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Política, Estado e Sociedade. CAPÍTULO I Gênese do Pensamento Político: Os Conceitos Fundamentais 1. A cidade grega Uma das fontes principais do pensamento político moderno na área cultural mediterrâneo-européia é, sem nenhuma dúvida, a civilização grega clássica; a outra fonte são os textos sagrados do povo judaico e sua reativação pela cristandade e o Islã (cf., adiante, I, 3). Entre os produtos marcantes do que é chamado de "milagre grego" (para designar o conjunto das invenções institucionais, literárias, artísticas, científicas, teóricas, técnicas), o mais característico é essa forma política original que é a Pólis, a Cidade. Quando essa se constituiu durante o século VI a. C., as organizações político- sociais tradicionais eram, na civilização da Hélade, realezas de tipo feudal, onde predominavam grandes famílias - os "bem nascidos" – que exerciam sua autoridade política, religiosa, jurídica e econômica sobre um pequeno povo de agricultores, artesãos e pescadores; e, nas terras bárbaras, vastos impérios comandados por um déspota que impunha uma dominação absoluta, apoiado em castas militares, sacerdotais e técnico-administrativas. Durante a época "feudal" da Grécia, violentos conflitos opunham, por um lado, as grandes famílias entre si, e, por outro, essas às populações dos campos e das cidades (cidades que iam se tornando cada vez mais numerosas e ativas). Esses conflitos tornaram-se tão violentos que, em vários territórios, as partes envolvidas concordaram em solicitar a um personagem, reputado por sua sabedoria e seu desinteresse, que fixasse regras para o jogo social. Foi o que ocorreu em Atenas, onde - por volta dos anos 600 a.C. - Dracón e Sólon, sucessivamente, foram encarregados de enunciar os princípios ordenadores das relações entre os membros da coletividade. Esses legisladores (nomotetas) assumem a tarefa, menos de instaurar uma constituição, do que de definir os enunciados fundamentais conhecidos de todos, determinando com precisão a participação de cada um na defesa e na gestão das questões comuns da Cidade, as instâncias de onde devem provir as decisões que envolvem a coletividade, a arbitragem dos conflitos e a punição dos crimes e dos delitos. Assim, regras costumeiras, no mais das vezes deixadas à interpretação de tribunais que julgam em segredo, são substituídas por textos claros e públicos: as leis. Deve-se sublinhar o fato de que a obra essencial de Dracón foi exigir que os juízes tornassem publicamente conhecidos os argumentos que legitimavam suas sentenças. E, em meados do século IV a.c., quando o historiador Heródoto quer explicar a vitória da Grécia sobre os Bárbaros, quando das duas guerras médicas, ele põe em evidência a superioridade dos cidadãos combatentes, que não têm outro senhor além da Lei e que comandam a si mesmos, em comparação com os guerreiros do Império Persa, que obedecem a um homem e não têm outras motivações além do interesse e do temor. A Lei como princípio de: organização política e social concebida como texto elaborado por um ou mais homens guiados pela reflexão, aceita pelos qlie serão objeto de sua aplicação, alvo de um respeito que não exclui modificações minuciosamente controladas: essa é provavelmente a invenção política mais notória da Grécia clássica; é ela que empresta sua alma à Cidade, quer essa seja democrática, oligárquica ou "monárquica". A. A Cidade como lugar natural da sociedade dos homens Quando no início de A Política (Livro I, 2:, 1252 a 24-1253 a 37), Aristóteles quer definir a Cidade, ele a opõe a duas outras formas de agrupamento animal: a família, que reúne os indivíduos do mesmo sangue, e a aldeia, que agrupa os vizinhos em função do interesse. Nos dois casos, o objetivo é a sobrevivência. A Cidade, por seu turno, tem como fim o eu Zein o que significa: "Viver como convém que um homem viva". Essa definição se esclarece quando se sabe que, em outros textos, Aristóteles especifica, por um lado, que "o homem não é nem uma besta nem um Deus" - que é um meio entre esses extremos -, e, por outro, que faz parte da essência dele ser "um animal que possui o

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Poltica, Estado e Sociedade.

CAPTULO IGnese do Pensamento Poltico: Os Conceitos Fundamentais1. A cidade gregaUma das fontes principais do pensamento poltico moderno na rea cultural mediterrneo-europia , sem nenhuma dvida, a civilizao grega clssica; a outra fonte so os textos sagrados do povo judaico e sua reativao pela cristandade e o Isl (cf., adiante, I, 3).Entre os produtos marcantes do que chamado de "milagre grego" (para designar o conjunto das invenes institucionais, literrias, artsticas, cientficas, tericas, tcnicas), o mais caracterstico essa forma poltica original que a Plis, a Cidade. Quando essa se constituiu durante o sculo VI a. C., as organizaes poltico-sociais tradicionais eram, na civilizao da Hlade, realezas de tipo feudal, onde predominavam grandes famlias - os "bem nascidos" que exerciam sua autoridade poltica, religiosa, jurdica e econmica sobre um pequeno povo de agricultores, artesos e pescadores; e, nas terras brbaras, vastos imprios comandados por um dspota que impunha uma dominao absoluta, apoiado em castas militares, sacerdotais e tcnico-administrativas.Durante a poca "feudal" da Grcia, violentos conflitos opunham, por um lado, as grandes famlias entre si, e, por outro, essas s populaes dos campos e das cidades (cidades que iam se tornando cada vez mais numerosas e ativas). Esses conflitos tornaram-se to violentos que, em vrios territrios, as partes envolvidas concordaram em solicitar a um personagem, reputado por sua sabedoria e seu desinteresse, que fixasse regras para o jogo social. Foi o que ocorreu em Atenas, onde - por volta dos anos 600 a.C. - Dracn e Slon, sucessivamente, foram encarregados de enunciar os princpios ordenadores das relaes entre os membros da coletividade. Esses legisladores (nomotetas) assumem a tarefa, menos de instaurar uma constituio, do que de definir os enunciados fundamentais conhecidos de todos, determinando com preciso a participao de cada um na defesa e na gesto das questes comuns da Cidade, as instncias de onde devem provir as decises que envolvem a coletividade, a arbitragem dos conflitos e a punio dos crimes e dos delitos.Assim, regras costumeiras, no mais das vezes deixadas interpretao de tribunais que julgam em segredo, so substitudas por textos claros e pblicos: as leis. Deve-se sublinhar o fato de que a obra essencial de Dracn foi exigir que os juzes tornassem publicamente conhecidos os argumentos que legitimavam suas sentenas. E, em meados do sculo IV a.c., quando o historiador Herdoto quer explicar a vitria da Grcia sobre os Brbaros, quando das duas guerras mdicas, ele pe em evidncia a superioridade dos cidados combatentes, que no tm outro senhor alm da Lei e que comandam a si mesmos, em comparao com os guerreiros do Imprio Persa, que obedecem a um homem e no tm outras motivaes alm do interesse e do temor.A Lei como princpio de: organizao poltica e social concebida como texto elaborado por um ou mais homens guiados pela reflexo, aceita pelos qlie sero objeto de sua aplicao, alvo de um respeito que no exclui modificaes minuciosamente controladas: essa provavelmente a inveno poltica mais notria da Grcia clssica; ela que empresta sua alma Cidade, quer essa seja democrtica, oligrquica ou "monrquica".

A. A Cidade como lugar natural da sociedade dos homensQuando no incio de A Poltica (Livro I, 2:, 1252 a 24-1253 a 37), Aristteles quer definir a Cidade, ele a ope a duas outras formas de agrupamento animal: a famlia, que rene os indivduos do mesmo sangue, e a aldeia, que agrupa os vizinhos em funo do interesse. Nos dois casos, o objetivo a sobrevivncia. A Cidade, por seu turno, tem como fim o eu Zein o que significa:"Viver como convm que um homem viva".Essa definio se esclarece quando se sabe que, em outros textos, Aristteles especifica, por um lado, que "o homem no nem uma besta nem um Deus" - que um meio entre esses extremos -, e, por outro, que faz parte da essncia dele ser "um animal que possui o logos", ou seja, a capacidade de falar de maneira sensata e de refletir sobre oS seus atos. Desse modo, a famosa frmula "o homem um animal poltico" (polis = cidade) significa que somente na Cidade - organizao fundada no sobre a fora bruta, no sobre interesses passageiros, no sobre as prescries dos deuses - que o homem pode realizar a virtude (= a capacidade) inscrita em sua essncia. Essas anlises de Aristteles - cabe sublinhar - apresentam o aspecto principal da concepo grega clssica.

Essa se caracteriza por outros aspectos igualmente importantes, que preciso conhecer se quisermos compreender a significao e o alcance das outras invenes POLTICAS feitas pela Grcia:* os gregos consideram geralmente que a sociabilidade produzida pela natureza e, portanto, que no se trata de fund-la, mas de orden-la; eles imaginam de bom grado uma idade de ouro "pr-histrica" ("na qual os deuses apascentavam diretamente os homens", diz Plato), que teria sido submergida por um cataclisma, levando assim a um estado patriarcal;* se eles desenvolverem discursos histricos, no possuam de nenhum modo a idia - crist e ps-crist - de um decurso da histria linear e dotado de um sentido; a representao do tempo que domina a do ciclo, que faz reaparecer as mesmas situaes; a noo de um progresso global est excluda; a de uma acumulao das riquezas suscita a maior desconfiana; o trabalho material concebido como algo que deprecia, e somente a atividade do lazer (schol) produtiva;* a humanidade como espcie compreendida como a mais elevada do gnero animal, participando da animalidade por sua sensibilidade e do "divino" por sua capacidade de raciocinar; no seio dessa espcie, a natureza produz ethnai dos quais o "divino" est ausente e que so naturalmente escravos. um excesso (hybris) to grande querer ser um deus como agir como animal; o grego, por sua situao geogrfica e sua cultura (paidia), considera-se como privilegiado quanto possibilidade de realizar a "virtude" do homem: a Cidade - como comunidade consciente - precisamente a forma poltica que permite a explicitao dessa virtude. Somente ela permite coletividade instaurar uma ordem justa, e, ao indivduo, viver de tal modo que atinja a satisfao legtima - sob o imprio das leis... Resta determinar em que consiste essa ordem e que satisfao ela promete.

