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ATUALIDADE DO AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente é o maior dramaturgo português. Pertence ao primeiro Renascimento. Por isso, é meio primitivo e ainda preso a técnicas e princípios medievais. Por que, então, lê-lo hoje, na era da cibernética e dos projetos interestelares? A resposta é uma só: porque ele permanece atual, apesar de alguns aspectos arcaizan- tes. Os problemas que investigou não foram superados pela tec- nologia. Será que o século XX resolveu a injusta hierarquização dos valores e das pessoas? O fato de se poder viajar num supersô- nico elimina o medo da morte? A Internet diminui o desejo de amar ou a ânsia por atitudes corretas? Enfim, há coisas que não mudam com o progresso do homem. Essas coisas podem ser chamadas de constantes metafísicas. Delas decorrem algumas noções essenciais sobre ética, comportamento ou convívio social. Gil Vicente preocu- pou-se com problemas dessa natureza. O Auto da Barca do Inferno foi escrito numa época semelhante à nossa, quando o homem se expunha aos perigos dos oceanos em busca de novos continentes, assim como hoje se buscam planetas desconhecidos na imensidão do espaço. Diferentemente de Ca- mões, que, em Os Lusíadas, demonstrou euforia pela face desbra- vadora do século XVI, Gil Vicente preocupou-se com a sistematiza- ção de uma ética para seu tempo. Julgava que progresso sem ética era ilusão para apressadinhos. Por isso, criticou os desvios do que considerava os caminhos para o comportamento ético. Orientando- -se por um cristianismo ideal, o dramaturgo deixou mais de qua- renta autos, escritos e encenados entre 1502 (Monólogo do Vaqueiro) e 1536 (Floresta de Enganos), du- rante os reinados de D. Manuel e D. João III. Em sua obra, procura demonstrar que a vida terrena deve se guiar por princípios religiosos, claramente assumidos. O Auto da Barca do Inferno concretiza esses princípios mediante alegoria de um julgamento após a morte, de que participam o Diabo e o Anjo. Trata-se de uma espécie de figuração do Juízo Final. Aí, as almas defrontam-se com seu destino na eternidade. Condenações e absolvições seguem o rígido código da moralidade cristã, entendida em sua versão ascética e medievalizante. Apesar disso, a peça é muito engraçada. O autor emprega o humor e o sarcasmo para denunciar o apego do homem à vida terrena, envolvido em paixões, desejos e vícios. A isso se soma a mestria verbal de Gil Vicente, visto que é o maior dramaturgo do fim da Idade Média européia, e também um dos grandes poetas do período. TEXTO E CONTEXTO No Museu das Janelas Verdes, em Lisboa, existe um quadro que poderia ilustrar o Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente. Trata-se de um painel anônimo da primeira metade do século XVI, repro- SISTEMA ANGLO DE ENSINO 5 ANGLO VESTIBULARES AUTO DA BARCA DO INFERNO Gil Vicente ANALISE DA OBRA IVAN TEIXEIRA Gil Vicente ´

Auto Da Barca Do Inferno

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Page 1: Auto Da Barca Do Inferno

AATTUUAALLIIDDAADDEE DDOO AAUUTTOO DDAA BBAARRCCAA DDOO IINNFFEERRNNOOGil Vicente é o maior dramaturgo português. Pertence ao

primeiro Renascimento. Por isso, é meio primitivo e ainda preso atécnicas e princípios medievais. Por que, então, lê-lo hoje, na erada cibernética e dos projetos interestelares? A resposta é uma só:porque ele permanece atual, apesar de alguns aspectos arcaizan-tes. Os problemas que investigou não foram superados pela tec-nologia. Será que o século XX resolveu a injusta hierarquizaçãodos valores e das pessoas? O fato de se poder viajar num supersô-nico elimina o medo da morte? A Internet diminui o desejo de amarou a ânsia por atitudes corretas? Enfim, há coisas que não mudamcom o progresso do homem. Essas coisas podem ser chamadas deconstantes metafísicas. Delas decorrem algumas noções essenciaissobre ética, comportamento ou convívio social. Gil Vicente preocu-pou-se com problemas dessa natureza.

O Auto da Barca do Inferno foi escrito numa época semelhanteà nossa, quando o homem se expunha aos perigos dos oceanos embusca de novos continentes, assim como hoje se buscam planetasdesconhecidos na imensidão do espaço. Diferentemente de Ca-mões, que, em Os Lusíadas, demonstrou euforia pela face desbra-vadora do século XVI, Gil Vicente preocupou-se com a sistematiza-ção de uma ética para seu tempo. Julgava que progresso sem éticaera ilusão para apressadinhos. Por isso, criticou os desvios do queconsiderava os caminhos para o comportamento ético. Orientando--se por um cristianismo ideal, o dramaturgo deixou mais de qua-renta autos, escritos e encenados entre 1502 (Monólogo do Vaqueiro) e 1536 (Floresta de Enganos), du-rante os reinados de D. Manuel e D. João III. Em sua obra, procura demonstrar que a vida terrenadeve se guiar por princípios religiosos, claramente assumidos.

O Auto da Barca do Inferno concretiza esses princípios mediante alegoria de um julgamento apósa morte, de que participam o Diabo e o Anjo. Trata-se de uma espécie de figuração do Juízo Final. Aí,as almas defrontam-se com seu destino na eternidade. Condenações e absolvições seguem o rígidocódigo da moralidade cristã, entendida em sua versão ascética e medievalizante. Apesar disso, a peçaé muito engraçada. O autor emprega o humor e o sarcasmo para denunciar o apego do homem à vidaterrena, envolvido em paixões, desejos e vícios. A isso se soma a mestria verbal de Gil Vicente, vistoque é o maior dramaturgo do fim da Idade Média européia, e também um dos grandes poetas doperíodo.

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No Museu das Janelas Verdes, em Lisboa, existe um quadro que poderia ilustrar o Auto da Barcado Inferno, de Gil Vicente. Trata-se de um painel anônimo da primeira metade do século XVI, repro-

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AAUUTTOO DDAA BBAARRCCAA DDOO IINNFFEERRNNOOGil Vicente

ANALISE DA OBRA IVAN TEIXEIRA

Gil Vicente

´

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duzido no presente volume. Concretiza a idéia queentão se tinha do inferno, tal como o concebeu a ima-ginação católica da Idade Média. No centro, há umenorme caldeirão com cinco condenados dentro.Dois são padres. Ao redor, homens e mulheres, to-dos nus, são torturados por horríveis demônios. Ofogo domina tudo. No canto da esquerda, uma diabaextrai com um ferro moedas da boca de um homemamarrado. Este, em vida, deve ter idolatrado o dinhei-ro, figura que Gil Vicente retrata como o Onzeneiro.À sua direita, próximo ao caldeirão, outro demôniodespeja o conteúdo de um porco na boca de um ho-mem deitado. Pode estar sendo pingado, isto é, o con-teúdo derramado deve ser banha fervente, processotambém mencionado no auto vicentino. Em baixo, àdireita do quadro, há outro frade, subjugado pela nu-dez de uma mulher, a maior fraqueza dos frades deGil Vicente. Atrás, presidindo ao festival de torturas,aparece um demônio especial, com ares de rei dostormentos, que lembra o protagonista do Auto da Bar-ca do Inferno.

