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  Antônio José Lopes Alves Verinotio revista on-line – n. 11, Ano VI, abr./2010, ISSN 1981-061X  Espaço de interlocução em ciências humanas n. 18, Ano IX, ou t./2013 – Publicação semestral – ISSN 1981-061X  V erinotio  revista on-line  de losoa e ciências humanas  A teoria das abstraçõ es de Marx: o método cientí co exato para o estudo do ser social * Vânia Noeli Ferreira de Assunção ** Resumo: Em seus estudos, Marx repôs o primado de uma ontologia estatutária especíca do ser social sobre a gnosiologia.  Julgava, de um lado, que, no estudo do ser social, não s ervem os mesmos instrumentos utilizados nas ciências da natureza; de outro, que não é possível, numa pesquisa de porte ontológico, o tratamento autônomo da questão metodológica, a qual depende do objeto, que sempre demanda formas próprias para ser apreendido. Considerando a fundamentação ontoprática do conhecimento, a determinação social do pensamento e a presença histórica do objeto, Marx praticou, no estudo do ser social, um roteiro de pesquisas muito próprio, com base na analítica da coisa pesquisada e na capacidade humana de abstrair. A força de abstração é apontada por ele como o instr umento adequado para o estudo do ser social, em que se ascende do abstrato ao concreto e se retorna à efetividade, pela qual se medirá o conhecimento alcançado – o conhecer se mede pelo ser , e não pelo seguimento de etapas exógenas, predeterminadas de caráter subjetivo. Este é, para Marx, o método cientíco exato, no qual a mediação entre o ponto de partida empírico e o ponto de chegada concreto se faz por um trabalho das abstrações, cujas operações próprias são: especicação, delimitação , intensicação, articulação – momentos que compõem a teoria das abstrações . Palavras-chave: Ontologia; epistemologia; método marxiano; marxologia. The Marx’s theo ry of (rational) abst ractions: the scientic correct method in order to study the social being  Abstract: Karl Marx reafrmed the primacy of a specically statutory ontology of the social being over a gnosiology. On the one side, in order to study the social being, he considered that the same instruments of natural sciences would not be sufcient. On the other side, in an ontological research, the methodological questions could not be treated independently, since the object itself demands specic ways of approach. Considering the ontological basis of knowledge, the social determination of thinking and the historical presence of object, in his studies of the social being, Marx developed a research agenda of his own, based on the specic analysis of the specic thing and on the force of abstraction, human abstraction ability . Marx stresses that this ability is the adequate instrument to study the social being. The study should evolve from the most abstract categories until the concrete ones and nally return to effectiveness, which is the proper measure of knowledge, the being  is the measure of knowledge, and not the following of exogenous and subjective steps. For Marx, that is the exact method, in which the mediation between the point of depart and the concrete poin t of arrival is achieved through a work of abstractions, whose o perations are: specications, delimitation, intensication, articulation – the components of the theory of abstra ction s. Key words: Ontology; epistemology; Marxian method; marxology. * Agradeço a Vitor B. Sartori pela leitura e pelos comentários da versão preliminar deste texto. ** Professora da Universidade Federal Fluminense – Rio das Ostras. E-mail: [email protected] r.

Assunção, V. N. F. a Teoria Das Abstrações de Marx o Método Científico Exato Para o Estudo Do Ser Social

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Em seus estudos, Marx repôs o primado de uma ontologia estatutária específica do ser social sobre a gnosiologia.Julgava, de um lado, que, no estudo do ser social, não servem os mesmos instrumentos utilizados nas ciências danatureza; de outro, que não é possível, numa pesquisa de porte ontológico, o tratamento autônomo da questãometodológica, a qual depende do objeto, que sempre demanda formas próprias para ser apreendido. Considerandoa fundamentação ontoprática do conhecimento, a determinação social do pensamento e a presença histórica doobjeto, Marx praticou, no estudo do ser social, um roteiro de pesquisas muito próprio, com base na analítica dacoisa pesquisada e na capacidade humana de abstrair. A força de abstração é apontada por ele como o instrumentoadequado para o estudo do ser social, em que se ascende do abstrato ao concreto e se retorna à efetividade, pelaqual se medirá o conhecimento alcançado – o conhecer se mede pelo ser, e não pelo seguimento de etapas exógenas,predeterminadas de caráter subjetivo. Este é, para Marx, o método científico exato, no qual a mediação entre oponto de partida empírico e o ponto de chegada concreto se faz por um trabalho das abstrações, cujas operaçõespróprias são: especificação, delimitação, intensificação, articulação – momentos que compõem a teoria das abstrações.

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  • Antnio Jos Lopes Alves

    Verinotio revista on-line n. 11, Ano VI, abr./2010, ISSN 1981-061X

    Espao de interlocuo em cincias humanas n. 18, Ano IX, out./2013 Publicao semestral ISSN 1981-061X

    Verinotio revista on-line de filosofia e cincias humanas

    A teoria das abstraes de Marx: o mtodo cientfico exato para o estudo do ser social *

    Vnia Noeli Ferreira de Assuno**

    Resumo:Em seus estudos, Marx reps o primado de uma ontologia estatutria especfica do ser social sobre a gnosiologia. Julgava, de um lado, que, no estudo do ser social, no servem os mesmos instrumentos utilizados nas cincias da natureza; de outro, que no possvel, numa pesquisa de porte ontolgico, o tratamento autnomo da questo metodolgica, a qual depende do objeto, que sempre demanda formas prprias para ser apreendido. Considerando a fundamentao ontoprtica do conhecimento, a determinao social do pensamento e a presena histrica do objeto, Marx praticou, no estudo do ser social, um roteiro de pesquisas muito prprio, com base na analtica da coisa pesquisada e na capacidade humana de abstrair. A fora de abstrao apontada por ele como o instrumento adequado para o estudo do ser social, em que se ascende do abstrato ao concreto e se retorna efetividade, pela qual se medir o conhecimento alcanado o conhecer se mede pelo ser, e no pelo seguimento de etapas exgenas, predeterminadas de carter subjetivo. Este , para Marx, o mtodo cientfico exato, no qual a mediao entre o ponto de partida emprico e o ponto de chegada concreto se faz por um trabalho das abstraes, cujas operaes prprias so: especificao, delimitao, intensificao, articulao momentos que compem a teoria das abstraes.

    Palavras-chave: Ontologia; epistemologia; mtodo marxiano; marxologia.

    The Marxs theory of (rational) abstractions: the scientific correct method in order to study the social being

    Abstract:Karl Marx reaffirmed the primacy of a specifically statutory ontology of the social being over a gnosiology. On the one side, in order to study the social being, he considered that the same instruments of natural sciences would not be sufficient. On the other side, in an ontological research, the methodological questions could not be treated independently, since the object itself demands specific ways of approach. Considering the ontological basis of knowledge, the social determination of thinking and the historical presence of object, in his studies of the social being, Marx developed a research agenda of his own, based on the specific analysis of the specific thing and on the force of abstraction, human abstraction ability. Marx stresses that this ability is the adequate instrument to study the social being. The study should evolve from the most abstract categories until the concrete ones and finally return to effectiveness, which is the proper measure of knowledge, the being is the measure of knowledge, and not the following of exogenous and subjective steps. For Marx, that is the exact method, in which the mediation between the point of depart and the concrete point of arrival is achieved through a work of abstractions, whose operations are: specifications, delimitation, intensification, articulation the components of the theory of abstractions.

    Key words: Ontology; epistemology; Marxian method; marxology.

    * Agradeo a Vitor B. Sartori pela leitura e pelos comentrios da verso preliminar deste texto.** Professora da Universidade Federal Fluminense Rio das Ostras. E-mail: [email protected].

  • A teoria das abstraes de Marx: o mtodo cientfico exato para o estudo do ser social

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    Introduo: Marx, ontologia e gnosiologiaDesde h duas centrias e meia, ao menos, o estatuto de cientificidade de um dado conhecimento tem sido

    atribudo a fatores exteriores ao prprio contedo, especificamente, ao seguimento de certo nmero e sequncia de procedimentos tcnicos. Em outros termos, o alcance do conhecimento verdadeiro somente seria possvel a partir da eleio e cumprimento de um mtodo, previamente elaborado e respeitosamente seguido pelo pesquisador. A gnosiologia, e mais especificamente a epistemologia, foi alada primazia das preocupaes, relegando o prprio objeto a um nvel inferior. As ontologias prprias do sculo XX, por outro lado, recaram em diversas formas de idealismo subjetivo.

    O marxismo, a despeito de Marx, no ficou imune a esta situao, contaminando-se com preocupaes alheias sua compleio e, assim, perdendo a grande inovao do velho Mouro, justamente aquela que lhe possibilitou realizar as suas descobertas insuperadas sobre a sociabilidade regida pelo capital. Com isso, o marxismo desviou-se do caminho marxiano e rendeu-se s diversas teorias da suspeio, as quais proclamam aos quatro ventos o caos do mundo e a disperso quase incompreensvel das coisas, bem como a fraqueza do pesquisador para conhec-las, seno pela mediao de uma estrutura subjetivamente armada que medeie a relao.

