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1 OBJETIVOS DA APRENDIZAGEM INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA PARAÍBA AULA 2 Orientação de Estágio Supervisionado Josali Amaral Kelly Sheila Inocêncio Costa Aires Maria Betânia da Silva Dantas A constituição da postura ética e responsável do estagiário Conhecer os princípios da ética profissional; Compreender a necessidade de construir uma postura ética e responsável no contexto de sala de aula; Refletir sobre a conduta durante a realização do estágio.

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1 OBJETIVOS DA APRENDIZAGEM

INSTITUTO FEDERAL DEEDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIAPARAÍBA

AULA 2Orientação de Estágio Supervisionado

Josali AmaralKelly Sheila Inocêncio Costa AiresMaria Betânia da Silva Dantas

A constituição da postura ética e responsável do estagiário

� Conhecer os princípios da ética profissional;

� Compreender a necessidade de construir uma postura ética e responsável no contexto de sala de aula;

� Refletir sobre a conduta durante a realização do estágio.

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A constituição da postura ética e responsável do estagiário

2 COMEÇANDO A HISTÓRIA

Figura 1

Caro aluno,

No mundo de hoje ouvimos muito falar de ética, principalmente no nosso país, onde as coisas não vão muito bem nesse assunto. Mas o que seria ética? Por que no mundo de hoje se fala tanto em ética? Na última aula de Filosofia da Educação nós tratamos desse tema e vimos como a ética se desenvolveu em Platão e como que as organizações internacionais lutam incessantemente para conscientizar a respeito da importância dos princípios universais, como o direito à vida e à liberdade.

Mas nessa aula vamos falar de ética no sentido normativo, ou seja, como um conjunto de normas de conduta que devem ser adotadas como parâmetro de ação. Essas normas têm por finalidade garantir que o profissional assuma um compromisso com a comunidade com a qual convive. Além disso, numa disciplina que prepara para o exercício profissional, discutir as normas de conduta que devem orientar a nossa prática implica em refletir sobre o nosso papel social e sobre a responsabilidade que temos para com a sociedade. Especialmente na nossa área de atuação, que prepara os indivíduos para viver em sociedade.

Nessa aula vamos introduzir alguns princípios éticos que regem o âmbito profissional e suas implicações para o exercício do magistério, bem como refletir sobre a conduta do estagiário durante sua experiência formativa.

3 TECENDO CONHECIMENTO

Como vimos em Filosofia da Educação, a ética tem como referência os textos escritos por Platão, cuja maior preocupação era combater o relativismo do discurso sofista. Nesse contexto, Platão propunha reflexões sobre a ideia de “Bem”,

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“justiça” e “virtude”, indicando que a busca desses ideais deve regular a conduta humana. Defendia que a sociedade perfeita deve ser regida por leis racionais, as quais devem se pautar em princípios verdadeiros, cuja fundamentação está na harmonia social e não em um fim externo, como beneficiar a alguém ou a si mesmo. Tradicionalmente, ética é um conhecimento intimamente ligado à política e ao direito, cuja função é organizar a sociedade por meio de preceitos e princípios que propiciem o bem estar coletivo.

As leis e as regras têm função ordenadora das ações humanas e, por isso, estão associadas a punições para aqueles que não as cumprem. Elas se referem a fatos concretos, cuja experiência acumulada demonstrou a necessidade de interditar a possibilidade de que eles ocorram ou propiciem condições para a ação do Estado. Por exemplo, o assassinato, o roubo, a cobrança de impostos, o respeito às autoridades. Mas quando nos referimos à conduta humana, estamos tratando da perspectiva da ação futura, ou seja, de ideias ou princípios que são tomados como parâmetro para as nossas decisões.