B. A democraciaHerdoto apresenta uma classificao dos regimes polticos que ir se tomar clebre (Histria, III, 80-82): O bom regime aquele no qual comanda apenas um - a monarquia -, que governa para sua glria . e a de seus sditos? ou aquele no qual comanda uma minoria - a oligarquia -, constituda de cidados reconhecidos como "superiores" por seu nascimento, sua riqueza, sua competncia religiosa ou militar? ou aquele onde comanda a maioria - a democracia. -, maioria constituda pela populao dos camponeses, dos artesos, dos comerciantes, dos marinheiros?A contribuio singular de Atenas consiste em ter respondido praticamente, instaurando esse ltimo regime e, sobretudo, inventando uma outra definio da democracia.No final do sculo VI a.c. e durante segunda metade do sculo seguinte, o poder democrtico realizou urna srie de reformas que estenderam o estatuto de cidados plenos totalidade dos habitantes masculinos nascidos atenienses, assegurando-lhes assim a igualdade diante da lei (isonomia) e o acesso s magistraturas. instituda urna centena de municipalidades, agrupadas em dez tribos, que so administradas por um conselho que compreende todos os cidados nelas englobados. O poder central exercido pela Assemblia Popular, que rene todos os cidados dez vezes por ano e nas circunstncias graves; ela que toma as decises soberanamente, adota decretos, elege os magistrados encarregados do executivo, designa de seu seio os membros das cmaras de justia; e o faz por maioria, todo cidado tendo direito de palavra. As magistraturas executivas - dos estrategistas aos inspetores dos mercados - so colegiais, limitadas; e necessitam-se de srias razes para que um magistrado seja reeleito para suas funes. Decerto, as desigualdades devidas condio social no so completamente apagadas: mas essa organizao cvica que pe o poder "no meio" e recusa que ele seja apangio de algum - visa a conjurar no somente o aparecimento de um tirano, mas tambm a instalao de uma casta ou de uma classe separada da sociedade e que se aproprie do poder poltico.At os anos 430 a.C. o xito da democracia foi grande, tanto na harmonia de seu funcionamento interno como na ampliao de sua expanso ao exterior. Com as derrotas sofridas na guerra contra Esparta, inicia-se uma crise, que est na origem das mais significativas reflexes POLTICAS surgidas no pensamento grego. Entre essas, devem-se considerar como exemplares a de Tucdides e a de Plato.Na Histria da Guerra do Peloponeso, Tucdides que constata a degenerescncia do regime democrtico, incapaz de conduzir a guerra c de gerir seus problemas internos - constri um monumento a Pricles. O que ele compreendera e seus sucessores haviam esquecido, que a democracia - o melhor dos regimes polticos, por garantir a isonomia e assegurar as liberdades privadas - exige uma constante ateno de todos os cidados. Ela s subsiste se os dirigentes que o povo escolheu no deixarem nunca de calcular e de refletir sobre suas decises. Regime de liberdade que leva aos grandes empreendimentos, ela entra em colapso quando esses no so conduzidos somente pelo princpio da inteligncia (o nous), do intelecto calculador que no apenas elabora estratgias de prudncia, mas visa tambm a no lesar nem favorecer nenhum dos grupos constitutivos da coletividade.De modo inteiramente contrrio, Plato - refletindo ou utilizando a seu modo o ensinamento de Scrates? - desenvolve uma critica bastante viva da democracia. No essencial, essa crtica se baseia nos seguintes argumentos: A massa popular (oi polloi) assimilvel ppr natureza a um animal escravo de suas paixes e de seus interesses passageiros, sensvel lisonja, inconstante em seus amores e em seus dios; confiar- lhe o poder aceitar a tirania de um ser incapaz da menor reflexo e do menor rigor. Quando a massa designa seus magistrados, ela o faz em funo das competncias que acredita ter constatado - em particular, as qualidades no uso da palavra - e disso infere irrefletidamente a capacidade poltica. Quanto s pretensas discusses na Assembleia, so apenas disputas contrapondo opinies subjetivas, inconsistentes, cujas contradies e lacunas traduzem bastante bem o seu carter insuficiente.Em suma, a democracia ingovernvel: o exemplo de Atenas o prova, uma cidade que perdeu a guerra contra Esparta e condenou Scrates morte. Sua desordem leva tirania e induz todos imoralidade. A refutao banal; mas o argumento que a apia coloca. um problema poltico capital: o da relao entre Saber e Poder.C. Saber e poderTucdides reprovava nos demagogos que se haviam apossado da democracia o fato de no conduzirem a ao poltica segundo as regras de uma reflexo rigorosa. Pia to mais exigente: prolongando a crtica radical realizada por Scrates, mediante a implementao do projeto de um Saber indubitvel, ele estabelece a tese segundo a qual a definio da ordem da Cidade justa supe uma cincia do poltico, que ela mesma parte de um Saber mais amplo, o Saber do que na verdade . Assim, a recusa da democracia pressupe a refutao dos princpios nos quais esse regime se funda, princpios de que os sofistas foram os porta-vozes.Os sofistas: assim so designados os professores de retrica que se instalaram na jovem democracia ateniense para ensinar aos cidados como falar de modo persuasivo, a fim de fazer triunfar sua causa diante dos tribunais e suas idias nas instncias POLTICAS. Como o papel do discurso era decisivo, eles foram efetivamente os mestres da democracia. A arte deles era, antes de mais nada, formal: ensinavam seus alunos a tcnica oratria, o bom uso dos argumentos, a hierarquia dos efeitos. Mas tornaram-se tambm os defensores da novidade: retiram de bom grado suas "provas" da experincia histrica, das descobertas artesanais, dos trabalhos dos "fsicos" e dos mdicos, que eles mesclam com referncia s lendas tradicionais da Grcia com o Panteo religioso.

Todavia, por trs dessa prtica, revela-se uma concepo mais profunda: quando Protgoras declara que "o homem a medida de todas as coisas", afasta essa tradio; afirma que a Cidade o produto do ato dos homens e que as leis resultam de convenes. Na mesma tica, Crtias chegar a afirmar que os deuses so criaes dos governantes para dar estabilidade ordem social. Para legitimar o regime democrtico, Protgoras reinterpreta sua maneira o mito de Prometeu; ele diz que os deuses, que distriburam desigualmente o talento entre os homens, deu-Ihes (para compensar a sua fraqueza emcomparao com os animais), a todos igualmente, a capacidade de julgar o bem comum (cf., para todos esses pontos, os dilogos Protgoras e Grgias, de Plato). Novamente reafirmada a preeminncia do homem, que no tem outro juz alm dele prprio.E contra essas teses que, segundo Plato, a reta filosofia deve se dirigir - em nome do que divino no homem... Essa filosofia no tem dificuldade em mostrar que, se se tomar a srio a sofstica, bloqueia-se qualquer possibilidade de enunciao duradouramente vlida e, por conseguinte, qualquer poltica coerente. Uma tal poltica s pode ser fundada num conhecimento exato da ordem das coisas. Tudo se passa, portanto, como se o filsofo dispusesse de uma alternativa: ou a concepo dos sofistas - e. mais geralmente, dos "amantes da terra" - correta, caso em que preciso optar pela democracia e por seu aborto, a tirania, com seu cortejo de violncias, de injustias e de servides. Clicles, personagem do Grgias,1 que sintetiza os traos dos sofistas mais resolutos, retira a conseqncia do carter convencional da lei; por exemplo: se a lei (nomos) no garantida por uma ordem qualquer, a dos deuses ou da natureza (physis), ento cada um est no direito de agir com o objetivo de satisfazer livremente seus impulsos naturais - de pretender ser tirano. ou existe uma ordem superior - que no falsa ordem da natureza ou dos deuses tradicionais , que s pode ser apreendida pelos que se esforam no sentido de domar os prprios apetites sensveis e de exercitar o "olho da alma" atravs de uma educao sistemtica do logos, da atividade discursiva: esses vero se esboar no mundo intelegvel o esquema da Cidade perfeita, que corresponde ao da alma individual bem regrada e distribuio csmica dos caracteres humanos.Esse esquema o seguinte: uma classe de cidados deve prover as necessidades materiais da coletividade; sua virtude trabalhar e obedecer; pertencem a essa classe que o cosmos fez nascer com uma alma na qual predominam os apetites. Uma outra tem como misso rechaar os inimigos e garantir a segurana interna; sua virtude a impetuosidade e a disciplina: composta pelos indivduos cuja alma orgulhosa e corajosa. Finalmente, uma outra garante a autoridade soberana e gere a coletividade; constituda pelas naturezas filosficas, pelos "filhos das idias", que provaram - pelo exerccio e pelo estudo sua capacidade para saber e, portanto, para comandar. Uma tal organizao supe que os homens e as mulheres sejam igualmente cidados e que os bens e os filhos sejam comuns (ou seja, supe o aniquilamento da famlia); que o filsofo-rei proceda, graas a seu saber, s melhores combinaes eugnicas e seleo que permita a classificao de cada cidado na classe adequada sua natureza.As Leis propem um programa poltico que atenua amplamente a rigidez desse modelo. Sugeriu-se que a Repblica - onde tal modelo exposto - seria talvez uma fbula moral. Resta o fato de que a Callipolis permaneceu como o tipo por excelncia: da Utopia racionalista, que - em nome da perfeio - submete o Poder ao Saber e a organizao social s exigncias da Ordem unificadora.1. Ao contrrio ele sua maneira habital. Plato no pe em cena sob o nome de Calicles um personagem histrico. Decerto, sob essa denominao, ele construiu o tipo por experincia do inimigo da reta filosofia.D. O cidado na CidadeA poltica platnica rompe to fortemente com a representao grega da cidade que no provocou admirao em seu tempo. A reflexo poltica reagiu contra ela e contra a irrupo de demagogia que se alastrou por todas as cidades no sculo IV a.C. Xenofonte - tambm discpulo de Scrates - esforou-se por restaurar o ideal de um poder que, apoiando-se na tradio religiosa, gerisse a coletividade como um pai governa seu lar. lscrates considerava que a desgraa das Cidades gregas provinha de sua diviso, e buscou uma autoridade que as confederasse, mantendo-lhes a autonomia; desse modo, anunciou a "suserania" que iriam exercer Filipe da Macednia e Alexandre o Grande.Entretanto, a reao mais interessante a de Aristteles. Ele adota a posio filosfica, a que considera indispensvel a referncia s Idias; mas considera que a utilizao feita por Plato dessa referncia ineficaz e perigosa. Assim como a morte injusta de Scrates foi o evento que desencadeou a vocao de Plato, do mesmo modo o fracasso emprico de Plato - sua incapacidade de convencer Dionsio de Siracusa - determinou, para Aristteles, uma interrogao que estar na origem de uma concepo poltica ainda hoje viva. Seu projeto no apenas o de tornar a filosofia praticvel no seio da Cidade tal como ela , mas tambm de dar-lhe credibilidade como instrumento terico capaz de determinar, para cada cidade e em geral, qual a melhor Constituio e quais as virtudes e capacidades exigidas dos cidados.Esse projeto implica uma defesa e uma reabilitao da Cidade real contra todos os seus detratores, tanto contra os discpulos dos sofistas que - como Clicles - exaltam o individualismo, como contra os utopistas que sonham com um retorno tradio "monrquica" ou inventam um modelo que incita implantao de um poder que exera uma autoridade coercitiva e ilimitada. Contra os primeiros, ele faz valer as exigncias da sociabilidade natural, condio necessria para uma existncia feliz e virtuosa; contra os segundos - e, em particular, contra Plato -, exalta o ideal realista da Cidade, que faz da liberdade dos cidados a condio prvia, de toda, organizao justa. A crtica da Calipolis de extremo vigor: a comunidade dos bens, das mulheres e dos filhos se ope natureza e desconhece o fato de que, se a Cidade a unidade d uma multiplicidade, ela feita de pequenos grupos e de indivduo,s que so, distintos uns dos outros (e se apegam sua distino). O erro de Plato querer reduzir seres diferentes igualdade aritmtica e aplicar autoritariamente uma proporcionalidade geomtrica ordem social, quando nesse domnio opera uma contingncia que torna impossvel a' aplicao estrita do raciocnio cientfico.Mas o essencial da crtica refere-se ao governo dos filsofos. Aristteles est convencido da excelncia da filosofia. Mas, porta-voz da tradio cvica grega, ele considera que um erro atribuir o poder definitivamente a uma parte do corpo social, sem que nada o limite. A separao dos cidados em trs classes, uma das quais comanda de modo absoluto, parece-lhe contradizer a vocao da Cidade. Os cidados no tm outro senhor alm da lei: e essa tem como funo garantir a liberdade de todos e realizar a justia, punindo o criminoso na proporo de seu crime, devolvendo a cada um o que lhe foi ilegalmente subtrado, distribuindo a cada cidado "o igual pelo igual" (por exemplo, a isonomia) e o "desigual pelo desigual" (por exemplo, a recompensa em funo dos mritos). A prpria lei no nem uma construo artificial, nem um dado da pura Razo: a expresso poltica da ordem natural, levando em conta a situao da cidade e de sua histria, assim como a composio do corpo social. Por isso, a questo das Constituies e de sua hierarquia secundria: quer seja monrquico, oligrquico ou democrtico, o regime moderado vale mais do que o excessivo; e uma combinao equilibrada de democracia e oligarquia permite, sem dvida, a melhor existncia. Mas o importante que a lei seja o princpio. Pois a funo da poltica , para Aristteles, conjurar o risco constante da servido. Sua teoria da escravido - que nos parece monstruosa - tem tambm como objetivo estabelecer que, entre a vida poltica e a servido, h uma antinomia: se h servido - e Aristteles no concebe a possibilidade de no haver -, ela de ordem natural, no de ordem poltica.2 . O imprio romanoCom ele, segundo Hegel, comea "a prosa do mundo". Seria leviano interpretar essa frmula de modo pejorativo: se verdade que a civilizao romana no teve a riqueza de inveno da grega, soube suportar para o real idias elaboradas por essa e construir instituies de uma eficincia incontestvel. Seu prosasmo , antes de mais nada, um sentido constante do fato consumado e de sua inscrio nas estruturas coletivas O pragmatismo do pensamento e da prtica poltica romanas no aceita o compromisso e a oportunidade a no ser na medida em que concordem com a tradio de grandeza e potncia na cidade de Rmulo. Os enunciados jurdicos e as legitimaes filosficas intervm como quadro, como marca e como perpetuao da ao fundadora da comunidade cvica. Assim, o direito, a res publica e o imperium atuam enquanto instituem a ordem militar e administrativa estabelecida de fato pelo Povo e pelo Senado.