Jerônimo Bosch, que morreu um ano antes daencenação deste auto (1517), tornou-se célebre porquadros desse tipo. O Cancioneiro Geral de Garcia deResende, dessa mesma época, também apresentadescrições do inferno. Enfim, a Divina Comédia deDante, a maior alegoria da vida após a morte, im-pregnou toda sensibilidade do final da Idade Média.Do ponto de vista técnico, o auto de Gil Vicente tam-bém possui semelhanças com o painel anônimo por-tuguês. Ambos são primitivos, carecem da noção deperspectiva e gostam de pequenas aglomerações humanas. Da mesma forma, fundem o real com o

imaginário, colocam-se a serviço de conceitos daIgreja Católica. Por sinal, o catolicismo, nessa altura,começou a enfrentar a maior crise de sua história: aReforma protestante. Lutero era também atormenta-do com a idéia do pecado e do inferno. Tal preocupa-ção levou-o a formular o conceito da predestinaçãodas almas, noção nova para o tempo.

Haveria alguma diferença importante entre o pai-nel das Janelas Verdes e o Auto da Barca do Inferno?Sim. O pintor era austero e pesadão. Muito estático esem humor. Suas figuras são quase esculturais. GilVicente, ao contrário, concebeu demônios perversa-mente graciosos, dominados pela ironia. Assim é ocapitão da barca do inferno, cuja linguagem não dis-pensa o palavrão em insinuações picantes. Demons-tra-se até simpático em sua mordacidade contra onobre, o frade, o juiz e outros aproveitadores. O cria-dor do teatro português deve ter apreciado Erasmode Roterdã, cujo Elogio da Loucura, de 1509, caracte-riza-se pela sátira espirituosa. Gil Vicente é o maior re-presentante desse tipo de literatura em Portugal. Poressa perspectiva, filia-se à tradição menipéia, isto é,aquela criada por Luciano de Samósata, escritor gre-go do século II. O Auto da Barca do Inferno é seme-lhante a um de seus livros, o Diálogo dos Mortos. Ne-le, o autor idealiza a conversa do barqueiro Carontecom seus passageiros, durante a travessia do Letes,que separa os dois lados da vida. Enfim, a idéia básicade Gil Vicente pertence a tempos imemoriais. Esse ti-po de literatura meio fantástica e alegórica foi tam-bém aproveitado por Machado de Assis, cujas Memó-rias Póstumas de Brás Cubas apresentam o relato pro-duzido por um defunto.

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Inferno, painel portuguêsdo século XVI. Museu das

Janelas Verdes, Lisboa.

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SSÁÁTTIIRRAA SSOOCCIIAALL EE MMOORRAALLIIDDAADDEEO anjo e o demônio são figuras paradoxais no ce-

nário do Auto da Barca do Inferno. O Anjo é sem gra-ça; só consegue dar boas-vindas a um bobo e a qua-tro cruzados que morreram pela expansão do cris-tianismo, no norte da África, em luta contra os isla-mitas. O diabo é liberal; recebe todo mundo com hu-mor e simpatia, ainda que falsa. Só não recebe o Ju-deu, por razões bastante complexas. Seria porqueos hebreus possuíam uma religião tão diferente dacatólica que pareceria injusto julgá-lo por critérioscristãos? Ou seria porque Gil Vicente, neste auto, oconsidera tão ruim a ponto de o rivalizar com o pró-prio demônio? Difícil saber. Mas sabe-se que a po-sição vicentina diante dos judeus foi contraditória.Às vezes, ele os defende; às vezes, os ataca. Em Por-tugal, na ocasião, houve diversos tumultos de cris-tãos contra judeus. Isso, de certa forma, está repre-sentado no Auto da Barca do Inferno. Na verdade, to-da a vida social portuguesa do fim da Idade Médiaacha-se genialmente captada neste auto.

Gil Vicente era um mestre da representação so-cial. Suas personagens pertencem à categoria dos ti-pos, espécie de personagem mais própria para sim-bolizar as diversas camadas da sociedade. Há genteda nobreza, do clero e do povo. Todavia, as diferençasde hierarquia, tão importantes na vida real, se anulamperante as ironias do Diabo. Ele só leva em conta aessência das pessoas. Se bons, ao céu; se maus, ao in-ferno. Mas há um elemento intrigante em tudo isso,sugerido acima. Apesar dos futuros tormentos quereserva para todos, o Diabo é ótimo anfitrião. Discute,argumenta, pondera o que as pessoas tem a dizer, an-tes de condená-las. O Anjo, ao contrário, mantém-secaladão. Argumenta pouco e é autoritário. No caso doJudeu, nem lhe dirige a palavra. A existência na barcado Anjo é muito calma. Os quatro cruzados, ao se di-rigirem a ela, expressam a idéia de que a verdadeiravida começa na morte. Só sabem cantar hinos emlouvor a Deus. Por outro lado, as pessoas recebidaspelo Demônio transbordam de alegria terrena. Tra-zem mais nervos, embora sempre aplicados à obten-ção de vantagens. Enfim, o pensamento básico doAuto da Barca do Inferno é contra a vida como ela é.Moraliza em sentido contrário à dinâmica das coisas,como se os interesses humanos não possuíssem ospróprios mecanismos de proibição e liberdade. Assimcomo um governo regulador das taxas do mercado,esta peça procura impor normas à sociedade. Por es-sa perspectiva, o autor torna-se meio submisso à mo-ralidade católica, quase sempre repressora. Quer di-zer, ele pensa como católico, porque acreditava na re-ligião. No Auto da Índia, condena a expansão do di-nheiro, em nome da preservação da família, que deve-ria se basear em conceitos estáticos da tradição, e nãono vaivém da busca pela sobrevivência. Todavia, esseargumento não limita o teatro vicentino, porque a éti-

ca de seus autos é sempre superada pela arte. É issoque os torna tão atuais. Embora não se conceba maiso inferno como ele o concebia, o Auto da Barca do In-ferno permanece vivíssimo. Por isso, em sentido con-trário ao que se disse acima, é possível afirmar tam-bém que o catolicismo é que foi utilizado por Gil Vi-cente, na medida em que se valeu dele para construiros autos.

A crítica literária sempre exaltou o zelo de Gil Vi-cente pela virtude, esquecendo-se de que isso, àsvezes, pode ser tão opressivo quanto a hierarquia dopoder, que o dramaturgo não cansava de criticar.Enfim, ele foi o teatrólogo da corte de D. Manuel eD. João III, durante as três primeiras décadas doséculo XVI, conforme se viu acima. Na época, a no-breza possuía seus artistas oficiais. Em certa medi-da, estes eram obrigados a expressar em arte os pre-ceitos que, teoricamente, orientavam reis e fidalgos.Isso pode explicar, em parte, as críticas de Gil Vi-cente contra o clero, porque, não raro, a igreja se opu-nha aos interesses da coroa. Todavia, jamais questio-nou a idéia de uma religião santa e imaculada, que,em rigor, nunca existiu. Se visto pela teoria do críti-co russo Mikhail Bakthin (a tradição luciânica), oteatro vicentino pode ganhar um pouco mais de fle-xibilidade, coisa que já possui em larga escala, mes-mo quando lido pela óptica da ação moralizadora doautor.

