22
Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 4 | n. 8 | jul./dez. 2002. 137 AUDIÊNCIA PÚBLICA COMO DIREITO DE PARTICIPAÇÃO Maria Goretti Dal Bosco 1 INTRODUÇÃO O cidadão não é apenas mais um mero espectador das realizações do poder público. Além de ser alguém que exerce direitos, cumpre deveres ou goza de liberdades em relação ao Estado, ele é também o titular, mesmo que de forma parcial, de uma função ou de um poder público. 2 O direito de participação do administrado no Brasil ainda encontra inúmeras barreiras para sua implementação efetiva pela estrutura administrativa brasileira, situação que igualmente ocorre em alguns países desenvolvidos, como a Espanha, mas que se agrava ainda mais quando se trata da América Latina, onde as leis falam de participação, mas a prática política as desmente. As barreiras no Brasil são primeiramente de natureza cultural, já que o modelo político que adotamos, chamado de democracia, encontra-se ainda em fase de aperfeiçoamento, motivada esta situação, em muito, pelo longo período de ditadura militar que tomou conta do País. O presente trabalho busca abordar as principais questões relacionadas ao direito de participação no Brasil, dando ênfase às audiências públicas, instrumento presente na legislação já há algum tempo, principalmente depois da promulgação da Constituição de 1988, mas de fraca utilização pela administração pública. A incursão se dá à doutrina nacional, seguindo-se uma avaliação do tema na doutrina e legislação de países estrangeiros, esta motivada pela ainda restrita bibliografia pátria específica acerca do tema, em especial as audiências públicas que parece interessar pouco aos estudiosos brasileiros, os quais dedicam apenas algumas linhas ao assunto em suas obras. 1 Advogada, professora do curso de Direito da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul – UEMS, e da UNIGRAN, em Dourados-MS, Mestre em Direito pela UNESP-SP e doutoranda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. 2 BENEVIDES, Maria Victória de Mesquita. Cidadania e democracia. Lua Nova – Revista de Cultura e Política. São Paulo: Centro de Estudos de Cultura Contemporânea, 1994, n o . 32, p. 9.

AUDIÊNCIA PÚBLICA COMO DIREITO DE PARTICIPAÇÃO · A participação envolve a discussão da legitimidade do poder do Estado. Por isso, o trabalho aborda o conceito de legitimidade

Embed Size (px)

Citation preview

Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 4 | n. 8 | jul./dez. 2002. 137

AUDIÊNCIA PÚBLICA COMO DIREITO DEPARTICIPAÇÃO

Maria Goretti Dal Bosco1

INTRODUÇÃO

O cidadão não é apenas mais um mero espectador das realizações dopoder público. Além de ser alguém que exerce direitos, cumpre deveresou goza de liberdades em relação ao Estado, ele é também o titular, mesmoque de forma parcial, de uma função ou de um poder público.2

O direito de participação do administrado no Brasil ainda encontrainúmeras barreiras para sua implementação efetiva pela estruturaadministrativa brasileira, situação que igualmente ocorre em alguns paísesdesenvolvidos, como a Espanha, mas que se agrava ainda mais quando setrata da América Latina, onde as leis falam de participação, mas a práticapolítica as desmente.

As barreiras no Brasil são primeiramente de natureza cultural, já que omodelo político que adotamos, chamado de democracia, encontra-se aindaem fase de aperfeiçoamento, motivada esta situação, em muito, pelo longoperíodo de ditadura militar que tomou conta do País. O presente trabalhobusca abordar as principais questões relacionadas ao direito de participaçãono Brasil, dando ênfase às audiências públicas, instrumento presente nalegislação já há algum tempo, principalmente depois da promulgação daConstituição de 1988, mas de fraca utilização pela administração pública.

A incursão se dá à doutrina nacional, seguindo-se uma avaliação dotema na doutrina e legislação de países estrangeiros, esta motivada pelaainda restrita bibliografia pátria específica acerca do tema, em especial asaudiências públicas que parece interessar pouco aos estudiosos brasileiros,os quais dedicam apenas algumas linhas ao assunto em suas obras.

1 Advogada, professora do curso de Direito da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul – UEMS, e daUNIGRAN, em Dourados-MS, Mestre em Direito pela UNESP-SP e doutoranda em Direito pela UniversidadeFederal de Santa Catarina – UFSC.2 BENEVIDES, Maria Victória de Mesquita. Cidadania e democracia. Lua Nova – Revista de Culturae Política. São Paulo: Centro de Estudos de Cultura Contemporânea, 1994, no. 32, p. 9.

Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 4 | n. 8| jul./dez. 2002.138

A participação envolve a discussão da legitimidade do poder do Estado.Por isso, o trabalho aborda o conceito de legitimidade e seu confrontocom a legalidade, a discricionariedade e as políticas públicas cuja decisãoe execução competem ao Estado, através da Administração. Isto porquesão nestas definições, ao que parecem indicar as circunstâncias, queocorrem as limitações ao direito de participação da coletividade, o queimplica em administrações ineficientes e, em muitos casos, até imorais.

Aborda-se, ainda, a participação política enquanto direito de quartageração, ao lado dos direitos individuais, considerados de primeira geração;os direitos sociais, de segunda geração, e os direitos da fraternidade, deterceira geração. Passa-se, também, pela visão da participação políticacomo um dos direitos consagrados na Declaração dos Direitos Humanos,avaliando-se, por fim, as formas de participação, seus instrumentos e,entre eles, a audiência pública, prática das mais inovadoras no sistemajurídico administrativo brasileiro.