A. As virtudes republicanasInclusive na poca do pior despotismo imperial, Roma sempre se proclamou republica. Esse semblante parecia indispensvel ao seu poder. Ela transformou-se em si mesma somente quando se desembaraou do arcasmo representado pela realeza e definiu o direito. O direito: quando, por volta de 450 a.c., os decnios fizeram gravar a Lei das Doze Tbuas, estava constituda a base do direito romano. Seu objeto , em primeiro lugar, a famlia. O cidado, o homem livre, o pater familias: senhor absoluto da "casa", cabe-lhe representar junto aos juzes quando julgar que ele prprio, os seus ou suas propriedades sofreram algum dano, bem como exigir as reparaes e penas adequadas. Quando o direito se enriquece com prescries cada vez mais numerosas e precisas, quando se estende aos "peregrinos", depois a todos os que adquirem o direito de cidadania, ele forma um cdigo estrito, regulamentando o conjunto da vida social e definindo as liberdades e os deveres de cada um. Ser preciso ver nisso uma expresso da concepo estica que, reconhecendo a existncia de uma ordem do mundo inelutvel e racional, considera a submisso tranqila ao destino como a nica virtude? significativo que esse cdigo tenha como objetivo principal regulamentar do modo mais claro e equnime possvel o que , e no propor um deve-ser. Paralelamente, afirmavam-se as instituies Republicanas. A sigla que as designa - SPQR, Senatus Populusque romanus - assinala que o poder que nelas se exerce , pelo menos, duplo. O historiador grego romanizado, Polbio (200 a.c. - 125 a.c.), analisando a expanso de Roma e a vitria sobre Cartago, concluiu pela excelncia de uma organizao poltica que soube constituir uma mescla harmoniosa de trs regimes. O pensamento de Polbio amplamente tributrio da tradio dos filsofos e dos historiadores clssicos: combinando habilmente a concepo da histria de Plato e sua teoria da decadncia com as anlises de Aristteles relativas aos mritos comparativos das diversas Constituies, investigando as retificaes sucessivas realizadas pelos romanos em funo das circunstncias e de sua expanso territorial, Polbio apresenta a Repblica como sistema que equilibra as vantagens da monarquia (asseguradas pela autoridade firme e benevolente dos cnsules), da aristocracia (realizadas na prudncia e na sabedoria do Senado) e as da democracia (garantidas pelas disposies que tm como objetivo o respeito pelos interesses e direitos do povo). Esse equilbrio , na opinio de Polbio, o melhor meio de conjurar a degenerescncia inscrita "por natureza" nas realidades sujeitas ao devir. Por mais edulcorada que seja essa imagem e por mais falaciosa que se revele essa esperana, certo que so ambas constitutivas da idia que os cidados faziam de suas instituies: e isso a ponto de mant-las enquanto as legies faziam e desfaziam os imperadores.Entretanto, foi a Ccero (106 a.C.-43 a.C.) que coube o privilgio de definir os princpios que servem de fundamento para essa Cidade ecumnica (= universal) na qual Roma conquistadora est se transformando. Inspirando-se nos esticos Pancio e Possidnio, ele considera que existe uma lei natural, vlida para todos os homens, que est inscrita na prpria ordem do cosmos; trata-se de uma lei que podemos conhecer usando a reta razo, uma lei imutvel e eterna, e que deve ser tomada como regra absoluta de toda Constituio e de toda legislao. A natureza (cosmos) - que, segundo o estoicismo, a mesma coisa que a Razo - , assim, a norma da organizao justa c da ao virtuosa: bastaria aprender a conhecer suas incitaes e obedec-las com toda lucidez para agir como convm. Infelizmente, os maus hbitos e os movimentos passionais nos arrastam para bem longe dos seus ensinamentos.Desse modo, as legislaes de fato aparecem, no mais das vezes, como produtos dessa ignorncia. O mrito' das instituies romanas, contudo, consiste em ter definido a comunidade por elas regida com base num vnculo jurdico e numa ordem poltica estritamente determinada. Por causa disso, a respublica ganha uma outra consistncia: formada por experincia e por reflexo, tambm - de certo modo e na medida em que a contingncia histrica permite - a expresso da lei natural. A Cidade ecumnica pode assim ser compreendida enquanto concede progressivamente o direito de cidadania e faz com que os povos conquistados se beneficiem das garantias do direito romano, como o ncleo de uma organizao universal que faz de cada indivduo um cidado do mundo, um cosmopolita.Sem o querer, Ccero prepara a ordem imperial. E isso em medida tanto maior quanto, retomando o tema da constituio mista, esboa a imagem do princeps, do prncipe-rbitro, "tutor e defensor da respublica". Dezesseis anos depois da morte de Ccero, Otvio Augusto receber o ttulo de Imperator.

B. O "imperium romanum"O Imprio - como forma poltica - inscreve-se no destino de Roma; em seu quadro e graas ao tipo de ordem que ele exerce que a cidade ir realizar sua virtude e difundir universalmente sua civilizao. O poder que ele define, juntamente com a sacralidade que cedo se lhe acrescentar, atualiza de modo exemplar a tripartio das funes scio-POLTICAS que caracterstica - segundo Georges Dumzu - da cultura indo-europia. Sob a tutela de Csar Augusto onipotente, equilibram-se - segundo a hierarquia - as trs "foras" constitutivas da comunidade: no topo, a classe dos sacerdotes-reis, os senadores, os magistrados civis, que tm o encargo de se comunicar com os deuses e de administrar a republica sob a invocao de Jpiter; a classe dos guerreiros que defendem a cidade e, sob a invocao de Marte, estende sua glria; Quirino, a classe dos agricultores e dos artesos, que' provem as necessidades materiais.Na pessoa de Csar Augusto, encontram-se reunidos os' diversos atributos correspondentes a essas trs funes: o imperador - que tal porque o consensus o quis - senhor na ordem poltico-religiosa, j que detm a potestas administrativa e a auctoritas, qualidade moral que lhe permite julgar o que conveniente ao bem pblico; enquanto imperator, o chefe supremo das legies; finalmente, como princeps, tem uma espcie de encargo "patronal", que lhe d a misso de empreender, nos domnios relativos vida econmica ou artstica, tudo o que pode contribuir para a felicidade e a honra da cidade. A extenso territorial de Roma no Oriente mediterrneo concorreu para reforar os aspectos religiosos do poder imperial. E, ao mesmo tempo em que cresciam desmesuradamente os aparelhos administrativos e militares, o imprio tornou-se o local de uma circulao de capitais, de mercadorias e de populaes to intensa e to diversificada que a vocao ecumnica tende a se perder.Nessa situao, trs problemas pol(ticos fundamentais se colocam: Inicialmente, um problema "constitucional" o da sucesso imperial. Circunstncias excepcionais presidiram a designao de Otvio. Qualquer que tenha sido a natureza desse poder, no se poderia questionar o falo de que no foi mantida a fico de continuidade com a tradio republicana, e que o "prncipe" no foi eleito ao mesmo tempo pelo Senado, pelo Povo e pelas legies, encarregadas de formar um consensus. Foi excludo que a filiao real tivesse algum papel, mas considerou-se normal que o imperador em exerccio preparasse a sua sucesso. As anlises histricas de Tcito constituem uma espcie de meditao - razoavelmente pessimista - sobre os papis respectivos do acaso c da necessidade, da fora bruta e da reflexo, da sorte e do azar, da descontinuidade e da continuidade, no acesso dessa ou daquela personalidade funo suprema. Pragmatismo e fatalismo combinam-se estranhamente, sem prejuzo notvel para a potncia romana, enquanto as foras unificadoras predominam sobre os fatores de disperso... Um segundo problema nasce da prpria estrutura do poder imperial: a onipotncia, a sacralidade e o tipo singular de legitimidade de falo que a ele se liga engendram, nos que exercem esse poder e nos que dele fazem parte, uma angustiada reflexo sobre o comando. Sneca (4 a.C. - 65), que foi preceptor de Nero, e Marco Aurlio, que foi imperador de 15> 1 algO, interrogavam-se - na perspectiva definida pelo estoicismo - sobre a relao do indivduo com seu destino e sobre o papel que cada um tem na deciso dos eventos. A idia (originria da filosofia clssica grega e do antigo estoicismo) de um clculo racional que permite guiar a conduta substituda paulatinamente por uma doutrina da dignidade, que consiste em se conformar com a virtude e em aceitar o destino, a despeito da loucura dos homens e da histria. O terceiro problema mais precisamente poltico. Quanto mais o imprio se expande, tanto mais se multiplicam os fluxos que o atravessam, tanto mais a pax romana torna-se frgil. Pesam ameaas nas fronteiras distantes; os povos recm-conquistados apresentam o permanente risco de se rebelarem. Se permanece em Roma, o imperador abandona suas legies; se se bate nas fronteiras, perde; o controle da rede administrativa. Alm disso, a gesto desse imenso conjunto exige um nmero cada vez maior de pessoas. Os fatores de disperso tornam-se cada vez mais fortes. O edito de Caracala, que em 212 concede a cidadania a todos os habitantes do Imprio, no bastar para conjurar os efeitos desintegradores. nessa situao que se desenvolve a pregao crist na bacia do Mediterrneo. Em 312, o Imperador Constantino pe fim s perseguies anticrists; em 324, ele funda Constantinopla, sua capital oriental; em 337, morre batizado.3 . O monotesmo: a Cristandade e o IslOs dois eventos importantes do primeiro milnio nessa rea da civilizao so incontestavelmente o xito poltico de duas religies reveladas: a Cristandade e o Isl. Suas vises do mundo, parentes e diversas, iro marcar duradouramente as idias e os costumes. Uma e outra encontram suas razes nos textos sagrados do povo judaico, reunidos no que se chamou de Velho Testamento. Esses textos tm de original, em comparao com a tradio greco-latina, o fato de afirmarem a preeminncia absoluta de um Deus nico, pessoal e criador, senhor da Lei; e a queda do homem, que se perdeu por causa de seus pecados, bem como a possibilidade da redeno, oferecida por Deus em sua bondade aos homens que quiserem escut-lo. Ao profundo naturalismo greco-latino, esse monotesmo ope uma concepo do homem como criatura que mantm com seu criador relaes pessoais espirituais e uma concepo da comunidade como sendo fundada no num projeto tico-poltico, no numa relao jurdica, mas numa aliana religiosa. Disso resultam singulares noes da liberdade e da responsabilidade e, portanto, da ao histrica, que o cristianismo e o Isl iro reativar, cada um a seu modo.

