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Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS - ABIA fundamentos avaliacao N3.pdf · co de arte, é provavelmente a contribuição cul-tural que vem em mente ao olhar uma obra

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Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS - ABIARua da Candelária, 79/10o andar - Centro

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Fax: (21) 2253-8495E-mail: [email protected]

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DIRETORIA

Diretor-Presidente: RICHARD PARKER

Diretora Vice-Presidente: SONIA CORRÊA

Secretário Geral: OTÁVIO CRUZ NETO

Tesoureiro: JOSÉ LOUREIRO

Coordenador Geral: VERIANO TERTO JR.

REVISÃO TÉCNICA

Ivia Maksud

REVISÃO DA PUBLICAÇÃO

Ivia Maksud

PROJETO GRÁFICO

Wilma FerrazJuan Carlos Raxach

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA E PRODUÇÃO GRÁFICA

Wilma Ferraz

APOIO

Fundação John D. e Catherine T. MacArthurFundação Ford

IMPRESSÃO

Gráfica Lidador

TIRAGEM

1.500 exemplares

É permitida a reprodução total ou parcial do artigo desta publicação,desde que citados a fonte e o autor.

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 5

INTRODUÇÃO 7

POBREZA, DESIGUALDADE E EXCLUSÃO SOCIAL 8

CONSTRUINDO A CIDADANIA NA AÇÃO 10Se avaliar é julgar e atribuir valor, quem deve atribuir valor? 12

TODA AVALIAÇÃO É PARTICIPATIVA – O PROBLEMA É IDENTIFICAR

QUEM ESTÁ PARTICIPANDO E QUEM ESTÁ SENDO EXCLUÍDO 16

COMO RECONHECER A AVALIAÇÃO DEMOCRÁTICA NA PRÁTICA 17

AVALIAÇÃO NÃO É UM BICHO DE SETE CABEÇAS 18

O TERRENO PRÁTICO DOS INDICADORES 21

UMA OBSERVAÇÃO FINAL 24

BIBLIOGRAFIA 24

ANEXO - ESTRATÉGIAS LOCAIS PARA A REDUÇÃO DA POBREZA:CONSTRUINDO A CIDADANIA. SÍNTESE DAS CONCLUSÕES 27

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APRESENTAÇÃO

Oterceiro volume da série “Fundamentos de Avaliação” apresentao texto Avaliação Democrática: Propostas e Práticas, de autoria de PeterSpink. Este texto foi um dos resultados do seminário “Avaliação

em DST/AIDS”, realizado no ano 2000 pela ABIA com apoio da FundaçãoFord e do Ministério da Saúde.

O referido seminário tinha a intenção de promover a manifestação dediversos atores e perspectivas ao discutir os processos de avaliação de progra-mas de DST/AIDS e de ações implementadas por organizações da socie-dade civil. Os textos anteriores constantes dessa coleção (Avaliação em Saúde:Questões para os Programas de DST/AIDS no Brasil e Avaliação em HIV/AIDS:uma Perspectiva Internacional ) cumpriram acertadamente o papel de fornecerinstrumentais teórico-metodológicos para a avaliação em saúde e HIV/AIDS.

De forma complementar, Spink realiza uma instigante discussão acer-ca da avaliação enquanto prática social e política. O texto propõe repensar cri-ticamente a quem atendem os propósitos do processo de avaliação e, nessesentido, que os modelos de avaliação devem ser produzidos de acordo comos objetivos das comunidades locais em suas tentativas de produzir mudan-ças em determinadas situações. Tais questões estão inextricavelmente ligadasao contexto sócio-cultural e político-econômico a que estão atreladas as açõesque estão sendo avaliadas e devem sempre ser precedidas, portanto, poruma contextualização da realidade em questão. O autor disponibiliza, anexaao texto, uma agenda de estratégias locais para a redução da pobreza. Talmaterial em si já é desdobramento de um tipo específico de avaliação.

Acreditamos que o documento que ora apresentamos possa ser umareflexão de extrema valia para o trabalho de organizações e instituições en-volvidas nas ações em saúde interessadas não só no aprendizado, mas noaperfeiçoamento, de processos avaliativos mais críticos e voltados às nossaspróprias realidades e efetivamente comprometidos com a mudança social.

Richard Parker Veriano Terto Jr.Diretor-Presidente da ABIA Coordenador-Geral da ABIA

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AVALIAÇÃO DEMOCRÁTICA:PROPOSTAS E PRÁTICAS

PETER SPINK1

INTRODUÇÃO

Oobjetivo deste texto é discutir a ava-liação de programas, projetos e ativi-dades, não como prática científica ou

como prática técnica, mas enquanto prática so-cial. Esta reflexão já acontece implicitamentequando avaliadores duvidam, entre si, daquiloque fazem ou quando os avaliados se sentemcomo se fossem borboletas alfinetadas nummostruário. Também esta reflexão manifesta-sena própria palavra “avaliação”, cujo sentido éjulgar, atribuir valor. Portanto, se avaliação é aatribuição de valor: quem deve atribuir valor?Ou, visto na ótica das avaliações que encontra-mos nas agências de desenvolvimento e nosfinanciadores de projetos: o valor que está sen-do atribuído é o valor de quem?

Há dois caminhos para discutir a avalia-ção enquanto prática social. Um vai pelas trilhas

da filosofia moral – das reflexões sobre como avida deve ser vivida – e pela discussão da razãoe verdade em relação à ciência. É um caminhoque vai reconhecer que grupos profissionaisdiferentes podem utilizar critérios bastante dife-rentes para dizer que algo é bom. Para um críti-co de arte, é provavelmente a contribuição cul-tural que vem em mente ao olhar uma obra nova,enquanto o segundo, ao olhar um projeto dedesenvolvimento, estará preocupado com ocusto-benefício. Da mesma maneira, dois pes-quisadores da mesma disciplina acadêmica irãodebater os benefícios respectivos deste ou da-quele método, por exemplo, quantitativo ou qua-litativo, ou de como pôr na mesma balança re-sultados, conseqüências e impactos. Tudo emnome da ciência e da sua contribuição à questãovalor. Este primeiro caminho é um caminho im-portante, e foi, em parte, trilhado nos excelentestextos anteriores desta série da ABIA, escritos,respectivamente, por Maria Inês BaptistellaNemes, Glenn Sessions e Carla Luzia FrançaAraújo (Nemes, 2000; Sessions, 2000; Araújo,2000). Ao estudar as diversas posições ali apre-

1 Escola de Administração de Empresas de São Paulo/Funda-ção Getúlio Vargas e Programa de Pós-Graduação em Psicolo-gia Social, Pontifícia Universidade Católica, São Paulo.

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sentadas e resumidas, torna-se claro que há mui-ta diferença entre óticas e métodos, mesmo quan-do a avaliação é tratada tecnicamente.

Mas não é o objetivo deste texto conven-cer alguém a agir de uma determinada formaporque assim é correto em termos técnicos oucientíficos. Ao contrário, seu caminho é outro: odo encontro com aqueles que reconhecem que aresposta à questão “quem deve atribuir valor”passa pelo terreno da igualdade e da alteridade,não apenas entre pesquisadores, técnicos, ativistase profissionais, mas entre estes e toda a comuni-dade diversa de usuários de serviços, portado-res de condições que são objetos das ações deapoio, intervenção e prevenção, e todos os demaiscidadãos atingidos indiretamente. Este segundocaminho inicia não com as questões de definiçãoe de medição, mas com o local onde estão situa-dos estes atores diferentes.

POBREZA, DESIGUALDADE E EXCLUSÃO SOCIAL

O Brasil é hoje um dos países mais desi-guais do mundo em vários aspectos. Há, semdúvida, países onde a intolerância é maior; maspoucos com o grau de desigualdade econômicae social que temos. Renda per capita não é neces-sariamente um bom indicador de condição hu-mana, mas mesmo assim vale a pena refletir sobreo fato que 70 milhões de brasileiros, ou 40% dapopulação do país, encontram-se abaixo do ní-vel de R$ 75 per capita por mês e há 20 milhõesbuscando sobreviver com R$ 1 per capita pordia. Se o Brasil tivesse a mesma distribuição derenda da média dos países no mundo, ele teria7% de sua população abaixo da linha internacio-nal de pobreza (US$ 1 per capita), em vez de30% atualmente nesta condição. Estes dados sãoconhecidos mas, infelizmente, precisam ser re-petidos. Os vinte por cento mais ricos da popu-lação brasileira têm 67% da renda nacional; os10% mais ricos têm 50% da renda e o 1% mais

rico tem 15% da renda. Em contraste, os 20%mais pobres têm 2% da renda, os 10% mais po-bres têm 1 % da renda e o 1% mais pobre temabsolutamente nada. Esta é uma situação que nãomudou desde 1975. No nordeste e no sudeste, amortalidade infantil entre os 20% mais pobres é10 vezes mais alta do que entre os 20% mais ri-cos; somente 7% das famílias brasileiras têm umrendimento familiar acima de 20 salários míni-mos por mês.

Renda pode servir como um indicadorsimples de níveis de pobreza, mas não para suaresolução, porque não há renda pessoal que podetrazer água encanada, sistemas de saúde, educa-ção, segurança pública e transporte – o que en-tendemos hoje como serviços que devem ser dopúblico e para o público. Aqui a desigualdade seexpressa na má distribuição dos serviços ao pú-blico, na falta de acesso do público aos serviçose na exclusão geográfica, de classes, de grupossociais, com base na cor, no gênero e na idade. Apobreza brasileira, portanto, é revestida peladesigualdade e pela exclusão social.

Se isso não fosse suficiente, o quadro dadesigualdade também reflete um Brasil que émuito diferente de uma parte a outra. Dizem queno país, como no restante da América Latina, agrande maioria da população é urbana (80%)mas esquecem que em somente 500 dos 5.500municípios brasileiros há algo parecido com umacidade urbana; no restante, a lógica é urbano-rural. Há mais de 1.000 municípios brasileiroscom menos de 5.000 pessoas nas suas áreas ur-banas, e 3.500 com menos de 20.000 pessoas.Conseqüentemente, ao justapor este cenário coma discussão da interiorização, da pauperização eda femininização de HIV/AIDS, os desafios sãoimensos para todos os envolvidos em ambos oscampos.

Olhar a pobreza pelo lado da desigualda-de e olhar a pobreza e a desigualdade pelo ladoda inclusão-exclusão resulta na iluminação de

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fatores estruturais como também de muitos ele-mentos da vida cotidiana que – sem perceber –estão presentes para algumas pessoas mas ausen-tes para a grande maioria.

John Friedmann, após uma longa experiên-cia na América Latina, apontou oito vertentes apartir das quais o processo de inclusão precisaser compreendido, começando pela base territo-rial do lar e da vizinhança segura – o que ele cha-mou de um ambiente amigável, que apóia a vidacotidiana (Friedmann, 1992). Suas outras verten-tes de análise foram: tempo disponível adicionalao necessário para a subsistência; acesso a conhe-cimentos e habilidades; informação relevante,clara, honesta e de confiança sobre métodos, prá-ticas e oportunidades para inclusão; organizaçãosocial; redes sociais; instrumentos de trabalho ede vida diária e recursos financeiros diretos ouem forma de crédito. A noção de acesso que per-meia estas características está diretamente ligadaà questão de poder: a capacidade de assumir umpoder social a partir do uso de redes sociais e ashabilidades organizacionais próprias para colo-car na agenda pública a necessidade de re-alocaçãode recursos, de prioridades e de ações. Um outronome para esta capacidade que é disponível co-letivamente, é capital social.

