacável. E não me pertence como a perna ou o braço. Para as minhas doutrinas preciso de espelhos polidos, que não distorçam a minha imagem – explicou, desapontado com tal superioridade.

- Apenas sois pontes! – alertou-os. Espero leões risonhos!

Principiaram a ceia. O adivinho reclamou que a comida era pouca. Com vinho, pão, cordeiro assado temperado com raízes, sopa de caranguejos crus ao molho de qat e ervas doces, cearam nas gamelas de ouro maciço guarnecidas de diamantes. Bebiam nas taças de cristais. Não se fartavam, os glutões. Saciaram-se com carne ao molho madeira, regado de cogumelos e maçãs verdes. Por fim, comeram sobremesa de frutas: damascos adocicados com mel e nozes.

Zaratustra desceu pregando com os discípulos. E como falasse a todos, não falou para ninguém. Não quis mais pregar aos homens simples, mas para os “superiores”:

- Como será o homem superior? – interrogaram.

- Como a profetisa! – atiçou o invejoso.

- Desprezastes, superiores! Os desprezadores serão os grandes reverenciadores! Não aprendestes a render-vos nem a serdes prudentes – observou o mestre. – Os pequenos tornaram-se senhores: a turba plebéia quer assenhorar-se do destino humano. Amo-vos deveras, porque não sabeis viver!

Pregou para o povo:

- Tendes valor, irmãos? Não falo de valor perante testemunha, mas de valor de solitários, valor de águias, do que não tem nenhum deus por espectador. As almas frias, os cegos, os bêbedos não têm coração. Coração tem o que conhece o medo, mas o domina. Veem o abismo com arrogância, com olhos e garras de águia. Ainda não sofrestes pelos homens do sofrimento que fere e aniquila. Para estes homens não quero nem me chamar luz, mas cegá-los! Raio de sabedoria, cegai-os! É preciso que morram cada vez mais os melhores de vossa espécie, que o vosso destino seja cada vez mais rigoroso!

“Cego! – pensei alto. Sois cego! Minha miopia faz-me enxergá-lo mais nítido que nunca. Passe o Tempo rápido, ó Deus que gira o globo, pois tenho sede de cumprir o meu rico destino! Tempo! Não sois ficção? Andai, que preciso ir...”. E o Tempo me disse:

“ - Na vida há cem caminhos a seguir! Escolhei um e vivei com a nostalgia dos noventa e nove perdidos. A busca da verdade é como a paciência de Buda: uma colher de chá tentando esvaziar o oceano...”

Missufih pediu-me que profetizasse sobre o pequeno Missaed. Disse-lha:

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- Ainda necessitareis de tempo! – protelei.

E Zaratustra, cego, ainda pregava:

- Não sofrestes do sofrimento que fere e aniquila. A estes quero cegar!

- Repetistes pela quarta vez! – advertiu o adivinho.

- Nada quereis serdes superior à vossa força. Adoecem de deplorável hipocrisia. Despertam a confiança pelas grandes coisas e acabam sendo falsos consigo mesmos. Tendes horror aos doutos. Gabam-se de não mentir, mas a incapacidade de não mentir está muito longe do amor à verdade. O que pode mentir ignora a verdade.

Para desacreditar Zaratustra, o adivinho perguntou:

- E qual é a verdade? A verdade é que vós não sabeis a verdade! A verdade é que vos escondeis por detrás de mentiras para não saberdes da verdade. A verdade é que vós apareceis e sois aplaudido por multidões de idiotas que creem nas vossas pretensas mentiras. A verdade é que apareceis para vos esconder de vós mesmo, porque tendes medo do esplendor de vossa alma e do vazio que ela contém. A verdade é que anotei grandes máximas de infinitas mentiras! A verdade é que vós nem sabeis quem sois e vos adornais de um personagem para esquecer a loucura de ser homem, de não vos submeterdes às leis física e moral. Lamentais o ser noturno, que tece sobre crucifixos e inventa boatos fazendo-se beato. Mas vossas pretensas verdades são sombrias!

Zaratustra tossiu. Desenhou no chão asas de borboleta: as do homem superado. E respondeu no seguinte termo:

- Se quiserdes subir, servi-vos das vossas pernas, e não de tentar derrubar o próximo. Não vos deixeis levar ao alto, não vos senteis nas costas nem na cabeça de ninguém. Cada qual tem a própria verdade! O que ainda ninguém viu com os olhos, o fruto, é isso que o vosso amor protege, conserva e alimenta. Onde está todo o vosso amor, no vosso filho está também toda a vossa virtude. Perguntai às mulheres: não se dá à luz por gosto? A dor faz cacarejar galinhas e poetas. O que dá à luz deve purificar a alma!

Continuou:

- Quantas coisas são ainda possíveis? Aprendei a rir de vós. É preciso rir! – riu.

- É preciso rir! As coisas perfeitas ensinam a esperar. Todas as coisas boas se aproximam do seu fim por maneira tortuosa. O modo de andar de uma pessoa revela o seu caminho. Aquele que se aproxima do seu fim dança! Alcançai também as pernas, bons bailarinos, e erguei bem a cabeça!

Começaram a atirar bolas de lama no turbante dele. Zaratustra prosseguiu na pregação, no mesmo tom. _________________________________________________________________

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CAPÍTULO 23CAPÍTULO 23A CONVERSA COM O SOLA CONVERSA COM O SOL

- O que quiser ser o primeiro livre-se bem de não ser o último. Aprendestes a jogar e a lograr? Jogai! E tratai de ter sorte para não reclamardes da competência do outro, que é dom de Deus. Coragem!

“Os homens inteligentes precisam rir muito da absurdidade do mundo. Do contrário, enforcar-se-ão... – pensou Zaratustra.

Sophia dormia muito após o banho. Missufih sangrava. Consultei o eremita, que me respondeu:

- Não tenhais medo! A vida é eterna. A alma não morre nunca. A vida continua eternamente. Procurai sentir Deus palpitar dentro de vós, na vida que pulsa, nos pensamentos. Não tenhais medo de nada, porque Deus estará sempre convosco: sois filha amada do Pai Celestial, que vos vestis sem pedir. Segui vosso caminho de luz, seja para terminar a ópera da vida, seja para continuar ou começar outra. Segui confiante e serena. Descobrireis Deus em tudo.

- Parece o padre Malebranche! E que fazer com Missufih? Não sei nem o meu destino, por que saberia o dela? O que há de vir, virá, e nada posso fazer, senão fugir de atordoá-la.

- Por que ela própria sente o que há de vir. Silenciai-vos.

- Mas...

Adormeci. Acordei com o sol. Adorei-o maravilhada com o azul do céu:

- Bom diaaaaaa...!!! Obrigada, Deus, por mais um instante belo de vida! Como tivestes a coragem de levantar-vos antes de mim, sol? Pois que vos aplaudo com o meu sorriso...

O sol, resoluto, falou-me numa seriedade voltaireana:

“- Quereis que eu pare o meu movimento calculado pelos nobres deuses a vos esperar? Amo-vos! Por isso dou espetáculos ao nascer e ao morrer neste hemisfério...como noutro... Acaso sois tão caprichosa a ponto de querer-me somente para vossos olhos? E o meu emprego? Sois

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parente de Maomé, mas o pelintra mentiu ao pregar tal peça, a de dizer que guardou meia lua no bolso esquerdo... Foi no direito!” – troçou.

- Creio, sol, nas lendas mais do que nas verdades absolutas. Admito meu parentesco com Maomé neste ponto: o de ver que o impossível é mais consolador e enxergar além do esclarecido. Nada carece ser explicado, amigo astro! Bebo vossa beleza, vossa luz, vossa energia, sem que seja possível “bebê-los”. O metafórico constitui grande ajuda quando se precisa demonstrar as magias das quais até os românticos já se esqueceram. Juras de amor... Que quereis? Amo vossa luz milagrosa. Amo-vos todos os dias!

“- Amais o além – observou o sol –, amais o Éden. Não sou mais que um melindre neste universo e dizeis amar-me!”

- Ouvi-me: sabeis bem que sou menos que um verme. Mas o meu coração sangrava e vós conseguistes cicatrizá-lo com a vossa poderosa energia. Sois o deus do Oriente como também do Ocidente. Ah, escrevo em linhas tortas! Consolai-me, sol! Há séculos sois testemunha de tudo e de nada. E nunca se disse que vós abristes a boca para tagarelar. Sois um exemplo!

“- Detestais mitos... – lembrou-me. Mas sabei que o vosso mito é não haver mitos!” – raciocinou o astro.

- Meu mito é não adorar mitos... Meu mito é Deus, ó exuberante astro! Deus! O sol pediu que eu abrisse o Dicionário Filosófico, no Gênesis, onde li:

“Deus disse a Noé: Vou fazer um pacto contigo e com a tua semente depois de ti e com todos os animais”.

“- Deus fazer um pacto com os animais! Que pacto! – exclamam os incrédulos. Mas se Deus se alia com os homens, por que não com os animais? O animal tem sentimento e há algo de tão divino no sentimento como no mais metafísico pensamento. De resto, os animais sentem melhor do que pensa a maioria dos homens. Em que consistiram, porém, as condições do tratado? Que todos os animais se devorariam uns aos outros? Que se alimentariam da nossa carne e nós da deles? Que depois de os comermos os exterminaríamos raivosamente e que só nos faltaria comer nossos semelhantes que degolássemos? Tal pacto, a existir, teria sido feito com o diabo.”

Percorri o livro atenta a Sophia, mas com os olhos a ver como o sol percorre o horizonte: a cada instante diferente, como nós, pequenos grãos de areia. Baseado nisto devem ter inventado o relógio de areia. A pequenez da existência dentro de um vidro que lembra duas gotas invertidas. A tecnologia homenageia o deserto com uma ampulheta. Até a areia marca a hora! O mundo se submete a isso.

Zaratustra pregava:

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- Mais vale estar doido de alegria que de tristeza. Vale mais dançar pesadamente que andar claudicando. Aprendei: até a pior das coisas tem dois reversos. Até elas têm pernas para bailar. Aprendei a afirmar-vos pelas pernas. Esquecei a melancolia. Louvado seja o que dá asas aos burros e ordenha as leoas. O pior que tendes é não terdes aprendido a dançar sobre vossas cabeças. Que importa terdes sido infelizes? Quantas coisas são ainda possíveis? Aprendei a rir! Elevai cada vez mais os corações. E não vos esqueçais de vosso belo riso. Essa coroa do risonho, essa coroa de rosas, ofereço a vós. Canonizei o riso!

“- Esta coroa, Zaratustra, porei lindamente sobre a cabeça erguida, alta, de pernas para o ar. Rirei sempre e como nunca, em homenagem a vós e a Voltaire” – falei pelo espelho.

E ele respondeu inspirado: “- Na serena atmosfera, quando já o consolo do rocio desce à terra, invisível e silencioso – porque ele veste delicadamente como todos os meigos consoladores –, então recordareis, coração ardente, como estáveis sedento de lágrimas divinas e gotas de orvalho, quando vos sentíeis abrasada e fatigada, porque nos erbosos caminhos amarelos corriam em torno de vós, pelas escuras árvores. Maliciosos raios de sol poente, ardentes olhares de sol, deslumbrantes raios benévolos lembravam-me os vossos filhos da Terra.”

Um discípulo criticou:

- Simples poeta! Animal astuto e rasteiro que mente deliberadamente, ansioso de presas, mascarado de cores vivas, máscara de si próprio, presa de si mesmo. Pobre louco, simples poeta, anda vagueando por enganosas pontes de palavras, por ilusórios arco-íris, anda errante, bamboleante, de cá para lá, em ilusórios zelos. Um louco, nada mais!

- Honrais-me distinguindo-me assim. Vós continuais sentados com olhares ansiosos. Almas livres, que foi feito da liberdade? Deve haver entre vós muito mais que o feiticeiro chama de maligno. De certo somos diferentes. Eu procuro mais certeza, por isso cerquei-me de Zaratustras. E os que mais vos agradam não são os que os conduzem para fora do perigo, mas os que se desviam, que levam a perigosas sendas, a labirintos. Minha própria virtude nasceu do terror: Chama-se ciência. E o mais logrado temor do homem é aos animais selvagens, incluso o animal homem.

Dito isto, Zaratustra entrou rindo na caverna e jogou rosas no consciencioso.

- O temor é a nossa exceção. Em compensação, o valor e a paixão pelas aventuras parece toda a história primitiva do homem. Invejou e arrebatou os animais selvagens. Assim se fez o homem. Esse valor espiritualizado, com asas de águia e astúcia de serpente parece chamar-se hoje.

Aplaudi-o. Ele sorriu. Os superiores gritaram em coro:

- Ele ama os inimigos e se vinga nos amigos!

A sombra pronunciou entredentes:

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- A má peça da nuvem passageira, da úmida melancolia, do céu nublado, dos sóis roubados, dos ventos de outono, a má peça dos gritos de angústia não tem testemunha. Há aqui muita miséria oculta, muita noite, nuvens demais, ar pesado! Eu amava as filhas do Oriente, reinos do céu azulado, onde não se chocavam nuvens pesadas! Aqui respirava ar tão bom como jamais caiu outro da lua!

