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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE RENATA DE LIMA VELLOSO AVALIAÇÃO DE LINGUAGEM E DE TEORIA DA MENTE NOS TRANSTORNOS DO ESPECTRO DO AUTISMO COM A APLICAÇÃO DO TESTE STRANGE STORIES TRADUZIDO E ADAPTADO PARA A LÍNGUA PORTUGUESA São Paulo 2011

Avaliação Da Linguagem e Teoria Da Mente - Autismo - Teste Strange Stories Pag 108-109

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avaliação linguagem e teoria da mente

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  • UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

    RENATA DE LIMA VELLOSO

    AVALIAO DE LINGUAGEM E DE TEORIA DA MENTE NOS

    TRANSTORNOS DO ESPECTRO DO AUTISMO COM A APLICAO

    DO TESTE STRANGE STORIES TRADUZIDO E ADAPTADO

    PARA A LNGUA PORTUGUESA

    So Paulo

    2011

  • RENATA DE LIMA VELLOSO

    AVALIAO DE LINGUAGEM E DE TEORIA DA MENTE NOS

    TRANSTORNOS DO ESPECTRO DO AUTISMO COM A APLICAO

    DO TESTE STRANGE STORIES TRADUZIDO E ADAPTADO

    PARA A LNGUA PORTUGUESA

    Tese apresentada ao Curso de Doutorado em

    Distrbios do Desenvolvimento da Universidade

    Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial

    para obteno do ttulo de Doutora.

    Orientador:

    Prof. Dr. Jos Salomo Schwartzman

    So Paulo

    2011

  • V441a Velloso, Renata de Lima.

    Avaliao de linguagem e de teoria da mente nos trans-

    tornos do espectro do autismo com a aplicao do teste S-

    trange stories traduzido e adaptado para a lngua portuguesa/

    Renata de Lima Velloso. -

    111 f. : il. ; 30 cm.

    Tese (Doutorado em Distrbios do Desenvolvimento) -

    Universidade Presbiteriana Mackenzie, So Paulo, 2012.

    Bibliografia: f. 88-98.

    1. Transtornos do Espectro do Autismo. 2. Linguagem. 3.

    Teoria da mente. I. Ttulo.

    CDD 649.154

  • ii

    RENATA DE LIMA VELLOSO

    AVALIAO DE LINGUAGEM E DE TEORIA DA MENTE NOS

    TRANSTORNOS DO ESPECTRO DO AUTISMO COM A APLICAO

    DO TESTE STRANGE STORIES TRADUZIDO E ADAPTADO

    PARA A LNGUA PORTUGUESA

    Tese apresentada ao Curso de Doutorado em

    Distrbios do Desenvolvimento da Universidade

    Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial

    para obteno do ttulo de Doutora.

    Aprovada em 02 de fevereiro de 2012.

    BANCA EXAMINADORA

    Prof. Dr. Jos Salomo Schwartzman Orientador

    Universidade Presbiteriana Mackenzie

    Profa. Dra. Maria Cristina T V Teixeira

    Universidade Presbiteriana Mackenzie

    Prof. Dr. Lucas de Francisco Carvalho

    Universidade Presbiteriana Mackenzie

    Profa. Dra. Ceres Alves de Arajo

    Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo

    Profa. Dra. Ana Luiza Gomes Pinto Navas

    Faculdade de Cincias Mdicas da Santa Casa de So Paulo

  • iii

    Aos indivduos com Transtornos do Espectro do

    Autismo e suas famlias, com o desejo de acres-

    centar conhecimento a esta rea.

  • iv

    AGRADECIMENTOS

    Ao Prof. Dr. Jos Salomo Schwartzman, por de forma to generosa dividir seus

    conhecimentos, ajudando no meu crescimento profissional e pessoal intensamente,

    minha eterna admirao.

    s famlias dos indivduos que participaram do estudo, que se mostraram sempre

    dispostas a ajudar e muito interessadas na pesquisa.

    Ao MackPesquisa, pelo apoio financeiro sem o qual no seria possvel a conclu-

    so deste trabalho.

    Ao Prof. Dr. Dcio Brunoni e Profa Dra Maria Elosa Fam DAntino, que partici-

    pam do Grupo de Transtornos Invasivos do Desenvolvimento do Programa de Ps-

    graduao em Distrbios do Desenvolvimento da Universidade Presbiteriana Mac-

    kenzie, por engrandecer meus conhecimentos por meio do convvio e das reunies.

    s amigas que participam tambm desse grupo, sempre dispostas a ajudar: Cintia

    Perez Duarte, Alessandra Aronovich Vinic e Tatiana Pontrelli Mecca.

    Profa Dra Roberta Monterazzo Cysneiros, Profa Dra Maria Cristina Triguero Ve-

    loz Teixeira e Profa Dra Cristiane Silvestre de Paula, que participam tambm das

    discusses do grupo, dividindo suas experincias.

    Profa Dra Ceres Alves de Arajo, que contribuiu de forma rica para que este tra-

    balho se tornasse uma tese.

    Ao Prof. Dr. Geraldo Fiamenghi Jnior, que colaborou muito com sugestes para

    este estudo.

  • v

    Ao Prof. Dr. Elizeu Coutinho de Macedo, pelas orientaes e conselhos.

    A Silvana Santos, pelo apoio na concluso do trabalho.

    Aos meus pais, Clia e Gerson, pelo incentivo, pelo amor, pela ajuda e pela dedi-

    cao durante todos esses anos, que possibilitaram a conquista de mais uma vitria

    importante em minha vida.

    minha av, que de forma especial e pessoal contribuiu para minha formao.

    Ao meu av, com muita saudade, que representou fonte de sabedoria e fora.

    Ao meu marido, Leonardo, por acreditar em mim: Obrigada por ficar ao meu lado

    mesmo nos momentos difceis!

  • vi

    O presente trabalho foi realizado com apoio do

    Instituto Presbiteriano Mackenzie, por intermdio

    do MACKPESQUISA.

  • vii

    RESUMO

    Os Transtornos do Espectro do Autismo (TEA) se caracterizam por prejuzos

    significativos na interao social, na comunicao verbal e no verbal e pela ausn-

    cia de atividades imaginativas, substitudas por comportamentos repetitivos e este-

    reotipados. Os pesquisadores vm h muitos anos propondo teorias explicativas do

    prejuzo primrio nos TEA, prevalecendo atualmente duas vertentes tericas: a teo-

    ria desenvolvimentista e a teoria cognitivista. O objetivo deste estudo foi a avaliao

    de habilidades de linguagem e de Teoria da Mente em indivduos com TEA e indiv-

    duos-controle, com a aplicao do teste Strange Stories, traduzido e adaptado para

    a Lngua portuguesa. Participaram do estudo 28 crianas com TEA e 56 crianas-

    controle, todas do sexo masculino e na faixa etria entre seis e 12 anos. A verso

    brasileira do teste Strange Stories foi aplicada, seguindo os mesmos procedimentos,

    tanto ao grupo experimental quanto ao grupo-controle. Os resultados indicaram dife-

    renas significativas entre os escores mdios dos grupos experimental e controle em

    cada uma das 12 histrias do teste e na soma dos escores de todas as histrias. Os

    escores mdios registrados para todas as histrias foram significativamente maiores

    no grupo-controle do que no grupo experimental (crianas com TEA). Observou-se

    correlao positiva entre quociente de inteligncia e soma dos escores mdios para

    o grupo experimental, e correlao positiva entre idade e soma dos escores mdios

    para o grupo-controle. Observou-se tima consistncia interna do protocolo. Os re-

    sultados foram discutidos sob a perspectiva cognitivista e desenvolvimentista. Con-

    cluiu-se que as habilidades de linguagem e de Teoria da Mente avaliadas pelo teste

    Strange Stories se mostraram alteradas no grupo de crianas com TEA quando

    comparadas s crianas do grupo-controle.