LEGITIMIDADE DO PODER

A questão da participação da sociedade nas ações do poder públicoestá ligada à legitimidade deste mesmo poder. O professor DiogoFigueiredo Moreira Neto, ao abordar o tema, toma a legitimidade comoreferencial político, sendo um dos três referenciais éticos do poder, juntocom a licitude (referencial moral) e a legalidade (referencial jurídico).3

Assim, a licitude é o resultado de um juízo de valor cujo lastro são osparadigmas fundamentais de comportamento, produzidos no processohistórico-cultural do desenvolvimento de um grupo social e situa-se nocampo da Moral; A legalidade, diz o professor, é o referencial ético mais estritodas sociedades superiormente desenvolvidas, pois necessita de uma sedimentaçãoinstitucionalizada da vontade social em forma de normas jurídicas. Está relacionadaao Direito como um conjunto de leis de uma sociedade juspoliticamente organizada;a legitimidade aparece na aceitação consensual pela sociedade, de umcomportamento, de uma decisão ou de uma idéia que, direta ou indiretamente, digarespeito à direção do grupo.4

3 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Teoria do poder – parte I. São Paulo: Revista dos Tribunais,1992, p. 221, destaques do original.4 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Teoria do Poder. Op. cit., p. 224-226 e 229, destaques dooriginal.

Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 4 | n. 8 | jul./dez. 2002. 139

A legitimidade, portanto, é caracterizada pelos interesses do grupo,aquilo que a sociedade almeja do poder. Ela é a base do poder político.

O autor ainda lembra que é muito difícil estabelecer uma legitimidadede grande abrangência em países com grandes desigualdades econômicase educacionais; ele considera a atribuição de poder um problema delicado,pois implica em definir a medida legítima de poder que cabe aos indivíduos,às instituições, aos grupos, à sociedade como um todo e ao Estado: éuma das definições cruciais das constituições dos Estados, ao lado dadestinação de poder, ou seja, a escolha dos grandes objetivos sociaisque devem ser buscados pelo poder estatal. Essa destinação, ou resultadodo exercício do poder em relação aos anseios e aspirações da coletividadeé chamada de legitimidade finalística ou teleológica.

LEGITIMIDADE E LEGALIDADE

A legalidade contraposta à legitimidade indica que a norma jurídica,que é o referencial para apreciação ética do poder, deve cristalizar valoresvigentes na sociedade. Diogo Moreira Neto ensina que a legalidade possuifenômenos característicos: concentração, atribuição, destinação,exercício, contenção e detenção do poder; na concentração,estabelecem-se os limites e impedimentos ao processo de aglutinação dopoder; na atribuição, a ordem jurídica discrimina o poder reservado aosindivíduos, às instituições e grupos e o que é deferido ao Estado; nofenômeno do exercício encontra-se a legalidade em sentido estrito, quandoo poder está balizado juridicamente sob aspectos orgânicos e funcionais;a contenção do poder se estabelece pelas técnicas de limitação e decontrole, através de instrumentos legais para assegurar o Estado de Direito;a detenção, fenômeno que mais importa neste estudo, implica em que amanutenção do poder será legal sempre que o acesso e a manutenção decargos e funções se dêem de acordo com a previsão da norma legal.

É aqui que ganham importância os mecanismos jurídicos de participação,através dos quais ocorre a compatibilização entre a detenção legítima dopoder (consenso) e a detenção legal do poder (título).5 E um sistemajuspolítico vale enquanto tenha eficiência em todos os fenômenos da

5 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Teoria do Poder. Op. cit., p. 231-233.

Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 4 | n. 8| jul./dez. 2002.140

legalidade. Norberto Bobbio aperfeiçoa um conceito de Max Webber sobrea ordem legítima no qual destaca o papel do consenso como técnicasocial imprescindível à dinâmica política (a legitimidade) para objetivarse numa dinâmica jurídica (a legalidade), possibilitando o equilíbrio,evitando o clima de tensão e garantindo o respeito e o ajustamento dosvalores que correspondem, no sentimento coletivo, à aspiração de justiça.6 A conclusão desse raciocínio é a de que sistemas juspolíticos de altoconsenso têm maior legitimidade e baixo nível de coerção, enquanto que,os de baixo consenso têm maior legalidade, mas necessitam de alto nívelde coerção para funcionar.

DISCRICIONARIEDADE E LEGITIMIDADE

Para o professor Diogo Moreira Neto, a discricionariedade não se resumea um fenômeno restrito da atuação do Estado administrador, mas tambémenquanto legislador ou juiz, sendo muito mais uma técnica de integraçãojurídica que transcende ao Direito Administrativo e interessa a todo oDireito Público.7 Afirma o autor que, em sentido restrito, adiscricionariedade é a possibilidade jurídica outorgada pelo legislador aoadministrador para integrar a definição do interesse público específico,previsto na norma legal; e sua função é integrar um ato abstrato no queseja necessário, em termos de interesse público, para que possa serexecutado. Assim, a discricionariedade pode ser conceituada como:

[..]. a qualidade da competência cometida por lei à AdministraçãoPública para definir, abstrata ou concretamente, o resíduo delegitimidade necessário para integrar a definição de elementosessenciais à prática de atos de execução voltados ao atendimento deum interesse público específico.

A discricionariedade, portanto, envolve o poder discricionário, comomodo de atuar do poder do Estado; atividade discricionária, enquantofunção estatal, ou expressão dinâmica do poder; e ato discricionário,que é o resultado qualificado do exercício da função estatal. O nascimentodo dever da boa administração deu origem às modernas teorias sobrediscricionariedade. E a discricionariedade existe para que a Administração

6 Apud MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Legitimidade e discricionariedade. 4. ed. Rio deJaneiro: Forense, 2001, p. 7-8, destaque do original.7 In Legitimidade e discricionariedade. Op. cit., p. 31.

Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 4 | n. 8 | jul./dez. 2002. 141

seja concretamente boa, toda vez que a legislação não puder definirpreviamente, senão em abstrato, o que seja o bom atendimento do interessepublico.8

CRISE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS

A definição das políticas públicas no País transformou-se num exercíciode ineficiência. Os mecanismos que cercam estas definições – LeiOrçamentária e Lei de Diretrizes Orçamentárias, além dos planosplurianuais de investimentos – não têm sido capazes de ajustar-se aosrecursos financeiros do orçamento público e nem de atender às necessidadesbásicas da população. Basta observar o direcionamento dos recursospúblicos nos diversos níveis de governo para perceber que a escolha dasáreas para investimentos, em sua maioria, deixa de fora questões cruciaisque afligem a sociedade, como a saúde precária, a violência, o transportepúblico, entre outras.

