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1 Rua da Moeda Dez horas na moeda: efervescência e calma Graffiti na moeda: expressao das ruas O espaço dividido pelos flanelinhas ÁTIMO o outro lado da RECIFE | FEVEREIRO | 2014

Átimo - O outro lado da Rua da Moeda

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Átimo é a publicação resultante da disciplina de Edição do curso de Comunicação Social - Jornalismo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), no Departamento de Comunicação (DCOM), do Centro de Artes e Comunicação (CAC).

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Rua da Moeda

Dez horas na moeda: efervescência e calma

Graffiti na moeda: expressao das ruas

O espaço dividido pelos flanelinhas

ÁTIMO

o outro lado da

RECIFE | FEVEREIRO | 2014

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editorial

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Vigiando a Rua da Moeda4Casarões abrigam o passado 6

Não tinha teto, não tinha nada 8

Muros falantes exalam ideias13

A moeda vale dois reais11

Via que anseia por cultura 16

Quem quiser pode chegar18

Posfácio22

índice

T.A.T.I codinome da rua9

Mural20

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O relógio marcava exatamente duas da tarde de uma sexta feira quando cheguei ao localda“pauta” deste texto. estava disposto a acompanhar, por dez horas seguidas, a movimentação deste logradouro, que é tão famoso pela sua vida noturna. Mas chegar na hora do“baile” era muito fácil. A minha curiosidade era em saber como a “gata borralheira” se transformava em“cinderela”. Se me permitem o trocadilho infeliz, que-ria conhecer o “outro lado da moeda” da rua da moeda.

Vigiando a Rua da MoedaTEXTO ROBSON GOMES FOTO KÁCIA GUEDES

crônica

Nas primeiras horas de obser­vação, encontro um cenário completa­mente dife rente do expediente noturno: mais carros do que gente, quase como um grande estacionamento ao ar livre, orga­nizado pelos amad os (ou odiados, como queiram) flanelinhas. Os “gatos pinga­dos” que usufruíam de alguns bares que estavam abertos só reforçavam o ar de tranquilidade da rua. A única música que se ouvia por ali era o barulho da cons­trução que vinha das proximidades do Marco Zero. O público que passava pela Moeda naquele momento era formado por pequenos grupos de turistas, ou simples­mente, trabalhadores que aproveitavam o seu intervalo de almoço, já antecipando o happy hour de logo mais à noite. Por volta das 16h37 (sim, gosto de ser exato algumas vezes), um soar de tambor quebra o silêncio quase fúnebre daquela rua. E não era apenas um tam­bor. Eram vários. Também não era um batuque desenfreado e descompassado. Era um batuque que a gente sentia que até o coração entrava no ritmo. Estamos falando dos tambores de um maracatu.

E como o próprio nome do grupo anun­ciava, o “Encanto da Alegria” acordava o local com sua música, beleza e tradição. Foi o momento perfeito para os turistas se chegarem. Era engraçado olhar para aqueles gringos e perceber o quanto es­tavam admirados ao ver aquela mani­festação po pular. Os integrantes do ma­racatu dançavam com sorriso no rosto, sedu zindo ainda mais àqueles que viam aquele momento pela primeira vez. O encanta mento era tanto, que duas gringas saíram do bar com o copo de cerveja quase cheio nas suas mãos para se balançarem, mesmo que timidamente, com aqueles batuquei ros. Em frente às casas de número 133 e 143, surge um artista solitário que começa a treinar malabares. De forma gradual, ele tenta fazer arte com duas, três e, por fim, quatro bolas, de forma paciente e equi­librada. Mal sabia eu que aquele ensaio de malabarismo fosse me chamar tanto a atenção nas próximas horas. Você en­tenderá ao longo desta nossa conversa... O cenário noturno, já conhecido da Rua da Moeda, começa a ser construído.

Passam das seis da noite quando ouço os versos iniciais de “O Que Há de Bom”, de alguém que cantava voz e violão, ao vivo, em um dos bares. Fiquei triste porque ninguém aplaudiu o jovem cantor ao fim desta música, que iniciou bem a sua apre­sentação. Mas deixando o momento The Voice de lado, minhas atenções voltaram para aquele artista solitário, lembra? É que aquele malabarista agora não estava mais sozinho. Ele tinha a companhia de uma bela moça, que treinava com claves estam­pados, estilo tabuleiro de xadrez. Se eram namorados? Talvez. Mas também não vou bancar o cupido, né? A Moeda começa a ficar mais colorida. Calma, não me refiro a público (ainda!). E sim pelo colorido das mesas que começam a tomar mais espaço pela rua: brancas, amarelas, verdes, laran­jas, vermelhas, além das de madeira pin­tadas em cinza. Aquele bar da música ao vivo, parece chamar mais clientes. Já pos­so dizer que esse estabelecimento “está bombando”. Lembra do artista solitário e “sua possível namorada”? Pois bem. Chegou

