60
Índice de autores – Índice de títulos FALENAS Machado de Assis FLOR DA MOCIDADE EU CONHEÇO a mais bela flor És tu, rosa da mocidade Nascida, aberta para o amor. Eu conheço a mais bela flor. Tem do céu a serena cor E o perfume da virgindade. Eu conheço a mais bela flor, És tu, rosa da mocidade. Vive às vezes na solidão Como filha da brisa agreste. Teme acaso indiscreta mão Vive às vezes na solidão. Poupa a raiva do furacão Suas folhas de azul-celeste Vive às vezes na solidão Como filha da brisa agreste. Colhe-se antes que venha o mal Colhe-se antes que chegue o inverno; Que a flor morta já nada vale. Colhe-se antes que venha o mal. Quando a terra é mais jovial Todo o bem nos parece eterno Colhe-se antes que venha o mal Colhe-se antes que chegue o inverno. QUANDO ELA FALA She speaks! O speak again, bright angel! Shakespeare QUANDO ela fala, parece Que a voz da brisa se cala;

ASSIS, Machado de - Falenas.doc

Embed Size (px)

DESCRIPTION

ASSIS, Machado de - Falenas.doc

Citation preview

Falenas

ndice de autores ndice de ttulosFalenasMachado de AssisFLOR DA MOCIDADE

EU CONHEO a mais bela flor

s tu, rosa da mocidade

Nascida, aberta para o amor.

Eu conheo a mais bela flor.

Tem do cu a serena cor

E o perfume da virgindade.

Eu conheo a mais bela flor,

s tu, rosa da mocidade.

Vive s vezes na solido

Como filha da brisa agreste.

Teme acaso indiscreta mo

Vive s vezes na solido.

Poupa a raiva do furaco

Suas folhas de azul-celeste

Vive s vezes na solido

Como filha da brisa agreste.

Colhe-se antes que venha o mal

Colhe-se antes que chegue o inverno;

Que a flor morta j nada vale.

Colhe-se antes que venha o mal.

Quando a terra mais jovial

Todo o bem nos parece eterno

Colhe-se antes que venha o mal

Colhe-se antes que chegue o inverno.

QUANDO ELA FALA

She speaks! O speak again, bright angel! Shakespeare

QUANDO ela fala, parece

Que a voz da brisa se cala;

Talvez um anjo emudece

Quando ela fala.

Meu corao dolorido

As suas mgoas exala.

E volta ao gozo perdido

Quando ela fala.

Pudesse eu eternamente

Ao lado dela, escut-la,

Ouvir sua alma inocente

Quando ela fala.

Minh'alma, j semimorta,

Conseguira ao cu al-la,

Porque o cu abre uma porta

Quando ela fala.

MANH DE INVERNO

COROADA DE NVOAS surge a aurora

Por detrs das montanhas do oriente;

V-se um resto de sono e de preguia

Nos olhos da fantstica indolente.

Nvoas enchem de um lado e de outro os morros

Tristes como sinceras sepulturas

Essas que tm por simples ornamento

Puras capelas, lgrimas mais puras.

A custo rompe o sol; a custo invade

O espao todo branco: e a luz brilhante

Fulge atravs do espesso nevoeiro.

Como atravs de um vu fulge o diamante.

Vento frio, mas barato agita as folhas

Das laranjeiras midas da chuva:

Erma de flores, curva a planta o colo

E o cho recebe o pranto da viva.

Gelo no cobre o dorso das montanhas

Nem enche as folhas trmulas a neve;

Galhardo moo, o inverno deste clima

Na verde palma a sua histria escreve.

Pouco a pouco, dissipam-se no espao

As nvoas da manh; j pelos montes

Vo subindo as que encheram todo o vale

J se vo descobrindo os horizontes.

Sobe de todo o pano, eis aparece

Da natureza o esplndido cenrio

Tudo ali preparou cos sbios olhos

A suprema cincia do empresrio.

Canta a orquestra dos pssaros no mato

A sinfonia alpestre, a voz serena

Acorda os ecos tmidos do vale;

E a divina comdia invade a cena.

LA MARCHESA DE MIRAMAR

A misrrima Dido Pelos paos reais vaga ululando. Garo

DE QUANTO sonho um dia povoaste

A mente ambiciosa,

Que te resta? Uma pgina sombria,

A escura noite e um tmulo recente.

abismo! fortuna! Um dia apenas

Viu erguer, viu cair teu frgil trono.

Meteoro do sculo, passaste,

triste imprio, alumiando as sombras.

A noite foi teu bero e teu sepulcro!

Da tua morte os goivos inda acharam

Frescas as rosas dos teus breves dias;

E no livro da histria uma s folha

A tua vida conta; sangue e lgrimas.

No tranqilo castelo,

Ninho d'amor, asilo de esperanas,

A mo de urea, fortuna preparara,

Menina e moa um tmulo aos teus dias.

Junto do amado esposo,

Outra c'roa cingias mais segura,

A coroa do amor, ddiva santa

Das mos de Deus. No cu de tua vida

Uma nuvem sequer no sombreava

A esplndida manh; estranhos eram

Ao recatado asilo

Os rumores do sculo.

Estendia-se

Em frente o largo mar, tranqila face

Como a da conscincia alheia ao crime,

E o cu, cpula azul do equreo leito.

Ali, quando ao cair da amena tarde,

No tlamo encantado do ocidente,

O vento melanclico gemia,

E a onda murmurando,

Nas convulses do amor beijava a areia,

Ias tu junto dele, as mos travadas,

Os olhos confundidos,

Correr as brandas, sonolentas guas,

Na gndola discreta. Amenas flores

Com suas mos teciam

As namoradas Horas; vinha a noite,

Me de amores, solcita descendo,

Que em seu regao a todos envolvia

O mar, o cu, a terra, o lenho e os noivos...

Mas alm, muito alm do cu fechado,

O sombrio destino, contemplando

A paz do teu amor, a etrea vida

As santas efuses das noites belas

O terrvel cenrio preparava

A mais terrveis lances.

Ento surge dos tronos

A proftica voz que anunciava

Ao teu crdulo esposo:

"Tu sers rei, Macbeth!" Ao longe, ao longe.

No fundo do oceano, envolto em nvoas

Salpicado de sangue, ergue-se um trono.

Chamam-no a ele as vozes do destino.

Da tranqila manso ao novo imprio

Cobrem flores a estrada, estreis flores

Que mal podem cobrir o horror da morte.

Tu vais, tu vais tambm, vtima infausta;

O sopro da ambio fechou teus olhos...

Ah! quo melhor te fora

No meio dessas guas

Que a rgia nau cortava, conduzindo

Os destinos de um rei, achar a morte

A mesma onda os dous envolveria.

Uma s convulso s duas almas.

O vnculo quebrara, e ambas iriam

Como raios partidos de uma estrela

eterna luz juntar-se.

Mas o destino, alando a mo sombria,

J traara nas pginas da histria

O terrvel mistrio. A liberdade

Vela naquele dia a ingnua fronte.

Pejam nuvens de fogo o cu profundo.

Orvalha sangue a noite mexicana...

Viva e moa, agora em vo procuras

No teu plcido asilo o extinto esposo.

Interrogas em vo o cu e as guas.

Apenas surge ensangentada sombra

Nos teus sonhos de louca, e um grito apenas,

Um soluo profundo reboando

Pela noite do esprito, parece

Os ecos acordar da mocidade.

No entanto, a natureza alegre e viva,

Ostenta o mesmo rosto.

Dissipam-se ambies, imprios morrem,

Passam os homens como p que o vento

Do cho levanta ou sombras fugitivas

Transformam-se em runa o templo e a choa.

S tu, s tu, eterna natureza,

Imutvel, tranqila

Como rochedo em meio do oceano

Vs baquear os sculos.

Sussurra

Pelas ribas do mar a mesma brisa;

O cu sempre azul, as guas mansas;

Deita-se ainda a tarde vaporosa

No leito do ocidente

Ornam o campo as mesmas flores belas

Mas em teu corao magoado e triste

Pobre Carlota! o intenso desespero

Enche de intenso horror o horror da morte,

Viva da razo, nem j te cabe

A iluso da esperana.

Feliz, feliz, ao menos, se te resta,

Nos macerados olhos

O derradeiro bem: algumas lgrimas!

SOMBRAS

QUANDO, assentada, noite, a tua fronte inclinas,

E cerras descuidada as plpebras divinas,

E deixas no regao as tuas mos cair,

E escutas sem falar, e sonhas sem dormir,

Acaso uma lembrana, um eco do passado,

Em teu seio revive?

O tmulo fechado

Da ventura que foi, do tempo que fugiu,

Por que razo, mimosa, a tua mo o abriu?

Com que flor, com que espinho, a importuna memria

Do teu passado escreve a misteriosa histria?

Que espectro ou que viso ressurge aos olhos teus?

Vem das trevas do mal ou cai das mos de Deus?

saudade ou remorso? desejo ou martrio?

Quando em obscuro templo a fraca luz de um crio

Apenas alumia a nave e o grande altar

E deixa todo o resto em treva, e o nosso olhar

Cuida ver ressurgindo, ao longe, dentre as portas

As sombras imortais das criaturas mortas,

Palpita o corao de assombro e de terror;

O medo aumenta o mal. Mas a cruz do Senhor,

Que a luz do crio inunda, os nossos olhos chama;

O nimo esclarece aquela eterna chama

Ajoelha-se contrito, e murmura-se ento

A palavra de Deus, a divina orao.

Pejam sombras, bem vs, a escurido do templo;

Volve os olhos luz, imita aquele exemplo;

Corre sobre o passado impenetrvel vu;

Olha para o futuro e vem lanar-te ao cu.

ITE, MISSA EST

FECHA O MISSAL do amor e a bno lana

pia multido

Dos teus sonhos de moo e de criana,

Soa a hora fatal. reza contrito

As palavras do rito:

Ite, missa est.

Foi longo o sacrifcio; o teu joelho

De curvar-se cansou:

E acaso sobre as folhas do Evangelho

A tua alma chorou.

Ningum viu essas lgrimas (ai tantas!)

Cair nas folhas santas.

Ite, missa est.

De olhos fitos no cu rezaste o credo

O credo do teu deus;

Orao que devia, ou tarde ou cedo

Travar nos lbios teus;

Palavra que se esvai qual fumo escasso

E some-se no espao.

Ite, missa est.

Votaste ao cu, nas tuas mos aladas

A hstia do perdo,

A vtima divina e profanada

Que chamas corao.

Quase inteiras perdeste a alma e a vida

Na hstia consumida.

Ite, missa est.

Pobre servo do altar de um deus esquivo,

tarde, beija a cruz

Na lmpada em que ardia o fogo ativo,

V, j se extingue a luz.

Cubra-te agora o rosto macilento

O vu do esquecimento.

Ite, missa est.