O tema foi objeto de discussão recente em seminário educativo apoiadopelo jornal Folha de São Paulo e que resultou na edição da Segunda Carta deSão Paulo, documento contendo as principais conclusões do encontroapresentadas pelos expoentes da administração pública no Brasil, incluindopersonalidades da organização governamental federal.

O tema participação popular na definição de políticas públicas,curiosamente, não fez parte das discussões do encontro, que definiu comoimportante, neste aspecto, a atuação da imprensa, segundo consta dodocumento final, nestes termos: 9

A Imprensa desempenha relevante papel no desenvolvimento doPaís e nas políticas públicas, desde que tenha a garantia de suaindispensável liberdade de expressão, que não pode ser restringidasob qualquer pretexto. Esse equilíbrio repousa na pluralidade dosveículos de difusão noticiosa, garantindo-se aos seus usuários a opçãodentre diferentes versões dos acontecimentos, e na responsabilidadedas fontes informativas, que devem atuar sem mordaças, conscientes

8 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Legitimidade e discricionariedade. Op. cit., p. 36-42,destaques do original.9 Segunda Carta de São Paulo, documento final do seminário A crise das políticas Públicas. Instituto Metropolitanode Altos Estudos para o Desenvolvimento das Pesquisas – Uni-FMU/Folha de São Paulo, março/2002,veiculada em encarte do jornal FOLHA DE SÃO PAULO. 28.04.2002, negrito do original.

Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 4 | n. 8| jul./dez. 2002.142

do dever de respeitar a privacidade e a intimidade dos indivíduosque protagonizam as notícias.

A crise parecer ser mesmo de competência, de ausência de vontadepolítica, ambas nascidas na falta de participação da sociedade, de exigênciade seus direitos aos serviços públicos básicos, contemplados naConstituição Federal.

DIREITO DE PARTICIPAÇÃO

DEMOCRACIA COMO NOVO DIREITO

Modernamente, a democracia deve ser considerada mais como umdireito do que uma forma de governo. Um direito novo, de quarta geração.A tese é do professor Paulo Bonavides10 , para quem os direitos individuaisseriam os de primeira geração, os direitos sociais, de segunda e os direitosda fraternidade, de terceira geração. E acrescenta: os direitos humanos deprimeira geração pertencem ao indivíduo, os de segunda, ao grupo, os daterceira, à comunidade e os de quarta geração, ao gênero humano. Os trêsprimeiros são direitos de defesa e os três últimos, de participação, conformea clássica teoria alemã.

Assim, tanto quanto o desenvolvimento - considerado direito de terceirageração – a democracia é direito do povo – diz o autor – se converte empretensão da cidadania à titularidade direta e imediata do poder,subjetivado juridicamente na consciência social e efetivado de formaconcreta pelo cidadão, em nome e em proveito da sociedade, e não doEstado.

DIREITO DE PARTICIPAÇÃO E DIREITOS HUMANOS

A Declaração dos Direitos Humanos, no art. XXI reza: Todo homemtem direito de tomar parte no governo de seu país, diretamente ou porintermédio de representantes livremente escolhidos.

Fábio Konder Comparato desenvolve o raciocínio de que na DeclaraçãoUniversal dos Direitos Humanos, de 1948, o princípio da liberdadecompreende tanto a dimensão política quanto a individual, e que as duas

10 BONAVIDES, Paulo. Do estado liberal ao estado social. 6. ed. rev., ampl. São Paulo: Forense, 1996,p. 15-16.

Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 4 | n. 8 | jul./dez. 2002. 143

são complementares e interdependentes.11 O autor diz que a liberdadepolítica, sem as liberdades individuais, não passa de engodo demagógicode Estados autoritários ou totalitários. E o reconhecimento das liberdadesindividuais, sem efetiva participação política do povo no governo, malesconde a dominação oligárquica dos mais ricos.

Ainda está nítida na declaração, para Comparato, a afirmação dademocracia como único regime político compatível com o pleno respeitoaos direitos humanos. O regime democrático já não é, pois, uma opçãopolítica entre muitas outras, mas a única solução legítima para a organizaçãodo Estado. Ele cita, ainda, o reconhecimento, pela declaração, no art. 28,o direito da humanidade a uma ordem internacional que respeite adignidade humana. É nisto que consiste, hoje, o direito à busca dafelicidade, que a Declaração de Independência dos Estados Unidosconsiderou como inato no ser humano.12

DIREITO DE PARTICIPAÇÃO EM PAÍSESDESENVOLVIDOS

O direito de participar das definições da administração pública estápresente já há algum tempo nas discussões de vários autores estrangeirosde Direito Público. Garcia de Enterría e Tomáz-Ramón Fernandes,abordam o tema lembrando que a participação dos usuários nos sistemasde serviços públicos costuma ser pouco relevante porque depende deestruturas de organização que só a Administração pode estimular, emborahaja na Constituição espanhola previsão de inúmeras formas departicipação do cidadão (pais e professores no controle das escolas, naseguridade social, etc.), além de prever, genericamente, que devem ospoderes públicos (...) facilitar a participação de todos os cidadãos na vidapolítica, econômica, cultural e social.13

Os autores afirmam que o cidadão fica praticamente indefeso dianteda Administração quando precisa que um novo serviço seja criado, ou

11 KOMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 2. ed. rev. e ampl. SãoPaulo: Saraiva, 2001, p. 229-34.12 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. Op. cit., p. 234.13 GARCÍA DE ENTERRIA, Eduardo, e FERNANDEZ, Tomás-Ramón. Curso de direitoAdministrativo. Tradução de Arnaldo Setti. São Paulo: Revista os Tribunais, 1990, p. 794-99.

Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 4 | n. 8| jul./dez. 2002.144

melhorado aquele já existente. Eles lembram que a participação doscidadãos jamais pode sobrepor-se à lei. Há, segundo os autores, três círculosde participação cidadã sobre as funções administrativas: atuação orgânica,na qual o cidadão incorpora-se a órgãos da Administração especialmentecriados para isso – os conselhos, etc.; a atuação funcional – em que ocidadão desempenha funções administrativas de sua própria posiçãoprivada, como opinar sobre determinada atividade, convidado pelaAdministração, que seria a participação em informações públicas,denúncias, ações populares, iniciativas e sugestões, entre outras; e aatuação cooperativa – na qual o cidadão colabora de forma voluntáriacom a Administração, nos programas e atividades por ela propostos, massem qualquer ligação oficial com o poder público.14

Marcelo Caetano refere-se à necessidade de estabelecer umcompromisso maior do Poder Público para com os direitos de participaçãodo cidadão, lembrando que as garantias políticas previstas nas Constituiçõesnão dão qualquer segurança de que haverá efetivamente o exame e oatendimento ao clamor individual ou coletivo.15

Os direitos de pedir, de representar, exercer atividade cívica, depromover ou de participar de reuniões e de associações – diz o autor –estão previstos em todas as constituições, mas o único dever que a elescorresponde da parte do Poder político é o de não embaraçar o respectivoexercício. A sorte da ação desenvolvida à sombra desses direitos dependeda receptividade de quem detém o poder e da conveniência que encontreem atendê-la. O autor lembra da figura do Comissário Parlamentar previstona Constituição sueca (espécie de ombudsman - como o mediatéur, da França)encarregado de receber as queixas sobre o funcionamento de serviços einvestigá-las, recomendando providências aos órgãos competentes.

O argentino Roberto Dromi fala de uma representação e participaçãocidadãs no poder. Afirma que os povos vêm reclamando mais do que ademocracia representativa prevista no art. 22 da Constituição argentina.Os povos vêm exigindo uma democracia participativa para somar14 GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo, e FERNANDEZ, Tomás-Ramón. Op. cit., p. 801.15 CAETANO, Marcelo. Princípios fundamentais do direito administrativo.RJ:Forense,1989, p. 479.16 DROMI, Roberto. Derecho administrativo. 5. ed. Buenos Aires: Ediciones Ciudad Argentina, 1996, p.81-3, tradução nossa.

Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 4 | n. 8 | jul./dez. 2002. 145

propostas, compromissos e esforços, pois, chegou o momento de construirsobre as coincidências.16

O autor constata que o indivíduo alienado, ocupado por demais consigomesmo, com o eu e despreocupado do vós já conscientizou-se de quetambém deve ocupar-se do nós no qual se encontra o seu destino final(venha nós e ao vosso reino, nada) O Estado de direito democrático devequebrar a indiferença social e a apatia política se quiser seguir vivendoem um mundo de liberdade.

A institucionalização da participação não deve ficar só na letra da lei,mas também no espírito dos povos. Ele defende o incentivo às instituiçõesde caráter profissional, econômico e associativo nascidas do espírito deorganização e de empresa do homem, com missões e responsabilidadesespecíficas. A sociedade pluralista impõe uma repartição de competências,em distribuição subsidiária entre as associações que viabilizam aparticipação individual e a cooperação social.17

A democracia, como forma civilizada de viver, aspira a realizaçãoplena do homem em liberdade e, para isso, exige uma “participaçãointegral”, não só política e nem simplesmente política eleitoral, mastambém administrativa, econômica e social. O homem deve ser“partícipe” da gestão pública em seus distintos níveis institucionais.

DIREITO DE PARTICIPAÇÃO NA AMÉRICA LATINA

O professor Bernardo Kliksberg aponta dez falácias que as autoridadespúblicas e os especialistas costumam afirmar sobre a América Latina. Aoitava falácia é exatamente a da participação do cidadão nos governos.18

O autor apresenta dados sobre a situação dos povos latino-americanos econstata que a grande maioria dos pobres desta região é de crianças eadolescentes. Dados da Cepal, do ano de 2000 (Comissão especializadaem estudos sócio-econômicos da América Latina), apontavam que 58%das crianças menores de 5 anos eram pobres, o mesmo acontecendo com57% das crianças de 6 a 12 anos e 47% dos adolescentes de 13 a 19 anos.No conjunto, os menores de 20 anos representam 44% da população da

17 DROMI, Roberto. Op. cit., p. 82. Tradução nossa.18 KLIKSBERG, Bernardo. Falácias e mitos do desenvolvimento social. Trad. de Sandra TrabuccoValenzuela e Silvana Cobucci Leite. São Paulo: Cortez; Brasília,DF: Unesco, 2001, p. 39-40

Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 4 | n. 8| jul./dez. 2002.146

região e 54% de todos os pobres.19

O autor afirma que o discurso político tende cada vez mais a reconhecera participação, pois seria muito antipopular enfrentar a pressão pró-participação da sociedade e com argumentos tão contundentes a seu favor.Mas os avanços reais com relação a programas com altos níveis departicipação comunitária são muito reduzidos. Predominam os programas“chave na mão” e impostos de cima para baixo, onde os que sabem têm opoder de decisão e a comunidade desfavorecida deve acatar suas diretivas.São comuns os programas que trazem fortes apelos participativos, masque têm, na verdade, um mínimo conteúdo real de intervenção dacomunidade. O discurso diz “sim” à participação, mas os fatos comfreqüência dizem “não”.20

A questão brasileira está mais ou menos nesse caminho. Exemplo: asconsultas públicas são anunciadas no Diário Oficial da União ou nos sítiosoficiais do Governo na Internet, mas esses meios levam a informação apoças pessoas. Na América Latina, segundo dados da Cepal, menos de1% das pessoas têm acesso ao computador, um dado que não é muitodiferente no Brasil. Quanto a Diário Oficial da União, o acesso é aindamais restrito.

Os custos dessa falácia são enormes, garante Kliksberg: desperdiça-seuma grande energia latente nas comunidades pobres, que poderia sercanalizada para iniciativas de grande sucesso. Ele cita os casos de umavila no Peru, escolas em El Salvador e do orçamento municipalparticipativo de Porto Alegre. E assegura que a presença da comunidadena discussão das políticas públicas é um dos poucos meios provados queprevinem a corrupção. E mais: o divórcio entre o discurso e a prática éclaramente percebido pelos pobres e eles ficam ressentidos, descontentese frustrados, passando a resistir profundamente às iniciativas departicipação, porque as comunidades estão “escaldadas” pelas falsaspromessas.