A. A Cidade de Deus e a Cidade dos homensDesde seus primeiros sculos, o cristianismo pe - notadamente atravs de So Paulo, que comenta e ordena a palavra de Cristo, um problema decisivo: o da relao entre o crente e a ordem temporal. "Dar a Csar o que de Csar e a Deus o que de Deus": frmula feliz, mas que desconhece os numerosos casos em que o servio do imperador entra em conflito com o do Criador.

So Paulo no deixa de especificar que a obedincia civil uma virtude crist, assim como a submisso aos dados sociais e naturais. Todavia, no sculo II, o pensador pago Celso recrimina duramente os cristos que recusam se submeter aos deveres que cabem aos cidados. O crente est dividido, dilacerado entre a coletividade a que pertence de fato e a comunidade de f qual adere: tanto mais dividido quando essa comunidade lhe exige a ao de evangelizao. A aceitao santa do martrio, os delrios eremticos, no podem ser mais do que solues excepcionais.A converso de Constantino parece conter a possibilidade de uma soluo para esse problema. Ela limita-se a institucionaliz-la. O liame de f existente em. Roma entre o imperador e o sucessor de So Pedro no implica de modo algum que o poder militar e administrativo se funda com a autoridade espiritual do bispo da cidade sagrada. Essa fuso tanto menos realizvel porque, por um lado, o Imprio est ameaado por todos os lados em funo da irrupo de povos conquistadores vindos do Leste, e tem de assegurar sua defesa militar; e, por outro lado, porque Roma toma-se o centro da Igreja, instituio que - sendo de natureza espiritual - nem por isso deixa de desenvolver uma administrao hierarquizada e de possuir um poder que no pode deixar de se interessar pelas questes temporais. Quando, em 410, o rei visigodo Alarico, convertido seita crist de rio, saqueia Roma, Santo Agostinho - bispo de Hipona - compreende que preciso clarificar a doutrina da Igreja e, para isso, escreve a Cidade de Deus (413-427).Esse texto constitui uma inflexo decisiva do pensamento cristo e marca a cultura europia. Seu objetivo apresentar uma histria geral da humanidade desde a Criao at o sculo V, submetendo aos critrios da racionalidade os elementos fornecidos tanto pela histria profana (grega e latina) como pelo Velho e pelo Novo Testamento. O fim visado estabelecer que, alm das vicissitudes da Cidade dos homens, esboa-se um desafio muito mais importante, o da glria de Deus, que se inscreve no devir espiritual da comunidade dos crentes, da Igreja. A criao, o pecado original, a aliana de Deus com o povo judaico, o sacrifcio do Messias, a fundao da Igreja, so as etapas desse devir sagrado, onde se reconhece a Providncia divina, mas da qual cada um participa segundo suas obras de f, um devir que deve levar Ressurreio dos corpos e beatitude. Enquanto o pensamento grego aceita como modelo de temporalidade o ciclo do cosmos, Agostinho define o tempo como histria linear que tem um comeo - a Criao - e um fim - a Ressurreio dos justos -, que a prpria histria da humanidade, concebida - segundo a frmula de Pascal - "como histria de um s homem", feita de eventos inteiramente singulares, e possuindo um sentido, ou seja, ao mesmo tempo uma orientao e uma significao. Desse modo, ele estabelece o esquema, que doravante se tornar caracterstico, das vrias filosofias da histria, inclusive das mais modernas, que tm a pretenso de ser as mais materialistas e as mais cientficas.Trata-se, para ele, de recordar a cada membro da comunidade crist sua responsabilidade histrica: para alm dos conflitos terrestres e por ocasio desses, importa no apenas trabalhar para a prpria salvao, atravs do respeito s regras crists de vida, mas tambm assegurar, pelo triunfo espiritual da Igreja, a glria do Criador. Desse modo, ele se ope tanto concepo greco-romana, que coloca como ideal a constituio e manuteno da cidade feliz e virtuosa quanto histria proftica do Velho Testamento, substituindo-as pelo militantismo da f, esclarecido pelo ensinamento de Cristo e pela busca da mxima inteligibilidade.

A obra dos Pais da Igreja orienta-se na mesma direo. Mais ainda: a determinao do dogma, que permite perseguir as heresias e legitimar as excluses, abre caminho para o fortalecimento da instituio eclesistica, a qual - possuindo uma certeza doutrinria acha-se em condies de definir sua prpria legislao interna. O Direito Cannico - sistema de enunciados normativos que regula a conduta do pessoal da Igreja e fixa suas relaes hierrquicas e seus tribunais - institui no dentro da comunidade dos fiis uma ordem que deve traduzir neste mundo a Lei divina e, por isso, legifera (diretamente ou por diferena) para a totalidade dessa comunidade. Pierre Legendre (L'amour du censeur: Essai sur l'ordre dogmatique, Le Seuil, 1974) v nessa autoridade - que, em nome do Amor de Deus e dos que o representam, exerce sobre os costumes uma censura rigorosa e parentemente fundada a origem formal da concepo do Direito e das leis que domina at hoje no Ocidente.A esse mesmo estado de esprito - que visa a garantir a preeminncia da Cidade de Deus -, liga-se a fundao, desde o sculo VI, da ordem dos beneditinos, preldio de uma florao que ir se expandir a partir do sculo XI. As ordem religiosas, em particular as contemplativas, formam de certo modo os basties do mundo espiritual no seio da realidade temporal. Vivendo em autarquia, obedecendo a suas prprias regras, subtradas aos tumultos do mundo, essas sociedades tm como misso no apenas testemunhar, mas tambm orar (orare) e trabalhar (laborare) - atravs da investigao das Sagradas Escnturas - para a maior glria de Deus. Na mesma tica, inscrevem-se as pregaes que, do sculo XI ao XIII, foram suscitadas pelas expedies militares e pelos movimentos populacionais rumo Sepultura de Cristo, conhecidos como Cruzadas. Quaisquer que tenham sido as motivaes dessas aventuras coletivas - econmicas e POLTICAS -, elas correspondem tambm a uma operao do pessoal mais intransigente da Igreja (como So Bernardo de Clairvaux), visando a lembrar que o servio de Deus e o triunfo de sua Igreja so o primeiro dever dos Prncipes.Essa espcie de "guerra santa" em que se converteram as Cruzadas foi a ocasio paraprecisar que a fundao do Isl no sculo VII na Arbia, e seu" rpido desenvolvimento no Oriente-Prximo, no Norte da frica e at na Espanha, foi tambm objeto de debates de ordem poltica, mas diferentes. Com efeito, a ao de Maom cria simultaneamente um espao religioso e um espao poltico que se entrecruzam, de tal modo que o fato de pertencer comunidade dos crentes define imediatamente a insero poltica. Essa identidade de fundao tem como principal conseqncia o fato de que no se estabelece uma instituio eclesistica dotada de um estatuto de autonomia no seio da coletividade, e de que o Isl dos primeiros sculos escapa aos conflitos que - nos regimes cristos - iro nascer a partir das relaes Igreja/poder poltico/sociedade. Entretanto, precisamente essa situao impe uma questo crucial, com implicaes ao mesmo tempo religiosas e POLTICAS: quem pode suceder o profeta? Se a funo proftica est definitivamente concluda, resta encontrar a figura a central capaz de garantir as tardas militares e administrativas e de realizar a vocao espiritual e universalista do Isl. Para os califas (khalifat rasl Allh = sucessor do mensageiro de Deus), a conquista, o proselitismo guerreiro, a Jidah (guerra santa) constituem a soluo. Ela a prtica coletiva que realiza a misso de persuaso religiosa, que permite libertar os pagos de sua crena idlatra, de fazer com que as "pessoas do livro" - os judeus e os cristos - conheam a prpria palavra de Deus, de estender r a qualidade de membro da Ummma (comunidade muulmana) - reservada originariamente apenas aos rabes - aos convertidos... Nem por isso deixa de ser verdade que, medida que essa comunidade se estende, os antagonismos polticos, as discrdias quanto interpretao do Coro, a multiplicao efetiva dos poderes militar-administrativos, tracem em seu seio diferenciaes que anulam praticamente a unidade originria.B. Poder espiritual e poder temporal: auctoritas/potestas

A concepo agostiniana est na origem da chamada teoria das duas espadas, que visa a normalizar, no Ocidente, depois da separao dos dois imprios, que se torna efetiva no sculo V, as relaes entre a ordem temporal prpria dos "reinos" (e, em particular, o que est chamado a suceder o Imprio Romano) e a ordem espiritual sobre a qual reina o bispo de Roma, o Papa. Formalmente, tal como foi exposta pelos Papas Gelsio e Gregrio o Grande (540-604), a teoria cara: somente Deus detm a plenitudo potestas, a potncia suprema; todavia, no mundo c de baixo, feito de espiritualidade e de materialidade, a onipotncia delega a dois poderes distintos o cuidado de fazer a ordem divina triunfar: ao Pontfice, a auctoritas, a mais alta dignidade; ao Rei, a potestas temporal.

Cada um soberano em seu domnio: a autoridade do Papa em matria religiosa e eclesistica absoluta; o poder do Rei sobre os seus sditos tambm o .Cada um deles deveria se satisfazer com isso. Mas, se no o quiser, e romper o equilbrio, tornar-se- fonte de conflitos. Se o chefe da comunidade dos cristos quiser e puder, ele exigir - em virtude da autoridade religiosa que exerce, inclusive sobre os chefes temporais - que esses sejam reduzidos funo, de brao secular da Igreja; se um chefe temporal quiser e puder, ele far presso sobre o poder espiritual a fim de utilizar sua autoridade para realizar seus apetites de glria e de conquistas.