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mais uma moça para o grupo. Com bolinhas verdes e rosas, agora os três en ­saiam números de malabarismo. Conti­nuo a andar de um lado para outro bus­cando o que escrever aqui quando olho com mais atenção para um imóvel mal­tratado pelo tempo por fora, mas que por dentro parece tomado pela arte. Do alto de seu primeiro andar, é possível ver pe­las janelas mãos e corpos voando rapida­mente. Percebi que se tratava de um en­saio de um grupo de dança. A padaria e o mercadinho da Rua da Moeda já estavam fechados. Agora era, mesmo, a hora dos bares. Do outro lado da animação, causado pela música ao vivo, na outra ponta da rua ouço apenas Zé Ramalho cantando baixinho, em nível ambiente. Posso voltar ao trio de malabaris­tas? (Pois é, eles ainda existem!) É que a jovem de claves de xadrez deu lugar a uma simpática garotinha que tenta realizar os seus primeiros movimentos. E finalmente eu ouço Chico Science, tão lembrado aqui nesta rua. Já passam das oito da noite por aqui. No lado mais calmo (até então) da rua, surgem mais mesas e cadeiras. Mais um bar acaba de abrir o seu expediente por ali. Do lado que está “fervendo” uma segunda banda ao vivo começa a tocar naquele bar. A vocalista começa seu show cantando “Valerie”, de Amy Winehouse. Parecendo coincidência (ou não), foi ape­nas nesse instante que eu consegui encon­trar uma das características “tão lembra­das” em relação à esta rua: o consumo de entorpecentes. Vi dois rapazes fumando um baseado, se revezando entre um tra­go e outro. Assim que terminaram, foram embora tranquilamente. Resolvi sentar um pouco em um dos bancos de concreto para descansar por uns instantes e retomar a rotina por mim proposta. Foi nesse exato momento que uma figura inte ressantíssima sentou­se ao meu lado. Com trajes que lembravam um cangaceiro e munido de literaturas de cordel numa bolsa de couro preta, parei

para observar, principalmente, os títulos de algumas das muitas histórias que ele carregava consigo e, confesso, me pren­di para não gargalhar e constrangê­lo de alguma forma. Fiquei muito curioso para ler “A véia debaixo da cama e a perna ca­beluda”, “A mulher tem o sabor da maçã, a malícia, e o veneno da serpente” e “O grande debate de Lampião e São Pedro”. Minha análise daquelas literaturas só foi interrompida porque o próprio, bastante simpático, voltou­se pra mim e explicou o porquê de estar sentado. Ele disse que precisava descansar “pois havia andado muito pela Praça do Arsenal”, que ficava ligeiramente perto dali. Assim que olhei diretamente para o rosto daquele senhor, fui distraído pelo seu chapéu de palha de cangaceiro decorado com moedas anti­gas. E mais uma vez, minhas viagens e análises internas são interrompidas por aquele homem, que se vira pra mim e me questiona, levemente irritado: “Pra quê esse grito?” Ele se referia àquela banda ao vivo que tinha acabado de começar seu show e a vocalista estava fazendo as fa­mosas “firulas vocais” ao entoar “Mercy”, sucesso da cantora Duffy. Apenas sorri e deixei ele formar a sua própria opinião sobre a “excentricidade” que ele estava es­cutando. Faltando duas horas para encerrar a minha missão, tenho que te perguntar mais uma vez, paciente leitor: Lembram dos malabaristas? Sim, eles ainda estão lá! E agora, existem mais amigos com eles. Não treinando exatamente, mas tipo, curtindo o momento. São seis pessoas ao todo. Um jovem descamisado, que parece ser de rua, aparentando uns 20 anos, apa­receu e pediu àqueles artistas para tentar também. E agora, de costas para mim, onde enxergo uma tatuagem escrito “Nei­de”, ele presta atenção nas instruções dos donos do instrumento para tentar fa­zer igual. E bem atrás deles, cinco jovens fazem uma rodinha para dividir (olha a novidade, só que não) um baseado. A medida que a noite avança, as

pessoas não param de chegar por aqui. Geralmente grupos ou casais são mai­oria. E quando chego no “lado samba”, acre ditem: agora encontro malabaristas por lá também! Mas juro que esta será a única citação sobre eles. Também é nesse instante que começa o famoso “sambão”, com um grupo de pagode ao vivo, forma­do por cinco integrantes. Atrás desse conjunto, surgiu um casal dançando como ninguém! No maior estilo dança de salão, eles evoluíam com muita classe. Apesar do cansaço nítido do homem, demasiadamente suado, era pos­sível ver piruetas com muito sorriso no rosto. Notei também que um dos vocalis­tas do grupo estava um pouco estressado com o som, bem abafado, que se propaga­va da banda. Mas mesmo assim, eles não deixavam “o samba morrer”. Continuando as minhas andanças e observações, só agora consegui ver as lu­zes da boate “Moeda Eletrônica”, famoso point GLS do bairro, que fica no primeiro andar de um dos prédios dali. Porém, o silêncio ainda tomava conta daquela de ­coração fluorescente em tons de verde e laranja marca­texto, que se destacava da luz negra que também se via da janela. Com o passar das horas, as cenas de consumo de maconha ao ar livre pre­dominavam na área “descolada”, que por sinal, é a mais frequentada da noite. O cheiro da rua começa a ficar ligeiramente desconfortável, e bancar o fumante pas­sivo de maconha não é nem um pouco in­teressante. Fora que tô quase aprendendo a como embalar o entorpecente para ser tragado, de tão explícito que é por aqui. Peço desculpas por tamanha caretice. Minha jornada começa a se encer­rar. Olhando em minha volta, mais uma vez, é incrível como consigo encontrar as mais diversas tribos, os mais diversos gêneros, as mais diversas pessoas. Talvez seja essa a grande característica da Rua da Moeda: um refúgio, onde qualquer pessoa pode ser apenas, você mesmo, explicita­mente, e sem precisar dever “uma moeda” a, absolutamente, ninguém.

crônica

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Casarões abrigam o passado

TEXTO JOSÉ DANIEL FOTOS KÁCIA GUEDES e WANDERLEY ANDRADE

história

Cidades com áreas tombadas são consideradas como pontos de memória de uma região. Mas as mudanças também são realizadas no processo de transformação desses locais. Essas modi-ficações são por motivos vários, seja por uma especulação imobiliária, ou por uma inovação que tenta se adequar aos padrões vigentes, só que é preciso atentar para que não se apague a história desses lugares, por isso há a atuação dos órgãos responsáveis pela preservação de patrimônios.