As oito dimensões identificadas são aspec-tos da vida diária que são presumidos como nor-mais por uma grande parte das elites políticas,econômicas, sociais, profissionais e intelectuais.O dia-a-dia é inimaginável sem eles. Pense, porexemplo, na maneira em que o cotidiano éconstruído quando alguém recebe um salárioregular e mensal, uma situação diferente daquelaonde alguém ganha de maneira variável por se-mana e, diferente, novamente, da situação ondealguém ganha por dia, quando há serviço dispo-nível, ou por “bico” eventual. Estas diferençastambém fazem parte do processo de exclusão.Certos recursos e oportunidades estão mais dis-poníveis em certos contextos. Por exemplo, um

horário de consulta médica com três semanas deantecedência pode representar uma situaçãoagradável para alguém que tem liberdade de or-ganizar a sua agenda antecipadamente e ser uminferno para alguém que não tem alguma previ-são sobre seu tempo, que é dedicado exclusiva-mente para a sobrevivência. Entretanto, viversem estes recursos e possibilidades não quer di-zer que a pessoa parou de existir. Ao contrário, agrande maioria de pessoas em situação de po-breza, mesmo com restrições imensas, está ati-vamente e dignamente engajada na construção ena sustentação diária de suas vidas. O uso de pa-lavras como “carente” e “humilde” pelas elites éuma negação desta competência.

Todas as vertentes que Friedmann identifi-cou podem ser encontradas quando analisamosexperiências brasileiras eficazes na redução dapobreza. Os pontos de partida da luta para ocotidiano são os mais variados. Saúde, habita-ção e segurança pública são pontos freqüente-mente citados quando se pergunta às pessoas “oque é a cidadania”; entretanto uma das últimasorganizações públicas para a qual as pessoas pen-sam em recorrer quando têm problemas é a pró-pria polícia.

Resultados similares emergiram de um es-tudo comparativo recente do Banco Mundial;cujo componente brasileiro foi coordenado porMarcos Melo da Universidade Federal dePernambuco. Neste estudo, algo em torno de20.000 pessoas de 200 ou mais comunidades em23 países participaram de discussões em grupoe entrevistas com o intuito de ouvir as opiniõesdas populações em situação de pobreza sobre oque é o bem-estar e o que provocaria uma dife-rença significativa nas suas vidas. Os resultadosdemonstraram o quanto as múltiplas dimensõesde desvantagem interagem, criando armadilhase círculos viciosos que são quase impossíveis dedesmontar. Bem-estar é felicidade, harmonia,estar livre da ansiedade e ter paz interior, ele-

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mentos que decorrem da necessidade que têm aspessoas de se sentirem protegidas e seguras.Como foi identificado na parte brasileira doestudo, a segurança está associada a uma varie-dade de fatores incluindo o emprego e a rendaregular, acesso à comida, ter boa saúde e ter aces-so aos serviços de saúde, como também ter mo-radia e título de propriedade de terra (Narayan,Chambers, Shah & Petesch, 1999).

Hoje há uma tendência de cada vez maisjuntar estas diversas temáticas e lados da ques-tão da pobreza, da desigualdade e dos proces-sos de inclusão-exclusão dentro de uma visãomais abrangente sobre a cidadania. Assim, a ci-dadania é vista não como uma categoria abstrataou jurídica, mas como uma categoria ativa emtermos de direito, acesso e dignidade; algo quefaz sentido para as pessoas na sua prática diária.

CONSTRUINDO A CIDADANIA NA AÇÃO

Ação, para usar uma definição de AnthonyGiddens, refere-se ao “fluxo de intervenções cau-sais atuais ou contempladas de pessoas no pro-cesso contínuo de eventos no mundo” (Giddens,1979). Quando discutimos prevenção em HIV/AIDS, por exemplo, estamos falando de ação;ação dentro de um fluxo de eventos cotidianos.Mas, ao mesmo tempo, somos parte deste fluxocontínuo de eventos porque sua produção é so-cial e inter-subjetiva. Segue, portanto, que quan-to mais aprimoramos a capacidade de refletirsobre a intervenção enquanto ação, e sobre anossa presença nos eventos contínuos que for-mam a densa processualidade do cotidiano, tan-to mais aumentaremos a nossa competência deassumir um papel responsável e ético na cons-trução dos seus sentidos.

Falar em fluxo e processualidade não é,todavia, uma questão de uniformidade de inte-resses e direções. O rio de Heráclito, metáforapara seus ensinamentos sobre o estado do vir a

ser, é um rio turbulento composto de muitos tri-butários, com cascatas, correntezas, obstáculos epororocas.

Podemos escolher um exemplo da área dedistribuição de medicamentos, ou de uma ativi-dade de prevenção como, por exemplo, a trocade seringas. Para ambos acontecerem, há muitoscaminhos a serem criados. Simplificando, háuma densa malha de atividades que traz os medi-camentos para as pessoas e uma outra malha quetraz as pessoas para os medicamentos. Podemospensar nelas como cadeias ou canais de fluxosde atividades que são, na sua micro-causalidade,multidirecionais em caráter. Às vezes um eventoestimula um outro, empurra questões e idéias parafrente e, às vezes, é o contrário: as idéias são pu-xadas pelas exigências do momento. Às vezesuma atividade pode parar, bloqueada por novasações, para depois desaparecer ou até ser resga-tada. Diferentes atores nacionais e internacionais– pessoas, agrupamentos, organizações, frentes,movimentos sociais e redes advocatórias – estãoenvolvidos em momentos diferentes, às vezesabrindo e às vezes fechando as portas. Cadeiasou canais de atividades e eventos, ações de por-teiros, o fluxo do cotidiano – este é o terrenodo qual fazemos parte e dentro do qual agi-mos. Este é o terreno também da pobreza e dadesigualdade.

Esta forma de análise de eventos foi criadapela primeira vez na década de 1940 pelo psicó-logo Kurt Lewin que, quando solicitado a estudara influência dos hábitos de consumo de comidanos Estados Unidos, respondeu dizendo que oproblema não era saber porque as pessoas co-mem o que comem. Ao contrário, quase todas aspessoas vão comer aquilo que está na mesa. Oproblema que precisou ser estudado era, antes,saber como a comida e seus ingredientes chegamaté a mesa (Lewin, 1943).

Vamos usar um exemplo do campo da edu-cação. Para ter 100% das crianças em idade es-

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colar dentro do processo educativo é necessário,simplificando novamente, trabalhar em pelomenos duas cadeias ou canais. Uma cadeia deatividades leva a educação para as crianças, cons-truindo escolas e outros equipamentos, trei-nando e contratando professores e auxiliares,organizando currículos, garantindo materiais,livros e merendas. A outra leva as crianças paraa educação e é composta de leis, mecanismos detransporte, conceitos – como o da pedagogia daalternância usado na área rural – e também açõesque retiram outras restrições ao acesso como, porexemplo, a necessidade de trabalhar ou pediresmola para suplementar a renda familiar.

Conseqüentemente, quando o Governo doDistrito Federal tomou a decisão de desativar oPrograma de Bolsa Escola, iniciado com grandeefetividade pela gestão anterior de CristovamBuarque, suas ações destruíram uma parte im-portante deste segundo canal para as crianças defamílias em situação de pobreza.

Um outro exemplo. Para que o evento quechamamos vida – nos seus aspectos biológicos,humanos e sociais – possa ser exercido com dig-nidade e cidadania pelas pessoas portadoras deHIV/AIDS é necessário não somente articularuma cadeia de atividades que dá prioridade acertas políticas no campo da saúde e gastos cor-respondentes com remédios, que estimula a pes-quisa e que leva estes remédios junto com umamalha de outras terapias de apoio e de diálogo,de testagem e de consulta para as pessoas. É ne-cessário também trabalhar com uma segundacadeia que traz as pessoas para os testes, as tera-pias de apoio e os remédios. De novo esta é umasimplificação, porque a prevenção tem a sua parteem ambas as cadeias.

Durante os períodos iniciais de HIV/AIDSno Brasil, quando os grupos em risco eram maisclaramente delineados, compreender e aprendercomo articular o segundo canal – de trazer as pes-soas para as terapias – pode ter sido difícil, mas

seus contornos populacionais eram mais claros.Os profissionais e ativistas envolvidos tiveramque aprender muito, mas havia a possibilidadede foco. Problemático neste momento era o pri-meiro canal – o de mobilizar recursos, remédiose iniciar serviços – construído com muito êxitoa partir do trabalho de organizações não gover-namentais e grupos de apoio e pressão, assimcomo também a dedicação de atores-chave nasaúde pública.

Hoje, os dados recentes que demonstramum número crescente de casos entre mulheres, apresença cada vez mais de casos em cidades forado litoral, de médio e pequeno porte, em grupose populações com menos recursos e em situaçãode pobreza, refletem também uma situação em queos contornos populacionais não são mais claros.Ao contrário, sua heterogeneidade crescente levaa contornos incrivelmente difusos. A situação seinverteu e o problema agora é cada vez mais como segundo canal e especialmente suas conexõescom a prevenção.

Uma das questões básicas da heteroge-neidade foi bem discutida num texto de RichardParker e Kenneth de Camargo Jr. onde eles apon-tam o perigo das categorias simples. Por exem-plo, a discussão da “feminização” freqüentementemascara o fato que nem todas as mulheres sãovulneráveis e a ênfase simples neste novo lugar,por exemplo, “interiorização” ou aquele novogrupo de risco, pode levar pessoas a imaginarque de algum modo o HIV/AIDS foi emborados seus lugares ou grupos anteriores, repetindoum fenômeno já visto com outras doenças epi-dêmicas. Como eles comentam: “Tendênciasamplas como a pauperização, feminização ouinteriorização são inegáveis – mas nossa utiliza-ção por vezes demasiado simplista destas cate-gorias pode mascarar a real complexidade so-cial dos processos de vulnerabilidade” (Parker& Camargo, 1999). Entre os estimados 30.000moradores de rua em São Paulo – um número

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de pessoas equivalente à população de muitosmunicípios no país – estima-se que 15% estejamcom HIV ou AIDS. Como apontou um repre-sentante de uma ONG de rua, a questão não seresolve com a distribuição de remédio.

Estes exemplos são necessariamente esque-matizados e simplificados. Freqüentemente nãotemos somente dois canais ou duas cadeias deatividades, mas três ou quatro. Dentro de cadacanal há múltiplas portas, cada uma com seusporteiros que agem diferentemente na presençade certos grupos e prioridades, abrindo ou fe-chando oportunidades e caminhos. Trabalharcom pobreza, especialmente dentro da ótica dadesigualdade e da exclusão social, requer a capa-cidade de ler e intervir em eventos-no-mundoproduzidos por cadeias diferentes de atividades.Cadeias onde os porteiros podem às vezes com-preender as diferenças e suas implicações, às vezesser explicitamente hostis e muitas vezes simples-mente reproduzir, sem perceber, elementos dasdinâmicas complexas que produzem a discrimi-nação e a marginalização no cotidiano. Trabalharcom a inclusão não é somente uma questão derecursos e caminhos novos, mas também umaquestão de identificar os mecanismos de exclu-são. Por exemplo, um novo fundo de apoio àagricultura familiar pode ter nenhum efeito senada é feito sobre as restrições existentes ao cré-dito praticadas por bancos, que exigem títulosde propriedade de terra. Ou a localização de umcentro de referência perto de uma Secretaria deSaúde para simbolizar sua importância e centra-lidade, mas ao mesmo tempo, longe do lugaronde os ativistas e profissionais de saúde comu-nitária estão trabalhando na rua e enfrentandoos novos desafios do dia-a-dia.

Trabalhar com estes processos leva tam-bém ao reconhecimento do papel-chave daquiloque Saul Alinsky descreveu no seu trabalho pio-neiro de mobilização social nas áreas pobres deChicago em 1939 como: “people organizations”.