Nesse âmbito, o conceito que se deve discutir é o da norma, cuja finalidade é a de estabelecer critérios racionais com os quais possamos tomar decisões justificáveis. A norma difere da lei ou da regra por não estar associada à punição (ABBAGNANO, 1997) e o indivíduo deve aderir a ela voluntariamente. Nesse sentido, a obediência a uma norma depende da disposição que o indivíduo tem para acatar um raciocínio como sendo um bem, assumindo-o como um dever. Por exemplo, quando dizemos que o professor tem que ter uma atitude compreensiva diante do aluno, essa orientação não é uma lei ou uma regra, pois se o professor não quiser segui-la, não há nenhuma punição que o obrigue, salvo ele fira algum dispositivo legal sobre a dignidade da pessoa humana. Mas, o uso do bom senso leva o indivíduo a concordar que a compreensão facilita a relação ensino-aprendizagem e na expectativa de criar um ambiente saudável, o professor em questão aceita essa proposição como um dever ou um compromisso.

Em geral, ao falarmos de ética no campo do magistério, além dos preceitos tradicionais ou virtudes, como ser honesto, atento, competente, amar o próximo etc., devemos relacionar principalmente um conjunto de atitudes que demarque a relação professor-aluno. Você deve lembrar que apresentamos um estudo sobre essas atitudes nas aulas de didática. Visite a aula 7 daquela disciplina!

A Ética, no entanto, vai além de uma recomendação de uma lista de valores e virtudes. Ela é uma reflexão sobre a conduta humana (ABBAGNANO, 1998) que envolve a descoberta e a crítica dos princípios e crenças que regem a ação. Para Herrero (1998), a possibilidade de fundamentação da ética está na estrutura do discurso argumentativo. Isso porque é por meio dos atos de fala que expressamos

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o significado de nossas ações. No discurso argumentativo há uma exigência interna de reflexão e auto-reflexão para a elaboração das sentenças e organização do texto (seja falado ou escrito).

Para construir um discurso minimamente coerente, o indivíduo precisa dominar as instâncias sintáticas e semânticas da língua e pretender obedecer a critérios de verdade, estar aberto a possibilidade de correção de suas ideias por meio do diálogo e ser sincero. O autor citado supõe que quando nos propomos a defender uma ideia, estamos a priori predispostos a expô-la a um interlocutor e, ao menos essa intenção é sincera, o que leva o indivíduo a submeter seus pensamentos ao julgamento do outro e a empregar proposições com pretensão de verdade para demonstrar a validade de seus princípios.

Muitas vezes, os princípios e crenças que adotamos provêm de nossa cultura, e são muito mais um costume herdado que uma ideia conscientemente adotada. Isso faz com que a cultura de um povo se perpetue no tempo, mas também que muitos dos aspectos negativos sejam conservados. Um exemplo disso é o preconceito, cujos fundamentos estão assentados em opiniões que as pessoas têm sobre cor, raça, gênero, religião, etnia e condição social, sem que haja qualquer argumento plausível que sustente a existência real de diferenças entre as pessoas quando as consideramos apenas como seres humanos. Esses princípios que fundamentam várias formas de discriminação, quando analisados criticamente, não passam de crenças adquiridas no universo da cultura, herdadas de condições históricas específicas como a guerra, a colonização, a disputa econômica, que deixam marcas ao longo do tempo. Por isso há a necessidade constante do diálogo acerca de preceitos herdados pela cultura.

No âmbito da ética, os princípios não podem ser confundidos com crenças, pois eles devem ser racionais e fundamentados, de modo que possam gerar a ação justa e justificável.

Mas você deve estar se perguntando: “porque essa conversa toda”? Porque no exercício do magistério estamos em contato direto com seres humanos em formação e precisamos refletir sobre o que direciona a nossa conduta, se nossos princípios são racionais e justificáveis ou se derivam de crenças infundadas. Isso porque a função do professor se confunde com a capacidade humana de julgar, de decidir entre o que é correto ou não.

No dia a dia da sala de aula, deparamo-nos com a necessidade de apontar o certo e o errado, não somente ao que diz respeito aos atributos intelectuais de nossos alunos, mas quanto ao seu comportamento e relacionamento com os outros. Julgar implica em avaliar, seja o conhecimento ou o comportamento das

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pessoas. Nós professores devemos fazer isso criteriosamente, caso contrário, estaremos submetendo a vida dos nossos alunos às nossas opiniões particulares. Não obstante, julgamos também a conduta de nossos pares, ou seja, de colegas de trabalho, avaliamos a conduta dos pais e somos incitados a avaliar a sociedade como um todo para incentivar nossos alunos a elaborar a proposições discursivas sobre temas sociais.

