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Autobiografia

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Trecho de "Questões permanentes" de António Pinto Ribeiro

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Autobiografia com muitas fantasias

Começo

Era numa casa aberta sobre o rio e, na sala, acriança esgueirava-se entre as pernas das aprendizas decostura que, sentadas em roda, se ocupavam com gran-des panos de linho, vestidos de noiva e saias floridaspara a Primavera. Havia muitos jornais que serviam demoldes, e a criança cortava-lhes as letras, as fotos e sole-trava-as como se fossem uma guloseima, como os figosdo lado de fora da casa. Havia o compasso na Páscoa etapetes de flores que cobriam os caminhos. Um pai apa-recia vestido de farda branca, com brinquedos japonesesautomáticos, e voltava a partir com a sua farda de umbranco imaculado.

Houve outras casas: casa ao lado de hidroaviões,casa defronte a barcos cinzentos com grandes letraspintadas F234, F769, F189…, casa no cimo de um pré-dio de muitos andares de onde só se podia sair paraoutras casas de outros prédios, casa junto ao Ródamo,casa onde se escreviam cartas e se lia em francês, casacheia de livros e uma cama no meio, casa com um sofávermelho e uma magnólia — vinda do Japão — naparede, quartos de hotel que eram casas; houve muitas:7?10?20? Um número infinito de casas e de vidas e de

pessoas que vinham e iam e deixavam umas vezes ale-grias e outras tristezas, livros, canções, desenhos, receitas.

Segundo começo

A criança e o irmão da criança vestiram-se como sefosse domingo — casaco, calções e gravata — e viaja-ram horas, muitas horas, num avião com quatro hélicese chegaram a uma cidade cheia de mar e de músicas.Na escola repetiam nomes de serras, estações da linhado Norte e do Vouga e havia meninos que tinham dedecorar nomes de terras frias, que não sabiam, repetiamestes nomes saltitando-os. Havia um ecrã gigante emúsica pop que a criança traduzia para os amigos doterraço, com os quais fez uma banda. Uma tarde, acriança viu a Marcolina, com o cabelo curto e de cara-pinha, tomar banho na praia em frente à casa e havia deperceber, anos mais tarde, o que sentiu, quando leu umverso que só dizia “…abrasas-me…”. Os rapazes pas-savam dias inteiros na praia, de calções, tronco nu esandálias castanhas.

O rapaz voltou mais crescido para uma cidade friae triste, sem músicas, sem praia, sem frutas coloridas esó queria voltar para os bailes no drive-in e passar tar-des a ler à sombra de palmeiras gigantes, mas não podiavoltar. Quiseram tirar-lhe a pronúncia, aclarar-lhe apele; a única coisa boa que lhe aconteceu foi descobrirque podia ler dias seguidos um poema longo, complexo,que tinha uma ilha proibida lá no meio. A professorapedia e ele lia todos os dias excertos do livro a que cha-mavam versos.

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Outro começo

O rapaz mudou outra vez de casa e de cidade;deixou de ser um aluno mediano para ser o melhoraluno do liceu: gostava das novas aulas de política, defilosofia, de literatura, de história. Escrevia jornais deparede que eram amarelos e vermelho-vivos. Foi paraFilosofia mas poderia ter ido para Literatura ou Cinema.Teve um professor poeta, um outro que lhe dava aulascomo se ainda se tratasse de reuniões clandestinas, teveuma professora que se estreava como uma actriz inse-gura que falava de corpo e sentido e lhe mostravaCézanne.

Um dia, disseram-lhe «vai ser professor de filosofiade turmas difíceis, é muito jovem, tenha cuidado, nãoos deixe abusar». Ele comprou uns sapatos cor-de-rosae começou a dar Platão. Foi professor, anos seguidos,gostou, é-o quando pode, sente que é um privilegiado:todos os anos ter de aprender para ensinar, todos osanos receber estudantes com energia nova, carregadosde coisas novas, de ideias novas, de dúvidas novas, decrenças novas. Tenta devolver-lhes as suas singularesdádivas e escreve, escreve muitas vezes e de propósitopara eles. Eles não sabem…

Acaso ou necessidade?

Dizem muitos cientistas que as descobertas aconte-cem ora por acaso ora por necessidade. No caso delefoi assim que aconteceu, é assim que continua a acon-tecer. Usa apenas um método que combina curiosidadecom disponibilidade para o mundo e para o que há-de

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vir. Foi assim que um dia lhe telefonaram de um centrode artes de vanguarda que acaba de abrir em Lisboa aperguntar se poderia reunir com a directora. Ele estra-nhou mas lembrou-se do seu método; era muito jovem,estava disponível para aprender, viajar, ajudar a organi-zar a vida dos artistas. Viajou, viu muitos espectáculos,conheceu muitos artistas, a uns ficou a admirá-los muito,com outros teve decepções. Um dia, muitos anos maistarde, haveria de escrever-lhes dois textos : “Vidas deartistas” e “ A responsabilidade dos artistas”. Aprendeusobre ritmo de programações, ansiedades do público e assuas pequenas traições, aprendeu muito sobre números,contabilidade, orçamentos, luzes, transportes, seguros,accrochages, produção, redes, comunicação, aprendeunesses dois anos que aí passou o essencial sobre pro-gramação cultural. Alguns anos depois havia de deci-dir, numa semana, entre partir para uma universidadena Califórnia ou ficar e inventar um centro de culturaque ele queria que fosse contemporânea. Durante dozeanos inventou, ajudou a criar, produzir, teve colegas queforam cúmplices anos seguidos e que o ajudaram a de-senvolver uma nova comunidade de artes, de artistas.Com eles e com os artistas e com intelectuais, produziudezenas de obras novas, livros, conferências, filmes.Entendeu que o poder pode ser gerido de um modo afir-mativo, pode contribuir para criar testemunhos de pre-sente, materializar ideias, difundir hipóteses, sustentarcidades, evitar que elas morram porque as ideias se reno-vam, outras obras se criam.

Ao fim de doze anos, achou que mais um ciclotinha terminado. O programa tinha sido maioritaria-mente cumprido. Havia outras coisas para fazer: parar,

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reflectir sobre o feito. Pensar sobre o que era neces-sário agora, no século XXI, em Lisboa, em Portugal, naEuropa. Novamente o método e um homem atento quelhe propôs que pensasse na formação artística. Crioucom uma amiga cúmplice de muitos anos de trabalhorigoroso um programa de formação para artistas quequerem ser isso: criadores. São quatro anos de formaçãoartística, de convivialidade com artistas e, outra vez, comdezenas de obras novas que saem dos cursos e de mui-tos criadores, que saem com os seus métodos, os deles,que utilizarão conforme puderem e desejarem. São anosa pensar que a criação resulta de um trabalho diário, per-manente, disciplinado. E é assim uma história cheia depessoas, cidades, produção e textos; textos com ques-tões permanentes.

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