As organizações próprias das pessoas em situa-ção de pobreza – as organizações verdadeiramen-te populares – são capazes de identificar os blo-queios nos caminhos e nos canais de atividadesporque os enfrentam no dia-a-dia (Horwitt,1989). Ao reconhecer esta competência de leitu-ra social, reconhece-se também a sua voz, passochave para romper a tutela exercida explícita eimplicitamente por outros.

Se avaliar é julgar e atribuir valor, quem deve atribuirvalor?

Todo projeto, programa ou atividade quebusca contribuir, melhorar ou alterar uma situa-ção existente é, por definição, um conjunto de açõesque intervêm num processo social contínuo –portanto não estático – e situado historicamen-te. Ao ser iniciado, na intenção e na atualidade,vira por sua vez parte deste mesmo processo;processo este que não acontece no “ar” mas em“lugares”. Em outras palavras, ao intervir numlugar, o projeto também vira constitutivo destemesmo lugar; não é separado, mesmo tendo suahistória própria. O projeto e o processo são comodois rios se juntando e, conseqüentemente, seusfuturos serão igualmente vinculados e com di-versos graus de previsibilidade.

A justaposição dos rios, do projeto e doprocesso é a parte mais visível de toda uma ou-tra série de justaposições – ou interfaces – queestão presentes. O mundo social é caracterizadopela presença simultânea de saberes múltiplos queemergem e são transmitidos de diversos cotidia-nos. Senso comum, por exemplo, manifesta-secomo sendo algo “óbvio” capaz de ser intuídoautomaticamente pelos “ares do momento”.Entretanto é o oposto; um conjunto de conheci-mentos culturalmente localizados que são transfe-ridos e ensinados. Outros saberes – igualmentecomuns – estão presentes em grupos profissio-nais; suas bases micro-teóricas de como agir, suasetnometodologias práticas a partir das quais o

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mundo vira relatável. Hoje, até a ciência que,durante um tempo, assumiu o papel e tambémas esperanças de muitos de ser “a” verdade, émuito mais “as ciências”, caracterizada pela pre-sença de múltiplos posicionamentos e perspecti-vas teóricas, com pressupostos sociais distintos.Os encontros dos rios e dos riachos são encon-tros de saberes, legitimados de maneiras diferen-tes; mas também são desencontros, ondas epororocas, na luta ideológica para a hegemoniasobre as explicações.

Quando o projeto e o processo são sepa-rados e vistos de maneiras distintas, há o perigode ver o primeiro como algo que busca testaruma teoria sobre ação, um procedimento quase-laboratorial que usa como contexto, ou campo, osegundo. Conhecimento, portanto, está além docontexto. Quando são vistos de maneira conjun-ta, quando o projeto e o processo são compre-endidos como parte do lugar, o conhecimentotambém vira elemento constitutivo do processo;a teoria emerge da ação, produto das interfacesnegociadas de saberes diferentes. O filósofoGeorge Herbert Mead escreveu que conheci-mento é a descoberta através da implicação decoisas e eventos de alguma coisa ou coisas quenos permitem avançar ou continuar quando umproblema nos segura. Para Mead, é o fato deconseguirmos avançar que garante o nosso co-nhecimento (Mead, 1956). De um ângulo dife-rente, Karl Popper também argumentou que oconhecimento não começa de percepções ouobservações ou da coleção de fatos ou núme-ros. Começa, mais propriamente, de problemas;poder-se-ia dizer que não há nenhum conhecimen-to sem problemas, mas também não há nenhumproblema sem conhecimento (Popper, 1978).Hoje a discussão sobre o pragmatismo do conhe-cimento volta a ter visibilidade, especialmentecom o trabalho de Richard Rorty, para o qual éno vocabulário da prática e não da teoria, daação e não da contemplação, que é possível di-

zer algo sobre a verdade. Para os pragmáticos, aessência da aspirina reside na ação: aspirina ébom para dor de cabeça e tem poucos efeitoscolaterais.

Simplificando, o encontro entre o projetoe o processo precisa ser compreendido enquan-to desafio onde, para usar a expressão de PaulFeyerabend no seu texto contra o método, “osespecialistas e as pessoas comuns, os profissio-nais e os diletantes, os viciados na verdade e osmentirosos estão todos convidados a participarna contestação e fazerem sua contribuição parao enriquecimento de nossa cultura” (Feyerabend,1978). A avaliação, portanto, precisa seguir omesmo caminho, de aprender a ser constitutivado lugar de encontro do processo e do projeto enão separada deste ou daquele. Mais ainda, es-pecialmente dentro do cenário de desigualdadee de exclusão que caracteriza o Brasil de hoje, aavaliação precisa ser entendida não como audi-toria ou cobrança mas, antes de mais nada, comouma parte integral da construção cotidiana dademocracia. Ou seja, a avaliação é necessária nãoporque é mais científico agir assim, ou porque oagir profissional sem avaliação é arrogância eprepotência, mas porque a maneira em que pen-samos e concebemos a avaliação faz uma dife-rença fundamental para a maneira que construí-mos as nossas práticas sociais coletivas diárias; amaneira que atribuímos valor.

A questão inicial deste ensaio é, portanto,uma questão que deve estar sempre nas conver-sas das pessoas envolvidas em projetos e em ati-vidades de avaliação: quem deve atribuir valor ecomo atribuir valor. A resposta que leva à ava-liação democrática é simples: o maior númeropossível dos diferentes agrupamentos, atorese outros implicados, direta ou indiretamente,conhecidos e não conhecidos e em formas quepermitem a responsabilização, a transparência, acomunicabilidade e a co-determinação. Avaliaçãodemocrática precisa ser compreendida, antes de

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mais nada, como ação a favor de uma cidadaniaativa; cidadania esta que engloba todos, incluin-do os cidadãos que são gestores de projetos eavaliadores.

É evidente, inevitável e desejável que, umavez aceita esta maneira de formular seu foco bá-sico, a atividade de avaliação nunca voltará a sera mesma que conhecemos nos manuais técnicosou nas instruções das entidades financiadoras eagências internacionais. Mas será que isso é umproblema? A resposta é não, por duas razões.

A primeira é que os mesmos manuais re-presentam somente uma parte da imensa varie-dade de maneiras e mecanismos através dos quaisgrupos profissionais atribuem valor às suas ati-vidades. A segunda é que a própria construçãosocial de um projeto, presente nas entrelinhas dosmanuais, como algo distinto e permanentementeseparado do dia-a-dia, pode levar à sua perigosareificação enquanto símbolo da lógica da açãoperfeita.

Os países do OECD examinaram em 1986as suas diferentes práticas de avaliação na áreade ajuda internacional e chegaram à seguinte de-finição geral: “Avaliação é uma examinação, amais sistemática e objetiva possível, de um pro-jeto ou programa em execução ou completado,seu desenho, implementação e resultados, paradeterminar sua eficiência, efetividade, impacto,sustentabilidade e relevância de seus objetivos”(OECD, 1986). A definição é bastante aberta,não problemática e compatível com muito que éescrito sobre a temática. Entretanto ao ser prati-cada, é marcante o número de diferenças sutisque existem – mesmo entre profissionais na mes-ma área e agência. Em 1993, estudamos parauma das agências de cooperação internacional(Sida-Suécia) as posturas atrás das abordagens deavaliação em uso no âmbito de desenvolvimen-to social entre as principais agências da época.Identificamos quatro orientações que denomina-mos: “sendo útil”; “o que aconteceu – prestação

de contas”; “o que aconteceu – aprendizagem”;e “o que tudo isso quer dizer?”

“Sendo útil” refere-se às abordagens deavaliação que se orientam pela preocupação comos atores envolvidos: se eles conseguiram fazeraquilo que queriam e se isso era de fato impor-tante como pensaram; se o planejado foi feito ese o resultado era o esperado; se o projeto e,portanto, o apoio prestado, foi útil. O foco dotrabalho é na comunicação de preocupações ediálogo, com metas aproximativas e não comobjetivos precisos, medidas de desempenho e efi-cácia. Este estilo de avaliação continua até hojesendo encontrado nas fundações que apóiam ati-vidades de desenvolvimento e algumas das agên-cias independentes.

“O que aconteceu – prestação de contas”é uma postura influenciada pelo mundo gerenciale pela interpretação de um projeto ou programacomo sendo algo correto, lógico e racional. Ob-jetivos, metas, resultados e indicadores assumemum caráter imperativo e normativo, levando ajulgamentos do tipo bom-mau e sucesso-fracas-so em relação aos custos e resultados. Esta abor-dagem ganha cada vez mais espaço no cenáriointernacional, especialmente em variantes queusam matrizes de objetivos, indicadores e resul-tados como uma “logical framework analysis”.O terceiro tipo, “o que aconteceu – aprendiza-gem”, também se preocupa com o que aconte-ceu e também compartilha uma visão de ummundo real que está sendo investigado. Entre-tanto, volta-se mais às possibilidades de apren-dizagem e melhoria, buscando aprofundar asleituras possíveis sobre conseqüências e impac-tos para aperfeiçoar futuras ações. Erros são es-perados porque é reconhecido que o futuro temsuas imprevisibilidades e o objetivo da avalia-ção é aprender e mudar.

Finalmente, há posturas do tipo “o que issoquer dizer”, que se perguntam sobre as ações emcurso menos para controlar ou melhorar, e mais

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para entender os processos sociais mais amplospresentes. As conseqüências não intencionais paraas instituições atuais e aquelas sendo criadas, aprópria razão da avaliação em si e a problema-tização da intervenção em termos culturais sãotodos caminhos possíveis a serem trilhados. Cadavez mais, esta visão mais construcionista se voltaà própria questão do desenvolvimento; presenteem debates sobre o meio ambiente, os povosoriginários, as práticas locais e os saberes dife-rentes. Aliás, é da justaposição desta quarta pos-tura com a primeira que vem parte do estímulopara a avaliação democrática. Afinal, “sendo útil”não é somente uma questão de resolução deproblemas, mas da contribuição também paraas instituições e processos de governança; paraos direitos de minorias que são freqüentementemaiorias e que estão tão presentes no cotidianoquanto os outros.

Frente a esta variedade de possibilidadespráticas e de interpretações, muitas das quais usan-do os mesmos tipos de coleta de dados, torna-secompreensível porque muitos pesquisadores eatores sociais se escondem ou olham para o ladoquando são convidados a utilizar um novo mé-todo de avaliação, “cientificamente” elaboradocomo melhor do que os anteriores!

Durante os últimos seis anos, o ProgramaGestão Pública e Cidadania da EAESP/FGVvem acompanhando experiências inovadoras naárea pública que melhoram os serviços e contri-buem para a construção da cidadania. Até hoje,com mais de 4.500 experiências catalogadas, oPrograma nunca definiu o que era inovação,deixando isso para os gestores dos governossubnacionais brasileiros (estados, municípios e osgovernos próprios dos povos indígenas e ori-ginários). Se alguém considera que aquilo queestá fazendo é inovador, isso é válido para o Pro-grama. Igualmente, ao avaliar os programas nociclo de premiação anual, evita-se criar uma listade parâmetros e indicadores; ao contrário, busca-

se estimular uma discussão entre profissionais,acadêmicos, ativistas e estudantes sobre as dife-renças entre os programas, projetos e atividadesinscritas e sobre o que se destaca em um e no outro.

Uma das lições que aprendemos neste pro-cesso é que, raramente, os programas, projetos eatividades inovadoras começam de maneira for-mulada e integrada com objetivos coerentes. Aocontrário, especialmente nas áreas mais complexase difíceis ligadas à pobreza, a exclusão e a desi-gualdade, o processo é freqüentemente caótico,de aprendizagem incremental e permanente; ca-racterizado por tentativa e erro, e a mobilizaçãode recursos e oportunidades articulados e oriun-dos de grupos e interesses diferentes. Qualquer“sistematização” é um produto do olhar para trás,construindo ordem a partir da observação dopassado e não algo planejado antecipadamente.