O coroamento de Carlos Magno em Roma, em 800, realiza essa segunda eventualidade: um monarca piedoso, justo e forte toma em suas mos o destino da comunidade crist, que lhe deve obedincia porque o pontfice romano assegurou-lhe tal obedincia. Todavia, nos sculos seguintes, as rivalidades enfraquecem os poderes temporais e a Igreja afirma sua autoridade administrativa e espiritual; ento, a segunda interpretao que se impe. O Papa Gregrio VII humilha o Imperador Henrique IV em Canossa (1077). Inocente III e Inocente IV infletem a teoria das duas espadas num sentido que confere a potestas ao Papado, o qual designa com plena autoridade os executores temporais que lhe convm. Com efeito, a resistncia a Roma vira no dos imperadores, mas dos reinos. enquanto representante de uma comunidade territorial que os chefes temporais iro se opor ao avano, temporal do poder da Igreja Romana. Esses reis valem-se, ao mesmo tempo, dos direitos costumeiros, de origem germnica, e de certos aspectos do direito romano, para imporem sua autoridade a seus sditos. E o conseguem com tanto mais sucesso na medida em que se afirmam eles prprios como servidores da comunidade.Esse esboo da formao de poderes "nacionais" a partir do sculo XI - que mais marcado na Inglaterra e, depois, na Frana ir cedo encontrar legitimaes e canais tanto tericos como empricos. Entre as primeiras, significativa a reflexo poltica de Santo Toms de Aquino (1225-1274). Decerto, ela no tem como objetivo deliberado justificar o poder dos reis. Todavia, contribui de fato - contra o agostinianismo - para dar peso s comunidades estabelecidas. Rompendo com a perspectiva segundo a qual a Cidade dos, homens diretamente de instituio divina e ligada ao pecado original, Toms estabelece que ela - na ordem da Criao - um fato natural. Se Deus quer que os homens vivam em sociedade, disso resulta que o poder, cujo objetivo assegurar a unidade de uma multiplicidade, uma questo humana que faz parte do plano mais geral da Providncia e no de um desgnio singular de Deus ou de seu representante. Desse modo, a definio do bom poder uma tarefa exclusivamente da Razo. E, se essa indica que tal poder deve respeitar as prescries divinas, estipula tambm que preciso levar em conta o direito inscrito na natureza humana e as vontades da coletividade. E desse modo que atingir seu fim, o Bem, na medida em que ele realizvel c em baixo. Tem como tarefa facilitar a cada: um a realizao das virtudes naturais, deixando Igreja o cuidado da Salvao Eterna. Para cumprir tal tarefa, enunciar leis adequadas tambm aos costumes do povo sobre o qual se exerce e se esforar - na tradio aristotlica e romana, que se liga ao ensinamento de Moiss - por estabelecer uma Constituio mista que combine os mritos da monarquia, da aristocracia e da democracia. significativo que o naturalismo moderado de Toms de Aquno, desenvolvido quando da afirmao dos reinos cristos no sculo XIII, convirja - sem que haja a menor filiao - com uma investigao correspondente da cultura islmica do sculo seguinte, expressa na obra de Ibn Khaldun, que tem o mrito de acrescentar considerao da sociedade como fato natural uma reflexo sobre o destino histrico dos povos e das foras que nele se enfrentam. A Mugaddimah (1377) e a Histria Universal (1382-1406), alimentadas por conhecimentos enciclopdicos, rompem com o racionalismo abstrato da teoria islmica; empenham-se em descrever minuciosamente os dados reais a fim de descobrir as relaes que os regem. De certo modo, apiam-se numa concepo do devir social antittica quela na qual se apoiava o pensamento de Agostinho. A originalidade de Ibn Khaldun reside na elaborao de uma espcie de inteligibilidade experimental, que no deixa de recordar as pesquisas dos socilogos e historiadores atuais. Segundo ele, a histria consiste numa "informao sobre a sociedade humana", E, em completa oposio teologia, que interpreta o real em funo de uma revelao preliminar, retira da observao e do raciocnio sobre os eventos critrios que permitem julgar a respeito da veracidade dos relatos histricos. o caso, por exemplo, das noes operatriasde umrn (sociedade por oposio a "Estado") e de aabiyyah (solidariedade, esprito de grupo). Esse xito metodolgico, decerto, no independente da atividade poltica de Ibn Khaldun num Isl dilacerado por rivalidades temporais cada vez mais violentas.

C. Rumo ao Estado laico e tica profanaEnquanto no seio da ordem crist o papado afirma incessantemente (por exemplo, com Bonifcio VIII) uma primazia da autoridade espiritual, que implica a subordinao dos poderes temporais, impe-se nos reinos uma prtica jurdica e administrativa que garante a autonomia de um poder que se exerce em virtude de princpios profanos: o poder real. Deve-se ver nisso uma ressurgncia do Direito Romano ou a influncia da tradio germnica? No ser o caso, ao contrrio, de interpretar o fato como uma inveno dos elementos que esto na origem da modernidade? Muito cedo, na Gr-Bretanha, surgem instituies que tendem a impor uma jurisdio nica sobre o conjunto do territrio real, fundada sobre o que j se deve chamar' de "direitos da pessoa"; na Frana, a partir do sculo XIII, o rei c os legisladores empenham-se em destruir as cidadelas feudais e religiosas que contestam a preeminncia do poder central. Em todo o Ocidente cristo, opera-se uma transformao da natureza do poder: os laos pessoais organizados em torno da idia de suserania so progressivamente substitudos por uma hierarquia jurdico-administrativa centrada num princpio que anuncia a prpria noo moderna de soberania. A autoridade real no mais se exerce sobre um patrimnio povoado por populaes protegidas ou assistidas, mas sobre um territrio cujos habitantes possuem cada vez direitos e deveres bem definidos; o prprio monarca, que comanda os seus sditos de modo absoluto, no pode infringir as regras que editou ou com as quais concordou.Sem dvida, a tradio feudal, bem como as resistncias clericais, retomam incessantemente em seu favor as conquistas dessa primeira configurao do Estado de direito. O extraordinrio mrito de Marslio de Pdua, que publica em 1324 o Defensor da Paz, consiste em definir a partir dessa tendncia geral - o que ir ser o Estado laico no sentido do cristianismo. Seu objetivo confessado , certamente, mais limitado: defender as pretenses ao poder "universal" de um imperador alemo e polemizar contra a teocracia romana; seus princpios e sua argumentao pertencem aparentemente, de modo integral, tica tomista. Todavia, a empreendimento decisivo: em primeiro lugar, ele interpreta num sentida poltica a definio naturalista da saciedade; a diviso do trabalho tem par fim libertar o homem das necessidades e assegurar-lhe uma vida feliz c embaixo; a boa organizao da existncia profana - considerada fundamental - a objetivo da poltica. Em segundo lugar, ele considera a saciedade como um todo que, enquanto tal, anterior e transcendente em relao a suas partes: ela pode ser apenas a universitas civium - a universalidade das cidados (ou sua melhor parte) -, que tem cama funo legislar, editar as leis necessrias manuteno do todo; ela designa em seu seio um pars principami -um Prncipe (individual ao coletiva) -, que tem a seu encargo a coero e a gesto. Lanou-se assim a dispositiva terica que permitir o advento do conceito poltica de soberania, ou seja, o conceito moderno da Estada. Paralelamente a essa defesa da autonomia e da unidade radical da saciedade poltica, Marslio recusa a autoridade papal: a Igreja no mais da que um nome para designar a conjunta de crentes; no poderia ter um chefe; e as padres, encarregadas de preparar Os cidados para a salvao, dependem da Prncipe, tanto quanta as demais cidados; e isso nas quadras da lei.Na momenta em que se concretiza essa evoluo dos reinos, vo surgindo lentamente - a partir das prticas da vida coletiva - naes novas ou renovadas. Assim, a idia de universitas aplica-se no apenas totalidade das cidados, mas tambm aos grupos consensuais unidas em torno de uma tarefa e que obedecem a uma mesma regra: da monastrio universidade, da comuna guilda ou hansa, constituem-se corpos saciais que reivindicam e obtm a reconhecimento como personae fictae, como pessoas morais. No interior desses grupos, elaboram-se tcnicas de gesto que substituem as hierarquias tradicionais para relaes contratuais. Nessa mesma perspectiva o desenvolvimento do comrcio e dos negcios torna indispensvel uma moralizao da atividade mercantil. O comerciante, como a queria Marslio, adquire direita de cidadania na medida em que participa do bem-estar comum. A Cidade profana, que tinha a fora, lastreia-se de realidade. Da ordem sagrada que combatia, ela toma de emprstimo - para se afirmar - regras e principias. Assim, a plenitudo potestas tende agora a pertencer ao rei. Os mltiplas abalos da perodo que se designa como Renascimento iro radicalizar essa orientao.

CAPTULO IIO PRINCPE-ESTADO1. Do prncipe soberanoA partir do incio do sculo XVI, produzem-se transformaes que abalam as sociedades da Europa Ocidental. Essas mltiplas e interferentes transformaes - o Renascimento - envolvem:a. as realidades histricas e econmicas (extenso e aplicao - prtica das descobertas feitas durante a Idade Mdia; desenvolvimento da civilizao urbana, comercial e manufatureira);b. a imagem do mundo (descoberta' do Novo Mundo; revolues astronmicas de Coprnico e Kleper e fsica de Galileu);c. a representao da natureza (o universal medieval dos signos substitudo por uma realidade espacial a conquistar e explorar);d. a cultura (a redescoberta da Antiguidade greco-romana pelos humanistas suscita um maior interesse pelo homem enquanto dado natural e pelas especulaes tico-POLTICAS);e. o pensamento religioso (a radicalizao da contestao do poder e da hierarquia de Roma, esboada no sculo XIV por J. Hus, na Bomia, e Wycliff, na Inglaterra, pelos movimentos que reivindicam o cristianismo primitivo e se apiam em especificidades "nacionais"'.Esses abalos c os conflitos que os marcam colocam s prticas e s reflexes POLTICAS problemas que essas vo tentar resolver por meio de invenes que esto na origem da modernidade: entre as mais marcantes, a do Estado como soberaniaA. O Estado como fundao absoluta: MaquiavelQuaisquer que sejam as continuidades (ou filiaes) ideais entre a Antiguidade e a Idade Mdia, por um lado, e os Tempos Modernos, por outro, o "secretrio florentino" introduziu uma ruptura decisiva; contra as teorias da sociabilidade natural, contra os ensinamentos da Revelao e os da teologia, ele afirma - porque constata - que, no que se refere s atividades coletivas, o que o Estado. Foi ele quem deu a esse ltimo termo sua significao de poder central soberano legiferante e capaz de decidir, sem compartilhar esse poder' com ningum, sobre as questes tanto exteriores quanto internas de uma coletividade; ou seja, de poder que realiza a laicizao da plenitudo potestalis. A poltica como propriedade natural do homem ou como ordem imposta ao mundo c de baixo; substituda pela poltica como atividade constitutiva da existncia coletiva.Essa afirmao da originalidade absoluta do Estado e da autonomia do poltico funda-se no conhecimento que se pode obter tanto' das repblicas e dos principados modernos quanto da histria poltica da Antiguidade. Em seus Discursos sobre a primeira dcada de Tito Lvio (1512-1519), Maquiavel deduz os ensinamentos trazidos pelo devir dos romanos, ensinamentos to srios quanto os que se pretendem extrair da interpretao dos textos sagrados: h regras que presidem o governo e que tm a mesma natureza das leis que governam o movimento das estaes e nada tm a ver com qualquer tipo de dever moral. Ora, a histria de Roma '''- em sua crueza, mas tambm em sua perenidade e grandeza - revela princpios essenciais: a unidade poltica, condio da existncia social, repousa num ato que institui o Estado, ato que o de um legislador que define, de uma vez por todas, o que justo e " que injusto, e o pleno exerccio do poder. Esse ato de instituio um princpio que deve ser mantido constantemente (ou restaurado prontamente se algum revs da fortuna minimizou a fora do princpio); e isso quaisquer que sejam os meios utilizados pelo legislador ou pelo seu sucessor. E preciso observar que o detentor (individual ou coletivo) do poder de Estado, que pode e deve fazer tudo para assegurar tal poder, no pode ser assimilado a um tirano: Maquiavel faz seu o dio dos romanos pela tirania, que no tem. como meta o triunfo do Estado, mas o capricho de quem se apoderou dele.O Prncipe - que se apresenta como uma obra de tcnica do governo, composta em 1513, mas publicada mais tarde - organiza-se em torno dos mesmos temas. Maquiavel indaga que conduta deve adotar quem tem como projeto a instaurao ou restaurao de um principado duradouro, forte, honrado e feliz. Ele se dirige aos Mdicis, que acabam de retomar o poder em florena; mas tem em vista o chefe que assumisse a tarefa de unificar a Itlia sob uma mesma bandeira, de libert-la das invases estrangeiras e de pr fim s rivalidades fratricidas. A tradio' qual devemos o uso atual do termo "maquiavelismo" conservou desse texto somente a apologia que nele seria feita da imoralidade indispensvel e, por conseguinte, legtima que se liga a toda vontade de poder. A significao de O Prncipe de outra amplitude: trata-se, antes de mais nada, de mostrar que - se se quer o poder - preciso querer a onipotncia; que essa exige no apenas um ato de fundao absoluta, mas tambm uma. resoluo que no admite nem fraquezaS nem compromissos; que as consideraes morais c religiosas devem ser afastadas do clculo atravs -do qual se estabelece ou se mantm o Estado; que as coisas so assim ainda em maior medida porque o Prncipe senhor da legislao, porque define o Bem e o Mal pblicos e, por conseguinte, no que se refere s questes pblicas, nem ele nem os