RUNAS

No hay pjaros [hogao] em los nidos de antao. Provrbio espanhol

COBREM PLANTAS sem flor crestados muros;

Range a porta anci; o cho de pedra

Gemer parece aos ps do inquieto vate.

Runa tudo: a casa, a escada, o horto,

Stios caros da infncia.

Austera moa

Junto ao velho porto o vate aguarda;

Pendem-lhe as tranas soltas

Por sobre as roxas vestes

Risos no tem, e em seu magoado gesto

Transluz no sei que dor oculta aos olhos,

Dor que face no vem, medrosa e casta

Intima e funda; e dos cerrados clios

Se uma discreta e muda

Lgrima cai, no murcha a flor do rosto

Melancolia tcita e serena,

Que os ecos no acorda em seus queixumes

Respira aquele rosto. A mo lhe estende

O abatido poeta. Ei-los percorrem

Com tardo passo os relembrados stios,

Ermos depois que a mo da fria morte

Tantas almas colhera. Desmaiavam,

Nos serros do poente.

Aos rosas do crepsculo.

"Quem s? pergunta o vate; o solo que foge

No teu languido olhar um raio deixa;

Raio quebrado e frio: o vento agita

Tmido e frouxo as tuas longas tranas.

Conhecem-te estas pedras; das runas

Alma errante pareces condenada

A contemplar teus insepultos ossos.

Conhecem-te estas rvores. E eu mesmo

Sinto no sei que vaga e amortecida

Lembrana de teu rosto."

Desceu de todo a noite,

Pelo espao arrastando o manto escuro

Que a loura Vsper nos seus ombros castos,

Como um diamante, prende. Longas horas

Silenciosas correram. No outro dia,

Quando as vermelhas rosas do oriente

Ao j prximo sol a estrada ornavam,

Das runas saam lentamente

Duas plidas sombras...

MUSA DOS OLHOS VERDES

MUSA dos olhos verdes, musa alada,

divina esperana,

Consolo do ancio no extremo alento,

E sonho da criana;

Tu que junto do bero o infante cinges

Cos flgidos cabelos

Tu que transformas em dourados sonhos

Sombrios pesadelos;

Tu que fazes pulsar o seio s virgens;

Tu que s mes carinhosas

Enches o brando, tpido regao

Com delicadas rosas;

Casta filha do cu, virgem formosa

Do eterno devaneio

S minha amante, os beijos recebe,

Acolhe-me em teu seio!

J cansada de encher lnguidas flores

Com as lgrimas frias,

A noite v surgir do oriente a aurora

Dourando as serranias.

Asas batendo luz que as trevas rompe,

Piam noturnas aves.

E a floresta interrompe alegremente

Os seus silncios graves.

Dentro de mim, a noite escura e fria

Melanclica chora

Rompe estas sombras que o meu ser povoam

Musa, s tua a aurora!

NOIVADO

VS, QUERIDA, o horizonte ardendo em chamas?

Alm desses outeiros

Vai descambando o sol, e terra envia

Os raios derradeiros;

A tarde, como noiva que enrubesce,

Traz no rosto um vu mole e transparente;

No fundo azul a estrela do poente

J tmida aparece.

Como um bafo suavssimo da noite,

Vem sussurrando o vento.

As rvores agita e imprime s folhas

O beijo sonolento.

A flor ajeita o clix: cedo espera

O orvalho, e entanto exala o doce aroma;

Do leito do oriente a noite assoma;

Como uma sombra austera.

Vem tu, agora, filha de meus sonhos,

Vem, minha flor querida;

Vem contemplar o cu, pgina santa

Que amor a ler convida;

Da tua solido rompe as cadeias;

Desce do teu sombrio e mudo asilo;

Encontrars aqui o amor tranqilo...

Que esperas? que receias?

Olha o templo de Deus, pomposo e grande;

L do horizonte oposto

A lua, como lmpada, j surge

A alumiar teu rosto;

Os crios vo arder no altar sagrado,

Estrelinhas do cu que um anjo acende;

Olha como de blsamos recende

A c'roa do noivado.

Iro buscar-te em meio do caminho

As minhas esperanas;

E voltaro contigo, entrelaadas

Nas tuas longas tranas

No entanto eu preparei teu leito sombra

Do limoeiro em flor; colhi contente

Folhas com que alastrei o solo ardente

De verde e mole alfombra.

Pelas ondas do tempo arrebatados,

At morte iremos,

Soltos ao longo do baixel da vida

Os esquecidos remos.

Firmes, entre o fragor da tempestade,

Gozaremos o bem que amor encerra,

Passaremos assim do sol da terra

Ao sol da eternidade.

A ELVIRA (LAMARTINE)

QUANDO, contigo a ss, as mos unidas,

Tu, pensativa e muda, e eu, namorado,

s volpias do amor a alma entregando,

Deixo correr as horas fugidias

Ou quando s solides de umbrosa selva

Comigo te arrebato; ou quando escuto

To s eu,teus ternssimos suspiros

E de meus lbios solto

Eternas juras de constncia eterna;

Ou quando enfim, tua adorada fronte

Nos meus joelhos trmulos descansa,

E eu suspendo meus olhos em teus olhos,

Como s folhas da rosa vida abelha;

Ai, quanta vez ento dentro em meu peito

Vago terror penetra, como um raio,

Empalideo, tremo;

E no seio da glria em que me exalto,

Lgrimas verto que a minha alma assombram!

Tu, carinhosa e trmula,

Nos teus braos me cinges,e assustada,

Interrogando em vo, comigo choras!

"Que dor secreta o corao te oprime?"

Dizes tu. "Vem, confia os teus pesares

Fala! eu abrandarei as penas tuas!

Fala! eu consolarei tua alma aflita!"

Vida do meu viver, no me interrogues!

Quando enlaado nos teus nveos braos

A confisso de amor te ouo, e levanto

Languidos olhos para ver teu rosto,

Mais ditoso mortal o cu no cobre!

Se eu tremo, porque nessas esquecidas

Afortunadas horas

No sei que voz do enleio me desperta,

E me persegue e lembra

Que a ventura coo tempo se esvaece,

E o nosso amor facho que se extingue!

De um lance, espavorida,

Minha alma voa s sombras do futuro,

E eu penso ento: "Ventura que se acaba

Um sonho vale apenas".

LGRIMAS DE CERA

PASSOU; viu a porta aberta.

Entrou; queria rezar.

A vela ardia no altar.

A igreja estava deserta.

Ajoelhou-se defronte

Para fazer a orao;

Curvou a plida fronte

E ps os olhos no cho.

Vinha trmula e sentida.

Cometera um erro, a cruz

a ncora da vida,

A esperana, a fora, a luz.

Que rezou? No sei. Benzeu-se

Rpidamente. Ajustou

O vu de rendas. Ergueu-se

E pia se encaminhou.

Da vela benta que ardera,

Como tranqilo fanal,

Umas lgrimas de cera

Caam no castial.

Ela porm no vertia

Ma lgrima sequer.

Tinha f, - a chama a arder -

Chorar que no podia.

LIVROS E FLORES

TEUS OLHOS so meu livros.

Que livro h a melhor,

Em que melhor se leia

A pgina do amor?

Flores me so teus lbios.

Onde h mais bela flor

Em que melhor se beba

O blsamo do amor?

PSSAROSJe veux changer mes penses em oiseaux.. C. MAROT

OLHA COMO, cortando os leves ares,

Passam do vale ao monte as andorinhas;

Vo pousar na verdura dos palmares,

Que, tarde, cobre transparente vu;

Voam tambm como essas avezinhas

Meus sombrios, meus tristes pensamentos;

Zombam da fria dos contrrios ventos,

Fogem da terra, acercam-se do cu.

Porque o cu tambm aquela estncia

Onde respira a doce criatura,

Filha de nosso amor, sonho da infncia,

Pensamento dos dias juvenis.

L, como esquiva flor, formosa e pura,

Vives tu escondida entre a folhagem,

rainha do ermo, fresca imagem

Dos meus sonhos de amor calmo e feliz!

Vo para aquela estncia enamorados,

Os pensamentos de minh'alma ansiosa;

Vo contar-lhe os meus dias mal gozados

E estas noites de lgrimas e dor.

Na tua fronte pousaro, mimosa,

Como as aves no cimo da palmeira,

Dizendo aos ecos a cano primeira

De um livro escrito pela mo do amor.

Diro tambm como conservo ainda

No fundo de minh'alma essa lembrana

De tua imagem vaporosa e linda,

nico alento que me prende aqui

E diro mais que estrelas de esperana

Enchem a escurido das noites minhas

Como sobem ao monte as andorinhas

Meus pensamentos voam para ti.

O VERME

EXISTE uma flor que encerra

Celeste orvalho e perfume.

Plantou-a em fecunda terra

Mo benfica de um nume.

Um verme asqueroso e feio,

Gerado em lodo mortal

Busca esta flor virginal

E vai dormir-lhe no seio.

Morde, sangra, rasga e mina,

Suga-lhe a vida e o alento;

A flor o clix inclina;

As folhas, leva-as o vento.

Depois, nem resta o perfume

Nos ares da solido...

Esta flor o corao.

Aqule verme o cime.

UN VIEUX PAYS . . . juntamente choro e rio. CAMES.

IL EST UN VIEUX pays, plein d'ombre et de lumire,

O l'on rve le jour, o l'on pleure le soir,

Un pays de blasphme, autant que de prire,

N pour la doute et pour l'espoir.

On n'y voit point de fleurs sans un ver qui les ronge,

Point de mer sans tempte, ou de soleil sans nuit;

Le bonheur y parat quelquefois dans un songe

Entre les bras du sombre ennui.

L'amour y va souvent, mais c'est tout un dlire

Un dsespoir sans fin, une nigme sans mot;

Parfois il rit gament, mais de cet affreux rire

Qui n'est peut-tre qu'un sanglot.

On va dans ce pays de misre et d'ivresse,

Mais on le voit peine, on en sort, on a peur

Je l'habit pourtant, j'y passe na jeunesse...

Hlas! ce pays, c'est mon coeur.

LUZ ENTRE SOMBRAS

NOITE medonha e escura,

Muda como o passamento,

Uma s no firmamento

Trmula estrela fulgura.

Fala aos ecos da espessura

A chorosa harpa do vento,

E num canto sonolento

Entre as rvores murmura.

Noite que assombra a memria,

Noite que os medos convida

Erma, triste, merencria.

No entanto... minh'alma olvida

Dor que se transforma em glria,

Morte que se rompe em vida.

LIRA CHINESA

I / O POETA A RIR ( HAN-TI )

TAA D'GUA parece o lago ameno;

Tm os bambus a forma de cabanas,

Que as rvores em flor, mais altas, cobrem

Com verdejantes tectos

As pontiagudas rochas entre flores,

Dos pagodes o grave aspecto ostentam...

Faz-me rir ver-te assim, natureza,

Cpia servil dos homens.