    Em direo oposta, em Marx no h tratamento autnomo da questo do mtodo, a qual aparece sempre articulada ao ente, relao ou processo a ser estudado. Particularmente, s discutida no bojo do prprio procedimento de anlise das coisas e subordinada efetividade. No h nenhuma garantia preliminar de acesso verdade, mas esta encontrada apenas por meio de uma escavao, de uma descoberta, de um exame acurado das especificidades da coisa estudada no tocante a sua configurao interna e inter-relacional que capte e reproduza, afinal, a lgica da coisa, que apreenda a lgica especfica do objeto especfico (MARX, 2005, p. 108). A ontologia estatutria1 inaugurada por Marx, diferentemente da ontologia medieval, no parte nunca de conceitos gerais ou definies preliminares, mas da efetividade e multiplicidade das coisas existentes, as quais analisa e cujas mediaes, proposies e especificaes d a conhecer segundo as caractersticas que lhes so imanentes. No h, pois, um debate metafsico sobre o ser, j que, para o filsofo alemo, este o que , ou seja, ser igual existncia2. Nas palavras de Lukcs, A objetividade no uma determinao (ou um complexo de determinaes) que se acrescenta ao ser e passa a fazer parte deste, mas deve, pelo contrrio, ser reconhecida no sentido rigorosssimo: todo ser, na medida em que ser, objetivo (LUKCS, 2010, p. 327).

    Marx parte, portanto, da objetividade como um dado, quer dizer, da existncia por si da efetividade, bem como da possibilidade de esta ser conhecida e reproduzida mentalmente, de haver apreenso ideal das formas determinantes da concretude, de se fazer cincia e alcanar a verdade. Ademais, sempre estuda os objetos a partir de sua posio no interior de um complexo unitrio, donde no ter se dedicado escrita detalhada de seus pressupostos gnosiolgicos nem de outros temas separadamente. Assim, a inexistncia de uma discusso propriamente metodolgica em Marx no uma lacuna, uma incompletude ou uma falha terica, mas revela justamente o ncleo do seu modo de proceder cientfico. Reconhecendo o primado ntico da prpria coisa, o pensador alemo refuta todo arcabouo autonomizado e prvio para sua apreenso, debruando-se sobre ele em busca de conhec-lo por meio da arguta perscrutao do objeto pesquisado, buscando sua especfica articulao categorial, o que s muito dificilmente poderia ser encontrado se o pesquisador se pusesse a seguir um volteio de regras e etapas que, em vez de o aproximar, interpe-se entre ele e o que quer conhecer.

    No Mouro, como na realidade efetiva, se no h identidade, tambm no h separao absoluta entre ser e pensar, fazer e compreender, processos diferentes no interior de uma unidade que se retroalimenta mutuamente. Marx consegue apreender que o pensamento surge nos mesmos processos nos quais a atividade humana se desenvolveu e com que mantm relao constante. O filsofo alemo no se debrua sobre a capacidade de compreender enquanto forma autnoma, pois esta, para ele, questo j respondida pela prpria prtica, que incorpora o conhecimento como um dos seus momentos: O problema de se ao pensamento humano corresponde uma verdade objetiva no um problema da teoria, e sim um problema prtico. Isto porque, assevera, na prtica que o homem tem que demonstrar a verdade, isto , a realidade e a fora, o carter terreno de seu pensamento.

    1 Trata-se de uma ontologia no sistemtica nem de cunho lgico ou resoluo de carter absoluto, mas de um estatuto de cientificidade. Estatuto a ordem do reconhecimento ou reproduo terica da identidade, natureza e constituio das coisas em si (seres ou entes) por seus complexos categoriais mais gerais e decisivos, independentemente, em qualquer plano, de se tornarem objetos de prtica ou reflexo. Nesse sentido, teoria do reconhecimento da objetividade histrico-imanente em suas distintas formas e apresentaes (natureza e sociedade). (VAISMAN; ALVES, 2009, p. 9)2 Marx reconhece que o ser sempre concreto, ou seja, no reproduz em sua teoria uma artificial ciso entre ser e ente, como ocorre em Hegel ou Heidegger (cf. SARTORI, 2014; MARX, 1963). Como expressava j nos Manuscritos: um ser no-objetivo um no-ser. (...) um ser no-objetivo um ser irreal, no sensvel. Meramente pensado, isto , puramente imaginao, um ser da abstrao, ou, segundo outras tradues, uma absurdidade (MARX, 1963, pp. 250-1)

  • Vnia Noeli Ferreira de Assuno

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    O debate sobre a realidade ou a irrealidade de um pensamento, isolado da prtica um problema puramente escolstico (MARX, s/d, p. 208). Saliente-se: no se trata, muito pelo contrrio, da identidade idealista pensar e existir; antes, trata-se da inescapvel exigncia prtica de objetivaes mediadas pela atividade sensvel, que engloba o momento ideal em uma indissolvel conexo: A vida social essencialmente prtica. Todos os mistrios que desviam a teoria para o misticismo encontram sua soluo racional na prtica humana e na compreenso desta prtica. (MARX, s/d, p. 210) Como ajuntou Lukcs, a querela puramente gnosiolgica acerca da prioridade do pensamento ou do ser falsa: quando o pensamento, segundo Marx, surge como parte constituinte daqueles processos nos quais a atividade humana surge e se desenvolve no ser social e determinada pelo ser, (...) o tornar-se eficaz do pensamento j pressupe o ser social em sua propriedade especfica (LUKCS, 2010, p. 359). Ressalte-se, porm, que o acento marxiano est sempre sobre o objeto, o qual ontologicamente prioritrio sobre o pensar (o que significa dizer que o primeiro pode existir sem o segundo, enquanto o contrrio no possvel).

    Apropriando-se destes importantes indicativos marxianos no detalhados, mas claros e coerentes , o filsofo paulistano J. Chasin mostra que Marx rompe com toda uma tradio ao depor a epistemologia do altar da sapincia e repor em seu lugar a prpria coisa a ser compreendida. Neste sentido, nos seus termos deliberadamente polmicos, Se por mtodo se entende uma arrumao operativa, a priori, da subjetividade, consubstanciada por um conjunto normativo de procedimentos, ou se se pressupe um fundamento gnosiolgico, ou seja, uma teoria autnoma das faculdades humanas cognitivas, preliminarmente estabelecida, ou, ainda, se envolve e tem por compreendido um modus operandi universal da racionalidade (CHASIN, 2009, p. 89), no possvel encontrar uma reflexo epistemolgica autnoma em Marx. E esta no se trata de uma falha ou lacuna, j que O desafio das coisas no se altera ou dissolve pela mera disposio ativa do sujeito enfrentar a decifrao das mesmas, nem porque detenha a visualizao do roteiro analtico a ser cumprido, e sempre como dificuldade se repe a cada objeto faceado (CHASIN, 2009, p. 231). Assim, no h via tracejada a seguir na busca do conhecimento por isso todo comeo difcil.

    Neste texto, pretendemos retomar (com o auxlio de outros autores que pelejaram por entender a mesma questo) o que o prprio filsofo alemo designava como o mtodo cientfico exato para o estudo do ser social. Para tanto, j que no real coisas, fatos, entes e relaes que Marx encontra o parmetro para averiguar a veracidade de suas concluses, precisamos passar rapidamente pelas questes entrelaadas da fundamentao ontoprtica do conhecimento, da determinao social do pensamento e da presena histrica do objeto.

    I A prioridade ontolgica do ser em sua relao com o pensamentoA recusa ao mtodo enquanto arcabouo terico preestabelecido e padronizado est relacionada a outros

    aspectos importantes do pensamento de Marx. Desde suas primeiras obras ele frisa que as formas pelas quais o homem se relaciona com o mundo de que faz parte no so unvocas e unilaterais, mas dependem do que (e como) se apropria. Ele constata que a manifestao da efetividade humana mltipla da mesma maneira que so diversas as determinaes da natureza humana e as atividades e que a apropriao da coisa depende da natureza do objeto e da natureza da faculdade correspondente (MARX, 1963, p. 198). Desta forma, no que toca sociedade, no h uma maneira universalmente vlida de tomar para si, objetiva e subjetivamente, as relaes, processos e coisas ali existentes, dado o fato de que so manifestaes das capacidades multplices do homem:

    O homem apropria-se do seu ser omnilateral de uma maneira omnicompreensiva, portanto, como homem total. Todas as suas relaes humanas ao mundo viso, audio, olfato, gosto, percepo, pensamento, obser-vao, sensao, vontade, atividade, amor , em suma, todos os rgos da sua individualidade, como tambm os rgos que so diretamente comunais na forma, so no seu comportamento objetivo ou no seu comportamento perante o objeto a apropriao do sobredito objeto, a apropriao da realidade humana. A maneira como eles rea-gem ao objeto a confirmao de realidade humana. (MARX, 1963, p. 197)

    Marx compreende que os homens, ao transformarem a realidade objetiva exterior, tambm se transformam, despertando em si potncias desconhecidas ou inexistentes. Cada objeto com que se relacionam lhes suscita novas capacidades, seres extremamente plsticos que so, e s pode ser devidamente apropriado quando consegue despertar rgos especficos da individualidade humana: o carter distintivo de cada faculdade justamente a sua essncia caracterstica e, portanto, o modo peculiar da sua objetivao, do seu ser objetivamente real, vivo. No , por conseguinte, s no pensamento, mas atravs de todos os sentidos, que o homem se afirma no mundo objetivo (MARX, 1963, pp. 198-9).

    Marx tambm aborda o assunto sob outro vis, demonstrando, por exemplo, como a produo , tambm ela, consumo, e vice-versa: A produo, por conseguinte, produz no somente um objeto para o sujeito, mas tambm um sujeito para o objeto, ou, dito de outra forma, no somente o objeto do consumo que produzido pela produo, mas tambm o modo do consumo, no apenas objetiva, mas tambm subjetivamente (MARX, 2011, p. 47). Por outros termos, o produto tambm cria um consumidor adequado sua fruio, ou seja, desperta

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    nos indivduos as capacidades necessrias sua utilizao, as quais, muitas vezes, estavam insuspeitamente contidas entre outras suas possibilidades e que, uma vez no exploradas, poderiam permanecer potenciais. A apropriao subjetiva dos objetos , portanto, intrnseca ao processo de humanizao do homem. Marx reproduz, desta forma, a maneira como se articulam, na vida societria, prxis social e forma subjetiva, demonstrando a transitividade entre elas: para que possa haver dao sensvel de forma, o efetivador tem primeiro que dispor dela em si mesmo, o que s pode ocorrer sob configurao ideal (CHASIN, 2009, p. 98). Em Marx, portanto, como na prpria efetividade, objetividade e subjetividade so resgatadas de suas mtuas exterioridades, de maneira que uma transpassa ou transmigra para a esfera da outra. Assim, a realidade humanossocietria decantao de subjetividade objetivada ou, o que o mesmo, de objetividade subjetivada, ou seja, da subjetividade como atividade ideal e da objetividade como atividade real (CHASIN, 2009, p. 98).