Por quê, portanto, chamá-los de projetos enão simplesmente tentativas de resolver proble-mas? A tendência de transformar ações e ativi-dades em projetos e depois juntá-los em progra-mas é recente e uma característica das chamadas“décadas de desenvolvimento” do período após1946, junto com uma nova leva de organismosinternacionais e uma idéia de desenvolvimentoenquanto melhoria das condições humanas. Per-guntas tais como “onde se pretende chegar?”,“por que se espera tais resultados?”, “quais oscustos e benefícios de agir nesta direção e nãonesta outra?”, são úteis para qualquer um envol-vido em tentar alterar o dia-a-dia; afinal são per-guntas que cada um faz para si mesmo, quase quediariamente. O problema emerge quando o diá-logo implícito nestas questões é transformadoem algo distinto e separado, em interrogação; ouquando saber as respostas às questões é valori-zado e não saber as respostas é mal visto. Quan-do se adiciona a pressão por resultados, as exi-gências de auditoria e um modelo de pesquisaaplicada de transferência tecnológica extrapoladada pesquisa básica, o resultado é o projeto ou

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programa enquanto conjunto de atividades pré-formuladas, cada qual com seus objetivos, metase indicadores prontos para serem avaliados. Estavisão reforça, em conseqüência, a idéia de queavaliação é uma atividade importante e séria, eque séria é entendida como cientifica ou técnica,o que normalmente quer dizer também quantita-tiva. Isso, por sua vez, reforça a idéia de que umbom projeto é algo bem definido e claro em ter-mos de seus objetivos e metas tal que são capa-zes de serem avaliados, o que também reforça aidéia de que a gestão de projetos precisa ser feitaprofissionalmente por especialistas em projetos,e assim vai!

Se avaliar é atribuir valor, não há dúvidaque atribuir valor é coisa séria. Se atribuir valoré um processo social, pode se atribuir valor emcircunstâncias claras e também em circunstânci-as menos claras, incluindo aquelas onde há pou-ca coisa definida, onde há muita tentativa e erroe onde o conhecimento emerge a partir da práti-ca, ao longo de um caminho que se torna maisclaro quando se olha para trás para ver o quantose conseguiu avançar. Igualmente, se avaliar écoisa séria, não há dúvida que precisa ser feitoseriamente. Entretanto a seriedade é uma carac-terística da prática cotidiana da conversação, daação comunicativa e da democracia em constan-te construção e não de um grupo profissional oumétodo específico; todos nós sabemos ser sérios.

TODA AVALIAÇÃO É PARTICIPATIVA – O PRO-BLEMA É IDENTIFICAR QUEM ESTÁ PARTICI-PANDO E QUEM ESTÁ SENDO EXCLUÍDO

Uma reação parcial contra a excessiva orienta-ção tecno-científica no campo da avaliação foiesboçada a partir da idéia de avaliação partici-pativa e o engajamento ativo dos membros dasequipes de projeto, das pessoas que são o focoda atividade e a comunidade geral, junto com osavaliadores. A dificuldade criada não é na ativi-

dade básica em si, porque, como veremos a se-guir, este é um ponto de partida importante naconstrução da avaliação democrática, mas na vi-são de que com a “participação” tudo se resolvede maneira amigável a partir da bondade dosavaliadores em permitir que outras pessoas tam-bém tomem parte. Avaliação participativa é umatécnica de avaliação; ninguém dúvida da presençanecessária dos avaliadores e seus conhecimentos;a questão é abrir um pouco o espaço para outros.Seguindo esta linha, é comum comentar-se nasagências internacionais que a avaliaçãoparticipativa é também uma boa maneira de“educar” comunidades sobre a importância daavaliação e “ajudá-las” a aprender a fazer; umsinal claro da postura tutelar em relação à com-petência e opinião.

Ao contrário desta visão restrita, é impor-tante argüir que em qualquer atividade de ava-liação há participantes; o problema está emidentificar quais são e, portanto, saber quemestá sendo excluído. O uso da expressão avalia-ção democrática busca estabelecer umacontraposição que não esconde as diferenças depoder e de influência e vai em busca de proces-sos cada vez mais abertos em relação aos atoresenvolvidos e as suas formas de interação; deaprofundar os mecanismos de governança a par-tir dos quais valor é atribuído. Avaliação demo-crática inicia-se com a compreensão que ativida-des, projetos e programas são intervenções emprocessos contínuos e, ao intervir, fazem partedo mesmo processo. Portanto, não há como ava-liar “de fora” algo “separado”, como se fosse ooutro lado de uma janela de vidro; ambos sãopartes do mesmo processo e é bom que ambostenham voz.

Os antecedentes de avaliação democráticasão vários como também são os elementos que aestimulam enquanto prática social. A escolha daspalavras “avaliação” e “democrática” foi feitapara chamar atenção a estas diversas contribui-

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ções e às suas posturas subjacentes. Nelas tam-bém há inúmeros exemplos de técnicas práticas,mas não são estas que determinam a avaliaçãodemocrática. Técnicas são importantes, como naprópria democracia política institucional, massão conseqüências e não precursores.

Alguns dos fatores que estimulam a avalia-ção democrática emergem da própria constru-ção política diária e, no Brasil, com a chamadatransição democrática. Preocupações hoje comtransparência e responsabilização são muito maisvisíveis do que alguns anos atrás. Também é pos-sível notar entre pesquisadores uma crescentepreocupação com a ética da investigação e comos direitos das pessoas que estão de alguma for-ma envolvidas em cada estudo. Na área de HIV/AIDS isso é visível também na discussão sobreprioridades e sobre consentimento informado emrelação às possíveis vacinas. Num outro ângulo,a própria pós-modernização das ciências, ou seja,o reconhecimento de que elas são também partedo projeto da modernidade, tem permitido oreconhecimento de outros saberes e conhecimen-tos, incluindo o conhecimento prático enquantosaber em si e não como um proto-saber. Semdúvida também, a própria valorização de méto-dos qualitativos de investigação, seja em si ouenquanto mescla quali-quantitativa, tem levadopesquisadores a serem mais sensíveis para outrasvozes e outras formas de discutir os aconteci-mentos e prioridades diárias.

Em termos de antecedentes que influen-ciaram sua prática, há raízes claras na pesquisa-ação enquanto processo colaborativo de investi-gação e ação (ver, por exemplo, Thiollent 1985,1997; Spink, 1979); na mobilização social e napesquisa participante (ver Brandão, 1981); naavaliação participativa (Barreira, 2000) e na edu-cação popular e especialmente na teoria e na açãodialógica de Paulo Freire (Freire 1970, 1979).Cada uma destas abordagens foi e continua sen-do uma iniciativa importante para redefinir rela-

ções no cotidiano das atividades de educação,investigação e ação; de construir uma democra-cia na prática dos micros eventos e dos microspoderes. Agregá-los em volta da temática de ava-liação democrática é para dar mais destaque àssuas contribuições e não retirar sua luz.

COMO RECONHECER A AVALIAÇÃO DEMOCRÁ-TICA NA PRÁTICA

A avaliação democrática manifesta-se nadisposição dos agentes presentes numa determi-nada situação darem prioridade à discussão e aodebate coletivo sobre a atribuição de valor (oque, como, aonde, com que, se é necessário etc.)e para buscar concretizar uma prática de multi-determinação negociada, na qual o poder éredistribuído e barreiras de exclusão e mecanis-mos de desigualdade são desmantelados. Mastambém, e por causa desta disposição, reco-nheceremos a avaliação democrática a partirdo uso dos métodos mais variados e possivel-mente estranhos em relação àquilo que estamosacostumados “cientificamente” a entender comométodos. Serão métodos, mesmo assim, mas de-rivados de saberes e prioridades diferentes, devalores diferentes que têm origem no lugar e quefazem sentido no lugar.

Diante desta observação, alguns podempensar que avaliação democrática quer dizer jo-gar fora tudo que aprendemos sobre avaliação emensuração, ou que qualquer possibilidade decomparação entre grupos e áreas diferentes se-ria impossível se cada lugar faz do seu jeito. Nãohá dúvida que será um ambiente caracterizadopela diversidade, mas desde que pessoas possamconversar entre si, será sempre possível contras-tar e comparar mesmo usando indicadores dife-rentes. A diversidade e a alteridade são talvez osmaiores desafios da avaliação democrática, es-pecialmente para os próprios avaliadores pro-fissionais acostumados a uma visão técnica do

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mundo e a uma ética profissional onde a serieda-de de fazer aquilo que é certo – aquilo que deveser – é valorizado mais do que o diálogo e a co-responsabilização coletiva. Conseqüentemente,para estes profissionais, a idéia que pessoas nor-mais e comuns possam estar envolvidas no dese-nho de uma avaliação, por exemplo, na área dasaúde, é incompreensível, porque são vistas comopessoas “com pouca consciência”, “que não sa-bem seus direitos” ou “que acham que um bomserviço de saúde é quando o médico vem”. Énestes momentos, nestes incidentes críticos davida diária, que profissionais bem intencionados(e outros menos bem intencionados) produzeme reproduzem os processos de exclusão, fechan-do portas e recusando o diálogo.

Ao colocar “a ciência” ou “a técnica” comojuiz e juíza da ação profissional, ignorando ooutro porque este não sabe o que é certo e, por-tanto está sem condições de participar, cai-se namesma armadilha dos tecno-burocratas duranteos regimes militares ou das pessoas que limita-ram o sufrágio eleitoral porque “o povo não sa-beria votar”. Que o diálogo é difícil não há dúvi-da, porque o próprio processo de desigualdadee exclusão estica cada vez mais o tecido comuni-cativo entre grupos e classes sociais aos limitesde ruptura. Temos, sim, uma dificuldade de nosentender: um com o outro. Mas o ponto de par-tida é claro: a valorização do lugar do outro, seushorizontes, suas formas, seus acontecimentos esuas expressões. Multi-determinação é o direitodas pessoas de serem ouvidas a partir do lugaronde estão no seu cotidiano: físico, geográfico,social e econômico.

Durante um ano e meio a equipe do Pro-grama Gestão Pública e Cidadania coordenouuma série de debates com ativistas, acadêmicos,profissionais e pessoas envolvidas diretamenteem uma série de experiências inovadoras de re-dução prática da pobreza e da exclusão social(Camarotti & Spink, 2000). Foram mais de 22

experiências discutidas e debatidas e mais de 120pessoas envolvidas nas discussões (as principaisconclusões estão anexadas a este texto). Conti-nuamente a discussão voltou, em experiênciaapós experiência, à temática do lugar, do hori-zonte da vida diária de cada um, e da eficácia eefetividade das ações que assumem o lugar en-quanto ponto de partida e não enquanto algo aser esquecido. O apoio para esta posição vemtambém dos pesquisadores no campo do desen-volvimento social e dos argumentos em favor doreconhecimento dos saberes diferentes presen-tes em situações de interface, sejam estas entreáreas urbanas e rurais, entre povos ou entre gru-pos e classes sociais e profissionais (ver, porexemplo, Esteva e Prakash, 1998; Sachs, 1992 ).Ignorar o conflito entre posições através dahegemonia de algo “correto” é o caminho maiscurto para o apartheid social. É assim que a au-sência da avaliação democrática se manifesta naprática.

AVALIAÇÃO NÃO É UM BICHO DE SETE CABEÇAS

Basicamente, quase todo processo de ava-liação tem como base o desejo de ajudar a refle-xão das pessoas envolvidas. “O que você achadas minhas roupas?” (meu vestido, ou minhascalças e camisa etc.). “Bem, depende aonde vocêvai, o que você pretende fazer... seu calção debanho vai muito bem com as sandálias e seu cha-péu de Panamá; mas você não ia dar aula?”. Ou,“Que tal o quadro que pintei?”; “O que você achado primeiro capítulo da minha dissertação?”. Épara ajudar nesta abertura de reflexão e discus-são, de contribuir para a possibilidade de diálo-go, que os modelos de avaliação são construídose oferecidos para o nosso uso; portanto deve-mos sentir liberdade de usar aquilo que é útil edeixar o resto.