A Rua da Moeda, no bairro do Recife Antigo, não é diferente. Seus casarões são um registro da primei­ra reforma urbana considerável ocorrida no Recife, no i nício do século XX. Neste período, a arquitetura do bair­ro recebeu predominante influência francesa no formato das ruas, assemelhando­se ao de Paris, na época do Barão Haussmann, na reforma urbana da cidade. De acordo com o professor de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Tomas Lapa, o estilo adotado nos casarões foi o Eclético, que possuía uma mescla de vários estilos como o Neoclássico, o Renascentista, o Clássico e etc. Ainda se­gundo o professor, essas reformas ocorridas trouxeram novas características, “sobrados de cinco ou seis pavi­mentos; outra mudança foi nas telhas que avançavam para pingar água nas calçadas, e passaram a ficar por trás das platibandas, que não deixavam aparecer as telhas; as portas e janelas envidraçadas, substituindo as de madei­ra do tempo colonial”. Portas e janelas envidraçadas substituíram as de madeira do tempo colonial

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Em 1998, o Bairro do Recife foi tombado pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como patrimônio nacional, devido ao reconhecimento de seus exemplares ar­quitetônicos. Por essa razão, é necessário sempre olhar com diligência para o esta­do das antigas casas, e como são condu­zidas as eventuais modificações. O artigo 17, do decreto­lei nº25, de 30 de novembro de 1937, da Justiça Brasileira, determi­na que “as coisas tombadas não poderão ser demolidas ou mutiladas, sem prévia autorização do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, nem re­paradas ou pintadas ou restauradas, sob

pena de multa”. Porém, numa passagem pela Rua da Moeda, percebe­se que algumas casas não têm a conservação devida, por uma reforma feita na fachada ou outras che­gando a ser classificadas como Imóveis de Risco, conforme avaliações do Iphan. Ao proprietário compete zelar pelo patrimô­nio. No entanto, essa atenção não deve se voltar restritamente aos aspectos funcio­nais e de segurança, há também muitos valores subjetivos nesses casarões, pela estética e história que estão ali represen­tados, e por atuarem como ponto de visi­tação de turistas. Não só por estar previs­to em lei, mas também por uma questão

de consciência histórica, a arquitetura e cores dos casarões tombados não podem perder suas características. Cada intervenção feita nessas casas traz consequências mais ou menos signi­ficativas num espaço de interesse públi­co, por isso deve haver um critério para não desfigurar a paisagem, com alguma reforma inadequada. Essas mudanças não devem se restringir apenas ao gosto do proprietário do imóvel, pois elas fazem parte da relação que a cidade possui com sua memória e seus visitantes também, tornando­a integrante de um grande acervo da cultura local e de considerável importância.

história

À esquerda, os graffitis exprimem modernidade junto aos casarões e à direita, alguns estabelecimentos optam por preservar as antigas construções

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TEXTO KÁCIA GUEDES FOTO KÁCIA GUEDES

Não sei se muitas pessoas sabem, mas a Rua da Moeda é denominada de tal forma devido à implementação da Casa da Moeda em sua localidade no início do século XVIII. Há quem conheça bem a história de Pernam-buco na época, a economia do Brasil e etc. Mas o que há em comum entre essas pessoas e os turistas que somente passeiam pelo local histórico? É uma simples pergunta: “Onde era a Casa da Moeda aqui na rua?”

artigo

Um questionamento de fácil com­preensão que se torna complexo pela fal­ta de informações e pelo crescimento das dúvidas sobre seu local. Tudo isso pode­ria ser resolvido com uma placa conten­do informações turísticas. Entretanto, o que se tem é tudo menos esclarecedor. A placa de metal antiga e desgastada, localizada no meio do comprimento da rua, trás o seguinte trecho: “Antiga Casa da Moeda ­ Construída em 1673 e fechada por ordem do governo da metrópole no ano de 1702. Existem controvérsias acer­ca da sua exata localização”. A partir disso surge uma inqui­etação. Uma informação histórica que agrega valor à própria rua e que poderia trazer mais turistas ao local simples­mente não é dita ou não foi preservada pelos governantes. O tempo foi passan­do, o estado mudou de gestão em gestão e ainda não se tem tal dado referente à sede de uma das instituições mais im­portantes para a época.