Tomei o partido de Zaratustra, advertindo a sombra pelo espelho:

“- Vejo, sombra, palmeiras arquearem-se, dobrarem-se e envergarem-se como bailarinas suspensas numa só perna. O deserto cresce. Ai daquele que oculta desertos! Creio que há um deserto dentro e fora de mim. Como pude, porém, tão árida, ser tão fértil e dar à Terra quatro filhos? Será no deserto enorme de mim que descobrirei quem sou e, como predisse a coruja, não retornarei pela ponte, mas por outros caminhos? Mais harmonizada com os desertos do que com os templos? Saltai, sombra, por todas as janelas para vos lançardes em todas as aventuras. Amai! Pois só quem ama é capaz de ver e de ouvir estrelas. Conversai com elas! Vivei sem sombras, vivei como se fosse o último dia. Perdoai quem vos traiu e não suporteis, mas amai a vida! Ah, como bendigo ser sombria e noturna! Como amo cada vez mais a vida, como farejo o bebê que um dia fomos e que sempre deveríamos ser! Como sendo sombria e noturna posso passear com pés de lã pelo mundo e, silenciosa, escutar os corações alados batendo por amor de outros! Vivei! Sede sombrio e deixai de ser sombra. Vereis que a autenticidade é que imprime a marca nos dedos.”

Zaratustra, embriagado de amor, disse:

“Farejais os bosques virgens e, entre as cara pintadas feras, correis com lábios sensuais, ó astuta profetisa. Bela como o pecado, soberanamente mulher! Ó, como desce e como cai o rocio, como a água, como some girando em profundidades cada vez mais fundas e, ao mesmo tempo, poéticas! Linda mulher minha, embebida de mim, duvidosa do caminho a seguir, quanto faltará para voltarmos o relógio e recomeçarmos tudo de novo? Viveremos no eterno retorno em várias dimensões!”

“- Como Deus achar que deve. Sabei que em qualquer dimensão retornarei para vós e para nossa Sophia. O destino pode ser mudado, mas devemos enfrentar o labirinto que nos desenha a vida, árido seja. Se aprouver a Deus que será melhor eu ficar convosco nesta vida, ficarei muito feliz. Como foi poderosa a nossa caminhada! Agora – e só agora – , entendo por que sou instrumento de liberdade e poder!” “- Amais-me?” “- Muito! Nossa união foi consagrada pelo sol e pela lua!” “- Sois minha no eterno. Ainda atravessando aquela porta esperarei por vós até a morte.”

Choramos bastante. Engolimos a densa tristeza. E pergunto a Deus onde errei para perder o meu grande amor. Vaidade?

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“Assim caí – disse-me. – Noutro tempo da minha loucura, fatigado e enfermo de luz, assim caí para o caos, abrasado pela sede de uma verdade” – meditou como se me respondesse à póstuma pergunta.

“- Jamais caístes. Sois de elevados montes, que pairais no ar e ríeis da cena da vida. Como bendigo ter trilhado os caminhos de um homem impecável, sedento de verdades! Se nos separarmos – o que para mim é impossível – levarei no coração o meu amado. Convosco aprendi a rondar dentro de mim, a vasculhar o peito e a adorar o sol, mesmo sem vê-lo. Como prantearei, rirei. Gargalhadas inspiradas pelo que há de vir. Inspirarei meus filhos desta Terra lançando gotas fumegantes, rindo com os relâmpagos ... Que raios escondem os relâmpagos? Descerei das nuvens para investigá-los e a mim, soprarei os ventos junto à lua, dourarei o sol em dias nublados... dormirei por sobre nuvens acalentada pelos suspiros dos que passeiam no mundo das idéias... vasculharei a sabedoria dos grandes sábios, meditarei nos montes e cavernas... quando o rocio descer aos vales, anotarei em meu coração as conversas que não tivermos. E Voltaire, mais próximo de nós, personagens da vida, soprará piadas, instigando-me a fazer o que nem sei, mas que aprenderei. Somos uma e só substância, amigo dos sóis e das luas e de todas as estrelas. Onde habitarmos, longe, onde o vento respira e corta o ar, um procurará pelo outro, farejando o chão e a mente. Amo-vos como nenhum mortal sonhou. Não julguei compreendê-lo, tampouco o julguei: amei. Quando o meu corpo quebrar-se sobre as águas, a vida nos reunirá numa só composição, como na ópera mais bela de Wagner. Vinde, coração ardente, porque os meus olhos ofuscam a saudade e já são galáxias neste Universo ocular!”

Ele ficou impávido. Parado, ergueu-se de si e contemplou as águas descendo pelo espelho. Mas eu não estava mais, apenas ecoava minha voz. Virou-se para os superiores: o feiticeiro cantava; o consciencioso gritou:

- Ai de todos os espíritos livres que não estão precavidos contra feiticeiros! Despedi-vos da liberdade. Vós aconselhais o regresso às prisões...

- Calai-vos – bradou o feiticeiro. – As boas canções requerem bons ecos. Silêncio! Nada sabeis de canto... pesada consciência!

A fealdade disse:

- Convosco aprendi: o riso mata mais que a cólera!

Zaratustra teve que tapar os ouvidos, porque enfadou-se do falatório na caverna, onde até o asno de Balaão gritava em código: – “I.A”!

Aliviou-se com a chegada do crepúsculo. Olhou para o céu sereno, pensou: “O mundo dilata-se novamente. A luz do crepúsculo deita-se sobre o mar e a formosa lua crescente acompanha-se da estrela. Orai! Eis que o sol bebe o olhar após ser bebido por olhares de milhões. Tragou o mar a aurora que se eleva em mil ondas... Belo seria ver nosso espírito

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num cálice de cristal para sabermos a cor e o viço e a bondade. Belo é sangrar a vida e com ela esparramar sobre o papel letras bordadas de punhos firmes”.

Quis o profeta ir à caravana. Não pôde. Precisava espantar os superiores. Sentiu o cheiro do incenso. “Os homens superiores tornaram-se religiosos!” Cada um adorava seus deus: Brahma, Vishnu, Fô, Xaca, Samonocodão, Zoroastro, Buda, Jeová, Shiva.

O papa justificou-se, após rezar vinte vezes o terço:

- Aquele que disse – “Deus é espírito”, foi o único que deu um passo na Terra.

O consciencioso hesitou:

- Talvez eu não tenha o direito de crer em Deus, mas Deus ainda me parece digno de fé. – E adorou Vishnu.

- Estou de joelhos para adorar este jumento que fala por obra de Deus: “I.A”! – explicou um judeu.

Os homens superiores gritaram:

- Não queremos o reino dos céus, mas o da Terra!

Todos saíram na noite fresca. Zaratustra mostrou o mundo noturno, a grande lua arqueada de arco-íris, as cascatas prateadas. Todos aqueles velhos de coração detiveram-se, admirando intimamente de sentirem-se bem na Terra. A placidez da noite enlanguescia os pensamentos. Na noite é quando mais se aquece o coração. É quando mais falam... os seres misteriosos... Zaratustra tirou o turbante para a lua. “Matreira amiga de minha mulher, sois de fato muito bela. Vossa prata hipnotiza até os mais avisados, rasteira dama da noite!”

“Sou convosco, profeta – respondeu a lua. Esquecestes que também passeio dentro e fora de mim? Vivo fora do eixo de vez em quando, por isto me odiáveis, mas, como vedes, ilumino vossos caminhos quando as estrelas estão longe, ainda que chova, rogo que tenhais bom percurso. Boa noite!”

- É isto a vida? – perguntou o mais feio dos homens. – Vale a pena viver! Direi à morte: repita! São milhares de galáxias. Quero viver em todos os lugares ao mesmo tempo... O mundo é singular e plural! Sou vinte e um nada celestial. Uma energia violeta, rosa, azul, amarela, sangue. Sou sangue. Um morto vivo numa abóbada de cristal. Onde estariam os brilhantes? No firmamento, que os cascalhos amados são nada. São matéria como nós, comprados como nós, vendidos como nós, desprezados como nós. Sou a extensão de qualquer coisa que me animou no ventre materno. Queria ser mãe do mundo para dar à luz!

“Um que crê na pluralidade dos mundos”! – admirei.

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O encantador dançava de prazer. Despedira-se de toda melancolia. Até o burro, bêbado, dançava. Zaratustra alertou:

- Chega a meia noite. Ai de mim! Que foi do tempo? Não caiu em profundos poços? O mundo dorme. O cão uiva. Brilha a lua. Antes morrer do que dizer agora o que pensa o meu coração de meia noite. Mas por que é noite há tanto tempo? – quis saber, sem se atentar para o fenômeno da maior noite em cem mil anos. – Por que ainda o verme rói? Meia noite que canta: o fundo é profundo e mais profundo do que pensou o dia. A dor de Deus é mais profunda, mundo singular! Não procureis a mim. Quem sou? A dor diz: “Passai!” Entretanto, tudo o que sofre quer viver para amadurecer. A alegria, contudo, não quer herdeiros nem filhos: quer a eternidade.

Escreveu:

“O meu mundo acaba de se consumar. Afastai ou sabereis: um sábio é um louco!”

Zaratustra passou para a contemplação da sabedoria aos desvarios e à doidice. Viu que a sabedoria é mais excelente que a estultícia, tanto quanto a luz é mais excelente que as trevas. Chorei convulsivamente fora da tenda, porque vi o retrato dele mesclado com o do meu pai.

Os olhos já estavam apagados, como as estrelas ao vir da aurora. Dormi abraçada a Sophia. Sonhei que Zaratustra era o humilde rei hebreu Eclesiastes, que pregava pelo deserto. Ele me deu a resposta para o enigma, cuja pergunta ainda nem imaginava qual seria e cuja resposta não me lembrava ao despertar. Peguei o espelho e chamei Zaratustra. Disse-lhe:

“- Só a dor retorna, amado. Retorna sempre igual, de modo diferente. Mas retorna! Por todas as opressões, humilhações, revelações, ela vem feito o dia, feito a caixa de Pandora: com a surpresa maléfica da esperança, se escondendo diferente cada dia num lado do peito, até matar.”

“- Tudo eternamente encadeado. Assim amastes o mundo. Os eternos, amai-os eternamente. E direis à dor: ‘Passai. Contudo, tornai!’ Porque toda alegria quer eternidade. Que diz a profunda meia noite? – Tenho dormido! De um profundo sono despertei. O mundo é profundo – dói viver, dói morrer, dói perder a alegria e o viço. Profunda é a vossa dor e a alegria mais profunda do que o sofrimento. A dor diz: – Passai! Toda alegria quer eternidade!”

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CAPÍTULO 24CAPÍTULO 24FAREJANDO A VIDAFAREJANDO A VIDA

Manhã de céu azul anil. Zaratustra saltou da grama, levantou-se junto à aurora. Adorou o sol:

- Grande astro, olho profundo de felicidade, que seria desta vida se vos faltassem aqueles a quem iluminais?

E o sol, para espanto de um Zaratustra abatido, abriu com força o discurso que há muito esperava proferir:

“- Seria o que tivesse de ser, pobre mortal. Os metafísicos gostam de sondar o insondável. Os profetas de serem maiores que Deus. Os astros de rodopiar no próprio eixo, admirando em silêncio e humildemente, por viverem longo tempo (o qual nem fazeis idéia), a beleza do universo desenhado e redesenhado milhões de vezes pelo Criador. Se vós, arrogante, não estivésseis tão abatido pela derrota para Deus, que está mais vivo do que pensais e tem o redentor para relatar, se vós não estivésseis neste estado deplorável de homem sôfrego, diria que andam os astros a sustentar os planetinhas, tamaninhos dum bago, para que os grãos de areia possam ver, admirados, a minha luz, sem a qual morreriam ou nem nasceriam! Como sou astro, permito-me dizer que a vossa luz entrará no eixo de outra, daqui a milhões de anos luz... Faltam milênios para tal prodígio! Vivei! Necessitais debochar-me por vergonha de aceitar a condição humana de ser um grão de areia. Entretanto, se precisardes de energia cósmica, estenderei com força meus poderosos raios sobre vossa caverna. Fazei o que vossa discípula agradeceu por ter-lhe cicatrizado a dor a que se submeteu por obra do destino. Consolai-a, em vez de correr atrás de idiotas. Sabei que é dela de que necessitais, menos do que de mim. Adeus.”

- Adeus! Mas...

O sol já estava assaz longe para ouvir os “mas” de Zaratustra.

- Santo tempo! Relógio de sol e de areia! A hora dos rituais aproxima-se! Tirou o turbante, pegou do espelho e viu que envelhecia.

- A águia saúda o sol com o corvo, levantando as asas e alçando um magnífico voo. As garras apanham nova luz. São meus verdadeiros amigos. A serpente enrosca-se-me ao pescoço... – constatou. – Necessito voar, Deus!” – e voou.

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De repente, gritou:

- Compaixão! A compaixão pelo homem superior! – exclamou, o semblante lívido como cal e duro como o mármore. – Ora! Esta é a minha alvorada. É tempo de abraçar!

Zaratustra e os animais beberam muita água ao chegar na caverna. Sophia abriu um belo sorriso nos braços do pai. Era mesmo muito linda. Missufih melhorou com os chás. A festa era a felicidade brilhando nos olhos de todos. Esta alegria queríamos congelar para que não se fosse nunca. Deixei-o com Missufih. Levei Sophia e o pessoal da comitiva para a caverna. “O tempo urge”, dizia-me ao coração o Tempo. Sentia alguém me chamar: era Voltaire._________________________________________________________________

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CAPÍTULO 25CAPÍTULO 25OS RITUAISOS RITUAIS Começaram os rituais. Minha filha, de rubi no meio da testa, riu ao se despedir de mim. Riu-se! Que linda! Que triste. O primeiro ritual foi o do sol. De vestido lilás pérola, jóias nos braços, flores na cabeça e um girassol nas mãos rodeado de egipsys, no dia do sol mais brilhante, entrei de roupa numa desconhecida cascata do Lago Ninfas. Batizaram-me com perfumes e me entregaram dois poemas em forma de anagrama:

GIRA, SOL!O sol gira,

A Terra gira, A lua gira As pessoas giram ao contrário Com os ponteiros do relógio.