    Para o que nos interessa no momento, resta frisar que a primazia da relao est com o objeto, que suscita ou capaz (em determinadas circunstncias) de modificar, pela mediao da atividade humana, as capacidades subjacentes aos indivduos. Por outro lado, enquanto a prtica est irremediavelmente ligada ao pensamento, j que a prvia ideao necessria a toda ao (a qual, para atingir seus fins, deve estar subordinada rede causal objetiva), este no necessariamente traz consequncias prticas, podendo esfumar-se em elucubraes irrealizadas e nunca se efetivar na realidade concreta. A fundamentao ontoprtica do conhecimento diz justamente respeito a esta indissolvel conexo entre prtica e pensamento.

    Marx demonstra tambm, seguindo o mesmo raciocnio, que as construes ideais que reproduzem a realidade incluindo, portanto, a cincia so socialmente determinadas. Na direo contrria das teorias que propugnam uma suposta e pretensamente superior neutralidade axiolgica seja ao encarar os acontecimentos como fatos sociais, seja na perspectiva weberiana (que entende apenas o que j quase tudo a seleo do objeto como impregnada pela subjetividade do pesquisador, pleiteando tambm ele uma pesquisa neutra), Marx afirma continuamente o carter interessado de todo saber sobre a sociedade humana. O filsofo alemo critica toda anlise que separa a pena do sujeito que escreve, e esse sujeito que escreve, considerado escritor abstrato, do homem histrico, vivo, que escreveu (MARX; ENGELS, s/d, pp. 150-1). Para ele,

    Os homens so os produtores de suas representaes, de suas ideias etc., mas os homens reais e atuantes, tal como se acham condicionados por um determinado desenvolvimento de suas foras produtivas e pelo inter-cmbio que a ele corresponde, at chegar a suas formaes mais amplas. A conscincia no pode ser nunca ou-tra coisa que o ser consciente, e o ser dos homens seu processo de vida real. (MARX; ENGELS, 1985, p. 26)

    V-se, pois, que, no seu entender, a prpria conscincia um produto social: da a anlise buscar a origem e necessidade de sua objetivao. Atividade ideal atividade social, ou seja, o pensamento no meramente individual, mas atualizao de uma capacidade especfica de um ser social, que no se despe desta sua sociabilidade para efetiv-la, de forma que suas reflexes esto sempre impregnadas pela sua poca. Trata-se justamente da determinao social do pensamento, que considera a subjetividade na sua situao complexa de estar no mundo. Nesse sentido, entende-se, por exemplo, que a natureza falsa ou verdadeira das representaes no brota do movimento constitutivo da prpria esfera subjetiva, no depende da boa ou m vontade do sujeito envolvido no processo, mas est relacionada com a sociedade em que vive. Nos dizeres de Lukcs, todo conhecimento apenas uma aproximao mais ou menos ampla do objeto. E os meios espirituais e materiais dessa aproximao so, por sua vez, determinados pelas possibilidades objetivas da respectiva sociabilidade (LUKCS, 2010, pp. 359-60). Esta determinao ocorre no mbito objetivo e no subjetivo, dado que

    como as constelaes objetivas das quais surgem tanto as perguntas quanto as respostas so determinadas pelo desenvolvimento objetivo que tambm produz o fundamento-do-ser de cada homem singular, frequente-mente as relatividades a contidas recebem diretamente, para aqueles que convivem, um carter absoluto, que por sua vez pode ser fixado como absoluto pelo grau de desenvolvimento objetivo e suas condies de movimento, ou poder ser causalidades como relativo (LUKCS, 2010, pp. 359-60).

    Para alm deste aspecto, Marx frisa a questo da prpria etapa de desenvolvimento do objeto a ser estudado que, em poucas palavras, diz respeito a uma situao histrica particular que possibilita ou dificulta, em maior ou menor medida, sua apreenso. Por conseguinte, o entendimento ou no de uma relao, ser ou coisa est determinada pelo seu grau de maturidade histrica: a plena entificao ou atualizao do objeto fundamental na relao cognitiva; a presena histrica de seu corpo maturado faculta, de seu polo, o conhecimento, ao passo que em

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    graus imaturados atua como obstculo ou provoca obnubilao (CHASIN, 2009, p. 119)3. Em diversas situaes, por exemplo, Marx explicita a dificuldade que teriam os economistas alemes, dada a incontemporaneidade de sua estrutura industrial e o estgio avanado das lutas de classes, de realizar um estudo verdadeiramente cientfico neste campo:

    Na Alemanha a economia poltica continuou sendo, at agora, uma cincia estrangeira. (...) Faltava (...) o terreno vivo da economia poltica. Ela foi importada da Inglaterra e da Frana como mercadoria pronta e acabada; seus catedrticos alemes no passaram de estudantes. Em suas mos, a expresso terica de uma realidade estran-geira transformou-se numa coletnea de dogmas, por eles interpretada, de acordo com o mundo pequeno--burgus que os circundava, sendo portanto distorcida. (MARX, 1988, p. 22)

    Quando estes limites foram superados, ou seja, quando o capitalismo avanou na Alemanha, aps 1848, o tratamento cientfico do tema j no era possvel, pois a burguesia entrara em sua fase de decadncia ideolgica. Em suma, Enquanto podiam tratar de economia poltica de modo descomprometido, faltavam as relaes econmicas modernas realidade alem. Assim que essas relaes vieram luz, isso ocorreu sob circunstncias que no mais permitiam o seu estudo descompromissado na perspectiva burguesa. (MARX, 1988, p. 22) De outro lado, o prprio pensamento marxiano, em particular em seus aspectos mais diretamente econmicos, s foi possvel pelo momento histrico em que este vivia, em que o capitalismo j se mostrava como dominante e as lutas de classes estavam avanadas. Pode-se afirmar, portanto, que as (im)possibilidades histricas de compreenso de um dado objeto relacionam-se a seu grau de desenvolvimento, que facilita ou dificulta a tarefa conforme esteja avanado ou seja embrionrio.

    Vemos, portanto, trs temas articulados a fundamentao ontoprtica do conhecimento; a determinao social do pensamento e a presena histrica do objeto enquanto determinantes para entendermos qual o mtodo cientfico exato segundo Marx. Feitas estas abordagens preliminares, necessrio, porm, esclarecer ainda outra questo: o fato de que Marx no construiu uma estrutura conceitual, de definies preliminares, silogsticas ou de tipos ideais, mas uma teoria das formas de ser.

    II A teoria das formas de ser e a analtica das coisasA proximidade ou o distanciamento de Marx com relao a Hegel tem dado pano para muitas mangas na

    marxologia. No interior deste debate, e tambm no mbito mais geral do marxismo, a questo da dialtica tem sido muito mal compreendida, tomada que como princpio metafsico retor da concreticidade ou, pior, como postulado metodolgico. Como se trata de um tema importante para entender o mtodo marxiano, vale a pena mencionar o prprio Marx, para quem A mistificao que a dialtica sofre nas mos de Hegel no impede, de modo algum, que ele tenha sido o primeiro a expor as suas formas gerais de movimento, de maneira ampla e consciente. Mas ele ajunta imediatamente que necessrio invert-la, para descobrir o cerne racional dentro do invlucro mstico (MARX, 1988, pp. 26-7). Nosso filsofo sublinha no s a diferena, mas a anttese4 de seu prprio mtodo em relao ao hegeliano.

    De fato, como sabido, Hegel substancializa o pensamento, transformado em sujeito que chega a ser o prprio demiurgo do real: Para mim, pelo contrrio, o ideal no nada mais que o material, transposto e traduzido na cabea do homem. (MARX, 1988, p. 26) Assim, Marx no encontrou em Hegel um princpio epistmico a dialtica que, uma vez invertida, pudesse aplicar no estudo do ser social. Ele destacou como positividade em Hegel a apreenso da contradio enquanto atributo da realidade, cujo movimento expunha. Reconhecimento de um mrito sem dvida, mas situado no terreno da generalidade, ainda mais quando precedido e sucedido da grave ressalva de que aquele tenha sofrido uma mistificao (ALVES, 2012, pp. 174-5). Esta diz respeito substancializao que a dialtica sofre em Hegel, como contradio, enquanto expresso da ideia infinita, que se manifesta em forma finita e limitada no real. Em outros termos, em Marx, No a contradio que se move por meio na relao

    3 Marcos L. Mller tambm fala em maturidade histrica, mas nota-se nele uma oscilao na forma de entend-la: ora uma questo ontolgica, ora uma questo metodolgica, ou seja, de apreenso pelo sujeito, como na frase seguinte: A dialtica pode ser o modo de exposio racional de um objeto depois que a investigao o conduziu pela anlise e pela crtica ao ponto em que ele esteja maduro para a exposio (MLLER, 2014). Chasin apreende em Marx a maturidade do objeto como algo que lhe imanente, pela sua prpria constituio histrica, e esta que faculta ou dificulta a apreenso e anlise crtica: as condies de possibilidade dos distintos momentos da configurao terica so dadas pelas inflexes da sociabilidade, favorecendo ou desfavorecendo, pelo grau de desenvolvimento do objeto e pelas mutaes de tica correspondentes, a exercitao apropriada e clarificadora da cientificidade ou, s avessas, a parcialidade desfiguradora (CHASIN, 2009, p. 117)4 Marx adverte que a semelhana do seu mtodo com o hegeliano est no modo expositivo, no na investigao, como veremos adiante.