O mesmo autor aponta um levantamento sobre o pensamento dos povoslatino-americanos sobre a situação que enfrentam: apenas 17% disseramestar vivendo melhor que seus pais; mesmo assim, a maioria prefere o

19 KLIKSBERG, Bernardo. Op. cit., p. 18-19..20 KLIKSBERG, Bernardo. Op. cit., p. 40.

Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 4 | n. 8 | jul./dez. 2002. 147

sistema democrático de governo (mais de 60%), embora estejaminsatisfeitos e desesperançados; é um sistema que atende os anseios deapenas 35% das pessoas ouvidas. Aparecem cerca de 20% desejandoregimes autoritários. Só para uma comparação, na União Européia, ademocracia é considerada eficiente para 47% das pessoas, enquanto naDinamarca, esse índice chega a 84%.21

TÉCNICAS DE PARTICIPAÇÃO

Há dois fenômenos da administração pública contemporânea, vistospor Massimo Giannini:22 abertura do processo administrativo a qualquerportador de interesse e o desenvolvimento de instrumentos deadministração consensual. No primeiro caso, o fenômeno está ligado àprocessualidade ampla, enquanto no segundo, encerra a expansão daconsensualidade na atividade administrativa pública. Assim para o superioratendimento de inúmeros interesses públicos, convém mais ao Estadoser parceiro do que órgão de coerção.

O professor Diogo Moreira Neto fala de institutos polivalentes eunivalentes de participação. Os polivalentes são aqueles que se dirigem àatuação de quaisquer entes ou poderes do Estado, como a representaçãopolítica, a publicidade, a informação, a certidão e a petição. Os univalentes(ou específicos) são os que se destinam especificamente a determinadasações realizadas pelo Estado, como a coleta de opinião, o debate público,a audiência pública, o colegiado público, a co-gestão de órgão ou entidade,a assessoria externa, a delegação atípica, a provocação de inquérito civil,a denúncia aos tribunais ou conselhos de contas a reclamação relativa àprestação de serviços públicos.23

AUDIÊNCIA PÚBLICA

Agustín Gordillo relata a existência de um direito constitucionalimplícito à audiência pública prévia, antes da adoção de medidas quepossam afetar a coletividade, previsto na Constituição Nacional argentina,nos arts. 42 e 43, e de forma explícita na Carta Constitucional de Buenos

21 KLIKSBERG, Bernardo. Op. cit., p. 13.22 Apud MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito administrativo. 2. ed. atual. eampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 199.23 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito administrativo. Op. cit. P. 203.

Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 4 | n. 8| jul./dez. 2002.148

Aires.24 Ele considera esse um direito substantivo e adjetivo de incidênciacoletiva, e também um direito subjetivo. Pode ser aplicada em relação atodos os serviços públicos privatizados, sob condições de monopólio.

Sua utilidade prática, na Argentina, segundo o autor, tem demonstradoser um instituto insubstituível e que obriga as autoridades a ouvir as razõese avaliar alternativas antes de tomar decisões que afetam o meio ambienteou a comunidade, de qualquer outra forma. Há decisões na jurisprudênciaArgentina de anulação de atos que prescindiram da audiência pública antesde serem editados. Gordillo afirma que o Judiciário deve conceder medidascautelares para que se realizem audiências públicas antes de decisões queafetarão direitos dos usuários.

O direito à audiência pública ainda está implícito, segundo o autor, noPacto de San José da Costa Rica, artigo 23.1; Declaração Universal dosDireitos Humanos, Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos eDeclaração de Direitos e Deveres do Homem.

Entre outros exemplos da audiência pública como um direito deincidência coletiva, O ele relata a situação concreta do reajuste de tarifastelefônicas, na década de 90, que só foi estabelecido após a Justiça concederà população o direito de avaliar o assunto em audiência pública.

ORIGEM

A audiência pública tem origem no direito anglo-saxão, fundamentadono direito inglês e no princípio de justiça natural, e no direito norte-americano, ligada ao princípio do devido processo legal (due process oflaw).Para Agustín Gordillo, ela representa a garantia clássica de audiênciaprévia e a garantia constitucional do devido processo em sentidosubstantivo.25

DISTINÇÃO DE SESSÃO PÚBLICA E REUNIÃO POPULAR

Gordillo distingue a audiência da sessão pública, afirmando que, nasessão pública, a platéia apenas assiste passiva, assim como os jornais eemissoras de rádio e TV. Na audiência pública, a coletividade é parte

24 GORDILLO, Agustín. Tratado de derecho administrativo. 3. ed. Buenos Aires: Fundación de DerechoAdministrativo, 1998, T. II, p. II-41, tradução nossa.25 GORDILLO, Agustín. Tratado de derecho administrativo. Op. cit., p. XI-1.

Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 4 | n. 8 | jul./dez. 2002. 149

interessada e ativa,com direitos de natureza procedimental a serrespeitados, direitos de oferecer e produzir provas e controlar as que sãoproduzidas e de fazer alegações. E a falta de sua ocorrência pode ocasionarnulidade da decisão da Administração, como está previsto em algumasleis, especialmente as que dizem respeito a serviços concedidos. Mesmoquando a lei se referir apenas a “audiências”, deve-se ter esta conotaçãode participação ativa, diz o autor.

Quanto às reuniões populares (town mettings, em inglês), são de caráterinformal, abertas ao público e apenas servem para troca de opiniões entrea autoridade e os cidadãos.É o mesmo procedimento dos candidatos acargos públicos, só que nas town mettings, os funcionários utilizam o contatopara certificar-se de que estão atuando em sintonia com o que a populaçãodeseja. O funcionário público ouve diretamente a população e recebeinformações que não vinculam sua atuação, apenas servem para orientaçãodestinada a melhorar o trabalho.

PRINCÍPIOS GERAIS

Gordillo recomenda não esquecer que as audiências públicas, emboratenham caracteres semelhantes ao processo judicial, sempre terão naturezaadministrativa. Ele aponta nove princípios gerais que regem o institutoda audiência pública: o devido processo, a publicidade, oralidade,informalismo, contraditório, participação, instrução, impulso de ofício eeconomia processual. Alguns autores acrescentam a gratuidade.