A vida despertaA vida aperta

A vida incertaQuem sabe a hora certa?

Pergunta Zaratustra:

- Que significa?

- O anagrama é subversivo: o girassol está no sentido anti-horário. “Gira, sol! Segui, vida!” A roda do eterno retorno necessita rodar inversamente. Por isso o anagrama é um círculo. Tudo retorna sem cessar. “Na natureza, nada se perde, nada se cria, tudo se transforma.” E: “As pessoas giram ao contrário com os ponteiros dos relógios” é ambíguo: são escravas do relógio e enlouquecem com ele. Quanto ao anagrama quadrado, pergunta sobre a hora certa. Qual é a hora certa, a dos ponteiros ou a de Deus?

O eremita entregou um móbile de ouro, o sol; de prata, a lua e de cobre, a estrela.

- Qual vale mais?

- Todos valem igualmente. Cada pessoa, uma alma. Cada alma, um mundo. Entretanto, os homens não são iguais. Mas há quem diga que alguns são mais iguais que os outros.

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O eremita, propositadamente, não incluiu Sophia. O corvo grasnou. Chegou o ritual da lua. Perguntou:

- Que vos parece a lua? Entoei o canto árabe à minha amiga e ela respondeu fazendo-se metade, o rosto de mulher rodeado por raios dourados do sol e nela atrelados os três elementos celestiais, todos com face de homem. Meus filhos de novo! Faltava Sophia!

- Por que chorais?

- Por que perdi meus filhos para este mundo, em que se compraz fazer o maior mal possível ao outro e creio que nem Deus nem a Providência poderão interferir nisto.

- Sois o quê? – tornou o eremita.

- Filha de Deus. Todavia, diante da Onipotência, um verme da terra, um grão de areia, que, ao desfalecer ou acordar, será mordida por vermes menores ainda. Trocaram-me a roupa para o ritual da estrela. Belo penteado, sutiã de ouro em forma de arco sustentando o busto, enfeitado de topázios coloridos. Saia também de ouro guarnecida de rubis e algas marinhas. Brincos em forma de losango, colares adornados de brilhantes. Um pingente de rubi no colo, uma gota de topázio no meio da testa. Posição de Buda sobre o puff prateado, esperei, as mãos enfeitadas com fios de ouro e brilhantes, pacientes.

- Existis por que respirais?

- Porque Deus me criou. Mas Deus tem uma pluralidade de deuses e de mundos em dimensões desconhecidas, nas quais podemos viver simultaneamente em vários tempos. A respiração ensina que frequentamos planos inimagináveis. Tudo posso sentir e não sentir. Existir e não existir simultaneamente. Sou duas ou até mais. Creio na pluralidade dos mundos. Em dimensões tais que me permitem ousar dizer que habito em vários planetas pelo espaço sideral. As dimensões dependem do que se faz da vida: são escalas de evolução no cosmos, onde nossa energia flui pelo espaço disforme, ou num corpo qualquer: seja planta, animal, átomo. Estou neste puff, mas posso estar em vários lugares, em bilhões de planetas. Ser energia em dimensões mais ou menos evoluídas. Podemos ser e não ser ao mesmo tempo. Disse a mim o eu mutável: “Ser ou não ser, eis a questão”. Shakespeare brincou com a pluralidade dos mundos ao ter vinte e sete pseudônimos. Foi muitos e não se sabe o nome real dele.

- Dai-me um exemplo metafórico – pediu o eremita:

- “Tudo é possível, mas também é preciso duvidar de tudo. Nossa vida pode não passar de um sonho. Nossa morte pode ser um acordar.”

- Dizei-me um poema sobre o tema citado – ordenou.

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- “Jepp adormece na vala de uma estrada e acorda na cama de um barão. Quando acorda, acha que sonhou que era um pobre e grosseiro camponês. Depois é carregado para a vala enquanto dorme. Desta vez, ao acordar, acha que sonhou que estava deitado na cama de um barão”. Ludwig Holberg.

- Dizei um poema para Sophia, a filha da princesa Missufih e de Zaratustra.

Provocar era parte da prova. Engoli o choro com a raiva. Uma pétala de jasmim caiu. Recitei um poema barroco:

- “E se você dormisse? E se você sonhasse? E se, em seu sonho, você fosse ao paraíso e lá colhesse uma flor bela e estranha? Ah! E então?”

De Novalis para Sophye, do romance Heinrich von Ofterdingen. E, de Calderón de La Barca:

“O que é a vida? Fúria! O que é a vida? Espuma oca! Um poema, uma sombra, quase. E a sorte pode dar senão pouco: pois que a vida é um sonho, e os sonhos, sonhos são!”

- Qual o caminho da luz, conforme Buda?

- O do equilíbrio.

- Como?

- “Coragem de menos é covardia, coragem de mais é ousadia. Bondade de menos é avareza, bondade demais é extravagância”. Sócrates.

Ao acabarem as perguntas, as ninfas jogaram pétalas douradas, brancas e azuis. Juntei as mãos, cruzei as pernas, fechei os olhos. Orei a Deus e a Jesus. A estrela de Davi surgiu no horizonte. Zaratustra tirou o turbante em reverência ao símbolo judaico; nunca me havia revelado que também orava os salmos de Davi. Orei o Salmo 23.

- “Deus morreu por amor aos homens”. Que sabeis disso? – perguntou o eremita.

- Se Deus morreu, com ou sem amor pelo homem, os céus, os planetas e as estrelas entrarão em tamanha confusão, pois não posso supor um edifício sem um arquiteto. Cairiam sobre nossas cabeças. Cantaram as ninfas. Jogaram-me nua no lago. Saindo, o eremita beijou minha testa e me enrolou num tecido prateado.

- Falai – mandou o eremita – um pensamento sobre o homem, o que sentis ser o mais parecido convosco.

Orei o Salmo 91, no que respondi:

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- “O homem traz o universo inteiro dentro de si e a melhor maneira de vivenciar o mistério do mundo é mergulhar-se em si mesmo.” De Novalis. Zaratustra arrancou-me o pano. Para o ritual da estrela esperaram a noite. Gelava de frio. Jogaram-me uma coberta de pelo. Choveram estrelas de prata. Eram pétalas de rosas pintadas. Olhei para o céu. Fomos de camelo até o começo do deserto. Sem meu mapa estelar, sem bússola. Meu profeta perguntou, tiritando, como eu, não apenas de frio, mas de medo do Tempo, que nos chamava à revelia de nossos sentimentos. E, para surpresa, homenageou um de meus filhos:

- Qual é a estrela Sírius?

Fiquei bastante nervosa. Avistei uma bastante brilhante, próxima à lua crescente, que desta vez não deu sinal de apoio. Quase disse que era aquela, mas hesitei. Veio um escorpião. Zaratustra pegou-o e me mostrou: “O ciúme é como um escorpião em redor da chama, que volta o aguilhão envenenado contra si mesmo.” Olhei de novo para o céu. A constelação de Escorpião representava o signo de Marco Aurélio. O meu era Libra. Como disse o caranguejo Maupertuis, éramos almas gêmeas. Estava próxima da estrela Sírius. Cão Maior.

- Zaratustra! Perto da constelação de Libra!

Rimos sem graça. Abraçamos em pranto. Faltava pouco para a despedida. Eu iria embora ou ele iria? Até hoje duvido quanto a quem se foi.

Três dias de festa. Diante de uma cachoeira, o trono, as arquibancadas, os gurus, os convidados, a princesa Missufih com Sophia no colo, mil eremitas enfileirados, dois mil eunucos de cada lado, cem elefantes em círculo. Zaratustra, ao centro, como um maestro. Seminua, eu estava enfeitada com franjas de diamantes, um rubi na testa, esmeraldas nas orelhas e na saia transparente. Nas pernas, losangos de topázio formavam um sapato. Divertia-me com toda aquela pompa. Rosas coloridas, espalhadas pelo chão, lembravam o caminho da vida: o tapete natural era tortuoso. Frutas de todas as qualidades sobre várias mesas representavam os deuses de cada um: ali havia homens de vários lugares. Muitos cocos simbolizando a presença do deus Vishnu, uma ironia de Zaratustra e Voltaire perante as divertidas encarnações. Incensos de rosas perfumavam o ar, retirando o pesado aroma da despedida e nos fazendo sentir que estávamos por ali comemorando uma despedida da passagem. Entre panos coloridos e bandeirolas enormes enrugando o cenário de uma vitória, folhas de bananeiras poderiam muito bem balançar à vontade, divertindo-se com o vento inspirando doces lembranças, deixando-se pisar mil vezes para nos recordar que a humildade é o melhor caminho da melhor sabedoria. Os convidados saboreavam frutas, entre carambolas e acerolas, aguardando o sacrifício do fogo. Zaratustra convidou os reis de vermelho e verde para sentarem no trono e atirou-me grãos de arroz e lançou nos convidados. A pira dentro de uma pirâmide era a purificação do corpo. Nela que seríamos lançados espiritualmente e estaríamos unidos eternamente.

Começa a cerimônia do casamento. Vestiram-me uma sari vermelha, tiara de rubis com uma suástica indiana. Zaratustra vestiu-se de branco. “Porque o homem – explicava o eremita –

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é um papel em branco em que a mulher irá escrever”. O eremita sentou-se diante de mim, entoando os mantras hindus, fazendo-me repetir. O profeta cobriu-me a cabeça e prometeu, diante dos sacerdotes, dos deuses e de todos os presentes, que me protegerá em todas as dimensões de todos os universos e me ajudará a me libertar dos entraves espirituais. Reacendeu o fogo do sacrifício, amarrou nossos mantos com um nó e deu sete voltas. Pegou um bocado de arroz cozido e pôs na minha boca. Jurou:

- Se eu falhar com a minha promessa, voltarei na próxima vida: serei vós e vós sereis eu.

Chegou a hora do enigma.

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CAPÍTULO 26CAPÍTULO 26O ENIGMA DO MAL SOBRE A TERRAO ENIGMA DO MAL SOBRE A TERRA

Sophia era só sorrisos no colo dos pais. Sentei-me no puff, meditando agradecendo a harmonia. O eunuco falou:

- “Ou Deus quer extirpar o mal deste mundo e não pode; ou pode e não o quer; ou não pode e nem quer; ou, finalmente, quer e pode. Se quer e não o pode, é sinal de impotência, o que é contrário à natureza de Deus; se pode e não o quer, é malvadez, o que não é menos contrário à Sua natureza; se não quer nem pode é, simultaneamente, malvadez e impotência; se quer e pode (o que, de todas as hipóteses, é a única que convém a Deus), qual é então a origem do mal sobre a Terra?”. Sabei, primeiro, a quem pertence tal argumentação para, depois, decifrá-la a vosso modo. Se aprouver que a resposta convém aos juramentados do tribunal mais imparcial de que se ouviu falar nesta Terra, então vós tereis, enfim, a nobre chave de ouro com os três brilhantes e abrireis a portaça escondida nalgum lugar da caverna. E tereis, para cúmulo do absurdo, a chave de uma liberdade – a única de que já se ouviu falar em todas as vidas. Pois, como vos prometera, vossa caminhada seria poderosa e libertadora: não apenas de vós mesma, mas de todos aqui presentes.

- Respondo por Epicuro, cujo átomo cerebral, ao contrário do que pregam os escolásticos, não foi abandonado num pé de alface, mas num livro. Entretanto, a argumentação responderei com um nobre pensamento do rei Salomão, vestido de humilde pregador do deserto, Eclesiastes:

- Tudo tem um tempo determinado. E há um tempo para todos os propósitos debaixo do céu. Há tempo de nascer e tempo de morrer. Tempo de plantar e tempo de colher. Tempo de matar e tempo de curar. Tempo de derribar e tempo de edificar. Tempo de chorar e tempo de rir. Tempo de prantear e tempo de saltar. Tempo de espalhar pedras e tempo de ajuntar pedras. Tempo de abraçar e tempo de afastar-se de abraçar. Tempo de buscar e tempo de perder. Tempo de guardar e tempo de deitar fora. Tempo de rasgar e tempo de coser. Tempo de falar e tempo de calar. Tempo de amar e tempo de aborrecer. Tempo de paz e tempo de guerra. Tudo fez Deus formoso em seu tempo. Também pôs o mundo no coração do homem, sem que o homem possa descobrir a obra de Deus desde o princípio até o fim.

Caiu um coco na minha cabeça. Desmaiei. Zaratustra acordou-me com éter. Chegou a hora de receber a chave de ouro com os três brilhantes. A despedida. Pedi tempo. As ninfas acompanharam-me: era proibido chorar. Voltei. Abracei Sophia, Zaratustra e Missufih rogando

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paz. Depois a águia, o corvo e a serpente. A lágrima ficou paralisada. Entreguei a Zaratustra a carta de despedida, peguei a chave.