    Palavras-chave: Transtornos do Espectro do Autismo, Linguagem, Teoria da Mente.

  • viii

    ABSTRACT

    Autistic Spectrum Disorders (ASD) refer to important deficits in social interac-

    tion, in verbal and nonverbal communication, and in imaginative activities, which are

    replaced by repetitive and stereotyped behaviors. For several years, researchers

    have been proposing theories for explaining the primary deficit in the ASD, and cur-

    rently two theoretical approaches are preponderant: the developmental theory and

    the cognitive theory. This study has aimed at assessing abilities of language and of a

    theory of mind in children with ASD and in control children, with the application of the

    Strange Stories Test translated into Portuguese and adopted for Brazilian culture.

    Male children with ASD (28) and male control children (56) aged 6 to 12 years old

    took part in this study. The Brazilian version of the Strange Stories Test was applied

    following the same procedures to both experimental and control groups. Findings

    evidenced significant differences between mean scores of the groups in every of the

    12 histories composing the test as well as in the sum of mean scores for all histories.

    Mean scores in all histories were significantly higher in the control group compared to

    the experimental group (children with ASD). Significant positive correlation was es-

    tablished between the estimated intelligence quotients and the sum of mean scores

    in the ASD group, and between the age and the sum of mean scores in the control

    group. Optimal internal consistence of the protocol was observed (0.955). Results

    were discussed under developmental and cognitive theories. It is concluded that the

    abilities of language and of a theory of mind assessed by the Strange Stories Test

    presented altered in children with ASD compared to children with typical develop-

    ment.

    Keywords: Autistic Spectrum Disorders, Language, Theory of Mind.

  • ix

    LISTA DE FIGURAS

    Figura 1 Representao grfica da diferena nas pontuaes dos grupos expe-rimental e controle em cada uma das histrias .......................................

    69

    Figura 2 Grficos de disperso para idades versus QIe (A), idades versus so-

    mas dos escores de todas as histrias (B) e QIe versus somas dos

    escores de todas as histrias (C) no grupo experimental (indivduos com TEA) .................................................................................................

    71

    Figura 3 Grficos de disperso para idades versus QIe (A), idades versus so-

    mas dos escores de todas as histrias (B) e QIe versus somas dos escores de todas as histrias (C) no grupo-controle ...............................

    72

    Figura 4 Escores mdios e desvios-padro registrados para cada histria no

    grupo experimental .................................................................................. 74

    Figura 5 Escores mdios e desvios-padro registrados para cada histria no

    grupo-controle .......................................................................................... 75

    Figura 6 Representao dos valores extremos de QIe observados no grupo ex-perimental (vermelho) e no grupo-controle (azul), ilustrando diferena de 30 pontos no maior estremo e de 20 pontos no menor extremo ........

    79

  • x

    LISTA DE TABELAS

    Tabela 1 Termos e abreviaturas utilizados na apresentao dos Resultados do estudo ......................................................................................................

    67

    Tabela 2 Comparao entre as mdias de idade e de QIe dos grupos experi-

    mental e controle ..................................................................................... 67

    Tabela 3 Comparao entre os escores mdios registrados para os grupos ex-

    perimental e controle em cada histria e no total equivalente soma de todas as histrias .....................................................................................

    68

    Tabela 4 Coeficientes de Correlao de Pearson entre idades, QIe e somas dos

    escores de todas as histrias no grupo experimental (indivduos com TEA) e no grupo-controle ........................................................................

    69

    Tabela 5 Escores mdios registrados para cada histria no grupo experimental

    (indivduos com TEA) .............................................................................. 74

    Tabela 6 Valores de p calculados na comparao dos escores mdios de cada

    par de histrias registrados no grupo experimental (indivduos com TEA) .........................................................................................................

    74

    Tabela 7 Escores mdios registrados para cada histria no grupo-controle .......... 75 Tabela 8 Valores de p calculados na comparao dos escores mdios de cada

    par de histrias registrados no grupo-controle ........................................ 75

    Tabela 9 Valores de Alfa de Cronbach para determinao da consistncia interna

    do protocolo nos grupos experimental e controle e na amostra geral ....... 76

  • xi

    SUMRIO

    Resumo ............................................................................................................................. vi Abstract ............................................................................................................................. vii Lista de Tabelas ................................................................................................................ viii Lista de Figuras ................................................................................................................. ix 1. INTRODUO .............................................................................................................. 12 2. REVISO DA LITERATURA ......................................................................................... 14

    2.1 Os transtornos do espectro do autismo TEA ....................................................... 14 2.2 Teorias sobre o prejuzo primrio nos TEA ............................................................ 19

    2.2.1 Teoria psicanaltica ....................................................................................... 19 2.2.2 Teorias cognitivas ......................................................................................... 21 2.2.3 Teorias afetivas ............................................................................................ 24 2.2.4 Teorias desenvolvimentista e cognitivista .................................................... 26

    2.3 Teoria da Mente ..................................................................................................... 28 2.3.1 A Teoria da Mente ........................................................................................ 28 2.3.2 Teste avanado em Teoria da Mente Strange Stories ................................. 36

    2.4 Linguagem .............................................................................................................. 39 2.5 Linguagem e Teoria da Mente ................................................................................ 48

    3. OBJETIVOS .................................................................................................................. 53 4. CASUSTICA E MTODO ............................................................................................ 54

    4.1 Casustica ............................................................................................................... 54 4.1.1 Grupo experimental ...................................................................................... 54 4.1.2 Grupo-controle .............................................................................................. 56

    4.2 Mtodo .................................................................................................................... 57 4.2.1 Procedimentos para traduo e adaptao do instrumento de pesquisa ...... 57

    4.2.1.1 O instrumento de pesquisa .............................................................. 58 4.2.2 Procedimentos para seleo e composio das amostras .......................... 59 4.2.3 Procedimentos para aplicao do instrumento ao grupo experimental e ao grupo-controle .......................................................................................................

    62

    4.2.3.1 Aplicao do instrumento ................................................................. 62 4.2.3.2 Registro de escores ......................................................................... 63

    5. RESULTADOS .............................................................................................................. 66 6. DISCUSSO ................................................................................................................. 77 7. CONCLUSES ............................................................................................................. 87 8. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .............................................................................. 88 ANEXO A Critrios Diagnsticos do DSM-IV .....................................................................................