A Casa da Moeda, empresa públi­ca vinculada ao Ministério da Fazenda, foi inicialmente criada em 1694, em Sal­vador, e tinha como função a fabricação de moedas com o ouro oriundo da mi­neração. Segundo o próprio site da insti­tuição, em 1700 a Casa da Moeda se trans­fere do Rio de Janeiro, para o Recife, na antiga Rua Maria Rodrigues, posterior­mente Rua da Moeda e passou a ocupar o prédio da Antiga Oficina de Recunhagem da capital pernambucana. Dois anos de­pois, ela é extinta do local e transferida novamente para o estado carioca. Já a partir dessas informações existe uma conflito de datas entre o site e a placa exi­bida no Recife Antigo Mas ainda querendo saber onde se localizava tal órgão, conversei com o professor de história Salviano Feito­za e descobri ainda mais. Pernambuco teve duas Casas da Moeda, uma co ns­truída pelos holandeses em Olinda, não atrelada ao governo português e outra

na da Rua da Moeda. De acordo Feitosa, arqueólogos afirmam que o prédio ama­relo hoje abandonado, na esquina da rua próximo ao Porto do Recife seria o local onde abrigou a i ns tituição pelo pouquís­simo tempo de dois anos. Mas há uma ressalva – como sem­pre – não há registros suficientes para a comprovação do local. E para alguns que acham que o Bar Casa da Moeda tem al­guma relação com essa história, saibam que é somente um nome atrativo e ca­racterístico que foi escolhido pelo em­presário do restaurante. Não há nenhum vínculo com a instituição “desapareci­da”, como afirmou o dono do estabele­cimento Kadu Oliveira. E eu volto à estaca zero. Triste por essas e outras tantas informações se per­derem no tempo e no espaço, por não haver a preocupação geral em preservar tal conhecimento. O que me resta é achar essa casa engraçada, como se não tivesse teto, como se não tivesse nada...

Não tinha teto, não tinha nada

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T.A.T.Icodinome da rua

Veio assim....meio que de mansinho. Qual será a dela? Nossa, mas a Moeda tem uma gente bem esquisita...só que era diferente. Um quê de dona-de-casa, porém com roupas, digamos, sofisticadas demais para tal alcunha. Um quê de conversadora, um jeito de falar que demonstrava que ela sabia das coisas da vida. Um carisma que faz todos se grudarem a ela, ou talvez ela grudasse nos outros, com seu discurso entremeado de humor e com direito a reflexões profundas (e repetitivas) sobre a vida, a pós-vida, a ante vida. Seu nome era, as-sim, simples como ela, seu nome era Tati.

Tati já foi parte da Moeda. Nasceu por lá mes­mo, em seu berço de papelão e jornal e se criou em suas travessas, junto com sua mãe e irmãos. “Eram tempos muito difíceis...já passei fome várias vezes, comia só uma vez por dia, essas coisas.” Por ali não existe mui­tas saídas pra se sobreviver...pois quando tudo à volta já parece ter dono, como os carros a serem guardados e todos os bares com seus empregados, a vida a obrigou abandonar a posse de seu próprio corpo. Toda vez que alguém quer saber mais sobre, Tati desconversa. Aliás, desconversar é a melhor habilidade de Tati, talvez por seu carisma enorme, talvez pelas dores, manchas e marcas deixadas por terceiros em sua pele e mãos. Suas mãos, frequentemente agitadas quando ela fala, são levemente envelhecidas e um pouco machucadas. Con­tudo, suas unhas vão estar sempre pintadas e esses tipos de vaidade ela aprendeu com a vida. Ou melhor, com a outra vida. Sobreviver para Tati é exatamente o que a palavra diz: viver além do que é viver. Se ela não tivesse sobrevivido as ruas a teriam engolido certamente.

perfil

TEXTO GABRIEL SHIMODA FOTOS KÁCIA GUEDES

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Além de vender o próprio cor­po, nas ruas também é possível vender subs tâncias que dopam o corpo, e isso Tati quase não admite nem pros outros nem pra ela mesma que fez, mas fez. Seu des trambelhamento misturado com seu ordenamento lógico­filosófico a denuncia de forma moderada. “Opa, nãão, isso daí é perigoso, não faço isso não. Olhe meu filho, nunca entre nesse mundo...só vai te trazer tristeza e vai te desviar do caminho. Aí você vai ficar que nem Tati”. E por mais que motivos estranhos a impeçam de completar cem por cento suas ideias, Tati fala com a experiência e sapiência de quem viveu muito mais do que viveu. Nunca preci­sou de escola pra saber de nada, nunca precisou de criaturas quadradas para ensiná­la a ser boa ou má. Ela aprendeu tudo na base do empirismo, e percebeu

perfil

que ser carismática, falante e amigável só trouxe boas coisas até agora. “Veja você, esse sorriso. Esse sorriso, abre portas. É como se todo o carnaval es­tivesse aí nele, você cativa a todos com esses dentes arreganhados aí, olha praí. É como se fosse uma luz que ilumina o seu rosto e a todos pra quem você sorri.” Tati tem sorriso metálico. Me­diante sua observação, Tati intuiu que sorrisos realmente facilitam as opor­tunidades, e foi logo cuidar do seu. Quem diria, ela que, em um mundo de jornais e chão frio, nem sabia que me­tal se punha nos dentes. O metal que co­nhecia era pra ser revendido em algum lugar por aí, numa tal “reciclage”. E já que a rua, por muito tempo, foi seu ha­bitat, ela se acostumou a todo instante olhar pro chão e pros lados pra saber se há alguma coisa que ela possa catar. Ao

mesmo tempo em que esquadrinha as pessoas com o olhar e chama a atenção para as coisas que elas estão vestindo. A Rua a ensinou ter os olhos mais aten­tos que a própria Rua. E as próprias ruas. E assim como a rua a recebeu, Tati aprendeu a ser hospitaleira. “Pode chegar lá em casa. Se tô precisando de um banho, se tô querendo passar um tempo, se tô com fome, o que eu faço? Vou lá pra casa de Tati. Lá eu vou encher minha barriguinha, ficar cheirosinho, ter uma caminha limpa pra dormir, é sempre bom né? Pois eu convido todos vocês a irem lá, pode aparecer por lá!”. E lá vai Tati com seu espartilho aperta­do, preto, brilhante. Suas sandálias de salto alto e sua sacola de compras. Tati é a rua que ela mesma pisa.