II / A UMA MUI IIER (TCH-TSI)

Cantigas modulei ao som da flauta,

Da minha flauta d'bano;

Nelas minh'alma segredava tua

Fundas, sentidas mgoas.

Cerraste-me os ouvidos. Namorados

Versos compus de jbilo,

Por celebrar teu nome, as graas tuas,

Levar teu nome aos sculos.

Olhaste, e, meneando a airosa frente,

Com tuas mos purssimas,

Folhas em que escrevi meus pobres versos

Lanaste s ondas trmulas.

Busquei ento por encantar tu'alma

Uma safira esplndida,

Fui dep-la a teus ps... tu descerraste

Da tua boca as prolas.

III / O IMPERADOR (THU-FU)

Olha. O Filho do Cu, em trono de ouro,

E adornado com ricas pedrarias,

Os mandarins escuta: um sol parece

De estrelas rodeado.

Os mandarins discutem gravemente

Cousas muito mais graves. E ele? Foge-lhe

O pensamento inquieto e distrado

Pela janela aberta.

Alm, no pavilho de porcelana,

Entre donas gentis est sentada

A imperatriz, qual flor radiante e pura

Entre viosas folhas.

Pensa no amado esposo, arde por v-lo,

Prolonga-se-lhe a ausncia, agita o leque...

Do imperador ao rosto um sopro chega

De recendente brisa.

"Vem dela este perfume", diz, e abrindo

Caminho ao pavilho da amada esposa,

Deixa na sala, olhando-se em silncio,

Os mandarins pasmados.

IV / O LEQUE (TAN-JO-LU)

Na perfumada alcova a esposa estava.

Noiva ainda na vspera. Fazia

Calor intenso; a pobre moa ardia,

Com fino leque as faces refrescava.

Ora, no leque em boa letra feito

Havia neste conceito:

"Quando, imvel o vento e o ar pesado,

Arder o intenso estio

Serei por mo amiga ambicionado;

Mas, volte o tempo frio,

Ver-me-eis a um canto logo abandonado".

L a esposa este aviso, e o pensamento

Volve ao jovem marido.

"Arde-lhe o corao neste momento

(Diz ela) e vem buscar enternecido

Brandas auras de amor. Quando mais tarde

Tornar-se em cinza fria

O fogo que hoje lhe arde,

Talvez me esquea e me desdenhe um dia."

V / A FOLHA DO SALGUEIRO (TCHAN-TI-LIN)

Amo aquela formosa e terna moa

Que, janela encostada, arfa e suspira;

No porque tem do largo rio margem

Casa faustosa e bela.

Amo-a, porque deixou das mos mimosas

Verde folha cair nas mansas guas.

Amo a brisa de leste que sussurra,

No porque traz nas asas delicadas

O perfume dos verdes pessegueiros

Da oriental montanha.

Amo-a porque impeliu coas tnues asas

Ao meu batel a abandonada folha.

Se amo a mimosa folha aqui trazida,

No porque me lembre alma e aos olhos

A renascente, a amvel primavera,

Pompa e vigor dos vales.

Amo a folha por ver-lhe um nome escrito,

Escrito, sim, por ela, e esse... meu nome.

VI / AS FLORES E OS PINHEIROS (TIN-TUN-SING )

Vi os pinheiros no alto da montanha

Ouriados e velhos;

E ao sop da montanha, abrindo as flores

Os clices vermelhos.

Contemplando os pinheiros da montanha,

As flores tresloucadas

Zombam deles enchendo o espao em torno

De alegres gargalhadas.

Quando o outono voltou, vi na montanha

Os meus pinheiros vivos,

Brancos de neve, e meneando ao vento

Os galhos pensativos.

Volvi o olhar ao stio onde escutara

Os risos mofadores;

Procurei-as em vo; tinham morrido

As zombeteiras flores.

VII / REFLEXOS (THU-FU )

Vou rio abaixo vogando

No meu batel e ao luar;

Nas claras guas fitando,

Fitando o olhar.

Das guas vejo no fundo,

Como por um branco vu

Intenso, calmo, profundo,

O azul do cu.

Nuvem que no cu flutua,

Flutua n'gua tambm;

Se a lua cobre, outra lua

Cobri-la vem.

Da amante que me extasia,

Assim, na ardente paixo,

As raras graas copia

Meu corao.

VIII / CORAO TRISTE FALANDO AO SOL (SU-TCHON)

No arvoredo sussurra o vendaval do outono,

Deita as folhas terra, onde no h florir,

E eu contemplo sem pena esse triste abandono,

S eu as vi nascer, vejo-as s eu cair.

Como a escura montanha, esguia e pavorosa,

Faz, quando o sol descamba, o vale enoitecer,

Esta montanha da alma, a tristeza amorosa,

Tambm de ignota sombra enche todo o meu ser.

Transforma o frio inverno a gua em pedra dura,

Mas torna a pedra em gua um raio de vero;

Vem, sol, vem, assume o trono teu na altura,

V se podes fundir meu triste corao.

UMA ODE DE ANACREONTE

(A MANUEL DE MELO)

PERSONAGENS:

LSIAS. CLEON. MIRTO.

TRS ESCRAVOS

A cena em Samos.

Sala de festim em casa de Lsias. esquerda a mesa do festim; direita uma mesa tendo em cima uma lmpada apagada, e junto da lmpada um rolo de papiro.

CENA PRIMEIRA: LSIAS, CLEON, MIRTO

(Esto no fim de um banquete, os

dous homens deitados maneira

antiga, MIRTO sentada entre as

dous leitos. Trs escravos)

LSIAS Melanclica ests, bela Mirto. Bebamos!

Aos prazeres!

CLEON Eu bebo memria de Samos.

Samos vai terminar os seus dourados dias;

Adeus, terra em que achei consolo s agonias

Da minha mocidade; adeus, Samos, adeus!

MIRTO Querem-lhe os deuses mal?

CLEON No; dous olhos, os teus.

LSIAS Bravo, Cleon!

MIRTO Poeta! os meus olhos?

CLEON So lumes

Capazes de abrasar at os prprios numes.

Samos nova Tria, e tu s outra Helena.

Quando Lesbos, a me de Safo, a ilha amena,

No vir a bela Mirto, a alegre cortes,

Armar-se- contra ns

LSIAS Lesbos boa irm.

MIRTO Outras belezas tem, dignas da loura Vnus.

CLEON Menos dignas que tu.

MIRTO Mais do que eu.

LSIAS Muito menos.

CLEON Tens vergonha de ser formosa e festejada,

Mirto? Vnus no quer beleza envergonhada.

Pois que dos imortais houveste esse condo

De inspirar quantos vs, inspira-os, Mirto.

MIRTO No;

So teus olhos, poeta, eu no tenho a beleza

Que arrasta coraes.

CLEON Divina singeleza!

LSIAS ( parte)

Vejo atravs do manto as galas da vaidade.

(alto)

Vinho, escravo!

(O escravo deita vinho na taa de Lsias)

Poeta, um brinde mocidade. Trava da lira e invoca o deus inspirador.

CLEON "Feliz quem junto a ti, ouve a tua fala, amor!"

MIRTO Versos de Safo!

CLEON Sim.

LSIAS Vs? modstia pura

Ele na poesia o que s na formosura.

Faz versos de primor e esconde-os ao profano;

Tem vergonha. Eu no sei se o vcio lesbiano. . .

MIRTO Ah! tu s. . .

CLEON Lesbos foi minha ptria tambm,

Lesbos, a flor do Egeu.

MIRTO J no ?

CLEON Lesbos tem

Tudo o que me fascina e tudo o que me mata:

As festas do prazer e os olhos de uma ingrata.

Fugi da ptria e achei, j curado e tranqilo,

Em Lsias um irmo, em Samos um asilo.

Bem hajas tu que vens encher-me o corao!

LSIAS Insacivel! No tens em Lsias um irmo?

MIRTO Volto ptria.

CLEON Pois qu! tu vais?

MIRTO Em poucos dias. . .

LSIAS Fazes mal; tens aqui os moos e as folias,

O gozo, a adorao; que te falta?

MIRTO Os meus ares.

CLEON A que vieste ento?

MIRTO Sucessos singulares.

Vim por acompanhar Lisicles, mercador

De Naxos, tanto pode a constancia no amor!

Corremos todo o Egeu e a costa inia; fomos

Comprar o vinho a Creta e a Tnedos os pomos.

Ah! como doce o amor na solido das guas!

Tem-se vida melhor- esquecem-se-lhe as mgoas.

Zfiro ouviu por certo os sculos febris,

Os jbilos do afeto, as falas juvenis;

Ouviu-os, delatou ao deus que o mar governa

A indiscreta ventura, a efuso doce e terna.

Para a fria acalmar da sombria deidade,

Nave e bens varreu tudo a horrvel tempestade.

Foi assim que eu perdi a Lisicles, assim

Que eu semimorta e fria tua plaga vim.

CLEON Oh! coitada!

LSIAS O infortnio os nimos apura;

As feridas que faz o mesmo Amor as cura;

Brandem armas iguais Aquiles e Cupido.

Queres ver noutro amor o teu amor perdido?

Samos o tem de sobra.

CLEON Eu, Mirto, eu sei amar

No fio o corao da inconstncia do mar.

No tenho galees rompendo o seio a Ttis

Estrada tanta vez ao torvo e obscuro Letes.

Aqui me tens; sou teu; escreve a minha sorte;

Podes doar-me a vida ou decretar-me a morte.

MIRTO Mas, se eu volto. . .

CLEON Pois bem! aonde quer que te vs Irei contigo; a deusa indmita e falaz

Ser-me- hspede amiga; ao p de ti a escura

Noite parece aurora, e bero a sepultura.

MIRTO Quando fala o dever, a vontade obedece;

Eu devo ir s; tu ficas, ama-me um pouco e esquece.

LSIAS Tens razo, bela Mirto; escuta o teu dever.

MIRTO Ai! fcil amar, difcil esquecer.

LSIAS (a MIRTO)

Queres pr termo festa? Um brinde a Vnus, filha

Do mar azul, beleza, encanto, maravilha;

Nascida para ser perpetuamente amada.

A Vnus!

(Depois do brinde os escravos tra- zem os vasos com gua perfuma- da em que os convivas lavam as mos; os escravos saem, levando os restos do banquete. Levantam-se todos.)

Queres tu, mimosa naufragada,

Ouvir de hemnia serva, em lira de marfim,

Uma alegre cano? Preferes o jardim?

O prtico talvez?

MIRTO Lsias, sou indiscreta;

Quisera antes ouvir a voz do teu poeta.

LSIAS Nume no pede, impe.

CLEON O mando lisonjeiro.

LSIAS Pois comea.

CENA II: Os mesmos, um escravo.

Procura a Mirto um mensageiro.

MIRTO Um mensageiro! a mim!

LSIAS Manda-o entrar.

ESCRAVO No quer.

LSIAS Vai, Mirto.

MIRTO (saindo) Volto j.

(Sai o ESCRAVO).

CENA III: LSIAS, CLEON.