“Mas – perguntei ao profeta –, e a caixa de Pandora”? “Recebereis ao trocar de pele e não abrireis, pelo que há de mais sagrado! Sereis instrumento de liberdade e poder. Fazeis idéia de vosso poder?” – recordou-me, no breve instante entre o passado e o futuro. “Poder de amar! Serve, profeta?” – perguntei, sem deixar caírem as lágrimas que se seguravam nos meus olhos. “Como não? Estais à porta da liberdade e fareis dela como Deus vos ensinou. Livre arbítrio!” Emocionada, nem alegre nem triste, disse: “A maior de todas as liberdades é escrava do livre arbítrio! Zombais de mim?” – queixei-me. “Vereis – respondeu-me, a voz entalada – se um profeta louco é um sábio. Onde quereis adivinhar, aborreceis concluir apressadamente. Ide!” Entregou-me a serpente azul e me despachou com medo de ir.

Abri a portaça de ouro, dentro do túnel na caverna. Que vi?

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CAPÍTULO 27CAPÍTULO 27AS VIDAS DA DISCÍPULAAS VIDAS DA DISCÍPULA

Estava sentada numa pedra e, ao descê-la, vi um arco-íris em três dimensões, debaixo do qual havia três túneis. O céu azul anil, as ondas refrescantes convidavam para um mergulho sem volta. A gaivota voando se transformou num belo anjo. Asas douradas, manto vermelho. Michael Arcanjo, meu protetor.

- Esquecestes do transporte, Aurora?

- Quase. Ia pular no abismo. Agora são quatro filhos, Michael. Vou pular... Que perco com a morte senão o sentimento da dor? – perguntei ao amigo, aos prantos.

- Não chore, sereia, que atrapalha tudo! Ireis para outras vidas, visões de outras visões! Atravessastes a portaça! – animou-me.

- As anotações!

- Estão guardadas. Missufih cumprirá a promessa. Contudo, o destino...

- Quê? – apavorei.

- Nada! Que sejais eternamente feliz em qualquer lugar do Universo. Vede o arco-íris da arrebentação?

- Já vi antes.

- Fixai os pensamentos. Concentrai-vos nas coisas boas... Pensai em Voltaire!

- Meus filhos...

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- Não! Voltaire!!!

- Voltaire!

Pedi à serpente que me envenenasse bem. Tudo girou. Alegria de amores, de paisagens, as peripécias de Voltaire, o amor de Zaratustra. Vi a felicidade passar diante dos meus olhos. Tentei agarrá-la, mas era impalpável. Ria, como ria – gargalhava – não se deixava apanhar. Frio túnel! Michael? Não estava mais. No meio de um deserto, um homem negro sentado em diagonal à porta de um casebre branco perguntou:

- Acreditais em Jesus, o Cristo redentor?

- Como? – perguntei, esfregando os ouvidos.

Ele repetiu a pergunta dez vezes. Eu estava muito idiota, parecia drogada.

- “Eu o sou alfa, o ômega, a verdade, o caminho, a luz...” – recordou.

- Jesus Cristo... lógico! Mas... o deus Sol, Osíris, Sísifo, Apolo... e a Lua?

- Quereis vê-lo?

- Posso ver Jesus, tocar-lhe na veste?

Surgiu uma multidão.

- Não julgueis para não serdes julgados, porque com a mesma medida com que julgardes sereis julgados. Tirai primeiro a trave de vosso olho, antes de reparar na de vosso irmão, hipócrita!

Perguntei ao homem da diagonal:

- Que é?

- Sermão da Montanha!

- Posso ir?

- Já estais lá.

- Jesus! Jesus! – berrei. Estou com hemorragia! Há doze anos o meu coração sangra, Senhor. Só de tocar... um dedo em vossa veste e minha hemorragia acabará! Jesus! – supliquei, aos prantos.

Ele virou para trás. Falou para o apóstolo Matheus:

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- Quem é esta mulher que me tocou?

- Sangra há doze anos, mestre.

- Jesus, sofro com um fluxo de sangue. Se apenas encostar um dedo em vossa veste, serei curada. Em nome de Deus, imploro-vos, Senhor!

Jesus olhou nos meus olhos. Falou:

- Tendes ânimo, filha. A vossa fé vos salvou! Curou-me e se foi.

Vi toda a peregrinação. Vi a crucificação. Adiante, estava de roupa velha balançando um bebê. Era uma escrava hebraica. O homem negro da diagonal reapareceu. O céu azul e a areia branca do deserto me cegavam. Ordenou-me o bom homem que eu cavasse fundo uma areia embaixo dos pés dele. “Ali”, ele disse, eu descobriria algo importantíssimo para fugir. Cavei, cavei e nada. Apontou-me o local com o pé. Nada! Perguntou-me porque era tão míope. – “Míope! O que é isto? Que importante deve ser!” – pensei como escrava. Ele mesmo ajudou a cavar, impaciente. Importante seria cavar. Encontrei duas garrafas de vidro, dentro das quais havia dois pergaminhos.

- Não sei ler – confessei. Sou ignorante e estes pergaminhos não são meus. Não sou ladra, apenas uma escrava fugitiva.

- Por isto sois escrava! – e riu, debochando.

O homem garantiu que ao retirar os pergaminhos das garrafas eu aprenderia a ler. Melhor: reaprenderia. “Com certeza – pensei – troçou de mim, porque escrava e hebraica.”

- Não costumo perder meu tempo com mulheres, principalmente com belas burras! – zangou-se. – Mas vós sois a enviada de quem me pagou o bastante para que a senhorita lesse os pergaminhos. Quebrai as garrafas e vejamos se sabereis ou não decifrar os pergaminhos – desafiou.

- São de quem, senhor? Não posso tocá-los, pois não são meus, de modo algum.

- É papiro de milênios! Por curiosidade, abri, ó míope de alma, abri!

Pedi perdão ao bom do homem e clamei ao Senhor Jeová que não me castigasse por ler, já que era apenas uma escrava. Tirei com o dedo polegar o papiro. Como eram bastante velhos, quebrei a garrafa. O homem riu-se. Ao abrir o primeiro papiro, curei-me da miopia, da burrice e da escravidão. Eram duas cartas sarcásticas.

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CAPÍTULO 28CAPÍTULO 28AS CARTAS SARCÁSTICASAS CARTAS SARCÁSTICASInspiradas pelo Sr. de VoltaireInspiradas pelo Sr. de Voltaire

DE: Sultana All FerroadahPARA: Rainha Espertah Bul-Shetah

Querida amiga cumadre, Que a paz esteja convosco como está no meio de nós!Diante da beleza suprema do mar e admirando as ondas fazendo piruetas, pensei em como é bom ser intelectual e ter uma amiga como Vossa Excelência! Pois que, enquanto Vossa Majestade sofre laborando entre uma fralda cagada e uma real vomitada, estou com os meus amigos Pitágoras, Anaxágoras, Xenofontes, Sócrates, Platão, Plotino, Plutarco, Diógenes, Epicuro, Berckeley, Giordano Bruno, Descartes, Newton, Locke, Voltaire, Diderot, D’Alembert, Kierkegaard, Dostoievsk, Hegel, Max Weber, Karl Marx, Nietzsche, Sartre, Adorno, Durkheim..., etc, e todos da Escola de Frankfurt juntos, em pleno Ar Dopador e de frente para o tesudo Pico Dois Irmãos, refletindo sobre o inatismo cartesiano. Ou seja, sobre se as idéias babacas nascem antes da concepção ou depois dela.

Extasiados com a crista das ondas marítimas, fazendo cálculos geométricos acerca do salto das pulgas, do voo das bactérias, analisando por que o mar é azul, a água é molhada..., finalmente chegamos à seguinte conclusão: é necessário para o desencadeamento do universo que vós, pobre rainha, vós que tanto amais o laboro, vós, que comprais o pão com o suor do vosso divino e real trabalho, coitada estéril, mereceis muito, mas muito mesmo, cuidar do pupilo S. junto de vossas nobres Irmãs Metralha. É pertinente, pois, que eu – intelectualíssima –, euzinha, deslinde, numa espécie de transe do Oráculo das Sibilas, o caos do universo (que missão!), enquanto vós criais o bambino com todos os artifícios reais. Batendo um papo com o divino e eterno Sócrates e com o outro divino e eterno Jesus, soube que eles – tal como vossa sultana –, preferiram morrer a ter que laborar. E me disseram que nada escreveram para não se comprometerem com o mundo dos cães que os perseguiram –

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hippies! Tiveram discípulos: uma horda incalculável de vagabundos a seguirem-lhes e outra horda não menos vagabunda a fundarem uma seita e outros uma religião, que todos gastam séculos a estudar as picaretagens cinematográficas – conhecidas por milagres – , que já àquela época fazia-se e que o digníssimo papa do melhor dos mundos possíveis jura de pé junto e dedos cruzados serem verossímeis. E que milhares de otários, como vossa convertida majestade – com todo o respeitinho que mereceis –, morreram no espeto da Santa Inquisição. Que lama!Magnífica dona de dois neurônios, cumpre acreditar, pois, que tal dedicação com vosso filho de leite tem o efeito de tranqüilizar tão vagabunda intelectual, posto que a causa é muito nobre! É mister lembrar que nesta passagem sobre este montículo de lama, a que se denomina Plutão, somos menos que vermes a comer vermes. E que vós fizestes a benevolência de criar tão doce quanto amada criança, ainda que traficando bebês (os magistrados silenciem-se!). Sois uma santa perante a santa Igreja Católica Apostólica Romana, de acordo com o Concílio de Trento e com o ouro que despejastes no bolso do Excelentíssimo Papa João Urbano Carnoso II.

Devo agradecer-vos de joelhos sobre cacos de vidro, em linha reta na direção do sol nascente e da constelação Órion, batendo três vezes a cabeça no chão todos os dias. Pela conversa com meu íntimo Voltaire, chego a crer que o bambino S. é de fato e de direito vosso filho, numa quadragésima nona encarnação, conforme o deus Fô (da-se), o brâmane contorcionista que habitou em sete planetas e entrou e saiu em mais de quinhentos corpos... Lembrai-vos?Ao final e ao cabo, deduzi, consultando o divino Sócrates, que urge fazer o necessário: embriagar-me de amores no barril de Diógenes de frente para o sol; entregar-me à vagabundagem, sempre rezando de joelhos porque vós trabalhais para fazer-me feliz! É pertinente findarmos querelas jurídicas, posto que estamos por aqui de passagem, posto que há milhões de planetas por visitar e muitas vidas por que passar! Saúdo-vos e aposto que ireis em linha reta direto para a bela estrela Sírius, cujo brilho, bem sabeis, não chega à poeira de vossos sapatos. Brindemos à vida, que nos entrecruzou com tanto esmero e amizade. Desejando-lhe paz, ainda que tardia, e sobretudo o fim do terrorismo psicológico com o bambino S., Humildemente,

Sultana All Ferroadah ______________________.

Terminada a leitura, estava num gigantesco palácio e o homem das diagonais servia-me de sábio escravo.

- Absinto? – ofereceu.

- Com peçonha de escorpião! Ah, um caranguejo vivo... – pedi rindo.

- Lede a outra carta, sultana magnífica. Será divertido! Foi o que fiz.

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De: Mme. Poupa a DorPara: Sultana All Ferroadah

Caríssima sultana por quem o grande astro da Via Láctea estende com força o mais belo brilho do universo e por quem a lua muda de face! Bon nuit, bon jour, bom, tudo está no melhor dos mundos possíveis!Acabo de fazer o meu desjejum e, ao morder uma goma de tangerina, mordi também meus carnudos lábios, quando me deparei com uma carta sarcástica insultando a rainha das rainhas, Espertah. Ela convulsa, esperneia, chora, rebenta-se por dentro e por fora, arranca os belos cabelos loiros por não entender as linhas visíveis de tal gesto invisível. Malvada! Éreis gente, quando pobre, agora... Zombeteira! Como podeis agradecer assim à nobreza da nobreza, à pureza da pureza, à beleza de dentro e de fora, à alma da virtude e tal bondade de bondade?

É-me lícito provar que o deus Fô (da-se) não habitou apenas em sete planetas, mas em setenta vezes sete, posto que Maomé realizou tal prodígio com meia lua escondida no bolso direito – não no esquerdo – e que Vishnu entrou e saiu em mais de quinhentos corpos, mas nunca no da bela rainha Espertah. E a pura rainha ultrapassa-o, e muito, já que está na septuagésima nona encarnação, segundo os preceitos orientais, de acordo com os cálculos de meu amigo Leibniz. Tomo-vos, ó sultana magnífica, a liberdade de dizer que, no meu alegre país, seríeis queimada no espeto da Inquisição por ousar transcrever para Plutão o que somente os heréticos o fazem. A rainha Espertah, ocupadíssima com as fraldas cagadas e as intrigas palacianas, tem mais que fazer! Se vossos pupilos vieram-lhe habitar nas trompas de Falópio mais dignas deste mundo, ou se foram adotados num desses juizados comprados.

O geômetra Leibniz, o mais inteligente do mundo, meu íntimo, meu tudo, forçou-me a calcular quantos bebês uma amiga estéril pode presentear ao Ser Supremo – que a todos os encontros românticos espreita. Que difícil! E se estais a admirar a curva de Plutão com tantos sábios, cá eu tenho que confessar: estou presa no cárcere do corpo a investigar a hipérbole que o Sol desenha no meu limitado e belo horizonte!