    99

  • xii

    ANEXO B Critrios Diagnsticos da CID-10 ......................................................................................

    101

    ANEXO C Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (ao sujeito da pesquisa) ............................

    103

    ANEXO D Carta de Informao Instituio .......................................................................................

    104

    ANEXO E Traduo do Teste Strange Stories ....................................................................................

    105

    ANEXO F Teste Avanado em Teoria da Mente Strange Stories (Happ, 1994) ...............................

    107

    ANEXO G Dados das crianas do grupo experimental ........................................................................

    109

    ANEXO H Dados das crianas do grupo-controle ...............................................................................

    111

  • 13

    1. INTRODUO

    Os Transtornos do Espectro do Autismo (TEA) se caracterizam por prejuzos

    severos na interao social e na comunicao e por ausncia de atividades imagina-

    tivas, substitudas por comportamentos repetitivos e estereotipados (Wing e Gould,

    1979).

    As dificuldades apresentadas nos indivduos com TEA foram atribudas, ao

    longo dos anos, a prejuzos primrios sociais, afetivos e cognitivos.

    Duas habilidades so citadas, dentre outras, como amplamente prejudicadas

    nos TEA: a Teoria da Mente e a Linguagem. Os sujeitos com TEA apresentam difi-

    culdade em levar em considerao os prprios estados mentais e os das outras

    pessoas, com a finalidade de compreender e predizer comportamentos (Baron-

    Cohen, 1995), o que envolve a Teoria da Mente. Esses sujeitos apresentam tambm

    grave comprometimento de Linguagem, com grande prejuzo na comunicao.

    A maioria dos estudos que investigam a relao entre Linguagem e Teoria da

    Mente fornece poucos dados e usa testes restritos Teoria da Mente. Alm disso,

    h escassez no Brasil de instrumentos formais e objetivos disponveis comercial-

    mente e indicados para avaliao e diagnstico de linguagem nos TEA, o que indica

    a necessidade de pesquisas nesta rea.

    de extrema importncia que as habilidades e dificuldades dos sujeitos com

    TEA sejam avaliadas por meio de testes adaptados que contemplem situaes natu-

    ralsticas e que, assim, apresentem questes para respostas mais reais. tambm

  • 14

    muito importante que essas habilidades e dificuldades sejam estudadas alm das

    diferenas entre as concepes tericas sobre os TEA, uma vez que influenciaro

    diretamente sobre a abordagem utilizada na interveno do indivduo. Uma viso

    abrangente das concepes cognitivista e desenvolvimentista pode resultar em in-

    terveno adequada.

    No sentido de contribuir para o esclarecimento dessas questes foi proposta a

    realizao deste estudo, que inclui a traduo e a adaptao para a Lngua portu-

    guesa do Teste Strange Stories, cuja aplicao permite a avaliao da linguagem e

    da Teoria da Mente, e a discusso dos achados luz das teorias cognitivista e de-

    senvolvimentista.

  • 15

    2. REVISO DA LITERATURA

    2.1 OS TRANSTORNOS DO ESPECTRO DO AUTISMO TEA

    O autismo foi descrito pela primeira vez por Leo Kanner, psiquiatra infantil, em

    1943, aps estudar 11 crianas com idade de dois a 11 anos, sendo oito meninos e

    trs meninas, com quadro caracterizado por isolamento extremo, atividades repetiti-

    vas e estereotipadas, aparente incapacidade inata de relacionamento com as pes-

    soas e intensa resistncia a mudanas. O autor observou variaes nos nveis de

    isolamento apresentados por essas crianas, e nomeou este quadro de Distrbio

    Autstico do Contato Afetivo.

    Kanner (1943) relatou tambm que essas crianas apresentavam dificuldades

    para assumir postura antecipatria para serem carregadas; dificuldades para usar a

    linguagem para a comunicao; repetio de fala tardia; reao de horror diante de

    barulhos com volume alto; e aspecto fsico essencialmente normal. Descreveu como

    particularidade a existncia de habilidades excepcionais, como a memria.

    Em 1944, quase na mesma poca, o pediatra Hans Asperger desenvolveu sua

    tese, discorrendo sobre crianas que apresentavam habilidades intelectuais normais,

    mas tinham a comunicao no verbal empobrecida e se isolavam do convvio social,

    com manifestaes clnicas semelhantes quelas descritas por Kanner, e que pare-

    ciam pequenos professores. Outros comportamentos observados por Asperger fo-

  • 16

    ram: pobreza de contato de olho, limitao de empatia, fala pedante e com pouca

    modulao, intenso envolvimento com tpicos especficos de interesse, grande re-

    sistncia a mudanas e falhas nas habilidades motoras. Asperger nomeou este qua-

    dro de Psicopatia Autista.

    Muitos anos depois, Lorna Wing (1981) analisou as descries de comporta-

    mento feitas por Asperger (1944) e encontrou similaridades com aquelas feitas por

    Kanner (1943), atribuindo, ento, o termo Sndrome de Asperger para nomear o

    quadro. At a sua introduo na literatura por Lorna Wing em 1981, essa condio

    era praticamente desconhecida da comunidade cientfica. A autora considerou a

    possibilidade de compreenso de ambas as descries como um conjunto de ele-

    mentos variveis em grau, e props a expresso Espectrum ou Continuum de De-

    sordens Autsticas (Wing, 1988).

    Muitos estudos foram realizados desde ento, e, com o passar do tempo, os

    critrios diagnsticos sofreram alteraes. A ideia de que o autismo de Kanner faria

    parte de um amplo espectro de desordens comeou a ser seriamente considerada

    nos anos 1970 e 1980, o que possibilitou uma srie de estudos posteriores a esse

    respeito (Szatmari, 1992; Wing, 1996; Berney, 2000; Beglinger e Smith, 2001; Wil-

    lemsen-Swinkels e Buitelaar, 2002).

    Na tentativa de identificar e caracterizar os sintomas mais comuns que fariam

    parte do autismo, Wing e Gould (1979) descreveram uma trade de comprometimen-

    tos muito especficos e caractersticos do distrbio: prejuzos severos na interao

    social, dificuldades severas nas comunicaes tanto verbais como no verbais, e

    ausncia de atividades imaginativas, substitudas por comportamentos repetitivos e

    estereotipados.

  • 17

    Atualmente, o Manual Diagnstico e Estatstico de Transtornos Mentais - DSM-

    IV (APA, 2002) utiliza o termo Transtornos Globais do Desenvolvimento (TGD) para

    caracterizar esses quadros com prejuzos no desenvolvimento, nas habilidades de

    interao social, de comunicao e de comportamento, e com presena de interes-

    ses e atividades estereotipados. Os TGD englobam o Transtorno Autista, o Trans-

    torno de Rett, o Transtorno Desintegrativo da Infncia, o Transtorno de Asperger e o

    Transtorno Global do Desenvolvimento Sem Outra Especificao. Os critrios diag-

    nsticos propostos pelo DSM-IV se encontram detalhados no Anexo A.