CLEON (Olhando para o lugar por onde MIRTO saiu)Oh! deuses! que mulher!

LSIAS Ah! que prola rara!

Onde a encontraste?

LSIAS Achei-a

Com Partnis que dava uma esplndida ceia;

Partnis, ex-bonita, ex-jovem, ex-da-moda,

Sabes que v fugir-lhe a enfastiada roda;

E, para no perder o grupo adorador,

Fez do templo deserto uma escola de amor.

Foi ela quem achou a nufraga perdida,

Exposta ao vento e ao mar, quase a expirar-lhe a vida.

A beleza pagava o emprego de uma esmola;

Dentro em pouco era Mirto a flor de toda a escola.

CLEON Lembrou-te convid-la ento para um festim?

LSIAS Foi um pouco por ela e um pouco mais por mim.

CLEON Tambm amas?

LSIAS Eu sou mestre em matria de amor.

Vnus e o louro Apolo, a poesia e a beleza.

CLEON Oh! a beleza, sim! Viste j tanta graa,

To celestes feies?

LSIAS Cuidado! Aquela caa

Zomba dos tiros vos de ingnuo caador!

CLEON Incrdulo !

LSIAS Eu sou mestre em matria de amor.

Se tu, atento e calmo, a narrao Ihe ouvisses

Conheceras melhor o engenho desta Ulisses.

Aquele ardente amor a Lisicles, aquele

Fundo e intenso pesar que sua ptria a impele,

Armas so com que a astuta os nimos seduz.

CLEON Oh! no creio.

LSIAS Por qu?

CLEON No vs como Ihe luz

Tanta expresso sincera em seus olhos divinos?

LSIAS Sim, tem muita expresso... para iludir meninos.

CLEON Pois tu no crs?

LSIAS Em qu? No naufrgio? Decerto.

Em Lisicles? Talvez. No amor? mais incerto.

Na inteno de voltar a Lesbos? Isso no!

Sabes o que ela quer? Prender um corao.

CLEON Impossvel!

LSIAS Poeta! ests na alegre idade

Em que a cincia da vida a credulidade.

Vs tudo azul e em flor; eu j me no iludo.

Pois amar cortess! isso demanda estudo,

No vai assim, que as tais abelhitas do amor

Correm de bolsa em bolsa e no de flor em flor.

CLEON Mas no as amas tu?

LSIAS Decerto minha moda,

Meu grande corao cos vcios se acomoda;

Sacrifcios de amor no sonha nem procura;

No Ihes pede iluses, pede-lhes s ternura.

No me empenho em achar alma ungida no cu:

Se crime este sentir, confesso-me, sou ru.

No peo amor ao vinho- irei pedi-lo s damas?

Delas e dele exijo apenas estas chamas

Assim que eu estimo as nforas e os beijos.

L protestos de amor, eternos e leais,

Tudo isso fumo vo. Que queres? Os mortais

Somos todos assim.

CLEON Ai, os mortais! dize antes

Os filsofos maus, ridculos pedantes

Os que no sabem crer, os fartos j de amores

Esses sim. Os mortais !

LSIAS Refreia os teus furores

Poeta; eu no quisera amargurar-te, e enfim

No podia supor que a amasses tanto assim.

Cspite! Vais depressa!

CLEON Ai, Lsias, verdade,

Amo-a, como no amo a vida e a mocidade;

De que modo nasceu esta afeio que encerra

Todo o meu ser, ignoro. Acaso sabe a terra

Por que mais bela ao sol e s auras matinais?

Amores estes so terrveis e fatais.

LSIAS Vs com olhos do cu cousas que so do mundo;

Acreditas achar esse afeto profundo,

Nestas filhas do mal! Se a todo o transe queres

Obter a casta flor dos clicos prazeres

Deixa a alegre Corinto e todo o luxo seu;

Outro porto achars: procura o gineceu.

Escolhe aquele amor doce, inocente e puro,

Que ainda no tem passado e vive do futuro.

Para mim, j to disse, o caso diferente;

No me importa um nem outro; eu vivo no presente.

CLEON Deu-te amiga Fortuna um grande cabedal:

Viver, sem iluses, no bem como no mal;

No conhecer o amor que morde, que se nutre

Do nosso sangue, o amor funesto, o amor abutre;

No beber gota a gota este brando veneno

Que requeima e destri; no ver em mar sereno

Subitamente erguer-se a voz dos aquiles.

Afortunado s tu.

LSIAS Lei de compensaes!

Sou filsofo mau, ridculo pedante

Mas invejas-me a sorte; oh! lgica de amante.

CLEON a do corao.

LSIAS Terrvel mestre!

CLEON Ensina

Dos seres imortais a transfuso divina!

LSIAS A lio profunda e escapa ao meu saber;

Outra escola professo, a escola do prazer!

CLEON Tu no tens corao.

LSIAS Tenho. mas no me ilude,

Circe que perdeu o encanto e a juventude.

CLEON Velho Stiro!

LSIAS Justo: um semideus silvestre.

Nestas cousas do amor nunca tive outro mestre.

Tu gostas de chorar; eu c prefiro rir.

Trs artigos de lei: gozar, beber, dormir.

CLEON Compras com isso a paz; a mim coube-me o tdio,

A solido e a dor.

LSIAS Queres um bom remdio,

Um filtro da Tesslia, um blsamo infalvel?

Esquece empresas vs, no tentes o impossvel;

Prende o teu corao nos laos de Himeneu;

Casa-te; encontrars o amor no gineceu.

Mas cortess! Jamais! So Grgones! Medusas!

CLEON Essas que conheceste e to severo acusas

- Pobres moas! - no so o universal modelo;

De outras sei a quem coube um corao singelo,

Que preferem a tudo a glria singular

De conhecer somente a cincia de amar;

Capazes de sentir o ardor da intensa chama

Que eleva, que resgata a vida que as infama.

LSIAS Se achares tal milagre, eu mesmo irei pedir-to.

CLEON Basta um passo, ach-lo-ei.

LSIAS Bravo ! chama-se?

CLEON Mirto.

Que pode conquistar at o amor de um deus!

LSIAS Crs nisso?

CLEON Por que no?

Tu s um nscio; adeus!

CENA IV: CLEON

CLEON Vai, cptico! tu tens o vicio da riqueza:

Farto, no crs na fome... A minha singeleza

Faz-te rir; tu no vs o amor que absorve e mata;

Mirto, vinga-me tu da calnia insensata;

Amemo-nos. ela!

CENA V: CLEON, MIRTO

MIRTO Ests triste!

CLEON Oh! que no!

Mas deslumbrado, sim, como se uma viso...

MIRTO A viso vai partir.

CLEON Mas muito tarde...

MIRTO Breve.

CLEON Quem te chama?

MIRTO O destino. E sabes quem me escreve?

CLEON Tua me.

MIRTO J morreu.

CLEON Algum antigo amante?

MIRTO Lisicles.

CLEON Vive?

MIRTO Sim. Depois de andar errante

Numa tbua, merc das ondas, quis o cu

Que viesse encontr-lo um barco do Pireu.

Pobre Lisicles! teve em to cruenta lida

A dor da minha morte e a dor da prpria vida.

Em vo interrogava o mar cioso e mudo.

Perdera, de uma vez, numa s noite, tudo,

A ventura, a esperana, o amor, e perdeu mais:

Naufragaram com ele os poucos cabedais.

Entrou em Samos pobre, inquieto, semimorto,

Um barqueiro, que a tempo atravessava o porto,

Disse-lhe que eu vivia, e contou-lhe a aventura

Da malfadada Mirto.

CLEON isso, a sorte escura

Voltou-se contra mim; no consente, no quer

Que eu me farte de amor no amor de uma mulher.

Vejo em cada paixo o fado que me oprime;

O amar j sofrer a pena do meu crime.

Ixion foi mais audaz amando a deusa augusta;

Transps o obscuro lago e sofre a pena justa;

Mas eu no. Antes de ir s regies infernais

So as graas comigo Eumnides fatais!

MIRTO Caprichos de poeta! Amor no falta s damas;

Damas, tem-las aqui; inspira-lhe essas chamas.

CLEON Impe-se leis ao mar? O corao isto;

Ama o que Ihe convm; convm amar a Egisto

Clitemnestra, convm a Cntia Endimio;

caprichoso e livre o mar do corao;

De outras sei que eu houvera em meus versos cantado;

No Ihes quero... no posso.

MIRTO Ai, triste enamorado!

CLEON E tu zombas de mim!

MIRTO Eu zombar? No, lamento

A tua acerba dor, o teu fatal tormento.

No conheo eu tambm esse cruel penar?

S dous remdios tens; esquecer, esperar.

De quanto almeja e quer o amor nem tudo alcana;

Contenta-se ao nascer coas auras da esperana;

Vive da prpria mgoa; a prpria dor o alenta.

CLEON Mas, se a vida to curta, a agonia to lenta!

MIRTO No sabes esperar? Ento cumpre esquecer.

Escolhe entre um e outro; preciso escolher.

CLEON Esquecer? sabes tu, Mirto, se a alma esquece

O prazer que a fulmina, e a dor que a fortalece?

MIRTO Tens na ausncia e no tempo os velhos pais do olvido;

O bem no alcanado como o bem perdido,

Pouco a pouco se esvai na mente e corao;

Pe o mar entre ns... dissipa-se a iluso.

CLEON Impossvel!

MIRTO Ento espera; algumas vezes

A fortuna transforma em glrias os reveses.

CLEON Mirto, valem bem pouco as glrias j tardias.

MIRTO Urn s dia de amor compensa estreis dias.

CLEON Compensar, rnas quando? A mocidade em flor

Bem cedo morre, e essa a que convm a amor.

Vejo cair no ocaso o sol da minha vida.

MIRTO Cabea de poeta, exaltada e perdida!

Pensas estar no ocaso o sol que mal desponta?

CLEON A clepsidra do amor no conta as horas, conta

As iluses; velhice perd-las assim;

Breve a noite abrira seus vus por sobre mim.

MIRTO No hs de envelhecer; as iluses contigo

Flores so que respeita olo brando e amigo.

Guarda-as, talvez um dia, e no tarde, as colhamos.

CLEON Se eu a Lesbos no vou.

MIRTO Podem colher-se em Samos.

CLEON Voltas breve?

MIRTO No sei.

CLEON Oh! sim, deves voltar!

MIRTO Tenho medo.

CLEON De qu?

MIRTO Tenho medo... do mar.

CLEON Teu sepulcro j foi; o medo justo; fica.

Lesbos para ti mais formosa e mais rica.

Mas a ptria o amor; o amor transmuda os ares.

Muda-se o corao? Mudam-se os nossos lares.

Da importuna memria o teu passado exclui;

Vida nova nos chama, outro cu nos influi.

Fica; eu disfararei com rosas este exlio;

A vida um sonho mau; faamo-la um idlio.