No âmbito de todas as profissões, existem códigos de ética que procuram balizar a conduta profissional em critérios minimamente racionais, com a finalidade de garantir o bom relacionamento entre as partes envolvidas num serviço (MOTTA, 1984). Infelizmente, a situação profissional do professor no nosso país ainda é tão pouco pensada que não foi criado ainda um documento com esse teor. Entretanto, isso não significa que não haja uma preocupação com a conduta do professor, pois as leis também refletem os princípios que orientam a conduta e a legislação que rege a educação brasileira se apóia nos princípios humanísticos defendidos pelos organismos internacionais, os quais procuram orientar para garantir a igualdade de direitos, a dignidade humana e a liberdade de todos.

No estágio supervisionado, ocupamos uma condição intermediária, entre o aluno e o professor regente da turma e tendemos a avaliar ambas as condutas, formar opiniões diversas sobre as práticas de ambos. Portanto, é o momento ideal para refletirmos sobre os aspectos éticos do exercício do magistério e começarmos a fazer uma autoavaliação de nossos valores.

3.1 Pressupostos da ética profissional

É importante compreender que no mundo moderno as profissões foram concebidas do ponto de vista liberal e isso significa que a autonomia do indivíduo no exercício de um saber é o centro do reconhecimento profissional.

A profissão é um fenômeno moderno, marcado pelo advento da Revolução Francesa e Industrial. Antes do século XVIII, a sociedade reconhecia os homens de ofício, ou seja, aqueles que detinham certos conhecimentos teóricos e práticos, que acumularam experiência em saber fazer alguma coisa. Em geral, um homem de ofício era um prático, como um sapateiro, ferreiro, moleiro ou mesmo um médico. Com a organização dos Estados nacionais nos séculos XV e XVI, ofício também passou a designar o conjunto de atribuições de um homem do Estado, um cargo “público”, para o qual eram reconhecidos certos direitos ao indivíduo que o exercesse.

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O início da era contemporânea foi marcado pela reestruturação da sociedade e o mundo do trabalho foi impulsionado pelo advento científico, sendo totalmente modificado. As antigas corporações de ofício deram lugar às fábricas e foi acentuada a divisão entre trabalho manual e intelectual. Um dos fatores determinantes dessa modificação foi o desenvolvimento de lugares específicos para o trabalho (antes era uma extensão do lugar de moradia) e a organização do tempo artificial – o relógio (antes o tempo era marcado pelo nascer e se por do sol e pelas estações do ano), além de programas de treinamento para preparar as pessoas para aderir a rotinas e aprender a manusear instrumentos técnicos/tecnológicos.

O século XIX foi, por excelência, o palco do surgimento das profissões liberais, as quais se distinguem dos antigos ofícios pelo fato de que os sujeitos, além de dominarem saberes específicos (teóricos e práticos), devem ser capazes de tomar decisões e assumir responsabilidades. Em resumo, uma profissão é definida pelo grau de autonomia que o indivíduo que a exerce detém. Nesse sentido, distingue-se de formas de trabalho que submetem o indivíduo a práticas repetitivas e mecanizadas, para as quais basta um simples treinamento.

Essa distinção, no entanto, é meramente formal, pois todo profissional exerce, na prática, um ofício, com maior ou menor poder de decisão. Para Tomasi e Silva (2007, p. 7), “essa distinção se dá devido ao fato de atributos da profissão conferirem à atividade autonomia, um poder de autocontrole explicitamente reconhecido pela sociedade”.

Podemos dizer então que a profissão se define pelo exercício da autonomia. Vejamos o exemplo do ofício do médico e de um agente de saúde pública. O médico detém conhecimentos teóricos e práticos que constituem o núcleo de seu ofício, porém, quando atende um paciente, além de empregar esses conhecimentos, ele deve decidir qual procedimento seria mais adequado, considerando que embora os tratamentos sejam padronizados, os indivíduos são diferentes e reagem de modo diverso. Dessa decisão depende o bem estar do seu paciente e sobre o profissional recai a responsabilidade pela escolha dos remédios e procedimentos.