O professor Diogo Moreira Neto desdobra em quinze princípios,desmembrando ainda, o princípio do devido processo. Inicia com osprincípios fundamentais, previstos na Constituição brasileira: princípiodemocrático – que se manifesta na legitimidade, ou a conformidade doagir do Estado com a vontade popular; e desdobra-se nos princípios dacidadania – (art. 1o., II, da CF), que reconhece no povo o poder políticoelementar de decisão sobre a coisa pública; e da participação política –(art. 1o., p. Único da CF) – que instrumenta o poder político, tanto para aescolha dos dirigentes públicos quanto para a escolha do conteúdo políticoou administrativo das decisões consensualmente deliberadas. Aqui,funciona como princípio informativo da audiência pública.26

26 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo.Mutações do direito administrativo. Op. cit. p. 206-209.

Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 4 | n. 8| jul./dez. 2002.150

A seguir, o autor trata dos outros princípios constitucionais: daigualdade, da reserva legal, princípio associativo, da publicidade, do devidoprocesso, do contraditório, da ampla defesa; por último, princípiosdesenvolvidos pela doutrina: da realidade, da lealdade, da motivação, daproporcionalidade, e da prevenção de litígios.

A igualdade implica na proibição de tratamento diferenciado para osparticipantes das audiências públicas; a reserva legal informa que a lei éa única fonte de direitos e obrigações da Administração e dos participantesda audiência; o princípio associativo resguarda a liberdade de manifestaçãodos indivíduos, atendendo às previsões do art. 5o. da CF, como oreconhecimento das entidades para representarem seus filiados; apublicidade representa o direito à informação, tanto no interesse particularquanto coletivo ou geral, destinada a fundamentar as decisões individuaisdos participantes; o devido processo implica em que, sendo a audiênciaespécie processual administrativa, também deve respeitar as garantias dodevido processo, cercado do contraditório e da ampla defesa; o princípioda realidade traduz no processo o senso comum dos participantes,possibilitando que se definam os interesses que melhor satisfazem àsaspirações dos interessados; da lealdade, pelo qual o Estado deve atuarsempre respeitando a boa fé dos administrados, não dando prioridade aosseus interesses públicos derivados, jamais usando essa prática paramascarar ou encobrir suas reais intenções; o princípio da motivação impõea enunciação expressa ou tácita das razões que determinam a realizaçãoda audiência pública; da proporcionalidade, que pode ser aspecto darazoabilidade e implica num sentido finalístico ao processo da audiênciapública, tentando limitar os sacrifícios decorrentes da ação daAdministração às vantagens esperadas pelos participantes, assim comolimitar o sacrifício individual exigido à correspondente compensação quepossa ser auferida individual ou de forma coletiva; a prevenção de litígiostraduz a necessidade de prudência da administração em esgotar todos osmeios para evitar os conflitos e demandas.

Agustín Gordillo faz uma abordagem interessante sobre o princípio dagratuidade. Aventa a possibilidade de necessidade de gastos para produçãode provas ou assessoramento para instruir a audiência pública. Neste caso,diz que o ressarcimento deve ficar a cargo da discricionariedade da

Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 4 | n. 8 | jul./dez. 2002. 151

Administração. E quando a Administração resolver fazer as audiênciaslonge de sua sede, provocando gastos desnecessários aos usuários quedesejarem participar, poderá caracterizar-se desvio de poder, uma vezque o propósito da Administração seja conseguir opiniões favoráveis àsdecisões que pretende tomar. O autor cita o exemplo das audiênciaspúblicas na Argentina para a reestruturação tarifária, em 1995 e 1996. Osusuários alugaram ônibus e foram à audiência e os técnicos não colocaramo tema em discussão. A decisão que autorizou as novas tarifas foi anuladapelo Judiciário, por falta da audiência pública.27

Quanto aos gastos com publicidade, o autor sugere que a lei ou ocontrato de concessão de serviços concedidos, por exemplo, repassem àsconcessionárias esses custos, que podem ou não ser transferidos às tarifas.Nos EUA, as audiências para grandes projetos têm uma publicidadeespecial, em página completa e ímpar dos grandes jornais (Washington Poste New York Times) e em jornais dos locais onde haverá audiências públicas.

PREVISÃO LEGAL

Gordillo, ao contrário do professor Diogo, defende que a Administraçãoseja obrigada a realizar audiências públicas não apenas nos casos previstosem lei ou regulamento, mas em todos os demais casos em que os efeitosda decisão excederem o caso particular, e quando objetivamente sejanecessário para o exercício do direito de defesa dos usuários e outrosafetados, colaborando para maior eficácia e legitimidade jurídica e políticadas decisões. Na Argentina, um decreto-lei nacional prevê nulidade à dadecisão por ausência de audiência pública ou a sua realização defeituosa.

PROCEDIMENTO DA AUDIÊNCIA PÚBLICA

a) pré-audiênciaGordillo informa que nos EUA, o Estado de Nova Iorque tem em sua

legislação a previsão de que preside a audiência pública pode acordarpara a celebração de uma pré-audiência para ordenar e simplificar assuntos,acertar a troca de testemunhas ou documentos, limitar o número dedepoimentos, fixar datas e emitir instruções para o melhor desenvolvimentodo processo. Os fatos expostos na pré-audiência terão privilégio na

27 GORDILLO, Agustín. Tratado de derecho administrativo. Op. cit., p. XI-16.

Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 4 | n. 8| jul./dez. 2002.152

audiência definitiva. É uma espécie de saneamento do processo.O autor afirma preferir uma pré-audiência obrigatória em todos os casos

em que está indicada, e discorda de assuntos privilegiados tratados empré-audiência, pois atenta contra o caráter público e igualitário doprocedimento. A lei do Estado de Wisconsin veda que os funcionáriosenvolvidos na audiência pública intervenham apoiando ou se opondo àcausa tratada. A interferência é só a suficiente para conhecimento dosfatos. A legislação argentina prevê imparcialidade obrigatória ao instrutordos sumários administrativos.28

b) Regras sobre provasAgustin Gordillo, afirma que o critério fundamental é a amplitude das

provas, e a adoção do princípio da razoabilidade para casos deindeferimento. O registro dos atos pode ser feito por notas taquigráficas,gravações de áudio e vídeo, mas deve sempre haver um tipo de registrodos atos realizados.29

A legislação brasileira não tem instituto específico a regular oprocedimento de audiências públicas, mas a Lei 9.784/99 (do processoadministrativo), contém as regras gerais para todo procedimentoadministrativo e que informam também a audiência pública. O art. 36abre a possibilidade para apresentação de provas pelo interessado, assimcomo indicá-las à autoridade, no caso de documentos e atos registradosem órgãos públicos, os quais serão providenciados de oficio pelaautoridade (art. 37).