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    antittica entre valor e valor de uso no cerne da forma mercadoria, mas esta um carter imanente forma de ser dos produtos como realizao do trabalho no processo de valorizao (ALVES, 2012, pp. 174-5). Assim, Marx ressalta a contradio enquanto propriedade das relaes e da prpria constituio dos objetos, que s existem por conta de movimentos contraditrios inescapveis. Bem compreendida, portanto, a dialtica no um mtodo, um procedimento mais sensvel contradio, mas a sntese efetiva que preside a existncia concreta de dados produtos humanos numa sociabilidade atravessada por um tipo especfico de determinaes, ou seja, no se trata de um princpio ahistrico, aontolgico, mas de explicitar a contraditoriedade imanente e essencial (ALVES, 2012, p. 148). Razo pela qual a dialtica s passvel de descobrimento, jamais de aplicao. (CHASIN, 2009, p. 236)

    Diferentemente de Hegel, Marx apreende a realidade como ponto de partida concreto que, reproduzido pelo pensamento, assume a feio de concretude pensada, de reproduo ideal de um dado ser que , ele prprio, complexo e multidimensionado e que no se apresenta enquanto totalidade de relaes intuio ou empiria, demandando ser decifrado. Destes objetos, processos ou relaes objetivos, existentes em si mesmos, salienta-se, antes de tudo, a contradio que lhes imanente. Dito de outra forma, a ontologia estatutria marxiana parte da objetividade, a qual remete, simultaneamente, concretude sensvel e ao vir a ser contraditrio e relacional. Em Marx, portanto, a anlise sempre concreta e de uma situao concreta, bem como ser sempre ser objetivo. Como ele mesmo expressou,

    De prime abord eu no parto de conceitos, portanto tambm no parto do conceito valor, por esta razo tambm no fao de modo algum diviso [entre valor-de-uso e valor-de-troca]. Meu ponto de partida a forma social mais simples que se expressa como o produto do trabalho na sociedade atual, a mercadoria. Eu a analiso, desde logo, na forma pela qual ela aparece. (MARX apud FORTES, 2011, p. 267)

    Marx marca claramente sua posio, contrria da tradio especulativa anterior e tambm epistemolgica posterior. As categorias marxianas no so construtos ideais: trata-se de propriedades ou atributos inerentes ao prprio ser. Longe de serem conceitos predefinidos, figuraes ideais ou elaboraes intelectivas silogsticas, as categorias so as formas de ser efetivas capturadas pelo pensamento esto dadas tanto na realidade como na cabea; no so meros instrumentos conceituais construdos pela interpretao do pesquisador para ordenar a realidade, mas expressam formas de ser, determinaes de existncia (MARX, 2011, p. 59). Trata-se da formulao intelectivo-verbal daquilo que , no mundo existente, o permanente, o essencial, ou seja, so momentos de generalidade daqueles complexos de objetividades que justamente conhecemos como momentos indissolveis do ser de todo o existente (LUKCS, 2010, p. 367). Ressalte-se, porm, com a mxima nfase as diferenas com relao especulao: as categorias marxianas no se referem a um ser indeterminado ou inespecfico, generalizado, mas so a determinao particular e precisa de um existente dado ente ou processo em sua inerncia e imanncia, como sntese objetivo-efetiva de determinaes (ALVES, 2012, p. 21). A reproduo categorial tambm no idntica, como no idealismo, ao momento de entificao dos seres, mas se refere apreenso e reproduo mental das formas do efetivamente existente, do que e por que so, em sua multiplicidade e concreticidade. Em sntese:

    A analtica marxiana tem por pressuposio a existncia por-si do concreto como articulao categorial finita e autossustentada, o reconhecimento da preeminncia do efetivo, da coisa, como algo que . Um algo anterior e independentemente aos atos pelos quais outro ente objetivamente posto, o indivduo socialmente determinado ou mesmo um conjunto deles o interpela com a finalidade de compreend-lo e explic-lo. (ALVES, 2012, p. 387)

    Como remetem efetividade concreta, as categorias no esto rigidamente dadas, nem podem ser entendidas conforme as operaes epistemolgicas, ou seja, no se definem, nem se acham circunscritas em seu mbito de validade, por um estatuto unvoco e invarivel (ALVES, 2012, p. 139). Elas capturam as funes determinadas, as quais so expressas em categorias determinadas (...), figurao particular advinda da forma das relaes sociais que delimitam um dado modo concreto de produzir a vida humana, que assumida pela atividade e pelos produtos desta (ALVES, 2012, p. 127). Como produtos de condies histricas, sua validade s plena naquelas condies e limites s assim so abstraes razoveis. Uma abstrao considerada razovel na medida em que efetivamente destaca e fixa o elemento comum, poupando-nos assim da repetio. Entretanto, esse Universal, ou o comum isolado por comparao, ele prprio algo multiplamente articulado, cindido em diferentes determinaes (MARX, 2011, p. 41). Marx expressou vrias vezes que o fenmeno mais desenvolvido mais fcil de estudar que o fenmeno menos desenvolvido, e a manuteno de elementos das formas antigas nas novas, que as desenvolvem at as ltimas consequncias, um dos pontos que facultam esta mais ampla possibilidade cognitiva. Registre-se e sublinhe-se, porm, que ele frisa repetida e enfaticamente: no procedimento de pesquisa no se pode obliterar a especificidade do que se investiga. Para ele, conhecer justamente encontrar e explicitar as formas prprias, as particularidades. Com este cuidado de no deixar escapar a diferena especfica, o ndulo central do roteiro analtico de Marx, por

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    exemplo, entende-se que a sociedade burguesa contm uma chave5 para compreender sociedades passadas, uma vez que a mais desenvolvida at agora existente e traz em seu bojo os resqucios daquelas formas, agora superadas parcial ou totalmente:

    A sociedade burguesa a mais desenvolvida e diversificada organizao histrica da produo. Por essa razo, as categorias que expressam suas relaes e a compreenso de sua estrutura permitem simultaneamente compreender a organizao e as relaes de produo de todas as formas de sociedade desaparecidas, com cujos escombros e elementos edificou-se, parte dos quais ainda carrega consigo como resduos no superados, parte [que] nela se desenvolvem de meros indcios em significaes plenas (MARX, 2011, p. 58).

    Na mesma direo, Marx demonstra que s se tornou possvel a captura ideal do trabalho em geral em vista do desenvolvimento concreto mais rico da prpria atividade sensvel na sociedade moderna do capital, que promove a indistino dos mltiplos gneros de trabalho: as abstraes mais gerais surgem unicamente com o desenvolvimento concreto mais rico, ali onde um aspecto aparece como comum a muitos, comum a todos (MARX, 2011, p. 57). De maneira que, conforme salientou Lukcs, Marx considera a universalidade uma abstrao realizada pela prpria realidade que ento e s ento se torna uma ideia justa quando a cincia reflete, adequadamente, o desenvolvimento vital da realidade em seu movimento, na sua complexidade, em suas verdadeiras propores (LUKCS apud CHASIN, 2009, pp. 168-9). Ainda de acordo com Lukcs, a universalidade no algo acrescentado a um ser pelo pensamento, enquanto que a objetividade a forma primordial concreta e real de cada ser e, portanto,

    de todo nexo categorial, que ns, aps transport-lo para o pensamento usamos exprimir como sua generi-dade e expressar como sua universalidade [Allgemeinheit], como a universalidade de seu ser determinado. (...) a universalidade no nada mais nada menos que, em primeiro lugar, uma determinao do ser, exatamente como a singularidade [Einzelheit], s porque ela, tanto quanto a singularidade, existe e opera no ser mesmo como determinao da objetividade, pode tornar-se reproduzida pela conscincia um momento fecundo do pensamento. (LUKCS, 2010, p. 261)

    Bem assim, a complexidade imanente ao prprio existente, de forma que no uma mera juno de entes em si simplrios. Afinal, Como articulao de determinaes imanentes, o concreto j uma sntese. Uma composio de totalidade que permite a existncia da coisa na sua particularidade real e objetiva (ALVES, 2012, pp. 124-5). Nas palavras de Marx,

    O concreto concreto porque a sntese de mltiplas determinaes, portanto, unidade da diversidade. Por essa razo o concreto aparece no pensamento como processo de sntese, como resultado, no como ponto de partida, no obstante seja o ponto de partida efetivo e, em consequncia, tambm o ponto de partida da intui-o e da representao. (MARX, 2011, p. 54)

    O ser elemento no conforma as categorias como isoladas, antes ao contrrio, esto sempre em interconexo com outras, porque so elementos estruturais de complexos relativamente totais, reais, dinmicos, cujas inter-relaes dinmicas do lugar a complexos cada vez mais abrangentes, em sentido tanto extensivo quanto intensivo (LUKCS, 1979, pp. 28-9).

    Desta forma, todo estudo que almeje a objetividade tem de atentar, de um lado, para a especificidade pois sem compreender a diferena especfica no se explica nenhum objeto e, de outro, para a totalidade em que o objeto est inserido, inter-relao sem a qual tambm no passvel de compreenso. A relao entre singularidade e universalidade de tal porte que seu profundo desvendamento sob a forma de universalidade possibilita tambm a compreenso exata do singular.