Já um agente de saúde encarregado de trabalhar na campanha de contenção da dengue, para exercer o seu ofício, deve ser treinado a verificar ambientes propícios ao desenvolvimento dos agentes transmissores, depositar as substâncias neutralizadoras nesses locais e orientar as pessoas sobre os procedimentos necessários para evitar a proliferação do vetor e da doença. Seu poder de decisão está restrito à disposição de realizar seu trabalho adequadamente. Enquanto que o médico deve passar por um longo processo formativo que torna sua esfera de decisões muito específica, cabendo a ele decisões que somente aqueles que

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têm a mesma formação podem tomar; o agente de saúde exerce um ofício que requer um menor período de formação e treinamento.

Portanto, a ideia que temos do que é uma profissão envolve o grau e a capacidade de tomar decisões de um indivíduo, com base na sua formação e treinamento, o que implica ainda na extensão de responsabilidade que devém de suas decisões. Além dessa concepção ser deveras complicada, gera ainda preconceitos e discussões acerca do papel e importância de cada profissional na sociedade. Mas aqui não é o lugar de tratar dessa temática e se você tem interesse sobre o assunto, consulte a aula 7 de Filosofia da Educação e os textos da bibliografia dessa aula.

O exercício do magistério exige uma dupla preocupação profissional. Por um lado é preciso que o indivíduo esteja familiarizado com as práticas e rotinas da sala de aula e do sistema escolar; por outro, é necessário que, especialmente a partir do ensino fundamental II, ele seja formado na área da disciplina em que irá lecionar. Portanto, sua esfera de decisões é ampla, já que deve orientar as práticas escolares dos alunos e a aquisição dos conhecimentos específicos da disciplina que leciona. Em ambos os casos, recairá sobre esse profissional a responsabilidade pela formação disciplinar e intelectual do aluno.

A dificuldade de estabelecer um código de ética para a profissão de professor reside exatamente na amplitude de esfera de decisões a que a profissão está submetida, mesmo porque, as situações vivenciadas na sala de aula são únicas e raramente se repetem, exigindo do professor uma constante reflexão sobre sua conduta.

Segundo Perrenoud (2001), o centro da ação do professor está na sua capacidade de decisão diante da imprevisibilidade e urgência das situações vivenciadas em sala de aula. O cultivo do bom senso e a constante autocrítica são elementos fundamentais para o desenvolvimento de princípios éticos que orientem as ações cotidianas. Mas lembre-se que, o principal exercício é aquele que nos referimos lá no início da aula: procurar princípios racionais e avaliar se os critérios que você utiliza para guiar suas ações são justificáveis ou derivam de suas crenças pessoais. Mas como fazer isso?

3.2 O desenvolvimento da autonomia no mundo moderno

Vamos rememorar a aula 05 de Filosofia da Educação e retomar algumas ideias de

Immanuel Kant (2005). O filósofo, ao discutir o problema da liberdade proposto pelos iluministas, supôs que a ação livre só pode se realizar quando o indivíduo

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é capaz de tomar decisões conscientemente. No texto chamado “O que é esclarecimento?” ele deixa claro que a liberdade individual depende de uma série de condições de possibilidade para ser exercida plenamente. Pois a liberdade não pode ser confundida com a vontade de cada um, mas envolve a responsabilidade em relação às consequências de nossas ações. Quando o indivíduo não pode ou se nega a responder pelos seus atos, ele abre mão de sua liberdade para que outro tome decisões por ele. O exercício da liberdade depende necessariamente do nível de esclarecimento que o indivíduo desenvolve.

Na sequência desse raciocínio, o filósofo pretende responder sobre a possibilidade do exercício da liberdade em casos de autoritarismo político, quando a lei ou o governo impede o indivíduo de fazer uso de sua razão para realizar escolhas. Ao elaborar exemplos de situações que comprovassem que é possível ser livre mesmo num Estado autoritário, Kant acabou por desenvolver dois princípios éticos que podem funcionar como normas de conduta das profissões.