Vamos imaginar uma situação onde a dis-cussão sobre a avaliação de um projeto social ou

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de uma intervenção em saúde pública, de umanova forma de distribuição de medicamentos,por exemplo, fosse começar com o seguinte diá-logo: “Que tal o projeto...tá legal...?”. “Simcara...tá legal mesmo...bem melhor”. Para as pes-soas envolvidas na nova sistemática de distribui-ção, saber que “tá legal” é um excelente pontode partida e bem melhor do que uma respostaao contrário. Entretanto, não vai demorar paraalguém perguntar: “mas, tá melhor de que jei-to?” ou, “como a gente pode melhorar mais ain-da?”. Igualmente, não vai demorar para alguémperguntar “mas o que vocês estão querendoatingir...o que é importante para vocês?”. As per-guntas, emergindo na discussão enquanto diálo-go, ajudam a reflexão e permitem a diferentespessoas exporem suas dúvidas e ajudar as outrascom as suas reflexões.

Os modelos de avaliação buscam aproxi-mar este processo, sugerindo uma seqüência deperguntas e tópicos para aprofundar esta discus-são; são versões simplificadas daquilo que acon-tece na prática. São esboços, idéias e não regrasa serem seguidas. Igualmente o grau com o qualalgo é explicitado pode variar bastante entre umaresposta impressionista de uma ou duas palavrase algo mais detalhado. Dado que o processo écontínuo é muito provável que, em tempo, o es-boço fique mais detalhado – entretanto nem issoé necessário e certamente nem é uma exigência.Se as pessoas envolvidas estão satisfeitas que umindicador de “legal” é suficiente para começar,então “tá legal!”.

O primeiro modelo que apresentamos aseguir foi elaborado a partir da análise e síntesede práticas de avaliação diferentes de agênciasde ajuda internacional. O modelo se divide emduas partes: o processo de formulação e o pro-cesso de implantação. A primeira parte se refereà formulação de um projeto, aquilo que é útildiscutir antes que a intervenção comece, mas queé também ação:

1. Deve haver uma situação social maisampla que o projeto, programa ou atividade este-ja buscando alterar: qual é esta situação e o quevocê quer modificar ou mudar?

2. Para fazer isso, quais os objetivos e me-tas que você elegeu como importante para se-rem atingidos?

3. Quais as atividades que você pretendeimplantar para atingir os objetivos e metas? Oque você vai fazer?

4. Quais os outros caminhos de ação pos-síveis e por que o escolhido é melhor em termospráticos e em termos de recursos disponíveis?

As perguntas acima podem ser feitas e res-pondidas em diversos graus de detalhe, depen-dendo do processo e das circunstâncias. Porexemplo, numa emergência ninguém vai pararpor muito tempo para pensar sobre objetivos emetas e uma boa parte da correção do rumo vaiser feita no caminho. Situações similares podemser encontradas quando pessoas estão trabalhan-do com questões novas para as quais há poucainformação disponível ou quando a complexi-dade sugere um processo mais incremental. Emoutras situações, o volume de recursos (tempo,pessoas e financeiro) pode ser de tal grandeza quetodos querem estar relativamente seguros sobreaquilo que pretendem fazer antes de iniciar.

Entretanto, independente do grau de deta-lhe ou clareza, é importante notar que as per-guntas são perfeitamente normais: “qual é o pro-blema?”; “o que queremos fazer e atingir?”;“como vamos fazer isso?”; “porque esta linha deação é a melhor alternativa prática no momen-to?”. Não há, em outras palavras, nenhuma razãopara excluir todas as diferentes partes presentes,e potencialmente envolvidas, na discussão e naavaliação da formulação de uma atividade,projeto ou programa.

Imaginando que uma atividade, projeto ouprograma encontram-se formulados e em ação,essas seriam as próximas perguntas:

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5. As ações (atividades, projeto ou progra-ma) estão funcionando de acordo com o plane-jado e estão chegando aonde devem chegar eacontecendo onde devem acontecer?

6. Quais os resultados imediatos e de cur-to prazo das ações?

7. Quais as conseqüências que podem serobservadas: intencionais e não intencionais, po-sitivas e negativas?

8. Qual o impacto do trabalho como umtodo na situação social mais ampla que vocêqueria alterar em primeiro lugar?

A primeira pergunta (5) está voltada aodesempenho básico do programa, projeto ouatividade que é chamado de eficiência ou eficá-cia. Se parte do projeto é a troca de seringas, asseringas precisam ser compradas, transportadase distribuídas para pessoas, agências ou centrosque também precisam criar canais de ação e con-tatos com outros tanto de distribuição, quanto derecolhimento; ou seja, tal como qualquer outrosistema de entrega, as coisas têm que chegar ondedeveriam, para quem delas precise. Às vezes aexpressão usada é “sistema de entrega” numa re-ferência a área de logística e fornecimento deserviços. Normalmente, esta pergunta é feitacontinuamente durante a vida de um projeto,para garantir que aquilo que foi planejado acon-teça, para melhorar o desempenho ou negociarobstáculos que não foram previstos ou dificul-dades novas que precisam ser levadas em con-sideração. A expressão usada nos manuais é“monitoramento”.

Tal como nas perguntas (1) – (4), há abso-lutamente nada na pergunta (5) que é diferentedas ações de qualquer pessoa no seu dia-a-dia.Estamos sempre avaliando a eficácia dos siste-mas de entrega em volta de nós, e as pequenascadeias de ação que compõem o cotidiano. Numaescala maior, há hoje no país mais de cento e dezprogramas de orçamento participativo nos mu-

nicípios brasileiros, onde o acompanhamento deações planejadas é uma atividade rotineira assu-mida por representantes de bairros e grupos devizinhança.

As perguntas (6) – (8) são aonde as brigasentre campos de conhecimento, grupos profis-sionais e atores sociais tendem a começar; afinal,trata-se de como medir aquilo que está aconte-cendo. Entretanto, na briga entre os “qualitativos”e os “quantitativos”, entre a “série estatística”,os “estudos de casos” e os “indicadores interna-cionais”, esqueça-se que se trata de algo que nasua raiz é relativamente simples. Uma pedra éjogada no meio de um pequeno lago: “splup” éo resultado, as ondas que se formam são as conse-qüências e quando as ondas batem na terra queforma a beirada há o impacto. A separação entreresultados, conseqüências e impacto ajuda a pen-sar na variedade de reações que resultam e quepor sua vez também são ações; a questão é sa-ber “o quê” está sendo produzido pelo “o quê”.Efeitos colaterais são conseqüências reconheci-das e postas no balanço; doenças iatrogênicasnormalmente emergem para a primeira vez aoreconhecer as conseqüências não intencionais. Aotodo, são os resultados dos resultados que so-mados (adicionados e subtraídos) vão produzirou não um impacto na situação social que ini-ciou a preocupação em primeiro lugar. De novo,não há nada aqui que não possa ser discutidoentre os diferentes grupos de atores sociais en-volvidos e implicados; não há nada que nãopossa ser negociado, discutido e construído de-mocraticamente.

As perguntas, em outras palavras, são per-guntas que também têm um cotidiano próximoa cada um. Transmitem a idéia de que há algoerrado, um problema (a diferença entre algo queestá acontecendo e algo que deveria estar acon-tecendo) que precisa de ação; que precisa de ati-vidades e recursos e que é necessário colocar issoem funcionamento. Depois é necessário ver se

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isso está funcionando, olhar os resultados e verse foi isso mesmo que se imaginava e se, de fato,a situação pode ser melhorada.

A seguir, há um outro modelo, usado naEuropa na área de desenvolvimento econômicolocal e que mostra o mesmo processo em outraspalavras. Os passos envolvidos são sete, e aocomparar cada passo com um outro, lança-se umapergunta:

1. necessidades de ação2. objetivos do projeto3. meios de agir4. ações implantadas5. resultados6. efeitos dos resultados7. impactos do projeto

Ao comparar (2) com (1), pode-se pergun-tar se os objetivos são pertinentes às necessida-des. Afinal, como estes objetivos vão afetar oproblema que se busca resolver? Ao comparar(3) e (2) pergunta-se o mesmo em relação aosobjetivos e aos meios; um é coerente com ooutro? Ao comparar (3), (4) e (5) a preocupaçãoé com a eficiência das ações, o monitoramento esua efetividade em termos de resultados.

Ampliando, ao olhar a relação entre (2), (5)e (6) é possível discutir se os resultados e os efei-tos foram de acordo com os objetivos; e ao olhar(1) e (7) é possível buscar concluir se os impactoseram úteis em relação às necessidades. Esta ulti-ma questão é sempre a mais difícil a enfrentar,não em termos técnicos, mas em termos sociais:afinal fomos úteis?

De novo, nada complicado, e muitas sãoas mesmas perguntas que fazemos uns para osoutros no dia-a-dia: o que aconteceu foi aquiloque esperamos; o trabalho, o projeto ou o pro-grama está sendo útil? Portanto, desde que estejadisposto a assumir a proposta de um mínimo decompetência discursiva e prática enquanto carac-terística social de uma espécie (no nosso caso a

humanidade), todos podem falar sobre avalia-ção e todos devem falar sobre avaliação.

O TERRENO PRÁTICO DOS INDICADORES

Se avaliação é atribuir valor, avaliação de-mocrática é atribuir valor democraticamente eatribuir valor democraticamente também impli-ca discutir como podemos dizer ou medir aquiloque está acontecendo. Não há uma forma de men-suração que seja mais democrática do que outra,só há aquela que pode ser compreendida, coleta-da de maneira socialmente justa e transparente ediscutida abertamente. Não é uma questão de qua-lidade e quantidade porque ambos têm seu papel;ao contrário a questão é a construção conjuntade meios e instrumentos de apoio ao diálogo e àmulti-determinação de ações e intervenções.

Além de ser uma postura que reconhece ooutro enquanto voz presente, a multi-determina-ção está também presente nos múltiplos apoios,parcerias e alianças entre organizações diferen-tes que, também, cada vez mais constituem asbases organizativas das atividades, projetos eprogramas; sejam estas públicas, da sociedadecivil, privadas, filantrópicas e populares. Talvezem alguns casos, o caminho para um processode avaliação mais democrático precise começarcom os próprios aliados nas atividades em dis-cussão, para se expandir depois para os gruposem foco e a comunidade mais ampla; entretanto,sempre com a clareza de que sem os dois últi-mos o processo continuará sendo pela metade, eque sendo pela metade sempre gerará exclusão.

Indicadores são uma base excelente paraconcretizar esta discussão mais prática porque avida cotidiana é cheia de indicadores: filas detodos os tipos, a mão colocada na testa da crian-ça, o rosto do colega voltando da procura dotrabalho. Pesquisadores também utilizam indica-dores, entretanto eles tendem a ser mais preocu-pados com sua consistência interna do que com

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sua capacidade de comunicação. Por exemplo,um nível no indicador GINI de 0.62 diz nada anão ser que você seja um economista, mas dizerque somente 7% das famílias brasileiras têm umarenda per capita que as permite entrar no merca-do de bens de consumo durável fala um poucomais. Por outro lado, crianças podem não enten-der de porcentagens, mas são capazes de criarexcelentes indicadores usando rostos com sorri-sos abertos, semi-abertos e fechados!