    A Classificao Estatstica Internacional de Doenas e Problemas Relaciona-

    dos Sade - CID-10 (OMS, 2000) tambm utiliza o termo Transtornos Globais do

    Desenvolvimento (TGD), que englobam: Autismo Infantil, Autismo Atpico, Sndrome

    de Rett, Outro Transtorno Desintegrativo da Infncia, Transtorno com Hipercinesia

    Associada a Retardo Mental e a Movimentos Estereotipados, Sndrome de Asperger,

    Outros Transtornos Globais do Desenvolvimento e Transtornos Globais No Especi-

    ficados do Desenvolvimento. Os critrios diagnsticos detalhados da CID-10 se en-

    contram no Anexo B.

    Considerando a heterogeneidade de quadros, o diagnstico diferencial dos

    TEA nem sempre um trabalho fcil. Seria possvel, segundo Perissinoto (2003),

    reagrup-los em duas categorias de alteraes qualitativas no comportamento: a

    primeira seria composta por Transtorno de Rett e Transtorno Desintegrativo da In-

    fncia, caracterizando-se por perda de habilidades j adquiridas em diferentes reas

    do desenvolvimento, com prejuzos cognitivos, motores e fsicos especficos; a outra

    categoria seria composta por Transtorno Autista e por Transtorno de Asperger, sen-

    do mais polmica e bastante controversa em suas distines.

  • 18

    Rutter (2005) ressalta a ampliao do diagnstico de autismo que ocorreu nos

    ltimos 40 anos. Essa mudana ocorreu no pela determinao de caractersticas

    sintomatolgicas de um nico distrbio, mas pela introduo da ideia de um espec-

    tro, conhecido como Autism Spectrum Disorder (ASD), ou Transtorno do Espectro do

    Autismo (TEA). Neste estudo, ser utilizado o termo TEA (Transtornos do Espectro

    do Autismo) para os diagnsticos de Autismo, Sndrome de Asperger e Transtorno

    Global do Desenvolvimento Sem Outra Especificao (TGD/SOE), levando-se em

    conta as semelhanas de manifestaes encontradas nesses diagnsticos.

    Discutindo os critrios diagnsticos, Rapin e Tuchman (2009) salientam que al-

    canar consenso essencial para a capacitao de clnicos e pesquisadores no uso

    de um sistema de diagnstico comum ao se referir a indivduos com TEA. Mas, os

    subtipos do DSM-IV, com exceo da Sndrome de Rett, ainda no satisfazem os

    critrios de um transtorno biologicamente especfico. Os autores referem, ainda, que

    esses sistemas de classificao, como o DSM-IV e a CID-10, esto em constante

    aperfeioamento, e continuaro a evoluir medida que se acumularem novas infor-

    maes. provvel que, no futuro, a Sndrome de Rett, originalmente considerada

    um tipo de TGD, seja retirada dessa lista no DSM-V, uma vez que os critrios para o

    seu diagnstico se baseiam em critrios bastante singulares: quadro clnico, formas

    de transmisso e marcadores biolgicos especficos.

    Devido modificao dos critrios diagnsticos, a literatura registra variaes

    na estimativa da prevalncia do autismo. Em 2003, Fombonne averiguou a preva-

    lncia mdia de TEA nos ltimos 37 anos e percebeu aumento de 4,4:10.000 (entre

    1966 e 1991) para 12,7:10.000 (entre 1992 e 2001). Estudos atuais estimam taxas

    de prevalncia mais altas: 13:10.000 para indivduos com autismo; 2,5-3:10.000 para

    indivduos com a Sndrome de Asperger; e entre 30 e 60:10.000 para indivduos com

  • 19

    TEA (Fombonne, 2003; Yeargin-Allsopp et al., 2003; Rutter, 2005; Chakrabarti e

    Fombonne, 2005). Frente a esses dados, Fombonne (2003) discute essa prevaln-

    cia maior justificando-a por evidncias de mudana na definio e pelo conhecimen-

    to mais amplo e mais disseminado do transtorno.

    Sigman e Capps (1997) relatam que h maior nmero de meninos do que de

    meninas com autismo, na proporo de 4:1, e de meninos com melhor ndice de de-

    sempenho medido por QI (Quoeficiente Intelectual).

    A etiologia dos TEA clinicamente definidos complexa e multifatorial, pois, em

    geral, sofre forte influncia gentica e ambiental, embora tambm compreenda cau-

    sas ocasionais no genticas (Muhle et al., 2004).

    Diante de um quadro de heterogeneidade sintomtica e da grande incidncia

    na populao, cada vez mais as pesquisas apontam para recursos diagnsticos que

    diferenciem as caractersticas das crianas dentro do espectro do autismo. Uma

    compreenso completa do quadro autstico envolve quatro nveis do conhecimento:

    etiologia, estruturas e processos cerebrais, neuropsicologia, sintomas e comporta-

    mento (Gadia et al., 2004).

    O desenvolvimento de procedimentos de avaliao mais precisos pode ser diri-

    gido para a avaliao neuropsicolgica e estudos de processos biolgicos dessas

    crianas. Assim, novas possibilidades de determinar um marcador preciso para o

    autismo vm sendo amplamente discutidas na literatura, tais como a estratgia de

    usar endofentipos biolgicos ou marcadores biolgicos, ou endofentipos compor-

    tamentais, como a histria de regresso comportamental, estereotipias ou transtorno

    da linguagem, a fim de restringir a busca por etiologias subjacentes (Gottesman e

    Gould, 2003).

  • 20

    2.2 TEORIAS SOBRE O PREJUZO PRIMRIO NOS TEA

    Os pesquisadores vm h muitos anos relatando teorias que buscam explicar a

    natureza do prejuzo primrio nos TEA. Sero relatadas a seguir as principais teorias

    discutidas, nesta ordem: Teoria Psicanaltica, Teorias Cognitivas (Teoria da Mente,

    Teoria da Coerncia Central e Teoria da Disfuno Executiva) e Teoria Afetiva. Pre-

    tende-se, ao final deste captulo, retomar essas teorias, levantando as duas princi-

    pais vertentes tericas que hoje so discutidas em relao ao prejuzo primrio nos

    TEA: a teoria desenvolvimentista e a teoria cognitivista.

    2.2.1 Teoria psicanaltica

    Kanner relatou em 1943 que crianas autistas sofriam de uma inabilidade inata

    de se relacionarem emocionalmente com outras pessoas. Foi, ento, levantada a

    hiptese de que o autismo estaria relacionado depresso materna, o que influenci-

    aria na capacidade da me em se envolver emocionalmente e cuidar do beb. As

    causas do autismo foram, ento, atribudas a fatores psicognicos, sob a abordagem

    psicanaltica.

    Melanie Klein (1965) reconheceu a presena, nas crianas com autismo, de ca-

    ractersticas qualitativamente diferentes de outras crianas consideradas psicticas,

    mas no distinguia os quadros autistas da esquizofrenia infantil. A autora foi a pre-

    cursora no reconhecimento e no tratamento da psicose em crianas.