AARRTTEE GGÓÓTTIICCAAComposição típica do teatro vicentino, o Auto da

Barca do Inferno é uma alegoria moralizante ou, sim-plesmente, um “auto de moralidade”, como o próprioautor o denominou. Falta-lhe unidade de ação, isto é,não conta uma estória com suspense ou surpresa natrama, como era usual no teatro clássico grego, queele não conheceu. Ao fundar o teatro português, em1502, com a encenação do Monólogo do Vaqueiro, GilVicente julgava estar inventando o teatro no mundo,em continuação à recente tradição dos dramaturgosespanhóis Torres Naharro e Juan del Encina. A au-sência de conflito dramático nesse tipo de teatro cor-responde mais ou menos ao desconhecimento daperspectiva em pintura, como se pode observar nosquadros religiosos do fim da Idade Média. Nesse sen-tido, e também pela religiosidade, o teatro vicentinopode ser classificado de gótico, como as pinturas deCimabue, Duccio e Giotto. As catedrais da baixa Ida-de Média, em cujos frisos de baixo-relevo há inú-meras figurações de almas penando no inferno, são amáxima expressão da arte gótica. Enfim, o Auto daBarca do Inferno está para a literatura européia, assimcomo o gótico está para as artes plásticas: marca ofim da Idade Média e o início do Renascimento. Nãose pode esquecer, por exemplo, que a Capela Pazzi deBrunelleschi, inauguradora da arquitetura renascen-

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tista, ainda possui traços medievais. O mesmo acon-tece com o teatro vicentino, com a diferença que ten-de mais para a Idade Média. A função didática dos fri-sos, esculturas, vitrais e pinturas do período góticotorna mais evidente o parentesco de Gil Vicente comas artes plásticas da época.

O didatismo de tal arte consistia em representarepisódios bíblicos mediante unidades justapostas,sem coesão narrativa. Apenas insinua uma estória. OAuto da Barca do Inferno também se baseia na coor-denação de quadros isolados, que só se interligam pe-la presença do Diabo e do Anjo, o que ainda não lhedá unidade narrativa. Limita-se a abordar fragmentosdas vidas dos condenados, constituindo-se numa se-qüência linear de cenas, justapostas umas às outras.Num certo sentido, sua finalidade é igualmente didá-tica, pois pretendia ensinar a virtude e combater o ví-cio. Por isso, classifica-se como teatro alegórico. Oconceito de alegoria será retomado mais adiante.

O Auto da Barca do Inferno pode ser tambémconsiderado expressão da arte gótica, porque enfatizao tema da morte. Com efeito, o auto revela influênciasdas famosas Danças Macabras, tipo de literatura bas-tante divulgado durante a Idade Média européia. Ocrítico português Queirós Veloso assim descreve essas

danças: “[...] ronda infernal de defuntos, de todas ascondições e de todas as idades, dançando com esque-letos, para significar o poder absoluto da Morte sobreo homem, por mais alta que seja a sua hierarquia”.Atualmente, na Inglaterra, os romances de mistério eterror, em que a morte é uma ameaça constante, sãoconsiderados literatura gótica, que esteve muito emmoda no século XVIII nesse país.

RROOTTEEIIRROO DDEE LLEEIITTUURRAAA peça abre-se com os preparativos do embarque

do Diabo para sua morada. Em cena, dois navios: o doinferno e o do céu. Diante deles, os respectivos co-mandantes: o Diabo e o Anjo. Esses dois são persona-gens fixas, não saem de cena. As demais são itineran-tes, porque suas falas são episódicas. Depois de prota-gonizarem as respectivas cenas, as personagens iti-nerantes praticamente não participam mais da peça.Um ou outro volta a participar, como é o caso do Bo-bo (Joane), que auxilia o Anjo em sua tarefa de julgaras almas que pretendem embarcar para o céu.

DDiiaabbooQuem primeiro fala é o Diabo, que demonstra

muita euforia em sua função de transportar as almasperdidas. Pertence à tradição clássica a idéia de queum barqueiro conduzia as almas na travessia da fron-teira entre a vida e a morte, conforme se viu acima.Possui um companheiro, que o auxilia em sua faina denavegador:

DDiiaabbooÀ barca, à barca, houlá!que temos gentil maré!

-Ora venha o caro1 a ré!

Companheiro Feito, feito!

DiaboBem está,

Vai tu, muitieramá2!

Atesa3 aquele palanco4,e despeja aquele banco pera a gente que virá.— À barca, à barca, uuh!

Asinha5, que se quer ir. Oh, que tempo de partir,

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1 O mesmo que carro, parte inferior das vergas nas velas trian-gulares. O Diabo quer posicionar a vela conforme o vento.

2 Em má hora.3 Estica.4 Corda para erguer as velas.5 Depressa.

Frontispício da primeira edição da obra completa(Compilaçam) de Gil Vicente, de 1562.

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Louvores a Berzebu!— Ora, sus6!, que fazes tu?Despeja7 todo esse leito8.

Nessa fala de abertura do auto, o Diabo convocaos passageiros e dá ordens ao ajudante, mostrando-semuito inquieto. Demonstra conhecimento sobre oequipamento do navio. É excelente capitão ou arrais.Do ponto de vista artístico, o Diabo é, de longe, a me-lhor personagem da peça. Apresenta extrema desen-voltura em sua linguagem insinuante e irônica, que,no trecho acima, saltita de alegria e entusiasmo. Aolongo da peça, trata todos como verdadeiro anfitrião,louvando os vícios que os trouxeram à barca. Possuigestos delicados, palavras agudas e quase sempreambíguas. Às vezes, demonstra seu lado cruel; mas,via de regra, é um magnífico dissimulado.

FFiiddaallggoo ee AAnnjjooO primeiro a chegar é um nobre, D. Anrique (=

Henrique). Dentre as personagens itinerantes, esta éa que permanece mais tempo em cena. Traz consigoum pajem, que lhe segura a cauda do manto e lhe trazuma cadeira. O manto e a cadeira são as insígnias desua fatuidade, de seu destino vazio. O demônio obri-ga-o a embarcar, fundado na idéia de que a vida deledeterminou a condenação. O Fidalgo se defende,conquistando o direito de recorrer ao Anjo, que semantém soberbo e quase indiferente. Este o acusa depresunção e tirania. Abusara dos pobres. Por isso,não pode ser recebido no céu:

Não vindes vós de maneirapera ir neste navio. Essoutro vai mais vazio:a cadeira9 entrará,e o rabo10 caberá, e todo vosso senhorio.Vós ireis mais espaçoso,com fumosa11 senhoria, cuidando na tiraniado pobre povo queixoso;e porque, de generoso12, desprezastes os pequenos, Achar-vos-eis tanto menosquanto mais fostes fumoso13.