    Note-se, porm, que o real, em sua complexidade, no capturvel imediatamente, no manifesta na imediaticidade seus nexos constitutivos essenciais. Este o sentido da conhecida afirmao marxiana segundo a qual a cincia seria suprflua se a essncia e a aparncia coincidissem. Caso no seja ultrapassada a forma fenomnica, no se alcana a captura do concreto, pelo menos no em seus aspectos qualitativos, chegando-se, no mximo, a justaposies de elementos quantitativos ou concatenao superficial, a partir de princpios gnosio-epistmicos ou lgicos, de aspectos parciais. De forma que a coisa em si no se manifesta imediatamente ao homem. Para

    5 importante salientar que no se trata da chave para o entendimento das sociedades anteriores, mas de uma chave. Como observou corretamente Lukcs, Marx v aqui, com legtima considerao crtica, uma chave, no a chave para decifrar o ser em sua historicidade. Isso porque o processo da histria casual, no teleolgico, mltiplo, nunca unilateral, simplesmente retilneo, mas sempre uma tendncia evolutiva desencadeada por interaes e inter-relaes reais de complexos sempre ativos. (LUKCS, 2010, p. 70) O prprio Marx ressalta: se verdade que as categorias da economia burguesa tm uma validade para todas as outras formas de sociedade, isso deve ser tomado cum grano salis. Elas podem conter tais categorias de modo desenvolvido, atrofiado, caricato etc., mas sempre com diferena essencial. (MARX, 2011, p. 59)

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    chegar sua compreenso, necessrio fazer no s um certo esforo, mas tambm um dtour (KOSK, 1995, p. 13). A concreticidade demanda, pois, um esforo intelectivo de compreenso que passa pela sua decomposio:

    o verdadeiro concreto da realidade capitalista no dado pela experincia direta da circulao de mercadorias e pelo movimento dos preos, isto , pelas categorias da circulao, mas o resultado de um processo de pensa-mento que reconstri a constituio sistemtica do capital a partir das determinaes mais simples, abstratas e aparentes da produo capitalista (mercadoria, valor, dinheiro, circulao), para chegar s mais ricas, concretas e essenciais, atravs da explicitao das categorias da produo a partir da lei da valorizao (mais-valia, explo-rao, tempo de trabalho, trabalho necessrio e excedente, mais-valia absoluta e relativa, cooperao, diviso do trabalho, maquinaria, trabalho assalariado, reproduo e acumulao (MLLER, 2014).

    As formas fenomnicas que so, tambm elas, partes integrantes das coisas no so autoexplicativas, exigem uma decifrao em que so explicadas e suas contradies so esclarecidas. Neste mister, em vez de instituir um mtodo a priori ou arranjos mentais subjetivos que supostamente facilitem o caminho do conhecimento, Marx toma a via mais difcil mas nica que leva ao destino visado do debruar-se sobre a prpria coisa, na busca de identificar suas caractersticas e sua diferena essencial. Trata-se de uma analtica das coisas, as quais regem a pesquisa, dada sua prioridade ontolgica com relao ao pesquisador.

    Frise-se, porm, que no se trata de um apassivamento do pesquisador. Quer-se destacar a regncia do objeto, mas esta, de nenhum modo, implica a apatia do sujeito. Este tem uma tarefa rdua, j que, sem mapas nem atalhos, precisa desvendar o objeto que tem diante de si, buscando explicitar a gnese dos processos e as contradies que encontra, alm de demonstrar a especificidade e a articulao categorial da coisa estudada: a crtica verdadeiramente filosfica, afirma Marx, no indica somente contradies existentes; ela esclarece essas contradies, compreende sua gnese, sua necessidade. Ela as apreende em seu significado especfico, busca apreender a lgica especfica do objeto especfico (MARX, 2005, p. 108). A anlise imanente pressupe que antes de interpretar ou criticar incontornavelmente necessrio compreender e fazer a prova de ter compreendido (CHASIN, 2009, p. 25). O entendimento exposto pela reproduo analtica da estrutura, contedo e interligao dos objetos:

    Somente o mtodo dialtico pode conduzir ao verdadeiro concreto, porque ele o expe na forma de um resul-tado desenvolvido pelo pensamento a partir das categorias mais simples e abstratas (e aparentes), que se de-terminam e enriquecem progressivamente em categorias mais complexas e intensivas (e essenciais), at chegar ao concreto total, totalidade concreta enquanto totalidade de pensamento, ao concreto de pensamentos. (MLLER, 2014)

    A anlise das coisas realizada trabalhosamente necessria, como visto, porque as formas de apario dos fenmenos no expem em sua integralidade e complexidade suas formas de existncia. Como o seguimento de uma estrutura metodolgica no garante o acesso coisa, s se alcana a sua essncia ao destrin-la, decomp-la em suas partes constitutivas, compreend-las em sua especificidade e na inter-relao com as demais: exatamente nisto que consiste uma analtica, no separar (fernzuhalten) os elementos, em distingui-los e identificar o mbito de determinaes particular a que cada qual pertence, em indicar assim a differentia specifica das formas de ser (ALVES, 2012, p. 94). No se parte de um caminho predeterminado para confirmar hipteses postas desde o incio, orientando-se por roteiro lgico ou metodolgico, mas justamente a ausncia de uma soluo prvia e exterior ao objeto, dada a prioridade ntica da coisa, que exige a sua anlise acurada, um exame cuidadoso, o adentar o seu imo e compreend-lo em si e na conexo com outros seres. Este se faz, no tocante ontologia regional do ser social, por um trabalho de abstraes cujas operaes prprias so especificao, delimitao, intensificao, articulao que compe a teoria das abstraes, par dialtico-categorial da analtica das coisas (CHASIN, 2009).

    III A teoria das abstraesNo Prefcio primeira edio de O capital o filsofo alemo diferencia cabalmente a forma de captura da

    realidade social daquela prpria dos estudos da natureza. Para o autor, nas anlises das estruturas societrias, no podem servir nem o microscpio nem reagentes qumicos. A faculdade de abstrair deve substituir ambos (MARX, 1988, p. 18). Em outros termos, no tocante ao estudo do ser social, experimentos semelhantes aos das cincias naturais so ontologicamente impossveis, dada a especificidade do campo societrio, cabendo capacidade humana de abstrao a possibilidade de apreenso do objeto. O Mouro ressalta que o caminho que vai do abstrato ao concreto, mentalmente apresentado, o modo do pensamento de apropriar-se do concreto, de reproduzi-lo como um concreto mental (MARX, 2011, p. 54). Ou seja, afastadas as possibilidades experimentais e controlveis que esto dadas s cincias da natureza, a forma cientfica (e, portanto, distinta da artstica, religiosa etc.) de apropriar-se da especificidade do ser social reproduzi-la como concreto pensado: O todo como um todo de pensamentos (...) um produto da cabea pensante que se apropria do mundo do nico modo que lhe possvel (MARX, 2011, p. 55). O concreto pensado reproduz a conexo entre efetividade e cientificidade, entre existir e pensar, em que o primeiro,

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    dado independentemente das atividades do intelecto, pode ser apreendido e reproduzido pelo pensamento no caso do ser social, a nica forma de estatuir a cientificidade.

    Expondo seu mtodo ou, se tomado este termo na sua acepo moderna, seu antimtodo (ALVES, 2012) de pesquisa, o filsofo vaticina: a realidade preexiste pesquisa, o objeto precede o conhecimento e deve, portanto, estar constantemente em considerao na sua representao ideal, ou seja, cientificamente deve-se partir do imediatamente dado. Observe-se, porm, que no se trata de um fenomenologismo nem de um empirismo. Esclarece: Parece ser correto comearmos pelo real e pelo concreto, pelo pressuposto efetivo (...). Considerado de maneira mais rigorosa, entretanto, isso se mostra falso (MARX, 2011, p. 54). Marx argumenta que, partindo-se do todo imediato, aparente apenas em seus complexos parciais, desemboca-se numa representao catica do todo: a totalidade e cada parte abordada so simples abstraes, se desconsiderados seus elementos constituintes.

    Para Marx, portanto, o recurso metodolgico adequado para o estudo do ser social a fora de abstrao uma competncia intelectiva para extrair os momentos mais centrais das relaes, coisas e seres estudados no mbito social e, assim, apropriar-se deles em sua plenitude e complexidade. A fora de abstrao o rgo peculiar da individualidade no que pertine apropriao ideal dos objetos sociais, a capacidade mental de escavar e garimpar as coisas, por meio da qual o sujeito que opera cognitivamente consegue captar o movimento real (CHASIN, 2009, p. 122). Ou, ainda:

    uma qualidade individual ou fora essencial de apropriao peculiar dos objetos, que se realiza de modo espe-cfico de acordo com a sua prpria natureza e em consonncia com a natureza do objeto apropriado. Enquanto fora performtica, sua apropriao ideal, reproduo intelectual de entidades reais, o que se confirma pelo carter ontolgico das abstraes produzidas (CHASIN, 2009, p. 123).

    Desta forma, a pesquisa no idntica ao coletar e agrupar caracteres empiristas e/ou sua descrio por um silogismo lgico superficial, mas um processo de garimpagem de elementos da coisa estudada pelo intelecto humano, um processo de abstrao. Como as categorias ontolgicas no querem figurar universais a priori ou conceitos autnomos com relao ao concreto, mas expressar as prprias coisas efetivas e complexas, devem ser regidas pelo complexo fenomnico em tela. A cientificidade se pe, assim, no como um processo prvio, separado da efetividade, mas s pode ser definida com base na processualidade que pretende apreender.