    Em 1967, Bettelheim definiu o autismo como uma reao independente da cri-

    ana rejeio materna; sua interpretao do mundo seria a imagem da sua clera

  • 21

    e desesperana. O autor defendia que os pais de crianas autistas no forneciam

    condies emocionais necessrias para que a criana sasse do seu isolamento,

    embora salientasse que esse no seria o nico fator causal implicado no autismo.

    Esses conceitos levaram formao de comunidades teraputicas nas quais

    as crianas eram afastadas do convvio familiar.

    Margaret Mahler (1968) foi quem estudou primariamente as psicoses infantis,

    fazendo delas um modelo para o estudo do desenvolvimento da criana. Identificou

    diferentes fases no desenvolvimento psicolgico do beb, sendo a primeira a do

    narcisismo primrio. Na segunda, haveria uma conscincia de que a satisfao das

    necessidades viria de algum lugar externo ao eu. Em seguida, viria a fase de simbi-

    ose normal, na qual o beb funciona como se ele e sua me fossem uma unidade

    dual. Ento, na fase de separao-individuao, haveria a organizao do indivduo

    (Mahler, 1975).

    Mahler (1968) defendia a teoria evolutiva, e inclua o autismo num subgrupo

    das psicoses infantis com uma regresso ou fixao a uma fase inicial do desenvol-

    vimento de no diferenciao perceptiva, que promoveria dificuldades em integrar

    sensaes vindas do mundo externo e interno e em perceber a me como represen-

    tante do mundo exterior.

    O autismo foi tambm interpretado como uma forma de ausncia completa de

    fronteira psquica decorrente de uma falta de diferenciao entre o animado e o ina-

    nimado (Mazet e Lebovici, 1991).

    Em 1981, Tustin props que o autismo seria uma reao traumtica experi-

    ncia de separao materna, que envolveria o predomnio de sensaes desorgani-

    zadas, levando a um colapso depressivo. Esse colapso ocorreria em consequncia

  • 22

    da incapacidade da criana autista em filtrar as experincias sensoriais, na qual a

    funo da concha autstica seria mais de proteo do que compensatria. Em

    1994, Tustin j no usava mais o termo autismo psicognico, e ressaltava a impor-

    tncia de se desenvolver uma tcnica psicoteraputica apropriada s necessidades

    e caractersticas especficas da criana autista, alegando ser um erro tratar a criana

    autista com um mtodo de psicoterapia baseada nas manifestaes apresentadas

    por pacientes neurticos.

    Maratos (1996) pondera a contribuio das teorias psicanalticas e discute a

    noo de o transtorno ser decorrente de problemas na qualidade da maternagem,

    criticando o fato de grande parte dos psicanalistas dar enfoque descrio do fun-

    cionamento mental, dos estados afetivos e do modo como as crianas de relacionam

    com as pessoas, e deixar de lado as questes etiolgicas.

    O tratamento psicanaltico defendido e utilizado por determinados grupos de

    profissionais para indivduos com TEA. Barros (2011) ressalta que, apesar de ainda

    haver uma forte tendncia para a psicanlise ser considerada como forma antiquada

    e ultrapassada de atendimento a estas crianas, essa uma generalizao indevida.

    Tal discusso no ser aqui aprofundada, uma vez que o intuito deste captulo a-

    penas descrever o histrico das principais teorias que buscam, ao longo dos anos,

    explicar a natureza do prejuzo primrio nos TEA.

    2.2.2 Teorias cognitivas

    Procurando entender as caractersticas presentes nos TEA, algumas teorias

    cognitivas tm sido propostas e estudadas, e as mais exploradas so a Teoria da

    Mente, a Teoria da Coerncia Central, e a Teoria da Disfuno Executiva. Entre es-

  • 23

    sas teorias, a Teoria da Mente a que mais tem sido utilizada para investigar os as-

    pectos cognitivos em indivduos com TEA.

    O termo Teoria da Mente se refere capacidade da criana de levar em con-

    siderao os prprios estados mentais e os das outras pessoas, com a finalidade de

    compreender e predizer o comportamento (Baron-Cohen, 1995). Essa capacidade

    daria criana a possibilidade de considerar o que as outras pessoas pensam e fa-

    zem, habilidade necessria em quase todas as situaes sociais (Jou e Sperb,

    1999). Em item posterior deste estudo, a Teoria da Mente ser mais bem descrita,

    uma vez que est diretamente relacionada ao objetivo da pesquisa.

    Frith (1989) apresentou o termo Teoria da Coerncia Central para se referir

    falta da tendncia natural a juntar partes de informaes para formar um todo com

    significado, caracterstica marcante nos TEA. Segundo essa teoria, sujeitos com TEA

    no integram as informaes a que so expostos, e so inaptos para fazer inferncias

    e identificar as relaes de causa e efeito entre as aes, pois no constroem inter-

    pretaes compreensivas das situaes (Frith, 1996; Happ, 1993).

    Hermelin e O`Conor (1970) observaram desempenho superior de crianas com

    TEA, quando comparadas com crianas tpicas, em tarefas de memorizao de uma

    srie de palavras sem sentido em vez daquelas com significado. Shah e Frith (1993)

    relataram resultados superiores apresentados por crianas com TEA, comparadas

    com grupo-controle, em tarefas de localizao de figuras escondidas. Da mesma

    forma, Happ (1993) relatou resultados superiores apresentados por crianas com

    TEA nas escalas de Weschler que envolvem reunio e classificao de imagens por

    sries. Esses autores levantaram a hiptese de que esse desempenho superior em

    algumas atividades pelas crianas com TEA pode ser explicado pela tendncia a ver

    partes em vez da figura inteira, e a preferir uma sequncia randmica em vez de

  • 24

    uma sequncia munida de significado (contexto), questes essas explicadas pela

    Teoria da Coerncia Central.

    Bosa (2001) ressaltou a importncia de essa teoria enfocar tanto as deficin-

    cias quanto as habilidades dos indivduos com TEA. A autora discutiu tambm o fato

    de essa teoria no esclarecer a sua relao com os dficits sociais e comunicativos,

    recorrendo Teoria da Mente, e se relacionar com questes de funo executiva, o

    que ainda no est esclarecido.

    Alguns pesquisadores (Ozonoff et al., 1991) argumentaram que as suposies

    da Teoria da Mente, por si s, no justificam os comportamentos repetitivos, os inte-

    resses restritos ou as ilhas de habilidades apresentados pelos indivduos com TEA.

    A falha nessas funes seria anterior Teoria da Mente, devendo-se antes a um

    dano cerebral no crtex pr-frontal.

    A suposio de comprometimento das funes executivas como prejuzo subja-

    cente aos TEA surgiu em decorrncia da similaridade entre o comportamento de indi-

    vduos com disfuno cortical pr-frontal e aqueles com TEA (Ozonoff et al., 1991).