Nossas decisões derivam dos julgamentos e avaliações que fazermos do mundo e das relações que experimentamos, mas esses juízos dependem também do conhecimento que adquirimos e da troca de ideias entre os indivíduos do círculo social. Tudo isso é expresso na forma de um discurso, que tem o mesmo valor de uma sentença, pela qual aprovamos ou reprovamos uma ideia, conduta, comportamento ou informação.

Quando exercemos uma profissão, expressamos nosso conhecimento específico com a finalidade de atingir certos objetivos. Mas nem tudo se resume a decisões objetivas e criamos opiniões sobre os fatos e as pessoas, bem como sobre os objetos de nossos estudos. Seria correto, durante um procedimento profissional, um indivíduo se utilizar da sua posição de especialista do assunto, para convencer alguém de suas opiniões pessoais, de sua crítica ou, mais grave ainda, decidir a respeito do outro com base em suas convicções pessoais?

Imagine um médico que tenha críticas aos efeitos colaterais de um medicamento qualquer e resolva não prescrevê-lo a seus pacientes. Pense que esse medicamento é o único existente no mercado e, depois de muitas discussões acadêmicas e científicas, uma comissão de um organismo científico de saúde recomendou o mesmo medicamento depois de decidir que os benefícios de sua aplicação justificam a admissão dos efeitos colaterais, os quais podem ser tratados com outros procedimentos.

Vamos complicar um pouquinho e pensar que o não uso do medicamento pode implicar em morte e esse medicamento pode prolongar a vida do paciente ou mesmo curá-lo. Como justificar racionalmente que aquele médico que citamos

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no início do parágrafo simplesmente resolva que não vai prescrevê-lo, mesmo que o paciente queira o tratamento? E se esse profissional, para justificar sua decisão, resolvesse falar mal dos integrantes da comissão que aprovou a fabricação do medicamento? Essas atitudes são aceitáveis? Um indivíduo tem o direito de discordar dos órgãos oficiais e científicos ou deve se submeter a todas as determinações que recebe?

Você professor, pode suprimir um determinado conteúdo previsto no currículo obrigatório simplesmente porque você considera que ele é inútil? Você pode discordar da orientação didática da escola em que trabalha? E o que você diria se fosse questionado acerca de suas decisões pelos seus alunos? Sobre o conteúdo que foi exigido do seu aluno num concurso público e que você não ministrou por convicções particulares? E se seu aluno indagar porque o seu sistema de avaliação não segue as normas da escola?

Com a finalidade de fundamentar o exercício da liberdade mesmo em situações limítrofes, Kant considerou que nossa capacidade de julgar nos leva a questionar e a rever constantemente nossos princípios e opiniões, fato que pode gerar a discordância de pressupostos, crenças e mesmo leis. Em certos casos, nossa capacidade de decisão pode ficar em suspenso simplesmente por nos encontrarmos em profundo estado de questionamento, no qual a dúvida sobre o que é o certo ou o errado nos impede de discernir. Mas não podemos simplesmente nos eximir de nossas atividades ou se isolar por um tempo para reestruturar nossas convicções.

Kant sugere então que devemos fazer um uso diferenciado da razão. Isso significa que temos que desenvolver a capacidade de ponderar consigo mesmo e, antes de proferir opiniões ou críticas que impliquem em certas responsabilidades, devemos estar atentos sobre com quem, onde e quando vamos expressar nossas inquietações. Ele chama essa distinção de “uso público da razão” e “uso privado da razão”. O primeiro diz respeito ao direito que cada um tem de pensar livremente e expressar suas opiniões. O segundo refere-se ao universo das profissões, dos ofícios, quando nossas decisões devem ser pautadas pelas orientações coletivas, quais sejam, os conhecimentos comprovados, as regras, normas e leis que regem a comunidade em que convivo. Na prática isso significa que enquanto indivíduo eu posso duvidar e crer livremente, mas quando exerço o meu ofício, eu devo observar os limites impostos pelo reconhecimento social da minha profissão.