A recusa de provas só pode ocorrer caso sejam ilícitas, impertinentes,desnecessárias ou protelatórias (não há o conceito desses adjetivos) – art.38 – e a decisão deve ser fundamentada.

Os despachos e decisões deverão ser motivados sempre que impliquemem limitação ou agravamento da situação dos litigantes, e ainda em casosespecíficos do art. 50 da Lei do Processo Administrativo.

c) As partes na audiência públicaEm princípio, a legislação brasileira não veda a presença de qualquer

pessoa aos procedimentos públicos de natureza consultiva em que éadmitida a presença dos cidadãos comuns. Na Argentina, segundo Gordillo,

28 GORDILLO, Agustín. Op. cit., p. XI-19.29 GORDILLO, Agustín. Op. cit., p. XI-20.

Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 4 | n. 8 | jul./dez. 2002. 153

podem ser admitidos cidadãos portadores de direito subjetivo, interesselegítimo e, mais modernamente, também interesse difuso; pessoas públicassupranacionais, internacionais, ou simplesmente privadas. É necessárioestar presente também um defensor do usuário, um fiscal ad hoc, além doque se chama de Defensor do povo da Nação.30

AUDIÊNCIA PÚBLICA NO ORDENAMENTO BRASILEIRO

No Brasil, o art. 1o. da Constituição prevê que “todo o poder emana dopovo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente,nos termos desta Constituição”. O professor Diogo aponta a existênciade mais de uma centena de dispositivos de um Direito de Participação naConstituição Federal. Entretanto, afirma que a adoção da audiência públicadepende de previsão legal que lhe defina o processo e a eficácia, mesmonos casos previstos na Constituição:

a) Previsão constitucionalA Constituição Federal tem várias previsões expressas ou implícitas do

uso da audiência pública pela Administração. Estão nos seguintesdispositivos: art. 29, XII – cooperação das associações representativas noplanejamento municipal; art. 194, parágrafo único, VII – participação dacomunidade nas decisões sobre a seguridade social; art. 198, III –participação da comunidade nas ações e serviços públicos de saúde; art.204, II – a participação da população através de organizaçõesrepresentativas na formulação de políticas de assistência social; art. 225,caput – implicitamente impõe à sociedade o dever de atuar para defendere preservar o meio ambiente; art. 58, parágrafo 2o., II - adoção nominalpelas comissões do Congresso Nacional, nas matérias de sua competência,de audiências públicas com entidades da sociedade civil.

b) Legislação infraconstitucionalNas leis ordinárias, há algumas previsões sobre a utilização da audiência

pública, como nos seguintes dispositivos: Lei 8.666/93 (Licitações eContratos administrativos), art. 39, prevê a realização de audiência públicaem casos de projetos que seja superior em cem vezes ao valor daconcorrência pública. Neste aspecto é preciso reconhecer que muitosgrandes projetos ficam em menos de 100 vezes esse valor e não obrigama audiência. Embora a lei não diga, a interpretação mais apropriada parece

30 GORDILLO, Agustín. Op. cit., p. XI- 22.

Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 4 | n. 8| jul./dez. 2002.154

ser a de que a previsão tem efeito vinculatório e anula o procedimento emsua falta, sempre que isto resulte prejuízos ao erário público ou aosparticulares.

No que se refere ao meio ambiente, o art. 225 da Constituição, caput,encontra-se regulamentado no art. 8o., II da Lei 6.938, que instituiu oConselho Nacional do Meio Ambiente, autorizando a convocação deentidades privadas para atuar informativamente na apreciação de estudosde impacto ambiental.

A resolução 009/87 do Conama regulamentou a previsão prevendo arealização de audiência pública sempre que julgar necessário ou quandosolicitada por entidade civil, pelo Ministério Público ou por mais decinqüenta cidadãos. Quando solicitada e não realizada a audiência, a licençaambiental será invalidada.

A Lei n. 9.784/99 (do Processo Administrativo) prevê, no art. 32, apossibilidade de audiência pública para debates sobre a matéria objeto deprocesso administrativo, antes da tomada de decisão, sempre hajarelevância da questão, a juízo da autoridade. No art. 33, a lei abre àAdministração uma brecha para adotar outras formas de participação dosadministrados, diretamente ou por associações.

A legislação que trata das concessões e permissões de serviços públicostraz previsão sobre o assunto. A lei 8.897/95, no art. 3o., fala emcooperação de usuários na fiscalização das concessões, o que, tacitamente,segundo o professor Diogo Moreira Neto, autoriza o Poder público,discricionariamente, a regulamentar as audiências públicas.31 A Lei 9.074/95 confirmou a previsão no art. 33, transferindo ao poder concedente aescolha da forma de participação dos usuários na execução da fiscalização.

O bom senso parece impor a obrigatoriedade de adoção doprocedimento da audiência pública sempre que seja esse o melhor meiopara realizar essa fiscalização, isto aferido em critérios técnicos e nãopolíticos, como forma de melhor preservar o interesse público e osinteresses dos cidadãos. Nesse caso, o Poder Público estaria obrigado aadotar a audiência pública.

Finalmente, o art. 37, p. 3o, da CF, acrescentado pela emenda 19, previuregulamentação, por lei, da participação dos usuários na administração31 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito administrativo. Op. cit., p. 217.

Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 4 | n. 8 | jul./dez. 2002. 155

pública, inclusive quanto às reclamações e ao exercício negligente ouabusivo da função pública. A Emenda 19 fez quatro anos e a lei não foieditada.