Por este trecho expressivo, vê-se que o Anjo nãodispensa também a ironia em seu trato com os conde-nados. Diante da sua acusação contra o nobre, pode-se perguntar: mas como a sociedade do Antigo Re-gime admitia críticas tão pesadas, visto Gil Vicente serum artista comissionado? A resposta é simples: o tea-trólogo, na passagem, não criticou a essência da no-breza nem a estrutura social da época, e sim um aci-dente, o caso isolado de um nobre que transgredia osprincípios da própria classe. Afinal, a nobreza, em te-se, era cristã. A justiça fazia parte de sua ética. Logo,ao condenar D. Anrique, Gil Vicente nada mais fez doque preservar a doutrina da nobreza, embora, na prá-tica, todos os nobres fossem como essa personagem.Por outro lado, haveria alguém na platéia de Gil Vi-cente que, publicamente, confessasse identidade coma fatuidade de D. Anrique? É pouco provável.

Depois da fala transcrita acima, o Fidalgo torna àoutra barca. Aí, o demônio sente mórbido prazer emdemonstrar que a amante dele o traíra em vida e quea esposa ficara feliz com sua morte. Derrotado, o Fi-dalgo precipita-se na quentura da barca. Esse proce-dimento repete-se com os demais passageiros. Litera-riamente, o Fidalgo também é personagem forte, so-bretudo por seu arrependimento final, quando reco-nhece que vivera erradamente:

Ao inferno todavia!Inferno há í14 pera mi?! Ó triste! Enquanto vivinão cuidei15 que o í havia. Tive16 que era fantesia17

folgava ser adorado;

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6 Interjeição de entusiasmo.7 Limpa, arruma espaço (para as almas que virão).8 Espaço entre o mastro central e a popa.9 Símbolo de nobreza.10 Cauda do manto. Símbolo de nobreza.11 Presunsosa. 12 Vocábulo de sentido duvidoso, no contexto. Pode equivaler a

nobre, fidalgo, vaidoso.13 Sentido dos dois últimos versos: quanto mais vaidoso (fu-

moso) foste em vida, tanto menos serás considerado aqui.

14 Aí. 15 Pensei.16 Pensei.17 Imaginação, invenção.

O embarque de D. Anrique.

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confiei em meu estado e não vi que me perdia. — Venha essa prancha! Veremos Esta barca de tristura.

OOnnzzeenneeiirrooEm seguida, entra o Onzeneiro, com uma gran-

de bolsa de dinheiro, agora vazia. Apesar da ganânciaem vida, nada conseguiu trazer para a morte. Onze-neiro quer dizer agiota, o que cobra juros acima da ta-xa consentida. O termo deriva de onzena, que vem deonze (por cento). O Anjo emprega onzena com o sen-tido de usura, chamando-a filha da ambição. De tudoque o Onzeneiro juntara na terra, nada lhe valeu con-tra a austeridade do Anjo e a astúcia do Diabo. Eramuito velho, pois o Diabo espanta-se com sua demo-ra. Assim como o Fidalgo quis voltar à casa para con-solar a amante, o Onzeneiro, na hora do embarque,demonstrou desejos de retornar à vida para buscardinheiro. Igualmente ao Judeu, era muito apegado aolucro.

BBoobbooDepois, vem o bobo Joane, que derrama um enor-

me xingamento contra o capitão do inferno, ao perce-ber que este o quer levar:

Ao inferno, eramá18?!Hiu! hiu! barca do cornudo!Pero Vinagre19, beiçudo, beiçudo,rachador d’Alverca20, huhá!Sapateiro da Candosa21!Antrecosto22 de Carrapato!Hiu! Caga no sapato, filho da grande aleivosa23!Tua mulher é tinhosa24

e há de partir um sapo chentado25 no guardenapo,

neto da cagarrinhosa26!Furta-cebola! Hiu! hiu!

Excomungado nas erguejas27!

Burrela28, cornudo sejas!

Toma o pão que te caiu,a mulher que te fugiu pera a Ilha da Madeira!Cornudo atá mangueira29, o demo que te pariu!Hiu! hiu! Lanço-te uma pulha30

de pica naquela31!Hump! hump! Caga na vela!Hiu! Cabeça de grulha32!Perna de cigarra velha, caganita de coelha, pelourinho de Pampulha33,mija n’agulha! Mija n’ agulha!

Essa fala configura uma pequena obra-prima donon-sense, que é um tipo de texto baseado na acumu-lação absurda de expressões ou frases sem sentidopreciso. De fato, o texto é repleto de ruídos sem signi-ficado racional, mas que expressam a fúria do falante:hiu, hump! Compõem-se de uma sonoridade estri-dente, sugerindo uma sinfonia de vogais e consoantesem combinações estranhas e contundentes. Comoocorre com todas as personagens, a linguagem deJoane é moldada de acordo com sua ocupação emvida. É tosca, repleta de simplicidades fortes. Dá a me-dida de sua estado social e de seu espírito desarticu-lado. Gil Vicente era mestre em captar os diversos ní-veis de fala da sociedade. Mas o Anjo pondera que osmales causados pelo Bobo decorriam de inocência, enão da malícia. Por isso, determina que fique ao lado de sua barca, para embarcar depois. Aí, auxiliará o An-jo em sua análise das almas que hão de chegar. A si-tuação de Joane encarna o princípio bíblico de que ospobres de espírito pertencem ao reino do céu.

SSaappaatteeiirrooO Sapateiro (Joanantão = João Antão) traz um

carregamento de formas, com as quais roubava osclientes. Se o Demônio o ameaça, o Anjo consuma a condenação, afirmando que a carga impossibilita seuembarque para o céu. Como as demais personagens,o Sapateiro tem uma certa complexidade: roubava, éverdade; mas nem por isso deixava de assistir missase ajudar os outros. Possui traços humanos. Um poucomais de psicologia individual, e deixaria de ser umsimples conceito. Isso também se reflete em sua lin-guagem, semelhante à do bobo Joane. Em meio aovazio da morte, o Sapateiro agarra-se às formas, que

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18 Má hora.19 Pessoa conhecida na época.20 Localidade em Portugal.21 Localidade em Portugal. 22 Entrecosto: carne entre as costelas de um animal. 23 Mulher adúltera.24 Relativo ao demônio. 25 Posto, sentado.26 Lembra cagarrão, cagão, no sentido de medroso. 27 Igrejas. 28 A expressão fazer burrela referia-se a atos imbecis e veatórios.

29 Termo preso à mango, que em Portugal designa o pênis. 30 Insulto. 31 Mário Fiúza afirma que naquela se refere à pulha, do verso an-

terior. O sentido dos versos seria: quando fizeres um insulto,que a ofensa recaia sobre ti. Pica está por machucar, ofender.