Ao olhar para um número grande de pro-jetos no campo social percebemos que, se per-mitidos, pessoas ordinárias são muito capazes dediscutir no dia-a-dia possíveis parâmetros paramedir melhorias, para atribuir valor. Elas nãoprecisam de um IDH (índice de desenvolvimen-to humano) ou de um IQV (índice de qualidadede vida) do seu lugar. Ao contrário, os sinais – eler os sinais é uma expressão que é do cotidiano– estão presentes no horizonte local e podem serelaborados a partir do lugar. Mas, e sempre temo contra-argumento, se cada um elabora o seu, oque acontecerá com os processos de generaliza-ção? Uma resposta radical talvez seja que entre oglobal e o local, é a vez do local; mas há tambémrespostas mais amenas. Por exemplo, desde quehaja possibilidade de comunicação entre indica-dores, de entender a direção do sinal, é possívelir do local para o geral, de conectar diversos in-dicadores para construir um senso de melhoria.Ter um indicador “limpo” para uso internacio-nal, é um problema das agências internacionais enão para a esmagadora maioria de pessoas quequerem melhorar as condições de vida de seubairro, localidade, região e país. Portanto em vezde aceitar automaticamente o “internacional”,não seria melhor inverter a situação e pedir a es-tes que assumam a iniciativa de debater e dialo-gar com os atores locais sobre a importância e autilidade de certos métodos de mensurar, em vezde exigir ou forçar? Como um colega expressoubem, “os indicadores revelam tanto sobre quem

os constrói quanto sobre o que se pretendemonitorar”. Os indicadores são frutos de suascircunstâncias e os atuais, em geral, revelam oquanto o local é desvalorizado enquanto espaçode competência social.

CAATINGA é uma ONG que trabalha naregião semi-árida de Pernambuco e Bahia comquestões de agricultura familiar. Buscando criarindicadores para avaliar uma série de aspectosdo seu trabalho que se relacionam com a cidada-nia, elaboraram com colegas e agricultores umconjunto de descrições às quais atribuíram valo-res. São descrições simples e claras que podemser debatidas por todos.

Por exemplo, em relação ao nível de parti-cipação política no município:

bom: os grupos organizados e representati-vos dos agricultores familiares possuem umaparticipação efetiva nos espaços de decisão daspolíticas municipais; as organizações dos traba-lhadores são articuladas e independentes e osConselhos (estatutários e formais) atuam de for-ma autônoma.

regular: pouca atuação dos representantesdos agricultores nos espaços de decisão das polí-ticas públicas; os conselhos municipais não fisca-lizam a execução das ações previstas nos planos;organizações desarticuladas.

deficiente: inexistência da representação dosagricultores nos espaços de decisão das políticasmunicipais; os espaços de definição das políticaspúblicas são politicamente manipulados.

Ou em relação à educação:bom: todos os membros da família maior

de 12 anos dominam a escrita e a leitura; há pelomenos 2 membros da família maiores de 12 anosdominando conhecimentos específicos (apicul-tura, criação de animais, pedreiro etc.).

regular: nem todos os membros da famíliamaior de 12 anos dominam a escrita e a leitura;há pelo menos 1 membro da família maior de 12

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anos dominando conhecimentos específicos (api-cultura, criação de animais, pedreiro etc.).

deficiente: nenhum dos membros da famíliamaior de 12 anos domina a escrita e a leitura;nenhum dos membros da família maior de 12anos domina conhecimentos específicos (apicul-tura, criação de animais, pedreiro etc.).

Ou acesso à informação:bom: possui rádio, TV e outros meios de

comunicação.regular: possui rádio ou outro meio.deficiente: não tem acesso a nenhum meio de

comunicação.

O município de Vicência fica na Zona daMata, no norte de Pernambuco, a 87 quilôme-tros de Recife. Desde 1999 vem enfrentandouma série de problemas complexos no campo apartir do declínio da monocultura de cana-de-açúcar: a prefeitura vem trabalhando na re-cuperação de suas escolas rurais buscandointegrá-las no debate sobre o desenvolvimentolocal. Uma das atividades importantes é o censoagropecuário ambiental e populacional realiza-do pelos alunos junto às suas famílias e à comu-nidade. As questões do censo são discutidas nasescolas e incluem tópicos tais como: “quem daminha casa está pensando em plantar no próxi-mo inverno?”, “quem já tem terra para plantar?”,“a terra já está preparada?”, “qual o seu tama-nho?”, “vai plantar o quê?”, e “quem já temsemente?”. Os resultados do censo são apresen-tados pelos alunos para os membros da comuni-dade em reuniões abertas na escola, contandotambém com a presença da prefeita e membrosdo secretariado municipal e a discussão é abertapara todos. Os resultados têm sido significati-vos em relação às práticas agrícolas e à valoriza-ção da escola e o impacto já extrapolou a árearural. Na conferência municipal de educação em2000, representantes da sociedade civil já reivin-

dicaram uma postura similar nas escolas urbanaspara discutirem as questões de habitação e quali-dade de vida.

Finalmente, um outro exemplo rural, estede uma associação de pequenos produtores agrí-colas de Valente, na região semi-árida do Esta-do da Bahia. A APAEB está se tornando umexemplo nacional e internacional da capacidadede pequenos agricultores de se associar para en-frentar os desafios de produção e de mercado.Iniciando seu trabalho com apoio de movimen-tos sociais (MOC) em 1980 e depois com ONGsinternacionais, a APAEB hoje é responsável pelacomercialização do sisal de seus associados atra-vés de uma batedeira comunitária para o benefi-ciamento e uma fábrica de tapetes e é responsá-vel, também, por uma escola familiar agrícolaem regime de alternância, diversos fundos decrédito, uma cooperativa de crédito rural, rádiocomunitária e programa de eletrificação rural. Aotodo são mais de 800 empregos diretos e 970famílias que vendem sua produção agrícola via aAPAEB numa valorização de quase 300% (trêsvezes) da matéria prima desde 1996 com a agre-gação de valor pelas atividades de beneficia-mento. Após a prefeitura, a APAEB é o maiorempregador no município e oferece níveis sala-riais em média maiores. No relatório anual que aAPAEB produz para seus associados e para acomunidade em geral há uma lista de tópicos eindicadores, sugeridos pelos membros da asso-ciação e outras pessoas envolvidas, como coisassobre as quais seria interessante saber mais. Paracada assunto há quase sempre três formas demostrar os resultados: uma tabela simples, umparágrafo de texto escrito de maneira clara e umafotografia.

Os indicadores são os indicadores da vidadiária: quantos metros de cerca eletrificada (im-portante para a caprinocultura); quantas casaseletrificadas; quantas famílias visitadas pelos téc-nicos; quantos matrizes e reprodutores compra-

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dos; quantas mudas de árvores sertanejas plan-tadas no processo de reflorestamento; quantascisternas de captação de água; quantos alunos naescola familiar agrícola; o que aconteceu com arenda familiar; quantas pessoas compraram bici-cletas, motocicletas, rádio ou TV e melhoraramsuas habitações. Podem não ser os indicadoresdo IDH ou do IQV, mas para os associados daAPAEB são as coisas que eles querem saber paraatribuir valor a seu esforço coletivo; para sabe-rem se é útil.

Os três exemplos são da zona rural do paíse foram escolhidos de propósito porquê é a áreaque para muitos é sinônimo de falta de compe-tência em geral. Entretanto é na área rural domundo inteiro que se encontram pessoas que nãotêm nenhuma dificuldade em debater aquilo queestá acontecendo ao seu redor e que podem, sequestionadas, contribuir à avaliação das possibi-lidades de ação. Talvez porque na área rural osresultados, as conseqüências e o impacto estão sem-pre à flor da pele. O silêncio rural pode significarmuitas coisas, mas nunca a falta de observação.

Há também muitos exemplos que podemser utilizados da zona urbana – quem não lembrados termômetros em frente à igreja indicando oavançar do fundo de recuperação estrutural?Uma das primeiras experiências de policiamentocomunitário no país emprestou e adaptou umaidéia que se encontra em muitas fábricas: o nú-mero de dias sem acidentes. No seu caso foi onúmero de dias sem um incidente agressivo: sim-ples, efetivo e também público, colocado ao ladodo portão do principal batalhão da policia mili-tar. Em diversas pequenas prefeituras, aprendema tornar públicos os dados do orçamento utili-zando as paredes externas das escolas; outras,maiores, utilizam a Internet, sempre um problemapor causa da falta de acesso, mas mesmo assimum passo na transparência. O próximo passotalvez é buscar fazer a mesma coisa com os indi-cadores escolhidos pelos diversos conselhos

estatutários e constitucionais para medir os re-sultados dos serviços públicos locais; e dos movi-mentos de base para acompanhar a vida diária.

UMA OBSERVAÇÃO FINAL

Infelizmente e mesmo que a avaliação ain-da seja vista por muitos como um verdadeirobicho de sete cabeças, as organizações da socie-dade civil são em geral muito mais preparadas edispostas a discutir e avaliar aquilo que fazem doque as organizações do Estado. Talvez porque atransparência seja um requisito essencial de umaorganização coletiva que depende do envolvi-mento de seus associados e voluntários que, porsua vez, precisam saber se aquilo que fazem é útil.Talvez também porque no processo de transi-ção democrática existem ainda muitos vestígiostecno-burocráticos a perder e muitas pontes paraserem construídas entre as organizações públi-cas e o público. Esta é uma área onde as orga-nizações estatais ainda têm muito a aprender eaonde podem vir a oferecer importantes exem-plos de práticas alternativas.

A avaliação democrática está ainda em suainfância, mas também o mesmo pode ser dito dademocracia em si. Ambos são projetos inacaba-dos e com muito chão pela frente e ambos depen-dem um do outro; afinal, que valores queremosatribuir à nossa vida coletiva e como podemosatribuí-los?

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Durante 1998 e 1999, o Programa GestãoPública e Cidadania da Fundação Getúlio Vargasrealizou, em São Paulo, um ciclo de quatro seminá-rios voltados para a análise e a reflexão de estraté-gias locais para redução de pobreza. Em cadaencontro estiveram presentes entre 30 e 40 pes-soas de diferentes universos de ação (pesquisaacadêmica, organizações comunitárias, ONGs,secretarias de governos municipal e estadual,bancos de desenvolvimento e instituições multi-laterais) para debater o espaço possível de açãolocal no enfrentamento da pobreza. Os primei-ros três encontros focalizaram temas específicos:a provisão de serviços urbanos; as ações inte-gradas de desenvolvimento sócio-econômico; ageração de emprego e renda. O quarto encontrobuscou compartilhar o conhecimento construídoao longo dos demais encontros em busca das con-clusões possíveis. O documento síntese a seguirresume o consenso atingido e seu conteúdo foielaborado em pleno acordo com as 146 pessoasque fizeram parte do processo.

1. Qualquer governo nacional eleito demo-craticamente é responsável pelas conseqüênciassociais de suas políticas e ações em qualquer áreaou campo de atuação e, também pelo seu im-pacto nas condições de vida da população, nosdireitos individuais e coletivos e no exercício ple-no da cidadania. A questão social não pode serreduzida a uma área específica de atuação go-

vernamental, mas deve ser considerada comopermeando toda e qualquer ação, incluindo aeconômica.

2. Pobreza se caracteriza pela sua hetero-geneidade e amplitude, afetando a maioria daspessoas. Faz-se urgente a necessidade de umamaior compreensão e transparência sobre o fe-nômeno e suas distintas manifestações regionaisatravés de indicadores multifatoriais. Taxas demortalidade infantil podem esconder, pela uti-lização da média, diferenças de até dez vezesquando diversos níveis de renda são contempla-dos. Nota-se a mesma fragilidade metodológica,em relação à utilização do indicador de um dólarpor dia para mensurar a condição de pobrezadas pessoas. Um maior esforço é igualmentenecessário para medir com seriedade as conse-qüências e impactos da presença ou da supressãode ações e programas públicos.