Especialmente nas profissões que envolvem longa formação intelectual, a sociedade tende a respeitar as opiniões dos indivíduos que as exercem e até mesmo a orientarem suas decisões pessoais a partir do que ouvem desses profissionais. Portanto, quando um médico, um professor, um engenheiro emite

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uma opinião, ele carrega consigo uma carga enorme de responsabilidade, mesmo que não tenha consciência exata desse fato.

Para Kant, o uso público da razão, quando exerço meu direito inalienável de pensar e criticar, deve ser feito entre os pares, entre aqueles que têm a mesma formação e nível intelectual, para que possa haver divergência legítima e para que as críticas sejam refutadas e apreciadas por pessoas que tem conhecimentos suficientes para julgar se as ideias que estão sendo apresentadas têm fundamentos. Já o uso privado da razão é aquele que deve ser empregado quando, no exercício de minhas atribuições profissionais, devo tomar decisões ou declarar esclarecimentos condicionados pelos conhecimentos, regras, leis, normas pertinentes ao meu ofício e em obediência ao Estado.

Vejamos, quando um médico contraria uma comissão oficial de aprovação de medicamentos ou um professor se nega a ofertar certo conteúdo a seus alunos, com base em convicções pessoais, ele está se negando a prestar um serviço que faz parte do seu exercício profissional. Mas você pode objetar que o médico ou o professor pode explicar ao seu paciente ou aluno o porquê dessa decisão e se aqueles aceitarem, os profissionais foram honestos. Mas pelo raciocínio de Kant, quando esse ato de honestidade é praticado, ainda assim é uma ação injusta, pois os pacientes ou alunos não estão munidos do conhecimento adequado para avaliar sua decisão.

Seja o médico, seja o professor, o profissional deve levar seu questionamento a outros médicos e a outros professores da mesma área e pautar uma discussão sobre o tema a ser proposto. É no círculo profissional, no qual as pessoas estão preparadas sob o aspecto teórico e experimental, que as opiniões acerca dos procedimentos serão avaliadas de modo apropriado. Caso contrário, um especialista pode convencer facilmente um leigo de uma opinião sem fundamento. O mesmo decorre acerca de opiniões políticas, pois alguém letrado, ao expressar suas opiniões a alguém não letrado, terá maior poder de convencimento.

Do ponto de vista da lógica e da tradição, essa prática consiste no uso do argumento de autoridade, quando algum tipo de prestígio é conferido às teses, de modo disfarçado, “impedindo e limitando a indagação e prescrevendo a ignorância e tabus” (ABBAGNANO, 1998, p. 100). Ou seja, é quando um discurso se vale da posição social daquele que o profere ou de saberes institucionalizados (como a religião) para convencer outra a concordar com suas convicções, sem que apresente razões suficientes. Outro artifício lógico de convencimento é o argumento contra o homem, quando o profissional, com a finalidade de invalidar uma ideia ou procedimento, ataca moralmente os indivíduos que o praticam. Nesse caso, é muito comum encontrarmos profissionais que passam boa parte

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do seu tempo falando mal de colegas de trabalho, de autores consagrados ou de políticas governamentais para justificar suas opiniões, sem apresentar um argumento sequer que comprove a validade de suas opiniões.

Figura 2

Para nós, professores, a atenção a esses procedimentos é fundamental, pois estamos lidando com o relacionamento pessoal e público o tempo todo. Nossas opiniões pessoais acerca de procedimentos didáticos, conteúdos, sistema de avaliações, projetos educacionais devem ser discutidos nos espaços destinados a isso, como Conselhos de Classe, reuniões de mestres, Conselhos Municipais/Estaduais de Educação, instituições de classe, conferências, congressos etc., e não com alunos e pais. Por outro lado, a conduta profissional também exige manter as relações interpessoais em níveis agradáveis, portanto, não é coerente com essa postura falar contra a pessoa que diverge de sua opinião com outrem, principalmente expor essa divergência aos membros da comunidade escolar que não pertencem ao círculo profissional do professor.