    De forma que as abstraes ontolgicas (CHASIN, 2009) so determinaes ou categorias simples que no so geradas por pontos de vista epistemolgicos, mas derivam da prpria coisa. Marx especifica categorias simples ou relaes gerais, ainda que expressem frequentemente aspectos isolados, como formas de ser, determinaes de existncia (MARX, 2011, p. 59), que esto dadas na realidade efetiva e, pelo esforo intelectivo, reproduzidas no entendimento. Elas devem registrar adequadamente traos comuns a todos ou a muitos dos objetos que investiga, evitando a repetio cansativa e pouco producente de informaes idnticas e permitindo tambm o destaque das diferenas essenciais, por comparao. Segundo Chasin, a abstrao retm aspectos reais, comuns s formas temporais de entificao dos complexos fenomnicos considerados, comparando entes concretos, num processo de sntese e s por isso as abstraes resultantes so razoveis: A razoabilidade est no registro ou constatao adequado, atravs da comparao, do que pertence a todos ou a muitos sob diversos modos de existncia. (...) seu mrito operar subsumida comparao dos objetos que investiga (CHASIN, 2009, pp. 124-5).

    Essas abstraes vazias constituem-se no ponto de partida da elaborao terica, a qual, por meio de uma determinao mais precisa, chegaria analiticamente a conceitos cada vez mais simples; do concreto representado [chegaria] a conceitos abstratos [Abstrakta] cada vez mais finos, at que tivesse chegado s determinaes mais simples (MARX, 2011, p. 54). As abstraes razoveis destacam e fixam caractersticos compartilhados, mas nenhum destes traos comuns substncia pura, e sim um todo complexo integrado por mltiplas formas e modos de ser, que nele atuam como partes moventes e movidas (LUKCS, 2010, p. 289), como unidade do diverso. Sendo o universal comum multiplamente articulado, sntese de mltiplas determinaes, a funo primria das abstraes razoveis evidenciar a diferena especfica, j que ignor-la distanciar-se dos objetos reais (com o que se criam abstraes irrazoveis, generalizadamente vazias). Afinal, j dissera Marx, uma explicao que no d a differentia specifica no uma explicao, mas d apenas a aparncia de um conhecimento real, pois esses sujeitos reais permanecem incompreendidos, visto que no so determinaes apreendidas em sua essncia (MARX, 2005, p. 34). Em poucas palavras, a perda da diferena essencial mutila a reproduo ideal do ser-precisamente-assim, indeterminando o objeto pelo cancelamento de sua processualidade formativa e especificao histrica (CHASIN, 2009, p. 125).

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    No processo de pesquisa, a sntese categorial, que objetiva, imanente concretude, deve tambm passar a existir enquanto concreto pensado6. Em outros termos, a concretude sinttica, o existente, em Marx, nesse contexto, se diz de dois modos: primeiro como este ente ou processo efetivo por-si; depois, como totalidade de pensamentos (ALVES, 2012, p. 161). As abstraes so, portanto, o ponto de partida do mtodo cientfico exato, e isto no por um critrio epistemolgico qualquer, mas por imposio da prpria natureza da coisa que se pesquisa. As abstraes delimitadas, depuradas so um meio, no o fim do conhecimento, logo, tm o carter de uma etapa analtica apenas provisria. Esta justamente a sua funo secundria: so o ponto de partida da elaborao terica, no seu resultado ltimo. Tal somente se alcana medindo comparativamente aquelas abstraes com a realidade que elas pretendem reproduzir mentalmente em sua totalidade multifacetada. Depuradas as abstraes em sua razoabilidade, trata-se agora da caminhada de volta, dando de novo com o real no mais como a representao catica de um todo, mas como uma rica totalidade de muitas determinaes e relaes (MARX, 2011, p. 54). Conforme sintetizou Ronaldo Vielmi Fortes,

    O processo de formao ideal das categorias consiste na apreenso dos traos gerais de elementos concre-tamente existentes. Abstrai-se aqui o complexo de interaes da categoria tais como suas determinaes e peculiaridades histricas, sociais, de circunstncia etc. focalizando a ateno nos atributos mais gerais de tal elemento. (...) Este caminho leva do concreto imediato at a sntese abstrata e ainda rarefeita de elementos da totalidade. O caminho de volta implica, por sua vez, a decomposio rigorosa e minuciosa das caractersticas da categoria e do complexo parcial no interior da totalidade, em outras palavras a especificao das categorias, de suas interaes, no interior do complexo. (FORTES, 2011, p. 125)

    Essa viagem de retorno necessria porque a verdade est na efetividade, na concretude, no sensvel. Deste modo, a verdade no determinvel por algum critrio da faculdade de julgar ou de abstrair, mas sim pela prpria existncia: o efetivamente existente o metro pelo qual se mede a correo ou no de um pensamento, parmetro que no pode ser substitudo pela mera aplicao de qualquer construto metodolgico prvio e independente com relao sua prpria malha interna e s interdeterminaes recprocas da coisa pesquisada. Tampouco ficam a meio caminho, como a economia poltica, que toma a abstrao como o resultado da pesquisa. Nos termos chasinianos, o ser chamado a parametrar o conhecer, de forma que, segundo o rigor ontolgico, a conscincia ativa procura exercer os atos cognitivos na deliberada subsuno, criticamente modulada, aos complexos efetivos, s coisas reais e ideais da mundaneidade (CHASIN, 2009, p. 58). A ocorre uma metamorfose: as abstraes razoveis, mantendo a condio de pensamentos, convertem-se em momentos concretos de apreenso e reproduo dos graus histricos efetivos. Parte-se do emprico para se alcanar o concreto pensado, passando pela abstrao de determinados momentos isolados, donde se retorna prpria concretude, a qual lhes d sua ltima configurao. Exposto, em suas determinaes mais gerais, nas abstraes razoveis, o concreto no apenas fundamento da pesquisa, mas permanece presente em todo o processo, enquanto parmetro ltimo. Por outras palavras,

    A remisso categorial ao concreto realmente existente tem, pois uma dupla vigncia terica. Por um lado, na aferio da razoabilidade dos conceitos, na avaliao da relao destes, como pontos em comum ao diverso. Por outro lado, e principalmente, na etapa de concreo das abstraes, onde estas perdem sua vacuidade e so preenchidas pelo contedo determinativo real e particular. (ALVES, 2012, p. 387)

    Para que as categorias percam seu carter genrico e simples e ganhem concretude e se saliente a diferena especfica deve haver uma intensificao ontolgica, a atualizao das virtualidades de sua natureza ontolgica enquanto forma de apropriao ideal dos objetos reais (CHASIN, 2009, p. 129). Esta intensificao se opera por meio da aproximao e comparao destas potencialidades aos traos efetivos, para serem medidas por estes e, ento, ajustadas, procedendo-se especificao, delimitao e articulao categoriais.

    Dentre os momentos necessrios para que ocorra a elevao das abstraes razoveis a reproduo de momentos concretos, Chasin destaca o do deperecimento da abstratividade, a especificao: na rota que vai do simples ao complexo, do abstrato ao concreto, as abstraes razoveis devem perder generalidade por especificao, adquirindo os perfis da particularidade e da singularizao, ou seja, a fisionomia de abstraes razoveis delimitadas (CHASIN, 2009, pp. 129-30). A especificao um momento analtico do qual resulta uma determinao histrica e social que pode restringir o contedo e a vigncia de determinadas categorias. De acordo com Lukcs,

    6 A ascenso do abstrato ao concreto no uma passagem de um plano (sensvel) para outro plano (racional); um movimento no pensamento e do pensamento. Para que o pensamento possa progredir do abstrato ao concreto, tem de mover-se no seu prprio elemento, isto , no plano abstrato, que a negao da imediaticidade, da evidncia e da concreticidade sensvel. (...) O progresso da abstratividade concreticidade , por conseguinte, em geral, o movimento da parte para o todo e do todo para a parte; do fenmeno para a essncia e da essncia para o fenmeno; da totalidade para a contradio e da contradio para a totalidade; do objeto para o sujeito e do sujeito para o objeto. (KOSK, 1995, pp. 36-7)

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    Especificao significa aqui em termos ontolgicos: examinar que xitos determinadas leis, sua concreo, sua transformao, seu fazer-se tendncia, seu concreto operar em determinadas circunstncias concretas possuem para determinados complexos concretos. (LUKCS apud FORTES, 2011, p. 117)

    A especificao das particularidades necessria porque os aspectos, leis e diretrizes gerais no do conta da compleio concreta das coisas em sua complexidade. Quando dissolvidas as categorias, estas agora so apreendidas em suas forma mais profunda, concreta, em articulao com as formas de apario. Assim,

    o momento da especificao subentende a representao das formas concretas de realizao dos complexos, momento em que se dissipam as representaes genrico-abstratas da legalidade tendencial e tem lugar a di-versidade histrica de suas efetivaes. (...) O tracejamento geral das tendncias histricas fornece apenas a dimenso geral das determinantes atuantes na realidade; a demarcao dos desvios histricos reais destas leis tendenciais a determinao precisa e necessria do procedimento investigativo (FORTES, 2011, p. 117).

    Se toda coisa uma pletora complexa de determinaes e inter-relaes, nem por isso todas so equivalentes e tm idntico peso, fazendo-se necessrio demonstrar as determinaes delimitadoras recprocas que regem a proposio de cada qual no todo da coisa pesquisada. Para dar conta do rico gradiente de caracteres dos objetos estudados, preciso trazer a lume sua concatenao, sua especfica articulao entre si e com o todo. Em Marx, ao contrrio do que ocorria na economia poltica e na especulao, a articulao categorial no advm de uma atribuio formalista ou lgica, mas do retratamento da conexo ntima do prprio objeto em estudo. O prprio complexo estudado que diz da situao e da importncia dos nexos entre as categorias, no selecionadas por critrios exteriores, de forma a alcanar sua integrao e suas relaes mtuas. Em outros termos, as abstraes razoveis e delimitadas so articuladas segundo a lgica imanente que legisla o feixe de determinaes examinado. Trata-se, conforme Chasin, do estgio mais desenvolvido do prprio mtodo, que integra e proporciona a plena realizao de seus momentos anteriores (CHASIN, 2009, p. 131).