Cantarei a teus ps a nossa mocidade,

A beleza que impe, o amor que persuade,

Vnus que faz arder o fogo da paixo,

Teu olhar, doce luz que vem do corao.

Pricles no amou com tanto ardor a Aspsia,

Nem esse que morreu entre as pombas da sia,

A Las siciliana. Aqui as Horas belas

Tecero para ti vivssimas capelas.

Nem morrers; teu nome em meus versos h de ir,

Vencendo o tempo e a morte, aos sculos por vir.

MIRTO Tanto me queres tu!

CLEON Imensamente. Anseio

Por sentir, bela Mirto, arfar teu brando seio,

Bater teu corao, tremer teu lbio puro,

Todo viver de ti.

MIRTO Confia no futuro.

CLEON To longe!

MlRTO No, bem perto.

CLEON Ah! que dizes?

MIRTO Adeus!

(Passa junto da mesa da direita e v o rolo de papiro)

Curiosa que sou!

CLEON So versos.

Versos teus?

(LSIAS aparece ao fundo)

CLEON De Anacreonte, o velho, o amvel, o divino.

MIRTO A musa toda inia, e o estro peregrino.

(Abre o papiro e l)

"Fez-se Niobe em pedra e Filomena em pssaro.

Assim

Folgaria eu tambm me transformasse Jpiter

A mim.

Quisera ser o espelho em que o teu rosto mgico

Sorri;

A tnica feliz que sempre se est prxima

De ti;

O banho de cristal que esse teu corpo cndido

Contm;

O aroma de teu uso e donde eflvios mgicos

Provm;

Depois esse listo que de teu seio trgido

Faz dous;

Depois do teu pescoo o rosicler de prolas;

Depois . . .

Depois, ao ver-ter assim, a nica e to sem mulas

Qual s,

At quisera ser teu calado, e pisarem-me

Teus ps". *

Que magnficos so!

CLEON Minha alma assim te fala.

MIRTO Atendendo ao poeta eu pensava escut-la.

CLEON Eco do meu sentir foi o velho amador;

Tais os desejos so do meu profundo amor.

Sim, eu quisera ser tudo isto, o espelho, o banho,

O calado, o colar... Desejo acaso estranho,

Louca ambio talvez de peta exaltado...

MIRTO Tanto sentes por mim'?

CENA VI: CLEON, MIRTO, LSIAS

LSIAS (entrando)

Amor, nunca sonhado.

Se a musa dele s tu!

CLEON Lsias!

MIRTO Ouviste?

LSIAS Ouvi .

Versos que Anacreonte houvera feito a ti,

Se vivesses no templo em que, pulsando a lira,

Estas odes comps que a velha Grcia admira.

(A CLEON)

Quer falar-te um sujeIto, um Clnias, um colega,

Ex-mercador, como eu.

MIRTO Ai, que importuno!

Alega

LSIAS Que no pode esperar, que isto no pode ser,

Que um processo... Afinal no no pude entender.

Pode ser que contigo o homem se acomode.

Prometeste talvez compor-lhe alguma ode?

CLEON No. Adeus, bela Mirto; espera-me um instante

MIRTO No tardes!

LSIAS ( parte) Indiscreta!

CLEON Espera.

LSIAS Petulante!

CENA Vll: MIRTO, LSIAS

MIRTO Sou curiosa. Quem Clnias, ex-mercador?

Amigo dele?

LSIAS Mais do que isso; um credor.

MIRTO Ah!

LSIAS Que belo rapaz! que alma fogosa e pura,

Bem digna de aspirar-te um hausto de ventura!

Queira o cu pr-lhe termo profunda agonia,

Surja enfim para ele o sol de um novo dia.

Merece-o. Mas v l se h destino pior;

Que o alado Mercrio obstar o alado Amor.

Com beijos no se paga a pompa do vestido,

O espetculo e a mesa; e se o gentil Cupido

Gosta de ouvir canes, o outro no vai com elas;

Vale uma dracma s vinte odezinhas belas.

Um poema no compra um simples borzeguim.

Versos! so bons de ler, mais nada; eu penso assim.

MIRTO Pensas mal! A poesia sempre um dom celeste;

Quando o gnio o possui quem h que o no requeste?

Hermes, com ser o deus dos graves mercadores,

Tocou lira tambm.

LSIAS J sei que ests de amores.

MIRTO Que esperana! Bem vs que eu j no posso amar.

LSIAS Perdeste o corao?

MIRTO Sim; perdi-o no mar.

LSIAS Pesquemo-lo; talvez essa prola fina

Venha ornar-me a existncia agourada e mofina.

MIRTO Mofina?

LSIAS Pois ento? Enfaram-me estas belas

Da terra samiana; assaz vivi por elas.

Outras desejo amar, filhas do azul Egeu.

Varia de feies o Amor, como Proteu.

MIRTO Seu carter melhor foi sempre o ser constante.

LSIAS Serei menos fiel, no sou menos amante.

Cada beleza em si toda a paixo resume.

Pouco me importa a flor; importa-me o perfume.

MIRTO Mas quem quer o perfume afaga um pouco a flor;

Nem fere o objeto amado a mo que implora o amor.

LSIAS Ofendo-te com isto? Esquece a minha ofensa.

MIRTO J a esqueci; passou.

LSIAS Quem fala como pensa

Arrisca-se a perder ou por sobra ou por mngua.

Eu confesso o meu mal; no sei tentear a lngua.

Pois que me perdoaste, escuta-me. Tu tens

A graa das feies, o sumo bem dos bens

Moa, trazes na fronte o doce beijo de Hebe

Como um filtro de amor que, sem sentir, se bebe

De teus olhos destila a eterna juventude

De teus olhos que um deus, por Ihes dar mais virtude

Fez azuis como o cu, profundos como o mar.

Quem tais dotes rene, Mirto, deve amar.

MIRTO Falas como um poeta, e zombas da poesia!

LSIAS Eu, poeta? jamais.

MIRTO A tua fantasia

Respirou certamente o ar do monte Himeto.

Tem a expresso to doce!

LSIAS a expresso do afeto.

Sou em cousas de Apolo um simples amador.

A minha grande musa Vnus, me do Amor.

No mais no aprendi (os fados meus adversos

Vedaram-mo! ) a cantar bons e sentidos versos.

Cleon, esse que sabe acender tantas almas

Conquistar de um s lance os coraes e as palmas.

MIRTO Conquistar, oh! que no!

LSIAS Mas agradar?

MIRTO Talvez.

LSIAS Isso mesmo; j muito. O que o poeta fez

F-lo-ei jamais? Contudo, inda tent-lo quero;

Se no me inspira a musa, alma filha de Homero,

Inspira-me o desejo, a musa que delira,

E o seu canto concerta aos sons da eterna lira.

MIRTO Tambm desejas ser alguma cousa?

LSIAS No;

Eu caso o meu amor s regras da razo.

Cleon quisera ser o espelho em que teu rosto

Sorri; eu, bela Mirto, eu tenho melhor gosto.

Ser espelho! ser banho! e tnica! Tolice!

Estril ambio! loucura! criancice!

Por Vnus! sei melhor o que a mim me convm.

Homem sisudo e grave outros desejos tem.

Fiz, a este respeito, aprofundado estudo;

Eu no quero ser nada; eu quero dar-te tudo.

Escolhe o mais perfeito espelho do ao fino,

A tnica melhor de pano tarentino,

Vasos de leo, um colar de prolas, -enfim

Quanto enfeita uma dama aceit-lo-s de mim.

Brincos que vo ornar-te a orelha graciosa;

Para os dedos o anel de pedra preciosa;

A tua fronte pede ureo, rico anadema;

T-lo-s, divina Mirto. este o meu poema.

MIRTO lindo!

Queres tu, outras estrofes mais?

LSIAS Dar-tas-ei quais as teve a celebrada Las.

Casa, rico jardim, servas de toda a parte;

E esttuas e painis, e quantas obras d'arte

Podem servir de ornato ao templo da beleza,

Tudo havers de mim. Nem gosto nem riqueza

Te h de faltar, mimosa, e s quero um penhor.

Quero... quero-te a ti.

MIRTO Pois qu! j que a flor,

Quem desdenhando a flor, s lhe pede o perfume?

LSIAS Esqueceste o perdo?

MIRTO Ficou-me este azedume.

LSIAS Vnus pode apag-lo.

MIRTO Eu sei! creio e no creio.

LSIAS Hesitar ceder; agrada-me o receio.

Em assunto de amor vontade que flutua

Ests prestes a entregar-se. Entregas-te?

MIRTO Sou tua!

CENA VIII: LSIAS, MIRTO, CLEON

CLEON Demorei-me demais?

LSIAS Apenas o bastante

Para que fosse ouvido um corao amante.

A Lesbiana minha.

CLEON s dele, Mirto!

MIRTO Sim.

Eu ainda hesitava, ele falou por mim.

CLEON Quantos amores tens, filha do mal?

LSIAS Pressinto

Uma lamentao intil. "A Corinto

No vai quem quer", l diz aquele velho adgio.

Navegavas sem leme; era certo o naufrgio.

No me viste sulcar as mesmas guas'?

CLEON Vi

Mas contava com ela, e confiava em ti.

Mais duas iluses! Que importa? Inda so poucas;

Desfaam-se uma a uma estas quimeras loucas.

rvore bendita, minha juventude,

Vo-te as flores caindo ao vento spero e rude!

No vos maldigo, no; eu no maldigo o mar

Quando a nave soobra, o erro confiar.

Adeus, formosa Mirto; adeus, Lsias; no quero

Perturbar vosso amor, eu que j nada espero;

Eu que vou arrancar as profundas razes

Desta paixo funesta; adeus, sede felizes!

LSIAS Adeus! Saudemos ns a Vnus e a Lieu.

AMBOS Io Poenan! Baco! Himeneu! Himeneu!

PLIDA ELVIRA

A FRANCISCO PAZ

Ulysse, jet sur les rives d'Ithaque, ne les reconnait pas et pleure sa patrie. Ainsi l'homme dans le bonheur possd ne reconnait pas son rve et soupire.

Daniel Stern

I

QUANDO, leitora amiga, no ocidente

Surge a tarde esmaiada e pensativa;

E entre a verde folhagem recendente

Lnguida geme virao lasciva;

E j das tnues sombras do oriente

Vem apontando a noite, e a casta diva

Subindo lentamente pelo espao,

Do cu, da terra observa o estreito abrao;

II

Nessa hora de amor e de tristeza,

Se acaso no amaste e acaso esperas

Ver coroar-te a juvenil beleza

Casto sonho das tuas primaveras

No sentes escapar tua alma acesa

Para voar s lcidas esferas?

No sentes nessa mgoa e nesse enleio

Vir morrer-te uma lgrima no seio?

III

Sente-lo? Ento entenders, Elvira,

Que assentada janela, erguendo o rosto,

O vo solta alma que delira

E mergulha no azul de um cu de agosto;

Entenders ento por que suspira,

Vtima j de um ntimo desgosto,

A meiga virgem, plida e calada,

Sonhadora, ansiosa e namorada.