3. Pobreza é entendida freqüentementecomo conseqüência da precariedade de acesso abens e serviços e pela ausência de canais efetivosde interlocução entre as esferas de poder e asdemandas da população. Nesse contexto, os in-teresses que se encontram melhor representadosse apropriam da parcela mais significativa destesbens e serviços se comparados ao que é desti-nado ao conjunto da maioria da populaçãoempobrecida.

4. O enfrentamento da pobreza deve serentendido como uma questão de construção decidadania, de democracia, de empowerment, de2 Reproduzido de Camarotti e Spink, 2000.

A N E X O

ESTRATÉGIAS LOCAIS PARA A REDUÇÃO DA POBREZA:CONSTRUINDO A CIDADANIA. SÍNTESE DAS CONCLUSÕES2

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emancipação, de dar voz e vez às populações emsituação de pobreza. A participação social estáainda em construção, e os atores engajados napromoção de um reequilíbrio sócioeconômicoprecisam buscar caminhos que rompam com atutela e criem instrumentos que possibilitem umdesenvolvimento verdadeiramente participativoe sustentável. É importante estimular e apoiar osurgimento de entidades comunitárias autônomas,redes e movimentos próprios da população emsituação de pobreza e evitar que os governos eas organizações não governamentais as substi-tuam. Torna-se necessário ainda confrontar asrelações paternalistas e clientelísticas. Neste sen-tido, é essencial que as organizações comunitá-rias sejam reconhecidas enquanto tais, sem umamaior preocupação com a sua profissionaliza-ção. Deve-se evitar, portanto, a criação de novosmecanismos que possam vir a substituir essasmesmas organizações a pretexto de uma maioreficiência.

5. Qualquer tentativa de reduzir a desigual-dade deve levar em consideração que o acessoao bem estar é um jogo de soma zero face aosrecursos e serviços implicados, como tambémem relação ao poder. A superação da desigual-dade requer o enfrentamento e a efetiva redis-tribuição de poder, ampliando o espaço públicopara a incorporação de saberes diversos e àsvezes conflitantes. A sustentabilidade das açõesvoltadas para o combate à pobreza se ancora nacoesão social. A articulação política e social lo-cal é uma constante em muitas das experiênciasque conseguiram criar raízes.

6. O momento atual se caracteriza comouma encruzilhada ética e moral, onde o passivosocial dos modelos de desenvolvimentopregressos e do ajuste estrutural atual é imenso,levando ao desgaste da própria noção de coesãosocial e civilização. Por outro lado, encontramosno âmbito local sinergias diversas que recuperam

a noção do “compromisso social” e avançam nacriação de um espaço público permitindo à so-ciedade civil uma volta à cena política. Nessaótica, a definição do interesse público não maisparece restrita a um conjunto limitado de atores,mais se amplia para incorporar a presença e asdemandas de setores até então excluídos e per-mitir, desta forma a possibilidade de um espaçopúblico mais abrangente e inclusivo.

7. O Estado, entretanto, continua com opapel central de regulação social e redistribuiçãoda riqueza e da renda. Uma vez que a pobreza ea exclusão social são conseqüências dos impac-tos de políticas públicas, de prioridades e de esco-lhas, sua superação também depende de umaação incisiva no campo das políticas públicas.Porém, inexiste um instrumental adequado paraavaliar a operacionalização de políticas em ter-mos de sua sensibilidade à temática da pobreza.É essencial desenvolver mecanismos mais ade-quados de avaliação de impacto e também ins-trumentos de discriminação positiva – ou açãoafirmativa – que garantam cada vez mais que aspolíticas públicas sejam de fato públicas.

8. Hoje, a busca de novas estratégias paraa superação da pobreza vem requerendo novasrelações entre o Estado, as diferentes organiza-ções da sociedade civil e o setor privado. Com osurgimento de novos atores orientados para apromoção de iniciativas conjuntas, vêm sendoestabelecidas novas formas de diálogo, favore-cendo a construção de um espaço público que éclaramente de interesse público.

9. No processo de construção de novosespaços públicos torna-se importante reconhe-cer, nos programas e projetos analisados, a exis-tência de iniciativas de médio alcance, que sãodiferentes das que têm alcance mais limitado.Neste sentido, a expressão mais adequada parareconhecer a abrangência destas múltiplas inicia-tivas parece ser a de “lugar”. O “lugar”, como

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foi dito por muitos durante os seminários, “tema cara de gente” revelando distintas arenas dedemandas, conflitos e de reivindicações pormelhoria na qualidade de vida. Denso, o lugar éa vida das pessoas em espaço e tempo que, de-pendendo das circunstâncias, pode ser o bairro,o município ou a região. O lugar é, sem dúvidaalguma, aonde se enraízam as experiências, táti-cas, métodos e práticas simples que formam umabiblioteca invisível de soluções para a reduçãoda pobreza.

10. Um elemento freqüentemente presentenas discussões, especialmente levando em contaas experiências que têm em comum um fortecomponente associativo, foi a dificuldade en-contrada - quando não a recusa e desinteresse –por parte dos órgãos públicos convencionaisem lidar com as soluções heterodoxas e nãoconvencionais.

11. Uma outra constante foi o reconheci-mento que as experiências, projetos e programasdiscutidos têm muito mais as características deprocessos do que de atividades planejadas ante-cipadamente. Elas nunca se iniciam já totalmen-te estruturadas; ao contrário, tendem a ir ganhan-do forma no decorrer da prática e do tempo,integrando outros elementos e idéias à ação. Nãohavia, mesmo nas atividades ditas “integradas”, umplano programático que, definido previamente,fosse capaz de garantir resultados. Estratégias,portanto, muito mais um reconhecimento pos-terior de encaminhamentos adaptados, do queetapas programáticas anteriormente definidas.

12. O entendimento em relação ao proces-so também deriva da importância atribuídapelas experiências em compreender o enfrenta-mento da pobreza enquanto acesso à qualidadede vida digna, igualdade de direitos, inclusãosocial e acesso à cidadania. Eleger igualdade en-quanto ponto de partida e não como resultadofinal leva à promoção de uma gestão participativa

e democrática. As experiências discutidas mos-traram ser eficazes nessa compreensão do quevem a ser combate à pobreza, pois foram capa-zes de alterar a estrutura de poder, otimizandoalianças entre governos que se colocam comosendo de proximidade (os nomes usados aqui sãovários) e, entre diversos atores da sociedade civilem condição de pobreza, que podem se fazerpresentes com capacidade e força de ação. Noquesito continuidade das experiências, a presençae atuação de organizações comunitárias tiveramum papel relevante.

13. É importante evitar o uso de interpre-tações que negam ou abrandam os conflitos queefetivamente existem. Dessa maneira, torna-sefundamental considerar todos os elementosconstitutivos do processo de empobrecimentodos indivíduos. A visão de solidariedade, porexemplo, pode ser bem intencionada enquantopostura moral. Por outro lado, ela pode tambémestar indicando um retrocesso, ao classificar “opobre” enquanto “coitado” ou “vítima” e esti-mular apenas as tradicionais práticas caritativas.

14. Enquanto a educação e a capacitaçãotêm um papel essencial a desempenhar em mui-tas das ações de redução da pobreza, também éimportante reconhecer a existência dos saberesque emanam das comunidades. Recuperar e re-conhecer a contribuição destes saberes é umelemento-chave para a construção de uma ci-dadania mais ampla e com respeito às geraçõesfuturas.

15. A criação de uma entidade indepen-dente na sociedade civil, servindo de referênciapara estatísticas e dados de avaliação social sobreo impacto das ações públicas na redução da pobre-za, é um contraponto necessário para os muitosindicadores produzidos por diversas instituiçõesgovernamentais e multilaterais. Nota-se, também,que a criação de tal estrutura fortalecerá sobre-maneira o debate democrático.

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16. A generalização de ações a partir depráticas eficazes é um processo que não deve serreduzido a mera replicabilidade. Replicar no sen-tido de disseminar “melhores práticas”, corre orisco de reproduzir uma tecnologia em série queprivilegia tudo e nada ao mesmo tempo. Apren-der a partir de práticas eficazes exige uma refle-xão sobre suas condições de êxito, seus limites eos diferentes elementos incorporados ao longodo processo. O conhecimento adquirido atravésdas experiências bem sucedidas favorece melho-res formatações técnicas e a produção de teoriapertinente. Estimula também uma cultura polí-tica de ação comprometida e eficaz no combateà pobreza e a criação de políticas e leis maisadequadas e sensíveis à temática. Por vezes, osimples conhecimento de uma experiência é su-ficiente para que as pessoas possam perceber querealmente é possível agir. Na verdade, as expe-riências representam o primeiro passo de umatomada de consciência face às mudanças realiza-das no quotidiano.

LIÇÕES ESPECÍFICAS A PARTIR DAS EXPERIÊN-CIAS DISCUTIDAS

17. As experiências demonstram a poten-cialidade das ações locais e a presença de umatecnologia social subjacente. Revelam toda avitalidade e também a possibilidade de replicaçãotanto em termos de estratégias, quanto em termosde ação específica. A sua disseminação é impor-tante, como também a sua efetiva avaliação. Porisso, há uma real necessidade de trabalhar comindicadores que possam ser utilizados com estafinalidade.

18. Há uma capacidade empreendedorapresente nas experiências discutidas. Entretanto,as experiências também sinalizaram para a carên-cia de ação governamental em diversos níveis.Torna-se necessário, portanto, criar políticas,

regras e instrumentos mais flexíveis e tambémnovos arranjos entre esferas de governo. Osexemplos são vários: falta de integração entrepolíticas públicas e atividades de geração de ren-da, impasses entre jurisdições subnacionais eimpasses entre as ações locais e a política nacio-nal. O sentimento geral é que o desenvolvimentolocal se realiza apesar da política nacional e semo seu suporte.

19. As ações locais precisam de uma maiorintegração. A ausência desta integração tem im-plicações diretas na sua sustentabilidade. Noentanto, há uma distinção importante a ser feitaentre a necessidade e o desejo de desenvolverações intersetoriais e a dificuldade encontradapara criar formatos viáveis para a sua execução– em termos de políticas e desenhos organiza-cionais e gerenciais.

20. Os mecanismos de controle social con-tinuam frágeis, embora exista uma participaçãoativa da população-alvo e das organizações dasociedade civil nos projetos contemplados. Essaparticipação é observada sob diferentes formase aspectos e coloca em destaque a importânciade aprofundar toda esta diversidade e opções deengajamento, o que leva a crer que o espaço públi-co emergente é um espaço híbrido e não pode serreduzido a uma série de conselhos consultivos.

21. A territorialidade dos exemplos de açãoeficazes também é um elemento importante aser levado em consideração. É fundamental re-conhecer a territorialidade enquanto alcance.Territorialidade não é sinônimo de Estado oude Município e freqüentemente ela está relacio-nada aos espaços intermediários, de região inter-municipal ou de distrito intramunicipal. Territo-rialidade emerge também como um elementosignificativo em termos identitários: o lugar, asraízes históricas e culturais.

22. Intersetorialidade e multisetorialidade

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são em geral resultados e não pontos de partidadas ações eficazes de combate à pobreza. Nesteprocesso, à medida que as ações evoluem, aspec-tos diversos são contemplados a partir de umavisão sistêmica ou de um encadeamento de ini-ciativas que tentam conjugar melhoria de quali-dade de vida, emancipação social e geração deatividades produtivas. Apesar da sinalização debons resultados, promover ações intersetoriais emultisetoriais não é uma tarefa fácil, exigindonovos arranjos institucionais, novas posturas,práticas e também novos valores políticos.

23. A temática de emprego e renda estásempre presente na discussão sobre estratégiasde combate à pobreza, seja em relação à promo-ção de atividades econômicas, seja em relação àsua inserção em outras atividades integradascomo, por exemplo, a urbanização e o desenvol-vimento rural. Ficou também evidente, a partirdas análises e debates, a necessidade de deslocara discussão sobre emprego e renda do estritamenteeconômico para o campo da ética e dos direitos.