    Segundo Duncan (1986), a habilidade de planejamento e desenvolvimento de

    estratgias para atingir metas est ligada ao funcionamento dos lobos cerebrais

    frontais. Kelly et al. (1996) referiram que essas habilidades englobam flexibilidade de

    comportamento, integrao de detalhes isolados num todo coerente, e o manejo de

    mltiplas fontes de informao, ordenados por meio de conhecimento obtido.

    Harris (1994) tambm atribuiu os comportamentos dos indivduos com TEA a

    falhas nas funes executivas, mais especificamente no planejamento de aes fu-

    turas com objetivos especficos.

  • 25

    Ao relacionarem os comportamentos apresentados pelos indivduos com TEA

    com uma disfuno executiva, Ozonoff et al. (1991) referiram que esses sujeitos

    apresentam angstia frente a mudanas no ambiente; insistem em seguir suas roti-

    nas com detalhes; so perseverantes, focados em interesses restritos; apresentam

    comportamentos estereotipados, dificuldades de antecipao de consequncias, de

    autorreflexo e de automonitoramento; mostram-se impulsivos e apresentam dificul-

    dade em inibir respostas.

    Alguns pesquisadores referem a linguagem como comprometimento cognitivo

    causador do prejuzo nas diversas reas dos TEA. Rutter (1976) enfocou a impor-

    tncia do prejuzo da linguagem ao considerar essa falha como um aspecto central

    do dficit cognitivo associado ao autismo, e passou a desenvolver pesquisas nessa

    rea. Este aspecto, a linguagem, ser mais bem abordado em item posterior deste

    estudo, uma vez que, ao lado da Teoria da Mente, se relaciona diretamente ao obje-

    tivo da pesquisa.

    Segundo Assumpo e Pimentel (2000), no h nenhuma teoria cognitivista

    especfica que explique ou justifique completamente os TEA, mas h nelas vrios

    aspectos que podem auxiliar na explicao do funcionamento cognitivo e comporta-

    mental dos indivduos com TEA.

    2.2.3 Teorias afetivas

    Hobson (1989, 1990) comeou a estabelecer os fundamentos das teorias afeti-

    vas atuais sobre o autismo. O autor referiu que a criana com TEA apresentaria uma

    dificuldade primria na capacidade de relao interpessoal, em que h impedimento

    inato da habilidade de perceber e responder ao afeto. Para justificar sua hiptese, o

  • 26

    autor retomou a formulao original de Kanner (1943), que descreveu a escassez de

    contato afetivo nas crianas com TEA.

    O engajamento social com o outro e as relaes interpessoais, segundo Hob-

    son (1989, 1990, 2004), so processos bsicos que iniciam o ser humano no pen-

    samento e na linguagem, ou seja, as relaes interpessoais precedem a linguagem

    e do origem ao pensamento. Desta forma, o autor remete teoria da intersubjetivi-

    dade, uma vez que defende a hiptese de que os indivduos com TEA no experi-

    mentam as formas de engajamento social esperadas no desenvolvimento tpico, o

    que ocasiona as demais dificuldades apresentadas.

    Mundy e Sigman (1989) ressaltaram a importncia para as crianas de relacio-

    nar a representao do afeto vivido pelo prprio eu com o de outras pessoas. A ex-

    perincia interna de outros e a concomitante expresso afetiva apresentada por eles

    seriam contrastados com a prpria experincia da criana. Essas interaes propicia-

    riam o contexto em que tais esquemas de ao social surgem, quando se d o de-

    senvolvimento da cognio social.

    Segundo Mundy et al. (1993), crianas com TEA apresentam, desde muito ce-

    do, respostas afetivas atpicas diante de estimulao social, e distrbios na autorre-

    gulao de estmulos. Essas caractersticas podem ser observadas em pesquisas

    experimentais que visam compreenso do comportamento de ateno comparti-

    lhada e de expresso da emoo nas crianas com TEA.

    Baron-Cohen (1995), pesquisador que estuda a Teoria da Mente, questionou a

    afirmao de que os prejuzos sociais decorreriam de problemas no sistema afetivo

    com bases inatas, pois seriam pr-existentes habilidade de metarrepresentar. Em

    contrapartida, as teorias afetivas destacam o fato de os tericos da mente no con-

  • 27

    siderarem o componente afetivo na representao de estados mentais (Bosa e Cal-

    lias, 2000).

    Portanto, segundo a Teoria Afetiva, as trocas afetivas fundamentam a diferen-

    ciao entre as pessoas e os objetos e marcam o incio da prpria vida mental e o

    reconhecimento da mente do outro. O prejuzo inato nessa rea justificaria a dificul-

    dade que o indivduo com TEA apresenta para participar da interao social e de-

    senvolver formas mais sofisticadas de compreenso social, incluindo a percepo do

    ponto de vista do outro (Stern et al., 1977; Trevarthen, 1996).

    Ao discutir as teorias afetivas sobre os TEA, Arajo (2011a) refere que o mtuo

    engajamento com o outro parcial ou ausente nos indivduos com TEA, o que traz

    implicaes sobre a capacidade de pensar da criana. Ao salientar a importncia da

    experincia individual de uma pessoa com outra para a construo do pensamento,

    a autora discute a possvel relao do fato de muitas crianas com TEA nunca fala-

    rem, com a questo de que a maior motivao para se aprender linguagem afetar

    a mente dos outros.

    2.2.4 Teorias desenvolvimentista e cognitivista

    Retomando as teorias descritas acima, observa-se que as dificuldades apre-

    sentadas pelos indivduos com TEA foram atribudas, ao longo dos anos, a prejuzos

    primrios sociais, afetivos e cognitivos.

    Lampreia (2004) discriminou trs fases nesse sentido. Na primeira fase, a da

    formulao inicial de Kanner (1943), o autismo definido como um distrbio de con-

    tato afetivo. Na segunda fase, o autismo passa a ser visto, nas dcadas de 1970 e

  • 28

    1980, como um distrbio cognitivo; o autismo , ento, definido como um transtorno

    do desenvolvimento que envolve dficits cognitivos severos com origem em disfun-

    o cerebral em que esto implicados processos de ateno, memria, sensibilidade

    a estmulos e linguagem. Na terceira fase (final da dcada de 1980), muitos pesqui-

    sadores passam a dar enfoque ao prejuzo social, Teoria Desenvolvimentista. O

    prejuzo do desenvolvimento da comunicao no verbal e da linguagem, segundo

    essa teoria, decorre da incapacidade inata de se relacionar com pessoas e de res-

    ponder emocionalmente aos outros.

    Portanto, h autores como Frith (1997) e Baron-Cohen (2000) que defendem a

    viso cognitivista da Teoria da Mente, alegando que indivduos com TEA no possuem

    a habilidade de imaginar e compreender o estado mental dos outros por terem o

    mecanismo cognitivo inato, responsvel por essa habilidade, prejudicado. O compor-

    tamento social afetado em consequncia desse prejuzo. Em contrapartida, h au-

    tores que defendem a hiptese de que h um prejuzo no estabelecimento de rela-

    es interpessoais nos indivduos com TEA, o que acarretaria as dificuldades que

    acompanham o desenvolvimento desses indivduos (Trevarthen et al., 1998; Hob-

    son, 2002).