IV

Manso de riso e paz, manso de amores

Era o vale. Espalhava a natureza,

Com dadivosa mo, palmas e flores

De agreste aroma e virginal beleza;

Bosques sombrios de imortais verdores,

Asilo prprio inspirao acesa,

Vale de amor, aberto s almas ternas

Neste vale de lgrimas eternas.

V

A casa. junto encosta de um outeiro

Alva pomba entre folhas parecia;

Quando vinha a manh, o olhar primeiro

Ia beijar-lhe a verde gelosia;

Mais tarde a fresca sombra de um coqueiro

Do sol quente a janela protegia;

Pouco distante, abrindo o solo adusto,

Um fio dgua murmurava a custo.

Vl

Era uma jia a alcova em que sonhava

Elvira, alma de amor. Tapete fino

De apurado lavor o cho forrava.

De um lado oval espelho cristalino

Pendia. Ao fundo, sombra, se ocultava

Elegante, engraado, pequenino

Leito em que, repausando a face bela,

De amor sonhava a plida donzela.

VII

No me censure o crtico exigente

O ser plida a moa meu costume

Obedecer lei de toda a gente

Que uma obra compe de algum volume.

Ora, no nosso caso, lei vigente

Que um descorado rosto o amor resume.

No tinha Miss Smolen outras cores;

No as possui quem sonha com amores.

VIlI

Sobre uma mesa havia um livro aberto;

Lamartine, o cantor areo e vago,

Que enche de amor um corao deserto;

Tinha-o lido; era a pgina do Lago.

Amava-o; tinha-o sempre ali bem perto

Era-lhe o anjo bom, o deus, o orago;

Chorava aos cantos da divina lira...

que o grande poeta amava Elvira!

IX

Elvira! o mesmo nome! A moa os lia,

Com lgrimas de amor, os versos santos,

Aquela eterna e lnguida harmonia

Formada com suspiros e com prantos;

Quando escutava a musa da elegia

Cantar de Elvira os mgicos encantos,

Entrava-lhe a voar a alma inquieta,

E com o amor sonhava de um poeta.

X

Ai, o amor de um poeta! amor subido!

Indelvel, purssimo, exaltado,

Amor eternamente convencido,

Que vai alm de um tmulo fechado,

E que atravs dos sculos ouvido

O nome leva do objeto amado

Que faz de Laura um culto, e tem por sorte

Negra fouce quebrar nas mos da morte.

Xl

Fosse eu moa e bonita. . . Neste lance

Se o meu leitor j homem sisudo,

Fecha tranqilamente, o meu romance,

Que no serve a recreio nem a estudo;

No entendendo a fora nem o alcance

De semelhante amor, condena tudo:

Abre um volume srio, farto e enorme,

Algumas folhas l, boceja... e dorme.

XII

Nada perdes, leitor, nem perdem nada

As esquecidas musas; pouco importa

Que tu, vulgar matria condenada,

Aches que um tal amor letra morta.

Podes, cedendo opinio honrada,

Fechar minha Elvira a esquiva porta.

Almas de prosa ch, quem vos daria

Conhecer todo o amor que h na poesia?

XIII

Ora, o tio de Elvira, o velho Antero,

Erudito e filsofo profundo,

Que sabia de cor o velho Homero,

E compunha os anais do Novo Mundo;

Que escrevera uma vida de Severo

Obra de grande tomo e de alto fundo;

Que resumia em si a Grcia e Lcio,

E num salo falava como Horcio;

XIV

Disse uma noite plida sobrinha:

"Elvira, sonhas tanto! devaneias!

Que andas a procurar, querida minha?

Que ambies, que desejos ou que idias

Fazem gemer tua alma inocentinha?

De que esperana v, meu anjo, anseias?

Teu corao de ardente amor suspira;

Que tens?" - "Eu? nada", respondia Elvira.

XV

"Alguma cousa tens! tornava o tio;

Por que olhas tu as nuvens do poente,

Vertendo s vezes lgrimas a fio,

Magoada expresso d'alma doente?

Outras vezes olhando a gua do rio,

Deixas correr o esprito indolente

Como uma flor que ao vento ali tombara,

E a onda murmurando arrebatara.

XVI

Latet anguis in herba.. ." Neste instante

Entrou a tempo o ch... Perdo, leitores,

Eu bem sei que preceito dominante

No misturar comidas com amores;

Mas eu no vi, nem sei se algum amante

Vive de orvalho ou ptalas de flores;

Namorados estmagos consomem;

Comem Romeus, e Julietas comem.

XVII

Entrou a tempo o ch, e foi servi-lo,

Sem responder, a moa interrogada,

Com ar to soberano e to tranqilo

Que o velho emudeceu. Ceia acabada,

Fez o escritor o costumado quilo,

Mas um quilo de espcie pouco usada,

Que consistia em ler um livro velho;

Nessa noite acertou ser o Evangelho.

XVIII

Abrira em S. Mateus, naquele passo

Em que o filho de Deus diz que a aucena

No labora nem fia, e o tempo escasso

Vive, coo ar e o sol, sem dor nem pena;

Leu e estendendo o j trmulo brao

triste, melanclica pequena,

Apontou-lhe a passagem da Escritura

Onde lera lio to reta e pura.

XIX

"Vs? diz o velho, escusas de cansar-te;

Deixa em paz teu esprito, criana:

Se existe um corao que deva amar-te,

H de vir; vive s dessa esperana.

As venturas do amor um deus reparte;

Queres t-las? pe nele a confiana.

No persigas com splicas a sorte;

Tudo se espera; at se espera a morte!

XX

A doutrina da vida esta: espera,

Confia, e colhers a ansiada palma;

Oxal que eu te apague essa quimera.

L diz o bom Demfilo que alma,

Como traz a andorinha a primavera,

A palavra do sbio traz a calma.

O sbio aqui sou eu. Ris-te, pequena?

Pois melhor; quero ver-te uma aucena!"

XXI

Falava aquele velho como fala

Sobre cores um cego de nascena.

Pear a juventude! Conden-la

Ao sono da ambio vivaz e intensa!

Coas leves asas da esperana orn-la

E no querer que rompa a esfera imensa!

No consentir que esta manh de amores

Encha com frescas lgrimas as flores!

XXII

Mal o velho acabava e justamente

No rija porta ouviu-se urna pancada.

Quem seria? Uma serva diligente,

Travando de uma luz, desceu a escada.

Pouco depois rangia brandamente

A chave, e a porta aberta dava entrada

A um rapaz embuado que trazia

Uma carta, e ao doutor falar podia.

XXIII

Entrou na sala, e lento, e gracioso,

Descobriu-se e atirou a capa a um lado

Era um rosto potico e vioso

Por soberbos cabelos coroado;

Grave sem gesto algum pretensioso,

Elegante sem ares de enfeitado;

Nos lbios frescos um sorriso amigo,

Os olhos negros e o perfil antigo.

XXIV

Demais, era poeta. Era-o. Trazia

Naquele olhar no sei que luz estranha

Que indicava um aluno da poesia,

Um morador da clssica montanha,

Um cidado da terra da harmonia,

Da terra que eu chamei nossa Alemanha,

Nuns versos que hei de dar um dia a lume,

Ou nalguma gazeta, ou num volume.

XXV

Um poeta! e de noite! e capote!

Que isso, amigo autor? Leitor amigo,

Imaginas que ests num camarote

Vendo passar em cena um drama antigo

Sem lana no conheo D. Quixote,

Sem espada apcrifo um Rodrigo;

Heri que s regras clssicas escapa,

Pode no ser heri, mas traz a capa.

XXVI

Heitor (era o seu nome) ao velho entrega

Uma carta lacrada; vem do Norte.

Escreve-lhe um filsofo colega

J quase a entrar no tlamo da morte.

Recomenda-lhe o filho, e lembra, e alega

A provada amizade, o esteio forte,

Com que outrora, acudindo-lhe nos transes,

Salvou-lhe o nome de terrveis lances.

XXVII

Dizia a carta mais: "Crime ou virtude,

meu filho poeta; e corre fama

Que j faz honra nossa juventude

Coa viva inspirao de etrea chama;

Diz ele que, se o gnio no o ilude,

Cames seria se encontrasse um Gama.

Deus o fade; eu perdo-lhe tal sestro;

Guia-lhe os passos, cuida-lhe do estro''

XXVIII

Lida a carta, o filsofo erudito

Abraa o moo e diz em tom pausado:

"Um sonhador do azul e do infinito!

hspede do cu, hspede amado.

Um bom poeta hoje quase um mito.

Se o talento que tem j provado,

Conte coo meu exemplo e o meu conselho;

Boa lio sempre a voz de um velho".

XXIX

E trava-lhe da mo, e brandamente

Leva-o junto d'Elvira. A moa estava

Encostada janela, e a esquiva mente

Pela extenso dos ares lhe vagava.

Voltou-se distrada, e de repente

Mal nos olhos de Heitor o olhar fitava,

Sentiu... Intil fora relat-lo;

Julgue-o quem no puder experiment-lo.

XXX

santa e pura luz do olhar primeiro!

Elo de amor que duas almas liga!

Raio de sol que rompe o nevoeiro

E casa a fIor flor! palavra amiga

Que, trocada um momento passageiro,

Lembrar parece uma existncia antiga!

Lngua, filha do cu, doce eloqncia

Dos melhores momentos da existncia!

XXXI

Entra a leitora numa sala cheia;

Vai isenta, vai livre de cuidado:

Na cabea gentil nenhuma idia?

Nenhum amor no corao fechado.

Livre como a andorinha que volteia

E corre loucamente o ar azulado.

Venham dous oIhos, dous, que a alma buscava...

Eras senhora? ficars escrava!

XXXII

com s olhar escravos ele e ela

J Ihes pulsa mais forte o sangue e a vida;

Rpida corre aquela noite, aquela

Para as castas venturas escolhida;

Assoma j nos lbios da donzela

Lampejo de alegria esvaecida.

Foi milagre de amor, prodgio santo.

Quem mais fizera? Quem fizera tanto?

XXXIII

Preparara-se ao moo um aposento.

Oh! reverso da antiga desventura!

T-lo perto de si! viver do alento

De um poeta, alma lnguida, alma pura!

D-lhe, fonte do casto sentimento,

guas santas, batismo de ventura!

Enquanto o velho, amigo de outra fonte,

Vai mergulhar-se em pleno Xenofonte.

XXXIV

Devo agora contar, dia por dia,

O romance dos dous? IntiI fora;

A histria sempre a mesma; no varia

A paixo de um rapaz e uma senhora.

Vivem ambos do olhar que se extasia

E conversa coa alma sonhadora;

Na mesma luz de amor os dous se inflamam,

Ou, como diz Filinto: "Amados, amam".