32 Pessoa tagarela. 33 Lugar perto de Lisboa.

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lhe deram vida na terra. Com isso, Gil Vicente quer re-presentar o apego do homem nos valores materiais,que o teatrólogo considerava ilusórios.

FFrraaddeeLogo após, surge o Frade, trazendo pela mão a

namorada Florença. Ambos cantam e dançam. Alémda mulher, suas insígnias são a espada, o escudo e ocapacete, que representam sua paixão pela vida e pe-lo esporte. Ama a esgrima, o canto e a dança, sem de-monstrar nenhuma identidade com o sacerdócio. Fi-gura um belo caso de vocação desencontrada. Quan-do recorre ao Anjo, o bobo Joane, que estava de lado,o fulmina com o argumento de que a namorada invali-da seu direito de apelação. Como personagem, o Fra-de é também uma rica invenção de Gil Vicente. Trazcertas incoerências muito humanas. Amava a vida eas mulheres. Talvez devesse ser condenado, pois nãofora capaz de se decidir entre os prazeres e a penitên-cia. Quis conciliar as coisas, e isso resultou em hipo-crisia. Mas trata-se apenas de um defeito, e não pro-priamente de um crime imperdoável.

Todavia, há uma passagem na cena do Frade quepode sugerir conexão de Gil Vicente com as idéiasda Reforma luterana. Trata-se do trecho em que cri-tica a permissividade sexual, não apenas de Frei Ba-briel (este era o nome do Frade), mas de toda a or-dem dos dominicanos. Ao ver o Frade com a namo-rada, o Diabo pergunta:

Pois entrai! Eu tangerei34

e faremos um serão35. Essa dama é ela vossa?

Frade

Por minha la tenho eu E sempre a tive de meu.

Diabo

Fezestes bem, que é fermosa. E não vos punham lá grosa36

no vosso convento santo?

Frade

E eles faziam outro tanto!...37

Igualmente a Lutero, Gil Vicente pretendia mo-ralizar a igreja, só que por caminhos diferentes. Lu-tero procurou humanizar o sacerdócio, concedendoaos religiosos o direito do casamento, ao passo que o

teatrólogo português condenava os padres por se en-tregarem aos prazeres do amor. Convém reforçar aidéia de que a Reforma luterana se iniciou no ano daencenação do O Auto da Barca do Inferno. Assim, seo Anjo tivesse um pouco mais de flexibilidade, po-deria perdoar o Frade. Enfim, Gil Vicente criou umapersonagem capaz de gerar simpatia, sobretudo porseu respeito à namorada. Queria o melhor para ela,pois procurou livrá-la do inferno. Seu talento para amúsica e para a dança indicam um caráter vivaz esensível. Mediante a condenação do Frade, pode-sever o quanto Gil Vicente era rigoroso em sua moral,subordinada aos princípios ideais de uma igreja im-pecável. Mais do que isso, vê-se como sabia represen-tar as inclinações que caracterizam os temperamentose os tipos sociais.

BBrrííssiiddaa VVaazzDepois do Frade, aparece a mais terrível das al-

mas penadas, a alcoviteira Brísida Vaz, cujos perten-ces são seiscentas virgindades. Passara a vida sedu-zindo meninas para os padres. Embora seja apenasum conceito, essa personagem funciona como supor-te para que o Diabo demonstre uma face mais huma-na de sua personalidade, tratando-a de Senhora, comonas cantigas de amor do período trovadoresco. Brísi-da é repugnante; por isso, o Diabo a deseja. Diante doAnjo, ela evoca o fato de ter auxiliado os padres emseus prazeres carnais. Funda nisso sua pretensão deir para o céu. O Anjo a desconsidera; o Diabo a rece-be, prometendo bons tratos. A alcoviteira simboliza ointeresse puro e simples. Nada que faz lhe dá prazer.Funciona apenas como instrumento para a satisfaçãodos outros. Visa somente a um lucro sem graça. Se-duz meninas, mas não as quer para si. Por outro lado,pratica bruxaria como meio de sedução. Quer dizer,conquistava mediante narcóticos e encantamentos.Aproxima-se dos traficantes de hoje. Pela ética atual,não teria salvação.

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34 Tocarei. 35 Festa.36 Pôr grosa significa censurar. 37 Isto é: os outros frades também tinham amantes.

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JJuuddeeuuDepois de Brísida, vem o Judeu. Esta cena é o

contrário das outras. Sua alma deseja embarcar, maso Diabo a recusa. Traz um bode (insígnia da religiãojudaica) às costas, insistindo em embarcar com ele. ODiabo toma o bode como pretexto e não o deixa em-barcar. O Judeu recorre ao Anjo, mas Joane não per-mite que chegue a falar, acusando-o de desrespeito àreligião católica. Rejeitado por ambas as barcas, o Ju-deu é forçado a ir a reboque, com o bode preso a umacoleira. Como personagem, não possui maiores en-cantos. Funciona como simples alegoria de um tiporacial e cultural, contra quem, neste auto, Gil Vicentedemonstra preconceito. Em termos atuais, tanto oAnjo quanto o Diabo seriam condenados por sua re-cusa do Judeu, pois não apresentam argumentos pa-ra isso. Na fala final do Diabo, neste quadro, há umapossível alusão ao mito de Ahasverus, o judeu erran-te, cujo destino é vagar sem paradeiro por causa desua ofensa a Cristo. Numa perspectiva mais limitada,se poderia dizer que o Judeu foi condenado por causade seu apego extremado à religião judaica, pois até nooutro mundo faz questão de ostentar sua crença, sim-bolizada no bode que leva às costas. Nesse sentido, apeça estaria ensinando que a verdadeira religião é acatólica.

CCoorrrreeggeeddoorr,, PPrrooccuurraaddoorr ee EEnnffoorrccaaddooOs três passageiros seguintes simbolizam a in-

conveniência da burocracia. São eles: o Corregedor, oProcurador e o Enforcado. Trazendo autos e uma va-ra à mão (insígnias), o Corregedor fala por fórmulasjurídicas, em latim. O Diabo o imita, produzindo umlatinório bem engraçado. O Bobo mete-se a erudito etambém se expressa em língua de advogado. A prin-cipal acusação, aqui, consiste na corrupção pelas viaslegais. Nesse esquema, até a mulher do Corregedortomara parte, sempre com o apoio do Procurador,que entra em cena carregando livros (insígnia). O En-forcado, ainda com a corda ao pescoço (insígnia), forailudido por Garcia Moniz, tesoureiro da Casa da Moe-da, que lhe dissera ser honroso morrer por furtos. Es-sa personagem simboliza o ladrão idiota que roubasem vantagens, servindo de mero instrumento aosmais espertos, que o manipulam de cima. Paga com aeterna perdição. Na verdade, essas personagens tipi-ficam aspectos de um mesmo problema, que é o usodas instituições para privilégios pessoais. Tambémaqui, a linguagem é poderoso instrumento para a ca-racterização do nível das personagens.