cidados devem se valer dos "mandamentos" da Igreja ou da tradio moral; que, nessas mesmas questes, a recusa da violncia uma tolice e que, de resto, cabe distinguir a violncia "que conserta" daquela "que destri".A essas regras gerais - deduzidas dos dois princpios do Estado enquanto potncia e de autonomia do poltico -, Maquiavel aduz aspectos mais tcnicos; ele insiste, por exemplo, na incontestvel vantagem que constitui para o prncipe um "exrcito nacional. Mas, sobretudo, pe em evidncia a natureza estratgica da atividade poltica:a virtude do prncipe - qualidade de que se refere, ao mesmo tempo, firmeza de carter, coragem militar, habilidade no clculo, capacidade de seduo, . inflexibilidade - tem como inimigos seus adversrios, mas tambm a fortuna (o acaso); o prncipe ter sucesso se, sabendo avaliar o "bom momento", conseguir coloc-la do seu lado. O ensinamento de Maquiave pessimista? A expresso "reafista", decerto, mais adequada. Retomando as lies dos historiadores gregos e latinos, antecipando Hegel, o florentino constata que, em poltica, reinam a violncia, a astcia, a vontade de poder; se as' coisas so assim, ento melhor pr essas foras a servio do Bem pblico e aprender a conhec-las a fim de utiliz-las eficientemente como os meios desse fim legtimo. Quanto ao "maquiavelismo" e misantropia de que Maquiavel foi acusado, ser que no significam simplesmente que, quaisquer que sejam suas preferncias, o que exerce o poder no encontra o Bem inscrito em nenhuma parte, nem na natureza nem na sociedade, e que tem diante de si, ao contrrio, uma realidade envolvida pelo conflito e pela desordem dos interesses?

B. Os dois reinos e a espada temporal (Lutero e Calvino)Abril de 1517: o telogo Karlstadt expe 151 teses de inspirao agostiniana, segundo as quais tudo o que provm da natureza essencialmente mau e que a salvao depende apenas da ascese individual e da graa de Deus. Outubro de 1517: Martinho Lutero expe 91 teses, onde denuncia o trfico de indulgncias por Roma, que obtm assim considerveis ganhos materiais e exerce sobre seus fiis urnapresso moral inqua. Comea a Reforma: defendida pelos prncipes e cavaleiros alemes, mobilizando um amplo apoio popular, ela ir conquistar a Europa Ocidental e provocar um abalo profundo nas idias, instituies c sociedades. A inspirao dos reformadores , ao mesmo tempo, teolgica, moral e poltica.A argumentao teolgica funda-se num retorno ao cristianismo primitivo, palavra do Evangelho e pessoa de Cristo; denuncia. a idolatria romana, que substituiu o amor de, Deus pela adorao de imagens. e pela prtica dos rituais: Relembra o dogma to firmemente estabelecido por Santo Agostinho: a essncia da religio a F da criatura em seu Criador; essa relao profunda e imediata que forma a base da Cidade crist, que comunidade de caridade; a ordem da F a prpria ordem da Graa divina, que insondvel.A crtica moral toma corno alvo a corrupo generalizada do alto clero, mais preocupado com o poder, com o luxo e o bem-estar temporais do que com a piedade e a caridade; que joga com as inclinaes naturais dos fiis para exercer uma dominao que nada justifica e que . o leva a competir com os prncipes no emprego da violncia material e moral. Essa crtica se desdobra em polmica poltica que de fato uma polmica contra a Igreja enquanto instituio poltica. Com efeito, esse o aspecto Emprico do pecado cometido contra o esprito divino: Roma - desconhecendo o ensinamento de Agostinho, intrprete fiel de So Paulo, refletindo ele mesmo sobre o ensinamento dos Textos Sagrados - fez da comunidade crist uma instituio hierarquizada, submetida ao formalismo jurdico e implicando uma administrao. (uma burocracia) que tem poder sobre essa comunidade; ela organizou o "Corpo Mstico" segundo um modelo legado pelos pagos e inspirado pelo Diabo. Sendo assim, a corrupo se introduziu no prprio Reino de Deus, corrupo da qual o trfico de indulgncias apenas uma manifestao banal...O tema dos dois Reinos e de sua heterogeneidade radical o eixo do pensamento de Lutero. Ele ir assumir uma significao poltica por ocasio dos levantes populares que se produzem na Alemanha a partir dos anos 1520: no contexto da rebelio contra a Igreja Romana, estimulados por pregadores que se inspiram nas comunidades crists primitivas, que levam a recusa do ritual e da administrao eclesistica at a recusa do Sacramento do Batismo, que tem como objetivo a instaurao aqui e agora do reino de Deus, os camponeses pobres pegam em armas contra a dominao senhorial. Thomas Mnzer (1490-1525) - que se pretende discpulo de Lutero - o porta-voz deles: paracompreender o Evangelho, preciso experiment-lo em toda intensidade do vivido, no apenas no mais profundo de sua conscincia, mas tambm nos atos. Mnzer inventa uma nova missa em lngua alem, durante a qual o ensinamento de Cristo aplicado s situaes atuais, j que o pecado de Roma consiste menos em ter feito da Igreja um Estado do que em t-lo constantemente associado a Estados que tinham como regra a injustia e a opresso. Em 1524, explode a guerra dos camponeses; em 1525, a insurreio esmagada e Mnzer executado.Desde 1523, Lutero fizera conhecer sua posio sobre a revolta num texto "terico", o Tratado da autoridade temporal. Para compreender bem o seu sentido, convm recordar que seu autor - quando foi excomungado, expulso do Imprio - recebera um apoio ativo, quase militar, dos prncipes e dos cavalheiros alemes. Tanto isso verdade que, s razes religiosas e morais do sucesso da Reforma, juntam-se causas ligadas ao desejo de garantir a autonomia da religio nacional contra o ecumenismo exange de Roma. Ora, Lutero afirma a completa separao entre os dois reinos, o de Deus e o do mundo.Essa separao seria to radical como a que existe entre a Alma e o Corpo na Criao: o primeiro de liberdade, de graa e de misericrdia; o segundo, de servido, clera, rigor e castigo. Enquanto a alma depende apenas de Deus, o Corpo - envolvido por natureza no pecado - deve ser submetido, contido, punido pela Providncia Divina, de acordo com os caminhos por ela escolhidos: a ordem temporal dos poderes. Desse modo, o cristo - cuja alma livre na graa de Deus - deve obedecer s decises dos prncipes e aos golpes da histria e da sociedade, j que eles fazem parte do castigo da Culpa e fortificam a Alma vida de salvao. No Se deve resistir espada dos Reis. Salvo num caso: quando esses mandam obedecer ao Papa e a seus partidrios; nesse caso, eles saem do domnio que lhes prprio e legiferam em questes que se referem apenas a Deus e Alma crist."Meu reino no deste mundo": tomando a palavra de Cristo ao p da letra, Lutero deixa de certo modo o campo livre para a onipotncia do Estado no mundo terreno; confere-lhe o monoplio da deciso e da represso. Deixa-se ao cristo a possibilidade de intervir pela palavra e pelo exemplo, a fim de que sejam respeitados os mandamentos de Deus e afirmada a fora espiritual da comunidade dos fiis. Joo Calvino, em Instituio da religio crist (1536-1559), concorda com Lutero em prescrever aos cristos a submisso ordem temporal, mas sublinha o papel que devem desempenhar as conscincias piedosas no estabelecimento da moralidade pblica: reformador' de Genebra, quis fazer desta cidade uma Cidade-Igreja, que no certamente uma teocracia, mas que visa a fazer triunfar nas instituies civis a luz da F. Na poca das grandes transformaes do Renascimento, e no momento em que se afirmam ao mesmo tempo as realidades nacionais e o poder do Estado, a Reforma - com Lutero, Mnzer e Calvino - abre com vigor particular um importante captulo do pensamento poltico moderno: o das relaes entre comunidades religiosas e o Estado convertido em potncia laica, captulo que freqentemente, ao mesmo tempo, o das relaes entre exigncias morais e necessidade poltica. C. O Estado em questo:Thomas More, E. de La BotieEnquanto se reforam no territrio dos reinos os poderes centrais e vai se especificando (de maneiras contraditrias) a noo de independncia da realidade poltica, vo surgindo dvidas sobre a significao tica e social desse poder exorbitante. No prprio esprito do Renascimento, um erudito como Erasmo - em Instituio do Prncipe cristo (1516) - interroga-se sobre as qualidades que deve possuir um monarca investido de um poder to grande e de uma responsabilidade to ampla; e, dirigindo-se a Carlos V, esfora-se por compor um programa poltico que combinaria as virtudes evanglicas e as aquisies do novo humanismo. A Utopia de Thomas More, publica da no mesmo ano, certamente de interpretao demais difcil. Seu autor - investido das mais altas responsabilidades polticas por Henrique VIII da Inglaterra e executado por se ter oposto, em nome de sua f catlica, ao cisma anglicano - renova o modelo platnico da Repblica e do Critias. A Cidade desordenada e corrompida, ele ope a imagem de uma' organizao racional, fundada numa estrita diviso do trabalho e numa disciplina cvica rigorosa, mas tambm numa completa igualdade social (a propriedade privada e o dinheiro so proscritos) e poltica (os cargos so eletivos e a oposio entre o trabalho manual e intelectual eliminada), assim como na tolerncia quanto s opinies religiosas. claro que essa descrio da Cidade bem-sucedida um meio de criticar o estado de coisas existente. Mas o texto manifesta uma tal ironia que o leitor est no direito de perguntar se a utopia tambm significa o seguinte: vocs reclamam um Reino forte, estritamente centralizado e administrado, mobilizando a energia de todos; so estas as condies nas quais um tal reino poderia tambm ser justo e feliz; julguem se as condies so realizveis; vocs no deixariam de constatar que elas no o so de modo algum. No ser mais razovel renunciar a uma to louca ambio?Entretanto, foi a Etienne de La Botie que coube colocar, num registro mais grave, a questo de princpio. Entre diversos textos, alguns dos quais de grande fora, publicados quando das sangrentas guerras de religio e questionando a tirania dos reis, dos prncipes da Igreja e dos senhores da guerra, o Discurso da servido voluntria - escrito por volta de 1549 e reeditado em 1574 pelos calvinistas, sob o ttulo de Contra um - distingue-se por sua elevao de tom e por seu radicalismo. Ainda que as circunstncias histricas sirvam como pano de fundo, La Botie ousa pr a questo crucial, que tem sido at hoje apresentada pela maioria dos que (filsofos, telogos, estrategistas) tm refletido sobre o fato poltico: por que existe obedincia? Pergunta-se em geral qual a origem e a natureza do Poder (ou dos poderes): Deus? A Natureza? A Fora? O Povo? A Razo? A Lei do Pai? Ou ento qual o Poder legtimo. E discute-se sobre os mritos e os defeitos relativos dos diversos regimes de governo. Mas admite-se, como se se tratasse de algo bvio, que existe o Poder ou. Poderes, ou seja, uma instncia separada que assegura o comando; deixa-se de lado o fato de que o comando de "algum" implica a obedincia dos outros; e omite-se a questo de saber de onde provm a obedincia. Ora, vistas bem as coisas, essa impensvel. Por sua natureza, o homem livre; e o exemplo dos animais que preferem morrer a ser subjugados deveria fortific-lo nessa disposio; pela linguagem, ele entra em amizade e em sociedade com outros homens: essa sociedade deveria lhe bastar. Mas ele se deixa invadir pela dominao!Para compreender essa submisso, preciso evocar o temor do mais forte?, Por que centenas de milhares, de milhes de indivduos se rebaixam a ponto de receber ordens de uma s pessoa? Ser correto evocar o interesse? Que interesse pode haver em se deixar saquear, expoliar e subjugar? Serei que se impe uma razo superior? Mas que razo, quando evidente que as ordens decorrem dos caprichos do soberano e, no caso da imensa maioria, so prejudiciais a ela? Por qualquer ngulo que se tome a questo, ela continua sem resposta.Para compreender a submisso de todos a um s - que, no mais das vezes, no mais do que um nome -, preciso supor que a primeira natureza foi substituda por uma segunda natureza, que se deixa fascinar pelo Um, que admite que toda sociedade pressupe um princpio, um ponto transcendente do qual todos e cada um so dependentes. Pois preciso sublinhar que o Discurso de La Boeti no visa um regime, o despotismo real, mas sim a nova forma poltica que est se impondo: o Estado como potncia plena. De certo modo, ele constitui um comentrio ao Prncipe: pouco importa que o soberano seja odiado, contanto que seja soberano, dizia Maquiavel; ele -e o em todos os pontos - odivel, constata La Botie, H uma soluo? S se se acreditasse que a fora das palavras pode derrubar uma natureza, ainda que se trate de uma segunda natureza. O Discurso, no momento em que se opera a laicizao do Um como princpio da ordem poltica, levanta - com um vigor inigualvel - o problema que se coloca reflexo poltica contempornea diante do totalitarismo. Ele antecipa uma questo posta por Wilhelm Reich: o que surpreendente no que os povos se revoltem, mas sim que no se revoltem.