Tati é a rua.

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A moeda vale dois reais

Repletas de mesas e cadeiras durante a noi-te, as largas calçadas da Rua da Moeda se esvaziam durante o dia, quando os bares e restaurantes recolhem sua mobília. Com o dia claro, o que enche mesmo é a própria via, que fica tomada de carros e se trans-forma num grande estacionamento aber-to.

Via de mão única (sentido Rua Madre de Deus/Avenida Alfredo Lisboa) localizada entre as parale­las Rua Tomazina e Travessa Tuyuti, no Bairro do Recife, a Moeda comporta cerca de 30 automóveis ao mesmo tempo em toda sua extensão. O logradou­ro, assim como as ruas que lhe são perpendiculares (Rua Mariz e Barros e Rua da Assembleia) e outras localidades da zona central do Recife, está entre as áreas onde o sistema de Estacionamento Rotativo Zona Azul atua. Nas placas de sinalização presentes na Rua da Moeda, é possível ler os horários de funcionamento da Zona Azul em dias úteis (8h às 18h) e nos sába­dos (8h às 12h) e o tempo de permanência máxima no estacionamento, que, ali, é de cinco horas, além de alertar o uso obrigatório do cartão. O cartão, na verdade, é uma folha de papel preenchido como as raspadinhas, na qual os campos que indicam dia, mês e horário são raspados e o campo referente à placa do veículo é preenchido a caneta. Um talão com 10 folhas pode ser adquirido em postos de ven­da autorizados no valor de um real por folha.

TEXTO CLÁUDIA FERREIRA FOTOS KÁCIA GUEDES e WANDERLEY ANDRADE

reportagem

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Os usuários normalmente tra­balham ou têm outras atividades, diárias ou eventuais, na Moeda ou nas proxi­midades. O controle do uso do estaciona­mento pelo talão é o trabalho de pessoas como José Carlos Trajano, de 55 anos, credenciado pela Zona Azul desde 2005. Fazendo questão de exibir sua cre­dencial, o autônomo conta a dinâmica de trabalho de um fiscal do estacionamento rotativo. “Eu compro o talão por 10 reais e cobro dois por cada folha. Eu só deixo a pessoa estacionar em local permitido”, alega José Carlos, deixando claro que trabalha de maneira honesta. No entan­to, alguns de seus colegas de trabalho chegam a cobrar quatro, até cinco reais para permitir que os usuários estacio­nem em local proibido. “Agorinha mes­mo rebocaram o carro de uma advogada, até conheço ela, trabalha ali na Folha [de

Pernambuco, cuja sede se situa no Recife Antigo], porque tava estacionado no can­teiro central”, esclarece. Apesar de não concordar com essa conduta, José Carlos afirma que são todos seus amigos, tan­to os credenciados, como ele, quanto os clandestinos, popularmente conhecidos como flanelinhas. “Conheço tudinho, é tudo chegado”, reconhece o fiscal sem por em questão a ética dos colegas. O trabalho é tranquilo, mas o profissional não deixa de passar por al­guns aborrecimentos. Uma vez, uma usuária do estacionamento tentou in­timidá­lo. Ele conta que, insatisfeita com o valor que tinha pagar para estacionar, uma senhora, que assegurou ser delega­da, levantou um pouco a roupa para os­tentar as algemas e um revolver. “Eu disse a ela: ‘tá pensando que eu tenho medo, é? A senhora é uma doida, uma maluca!”,

disse, esbanjando coragem. Ele relata que a suposta delega­da lhe perguntou se ele bebia, fumava e usava drogas ilícitas. “Eu disse a ela que drogado era o pai dela”, lembra, dando risadas. José Carlos confessa que gosta, sim, de “tomar uma cachacinha”, mas se sente ofendido quando lhe perguntam se é usuário de drogas, principalmente se põem sua honestidade à prova. “Eu só co­loco um real a mais na folha porque esse é meu sustento e vem o povo me dizer que eu tô extorcando”, esbraveja o autôno­mo diante de eventuais acusações de ex­torsão. Com um faturamento que varia entre 30 e 40 reais por dia, ele brinca que deveria mesmo começar a extorquir, como muitos fazem. “Mas eu acabo co­nhecendo muito gente boa e termina o trabalho valendo a pena”, encerra.

reportagem

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“Uma educação pela pedra: por lições; para aprender da pe-dra, frequentá-la; captar sua voz inenfática, impessoal (pela de dicção ela começa as aulas)”. Neste trecho do po-ema A educação pela pedra, datado de 1966 e escrito pelo recifense, João Cabral de Melo Neto, poderia ser prevista naquela época uma das características mais singulares da Rua da Moeda: o fato de falar sem ser falado. Sem arrodei-os, as peças da rua se encaixam como num quebra-cabeça.