CCaavvaalleeiirroossDepois do Enforcado, vêm, enfim, os quatro Ca-

valeiros. Dirigem-se com altivez à barca do céu, des-prezando a figura bisbilhoteira do Diabo. Recebidos

como mártires da igreja, ganham a vida eterna comorecompensa. Novamente, a linguagem procura traçaro perfil das entidades. Os Cavaleiros só cantam hinos,o que demonstra o interesse deles em conquistar oreino do céu. Não valem nada como criação de teatro.São bonecos que representam uma beatitude muitoespiritualizada para ser real. Como guerreiros, deveri-am mostrar pelo menos um pouco de amor às armas.Nesse particular, são personagens sem decisão, poisguerreavam pensando no céu. A ética cristã do inte-resse, bem pouco apreciável hoje, agradava ao dis-curso do poder na Idade Média. Pela perspectiva docristianismo tradicional, esta cena contém toda a mo-ralidade da peça: os homens devem passar pela vidaterrena com os olhos na eternidade. Mas é possívelpensar também que Gil Vicente não acreditasse, defato, que o melhor da vida estava na espiritualidadeassexuada dos quatro Cavaleiros, pois suas persona-gens mais interessantes nascem daquilo que conde-na, isto é, do envolvimento com a vida terrena e suaspaixões. Expôs a idéia do ascetismo ideal, mas não aencarnou em verdadeiros homens, como faz com opadre, com o sapateiro, com o agiota e com os de-mais. O Bobo também é interessante, embora nãotenha sido condenado. Na economia dramática doAuto da Barca do Inferno, o Diabo resulta infinitamen-te superior ao Anjo, traço curioso numa peça que pro-cura combater a influência do demônio.

HHUUMMAANNIISSMMOONo parágrafo anterior ficou esboçado o que se

entende por Humanismo no teatro vicentino: ao abor-dar idéias religiosas, ele as encarna em pessoas vivas,com traços de sensível humanidade. Todo humanistaeuropeu acredita na religião e no teocentrismo. Gil Vi-cente, enfim, enquadra-se no Humanismo por causade seu estudo do aspecto terreno da manifestação deDeus, pois acreditava que o homem é a maior proje-ção de sua vontade. Muito além de um simples mora-lizador, Gil Vicente satiriza as paixões da natureza hu-mana, também previstas pelo projeto divino. Comefeito, o dramaturgo não se preocupa apenas em con-verter ou moralizar. Delicia-se no retrato dos tipos, nacaracterização das camadas e na reprodução das lin-guagens. Possui fascínio por descobrir o traço certoque possa se traduzir em símbolo expressivo dos di-versos grupos sociais e dos vários temperamentos.Preocupava-se tanto com os tipos sociais quanto comos tipos psicológicos, conforme se vê pelas persona-gens do Auto da Barca do Inferno. O Judeu é apenasum tipo social, mas o Frade é predominantemente psi-cológico, embora seja também um estereótipo social.Da mesma forma, com o Sapateiro. A alcoviteira é umdetestável aglomerado de traços estereotipados daspessoas viciadas na vantagem pela vantagem, semnenhuma paixão que a justifique.

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Page 9: Auto Da Barca Do Inferno

TTEEAATTRROO PPOOÉÉTTIICCOOAfinal, em que consiste a grandeza do teatro vi-

centino? Consiste em sua atualidade, decorrente so-bretudo do domínio sobre a poesia. Sua maior con-quista é a linguagem poética, geradora de todas ascomplexidades de que se tem falado aqui. A expe-riência dele com os redondilhos é impressionante.As rimas, as agudezas, as metáforas, os trocadilhos,as ambigüidades, os paradoxos, os símbolos, os ba-lanços rítmicos — tudo isso conduz ao universo dascomposições imortais. Ao lado de Camões e Pessoa,Gil Vicente é a maior expressão da arte portuguesa,que aliás só atingiu universalidade na literatura. Setivesse escrito em prosa, talvez não fosse tão expres-sivo. Existe muita prosa expressiva, é claro. O que sepretende dizer é que o talento de Gil Vicente era es-sencialmente poético. Seu texto produz a impressãode que não poderia ser feito de outra forma. A enor-me capacidade de representação social do teatrovicentino advém de sua inclinação para a poesia sa-tírica, que depende da escolha certa, do tom precisoe agudo da palavra adequada. É exemplo dessa jus-teza a passagem em que o Judeu, diante do Diabo, di-rige-se ao Fidalgo, já na barca, ordenando-lhe queinsulte o barqueiro em seu nome. Esse pequeno tra-ço insinua o poder do dinheiro nas relações sociais,pois afinal um judeu característico tinha ascensão so-bre muitos nobres. Outro exemplo de força poéticaobserva-se no seguinte trecho da fala do Demônio:

Ó padre frei-capacetecuidei que tínheis barrete!

Percebe-se, aqui, a concisão própria da boa poe-sia, em que se diz muito com pouco. O termo com-posto frei-capacete revela a duplicidade do comporta-mento do padre, que deveria se dedicar ao sacerdó-cio, e não à esgrima. Barrete é um tipo de gorro usa-do pelos clérigos, mas pode indicar também a posi-ção hierárquica do usuário. Tal espécie de símboloirônico aparece com freqüência no Auto da Barca doInferno. Aliás, o traço mais característico do Diabo é aironia, uma ironia fina e ferina, cortante. A ironia con-siste em insinuar o contrário do que se afirma. Assim,as tiradas do Diabo possuem sempre duplo sentido.Como se afirmou acima, o Anjo também é irônico, oque pode ser observado nestes versos de sua falacom o Fidalgo:

Pera vossa fantesiamui estreita é esta barca.

Em rigor, o Anjo acha que, por sua pequenez, oFidalgo não cabe em sua barca. Todavia, diz que o céué menor que ele, deixando claro que é bem maior. Oque era maior que o céu era apenas o conceito que oFidalgo fazia de si mesmo. Ao lado de expressões sutiscomo essa, o auto apresenta seqüências grosseiras,

com palavrões e termos agressivos, como, por exem-plo, os xingamentos do Bobo e do Judeu.

Não se pode esquecer, enfim, que a própria na-tureza do auto conduz o texto mais para o universo dapoesia do que para o da encenação. Assim, as peçasde Gil Vicente não perdem muito se forem apenas li-das, em vez de encenadas. Certamente, admitem be-las montagens. Mas seus recursos cênicos não sãotão significativos quanto os do teatro que explora osimprevistos das estórias de paixão. Por outro lado, aleitura (solitária ou em grupo), amplia seu poder desugestão, porque o auto se aproxima mais da poesiadramática do que propriamente da peça de teatro.