    Como apontou Lukcs, os tipos de interaes entre as infinitas determinaes contidas em toda objetividade exprime esta infinitude de possibilidades (LUKCS, 2010). Nesta direo, remetendo-se novamente diferena entre mtodo de pesquisa e modo de exposio, Chasin destaca que a ordem em que aparecem e as posies ocupadas pelas categorias nos trabalhos marxianos no aquela pela qual o pesquisador delas tomou conhecimento, mas reproduz teoricamente a coisa estudada. Assim, em Marx, a sequncia em que aparecem e o lugar que ocupam as categorias remetem sempre a

    suas incorporaes pertinentes ao concreto de pensamentos, ou seja, da integrao de cada uma delas, pela via das mltiplas e sucessivas intensificaes, delimitaes e articulaes das abstraes, ao processo de reproduo mental do objeto real, de modo a recompor, ao nvel da concreo realizada, na ordem prpria ao concreto pensado, por conseguinte de seu discurso, o ordenamento intrnseco ao objeto em reproduo, de tal forma que a sequencialidade das categorias, no concreto pensado, seja a reproduo de sua simultaneidade real no objeto (CHASIN, 2009, pp. 244-5).

    A investigao no termina, entretanto, ao perspectivar as interaes categoriais, com o que se correria o risco do unicausalismo ou da indeterminao. As determinaes so momentos essenciais constitutivos do prprio ser societrio e, portanto, a relao entre categorias no da mesma ordem, relevncia e grau, uma vez que a participao de determinadas categorias no interior do complexo pode dar-se sob a forma da primazia ou da anterioridade necessria em relao a outros elementos (FORTES, 2011, pp. 131-2). Em outros termos, a anlise das inter-relaes categoriais deve considerar o fato de que no esto contempladas ali apenas relaes paritrias, mas tambm a sobreordenao e a subordinao das categorias, as quais, destitudas de homogeneidade, formam um conjunto de determinaes diferentes e divergentes. Assim, a pesquisa deve compreender o grau e a relevncia das categorias em interconexo, identificando claramente aquela que desempenha o papel de momento preponderante. Saliente-se que a predominncia no simples interao, mas diz respeito posio central que tem a categoria na articulao dos nexos, j que se trata do elo tnico, daquela abstrao razovel que sobredetermina as demais, tornando-se a categoria estruturante do todo concreto e, portanto, tambm da totalidade ideal. nesse momento que se manifesta a delimitao ou diferenciao por intensificao ontolgica, na medida em que esta categoria que tem acentuao ordenadora especfica fornece a construtura de todo o processo de sntese.

    Ainda no interior do processo de articulao, h tambm que demonstrar como se inter-relacionam em sua concretude as determinaes reflexivas: as categorias que esto conectadas umbilicalmente em pares ou conjuntos, de tal forma que a compreenso de cada uma forosa apreenso de todas, cuidando-se para no perder a especificidade de cada qual. Na arguta sntese de Antnio Alves, para fechar, a teoria das abstraes

    teoria da coisa sob o mando da prpria coisa, a qual analisada, dissecada, separada, decomposta em seus aspectos mltiplos, diversos e, at mesmo, opostos. Tipo de procedimento terico o qual a toma como aquela mesma se d na realidade social, para, atravs do conjunto de atos da analtica que, miudamente, decompe o

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    existente em seus elementos. Os quais passam forma de abstraes, para numa posterior etapa de reconstru-o, apresent-la como um todo de determinaes que a delimitam como ente, ou processualidade, especfica, na forma de um todo pensado. Conjunto de operaes que distinguem as partes constitutivas de uma coisa umas das outras, e, na sequncia, identifica o nvel de determinaes preciso em que cada uma delas se encontra na particularidade da existncia atual (ALVES, 2012, pp. 92-3).

    Da analtica das coisas, possibilitada pela inexistncia preliminar de mtodo e consubstanciada na teoria das abstraes, conclui-se que o mtodo marxiano a exposio crtica do prprio real. No h nele uma prescrio, do que resulta que os mtodos no tm valor de conhecimento baseado em si mesmos, muito menos podem servir de modelo ou guia de pesquisa. Antes, ao contrrio, cumprida sua funo, deixam de ser referncia, no tm serventia como suposta metodologia universal que oriente outras jornadas, mas apenas registram um roteiro de percurso: De modo que o conhecimento possvel, a cincia pode alcanar seus objetivos, mas no h um caminho preconfigurado, uma chave de ouro ou uma determinada metodologia de acesso ao verdadeiro (CHASIN, 2009, p. 231).

    IV Distino entre mtodo de investigao e modo de exposioSomente aps a pesquisa detalhada do objeto que se pe o problema da exposio dos resultados da

    pesquisa. Marx chama a ateno para a distino entre o mtodo de investigao e o mtodo de exposio numa conhecida passagem:

    , sem dvida, necessrio distinguir o mtodo de exposio, formalmente, do mtodo de pesquisa. A pesqui-sa tem de captar detalhadamente a matria, analisar as suas vrias formas de evoluo e rastrear sua conexo ntima. S depois de concludo esse trabalho que se pode expor adequadamente o movimento real. Caso se consiga isso, e espelhada idealmente agora a vida da matria, talvez possa parecer que se esteja tratando de uma construo a priori. (MARX, 1988, p. 26)

    Como a exposio da pesquisa j parte de algo reconstrudo mentalmente, j resultado de um processo, pode parecer que se partiu de uma construo prvia, enquanto, na verdade, trata-se da exposio do movimento do real. Vai nessa mesma direo a justificativa para a excluso da edio final da Introduo elaborada para os Manuscritos econmicos de 1857/58, mais conhecidos como Grundrisse justamente um dos textos em que clarifica mais miudamente seu procedimento prprio de pesquisa. Ali Marx afirma que seria temerrio apresentar os resultados da pesquisa sem reproduzir os momentos constituintes da coisa estudada: Suprimo uma introduo geral que esbocei no passado porque, pensando bem, parece-me que antecipar concluses do que preciso demonstrar em primeiro lugar pouco correto, e o leitor que quiser seguir-me dever decidir-se a passar do particular ao geral. (MARX, 1977, p. 23)

    A diferenciao entre os mtodos de investigao e de exposio importante na medida em que se perdeu a especificidade da etapa da exposio e em geral equipara-se o mtodo de exposio forma de apresentao, no se percebendo, por conseguinte, que ele o mtodo de explicitao, graas ao qual o fenmeno se torna transparente, racional, compreensvel (KOSK, 1995, p. 37). Assim, o modo de expor foi reduzido necessidade de um esforo prvio de apropriao analtica do objeto anterior sua exposio metdica sobre cujo carter no h muito que dizer. Isto Quando no se toma o termo exposio no seu sentido comum de discurso, de texto escrito (ou falado) que se organiza metodicamente conforme o encadeamento das proposies, transferindo-se o nus da dialtica para o mtodo de pesquisa (MLLER, 2014).

    Marx se vale, porm, do mtodo de exposio como procedimento de reconstruo categorial a partir das coisas mesmas, sem a interferncia de hipteses anteriores, e que pressupe o trabalho prvio de investigao das cincias empricas e a maturao histrica do objeto, para ento expor a sua lgica interna de acordo com os nexos que a anlise apreendeu entre suas determinaes (MLLER, 2014). Dito de outra forma, Aquilo de onde a cincia inicia a prpria exposio j resultado de uma investigao e de uma apropriao crtico-cientfica da matria. O incio da exposio j um incio mediato, que contm em embrio a estrutura de toda a obra (KOSK, 1995, pp. 37-8)7. O mtodo de expor designa o modo como o objeto, suficientemente apreendido e analisado, se desdobra em suas articulaes prprias e como o pensamento as desenvolve em suas determinaes conceituais correspondentes, organizando um discurso metdico (MLLER, 2014). Ento, trata-se de, em primeiro lugar, compreender as determinaes da coisa no seu

    7 Embora no possamos concordar com a afirmao de que O incio da investigao casual e arbitrrio, ao passo que o incio da exposio necessrio (KOSK, 1995, p. 38), j que tambm o incio da investigao deve estar adequado especificidade da coisa pesquisada.

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    desdobramento prprio sem que lhe sejam aditados lgicas ou elementos que lhe so exteriores , mas tambm de estabelecer as devidas conexes imanentes e necessrias entre elas.

    O mtodo de exposio marxiano tambm objeto da discusso que quer qualificar Marx a partir da aproximao ou distanciamento com relao a Hegel. Para Mller, que conta entre os adeptos da aproximao dos dois filsofos alemes, este mtodo advm de Hegel, significando neste e em Marx a explicitao racional imanente do prprio objeto e a exigncia de s nela incluir aquilo que foi adequadamente compreendido (MLLER, 2014). Assim, o mtodo de exposio marxiano guardaria proximidades substanciais com o de Hegel mas invertido e virado do avesso, tornando-se algo distinto do movimento efetivo do objeto, ou seja, no simultaneamente a constituio da coisa, como em Hegel, mas to s e cabalmente, a exposio das articulaes sistemticas de todas as relaes econmicas que se implicam reciprocamente numa sociedade submetida dominao do capital (MLLER, 2014). Numa direo oposta, Sartori afirma que a distino entre mtodo de pesquisa e mtodo de exposio no existe no pensamento hegeliano, sendo uma conquista marxiana pura, porquanto Hegel justape modo de exposio (Darstellungsweise) e modo de pesquisa (Forschungsweise) por ver o sujeito real e concreto apartado da sua real atividade objetiva, sensvel e, assim, traz o sujeito como um predicado da ideia, a qual teria como suposta a reconciliao (Vershnung) entre sujeito e objeto (Objekt) na figura do sujeito-objeto idntico (SARTORI, 2014, p. 708)8.