É certo ainda afirmar que pelo conceito de gestão democrática da escola todos os membros da comunidade podem e devem participar das discussões sobre educação, porém esse conceito não pode ser resumido a um simples “falar mal”, apontar defeitos no trabalho do outro, recusa de adotar procedimentos metodológicos ou ministrar conteúdos programáticos etc. O exercício da livre opinião na escola deve ser realizado mediante reuniões, oficinas de trabalho, estudos dirigidos, em lugares e momentos propícios à discussão racional.

Resumindo, os princípios gerais da ética profissional permitem orientar a conduta para que o profissional oferte os serviços pertinentes ao ofício de modo condizente com as características da profissão e saiba se posicionar adequadamente em relação aos seus saberes específicos sem prejudicar o usuário do serviço e de modo a propiciar um bom convívio com os companheiros de trabalho.

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3.3 Sobre a conduta do estagiário

Na primeira aula dessa disciplina dissemos que o estágio se inicia pela observação, bem como enunciamos acima que no que tange à capacidade de avaliação da razão humana e as suas responsabilidades éticas, o estagiário ocupa uma posição intermediária, ou seja, ele não é nem o profissional que está ofertando o serviço do ensino e nem o aluno que o recebe. Então, qual a conduta ideal do estagiário?

Embora o estagiário não seja aluno do professor regente da sala de aula em que realiza o estágio, ele ainda ocupa a posição de aluno de uma instituição, portanto, ele está no local de estágio para aprender, por meio da observação, os procedimentos rotineiros do ofício do magistério. No entanto, sua posição na sala de aula não é equivalente a do discente que está sob a orientação do regente de classe. O estagiário já é detentor de conhecimentos didáticos, teóricos e práticos, que o permitem avaliar e formar opinião sobre os procedimentos que está observando.

Essa descrição tem por objetivo expor a você aluno, a situação delicada em relação à ética que o estagiário ocupa. Considerando a posição que expusemos de Immanuel Kant, qual lugar apropriado para que o estagiário possa expor suas opiniões e críticas acerca do que está experienciando? É o espaço no qual ele ocupa o lugar de aluno, junto a sua instituição de ensino e com seus professores e orientadores.

A condição de estagiário é a de aprendiz, portanto ele deve passar por etapas de treinamento e absorção de conhecimentos que o habilitem a condição de exercer a sua profissão. A primeira fase é a de observação, quando suas atividades no local de estágio devem se restringir a recolher dados das rotinas de sala de aula. Com certeza você observará fatos que contrariam ensinamentos teóricos que você recebeu no seu curso, assistirá a procedimentos de ensino que não se adequam as suas escolhas metodológicas pessoais e tenderá a avaliar os procedimentos tanto dos alunos quanto dos professores e funcionários da escola. Mas deve ter clareza que não é esse o seu papel como estagiário. Você não está ali para medir a capacidade profissional dos educadores e nem o comportamento ou desenvolvimento dos discentes.

A observação inicial que o estagiário deve cumprir tem que ser orientada pela ideia de não interferência nas rotinas da sala de aula ou da escola. Sabemos que isso é impossível, pois a simples presença de uma pessoa estranha à comunidade escolar provoca alteração no comportamento rotineiro, seja manifesta pela curiosidade dos alunos ou pela preocupação que desperta no professor regente

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de classe. Mas o ideal é que o estagiário se mantenha neutro nas relações que estão estabelecidas na sala de aula, e, mesmo, evite estreitar afinidades ou divergências com alunos e funcionários da escola.

Algumas vezes, a própria escola ou o professor regente de classe abre espaço para uma maior participação do estagiário nas atividades rotineiras, mas o estagiário nunca deve perder de vista que esse procedimento é apenas uma concessão e sua autoridade está limitada a esse condicionante.

Nos próximos períodos, você será orientado a realizar participações esporádicas nas dinâmicas de sala de aula, como ministrar um conteúdo, organizar uma atividade, planejar e aplicar uma avaliação, mas tudo terá o teor experimental e provisório.

Vamos frisar novamente que o lugar em que o estágio está sendo realizado não é ideal para expor suas dúvidas, críticas e opiniões e que elas devem ser conduzidas ao seu ambiente de aprendizagem e aos professores do seu curso.