D. O Estado como potncia soberana. Jean BodinEm 1576, aparecem os Seis Livros da Repblica. Seu autor, Jean Bodin, um erudito, que se apia numa grande cultura histrica e jurdica, bem como um "togado", que teve funes de legislador e de administrador. Ele se pe uma dupla tarefa: refutar Maquiavel, a quem admira, mas de quem teme as lies de "imoralidade"; e ser o Aristteles de seu tempo no que se refere questo poltica. Sua concepo ao homem e da sociedade, embora seja muito sutil, no se caracteriza pela originalidade. Ele est convencido de que a realidade est submetida aos princpios da harmonia - que no respeitam as aes humanas - e que existe um direito natural de origem divina, que recomenda a eqidade e o respeito pela pessoa privada - e isso numa tica que no de modo algum muito afastada da de Ccero. Entretanto, o pensamento de Bodin se impe por um trao singular, que faz dele - depois de Marslio de Pdua e de Maquiavel - o iniciador da teoria moderna do Estado (e, de qualquer modo, de sua prtica, de certas astcias que levam freqentemente os tericos a mascar-la): ou seja, pela definio que ele apresenta do poder poltico como forma necessria da existncia social. Ele no investiga como Agostinho ou Toms de Aquino - a origem (divina ou natural) da Repblica; considera secundria a questo do bom regime. Considera que a existncia de um poder pblico unificado e unificante um dado de fato de toda sociedade histrica; e pergunta sobre o que caracteriza essencialmente esse poder. A resposta clara e forte: a potncia soberania, a, que se exerce por meio de "um reto governo de vrios lares e do que lhes comum". Esse o "estado da Repblica", ou, para falar brevemente, o Estado.Deve-se' observar, antes de mais nada, que o Estado pressupe os "lares", ou seja, as famlias; essas esto colocadas sob a autoridade paterna, que est por sua vez colocada sob a autoridade da potncia soberana no que se refere s questes pblicas. Isso quer dizer que o poder de Estado se exerce sobre "sditos francos" - ou seja, sobre "sditos livres", que no so nem escravo nem servos. O termo "soberania" - majestas ou potestas - deve ser tomado em sua acepo mais rigorosa: A potncia soberana do Estado absoluta: ela comanda e no recebe nenhum comando; no depende de nada nem de ningum: nem de Deus, nem da Natureza, nem do Povo; no exige nenhum fundamento: auto-suficiente; . indivisvel, no sentido de que por essncia una e, se for delegada, est integralmente em cada delegao; perptua: no poderia sofrer as vicissitudes do tempo e, por essa razo, transcendente. Em suma, ela : tal como, segundo os telogos, Deus .O Estado a sede da soberana potncia, o ponto focal da ordem pblica. Essa ordem definida pelas Leis: essas determinam, segundo a necessidade, as normas da existncia social em seu aspecto pblico;o Estado senhor de "d-las e de revog-las". Do mesmo modo, pertence s suas prerrogativas absolutas declarar a paz e a guerra, dirigir a administrao, julgar em ltima instncia e conceder a graa, cunhar moeda e arrecadar impostos. Se essas ltimas disposies inscrevem o projeto de Bodin na tica que j fora a de Filipe o Belo, a teoria da potncia legisladora marca mais profundamente uma ruptura: em direito, a lei - como norma - distinta do direito: superior ao direito costumeiro, exterior ao direito natural. A disjuno entre Estado e sociedade - elemento central da moderna teoria do Estado est em vias de realizao...Mas quem esse "detentor" do Estado? Para responder a essa questo, Bodin - ao que parece - retoma tradio. Ele constata a existncia de repblicas democrticas, aristocrticas e monrquicas.Trata-se de uma volta atrs? O Estado, ento, termina por ser dependente? De nenhum modo, se lembrarmos que Bodin distingue entre potncia e poder, entre Estado e governo. A potncia soberana pode ser o Povo, uma parte do Povo ou um Indivduo: nenhum estatuto misto, ao modo de Ccero ou de Toms de Aquino, inteligvel. Essa potncia que faz as leis decide sobre as modalidades do ou dos poderes.Pois, para se exercer, a potncia tem de se encarnar nas instituies empricas que tm a misso de governar. Essa distino no foi vista por Maquiavel, o qual, em conseqncia, submeteu a potncia do Estado aos caprichos histricos do Prncipe. O Prncipe abstrato, por definio: uma forma que se realiza nesse ou naquele tipo de governo, cujo destino temporal. Bodin examina os diversos tipos possveis de combinao, que vo desde a democracia real (que chamaramos de cesarismo) at a monarquia popular (onde o Soberano transfere s instituies populares a misso de governar); ele no oculta sua preferncia pela monarquia real, que governa "sditos francos" que podem expressar sua opinio, cm oposio monarquia. "senhorial" e "tirnica". Ele insiste na importncia dos hbitos e dos costumes - ligados "natureza dos povos" - quando se trata dos poderes.

Mas ele no faz concesses no que lhe parece ser o essencial: a absoluta soberania do Estado, princpio necessrio e transcendente da sociedade enquanto Repblica.

2. Do fundamento da soberania: o direito natural e as teorias do contratoA auto-suficincia da Soberania postulada por Bodin no deixa de colocar um problema. Se ela confere um estatuto formal aos poderes centrais, tais como se exercem no incio da poca clssica, deixa na sombra a questo do fundamento e, por isso, abandona contingncia o problema de qual o melhor governo. Ora, nesse final do sculo XVI e no sculo seguinte, a interrogao poltica se torna cada vez mais urgente s dificuldades polticas suscitadas pelos conflitos religiosos, acrescentam-se os problemas levantados pelas profundas modificaes experimentadas pelas sociedades europias: afirmao das realidades "nacionais", o que impe, por um lado, uma estrita determinao do poder estatal legtimo e, por outro, uma redefinio da ordem "internacional"; alterao profunda das relaes sociais devidas s transformaes do mercado de trabalho e nova concepo da existncia social que comea a surgir; revoluo na imagem da natureza e do homem, engendrada pelos mltiplos progressos da matemtica e da fsica. Quando Descartes escreveu, em 1637, que sua tarefa era tornar o homem "senhor e dono da natureza", enunciou certamente a mxima desse novo estado de esprito...A. Grcio, O "Descartes da poltica": o Estado contratualA contribuio do jurista holands, que publica em 1625 (em Paris) o De jure bellis ac pacis, refere-se - antes de mais nada - ao direito internacional: nesse livro, ele expe os elementos de um direito universal que tem como meta definir os princpios que regulam as relaes entre Estados soberanos, tanto na paz como na guerra, e, atravs disso, proteger os indivduos envolvidos nos conflitos.Mas precisamente essa preocupao leva Grcio a fundar a universalidade do direito na prpria natureza do homem; o termo "natureza" tomado em sua acepo racional, independente de qualquer considerao moral ou genrica. O sujeito e a substncia do direito o indivduo natural, tal como Deus em sua perfeio o criou, e que se conserva, quaisquer que sejam os costumes locais e os direitos positivos particulares. Esse indivduo atrado por seu semelhante, independentemente de qualquer carecimento, e dotado de vontade. Os atributos que so ligados a essa natureza e sobre os quais o prprio Deus no poderia voltar atrs podem ser determinados ou pelo raciocnio, ou pelo exame dos princpios constantes que governaram ou governam as naes. Eles se reduzem a alguns dados simples: o respeito pela vida e pela propriedade; o respeito pela palavra dada e pelos compromissos e contratos, sem os quais no poderia haver sociedade estvel; a reparao do dano causado por inadvertncia ou m-inteno. Assim, Grcio substitui os esquemas organicista ou comunitrios (do jus gentium ciceroniano ao "corpo mstico" cristo) e as teorias do Ato fundador (de Maquiavel e Bodin) por uma perspectiva que garante a continuidade entre o direito privado - que as pessoas possuem por causa de sua natureza humana - e o direito pblico. A sociedade poltica, efeito da sociabilidade, uma realizao da lei da natureza. Mediante um contrato, seus membros decidem voluntariamente delegar a autoridade pblica a uma instncia soberana e perptua, que tem como misso garantir a paz e a concrdia. Todavia, nenhuma transcendncia faz parte dessa soberania: o jurisdicismo de Grcio assimila de certo modo a sociedade ao Estado;

os detentores da soberania so, por contrato, proprietrios da autoridade pblica, do mesmo modo como os membros da coletividade so proprietrios desse ou daquele patrimnio. Se, por sua conduta, eles deixam de ser identificveis vontade da coletividade, ento o contrato rompido e a resistncia dessa ltima legtima.