A experiência vicentina encontra diversas res-sonâncias na literatura contemporânea. No Brasil, oexemplo mais célebre talvez seja Morte e Vida Seve-rina (1956), de João Cabral de Melo Neto. Igualmente,ao pai do teatro português, João Cabral adota a justa-posição de cenas e o verso redondilho. Aproxima-seainda pelo tom explicativo da sátira contra as desi-gualdades sociais, assim como pela ênfase na tonali-dade poética do enunciado. As personagens possuema mesma constituição alegórica, representando cadauma um determinado tipo social do Nordeste. Por fim,o subtítulo remete imediatamente ao teatro primitivode Gil Vicente: “Auto de Natal Pernambucano”. Defato, o texto cabralino obedece à estrutura do auto,isto é, classifica-se mais como poesia dramática doque propriamente como peça de teatro.

Talvez mais popular do que Morte e Vida Severi-na, mas igualmente vicentino, é o Auto da Compade-cida (1959), de Ariano Suassuna. Se o texto de Cabralmantém a sisudez de quem se revolta com a banaliza-ção da morte entre as populações pobres, o de Suas-suna dissolve-se no humor fácil das manifestaçõesfolclóricas. Seus tipos populares, seu verso espontâ-neo e sua generosidade expansiva derivam da tra-dição vicentina, cuja texto improvisado deixou fundasinfluências na cultura popular do Nordeste. Assimnasceu a literatura de cordel entre nós. Essa origemtem explicação: a estrutura do teatro vicentino chegouao Brasil na segunda metade do século XVI, com osjesuítas, que adaptaram a experiência cortesã de GilVicente ao desafio da catequese indígena. Mediante amaleabilidade didática do auto alegórico, puderaminiciar a cristianização dos ameríndios. Dentre todosos jesuítas que adotaram a literatura como forma deensinamento, destaca-se José de Anchieta, que dei-xou diversas obras nesse gênero.

AALLEEGGOORRIIAASem noção clara do que seja alegoria é impossí-

vel apreciar o Auto da Barca do Inferno. Variante dodiscurso irônico, a alegoria define-se como enuncia-do de duplo sentido. Afirma uma coisa nas palavras esugere outra no significado. Trata-se de uma espécie

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Page 10: Auto Da Barca Do Inferno

de metáfora amplificada, em que quadros e cenas su-portam uma significação figurada, que transcende aaparência. O segundo sentido é sempre mais impor-tante que o primeiro. Geralmente, o texto alegóricoencarna conceitos religiosos ou ideológicos: por umlado, o Diabo é barqueiro; por outro, é a encarnaçãodo mal. O Corregedor representa a corrupção, sendotambém juiz. O Frade simboliza a lascívia e o culto doprazer, sem deixar de ser padre dominicano. Não sepode esquecer que o Auto da Barca do Inferno foiconcebido como a primeira cena de uma trilogia, emque os dois outros espaços da vida após a morte fo-ram figurados pela idéia do purgatório (Auto da Barcado Purgatório) e do paraíso (Auto da Barca da Glória).Enfim, alegoria diz a para significar b, sendo que se-gundo elemento é uma versão ideológica do primei-ro. Na ironia, há apenas o disfarce do enunciador emface de um aspecto superficial do assunto. Na alego-ria, a inversão constitui-se na essência da significação.Mediante um sentido, ela diverte; mediante outro,educa, moraliza.

LLEEIITTUURRAA EE EEXXEERRCCííCCIIOOSS

Tanto que o Frade foi embarcado, veio uma alco-viteira, por nome Brísida Vaz, a qual, chegando à bar-ca infernal, diz desta maneira:

BrísidaHoulá da barca! Houlá!

DiaboQuem chama?

BrísidaBrísida Vaz.

Diabo

Eh! aguarda-me, rapaz!Como nom vem ela já? 38

Companheiro5. Diz que nom há de vir cá

sem Joana de Valdês! 39

DiaboEntrai vós, e remareis.

BrísidaNom quero eu entrar lá.

DiaboQue saboroso arrecear!...

Brísida10. Nom é essa barca que eu cato40.

DiaboE trazeis vós muito fato41?

BrísidaO que me convém levar.

DiaboQue é o que haveis de embarcar?

BrísidaSeiscentos virgos42 postiços

15. e três arcas de feitiços43

que nom podem mais levar.Três almários44 de mentire cinco cofres de enleios45,e alguns furtos alheios,

20. assi em jóias de vestir;guarda-roupa de encobrir,

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Frontispício de Edição Seiscentista do Auto da Barca do Inferno.

38 O Diabo dirige-se ao Companheiro, anunciando a vinda de Brí-sida, como se já fosse esperada.

39 O Companheiro responde, afirmando que Brísida dizia que sóviria ao Inferno quando pudesse trazer consigo Joana deValdês, que era pessoa conhecida na época da encenação.

40 Procuro.41 Bens móveis, roupas.42 Himens, virgindades. Virgo, na época, era palavrão. Hoje, é co-

mo se dissesse: trago comigo seiscentos cabaços.43 Brísida fazia feitiços para seduzir as meninas. 44 Armários. 45 Envolvimentos, intrigas.

Page 11: Auto Da Barca Do Inferno

enfim — casa movediça46;um estrado de cortiça,com dous coxins47 de embair48.

25. A mor cárrega49 que é:essas moças que vendia50. Daquesta51 mercadoriaTrago-a eu, muito à bofé52!

DiaboOra ponde aqui o pé.

Brísida30. Hui! e eu vou pera o paraíso!

DiaboE quem te dixe53 a ti isso?

BrísidaLá hei de ir desta maré. Eu sou uma mártela54 tal, açoutes tenho levados55

35. e tormentos suportadosque ninguém me foi igual. Se fosse ao fogo infernal lá iria todo o mundo!A estoutra barca, cá fundo,

40. me vou eu, que é mais real56. E chegando à barca da Glória, diz ao Anjo:

BrísidaBarqueiro, mano, meus olhos57. Prancha a Brísida Vaz!

AnjoEu não sei quem te cá traz...

BrísidaPeço-vo-lo de giolhos58!

45. Cuidais que trago piolhos, anjo de Deus, minha rosa?

Eu sou aquela preciosa que dava as moças a molhos59. A que criava as meninas

50. pera os cônegos da Sé... Passai-me, por vossa fé,meu amor, minhas boninas60, olhos de perlinhas61 finas!E eu sou apostolada62,

55. engelhada63 e martalada64

e fiz cousas mui divinas. Santa Úrsula nom converteu tantas cachopas65 como eu:todas salvas polo meu66

60. que nenhuma se perdeu67. E prouve àquele do céu68

que todas acharam dono.Cuidais que dormia eu sono?Nem ponto se me perdeu! 69

Anjo65. Ora vai lá embarcar,

Não me estês70 importunando.

BrísidaPois estou-vos eu contando o porque me haveis de levar.

AnjoNão cureis de importunar71,

70. que não podeis ir aqui.

BrísidaE que má hora eu servi, pois não me há de aproveitar!

Torna Brísida Vaz à barca do Inferno, dizendo:

BrísidaHou barqueiros da má hora!Que é da prancha, que eis me vou?

75. E há já muito que aqui estou e pareço mal cá de fora.

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46 Tanto pode significar coisa transitória, bens materiais quanto abarraca em que moravam as prostitutas na Idade Média. Elastinham vida ambulante.