    As diferentes abordagens, apesar de concordarem na afirmao de que h pre-

    juzo biolgico nos TEA responsvel pelas caractersticas comportamentais, discor-

    dam no seu enfoque terico, desenvolvimentista ou cognitivista. Essas questes a-

    carretam diferenas importantes nas intervenes realizadas com essa populao e

    nos conceitos utilizados (Lampreia, 2004).

    Bosa e Callias (2000) referiram que os estudos sobre os TEA tm sido domina-

    dos pela polmica em torno das possveis causas afetivas, cognitivas e/ou biolgicas

    na determinao da sndrome. As autoras sugeriram que so necessrios mais es-

  • 29

    tudos que investiguem os prejuzos e as competncias sociais desses indivduos,

    uma vez que o conhecimento acerca dessas diferenas pode ter implicaes para a

    identificao precoce da sndrome.

    Segundo Assumpo e Pimentel (2000), o autismo se instaura, na sua varieda-

    de de comportamentos, a partir das dificuldades no relacionamento com o ambiente,

    por prejuzos de tipo tanto afetivo quanto cognitivo. As diferenas entre as teorias

    cognitivas e as afetivas sobre as falhas bsicas decorrem de concepes tericas

    distintas sobre a mente humana, e no h, ainda, uma viso unidimensional da etio-

    logia do autismo (Arajo, 1997).

    Arajo (1997) ressaltou que, ao se adotar uma teoria cognitiva ou uma teoria

    afetiva, consequentemente aparecem diferenas no modo de abordar, orientar e tra-

    tar o indivduo com autismo. A autora levanta a possibilidade de essas teorias se

    integrarem, formando um terceiro modo, mais consistente, de abordagem aos TEA.

    A busca de conhecimento em reas interdisciplinares, segundo Arajo (2011a),

    vem desmontando construes tericas antigas, levando abdicao de tcnicas

    teraputicas tradicionais e aceitao da possibilidade de novas hipteses a respei-

    to dos TEA, assim como de possibilidades de novas propostas teraputicas.

    2.3 TEORIA DA MENTE

    2.3.1 A Teoria da Mente

    Uta Frith (1996) e Simon Baron-Cohen (1985) assinalaram os dficits nas habi-

    lidades cognitivas como prejuzos primrios no desenvolvimento do indivduo com

  • 30

    TEA. Os autores atriburam a dificuldade de relacionamento ao prejuzo na compre-

    enso do ponto de vista do outro, na mentalizao, na impossibilidade de formar

    uma metarrepresentao da realidade. O indivduo apresenta um distrbio de intera-

    o social, diferentemente da incapacidade de percepo para qualquer situao,

    no consegue atribuir estados mentais aos outros, e incapaz de interpretar o com-

    portamento alheio. Este modelo denominado de dficit de Teoria da Mente, ou se-

    ja, as dificuldades apresentadas em jogos interativos e simblicos e na ateno

    compartilhada so decorrentes do prejuzo no processo de metarrepresentao de

    reconhecimento e de atribuio de estado mental ao seu interlocutor e a si prprio

    (Baron-Cohen et al., 1985; Frith, 1996).

    Baseados em pesquisa de Premack e Woodruff (1978) sobre a presena de

    Teoria da Mente em chipanzs, Wimmer e Perner (1983) definiram essa Teoria da

    Mente como a atribuio de estados mentais do indivduo a si prprio e aos outros,

    com o intuito preditivo de comportamento. Desenvolveram uma tarefa chamada de

    falsa crena para avaliar se crianas eram capazes de interpretar comportamentos a

    partir do que elas achavam que outra pessoa pensava a respeito de alguma coisa,

    ou seja, para avaliar se as crianas eram capazes de interpretar ou antecipar a ao

    da outra pessoa. Essa tarefa de falsa crena abarca um protagonista chamado Maxi,

    que guarda um chocolate em determinado lugar, e sua me, enquanto ele est fora,

    troca o chocolate de lugar. Indaga-se criana onde Maxi, quando voltar, procurar

    o chocolate. Se a criana indica o lugar onde Maxi guardou o chocolate, conclui-se

    que ela est representando o que o protagonista est pensando (estado mental) e a

    realidade (sua prpria crena), e ao representar o protagonista prediz a sua ao.

    Se, ao contrrio, a criana indica o lugar onde a me guardou o chocolate, conclui-

    se que ela no estaria representando o estado mental do protagonista, resolvendo a

  • 31

    tarefa e fazendo uso apenas da representao da realidade, ou seja, de sua prpria

    crena. Essa criana, portanto, no compreenderia os estados mentais como predi-

    tivos de uma ao.

    Os estudos de Gopnik e Astington (1988) e de Moses e Flavell (1990) com a

    aplicao da tarefa de falsa crena indicaram que a maior parte das crianas de

    quatro anos apresenta bom desempenho nessas provas, enquanto a maior parte

    das crianas com trs anos de idade falha nessas tarefas. Moses e Flavell (1990)

    hipotetizaram que as dificuldades apresentadas pelas crianas aos trs anos decor-

    rem da complexidade lingustica da tarefa.

    Para Baron-Cohen et al. (1985), a compreenso do papel da crena na deter-

    minao de uma ao um dos aspectos fundamentais da Teoria da Mente: aquilo

    em que um indivduo acredita pode ser mais relevante no desencadeamento de um

    comportamento do que qualquer circunstncia real. Levando em considerao a im-

    portncia das falsas crenas na determinao de um comportamento, esses autores

    adaptaram a pesquisa de Wimmer e Perner (1983), criando o teste de Sally-Ann pa-

    ra investigar o possvel comprometimento de crianas com autismo na habilidade de

    usar o contexto social para compreender o que outras pessoas pensam e acreditam.

    Nessa prova, uma boneca (Sally) coloca o seu brinquedo numa caixa. Enquanto Sal-

    ly sai da sala, outra boneca (Ann) tira o brinquedo da caixa em que Sally o colocou e

    pe em outra caixa. Questiona-se criana em qual das caixas Sally vai procurar o

    brinquedo quando retornar sala. As crianas com autismo, ao contrrio das crian-

    as com desenvolvimento normal ou com deficincia mental, responderam em sua

    maioria que Sally procuraria o brinquedo na caixa em que Ann o havia colocado, in-

    dicando dificuldades em perceber que Sally no tinha nenhuma informao a respei-

    to da mudana de caixa. Essas observaes sugerem que as crianas com autismo

  • 32

    mostraram dificuldades em compreender o que Sally pensava e em predizer o seu

    comportamento com base no seu pensamento.

    A partir desse estudo, observaes com a aplicao dessa tarefa foram repli-

    cadas e corroboraram os achados de que crianas com autismo apresentam atraso

    ou distrbio na capacidade de desenvolver a Teoria da Mente (Prior et al., 1990; O-

    zonoff et al., 1991).