Ride, cruel? Espertah chora com tantos afazeres domésticos, presa na matéria e na extensão da alma, ou do espírito, como quiserdes. Pobre rainha! Com dois neurônios e vós rides da missão ordinária a que o destino lha pregou. Sois sábia, sultana, sois má, para além de nossos santos inquisidores. A mim, resta-me rezar de costas para o vosso Sol, contorcendo-me sobre o chão sem bater cabeça, para agradecer estar longe de vossas proezas deitadas sobre um ingênuo papiro. As letras fremem como um jesuíta na guerra de pavor ao usá-las! Mas, dizei-me, sultana perigosa, após conversardes com os intelectuais vossos amigos, aquele tal de Epicuro e o outro tal Sr. de Voltaire, dizei-me: como é que um átomo pensa? Hem?

Resposta da sultana All Ferroadah pelo pombo-correio:

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“Digo-vos por Epicuro, cujo átomo cerebral largou-o num livro filosófico. Um átomo sozinho pode até não pensar, mas dois podem pensar até muito mais que vós, madame do Rei Sol! Vede, dois neurônios nada pensam, entretanto debaixo de uma bela cabeleira loira oxigenada conseguem fazer fortunas! Claro é que, para tal prodígio, é preciso esperteza, Espertah que vos diga, e vós muito, mas muito mais! Todavia, o que é ser esperto neste mundo rasteiro? Acaso não é fazer como o fazem os adelos, que vendem roupa velha pelo avesso como nova o mais caro possível? Acaso para ser ratoneiro a valer é preciso pensar? Tal causa (pensar) produz muitos efeitos, inclusive o de enlouquecer no mundo dos alienados, mas o ser rato só produz o efeito de roer... como o ferro enferrujado... Para nada servem! O pensamento de dois átomos faz prodigiosos milagres. E é capaz de transformar a água dos ‘normais’ em vinhos paranormais!”

Continuação de Mme Poupa a Dor

Não entendi patavinas de vossa péssima explicação. Mas adianto que Espertah, em sendo átomo de dois neurônios, chora porque não vos compreendeis! O eunuco do palácio crê que a vossa carta mais enobrece do que enlouquece. O rei Xavier-Erradoah apenas come e ronca. O pupilo S. tem seis aninhos e ri na santa paz. Não se vinga! Espertah chora, também, de piedade por vós, que ajoelhais sobre cacos de vidro para agradecer aos céus. E convulsa por não adivinhar, nem com todos os astrônomos caldeus, onde está a bela estrela Sírius e a constelação Órion! Coitada! Chora e olha para o céu. Chora e volta-se para o céu!

Ingrata sultana, a rainha das rainhas emociona-se por vossa ingratidão. Roga a Alah que deixeis o barril de Diógenes para viverdes no palácio dos palácios, onde há muito mármore e um salão infernal para queimar-vos viva a fogo lento eternamente!

Ó, Ferroadah, como subistes ao topo do Ar Dopador, deveis haver conversado como na Torre de Babel, entre tantos sábios de tantas pátrias, tantas encarnações e ressuscitados. Escutai-me a súplica: em que idioma falaram entre si? Quantos desses filósofos beijai-vos? Nada pode ser mais cruel do que contar à amante do Rei Sol que vedes o Sol, que conversais com ele e com o pai do profeta Zaratustra! Como ousais falar-lhes, libertina? Que o Seu Marabô faça-vos cumprir vosso kharma de padecer no fogo do inferno até os cem anos, sultana metida a filósofa. Esmagar-vos-ei nesta madrugada debaixo da Pedra de Dalí. Jogar-vos-ei no túnel do arco-íris, no turbilhão cartesiano que detestais! Sede breve em vossa conversa com Sócrates, Platão, Plotino, Berckeley, Frankfurt, etc. Vede como se faz reverência à rainha da horda ratoneira dos Espertahs. Andai, pelintra! Que a morte vos seja breve e bem quente, biltre!

Humildemente,

Mme Poupa a Dor ____________________.

Resposta de Voltaire, abaladíssimo com a possível morte da belíssima sultana Ferroadah:

“Há uma fé para as coisas espantosas e outra fé para as coisas contraditórias e impossíveis. Vishnu encarnou quinhentas vezes. Isso é bastante espantoso! Mas, fisicamente ao fim e ao

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cabo, não é impossível. Porque se Vishnu tem uma alma, pode ter quinhentos corpos para divertir-se!”

Bonne Anné, Pompadour!

CAPÍTULO 29CAPÍTULO 29O REENCONTROO REENCONTRO Mergulhei na cachoeira e, debaixo do sol do meio dia, estendi-me preguiçosamente no confortável puff. Veio novamente o sábio, entregou-me as peçonhas dos escorpiões e o caranguejo vivo.

- Trazei-me a serpente, amigo – pedi.

Peguei as cartas e reli várias vezes. Sufocava de tanto rir. Lembrava de tê-las escrito à beira da Praia do Diabo. E, ao me deparar com o nome Zaratustra, senti congelar o coração.

- Zaratustra! E Sophia? Onde estão? – perguntei mil vezes. – Zaratustra! Preciso encontrá-lo!

- Sultana das sultanas! Consultamos os astros, cercamo-nos de intérpretes de sonhos e... e...

- ...Não precisam pensar, é muito difícil. Conhecem a rainha Sophia?- Sim! – exclamaram em coro. – Reinou na Mesopotâmia pouco depois da morte de Jesus Cristo.

- Reinou? Como “reinou”? – quis saber, o coração no pé.

- O corpo de Sophia foi encontrado numa jaula coberto de flechas. Missufih jogou-se no rio.

- Morreu Sophia. As premonições daquele discípulo... As anotações! – pedi, a voz trêmula.

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Os eunucos entreolharam-se com certa preocupação. O sábio, o bom escravo Mambrés, que tinha apenas 6.500 anos de vida na Terra – sem contar as encarnações que a gente não conta, quando somos átomos, alface, tromba de elefante, árvore – , desfez a tempestade, esclarecendo:

- Sultana por quem os sultões respiram, belíssima infeliz All Ferroadah. O profeta Zaratustra vive, ainda, apesar de mais ancião que eu. É um sábio, quase. Vive só numa caverna que dista daqui 545 léguas. É pai da rainha Sophia, que nasceu no dia do alinhamento de Marte com a Terra – o mais longo dia de que já se ouviu falar. Sophia foi traída, por causa de algumas anotações da mãe, uma herege, Aurora. As anotações foram consideradas temerárias pela Igreja Católica Apostólica Romana do papa Bento XVI. Sophia foi empalada!

- Santo Deus! Quem sou? Quem somos nós que nem sabemos quem somos??? – pirei. – E Zaratustra???

- É a pergunta que faço. Zaratustra é um indício...

- Agora!!!

Partimos como um raio. Sendas perigosas. Abismos horríveis. Setenta camelos e vinte elefantes tombaram. O sábio escravo, Mambrés, sabia bem mais do que poderia bordar qualquer imaginação. À medida que nos aproximávamos da montanha azul, eu mudava de feições, os gestos, a voz, as palavras. Olhos negros grandes, lábios carnudos, sobrancelhas grossas, a pele branca. A paz contida no sorriso. Envelhecia.

- Aurora? – chamou Mambrés.

- Sim! – respondi.

- Chegamos à montanha azul! A caverna aproxima-se...

- Sim! – exclamei, descendo da carruagem apressadamente, conforme me permitia a idade. Parecia voar, tal a leveza. Observei a paisagem. – “A lua!” A amiga soprou as nuvens. Cada lugar era de lembranças.

- Zaratustra! – gritei.

Zaratustra, ancião, olhou-me como da primeira vez e, engessado pela idade, andou vagarosamente, soltou uma gargalhada de escárnio, como aquela de quando nos conhecemos.

- Aurora! Discípula do além! Abristes várias portas? Pregastes por Jesus? A felicidade que se nos escapa feito água pelas mãos... – lamentou.

- De tudo um pouco. “Depois de ter mergulhado com Tales na água, transformada por ele em primeiro princípio, depois de ter-me chamuscado ao pé do fogo de Empédocles, depois de haver corrido no vácuo em linha reta com os átomos de Epicuro, a serpente na mão, depois de haver calculado números com Pitágoras, depois de haver cumprido para com os meus deveres

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com os andróginos de Platão e tendo passado por todas as regiões da metafísica e da loucura, quis conhecer o destino. Ainda não me transformei em alface, não parei na tromba do elefante. Onde estão a águia, o corvo e vossa serpente?

- Vivem! – mentiu. – Dormem ali... – piscou um olho para Mambrés.

- Zaratustra, quantos anos eu tinha quando fui embora?

- Não falastes vossa idade nem para a lua! Rimos muito. Passeamos no Lago Ninfas, onde mergulhei para seduzi-lo, onde concebemos nossa filha e onde ela nascera. Desabafei, por fim:

- O destino, o que é!

- E o que não é?

Choramos longamente; abraçamo-nos; choramos mais.

- Onde fica o mausoléu de minha filha?

- Mambrés sabe. Tenho a carta de despedida. – e os olhos do ancião lacrimejam.

Adoramos o sol. Choramos mais. Abraçamo-nos sagazes. Após bebermos água no cálice de cristal, dissemos ao céu empíreo:

- Ao sol, à lua e às constelações! Nossa filha e Missufih ouçam nossa homenagem singela. - Será penoso, sabeis? – alertou.

- Sei. Mas preciso delas. Eu não me enganava. Meus filhos morreram antes de mim, mas meu percurso era diferente. Zaratustra – e só ele – sabe do que falo. Porque mergulhei profundamente em cada significado de cada palavra que ele proferiu. Triturei. Ruminei. O preço da liberdade é a solidão. “Nós outros não construímos nosso ninho para os impuros”. – Pareço um pássaro voejando de árvore em árvore! – e desabei em prantos nos braços dele.

- De qual vida falais? – confundiu-se.

- De qualquer vida. Desse fardo que arrastamos usando a droga da imaginação. Sempre acreditando no incompreensível. Sempre!

O profeta respondeu em tom de despedida:

- Vida! Um minuto, meio, que mais? Falta pouco tempo, minha companheira que vi crescer a alma, cujas pernas vi alongarem. Ide. Levai a caixa de Pandora: no fundo de todos os males, a

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esperança. Vede: ouro e marfim. Um joguete com os mitos! Em qualquer Tempo existe para confundir ou manipular a imaginação humana – disse, frisando o Tempo, Mambrés atento.

- A nossa existência é um ponto, a nossa duração um instante, o nosso globo um átomo! Não tenho mitos nem utopias. Possuo amigos. E um amigo vale mais do que 100 homens.

- Ide, rosa do meu chá, flor de girassol, filha da lua que adoro todas as noites em que a traiçoeira aparece.

- Por que não me deixastes levar Sophia?

- Levastes! O bebê hebraico era Sophia!

- Não deu tempo! Tive que dá-lo à vida, senão daria à morte?

- Fizestes o melhor, porque ficastes com o pior: com a riqueza, as cinzas, as letras. Não se compra sabedoria na esquina da taberna. Escrevei com o sangue e sabereis que o sangue é o espírito.

Disparou o meu coração e não consegui mais segurar as lágrimas. Sentia perto a morte. Um frio arrepiou os meus pés. Morte. Vida. De qual padecemos mais? Uma se arrasta, a outra se remói. Ambas vivem dentro de nós. A morte nos pés era um sinal de que minhas pernas não cresceriam mais, porque o que as fez crescer ia-se para longe. Tudo ventava. Zaratustra jamais me permitiu crer na morte. Jamais.

- Cuidai-vos.

Insistiu em que Mambrés me levasse rápido, pois era a vez de ele mesmo partir. Contudo, teve força para aguardar a carruagem sumir-se no horizonte. Leu novamente a carta de despedida e escreveu, antes de adormecer:

“Estarei sempre neste coração. Tudo retorna e, crede, em cada aqui gira a outra bola acolá. Sou como o salgueiro: o vento açoita, a chuva fustiga, o relâmpago parte, mas me enverguei sem ser destruído. Fostes a única a envergar uma de minhas convicções. Sol e vontade inefável de sol: o sol do meu amor derreteu o gelo do meu coração!”

Zaratustra.Zaratustra. Caiu como um tronco derribado e adormeceu por séculos. Senti a dor no peito e a asfixia, mas já voltava a ser a sultana e tinha que ver mais mundos. O último escrito do profeta o sábio levou para reunir às anotações. Ajuntei-as, após aprender que ossos e pó unem-se na recriação do Universo.

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CAPÍTULO 30CAPÍTULO 30NO ARDOPADORNO ARDOPADOR

Veio Mambrés com chás junto com as peçonhas da serpente azul, escorpiões e suçuaranas. Entrei no mausoléu. Mambrés acompanhou, não entendi por quê. Num turbilhão de dores desfalecemos. Vestida de sultana e Mambrés de roupa grega, subimos uma pedra rodeada por um magnífico oceano: Ardopador.

- Que belo! Epicuro? Sois ele? Beliscai-me? Foi aqui, aqui, nesta bela pedra, escrevi as cartas sarcásticas! Asfixia? Só se for de rir! Inspirada por Voltaire, pelo mar e pelas pulgas! Ai, beliscai-me, peçonha... Vinde, ó amigos eternos! – clamei, admirando o arco-íris que surgia na arrebentação das ondas. “Serão três?” – pensei. “Onde estará meu filósofo, meu grande amigo, entre tantos sábios ociosos? – perguntei a Epicuro. “Vede! Tantos a abraçar, sultana. Correi a Voltaire!”