    J o caso de Lukcs seria sui generis, mais complexo com relao a outros autores (CHASIN, 2009; FORTES, 2011; ALVES, 2012). Embora estivesse muito frente de toda a epistemologia largamente predominante j em sua poca, sendo o maior responsvel pelo resgate dos elementos ontolgicos do pensamento marxiano, ele no teria apreendido em toda a sua plenitude a teoria das abstraes e a analtica das coisas efetuada por Marx. Assim, mesmo acentuando a existncia da ruptura com Hegel, sua anlise acabaria por lhe obliterar momentos importantes, traando mais elementos de continuidade um parentesco metodolgico do que aqueles efetivamente existentes entre os dois filsofos alemes. Ademais, em vez da dissecao da coisa, ele props a totalidade como categoria decisiva de toda a explicitao dos caminhos metodolgicos da investigao e da exposio marxiana. O raciocnio de Lukcs no acompanha, portanto, o desvelamento passo a passo da anlise dos meandros determinativos mais importantes da mercadoria desenvolvidos no captulo introdutrio da obra marxiana. (FORTES, 2011, p. 268). Haveria em Lukcs uma identificao entre os modos investigativo e expositivo em O capital, cuja exposio corresponderia decomposio analtica direta da categoria central da sociabilidade (FORTES, 2011). Aqui no podemos seno citar a existncia do debate.

    menos polmica a afirmao de que, para Marx, a exposio dialtica o mtodo pelo qual o pensamento se eleva do abstrato ao concreto e o expe como resultado, diferentemente de Hegel, para quem representa seu prprio processo de surgimento como manifestao de uma razo que se realiza. O prprio Marx clarificou a questo, ao lembrar que, no captulo sobre o valor, at andei namorando aqui e acol os seus modos peculiares de expresso (MARX, 1988, p. 27). Analisando a assertiva marxiana segundo a qual, como j vimos,

    A pesquisa tem de captar detalhadamente a matria, analisar as suas vrias formas de evoluo e rastrear sua conexo ntima. S depois de concludo esse trabalho que se pode expor adequadamente o movimento real. Caso se consiga isso, e espelhada idealmente agora a vida da matria, talvez possa parecer que se esteja tratando de uma construo a priori (MARX, 1988, p. 26),

    Fortes destaca que A ltima frase da citao enfatiza a ausncia de uma construo a priori, insistindo que a estrutura da obra a exposio a posteriori dos resultados alcanados no processo investigativo. Em outros termos, o modo expositivo de O capital no idntico investigao propriamente dita (FORTES, 2011, p. 266). Muito embora a exposio tenha sua importncia, ressaltada por seu papel especfico, e por isso objeto de cuidadosa ateno, a investigao tem, em Marx, prioridade, tratando-se da compreenso da prpria coisa.

    8 Para Mller, na Cincia da lgica hegeliana se apresenta como a exposio sistemtica das categorias do pensamento puro enquanto formas de concepo da realidade, com o intuito de fundar o prprio conceito de cincia (filosfica) e de mtodo (...). Dialtica designa, aqui, genericamente, a exposio do movimento lgico do contedo (da coisa concebida, Sache) enquanto este movimento que preside ao desdobramento das determinaes do contedo e se constitui, desta maneira, como o seu mtodo. Para Sartori, por sua vez, Na medida em que, no autor idealista, as categorias j so concebidas como componentes do prprio real (Reale), h certa autonomizao das instncias que apreendem as primeiras, a filosofia e a lgica (mesmo que essas, depois, voltem-se realidade efetiva [Wirklichkeit] no autor) (SARTORI, 2014, p. 705). Sartori destaca que em Marx o ideal um momento que, na medida em que reproduz a objetividade, est subsumido ao processo de vida real, que tem uma prioridade ontolgica (SARTORI, 2014, p. 706). Marx rejeita, ento, no seu entender, a posio que entende o real como resultado dos movimentos da Ideia e por isso se distancia de Hegel.

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    Consideraes finais

    Retomando, a ttulo de fechamento, alguns momentos da exposio precedente, ressaltemos de incio a impugnao marxiana a critrios gnosio-epistmicos na delucidao das coisas. Voltando nosso olhar para a fundamentao ontoprtica do conhecimento; a determinao social do pensamento e a presena histrica do objeto, reproduzimos crticas de Marx a toda anlise que desconsidera a prioridade ontolgica do ser ou que, de outra parte, ignora a presena da subjetividade na relao do ser social com o mundo.

    Desde o incio o mtodo impugnado em Marx, cedendo passo analtica da reta prospeco do objeto, portanto, compreenso de um itinerrio de viagem j concluda, de percorrer sob a forma do objeto aquelas sendas que o foram sob o modo da prtica cognitiva da cincia (ALVES, 2012, p. 157). Nos termos acertados de Chasin,

    o mtodo marxiano, tomado por seus momentos estruturais, pode ser reconhecido e enunciado como o modo de produo de concretos de pensamentos a partir da destilao prvia de abstraes razoveis. Procedimen-to no qual a decantao preliminar , por assim dizer, errante, um trabalho de sapa em que a fora de abstrao confronta de sada e sem qualquer ponto de arrimo a imediatez do todo sensvel do objeto, uma aproximao cognitiva, pois, que se defronta com a face lisa, desprovida da textura de mediaes que faz do objeto ou de conexes nicas de objetos singularidades efetivas, mas que est oculta na totalidade muda com que os mesmos se apresentam na abstratividade prpria e incontornvel relao imediata do sujeito com o concreto indecifrado (CHASIN, 2009, p. 221).

    Chamamos a ateno para a teoria marxiana das formas de ser, que apreende as categorias enquanto determinaes da existncia, e no enquanto conceitos subjetivamente postos. No mesmo passo, tentamos explicitar que a base de seu proceder a analtica das coisas, que esmia os objetos at penetrar no seu mago e apreend-lo em sua especificidade e na sua amplitude, para logo fazer o caminho de volta e, tendo como parmetro o prprio real, buscar as especificaes histrico-concretas e as articulaes com outras categorias.

    Frisamos, ainda, a particularidade da investigao do objeto societrio. Neste tipo de pesquisa, em que s possvel o recurso capacidade de abstrao do ser humano como forma de apreenso intelectiva, ter o objeto como ponto de partida e como ponto de chegada fundamental para dar conta de sua natureza sem cair na metafsica, no idealismo, no ceticismo ou no empirismo, sem imputaes nem criao de modelos vazios, tipos ideais abstrativantes, desconsideraes da realidade posta entre parnteses ou outras frmulas que tendem a focar sempre na subjetividade do pesquisador, em vez de voltar-se captura da coisa que o que de fato interessa. A no suficiente a boa vontade nem a honestidade intelectual do pesquisador, como tambm no basta escolher de antemo e seguir criteriosamente uma determinada tcnica: O desafio das coisas no se altera ou dissolve pela mera disposio ativa do sujeito enfrentar a decifrao das mesmas, nem porque detenha a visualizao do roteiro analtico a ser cumprido, e sempre como dificuldade se repe a cada objeto faceado. Se, como dizia Marx, Todo comeo difcil; isso vale para qualquer cincia, no h um caminho preconfigurado, uma chave de ouro ou uma determinada metodologia de acesso ao verdadeiro (CHASIN, 2009, p. 231). Como tambm observou o prprio Marx, No h estrada real para a cincia e s tm possibilidade de chegar aos seus cumes luminosos aqueles que no temem fatigar-se a escalar as suas veredas escarpadas (MARX, 2014). Donde, a grande descoberta e a grande contribuio do mtodo marxiano:

    O rumo s est inscrito na prpria coisa e o roteiro da viagem s visvel, olhando para trs, do cimo luminoso, quando, a rigor, j no tem serventia, nem mesmo para outras jornadas, a no ser como cintilao evanescente, tanto mais esquiva ou enganosa quanto mais risca for perseguida, exatamente porque a luminosidade espe-cfica de um objeto especfico. (CHASIN, 2009, pp. 231-2)

    Como visto, em Marx a reproduo mental do real no se pe no ponto de partida da pesquisa: o mtodo cientfico exato para o estudo do ser social o exame da efetividade a conhecer, com o consequente desvendamento de suas determinaes objetivas. s no fim de um processo longo e rduo, no ponto de chegada, que o concreto se articula como concreto de pensamentos.

    A analtica das coisas possvel justamente pelas operaes da teoria das abstraes, cujos atos cognitivos s tomam forma efetiva na direta reproduo de contedos especficos, distribudos estes por toda gama real entre a mais simples e a plena complexidade do concreto maturado (CHASIN, 2009, pp. 246-7). De fato, em Marx, como afirmou Lukcs, no h enunciados concretos que no digam respeito a um ser, ou seja, que no sejam sempre afirmaes ontolgicas (LUKCS, 1979). Dito de outro modo, no h nele nenhum tratamento autnomo das questes metodolgicas. No questiona a possibilidade e a verdade do conhecimento, afirmando que se trata de uma questo histrico-social, respondida na prtica, e no por ordenamentos subjetivos. A questo do conhecimento, seus limites, as vias para atingi-lo, suas possibilidades, so temas que s aparecem referidos em Marx aps um dado percurso, quando a exposio se torna coerentemente apresentvel.

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    De forma que a captura imanente da coisa estudada no pode se dar por um mapa previamente desenhado ou por atalhos metodolgicos que abreviem a longa e trabalhosa jornada da pesquisa. Esta tem de captar detalhadamente a matria, analisar suas vrias formas de evoluo e rastrear sua conexo ntima e s ento explicitar os resultados encontrados por um procedimento de reconstruo categorial. A regncia, tambm aqui, est com o objeto, que tem de ser apreendido pela investigao supramencionada.

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