24. No tema de geração de emprego e ren-da, observa-se ainda uma questão fundamentalrelativa à adequação entre oferta e demanda: apúblicos específicos, oferta específica. Neste sen-tido, deve-se levar em conta toda uma pluralidadede instrumentos, modalidades de apoio, flexibi-lidade de metodologias e harmonia no enfoque.Trata-se aqui de buscar uma maior complementa-riedade entre a realidade, os saberes e as oportu-nidades que emanam da população-alvo.

25. Adequar oferta e demanda requer, alémda flexibilidade, uma sensibilidade às questõesde gênero, que são em grande parte ignoradas.Na área específica do crédito, há uma dificulda-de freqüentemente assinalada e que se refere aopróprio processo de exclusão – o que foi chama-do por muitos dos bloqueios aos “sem acesso”.Os relatos das experiências também revelaramos impasses criados tanto no âmbito urbano

quanto no âmbito rural, tanto no âmbito dospequenos agrupamentos em fase de formaçãocomo também em relação aos acessos de linhasde financiamento para organizações já consti-tuídas. O apoio ao acesso e à articulação juntoaos mercados é vital para a sobrevivência daspessoas envolvidas nos projetos. A capacidadede identificar e avaliar os elementos-chaves quecompõem as cadeias produtivas (organização daprodução, transferência de tecnologia, financia-mento, capacitação, processamento da produçãoe comercialização) é um dos caminhos para in-tervenção, na medida que torna mais visíveis oselementos de desigualdade e exclusão social. Aeconomia solidária também oferece caminhos eprecisa ser compreendida enquanto confronta-ção com outros modelos econômicos e nãocomo simples complementação.

26. Programas de capacitação privilegiamem demasiado a formação técnica, consideradaimprescindível para as oportunidades de traba-lho, esquecendo a importância de igualmenteprivilegiar a construção de uma consciência cidadãe de se atribuir um maior respeito ao conhecimen-to e às habilidades já existentes na população.

27. Faz-se também importante desconfinara temática de emprego e renda, e associá-la aosoutros campos e áreas, incluindo as arenasinterorganizacionais emergentes, como os con-sórcios intermunicipais. Porém, uma prováveldescentralização nas esferas de poder exigirá cer-tamente mudanças na cultura política, superan-do-se a lógica clientelista que reproduz “balcõese grupos cativos de ‘pobres’ atendidos por esteou aquele segmento da máquina governamental”,como foi assinalado por um dos participantesdos nossos encontros.

28. O caminho para a intersetorialidadeparece ser o enfoque territorial, conduzindo osdiversos elementos para dentro de um contextoonde o controle social é possível. O lugar é, por-

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tanto essencial, seja ele submunicipal, municipalou supramunicipal. A criação de esferas públi-cas ampliadas onde emancipação e transferênciade poder (empowerment) que levam ao confrontoe geram a conexão entre serviços, parece ser umbom caminho a ser privilegiado. Há um grandenúmero de ações acontecendo de baixo paracima, em que pessoas estão conseguindo desen-volver atividades produtivas. Não obstante, fal-ta uma atitude, uma ação no sentido oposto – decima para baixo – desbloqueando os impassesque, ao não distribuir adequadamente as opor-tunidades, acabam por reproduzir, quando nãoproduzir, a desigualdade e a exclusão social. Háuma necessidade urgente de assumir o desafio eaceitar o conflito da discriminação positiva.

29. A questão da discriminação positiva,ou ação afirmativa se torna mais visível quandose discute prioridades. Face ao imenso contin-gente de pessoas em situações de pobreza, emrelações socioeconômicas de exclusão e desi-gualdade, qual deve ser a prioridade? Percebe-seque muitas iniciativas acabam não atingindo aspessoas que se encontram em situação de extre-ma precariedade. Nesta perspectiva, corre-se orisco de reproduzir processos de discriminaçãoe exclusão dentro do próprio campo da açãopara a redução da pobreza e para a inclusão.Quem deve ser priorizado não é uma decisão fácila tomar. Reconhecendo que toda política públicadeve ser considerada de fato distributiva – nosentido que não há neutralidade na política pú-blica – resta, portanto, saber para quais setores adistribuição efetivamente se orienta. Assim, per-gunta-se quem de fato é beneficiado pelas açõespúblicas e quem deve ser beneficiado?

30. Durante o processo de discussão sobreas diversas experiências apresentadas, tornou-seclaro que, em resposta à questão levantada noinício do processo “haveria um espaço de açãode combate à pobreza entre as macro políticas

nacionais e as ações desenvolvidas a partir dasociedade civil?”, havia sim um espaço para a açãosubnacional. Entretanto, esta ação vem sendoconstruída na ausência de uma política públicanacional de redistribuição de renda e compro-metida em combater efetivamente a pobreza.

31. Os diversos arranjos locais e subnacio-nais – sejam estes de estados, municípios, de agên-cias regionais e locais do governo nacional, dealianças com organizações não governamentaise comunitárias, empresas e cooperativas e todauma variedade de instituições e organizaçõescívicas nas quais a igreja católica continua de-monstrando uma competência especifica e exem-plar – têm muito a contribuir e mostram cami-nhos possíveis, construídos a partir de soluçõessimples e concretas. Porém, vale salientar queestes caminhos não podem ser consideradoscomo substitutos de uma responsabilidadeinstitucional maior, no qual o papel do Estado écentral.

EM DIREÇÃO ÀS CONCLUSÕES POSSÍVEIS

32. Durante as discussões, emergiu natu-ralmente, uma indignação moral em relação àpobreza enquanto produto sócioeconômico deuma sociedade desigual e profundamente injusta.

33. Mesmo chegando à conclusão de quehá um espaço de ação no âmbito local, que pre-cisa ser urgentemente assumido e ocupado e quevem demonstrando sinais animadores da conquis-ta de poder e de oportunidades, não se pode ig-norar o contexto mais amplo dentro do qual ofenômeno de pobreza e exclusão se constrói: osdramas decorrentes da globalização, das políti-cas de ajuste estrutural, que não privilegiam osocial. É urgente a adoção de políticas que ga-rantam um mínimo social sensível às questões degênero, da infância e da adolescência viabilizadasatravés de abordagens simples como programas

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de renda-mínima, salário social, bolsa-escola quedemonstram na prática a eficiência das soluçõessimples.

34. Frente às possibilidades de agir paratransformar a realidade, diversos são os temas aserem contemplados: a importância e a dificul-dade de criar abordagens intersetoriais; a ne-cessidade de políticas públicas que estimulem aco-responsabilidade e o protagonismo; a presen-ça na política social da temática de trabalho erenda dentro da ótica de um mínimo social en-quanto direito fundamental; a capacidade de efe-tivamente atingir os grupos mais vulneráveis; aimportância de se dar uma maior visibilidade aosnovos mecanismos interorganizacionais; e o pa-pel formador de ações sociais de controle do agirpúblico.

35. A proliferação de conselhos e outrasinstâncias formais de decisão e consulta no âm-bito de políticas públicas específicas não podemser ignoradas. Reconhecer o potencial de comple-mentaridade horizontal dos diversos colegiadospode levar ao fortalecimento do seu papelfiscalizador e orientador, enfrentando assim astentativas da sua apropriação artificial por inte-resses hegemônicos de elites e grupos profissio-nais específicos. Há muitos exemplos de situaçõesaonde as informações e oportunidades não che-gam aonde deveriam realmente chegar, e emque as exigências de consulta acabam por virarbarreiras em relação ao que buscam: o engaja-mento efetivo da comunidade.

36. Houve um consenso em torno da cen-tralidade de uma nova concepção do local vistocomo lugar, não se traduzindo em nenhum nívelespecífico de governo, mas sim aonde a lógicada proximidade, do encontro e do confronto épossível. O lugar não é dado, mas se define ese redefine a partir das ações, remetendo a umcontexto de relações que não é somente local.Requer dos agentes públicos uma prática peda-

gógica ética e cívica que evidencie a promoçãoda cidadania. Requer, também, instrumentos deavaliação que estimulem o debate e possam pro-duzir conhecimentos.

37. As ações emergentes, sem dúvida algu-ma, reposicionam o papel do Estado, mas nãoreduzem o seu papel central no enfrentamentoda pobreza percebida a partir da ótica da exclu-são e da desigualdade social. As múltiplas orga-nizações da sociedade civil, ao apresentaremsoluções, dão sinais evidentes de uma responsabi-lidade social e de um engajamento cívico, porémnão desobrigam, em nenhum momento, as orga-nizações públicas de uma ação igualmente res-ponsável e comprometida.

38. As soluções locais que emergem na áreade emprego e renda são freqüentemente resulta-dos de ações que favorecem o microcrédito e acapacitação, mas também de um diálogo e apoiodireto à população envolvida. Aprender a reco-nhecer e a respeitar os muitos saberes existentese, também, levar em consideração a importânciade uma solidariedade no cotidiano são elemen-tos que criam condições para o êxito dos proje-tos voltados para a redução da pobreza. Paraatingir resultados concretos, observa-se ainda anecessidade de flexibilizar linhas de apoio e deações técnicas; algo infelizmente que muitos dosprogramas e organismos públicos têm dificul-dade em assumir. A lacuna que se cria, em con-seqüência, é em si a expressão da permanenteprodução e reprodução da desigualdade e daexclusão social. Grosso modo, a máquina públi-ca parece não estar ainda preparada, ou mesmodisposta, a encarar seriamente a necessidade deredução da pobreza, da exclusão ou da desigual-dade no Brasil.

39. A emancipação cívica e a conquista dacidadania ativa é um processo de destruir meca-nismos de tutela e ampliar o universo cultural eeducacional. É necessário buscar e dar visibili-

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dade aos caminhos que dão voz e vez a um maiornúmero de pessoas, favorecendo a criação denovos espaços públicos. Qualquer programa deenfrentamento da pobreza é parte deste processoe precisa ser avaliado neste sentido.

40. O local, enquanto lugar, é o motor dearranque do processo de enfrentamento da po-breza e precisa ser privilegiado. A construção demúltiplas formas de identificação e de avaliaçãode práticas e de soluções eficazes – por instân-cias independentes – pode prestar um serviçoimportante à sociedade. No Brasil, não há umatradição de efetiva avaliação de políticas pú-blicas da parte de organismos governamentais.Além do que, a produção de dados sobre aheterogeneidade da pobreza, a desigualdade,como também sobre os resultados e impactosde ações – sejam estas positivas ou negativas – éessencial para evitar que o fenômeno perca seuscontornos sóciopolíticos e gere uma individuali-zação tutelada, transformando a pobreza em“pobre”. A criação de indicadores de avaliaçãoe de uma base independente de dados estatísti-cos socialmente adequados é de extrema impor-tância para a mudança da nossa realidade.

41. Falta de renda não é sinônimo de po-breza, mas é um dado importante a ser conside-rado, chamando a atenção para as conseqüênciasdas relações sócioeconômicas constitutivas doquotidiano. Porém, ações nesta área precisamreconhecer a importância da emancipação polí-tica e do engajamento de atores locais na discus-são do desenvolvimento do “lugar”. Estas açõesprecisam se iniciar a partir de bases sólidas, sim-ples e participativas, permitindo resultadosconcretos e sustentáveis.

42. Integração multisetorial e estratégiascomplexas e detalhadas de intervenção pré-elaborada têm pouco efeito quando servem deponto de partida para ação no âmbito do lugar.As experiências demonstram que integração e ela-boração, quando acontecem, são normalmenteresultados de um processo gradual de aprovei-tamento de oportunidades, de aprendizagem ede luta, abrindo possibilidades e escolhas seguin-do o cronograma dos atores e acontecimentos.