Anaxágoras, Demócrito, Sócrates, Plutarco, Platão, Plotino, Aristóteles, Berckeley, David Hume, Heiddeger, Schopenhauer, Sartre, Maupertuis! Centenas de filósofos polemizando a natureza substancial de uma bactéria árabe. Voltaire, sentado à beira de uma rocha, calculava com Diderot e D’Alembert quantas vezes as ondas batem nas pedras – uma guerra de potentes neurônios. Que reunião! Diógenes nu no barril! Epicuro quebrava um átomo com Einstein:

- É mais fácil quebrar um átomo do que um preconceito!

- Anaxágoras precisava entender para ver. O tal nous e o tal átomo apenas diferem no peso e no volume. Acreditai, nobre físico, acreditai! Meus jardins são o nous do Éden! – assegurava Epicuro.

Corri para os braços de Voltaire:

- Três coisas são capazes de ridicularizar mesmo um grande homem! – repetimos em coro.

- O que não ridiculariza um grande homem?

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- Ah, Voltaire! Que saudade!

- O enigma, Ferroadah? – pediu Epicuro.

- Quero abrir a caixa de Pandora, mas dizem que provoca horrores ao mundo grego. A feminilidade sempre empalada pelo machismo... Dizei-mo, Arouet!

- Respondeis: Ou Deus quer extirpar o mal deste mundo e não pode; ou pode e não o quer...

- ...De novo? Respondi isto com vosso pensamento sobre o Tempo, grande Eclesiastes – falei, piscando um olho.

- Sobressaiu-se de complicado labirinto!

- Abri o caminho da liberdade. Somos bem e mal. Não há enigmas. Os dois poderes contrários presidem o universo. São apenas um. Dois em um, já que bem e mal habitam em todos nós. E tudo tem seu lado positivo e negativo, como as leis da Física – que Isaac Newton prove agora. Os opostos se atraem. Esse é o mal, porque suportar a parte recalcitrante é difícil. O equilíbrio de forças, ondas negativas e positivas sustêm o Universo. Se uma supera a outra, danos. Eis a eterna briga entre as forças. Investigar os segredos do Supremo é profanar a verdade. A causa desta mora no seio de Deus. Era um presente dos deuses. Zaratustra conversava com o profeta Elias junto à águia, ao corvo e à serpente. Quis abraçá-lo, mas ele sumiu como uma nuvem, idêntico a Voltaire, quando ele aparecia na montanha azul. Pensei que delirava. Não. Nietzsche abraçou-me sem aqueles bigodes de passarinho, alegre e feliz. Riu após ver aquela que tanto pensava nele. Beliscou-me para ver se era real.

- Sois palpável! Ah, doce leitora... Filha que nunca tive! Criatura mais pura que conheci no sondável e no insondável!

- Amigo por quem tanto chorei, onde está Zaratustra?

- Morreu! – respondeu Nietzsche alegremente.

- Matastes Zaratustra? Quê? Como?

Chorei convulsivamente. Quis saltar para o mar, esperneei, descabelei-me.

- Saltai! Voltareis a ser sereia e a cantar belissimamente. Encantareis os homens; encontrareis de novo vossa alma gêmea. Mas...

- ... Mas? – interrompi. – O quê?

- Não mais nos encontraremos por setenta séculos. Quereis vossos pensantes neste topo da vida ou ser um mito eterno, burra e sem vida?

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- Parai. Deixai-me, ó grande filósofo, pensar na escolha. Árdua e dolorosa como dar à luz.

Nietzsche gargalhou com escárnio, idêntico a Zaratustra. Por fim, disse:

- Vede vossos filhos. Estão convosco numa casa perto do mar e das montanhas.

- E Sophia?

- Era a sultana! Vós, discípula Aurora, crente em Jesus, escrava míope, sultana All Ferroadah, rainha empalada e jovem aprendiz de filósofa. Entendestes?

- Perfeitamente. A pluralidade dos mundos! Sempre me senti deslocada do mundo, porque dividida entre aqui e acolá. Sois um charlatão!

- Saltareis para o mar, a recomeçar tudo de novo? Pensai. Livre arbítrio, ó ficção de Deus, livre arbítrio! Morai em todas as dimensões. De vez em quando, passeai por entre os mortais e mortos...

- Nietzsche, já vos conheço. Mas quero ver Zaratustra! Por que o mataste?

- Abrireis mão de precioso encontro? Atirareis ao mar uma vida após longa jornada?

- A vida não passa de um eterno encontro cheio de desencontros. Uma canoa dourada passeando pelo Universo, brilhante como um pontículo de estrela. Me sinto tão sozinha! Aprendi muitas coisas e por isso mesmo minha solidão cresce. Nunca saberemos nada. Fostes e sereis eternamente meu espelho maquiado para um bonito reflexo. Mas sabemos que o reflexo é apenas uma ilusão. E, de tudo o que decorei dos vossos escritos, uma coisa é certa: o que não nos mata nos faz sentir ainda mais fortes. A pergunta é: para quê? Que somos além de nada? Por que gastamos risos falsos quando de fato queremos prantear a solidão de bilhões de solitários? Nietzsche, escrevo para mim, narro-me a mim mesma, como Zaratustra ensinou. E, ao tentar rondar fora do eixo, sempre atropelo a sombra que salta do espelho dentro da alma. Quero mesmo adormecer, porque sou frágil demais para a dureza do bronze. Minha resistência é de vidro. Minha pele cobre minha alma. Quando não mais tiver força para isso, será pó. E o que é a alma? Nada! Meus olhos denunciam a dor de amar sempre e não compreender o amor. Que é? Espuma. Bolhas de sabão! Estou triste, amigo, pois alguém me chama para mais uma jornada, sempre enigmática e sempre solitária. Por que motivo a roda da existência persiste no erro de recriar o Universo cheio de pontos e interrogações? Por que é rude a vida?

- Pensais que somos uma e só substância ainda? Pois digo: podemos até participar de eventos, eventualmente juntos. Mas certos espíritos e momentos da vida e da morte separam-nos eternamente. No espaço sideral é que sentimos pulsar o coração e cintilar a energia da vida. Que quereis, senão morrer? Sois forte, todavia necessitais girar a senda da existência para responder a vós mesma.

- Para quê?

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- Nenhum de nós saberá. Vós pagareis preço alto demais pelo amor que sustentais nas veias. Tendes compaixão e esse é o pior dos sentimentos. Atravessastes a ponte. Superastes um dos labirintos, mas há milênios os labirintos multiplicam-se. E vós, anotadora, pranteais pelo próximo esquecendo-vos da pele branca.... A pele! Necessitais dela para cobrir a alma! Somos muitas coisas e coisa nenhuma. A vida entra na pele e, embora saiba o porquê, jamais comunica a sabedoria. Por isso a cada vez que vivemos, eternamente giramos numa bola vazia. Por vezes sentireis vosso amor próprio esborrachar-se como um balão. É que a agulha da imaginação precisa alfinetar para mais e mais nos fazer tombar e levantar elegantemente. Olhai: vedes o mar indo e voltando, insistindo em longo êxtase? O mar quer respirar também. Quer comer elogios de milhões, pois a vaidade do mar é ser beijado com os olhos, é cortar o vento, trazer a tempestade, sugar a aurora. Sabei que vosso nome eu lho dei. Porque vos via saltar na madrugada a fotografar cada instante, a despertar o sol – alguém tem que acordá-lo! Sois a que decorou o percurso das estrelas. Sois a que me chamou para limpar a dor, porque a dor mata. E, ao amar Zaratustra tanto, sabei que eu guiei vossos passos na tremenda tempestade a fim de que aprendêsseis um pouco a ópera da vida. Mas sede desde sempre daquelas que aprendem apenas para saltar os olhos de cima. A senda é tortuosa e a ninguém cabe abrir o caminho, que, como disse, não existe. Narrai-vos sozinha. É mais sensato. Conviver com demônios... queremos tantas formas de vida e, no entanto, a vida se faz por si. Pensai antes de pular no mar. Sereias são belas, porém, sofrem. Choram para si. Choram interiormente. E caranguejos costumam adentrar na terra para não extrair nada. Quereis voar! Voai! Tomai a chave de ouro para voltar à caverna. Zaratustra somos todos os que se dão à vida. Feliz fico porque amastes com desdém, porque apenas assim amam os amantes. Abraçai vosso ídolo, ele vos ama cada vez mais. Tocai a ópera por memória de mim. Mas advirto: sede daquelas que podem tocar. Desejos são mitos. Sois sábia para essa grande verdade? - Talvez para saber que a verdade, tal qual a liberdade, é uma palavra abstrata que move o Universo. Precisamos dela, precisamos mentir para nos enganar sempre, porque o mundo é absurdo demais. Madame du Châtelet aconselhava Voltaire a rir da absurdidade do mundo. Detesto a mentira, mas esta é a maior verdade do mundo. Somos livres por mentir, para escolhermos sendas tortuosas que não saberemos explicar. E Deus? Que tem a ver com isso? Nada. Fabriquei um personagem. Desenhei um caminho de mão livre, ou o destino fez com que eu adentrasse num livro para fugir? A morte, amigo, a morte só empresta suspiros quando queremos a vida de olhos arregalados! Que pensais? O vento sopra as sombras do passado, mas não as leva para longe, apenas sacode a alma com as lembranças. Se ao menos fôssemos puros! Se fôssemos de verdade! Pois todo grande é pequeno demais e todo inseto sabe mais de sua ínfima condição. É mais digno reconhecer que necessitamos de várias dimensões e de vários retornos para descobrir a verdade de ser nada. Tantos eventos giram para brincar! Tantos sentimentos frívolos sondam o insondável! Tanta hipocrisia! Quereríeis andar de lado, nu de preconceitos, mas vós também enlouquecestes comigo. Assim, pularei da Pedra Dalí, porque não tenho coragem de cortar a respiração ao vento, como vós. Sentirei palpitar vosso espírito, meu profeta, que a razão é imundície... Nem alimento possui. Suicídio é fraqueza e coragem simultaneamente. Fraqueza de abandonar o presente maior, a vida. Coragem de jogar fora tal presente, a vida. Quero agora rir com todos. Abraçai a que investiga os caminhos do sol, anda com os passos de lã da lua sobre a nuvem. Abraçai a que vos ama, personagem e caricatura da vida. Adeus!

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Nietzsche enrubesceu. Senti a dor do parto: gritei. Abracei meu triste filósofo, cujo bigode voltara. A droga é o estereótipo. O estereótipo quer manter-nos uno, quando somos tantos. Quantas vidas serão possíveis para cintilarmos junto às estrelas? Eu quereria brilhar para iluminar um coração solitário. Tirar o peso do coração romântico que divaga, seduz e rasga a dor sem que ela espere o sol raiar. Dai-me água, que meus olhos pranteiam as trevas. Dai-me luz, que os homens sombrios me apagaram da vida. Dar-vos-ei um pouco de mel, única atividade das minhas abelhas. O mel corre em minhas veias. O mel dos meus olhos sorri para o pensante, porque diz: “Sois triste, coração?” E responde: “Sabei que não tendes tanta inocência para chorar.”

Olhei os grandes. Parei meus olhos nas águas e, após conversar com Voltaire alegremente, prometi o que a princípio não queria, mas que depois de longo tempo apreciei longamente. Por Voltaire faço qualquer coisa. Por Nietzsche também. Menos por mim, que já envelheço a alma. Então decidi voltar, recomeçar tudo de novo. Tendes mãos ávidas para estender a uma extraviada? Se a loucura brotar mais forte que a razão, sabei que há sempre um quê de razão na loucura e um quê de loucura no coração. Tendes ouvidos apurados para escutar esta mentira? Por que desconheço a verdade e sou má demais para desejar a felicidade. Conheceis a honestidade que pisca os olhos para o fausto? Conheceis a fragilidade de uma mulher amante de tudo e nada quer, tão fútil! Meu coração escuta o vosso só de olhar! Sabei que danço a ópera da vida sobre um colchão adormecido num travesseiro morto... ...E se um dia minha altivez me abandonar, pularei da pedra ao mar. Se meus pensamentos servirem para declarar guerra à paz, então serei feliz. Que o inóspito faz-me assassina daquela vontade presa e liberta todas as estrelas e invoca a lua cheia. Somos de quatro ou mais faces neste mundo louco, ou de nenhuma? Ride! Que só o riso mata a sede de vingança!

Voltaire abraçou-me. Um baile frequentei.

- Falai-me sobre a enteléquia da alma.

- Vamos organizá-la primeiro. Não quereis vê-la em grego? – gargalhamos, avistando Aristóteles e Maupertuis.

- Inteligências supremas, reunamo-nos em volta da pira de uma cor que imaginamos que exista e de um calor que mal sentimos e de cuja extensão só fazemos idéia, porque tal pira é a própria idéia – sugeri, rindo do bispo Berckeley.

Ao discorrermos sobre alma, espírito, fé, religião, gênesis, pecado original, cristianismo, etc..., etc..., explodiu uma tremenda querela.

“Pensei que nesta dimensão os homens abandonariam a vaidade e a aflição de espírito”, desabafei com Eclesiastes em pensamento. Ele baixou a cabeça e lembrou:

- Tudo tem sem tempo debaixo do céu!

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- Extraordinário consolo, hebreu. Se fôsseis Buda – e quase o sois – diria que tendes a paciência de Jó.

- Entender o tempo de Deus e, sobretudo, aceitá-lo requer sabedoria. Saber é poder.

- O poder de ser atrapalha o de não-ser. Quando sei exatamente o que quero, isto é poder.