Muros falantes exalam ideias

TEXTO TAMÍZ FREITAS FOTOS KÁCIA GUEDES e TAMÍZ FREITAS

reportagem

As expressões estão ao longo de toda a extensão da rua, basta dedicar alguns segundos para descobri­las e apreciar cada “recado” dado por meio delas. Há escri­tos em postes, num deles, a frase escolhida foi: “Cadê o amar?” Há rostos estampados nas bolas de concreto que decoram a rua, indicando carinhas tristes ou felizes. Além disso, há também o espaço pa ra a manifestação do pensamento político. Um deles diz: “Toda riqueza é

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reportagem

oriunda da exploração”. Há ainda um desenho bastante representativo do ex­ Beatle, Paul McCartney. A riqueza de cores e traços dife­renciados são o destaque e certamente, o que mais marca a Rua, são os graffitis. De todos os tipos, formas e tamanhos, esta modalidade de arte se espalha no lugar, embora esteja mais concentrado num dos quarteirões, entre as ruas Mariz e Barros e a da Assembléia. Segundo a antropóloga e pesqui­sadora do assunto, Nicole Costa, neste trecho há características diversas explo­radas pelos artistas, como a conexão com a xilogravura (técnica de gravura em ma­deira), o estêncil e até mesmo com for­mas orgânicas, que remetem à natureza em sua formação. A antropóloga destaca esse valor que a Rua da Moeda tem de unir esses artistas. “Naquele espaço ali, a gen­te pode ver uma breve história do graffiti pernambucano, do graffiti e da pichação pernambucana, por um lado e por outro lado, é um ponto de encontro geral”, ar­gumenta. Além disso, ela lembra facilmente de outros pontos da região com carac­terísticas semelhantes e justifica tal in­

cidência: “porque o Recife Antigo é o cen­tro, é o coração simbólico, é um marco geográfico da cidade”. Os estilos, desenhos e formas são bastante variados numa mesma pare­de. Alguns dos artistas que “ocuparam” o espaço em branco foram Arbus, Galo, Derlon e Gust. Todos com características e referências bastante particulares. Há por exemplo, artistas que gostam de tra­balhar mais com letras, como é o caso do que assina como Gust. Dois dos graffitis presentes no local possuem uma marca em comum, são duas garotas retratadas de cabeça para baixo. Provavelmente, há também um sentido no fato de estarem nesta posição. O artista conhecido como Cajú fala que é a partir do graffiti que consegue se comunicar com a população e também ressalta a Rua da Moeda como um local muito representativo do movimento cul­tural, desde os anos 90. Dentro da sua arte, ele diz preferir trabalhar com repre­sentação de pessoas e cores e estes perso­nagens são tanto anônimos, mas também celebridades. Sobre a diferença sempre revisitada entre o graffiti e o piche, ele afir­ma: “o graffiti é uma evolução do piche”,

mas logo trata de dizer que apesar de ter incorporado o novo tipo de arte, não abandonou a pichação, mesmo que não faça com a mesma frequência de anterior­mente. “A pichação é importante porque quando estão pichando é porque o povo está se manifestando né, se não tem piche na rua é porque o povo tá calado e o povo calado não é coisa boa”, argumenta. Na Rua da Moeda, há um graffiti recente dele, que retrata um garoto que mora no Alto da Sé, em Olinda, e se cha­ma Chico. As cores em “Chico”, ressaltan­do o seu sorriso e o seu olhar, rendem mais uma lição. Em mais um dos trechos do poema de João Cabral de Melo Neto, se aprende tudo isso: “A lição de moral, sua resistência fria. Ao que flui e a fluir, a ser maleada; A de poética, sua carnadura concreta; A de economia, seu adensar­se compacta: Lições da pedra (de fora para dentro, Cartilha não muda), para quem sabe soletrá­la”. Chico, que poderia ser Pedro ou Gustavo, a partir de sua reali­dade, jorra significado a todo o momen­to, saindo como água de uma cachoeira e se juntando ao curso do rio, neste caso, a “Rua da Moeda”, tão rica no quesito cul­tural.

Nem as famosas bolas de cimento escaparamA representação da simplicidade na meninada simples, sob o nome de Chico

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reportagem

Um dos graffitis que mais chamam atenção na Rua da Moeda, que se destaca pelas cores fortes e pelo efeito de 3D

Os desenhos acima remetem às capas da literatura de Cordel, forte elemento da cultura de nosso estado

A criatividade de formas e cruzamento de palavras é elemento fun-damental do graffiti presente na rua

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Via que anseia por culturaTEXTO HOULDINE NASCIMENTO FOTOS KÁCIA GUEDES e TAMÍZ FREITAS

reportagem

Conhecida pela grande efervescência cultural, a Rua da Moeda é povoada por vários ateliês e galerias. O local é um dos mais frequentados no bairro do Re-cife, área central da capital pernambucana. A rua também costuma receber várias manifestações artísticas todo ano. Tudo isso é facilmente notado desde a estátua que homenageia Chico Science, grande líder do movimento Mangue Beat, até as lojas que estão sempre a oferecer algum objeto com valor cultural.

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As esculturas de Suely Brasileiro e a galeria Traços do Brasil

A Vênus exibida na Arte Plural em destaque

reportagem

Via que anseia por cultura

A Arte Plural Galeria é um dos espaços relacionados à cultura. Fundada em maio de 2005 por Fer­nando Neves e Luciana Carvalho, a galeria está entre as mais famosas do Recife Antigo por realizar ex­posições de artes visuais, além de venda de obras. Tereza Menezes gerencia o ambiente desde 2009. Ela explica que o espaço surgiu buscando promover a discussão sobre arte, sem se preocupar com o conceito de galeria. “A ideia inicial era de um espaço múltiplo, voltado para as artes. Depois, fomos profis­sionalizando mais ao contratar curadores. Fizemos parcerias com artistas importantes da época, além de acelerar a parte comercial.” Ela destaca alguns pontos fundamen­tais para a galeria se instalar na Rua da Moeda. “Viemos para cá porque é uma parte histórica da cidade e o bairro estava ca rente de um espaço tão bom quanto o nosso.” Apesar de a Arte Plural apos tar no bairro, Tereza relata que existe uma insatisfação quan­to às ações do poder público, como a manutenção da rua e a falta de informação sobre os eventos pro­movidos. “A prefeitura devia inter­vir mais. A Secretaria de Cultura avisa aos empresários de última hora sobre qualquer evento. Nós acreditamos no bairro, tanto que estamos aqui desde 2005. Eu fico triste com todas as gestões que passaram até o momento”, comen­ta Tereza Menezes. Reclamação semelhante faz o casal Ricardo e Suely Brasileiro, que administram a galeria Traços do Brasil. “A Rua tem uma vocação turística muito interessante, mas o que falta é uma organização do governo, que deixa bastante a dese­