XXXV

Todavia a leitora curiosa

Talvez queira saber de um incidente;

A confisso dos dous; - cena espinhosa

Quando a paixo domina a alma que sente.

Em regra, confisso franca e verbosa

Revela um corao independente;

A paz interior tudo confia,

Mas o amor, esse hesita e balbucia.

XXXVl

O amor faz monosslabos; no gasta

O tempo com anlises compridas;

Nem prprio de boca amante e casta

Um chuveiro de frases estendidas;

Um volver d'olhos lnguido nos basta

A conhecer as chamas comprimidas;

Corao que discorre e faz estilo,

Tem as chaves por dentro e est tranqilo.

XXXVII

Deu-se o caso uma tarde em que chovia,

Os dous estavam na varanda aberta

A chuva peneirava, e alm cobria

Cinzento vu o ocaso; a tarde incerta

J nos braos a noite recebia,

Como amorosa me que a filha aperta

Por enxugar-lhe os prantos magoados.

Eram ambos imveis e calados.

XXXVIII

Juntos, ao parapeito da varanda,

Viam cair da chuva as gotas finas,

Sentindo a virao fria, mas branda,

Que balanava as frouxas casuarinas.

Raras, ao longe, de uma e de outra banda,

Pelas do cu tristssimas campinas,

Via correr da tempestade as aves

Negras, serenas, lgubres e graves.

XXXIX

De quando em quando vinha uma rajada

Borrifar e agitar a Elvira as tranas.

Como se fora a brisa perfumada

Que palmeira sacode as tnuas franas.

A fronte gentilssima e engraada

Sacudia coa chuva as ms lembranas;

E ao passo que chorava a tarde escura

Ria-se nela a aurora da ventura.

XL

"Que triste a tarde vai! que vu de morte

Cobrir parece a terra! (o moo exclama).

Reproduo fiel da minha sorte,

Sombra e choro." "'Por qu? pergunta a dama;

Diz que teve dos cus uma alma forte..."

" forte o cedro e no resiste chama;

Leu versos meus em que zombei do fado?

Iluses de poeta malogrado!

XLI

Somos todos assim. nossa glria

Contra o destino opor alma de ferro;

Desafiar o mal, eis nossa histria,

E o tremendo duelo sempre um erro.

Custa-nos caro uma falaz vitria

Que nem consola as mgoas do desterro,

O desterro, - esta vida obscura e rude

Que a dor enfeita e as vtimas ilude.

XLII

Contra esse mal tremendo que devora

A seiva toda nossa mocidade,

Que remdio haveramos, senhora,

Seno versos de afronta e liberdade?

No entanto, bastaria acaso umhora,

Uma s, mas de amor, mas de piedade,

Para trocar por sculos de vida

Estes de dor acerba e envilecida.

XLIII

Al no disse, e, fitando olhos ardentes

Na moa, que de enleio enrubescia,

Com discursos mais fortes e eloqentes

Na exposio do caso prosseguia;

A pouco e pouco as mos inteligentes

Travaram-se; e no sei se conviria

Acrescentar que um sculo . . . Risquemos,

No bom mencionar estes extremos.

XLIV

Duas sombrias nuvens afastando,

Tnue raio de sol rompera os ares,

E, no amoroso grupo desmaiando,

Testemunhou-lhe as npcias singulares.

A nesga azul do ocaso contemplando,

Sentiram ambos irem-lhes os pesares,

Como noturnas aves agoureiras

Que luz fogem medrosas e ligeiras.

XLV

Tinha mgoas o moo? A causa delas?

Nenhuma causa; fantasia apenas;

O eterno devanear das almas belas,

Quando as dominam frvidas camenas;

Uma ambio de conquistar estrelas,

Como se colhem lcidas falenas;

Um desejo de entrar na eterna lida,

Um querer mais do que nos cede a vida.

XLVI

Com amores sonhava, ideal formado

De celestes e eternos esplendores,

A ternura de um anjo destinado

A encher-lhe a vida de perptuas flores.

Tinha-o, enfim, qual fora antes criado

Nos seus dias de mgoas e amargores;

Madrugavam-lhe n'alma a luz e o riso;

Estava porta enfim do paraso.

XLVII

Nessa noite, o poeta namorado

No conseguiu dormir. A alma fugira

Para ir velar o doce objeto amado

Por quem, nas nsias da paixo, suspira;

E provvel que, achando o exemplo dado,

Ao p de Heitor viesse a alma de Elvira;

De maneira que os dous, de si ausentes,

L se achavam mais vivos e presentes.

XLVIII

Ao romper da manh, coo sol ardente,

Brisa fresca, entre as folhas sussurrando,

O no dormido vate acorda, e a mente

Lhe foi dos vagos sonhos arrancando.

Heitor contempla o vale resplendente,

A flor abrindo, o pssaro cantando;

E a terra que entre risos acordava,

Ao sol do estio as roupas enxugava.

XLIX

Tudo ento lhe sorria. A natureza,

As musas, o futuro, o amor e a vida;

Quanto sonhara aquela mente acesa

Dera-lhe a sorte, enfim compadecida.

Um paraso, uma gentil beleza,

E a ternura castssima e vencida

De um corao criado para amores,

Que exala afetos como aroma as flores.

L

E ela? Se conheceste em tua vida

Leitora, o mal do amor, delrio santo,

Dor que eleva e conforta a alma abatida,

Embriaguez do cu, divino encanto,

Se a tua face ardente e enrubescida

Palejou com suspiros e com prantos,

Se ardeste enfim, naquela intensa chama,

Entenders o amor de ingnua dama.

Ll

Repara que eu no fao desse enleio

De uma noite de baile ou de palestra;

Amor que mal agita a flor do seio,

E ao ch termina e acaba com a orquestra;

No me refiro ao simples galanteio

Em que cada menina velha mestra.

Avesso ao sacrifcio, dor e ao choro;

Falo do amor, no falo do namoro.

LII

den de amor, solido fechada

Casto asilo a que o sol dos novos dias

Vai mandar, como a furto, a luz coada

Pelas frestas das verdes gelosias,

Guarda-os ambos; conserva-os recatada.

Almas feitas de amor e de harmonias,

Tecei, tecei as vvidas capelas,

Deixai correr sem susto as horas belas.

LlIl

C fora o mundo inspido e profano

No d, nem pode dar o enleio puro

Das almas novas, nem o doce engano

No busqueis penetrar neste oceano

Com que se esquecem males do futuro.

Em que se agita o temporal escuro.

Por fugir ao naufrgio e aosofrimento,

Tendes uma enseada, - o casamento.

LIV

Resumamos, leitora, a narrativa.

Tanta estrofe a cantar etreas chamas

Pede compensao, musa insensiva,

Que fatigais sem pena o ouvido s damas.

Demais, regra certa e positiva

Que muitas vezes, as maiores famas

Perde-as uma ambio de tagarela;

Musa, aprende a lio; musa, cautela!

LV

Meses depois da cena relatada

Nas estrofes, a folhas, - o poeta

Ouviu do velho Antero uma estudada

Orao cicernica e seleta;

A concluso da arenga preparada

Era mais agradvel que discreta.

Dizia o velho erguendo olhos serenos:

"Pois que se adoram, casem-se, pequenos!"

LVI

Lgrima santa, lgrima de gosto

Vertem olhos de Elvira; e um riso aberto

Veio inundar-lhe de prazer o rosto

Como uma flor que abrisse no deserto.

Se iam j longe as sombras do desgosto;

lnda at li era o futuro incerto

Fez-lhe certo o ancio; e a moa grata

Beija a mo que o futuro lhe resgata.

LVII

Correm os banhos, tiram-se dispensas,

Vai-se buscar um padre ao povoado;

Prepara-se o enxoval e outras pertenas

Necessrias agora ao novo estado.

Notam-se at algumas diferenas

No modo de viver do velho honrado,

Que sacrifica noiva e aos deuses lares

Um estudo dos clssicos jantares.

LVIII

"Onde vais tu?" " serra!" "Vou contigo".

"No, no venhas meu anjo, longa a estrada.

Se cansares ? "Sou leve, meu amigo;

Descerei nos teus ombros carregada".

"Vou compor encostado ao cedro antigo

Canto de npcias" . "Seguirei calada;

Junto de ti, ter-me-s mais em lembrana;

Musa serei sem perturbar" "Criana!"

LIX

Brandamente repele Heitor a Elvira;

A moa fica; o poeta lentamente

Sobe a montanha. A noiva repetira

O primeiro pedido inutilmente.

Olha-o de longe, e tmida suspira.

Vinha a tarde caindo frouxamente,

No triste, mas risonha e fresca e bela

Como a vida da plida donzela.

LX

Chegando, enfim, a c'roa da colina,

Viram olhos de Heitor o mar ao largo,

E o sol, que despe a veste purpurina,

Para dormir no eterno leito amargo.

Surge das guas, plida e divina,

Essa que tem por deleitoso encargo

Velar amantes, proteger amores,

Lua, musa dos cndidos palores.

LXI

Respira Heitor; livre. O casamento?

Foi sonho que passou, fugaz idia

Que no pde durar mais que um momento.

Outra ambio a alma lhe incendeia.

Dissipada a iluso, o pensamento

Novo quadro a seus olhos patenteia,

No lhe basta aos desejos de sua alma

A enseada da vida estreita e calma.

LXII

Aspira ao largo; pulsam-lhe no peito

Uns mpetos de vida; outro horizonte,

Tmidas vagas, temporal desfeito,

Quer com eles lutar fronte por fronte.

Deixa o tranqilo amor, casto e perfeito,

Pelos brdios de Vnus de Amatonte;

A existncia entre fores esquecida

Pelos rumores de mais ampla vida.

LXIII

Nas mos da noite desmaiara a tarde;

Descem ao vale as sombras vergonhosas;

Noite que o cu, por mofa ou por alarde,

Torna propcia s almas venturosas.

O derradeiro olhar frio e covarde

E umas no sei que estrofes lamentosas

Solta o poeta, enquanto a triste Elvira,

Viva antes de noiva, em vo suspira!

LXIV

Transpe o mar Heitor, transpe montanhas;

Tu, curiosidade, o ingrato levas

A ir ver o sol das regies estranhas,

A ir ver o amor das peregrinas Evas.

Vai, em troco de palmas e faanhas,

Viver na morte, bracejar nas trevas;

Fazer do amor, que livro aos homens dado,

Copioso almanaque namorado.

LXV

Inscreve nele a moa de Sevilha,

Longas festas e noites espanholas,

A indiscreta e diablica mantilha

Que a fronte cinge a amantes e a carolas.

Quantos encontra coraes perfilha,

Faz da bolsa e do amor largas esmolas;

Esquece o antigo amor e a antiga musa

Entre os beijos da lpida andaluza.

LXVI

Canta no seio trgido e macio

Da fogosa, indolente italiana,

E dorme junto ao laranjal sombrio

Ao som de uma cano napolitana.

Do-lhe, para os seres do ardente estio,

Asti, os vinhos, mulheres, a Toscana.