Exercitando

1) Considere a seguinte situação problema:

Um estagiário é recebido por uma professora regente de classe e lhe é concedido o direito de participar ativamente da dinâmica de sala de aula. Por diversas vezes ao longo do período, a regente solicita ao estagiário que assuma a classe para que ela cumpra atividades burocráticas na escola. Supondo que a professora regente adota uma postura didática que tende ao tradicionalismo, do tipo bancário, e que o estagiário tende a ser adepto de uma postura dialógica, os alunos começam a perceber a diferença de procedimentos e a turma passa a questionar a validade dos procedimentos adotados pelos agentes educacionais. Em determinado momento, os alunos questionam diretamente o estagiário sobre a conduta da professora regente, apresentando uma divergência de opiniões: alguns alunos se sentem mais à vontade com as dinâmicas dialógicas, outros consideram que aprendem mais do modo tradicional, e um terceiro grupo tece argumentos afetivos sobre a professora e o estagiário.

Considerando a discussão sobre ética que fizemos nessa aula, elabore um pequeno texto que indique como deve proceder o estagiário numa situação como essa. Você deve utilizar pelo menos um dos princípios estudados nessa aula para compor seu argumento.

Envie seu texto para seu tutor.

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4 APROFUNDANDO O CONHECIMENTO

Figura 3

No livro “Ensinar: agir na urgência, decidir na incerteza”, Philippe Perrenaoud discute os dilemas vivenciados pelo professor e aponta como essa temática deve ser abordada nos cursos de formação de professores. Embora não seja especificamente um texto de ética, as atitudes e a capacidade de decisão são contextualizadas e debatidas sob o ponto de vista dos rumos que a educação vem tomando num mundo contemporâneo.

5 TROCANDO EM MIÚDOS

Vimos que a ética é uma reflexão sobre a conduta humana que deve se deter em princípios racionais para avaliar as ações. É no campo discursivo que a ética se realiza, quando empregamos argumentos para defender os princípios da ação, de forma a abrir mão de crenças e valores herdados tradicionalmente que não têm fundamentação. Discutimos a criação dos códigos de ética profissional e a sua função de regular a relação entre prestador de serviço e usuário, com a finalidade de manter o respeito mútuo e a garantia de cumprimento das obrigações de ambas as partes. Ressaltamos que, embora no magistério não haja um código de ética específico, as Leis que regem a educação brasileira determinam um conjunto de atitudes desejáveis para os agentes escolares. Estudamos as formas apropriadas do uso da razão que prescreve que devemos saber usar o discernimento para expressar nossas opiniões em lugares e momentos apropriados, de modo a garantir que nossas ideias sejam avaliadas antes de ser aceitas como verdades. Finalmente, compreendemos que o estagiário ocupa uma posição delicada no ambiente de estágio e deve manter uma posição de neutralidade nas dinâmicas da sala de aula em que estagia e discutir suas opiniões e dúvidas com seus professores e orientadores do curso que realiza.

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6 AUTOAVALIANDO

Reflita sobre sua conduta enquanto aluno do curso de letras e avalie se você faz o uso público e o uso privado da razão de modo adequado, quando expressa suas opiniões acerca da educação.

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REFERÊNCIAS

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

HERRERO, Francisco Javier. O problema da fundamentação da ética, In: Ethica: cadernos acadêmicos, vol. 5, n. 2, Rio de Janeiro: Editoria Central da Universidade Gama Filho, 1994.

KANT. Immanuel. Textos Seletos. Petrópolis: Vozes, 2005.

MOTTA, Nair de Souza. Ética e vida profissional. Rio de Janeiro: Âmbito Cultural, 1984.

PERRENOUD, Philippe. Ensinar: agir na urgência, decidir na incerteza. São Paulo: Artmed, 2001.

TOMASI, Antonio de Pádua N. & SILVA, Ivone Maria Mendes. Ofícios de ontem e ofícios de hoje: ruptura ou continuidade? In: Anais do XIII Congresso Brasileiro de Sociologia, Grupo de Trabalho Ocupações e Profissões, Recife: PE, 2007, disponível em: http://www.sbsociologia.com.br/portal/index.php?option=com_docman&task=cat_view&gid=145&Itemid=171

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