jar”, declara Suely. Há dois anos, a loja tinha sede no Paço Alfândega, shopping próximo à Rua da Moe­da. No entanto, Suely diz que resolveu se transferir para a Rua da Moeda pelo potencial do lugar. “Com a minha visão, que não é a mesma dos governantes, enxer­guei uma qualidade na rua e saí de lá. Estou bem instalada”, afirma. Nem só de arte formal vive a Rua da Moeda. Eventos como a Re­citata ­ festival de poesia ­ e a Terça do Vinil movimentam o lugar. No entanto, manifestações desse tipo parecem incomodar o casal. “Quem quer manter a arte aqui e quem frequenta os ateliês não tem interesse em coisas desse tipo”, diz Suely. Ricardo vai além: “Só a ga­lera da fumaça”. Para ele, a Rua da Moeda perdeu o foco de arte. “Hoje há mais restaurantes e bares”, pon­tua. Entre os anos de 2009 e 2011, a Rua sediou a Freeporto – Festa Literária do Recife, paródia aos for­matos de eventos literários. A Free­porto foi criada pelos escritores Wellington de Melo, Artur Rogério e Bruno Piffardini, que compõem o grupo Urros Masculinos. Na fes­ta, aconteciam atividades como “lançamento de livro”, com cada autor arremessando sua obra, ven­cendo o que fez o melhor arremes­so, e “off­sinas” que não eram exa ­tamente oficinas convencionais. Melo explica o objetivo da Festa. “Nossa ideia era plantar uma semente, indicar que todo mundo podia fazer eventos literários”. No entanto, o fim da Freeporto estava programado para 2011 para que os organizadores pudessem se dedi­car a projetos individuais.

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Quem quiser pode chegarTEXTO TAMÍZ FREITAS FOTOS KÁCIA GUEDES e TAMÍZ FREITAS

Três quarteirões e diversas histórias. É essa a bagagem da Rua da Moeda, localizada no Bairro do Recife Antigo. Conhecida pela boemia das noites na parte antiga da capital pernambucana, esta rua consegue acolher dife-rentes ritmos e pessoas. Do dia para a noite, ela se transforma, mas as mudanças ocorrem também a cada turno. Nada nunca é igual naquele lugar, mesmo diante da vida cotidiana.

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A Rua da Moeda fica próxima a al­guns empresariais e vários profissio nais circulam nela diariamente, mesmo que só de passagem para o seu trabalho, para fazerem um rápido lanche ou almoço ou ainda participarem de um mini happy hour nos intervalos dos expedientes. Nesse sentido, percebe­se nas pessoas que circulam na via por esses motivos, a experiência de viver na modernidade, com a sensação de nostalgia, neste ambi­

ente tão rico de histórias. O restaurante Villa Vecchia, por exemplo, conta com um imóvel de construção datada há mais de 300 anos. É por esta dinâmica que o comér­cio da região é adequado, proporcio­nando esses momentos mais íntimos com a Rua, ainda que na correria do dia a dia. Timm Mendes, dono da padaria Brotfabrik (do alemão, “Fábrica de pão”), conta que o público­alvo do seu estabe­

lecimento é amplo, mas reconhece que a maioria dos clientes provém de empre­sas próximas, como as que estão loca­lizadas no Porto Digital. A padaria abre inclusive no carnaval, período em que, segundo Timm, há maior diversidade de público. Sobre a inspiração de montar sua padaria lá, ele justifica: “o Bairro do Recife porque é o mais simpático, que tem menos prédios e sempre achei boni­tinho”.

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A Rua é realmente um espaço aco­lhedor, que consegue abrigar pessoas de todas as idades, estilos e origens. Emba­lado pela música ao vivo do bar Sushi Di­gital, o turco Devid Karataş se encontrava no local para aproveitar sua noite de folga, em pleno sábado. Ele estava na cidade de passagem, pois o navio em que trabalha situava­se no Porto do Recife. Perguntado sobre o que lhe atraía no local, ele foi cla­ro: “porque essa rua é histórica e um óti­mo lugar que todos os dias toca a música brasileira”. E ele não parou com os elogios: “boas pessoas, ótima vista”. No que se refere à música, perce­be­se o encontro (mais uma vez) de di­ferentes estilos, pois no mesmo momento em que a música Valerie – imortalizada na voz de Amy Winehouse – animava os pre­sentes no barzinho em que Devid se en­contrava, no outro quarteirão uma reali­dade distinta tomava forma. Pois bem, no