Roma adora, embriaga-se em Veneza,

E ama a arte nos braos da beleza.

LXVII

V Londres, v Paris, terra das ceias,

Feira do amor a toda a bolsa aberta;

No mesmo lao, as belas como as feias.

Por capricho ou razo, iguais aperta;

A idade no pergunta s taas cheias;

S pede o vinho que o prazer desperta;

Adora as outonias, como as novas,

Torna-se heri de rua e heri de alcovas.

LXVIII

Versos, quando os compe, celebram antes

O alegre vcio que a virtude austera;

Canta os beijos e as noites delirantes,

O estril gozo que a volpia gera;

Troca a iluso que o seduzia dantes

Por maior e tristssima quimera;

Ave do cu, entre sculos criada,

Espalha as plumas brancas pela estrada.

LXIX

Um dia, enfim, cansado e aborrecido,

Acorda Heitor; e, olhando em roda ao largo,

V um deserto, e do prazer perdido

Resta-lhe unicamente o gozo amargo;

No achou o ideal apetecido

No longo e profundssimo letargo;

A vida exausta em festas e esplendores,

Se algumas tinha, eram j murchas flores.

LXX

Ora, uma noite, costeando o Reno,

Ao luar melanclico, - buscava

Aquele gozo simples, doce, ameno,

Que vida toda outrora lhe bastava;

Voz remota, cortando o ar sereno,

Em derredor os ecos acordava;

Voz alde que o largo espao enchia,

E uma cano de Schiler repetia.

LXXI

"A glria! diz Heitor, a glria vida!

Por que busquei nos gozos de outra sorte

Esta felicidade apetecida,

Esta ressurreio que anula a morte?

iluso fantstica e perdida!

mal gasto, ardentssimo transporte!

Musa, restaura as apagadas tintas!

Revivei, revivei, chamas extintas!"

LXXII

A glria? Tarde vens, pobre exilado!

A glria pede as iluses viosas,

Estro em flor, corao eletrizado.

Mos que possam colher etreas rosas;

Mas tu, filho do cio e do pecado,

Tu que perdeste as foras portentosas

Na agitao que os nimos abate,

Queres colher a palma do combate?

LXXIII

Chamas em vo as musas; deslembradas,

tua voz os seus ouvidos cerram;

E nas pginas virgens, preparadas,

Pobre poeta, em vo teus olhos erram;

Nega-se a inspirao; nas despregadas

Cordas da velha lira, os sons que encerram

Inertes dormem; teus cansados dedos

Correm debalde; esquecem-lhe os segredos.

LXXIV

Ah! se a taa do amor e dos prazeres

J no guarda licor que te embriague;

Se nem musas nem lnguidas mulheres

Tm corao que o teu desejo apague;

Busca a cincia, estuda a lei dos seres,

Que a mo divina tua dor esmague;

Entra em ti, v o que s, observa em roda,

Escuta e palpa a natureza toda.

LXXV

Livros compra, um filsofo procura;

Resolve a criao, perscruta a vida;

V se espancas a longa noite escura

Em que a estril razo andou metida;

Talvez aches a palma da ventura

No campo das cincias escondida.

Que a tua mente as iluses esquea:

Se o corao morreu, vive a cabea!

LXXVI

Ora, por no brigar coos meus leitores,

Dos quais, conforme a curta ou longa vista,

Uns pertencem aos grupos novadores

Da fria comunho materialista;

Outros, seguindo exemplo dos melhores,

Defendem a teoria idealista;

Outros, enfim fugindo armas extremas,

Vo curando por ambos os sistemas;

LXXVII

Direi que o nosso Heitor, aps o estudo

Da natureza e suas harmonias,

(Opondo conscincia um forte escudo

Contra divagaes e fantasias);

Depois de ter aprofundado tudo,

Planta, homem, estrelas, noites, dias,

Achou esta lio inesperada:

Veio a saber que no sabia nada.

LXXVIll

"Nada! exclama um filsofo amarelo

Pelas longas viglias, afastando

Um livro que h de dar um dia ao prelo

E em cujas folhas ia trabalhando.

Pois eu, doutor de borla e de capelo,

Eu que passo o.s meus dias estudando,

Hei de ler o que escreve pena ousada,

Que a cincia da vida acaba em nada?"

LXXIX

Aqui convinha intercalar com jeito,

Sem pretenso, nem pompa nem barulho,

Uma arrancada apstrofe do peito

Contra as vs pretenses do nosso orgulho;

Conviria mostrar em todo o efeito

Essa que dos espritos entulho,

Cincia v, de magnas leis to rica,

Que ignora tudo, e tudo ao mundo explica.

LXXX

Mas, urgindo acabar este romance,

Deixo em paz o filsofo, e procuro

Dizer ao vate o doloroso trance

Quando se achou mais peco e mais escuro.

Valera bem naquele triste lance

Um sorriso do cu plcido e puro,

Raio do sol eterno da verdade,

Que a vida aquece e alenta a humanidade.

LXXXI

Qu! nem ao menos na cincia havia

Fonte que a eterna sede lhe matasse?

Nem do amor, nem no seio da poesia

Podia nunca repousar a face;

Atrs desse fantasma correria

Sem que jamais as formas lhe palpasse?

Seria acaso a sua ingrata sorte

A ventura encontrar nas mos da morte?

LXXII

A morte! Heitor pensara momentos

Nessa sombria porta aberta vida;

Plido arcanjo dos finais alentos

De alma que o cu deixou desiludida;

Mo que, fechando os olhos sonolentos,

Pe o termo fatal humana lida;

Templo de glria ou regio do medo,

Morte, quem te arrancara o teu segredo?

LXXXIII

Vazio, intil, ermo de esperanas

Heitor buscava a noiva ignota e fria,

Que o envolvesse ento nas longas tranas

E o conduzisse cmara sombria,

Quando, em meio de plidas lembranas,

Surgiu-lhe a idia de um remoto dia,

Em que cingindo a cndida capela

Estava a pertencer-te uma donzela.

LXXXIV

Elvira! o casto amor! a esposa amante!

Rosa de uma estao, deixada ao vento!

Riso dos cus! estrela rutilante

Esquecida no azul do firmamento!

Ideal, meteoro de um instante!

Glria da vida, luz do pensamento!

A gentil, a formosa realidade!

nica dita e nica verdade!

LXXXV

Ah! por que no ficou terno e tranqilo

Da ingnua moa nos divinos braos?

Por que fugira ao casto e alegre asilo?

Por que rompera os mal formados laos?

Quem pudera jamais restitu-lo

Aos estreitos, fortssimos abraos

Com que Elvira apertava enternecida

Esse que lhe era o amor, a alma e a vida?

LXXXVl

Ser tempo? Quem sabe? Heitor hesita;

Tardio pejo lhe enrubesce a face;

Punge o remorso; o corao palpita,

Como se vida nova o reanimasse;

Tnue fogo, entre a cinza, arde e se agita...

Ah! se o passado ali ressuscitasse

Reviveriam iluses viosas,

E a gasta vida rebentara em rosas!

LXXXVl l

Resolve Heitor voltar ao vale amigo,

Onde ficara a noiva abandonada.

Transpe o mar, afronta-lhe o perigo,

E chega enfim terra desejada.

Sobe o monte, contempla o cedro antigo,

Sente abrir-se-lhe n'alma a flor murchada

Das iluses que um dia concebera;

Rosa extinta da sua primavera!

LXXXVIII

Era a hora em que os serros do oriente

Formar parecem luminosas urnas;

E abre o sol a pupila resplendente

Que s folhas sorve as lgrimas noturnas;

Frouxa brisa amorosa e diligente

Vai acordando as sombras taciturnas;

Surge nos braos dessa aurora estiva

A alegre natureza rediviva.

LXXXIX

Campa era o mar; o vale estreito bero;

De um lado a morte, do outro lado a vida,

Canto do cu resumo do universo,

Ninho para aquecer a ave abatida.

Inda nas sombras todo o vale imerso,

No acordara costumada lida;

Repousava no plcido abandono

Da paz tranqila e do tranqilo sono.

XC

Alto j ia o sol, quando descera

Heitor a oposta face da montanha;

Nada do que deixou desaparecera;

O mesmo rio as mesmas ervas banha.

A casa como ento, garrida e austera,

Do sol nascente a viva luz apanha;

Iguais flores, nas plantas renascidas...

Tudo ali fala de perptuas vidas!

XCI

Desce o poeta cauteloso e lento.

Olha de longe; um vulto ao sol erguia

A veneranda fronte, monumento

De grave e celestial melancolia.

Como sulco de um fundo pensamento

Larga ruga na testa abrir se via,

Era a runa talvez de uma esperana...

Nos braos tinha uma gentil criana

XCII

Ria a criana; o velho contemplava

Aquela flor que s auras matutinas

O perfumoso clix desbrochava

E entrava a abrir as ptalas divinas.

Triste sorriso o rosto lhe animava,

Como um raio de lua entre runas.

Alegria infantil, tristeza austera,

O inverno torvo, a alegre primavera!

XCIII

Desce o poeta, desce, e preso, e fito

Nos belos olhos do gentil infante,

Treme, comprime o peito. . . e aps um grito

Corre alegre, exaltado e delirante.

Ah! se jamais as vozes do infinito

Podem sair de um corao amante.

Teve-as aquele... lgrimas sentidas

Lhe inundaram as faces ressequidas!

XCIV

"Meu filho!" exclama, e sbito parando

Ante o grupo ajoelha o libertino;

Geme, solua, em lgrimas beijando

As mos do velho e as tranas do menino.

Ergue-se Antero, e frio e venerando,

Olhos no cu, exclama: "Que destino!

Murchar-lhe, viva, a rosa da ventura;

Morta, insultar-lhe a paz da sepultura!"

XCV

"Morta!'' "Sim!" "Ah! senhor! se arrependido

Posso alcanar perdo, se com meus prantos

Posso apiedar-lhe o corao ferido

Por tanta mgoa e longos desencantos;

Se este infante, entre lgrimas nascido,

Pode influir-me os seus afetos santos...

meu filho, no ? perdo lhe imploro!

Veja senhor! eu sofro, eu creio, eu choro!"

XCVI

Olha-o com frio orgulho o velho honrado;

Depois, fugindo quela cena estranha,

Entra em casa. O poeta, acabrunhado,

Sobe outra vez a encosta da montanha;

Ao cimo chega, e desce o oposto lado

Que a vaga azul entre soluos banha.

Como fria ironia a tantas mgoas,

Batia o sol de chapa sobre as guas.

XCVll

Pouco tempo depois ouviu-se um grito,

Som de um corpo nas guas resvalado;

flor das vagas veio um corpo aflito...

Depois. . . o sol tranqilo e o mar calado.

Depois... Aqui termina o manuscrito,

Que ora em letra de forma publicado,

Nestas estrofes plidas e mansas,

Para te divertir de outras lembranas.

FIM