Minha roupa de sultana passou à de escrava, depois à de homem com peruca. Punhos de renda, estatura baixa, cinismo e uma vivacidade nos olhos. Eu era Voltaire. Envelhecia com a rapidez dos segundos e sentia a solidão por todos os abandonos de amigos traiçoeiros. Mas eu era algo como uma máquina, não tinha piedade, escrevia barbaramente no quarto a peça Irene. Envelheci, adoeci e me debatia contra a morte, gritando “d’Holbach”. Eclesiastes via tudo mas só ele percebia o que se passava. Nem Voltaire, nem Epicuro, nem Plotino, ninguém sentia o que se assemelhava a uma possessão espiritual. Ri muito com esta farsa de um judeu esperto e apertando os olhos, cumprimentei-o pela “mágica”.

Confusa com tantas visões e vidas, cheguei ao ceticismo total: senti-me personagem de um mundo totalmente manietado por Deus. “Ridículo”, pensei, sem me lembrar de que faltava muito chão, ou melhor, muita água pela frente.

Demos as mãos em círculo e oramos em todos os idiomas. “Quem sou eu, Jesus?”, pensei. “Não sei!”, disse ao meu coração.

Mergulhei no mar, encontrei Zaratustra e o abracei como só a ele abraçaria. A despedida. “Tudo retorna eternamente. Eis a vida: inexplicável. Eis-me ignorante!” Despedi-me. Nietzsche limpou os bigodes umedecidos de lágrimas, retirou os óculos molhados, chorou. Apertando os olhos, pousou os braços sobre os meus ombros. Abraçou-me, eu estava dentro dele e ele em mim. Declaramos mútua amizade e prometi escrever tudo o que anotei, levar à Alemanha em homenagem a um século de sua “morte”. “Não hesiteis, anotadora!” – exclamou, triste.

“Sempre o guardarei comigo, meu filósofo, onde ninguém jamais pôde morar eternamente. Sois o amor que nunca vivi, sois o melhor amigo desta complicada versão de mulher. Preciso voltar, Zaratustra, ele me chama...”.

Depois, veio Voltaire com o riso mais sério que jamais havia visto: um riso estratégico. Ele nem precisava cobrar o que prometi, mas ainda hesitava, ainda não sabia bem o por quê. De qualquer forma, eu ainda não o havia bebido o suficiente. Soltei-me de Nietzsche e dei as mãos. - Não vos atormenteis – aconselhou. – Sigamos nossa maravilhosa jornada, onde não carecemos disputar o pão com o suor do trabalho. Terminareis?

- Voltarei. Dai-me condições?

- “Cumpre fazer aquilo que não se entende na língua que menos se compreende.”

- Dói a distância.

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- Minha amiga, voltareis mais bela de corpo e alma...

- Dai o bilhete a Kierkegaard! Não está aqui! Por quê?

- Não nesse teatro, mas noutro...

- Adeus!

Abracei Voltaire e também Epicuro, que se fez de escravo para me ajudar a trilhar sobre a liberdade sem delirar. Mergulhei o mar e voltei a ser sereia por setenta séculos.

CAPÍTULO 31CAPÍTULO 31O ETERNO RETORNO IIO ETERNO RETORNO II

Estava na caverna escrevendo e copiando as anotações. No chão, a carta de despedida do profeta Zaratustra. Os cabelos brancos como a neve, enormes, os dedos enrugados, a testa franzida. Peguei a pena para desabafar a tristeza de enterrar quem me desenterrou. O profeta preferia descer sete palmos da terra a ser lançado ao mar. Os animais prantearam, como só fazem os verdadeiros amigos. Assim, prossegui o fim de uma caminhada poderosa e libertadora. Pensava nele feliz na alvorada envenenado pela serpente. Minha serpente azul envenenou-me: mas disse que, desta vez, o céu estaria perto. Pois tinha que ir junto com Zaratustra. Os animais prantearam mais. Minhas mãos endureceram. Meu coração apertou bem forte: parou. Tombei. Uma rocha quebrada. Já me tinham corroído em variadas fendas. Corroída pela erosão de ser mais do que parecer.

Deixei escrito: “Estarei sempre viva. Preciso ir à França. Terminarei o que prometi, se Deus quiser – e somente se ele quiser. Falaremos pela águia.” Tudo retorna em diversas dimensões, discípula. Cada alma carrega um mundo dentro de si.”

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CAPÍTULO 32 CAPÍTULO 32 A CARTA DE DESPEDIDAA CARTA DE DESPEDIDA

Abdiquei-me dos filhos para dar vitória às mães de setas inflamadas. Ah, mas da vida, não! A Terra em suas revoluções ensinou-me a viver por e para ela. Que somos, pois? Vermes a comer vermes. Não há fome que me mate. Não há perda irreparável. Tudo eternamente retorna, diz o profeta. E crede-me, ele próprio retornará. Não há um ceitil que ficará encoberto, diz o messias. Tento amar o que não pôde ser mudado. Ensinastes-me? Sim! Pusestes-me a seguir o caminho sozinha, a amar a liberdade sem temer a solidão. Meu coração dentro do vosso está e o vosso dentro do meu. Vossa solidão é minha e a minha continuará sendo a vossa também. Quando eu sentir aquele frio e vossa presença, entoarei o canto gregoriano à reconfortante lua, em memória de nossa eterna amizade. Estou dentro de vossos olhos como vós estais dentro dos meus. Seguir-vos-ei com eles e sabereis com o olhar onde estou. Estaremos, assim, unidos pela distância que a vida desenhou. Ouso dizer que nunca vos esquecerei nem vós a mim. E me atrevo até a jurar pelo céu, trono de Deus; pela Terra, escabelo de seus pés; pelo fio de cabelo que posso tornar, sim, preto ou branco: estareis comigo eternamente. Tudo retornará! E então riremos junto aos nossos inspiradores no espaço sideral. Riremos do escorpião em redor das chamas voltando-se sobre si mesmo o aguilhão envenenado. Dos criadores de além-mundos, posto que estaremos para além dos mundos. Nós, criaturas, prevalecemos sobre os criadores. Ultrapassamo-los! Zaratustra tornou-se eterno!

Encontramo-nos na solidão, caminhos diferentes seguimos. Contudo, foram eles próprios que eternamente nos uniram. Quando adorardes astros, vereis a lua, minha predileta, e dela sereis a metade, posto que metade de vossa face sou eu. E quando eu adorar a lua, saltarei do sono para brindar os primeiros raios dourados do sol. Taças cintilantes transbordarão a felicidade tão grande capaz de fazer inveja à inveja.

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Felizes na solidão mais sublime, comunicarmo-nos-emos um ao outro todos os momentos. E se um de nós se for antes do outro, a alma sentirá a dor que nunca morre. Então morreremos juntos na dor que adoece o coração. A águia, o corvo e a serpente cruzarão oceanos para nos avisar a lúgubre notícia. Os animais nossos amigos chegarão tarde, pois juntos morreremos. Mas nos servirão de consoladores de nosso pranto. Chorarão por nós. Voaremos com nossos amigos do céu e da Terra que nos carregarão para o melhor dos mundos possíveis!

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CAPÍTULO 33CAPÍTULO 33A DERRADEIRA A DERRADEIRA

Quem escreve com o sangue derrama espírito. Com pernas altas, olho de cima todas as cenas da vida, sem medo de cair ou pretensão de subir. Mas agora posso voar!Chove muito. Uma tempestade primaveril com relâmpagos e granizos. Soprei a chuva espalhando gotas pela face chuvosa de lágrimas. Parece que não morri ainda. Contudo, a morte de Zaratustra faz-me rever o filme de toda a minha aventura pelos mundos com olhos de serpente e asas de águia.

Chove muito, ainda. Meu corpo não virou sol nem cinzas. A vida... Que é, pois? Nem sei se vivi, ou se até hoje sigo perambulando pelas estradas da vida, ou se vagueio em todos os lugares em várias dimensões. O sol... A lua... Esconderam-se ou caíram? Onde estamos no universo? Aqui, ali, além, acolá, alhures. Talvez durmo um sono sem sonhos. E talvez hei de acordar em meio às cinzas, dourada como a fênix.

Os desertos emprestaram-me um código: silenciar com setas apontadas para além do horizonte. A estrela Quírion surge irradiando luz. Eis o caminho de Zaratustra. Eia, vida precisada de vida! Quero dormir o sono da morte em todas as dimensões!

Talvez nossa vida seja um sonho contínuo e a morte será o momento de nosso despertar, ou o fim de um sono que não será sucedido por nenhum despertar. E assim, imobilizados desde o primeiro passo e em vão dobrando-se sobre nós mesmos, ficamos apavorados por nos procurarmos sempre e não nos encontrarmos nunca._______________________________________________________________________

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CAPÍTULO 34CAPÍTULO 34SSOPHIAOPHIA NANA TERRATERRA DOSDOS VIVENTESVIVENTES

Eu mergulhei o mar como quem procura um tesouro. Vi tubarões, peixes coloridos, cardumes fantásticos. Um baú enorme surgiu na minha frente. Era dourado de ofuscar os raios de sol. Como sou míope demais, pensei que estivesse na terra dos viventes. Não. Estava mesmo nas profundezas do mar. Procurava alguma coisa, mas não sabia ao certo o quê. Então entrei num navio encalhado.

Muitas janelas escancaradas, portas arrancadas, ferragens pontiagudas. Vi no rosto de um peixe o semblante de um homem. Todavia eu procurava o rosto de um homem do qual não me lembrava, mas, que insistia, para se deleitar o meu prazer de sereia. Meus cabelos cresciam, meu corpo transformava-se, havia calda em vez de pernas. Veio voraz o semblante do homem: era Zaratustra.

“Em mim brilha o valor de todas as coisas. Sou todos eles. Para mim só existem as escamas de áureo fulgor...”.

Escamas? Zaratustra tornou-se dragão marinho? Quem sois? “O vós deveis” – respondeu-me imperioso.

Mas sou Sophia! Não devo nada a vós. Eu quero! – assim diz meu coração irreverente. Atravessei oceanos para vos reencontrar!

Então o semblante escamoso enfureceu-se e se tornou uma pálida impressão de Zaratustra. Abracei-o eternamente. Amamo-nos.

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Despediu-se de mim alegre. Estou prenhe? Que fazer com o filho do homem sendo uma sereia? “Nada fareis. Cantareis por séculos. Setenta séculos”. Que bom é cantar! Em que lugar cantarei? “No topo de uma ilha fumegante, móvel. Sereis um móvel. Tocareis harpa e tudo será violeta!” Ah, então estou no sétimo céu! Sétimo, pai, sétimo! Mas sem bebidas. Sou filha de Deus e toco harpas para os homens.

A harpa surgiu de dentro de um baú abarrotado de tesouros. Ele abriu sozinho, mostrou pérolas lançadas aos porcos, diamantes dos grão-mogóis, pulseiras de esmeraldas, braceletes de ouro maciço. Jóias simples para quem já viu e ouviu da boca do forno letras bordadas pelo grande ruminador. “Se não ruminarmos como as vacas e não nos tornarmos para trás, não entraremos no reino do céu” – ecoou a voz do profeta.

- Zaratustra! – berrei. Mas ele não apareceu. Nadei grandes mares até a ilha fumegante. Saíam vapores coloridos, vozes difusas, marinheiros, soldados, piratas, bandidos. Nua, cingi os lombos de água. Abracei meu colo, ajeitei os cabelos. “Olá, pessoal!” Ninguém ouviu. “Olá!” Nada. Sentei-me.

Um homem barbado disse para um pelado: – Veja! Uma sereia! Uma sereia! O pelado indignou-se: – Bebidas fermentadas e delírios andam a par, amigo. Trabalhemos. Andai, pelintra! Mergulhei com força para que me vissem – pois queria amar – mas apenas o barbado, qual um peixe, percebeu. – Sereia! Cantora mortífera! Vinde, coração ardente. Em mim tudo é mentira, mas que amo é verdade. “Morrereis se não idolatrardes um mito. Beijai-me perto da meia noite, amado, que saireis da escravidão e levareis um mel nas veias.” O homem barbado beijou-me longamente e sumiu nas ondas. Encontrei uma garrafa, dentro da qual estavam escritas palavras de uma língua que desconhecia.

“Abri, abismo humano! Abri! Eis a chave da liberdade e do poder! Míope Mérope, sois de carne, mas de pouca inteligência!

Abri o pergaminho, onde se lia:

“Eu quisera atravessar o deserto sozinho, aniquilando o coração irreverente, e sem nenhum deus por testemunha – ele já vê tudo o mais. Amo o que está acima do medo e da compaixão. Amo o que não procura por detrás das estrelas uma razão para adorar, mas adora-se a si mesmo por vencer tempestades, por entre os risos dos relâmpagos, sopra as tempestades e alivia o coração, nas fúrias da vida. Teme o medo, mas sabe dominá-lo. Amo quem sabe tirar do vento energia, balança com as ondas, dança com elas, acaricia as águas, respeita a vida.”Saltei os vales, onde se principiam os raios do sol. Gritei, mas o caso é que cantei.

Cantei para Deus. Ele enviou Michael Arcanjo dourado, bastante esplendoroso, que sussurrou:

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“A dor atravessou o hemisfério junto ao sol. Trouxe a melancolia a par da lua cheia.”

Santo Deus! Relógios de água! Anjos de guarda, guardai esta mulher à sombra da Onipotência. – Anjos! – berrei. – Soltai-me, anjos, preciso ir, Michael Arcanjo.