B. Thomas Hobbes. O Deus mortal e seus limitesSe o que liga Grcio modernidade consiste, no essencial, no papel central que atribui ao indivduo, a relao de Hobbes com seu tempo muito mais estreita: filsofo, sua concepo poltica se articula com sua ontologia e essa se inspira diretamente na nova fsica t: t:m seu mecanicismo. As teorias do movimento e do corpo que ele expe levam-no a compreender o homem como uma mquina natural submetida ao estrito encadeamento de causas e efeitos, tendo comopropriedades - igualmente naturais - desejar e agir, ou seja, deliberar e se mover em funo desse dado primeiro que o desejo. O homem, individualmente corporal, fundamentalmente potncia: esse o ponto de partida do Leviat, publicado em 1651.Assim, no estado de natureza - quando abstramos, como mais tarde o explicar J. J. Rousseau, o que a sociedade lhes trouxe -, os homens, dispersos, so potncias movidas pelo desejo, no limitados por nada (so integralmente livres), a no ser pela incapacidade material, na qual podem se encontrar, de satisfazer esse desejo. Nesse mesmo estatuto - que exclui toda idia de sociabilidade (benevolente) e de harmonia com o meio -, ele experimenta, enquanto mquina sensvel, sentimentos entre os quais predominam a inveja e o medo, em particular o medo de sofrer e de morrer. Desse modo, se a ordem natural - ordem mecnica - a "lei dos lobos", disso resulta que o estado de natureza , ao mesmo tempo e contraditoriamente, plena liberdade - aqum de todo direito - e terror constante: ele invivel.Nessa tica - realista e que, em nome da fsica dos corpos, elimina qualquer considerao de origem moral -, nada no estado de natureza prepara o estado de sociedade: esse, que no de instituio divina ou de inscrio natural, tem de ser produto de um artifcio. Vemos assim que Th. Hobbes funda no prprio Estado essa autonomia do poltico que Marslio de Pdua pressentia, que Maquiavel justificava por meio de "provas histricas", que Jean Bodin deduzia:a ordem poltica no pode ser seno o produto de uma deciso coletiva que engendrar um artefato. Dado que o estado de natureza insuportvel, dado que o desejo de poder e o desejo de viver (e de viver em paz) se contradizem, ento surge a capacidade deliberativa prpria ao homem que comanda de construir uma instncia superior, cujo fim impor uma ordem que elimine a violncia natural, que substitua a guerra de todos contra todos pela paz de todos com todos...Ao grande mal, deve-se responder com o grande remdio: para pr fim violncia nascida do exerccio de potncias por definio ilimitadas, s pode ser eficaz uma potncia que no conhea limites. Isso significa, em palavras claras, que a instaurao da sociedade poltica - commonwealth civitas -, do Estado, pressupe que os cidados, de comum acordo, despojem-se integralmente de sua potncia individual e a transfiram para a autoridade pblica.A soberania una e indivisvel do Estado ilimitada: o contrato que a estabelece no a sujeita a nenhuma obrigao, salvo a de assegurar a tranqilidade e o bem-estar dos

contratantes. Temos aqui o deus mortal, o Leviat, esse monstro da lenda fencia que evocado pela Bblia para dar a imagem de uma fora corporal qual nada resiste. Dessa feita, a laicizao completa da plenitudo potes tas dos telogos realiza-se na prpria noo do Estado.A ordem poltica pe fim luta de vida ou morte: isso s ocorre na medida em que os membros da coletividade consentem em reconhecer a absoluta soberania de uma "pessoa moral" que exerce seu poder por meio de decises das quais s ela responsvel e de leis que ela impe como princpios necessrios da organizao da Repblica. Esse o sentido do fiat que institui o Estado: pr a morte do lado da mecnica natural e construir - em todas as suas peas - uma lgica da existncia coletiva que preserve a vida. Tal como em Bodin, trata-se de uma lgica e no de uma teoria do bom governo: ainda que Hobbes manifeste uma preferncia pessoal pela monarquia, ele no toma como problema decisivo o tipo de regime que encarne a soberania, contanto que esse a exera com rigor. Pois, diferentemente de Bodin nesse ponto, ele no distingue entre a essncia (ou a forma) da soberania - a potncia ou majestade - e seu exerccio emprico - o poder ou governo. certamente essa "confuso" que lhe valeu a acusao de ser o arauto do absolutismo real, o que ele no de modo algum: a anlise dos direitos e dos deveres da instncia suprema deixa isso bastante claro.Na verdade, o Leviat - quer seja monrquico, oligrquico ou democrtico - s tem direitos: desde quando institudo, no pode ser contestado de nenhum modo pelos que o instituram (a minoria tem de se submeter maioria); ele "juiz do que necessrio para a paz e a defesa dos sditos (...) e das doutrinas que convm lhes ensinar"; detm "o direito de editar regras de tal natureza que cada sdito saiba o que lhe pertence, de modo que nenhum outro sdito possa lhe tirar o que seu sem cometer injustia"; o de "ministrar a justia em todas as suas formas"; o de "decidir sobre a guerra e a paz (,..) e de escolher todos os conselheiros e ministros, tanto na paz quanto na guerra"; o de "retribuir e castigar, e isso (...) a seu arbtrio", bem como o de "atribuir honras e hierarquias" (p. 187).Hobbes est to consciente do carter exorbitante dessas disposies que ele 'faz notar que, por mais repressivo que seja, "o poder soberano menos prejudicial do que a ausncia de um tal poder" (p. 190).Essa alternativa no deixa de parecer com a que Plato props na Repblica: submeter-se reta filosofia ou decidir pela injustia do "bom prazer". De qualquer modo, esse deus mortal: o caso mais banal de seu desaparecimento sua destruio por um outro poder soberano; mas ele tambm morre, a despeito dos comandos que impe e da coero que exerce, se for incapaz de realizar a misso para a qual foi institudo, que a de garantir a segurana dos seus sditos e suas liberdades privadas, tais como foram definidas pelas leis civis.Pois, apesar do seu rigor e de sua extenso, o pacto que o institui no poderia fazer com que os indivduos perdessem o que pertence natureza deles. Se verdade que esses s tm as liberdades de conduta autorizadas pelo Estado, tambm verdade que - quaisquer que sejam as ordens do soberano - eles alienam sua liberdade de pensamento, renunciam defesa do seu prprio corpo e aceitam "fazer mal a si mesmos" ou fazer mal a outros somente se julgarem que isso til, como, por exemplo, na guerra (pp. 230-231). Essas limitaes no fazem parte da ordem do direito, mas dos' dados de fato. Ademais - e essa uma evidncia sobre a qual Hobbes no cr necessrio insistir -/est implcito na lgica do conjunto que o Estado senhor do espao pblico, como o para definir a extenso desse espao, mas que subsiste um espao privado importante, onde pode se exercer a liberdade dos sditos. Tambm nesse caso, estamos diante de um fato:"Nos casos em que o soberano no prescreveu regra, o sdito tem liberdade para fazer ou

se abster, conforme julgue ser bom. Tambm essa liberdade em certos casos mais extensa, em outros mais restrita, maior em determinado momento o menor em outro, conforme os detentores da soberania julguem ser mais vantajoso" (p. 232). A concepo poltica de Th. Hobbes muito mais sutil do que pode parecer enunciao de seus princpios iniciais. Tomando como ponto de partida uma concepo individualista e realista do homem, recusando previamente qualquer pressuposto moral, ela se empenha em conjurar o que, para ela, o maior dos males: a guerra civil. Para faz-lo, analisa as condies graas s quais instaura-se uma ordem poltica estvel. E a condio primordial que a coletividade deseje a instituio de um princpio soberano onipotente e consinta em obedecer s leis civis e s decises que so impostas pelo poder que encarna a soberania. Resolvida assim a questo poltica do bom entendimento e da tranquilidade na Repblica, os sditos podero livremente se entregar s atividades que julgarem capazes de lhe trazer a salvao e a satisfao emprica.Essa concepo contm ao mesmo tempo uma resposta e um projeto: uma resposta - estritamente poltica - aos problemas que foram e continuam a serem postos pelas guerras nascidas dos conflitos religiosos nos reinos da Europa Ocidental; um projeto - que leva em conta transformaes que afetaram as condies da produo agrcola e manufatureira, o comrcio e o mercado de trabalho -, o de uma sociedade que, tendo resolvido mediante uma lgica estrita a questo de sua forma poltica, deixaria aos indivduos o cuidado de regular suas vidas privadas e de usar livremente as prprias capacidades.

C. "Uma filosofia poltica galileiana": 1 Spinoza1 Titulo dado por Marianne Schaub sua contribuio consagrada a Spinoza na Histoire de la philosophie, dirigida por F. Chtelet

O pensamento poltico de Spinoza est contido em dois textos breves, o TractatUs thlogico-politicus (publicado em 1670) e o Tractatus politicus (obra inacabada e pstuma). Todavia, sua influncia no Sculo das Luzes foi considervel, ao mesmo tempo que indireta. Pois o conjunto da doutrina que, por sua coerncia e fora demonstrutiva, germina nos espritos livres: esses a utilizam - secretamente, j que Spinoza um autor maldito, que no citado a no ser para denunciar o seu carter diablico, e cujas obras circulam s ocultas - para combater as tradies religiosas e os poderes que apelam para o direito divino.A eficcia do spinozismo no domnio das idias polticas decorre do fato de que ele apresenta um sistema, a tica (obra tambm pstuma) - que ao mesmo tempo ontologia, teoria do conhecimento, da paixo e da ao -, a qual funda rigorosamente a idia de que a conduta, tanto individual como coletiva, uma questo no de f religiosa, no de crenas morais, no de arranjos empricos, mas de estrita racionalidade, da racionalidade usada pelos matemticos e fsicos em suas pesquisas. Aparentemente, o Tratado teolgico-poltico um livro de exegese bblica. De fato, seu objetivo fundar a distino entre o domnio da f e o domnio da razo, assim como estabelecer - contra Hobbes, entre outros - o fato de que, numa Cidade organizada em funo do que til aos que a constituem,

"deve ser concedido a cada um pensar o que quiser e dizer o que pensa"

Ele mostra que uma leitura da Bblia que vise a extrair a verdade nela contida deve se ater ao prprio texto, empreender sua crtica histrica e excluir os procedimentos interpretativos que recorrem a um sentido exterior ao texto, que se afirma ser fruto de uma revelao e que no passa de produto da imaginao. De resto, a interpretao serve pouco f; e as

"verdades" que ela descobre no tm nenhum interesse para o homem religioso que quer a piedade e a salvao (ibid., p. 254):"Nem a Escritura deve se curvar Razo, nem a Razo Escritura."A teologia e a filosofia so reinos separados: a ltima verdade e sabedoria, a primeira piedade e obedincia. Disso resulta que a aplicao da teologia s questes polticas tem como conseqncia desenvolver o esprito de submisso em detrimento do esprito de liberdade. Pois, no curso do trabalho, Spinoza desenvolveu uma teoria do direito natural e notou que "ningum sabe, por natureza, que obrigado a obedecer a Deus; tampouco se sabe isso atravs de um raciocnio qualquer" (ibid., p. 271). E, de acordo com Hobbes, ele afirmou que todo homem como ser natural, desejo e potncia; mas separando-se dele, Spinoza constata que nada exterior nenhuma outra potncia, poderia limitar ou abolir o direito natural soberano do desejo. O direito poltico no pode ser seno uma continuao do direito natural. E ele uma continuao precisamente na medida em . que aparece ao indivduo que pode ser til satisfao de suas paixes "viver segundo as leis e injunes da razo, as quais tendem unicamente ao que realmente til aos homens" (ibid., p. 236). Portanto, jamais poderia haver um contrato ou pacto que implicasse a renncia da potncia individual: o reconhecimento de uma instncia superior , por assim dizer, sempre contingente e provisrio; ele resulta de um clculo racional; e, "desaparecida a utilidade, o pacto desaparece ao mesmo tempo e torna-se algo sem fora" (ibid., p. 265).Essa assimilao do direito fora - que se inscreve na demonstrao realista e determinista da Etica -, essa afirmao da continuidade entre o desejo e a razo (o sbio no menos apaixonado do que o insensato), essa definio do homem como irredutvel potncia individual, levam Spinoza a definir a "cincia poltica", no Tratado poltico, como uma aplicao da racional idade galileiana. A originalidade da anlise consiste em apresentar uma fsica da sociedade poltica. Essa fsica, liberada das perspectivas morais e que exclui todo finalismo e todo antropomorfismo, considera a sociedade como um corpo feito de um conjunto de corpos individuais, como um corpo que possui tambm uma individualidade. A utilidade para o indivduo de pertencer sociedade dupla: por um lado, isso aumenta sua potncia ao conjug-la com outras potncias no seio da potncia aumentada em quantidade e em complexidade que prpria do conjunto; por outro lado, a articulao do mecanismo do desejo com o da lei civil pode se efetuar nesse conjunto de tal modo que seja assegurada a eficaz conjuno no indivduo da potncia e da ordem racional. Pois o Estado no tem absolutamente como meta suprimir as paixes ou reduzi-las pela obedincia: sua funo consiste em modificar seus efeitos no sentido da utilidade comum, mediante procedimentos calculados.As discusses relativas aos bons ou maus regimes so abstratas, na medida em que ignoram o determinismo natural. No fundo, o regime importa pouco: o que conta que ele implique o maior nmero possvel de indivduos "envolvid