Parece que aí estaria a oportunidade para o legislador criar na lei federala previsão genérica para a realização das audiências públicas como formade participação da sociedade na decisão sobre políticas públicas,fiscalização, etc.

VANTAGENS DA AUDIÊNCIA PÚBLICA

Entre as vantagens do procedimento da audiência pública, o professorDiogo Moreira Neto anota algumas consideradas mais significativas: 32

evidencia a intenção do administrador de produzir a melhor decisão;galvaniza o consenso em reforço da decisão que for adotada; demonstra ocuidado com a transparência dos processos administrativos; e renova odiálogo entre os agentes políticos e seus eleitores.

Agustín Gordillo anota como vantagens a garantia objetiva derazoabilidade para o administrado; é mecanismo idôneo de formação deconsenso da opinião pública a respeito da juridicidade e da conveniênciada atuação da Administração; é garantia objetiva de transparência dosprocedimentos estatais, uma transparência que é exigida pela ConvençãoInteramericana contra a Corrupção – pois a luz do sol é o melhor desinfetantee a melhor polícia; é elemento de democratização do poder e modo departicipação cidadã no poder público.33 Assim, diz o autor, o fundamentoda audiência pública é duplo: serve de um lado, ao interesse público paraque não se produzam atos ilegítimos; ao interesse dos particulares de poderinfluenciar com seus argumentos e provas antes da tomada de uma decisãoimportante e, ainda, serve para diminuir o risco de erros de fato e dedireito para as autoridades públicas, com conseqüente eficácia de suasações e consenso que podem conseguir na comunidade.

CONCLUSÃO

A audiência pública é um direito de participação que integra ademocracia chamada de direito de quarta geração, junto com os direitos

32 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito administrativo. Op. cit. P. 211.33 GORDILLO, Agustín. Op. cit, p. XI-9.

Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 4 | n. 8| jul./dez. 2002.156

individuais, sociais e de fraternidade, todos integrantes da categoria dedireitos humanos, conforme as teses da doutrina moderna sobre o tema.

Apesar dessa constatação e embora a democracia seja a forma degoverno de maior expansão no mundo nos últimos séculos, especialmentena América Latina, e em que pesem os avanços nas legislações, o que sepercebe é que os direitos de participação das comunidades nãoacompanharam o mesmo ritmo da ampliação das democracias.Nos paíseslatino-americanos, a constatação é de que o discurso de participaçãopopular é contundente, mas a prática, nula. Mesmo em paísesdesenvolvidos nota-se o descuido dos governantes para com a opinião deseus governados acerca da administração pública.

A audiência pública mostra-se um mecanismo eficiente na busca doaperfeiçoamento dos mecanismos de definição das prioridades deinvestimentos estatais nas chamadas políticas públicas, uma das atribuiçõesdos governantes que maiores criticas tem gerado nos últimos tempos.

É uma técnica que integra a classe dos institutos univalentes departicipação, conforme a conclusão esboçada neste trabalho do professorDiogo de Figueiredo Moreira Neto, já que se destina à avaliação deatividades específicas a serem desenvolvidas ou em desenvolvimento pelopoder público, diferentemente das técnicas polivalentes, as quais se prestamà consulta de temas genéricos da administração pública.

O procedimento deve obedecer uma série de princípios, nos moldesdos processos administrativo e judicial, de modo a facilitar a amplitudedo procedimento em relação às partes e às provas.

No Brasil, o instituto da audiência pública não tem previsão genéricana Lei Maior, como é o caso da Constituição argentina, da legislaçãoamericana, entre outros países. Alguns dispositivos da Carta brasileiracontemplam a possibilidade de audiência pública. A legislaçãoinfraconstitucional prevê poucos casos em que ela deve ser aplicada, evários outros em que é um mecanismo a ser usado conforme decisão daautoridade, neste caso, de forma discricionária. A oportunidade para olegislador brasileiro incluir o direito de audiências públicas de formagenérica na legislação ordinária parece ser na edição de lei complementarao art. 37, parágrafo 3o. da Constituição, acrescentado pela EmendaConstitucional no. 19, que trata da participação dos usuários naadministração pública, a qual deverá prever, inclusive, as formas de

Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 4 | n. 8 | jul./dez. 2002. 157

reclamação acerca de atos abusivos e de excesso de poder, praticadospela Administração.

BIBLIOGRAFIA

ARGENTINA. Constitucion de la Nación Argentina. Buenos Aires:Ediciones Ciudad Argentina, 1995.BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. Cidadania e democracia. LuaNova - Revista de cultura e política.São Paulo: Centro de Estudos de CulturaContemporânea, 1994, no. 33.BONAVIDES, Paulo. Do estado liberal ao estado social.6. ed. rev. e ampl.São Paulo: Malheiros, 1996.CAETANO, Marcelo. Princípios fundamentais do direito administrativo. Riode Janeiro: Forense, 1989.DROMI, Roberto. Derecho administrativo. 5. ed. Buenos Aires: EdicionesCiudad Argentina, 1996.GARCÍA DE ENTERRIA, Eduardo, e FERNANDEZ, Tomás-Ramón. Curso de direito Administrativo. Tradução de Arnaldo Setti. São Paulo:Revista os Tribunais, 1990.GORDILLO, Agustín. Tratado de derecho administrativo. 3. ed. Buenos Aires:Fundación de Derecho Administrativo, 1998, T. II.KLIKSBERG, Bernardo. Falácias e mitos do desenvolvimento social. Trad. deSandra Trabucco Valenzuela e Silvana Cobucci Leite. São Paulo: Cortez;Brasília, DF: Unesco, 2001.KOMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos.2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2001.MEDAUAR, Odete. Controle da administração pública. São Paulo: Revistados Tribunais, 1993.MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Teoria do poder – parte I. SãoPaulo: Revista dos Tribunais, 1992.__________. Legitimidade e discricionariedade. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense,2001.__________. Mutações do direito administrativo. 2. ed. atual. e ampl. Rio deJaneiro: Renovar, 2001.

Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 4 | n. 8| jul./dez. 2002.158