47 Almofadas.48 Enganar, iludir.49 Carga.50 Mário Fiúza, professor português, afirma que Brísida Vaz

entra em cena com uma porção de meninas, para simbolizara profissão de alcoviteira ou cafetina.

51 Desta.52 Por minha palavra, por boa fé.53 Disse.54 Mártir. Em vida, apanhava da justiça.55 Trata-se de complemento do objeto direto, por isso concorda

com ele. O mesmo ocorre com suportados, no verso seguinte. 56 Mais bonita.57 Brísida usa com o Anjo a linguagem que usava para seduzir

meninas.58 Joelhos.

59 Aos montes.60 Espécie de flor. 61 Diminutivo de pérola.62 Semelhante aos apóstolos, pelo sofrimento. Ela apanhava sem-

pre.63 Relativo a anjo, angelical. 64 Martirizada.65 Moças.66 Graças a mim. 67 Todas acharam homem.68 Agradou a Deus.69 Nos dois versos finais dessa fala, Brísida encarece seu empe-

nho no trabalho. Não deixou escapar nenhuma menina. 70 Estejais.71 Não vos preocupeis em incomodar, isto é, pare de atrapalhar.

Page 12: Auto Da Barca Do Inferno

DiaboOra entrai, minha senhora, e sereis bem recebida...Se vivestes santa vida,

80. vós o sentireis agora...

1. Observe os versos 14-28 do texto apresentadoacima. Neles, Brísida Vaz:a) relaciona o que deixou na terra e que era a-

bençoado pela igreja.b) relaciona o que deveria trazer consigo e que

lhe valeu a perdição.c) enumera o que traz consigo e que se relacio-

nava com sua atividade em vida.d) inventaria os bens recebidos por seus serviços

de alcoviteira. e) enumera o conforto obtido com seus serviços

de auxiliar dos frades.

2. Observe os versos 44-64. Neles, Brísida Vaz apre-senta os fundamentos de sua pretensão ao céu.Em essência, seus fundamentos resumem-se ao:a) auxílio prestado às moças desamparadas, li-

vrando-as da miséria.b) auxílio prestado à igreja, fornecendo mulhe-

res aos padres.c) auxílio prestado ao trabalho de Santa Úrsula,

convertendo meninas. d) auxílio prestado à sociedade, arranjando casa-

mento para meninas solteiras.e) rigor no trabalho, livrando meninas da lascí-

via dos padres.

3. A linguagem usada por Brísida com o Anjo podeser um elemento caracterizador de sua profissão.Assinale a alternativa que melhor descreva essalinguagem:a) sedutora, apresentando técnicas que, em vida,

o falante utilizava em sua profissão.b) reflexiva, voltada para as próprias virtudes.c) ambígua, pois tanto descreve a lascívia dos pa-

dres quanto a de quem fala.d) melíflua, na medida em que espelha os há-

bitos do falante em seu trato com os frades.e) desequilibrada, pois se orienta no sentido de

provocar o Anjo.

4. Assinale a alternativa que apresenta o melhorargumento para se considerar Brísida Vaz per-sonagem alegórica:a) ela ama o próprio trabalho, embora desagrade

à igreja. b) a igreja a define como anomalia. c) a sociedade é responsável por sua atividade.d) contraria a finalidade do homem.e) ela se define por traços estereotipados.

5. Brísida afirma que fez coisas “mui divinas”, “sal-vou” e “converteu” mais meninas do que SantaÚrsula. Nessas passagens, como em outras, sualinguagem caracteriza-se pelo uso de:a) deboche e denúncia.b) metáfora e alegoria.c) ironia e hipérbole.d) ambigüidade e ironia.e) ambigüidade e metonímia.

6. O Auto da Barca do Inferno não apresenta unida-de de ação. Tomando como verdade essa afirma-ção, responda: a) Como se explica, tecnicamente, essa falta de

unidade?b) Historicamente, teria sido possível a Gil Vicen-

te escrever uma peça com unidade de ação?

7. O teatro vicentino apresenta preocupação ética.Tomando essa afirmação como verdade, res-ponda: a) Por que o teatro vicentino é ético?b) Em que sentido a sátira possui relação com a

preocupação ética do autor?

8. O Auto da Barca do Inferno foi encenado para osreis portugueses. Responda:a) As idéias contidas no auto são específicas do

autor ou fazem parte de uma espécie de reper-tório coletivo?

b) se o auto foi encenado para a nobreza, como en-tender as críticas dirigidas contra essa classe?

9. O teatro vicentino é poético. Responda:a) qual a razão técnica dessa afirmação?b) por que o Auto da Barca do Inferno pode ser

classificado como moralidade?

10. As personagens de o Auto da Barca do Inferno sãotipos alegóricos. Responda: a) o que se entende por personagens típicas ou

alegóricas?b) quais as três personagens com maior implica-

ção social no Auto da Barca do Inferno?

RREESSPPOOSSTTAASS1. C

2. B

3. A

4. E

5. D

6. a) Ausência de enredo com princípio, meio e fim.A peça limita-se à justaposição de cenas inde-pendentes, unidas apenas pelo fato envolve-rem alguns interlocutores constantes, que sãoas personagens fixas no palco.

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Page 13: Auto Da Barca Do Inferno

b) Sim, desde que conhecesse o teatro clássicodos gregos, em evidência no Renascimento ita-liano. O teatro com unidade de ação contémuma estória com trama, intriga ou enredo. Paraisso, o final deveria ser uma conseqüência docomeço, isto é, a peça deveria apresentar o de-senrolar de um conflito entre as personagens.

7. a) Trata-se de teatro ético porque se preocupamuito com os costumes e os comportamentossociais.

b) Mediante a sátira, o autor critica comporta-mentos que considerava fora de um padrãoético previsto pela moral cristã do catolicismomedieval, concebido idealmente.

8. a) Fazem parte da moral católica, tal como eraconcebida pela Idade Média.

b) O auto não critica a essência da nobreza, li-mita-se a denunciar os maus nobres, de que D.Anrique é exemplo. Essa é a tônica de sua críti-ca. Todavia, pode-se detectar uma denúnciamais profunda na passagem em que o Diaboafirma que o pai de D. Anrique também tinhaido para o inferno. Isso pode sugerir que todosos nobres são perversos, mas não é um enun-ciado explícito e unívoco.

9. a) Porque é escrito em verso e também porqueexplora com sabedoria os recursos expressi-vos da língua. Além das rimas, há muitas su-tilezas sonoras, trocadilhos e insinuações ori-ginais. Nas primeiras edições, os versos agru-pavam-se em estrofes de oito versos.

b) Classifica-se como auto de moralidade porquese reveste de propósito didático, ensinandoverdades consagradas pela religião católica.

10. a) São personagens que representam certos gru-pos sociais, certos conceitos ou vícios bemdefinidos.

b) O Fidalgo, o Procurador e o Corregedor, por-que estão diretamente ligados aos mecanismosadministrativos da sociedade. Representam acorrupção das instituições públicas.

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