“Para onde e por quê?” – perguntou uma voz estranha.

“Zaratustra morreu, mas grita para se unir ao meu espírito. Deus sabe que cumpri o destino. Vê meus passos e vos enviou para me ajudar. Ele disse: “Socorrei-a! Amparai-a!”

“Quem crê numa sereia astuta e má?”

“Astuta e má? Por quê?” – quis entender.

“Vós sabeis: na fraqueza, o fraco encontra-se com o arrogante...” “Reconheço. Mas preciso voar! Zaratustra morreu, estou morrendo. Os animais nossos amigos pranteiam a morte do profeta. Ajudai-me, por Deus!” A lua brilhou forte em pleno meio dia. O sol enegreceu. De repente, tudo mudou. O abismo tornou-se caverna. Uma portaça de ouro abriu. Uma caixa pequena caiu ao chão junto com o profeta Zaratustra. Nas mãos, endurecidas pela velhice, ele segurava um papel. “A Carta de Despedida”. De quem? Era de Aurora. Olhei para os animais. A águia baixou a cabeça, o corvo baixou a cabeça, a serpente amarela baixou a cabeça, a serpente azul baixou a cabeça.

- Que houve, amigos?

- Sabereis ao atravessardes a portaça. Adivinhai o enigma!

Não me recordava do enigma. Teria que viver tudo outra vez para aprender. Somente Voltaire podia soprar. E teria que passar de novo por tudo. Zaratustra entregou-me uma chave de ouro com três brilhantes. Um assemelhava-se ao sol, o outro à lua e o terceiro à mais brilhante estrela da Via Láctea. Caminhamos no escuro, calados. Apenas falavam as estrelas e a lua minguada. Guizos de crianças balançando o brilho e dando gargalhadas. “Onde está o sol, o meu sol?”, perguntava-me, sem entender que voltava no tempo ao mesmo tempo em que já era outra mulher: a própria Sophia. “Tereis que esperá-lo nascer de novo. Ver a esperança é o melhor dom” –, respondeu Zaratustra em pensamento. A esperança é o mal de Pandora, Pandora... Pandora!” –, completou, entregando a caixinha de marfim. Um presente de grego. Um enigma dos maiores tormentos. Com a chave de ouro, abri escondido, no breve sono do profeta, a que se chama morte. Um relâmpago atravessou o horizonte, disparado junto ao trovão, que dizia:

“- Enterrai-a a sete palmos debaixo da terra!”

- Mas o meu sol não está nesta caixa! – repliquei, trêmula de pensar no impensável.

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“- Vosso martírio escreve e desenha vossos passos. Vesti-vos de felicidade e Ele vos abençoará...”

Confesso que nada entendi. A voz do profeta tinha um poder divino. Jesus? Não. Zaratustra é o anticristo. Engoli em seco. O profeta tinha razão. Ornei-me com um manto e prossegui sozinha a caminhada. As estrelas riam. A lua ria. O sol ria. Minha caminhada poderosa e libertadora recomeçava desde que ganhei de um profeta uma chave, que não podia usar, e uma caixa, que não devia abrir.

- Amigos! – clamei. – Nosso mestre se foi... Vós me ajudareis a carregá-lo?

- Zaratustra ordenou que carregássemos as lembranças e os corpos para o além mundo, pois vos mostrará o eterno retorno – explicou Michael Arcanjo.

- Acredito. Mas enterremos. As anotações estão naquela caixinha. Ide preparar a cova.

- Estais na Terra dos Viventes. No entanto, necessitais morrer para renascer das cinzas, se quiserdes brilhar junto ao sol, com ele.

- Vós cantais o réquiem? Agora preciso juntar-me ao meu espírito amado. Adeus, animais. Até que venhamos a renascer abrasados por uma vontade inefável de sol. Obrigada, Michael!

Adormeci. Maometanos, hindus, budistas, cristãos e protestantes se esbofeteavam. Luzes de esclarecimento, comida e alimento para a alma: nem só de pão viverá o filho do homem. O sol... vistes uma vela enfunada tremendo com o vento, sem temer a direção? O sol raiou. Adoremos! Dobramos os joelhos sobre pedregulhos. Ríamos bastante, pois percebemos as pessoas passarem sobre os nossos corpos sem nos ver.

- Somos átomos!

- Menos do que um grão de areia. Vede: de manso e silencioso andam os pés cautelosos. Caminham deslealmente como um gato!

- Posso navegar no Universo... me fizestes crer na deusa que mora em mim. Homem nenhum conseguiu me dar pernas para me deixar de corpo livre espreguiçar sobre os meus pecados frívolos e profundos.

- Cumpri o que prometi. Até mesmo suportar-vos faz parte da libertação.Visitai o abismo onde Maupertuis se esconde numa pocilga. Ide!

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CAPÍTULO 35___________________CAPÍTULO 35___________________A CONVERSA COM MAUPERTUISA CONVERSA COM MAUPERTUIS

- Dissestes que sou cabalístico. De fato: permanecestes subjugada à lei da guerra pelos pensamentos de Nietzsche, mais até do que pelo de vosso eterno Voltaire. É que nunca sabemos de quem nosso grande coração será. Pertencemos ao mundo dos loucos, mas os maníacos deste planeta não sabem a saga que percorremos. Conversastes com o escravo Epicuro, frequentastes a Sociedade do Templo, vistes Deus encarnado como homem suspenso na cruz e morrestes de compaixão! Foi a que derrubou os preceitos de vosso amado profeta. Mas o perdão vos permitiu transgredir todos os tempos e, neles, fostes a mulher autêntica que não escondeu o medo nem a beleza do temor. Pois soubestes que dominar o medo é controlar tempestades. É rir com os relâmpagos, chover junto à chuva! Agora chorais a saudade intermitente de sangrar sozinha através dos desertos que tereis de atravessar sem o profeta, sem Nietzsche nem Voltaire. Pela dor da solidão, vós sabereis que com o sangue doastes alma. E quando se doa o melhor de si, ninguém pode voar mais alto. - Sim. Contudo, ressuscitarei meus mortos todos os dias. Eles conversam com os meus anjos. Preocupam-se comigo. Na Terra vi covardia. Chorei muito e ninguém me consolou. Fui julgada como Cristo. Ele sabe do que falo, Maupertuis. - Se Ele sabe, a livrará de ser cúmplice das maldades que abominais, compreendeis?

- Talvez não. O kharma é pesquisar por debaixo de tesouros escondidos o que só os cegos podem ver. O dharma é deduzir que enxergar não é ver. Enxergo o que se esconde. Recuperei-me a mim mesma! Como! Todavia, esse recuperar tem recantos doentios. Ainda restam lodo de uma prisão assaz longa. Há de ressoar sempre a voz dos homens clamando no covil. Cães ladram de prazer e, embora o saiba instantâneo, gosto deles para o bom reflexo no espelho.

O caranguejo Maupertuis sumiu. Nas rocas sentei-me a investigar as piruetas das ondas. Pensava em calcular o salto das águas, mas o melhor geômetra se foi. Então vi uma casa dentro

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de outra e mais outra e uma mulher escrevia incessantemente num computador. Os cabelos castanhos, selváticos, ela numa cadeira, uma mesa abarrotada de livros. Eram tantos que a mulher empilhava – talvez para se esconder de si mesma. Não! Era para mostrar ao mundo um sentimento mais negro que a mais negra melancolia: o desprezo pelos homens. Ela copiava um trecho do Anticristo, de Nietzsche:

“Que não haja qualquer dúvida sobre o que desprezo.”

A mulher compilava obras para escrever sobre a vida de um grande homem. Era cúmplice dela mesma: de seus sonhos jamais realizados, de suas mortes metafóricas, de sua vida solitária. Homens havia que a queriam para a cama. Ela relutava por ser mais que um melindre. Dava bom dia ao sol diariamente, através de uma janela gradeada. Chorava a morte dos amigos invisíveis quando os livros chegavam ao fim. Brigava contra a existência pequena para uma alma dilatante. Sentia-se como o universo: implodiria ou explodiria? A mulher conversava comigo, com Zaratustra, com Nietzsche e com Voltaire. Escrevia: “Eu quero comer o universo!”

“A vida come elogios de nossas mãos. Quer elevar-se e investigar o mundo a olho nu. Ela não tem telescópio. Observa por dentro e nunca se satisfaz, por isso inventa várias pessoas. Sofremos. E quanto mais sofremos, mais a bendizemos, porque a escolhemos. Somos isso: tudo o que escolhemos é o que a liberdade nos deu.” – dialogava consigo: “O homem é múltiplo e cada um de seus estados de alma, cada momento de sua vida é uma realidade completa e total.”

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CAPÍTULO 36CAPÍTULO 36PARA ALÉM DOS MUNDOSPARA ALÉM DOS MUNDOS

Passeei pela caverna e me debrucei sobre a mesa de ônix para lançar as anotações ao vento. Soprei em homenagem aos relâmpagos. Aliviei a dor de frequentar a Terra imunda. Na terra dos viventes, Aurora e tantos personagens conhecemos um pouco da enorme solidão da qual padecem os mortais. Desmoronei minha dor neste papel. É triste ser personagem, como é triste vaguear tontamente pelo espetáculo de erros. Contudo, as leis do deserto fizeram-me voar longe, embora recaia na inocente e pretensa mania de pensar que os homens valem alguma coisa. Deus, enigma, criador, supremo, trazei-me os animais, pois encontrei mais perigo entre os homens! Deus é vivo? Quem o ressuscitou? Onde Jesus pisou nada há. Amor e guerra sejam apenas ... uma comédia. Onde há mais retorno para que não retornemos como as vacas nessa Terra? Onde há estrelas para que possamos cintilar junto a elas? A águia falou: no voo, discípula. O corvo pensou: na humildade, discípula. A serpente falou: na astúcia, discípula.

Escutei um choro de bebê, mas ele sumia como uma música que se vai acabando. Nada falei. Regi a ópera do choro dentro de mim e me contive para não saltar das penhas em labirintos insuportáveis.

Além está a ilha dos meus sepulcros, diz o profeta. Além quero estender uma coroa ricamente matizada. Rir comigo, olhar do alto as lides de touros.Alguém já penetrou num espírito solitário? Na morte, a mulher de várias facetas encontra-se com a vida. Chora, mas se consola com os animais e com os amigos mortos.

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CAPÍTULO 37CAPÍTULO 37...RETICÊNCIAS......RETICÊNCIAS...

O que não nos mata nos faz sentir ainda mais fortes.

“Por que serei tão duro?” – dizia em outro tempo o carvão de cozinha ao diamante. “Somos parentes próximos!”

“E por que tão brandos, tão pouco resistentes e tão dispostos a ceder – responde o diamante. – Por que há tanta negação, tanta renegação em vosso coração e tão pouca perspectiva? E se vossa dureza não quer fulminar e cortar e martelar, como poderíeis, algum dia, criar comigo? Se nossa dureza não cintilar, como será a estrela? Deve parecer beatitude imprimir a nossa mão em séculos como em cera branda e escrever sobre a vontade de milenários como sobre o bronze. No entanto, escreveis: O mais duro é o mais nobre .”

Ouvistes o que foi dito:

“Quando nós somos, a morte não é. Quando ela é, não somos mais. Nunca nos encontraremos com a morte! Tudo vai e tudo torna. A roda da existência gira eternamente. Tudo morre. Tudo floresce de novo. Correm eternamente as estações da existência. A todos os momentos a existência principia-se. Em torno de cada aqui gira a bola acolá. O centro está em toda a parte. A senda da eternidade é tortuosa. Tudo se destrói, tudo se reconstrói. eternamente edifica-se a casa da existência; o anel conserva-se fielmente a si mesmo.”

... Eu andava no meio da multidão, onde um homem pregava..._______________________________________________________________________

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“Mas sempre fui pobre, Michael! Bela é minha alma, amigo! Posso vê-la e bebê-la sem medo de morrer. Quando suspiro no crepúsculo é quando minha alma já se deitou. E eu aqui, isolada do mundo, não me deito sem um comprimido. Mas minha alma já se deitou junto ao sol e dele se ressente que queimada numa estrada nunca mente e o caso é que a verdade é que dói enquanto a mentira rói. Hipócritas! Não o sou, juro! Se pudesse mergulhar nesse diálogo com a discípula delirante, eu logo o convidaria para ir a uma taberna. Vamos ler? E vós dizeis: para quê? Que fareis com tantos livros? E responderei: serei um milésimo da população mundial. Serei uma pensante. O mundo não tem razão nenhuma de existir e é absurdo que exista! A consciência é um ser e o ser é um nada, diria Sartre.

Atravessei multidões de olhos vedados à procura de gente. Ninguém havia. Todos e nada. Quando olhei o horizonte, só vi máquinas andando sem rumo. Pessoas mortas vivendo sem passear pela vida. Olhei por cima do ombro de cada um: tiveram que se desviar, porque tiveram medo de serem atravessadas por uma vida. Sentindo a força que escondia no peito, enfiei-me por dentro de cada um: nem vazio havia. Havia nada. Ninguém sentia a força da vida na travessia. Contas a pagar, trabalhos a fazer, amantes à espera. Nem mendigos consegui ver. Pois via tudo de cima e de onde só quem escalou montanhas e desceu às profundezas de si mesmo pode ver. Olham para monumentos mas enxergam apenas a si mesmos. Um mundo confeitado de narcisos e ninfas indiscriminadamente. Um mundo com aspecto mal cheiroso. Um mundo pobre ruindo pela solidão.”

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