Just Kone – outro bar da região – a música da vez era Tribalistas, da banda homôni­ma. E a recepção nos dois locais também chamou a atenção. Na primeira esquina, ao som de Amy, ouviam­se gritinhos animados além de palmas e gargalhadas desenfreadas. A poucos metros, aqueles que se divertiam ao som dos Tribalistas, eram mais reser­vados. Todos em busca da diversão que a “Moeda” oferece, de um jeito ou de outro. Talvez as multifaces dessa rua sejam as principais responsáveis por atrair turistas como Devid. E se a rua é assim tão especial para os “de fora”, não é diferente para os nati­vos. Há aqueles que reservam um espaço de tempo para dar uma passada no lugar. O casal de namorados Stephanie Costa e Jeferson Dantas, que frequentam a rua há cerca de cinco anos, aproveitaram uma folga numa tarde de quinta­feira e

relembraram momentos vividos no lugar e o sentimento que possuem em relação à rua. “A nossa história começou pratica­mente aqui, em frente ao Paço Alfânde­ga”, recorda Stephanie. As histórias não param por aí e talvez não haja um motivo apenas que justifique a relação de afeto entre pessoas e a Rua da Moeda. O fato é que no carna­val ou não, aquelas que passam no local certamente têm alguma coisa a dizer so­bre a via. Ou mesmo que não digam, pelo menos sentem algo como já havia sido elucidado por Caetano Veloso na música Sampa: “Alguma coisa acontece no meu coração, que só quando cruza a Ipiranga e a Avenida São João (...)”. A Rua da Moeda compara­se a uma ponte, que na definição mais simples do termo se refere à conexão entre coisas. Neste caso também a pessoas, histórias, momentos.

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Moradores de cidades diferentes, o casal de namorados Stephanie Costa e Jefferson Dantas enxergam a Moeda como um ótimo local de encontro

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mural

“É uma rua tradicional, que eu fre-quento mais no carnaval, já que é um polo cultural” Andréa Sampaio, engenheira.

“Eu acho a Rua da Moeda uma ‘São Paulo’ no Recife e São Paulo, para mim, em cada esquina você tem a chance de fazer uma coisa completamente diferente” Francielle Fernandes, estudante.

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mural

“Acho a Rua da Moeda massa, mas assim como toda essa parte do Recife Antigo, precisa de uma restauração, de um projeto legal que venha revitalizar” Bárbara Cavalcanti, estudante.

“Eu conheço essa Rua desde quando era zona, quando era só de mulher prostituta e aqui eu sou localizado pela cultura popular” José Carlos da Silva, vendedor de Cordel.

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TEXTO CLARISSA VIANA FOTO KÁCIA GUEDES

posfácio

A rua é um meio de reconheci-mento do ser humano. Ao mesmo tempo ela é caminho e existên-cia. Essa relação é muito nítida quando se trata da Rua da Moe-da. Ela é ponto de encontro de almoço, é história, é afeto.

Um grupo de amigos se reúne sempre que pode na Moeda. O obje­tivo deles é diferente para aquela rua especificamente. Eles estão ali para co­nhecer pessoas, para fazer amizades, para conversar sobre artes e filosofia. Muito provavelmente a ligação desses jovens com as ruas da cidade é apenas de passagem. Foi na Rua da Moeda que eles estabeleceram uma ligação. Definir afetividade sempre foi um ‘problema’ para o ser humano. Definir o que é inerente ao ser e a relação com as coi­sas que o rodeia é sempre muito com­plicado. A Moeda encanta seus fre­quentadores por sua diversidade. Não aquela hipócrita diversidade comum nos ambientes urbanos que julgam e condenam qualquer demonstração de afeto entre pessoas do mesmo sexo. Essa afetividade é diferente na Rua da Moeda. A sensação de poder ser quem você é e demonstrar carinho é encara­da como deveria ser sempre: como afe­to e não como pecado. As pessoas bus­cam ali um refúgio para as angústias do dia­a­dia. Suas frustrações naquele ambiente parecem ser minimizadas, pois a sensação ali é de completude.

Talvez pelo clima favorável, talvez por uma identificação real com a rua. Como se a ligação estabelecida ali fosse igual ou diferente à estabele­cida em casa. Igual, pois para muitos, a experiência em casa é positiva. Di­ferente, pois para outros a repressão afetiva é evidenciada na própria casa. A Moeda é ao mesmo tempo aproximação e rejeição. Aproxima pessoas, faz amigos, promove um ambiente de total descontração. Lá, as pessoas não se incomodam em ob­servar as outras, em julgar comporta­mentos. Elas estão ali para estender suas relações. O outro lado é evidenciado também na Rua da Moeda. Algumas pessoas não se sentem confortáveis em frequentá­la, acham ela esquisita e perigosa. Nem tudo na Moeda são flores. Ela é encontro de diversas ‘tri­bos’ e algumas pessoas sentem que o ambiente é propício para usar alu­cinógenos, o que gera medo. Como todas as relações, o limi­ar entre o amor e o ódio é evidente. Há quem ame e há quem odeie. Há rique­za cultural e pobreza social. Há o po­bre e o rico. O flanelinha e o homem de terno. Todos eles em um mesmo lugar. Convivendo pacificamente e sem estranhamento. Uns com maior proximidade da Moeda e outros com menos, mas mesmo assim, reco­nhecendo­se ali.

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expediente

OrientadorThiago Soares

Editoras-chefesKácia GuedesTamíz Freitas

FotografiaKácia Guedes Tamíz Freitas Wanderley Andrade

RepórteresClarissa VianaCláudia FerreiraGabriel Shimoda Houldine NascimentoJosé Daniel Kácia Guedes Robson GomesTamíz Freitas

Projeto gráficoThiago Moreira

DiagramaçãoGabriel ShimodaWanderley Andrade

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