    Baron-Cohen et al. (1985) e Frith (1996) definiram em seus estudos os estados

    intencionais como estados mentais com contedo como, por exemplo, desejar algo

    ou acreditar em algo, diferentemente de um estado particular que no se relaciona a

    algo, como estar com dor, por exemplo.

    Segundo Baron-Cohen (1991), os prejuzos de linguagem seriam consequncia

    da incapacidade dessas crianas para se comunicar com outras pessoas a respeito

    de estados mentais, assim como os distrbios no comportamento social refletiriam a

    dificuldade em dar um sentido ao que as pessoas pensam e ao modo como se com-

    portam, ou seja, o comprometimento na Teoria da Mente causaria prejuzos no com-

    portamento social como um todo e na linguagem.

    Baron-Cohen (1995) sugeriu, ainda, outro modelo para explicar o desenvolvi-

    mento do sistema representacional, denominado de sistema de leitura da mente

    (mindreading), que estabelece ligaes entre as propriedades do mundo por meio de

    quatro mecanismos bsicos e interatuantes: detector de intencionalidade, detector

    de direcionamento do olhar, mecanismo de ateno compartilhada e mecanismo de

    teoria da mente. Os dois primeiros permitem que a criana construa imagens sobre

    pessoas e aja segundo uma inteno, estabelecendo representaes entre o agente

    da ao e o objeto referente dessa ao (representao didica), sem haver a com-

    preenso de que ambos esto compartilhando uma mesma inteno (representao

  • 33

    tridica). A representao tridica acontece por meio do recebimento de informaes

    sobre o estado perceptual do agente, as quais so, ento, associadas ao seu prprio

    estado perceptual por meio do mecanismo de ateno compartilhada.

    Baron-Cohen (1995) utilizou o termo cegueira mental (mindblindness) para

    descrever as dificuldades apresentadas pelos indivduos com TEA na capacidade de

    inferir ou de atribuir estados mentais a terceiros, comprometendo sua capacidade de

    interagir socialmente, ou seja, dficits de Teoria da Mente.

    O autor refere que, devido a competncias cognitivas e sociais, principalmente

    relativas ateno compartilhada, brincar intencional e imitao, as crianas com

    desenvolvimento tpico adquirem muito precocemente a compreenso de crenas.

    Em decorrncia da inteligncia e da fala preservadas, os indivduos com Sndrome

    de Asperger podem fazer uso de estratgias para compensar suas dificuldades de

    Teoria da Mente ao final da infncia, o que no significa que apresentaro compe-

    tncia social adequada (Baron-Cohen, 1995).

    De acordo com a referncia acima, Arajo (2011b) afirma que, conforme os in-

    divduos com TEA se desenvolvem, podem adquirir a Teoria da Mente, podem com-

    preender crenas sobre crenas, mas mantm sempre uma defasagem em relao a

    crianas da mesma idade com desenvolvimento tpico. A autora refere que os indiv-

    duos com dficits na Teoria da Mente podem apresentar dificuldades no entendi-

    mento da comunicao social sutil e metforas, alm de no compreender quando

    as pessoas esto mentindo ou brincando.

    Segundo Bailey et al. (1996), as pesquisas envolvendo os TEA e a Teoria da

    Mente possibilitaram grande impulso no conhecimento dos mecanismos cognitivos

    envolvidos nesse distrbio do desenvolvimento, mas alguns pontos ainda precisam

    ser esclarecidos, como a pequena porcentagem de crianas autistas que apresen-

  • 34

    tam bom desempenho nos testes de Teoria da Mente, embora continuem apresen-

    tando prejuzos sociais na sua vida cotidiana.

    Nesse sentido, muitas pesquisas foram realizadas objetivando a compreenso

    da Teoria da Mente nos indivduos com TEA. Happ (1993a) realizou pesquisas re-

    levantes na rea, em que relata dficits de Teoria da Mente e de linguagem nos TEA

    e discute a relao entre o prejuzo de Teoria da Mente e a dificuldade de compre-

    enso de aspectos no literais da linguagem, uma vez que os indivduos com TEA

    apresentam grande dificuldade em interpretar algo que no dito literalmente.

    Em seu estudo, Happ (1993a) discute a relao entre a Teoria da Mente e a

    teoria de relevncia de Sperber e Wilson (1986), em que se estabelece ligao entre

    a compreenso das intenes e a comunicao humana. De acordo com a teoria da

    relevncia, os indivduos com TEA poderiam ter dificuldades especficas com o uso

    da linguagem para a comunicao. Os resultados desse estudo revelaram, a partir

    de provas de avaliao de linguagem figurada, estreita relao entre o entendimento

    comunicativo e social nos TEA e nos indivduos com desenvolvimento tpico, dando

    suporte teoria de relevncia.

    Gallese e Lakoff (2005) discutem o papel do sistema sensrio-motor no conhe-

    cimento de conceitos, ou das unidades fundamentais para a razo e significado lin-

    gustico, incluindo os conceitos de ao e percepo, que so simblicos e abstra-

    tos. Os autores propem que o sistema sensrio-motor, ao contrrio do que se pos-

    sa pensar, tem estrutura para lidar tambm com conceitos abstratos. Para tanto, os

    autores se utilizam da teoria neural da linguagem e da teoria de engrenagens, em

    que estruturas cerebrais da regio sensrio-motora so exploradas para o uso de

    conceitos abstratos que constituiro significados para as construes gramaticais e

    para inferncias.

  • 35

    Ponnet et al. (2008) realizaram pesquisa em que foram gravados jovens com

    TEA e sem TEA em duas situaes de interao com dois estranhos. Uma das situ-

    aes era uma conversa estruturada, e a outra, menos estruturada. Os sujeitos da

    pesquisa deveriam inferir os sentimentos e os pensamentos das pessoas, e ao final

    do estudo pde-se observar que a situao estruturada foi importante para o melhor

    desempenho na tarefa de Teoria da Mente para os jovens com TEA.

    Sinigaglia e Sparaci (2010) ressaltam a importncia do sistema de neurnios-

    espelho para a compreenso das aes dos outros, assim como das intenes, dis-

    cutindo a importncia do bom funcionamento desse sistema para a execuo e para

    a compreenso de aes, para o adequado desenvolvimento posterior da compre-

    enso emocional e social, o que no acontece nos TEA.

    Pavarini e Souza (2010) investigaram se a aquisio da Teoria da Mente esta-

    ria associada habilidade de compartilhar emoes e motivao pr-social. Para

    tanto, avaliaram 37 crianas com 4 a 6 anos, com a aplicao de tarefas de Teoria

    da Mente (crena-emoo e emoo aparente-real), de empatia (perguntas sobre

    filmes) e de motivao pr-social (atividade de completar histrias). Os resultados

    no indicaram correlao significativa entre o desempenho nas tarefas de Teoria da

    Mente e o grau de empatia das crianas. A motivao pr-social foi significativamente

    associada Teoria da Mente. As autoras sugerem que a compreenso sofisticada dos

    estados mentais subjacentes s aes influencia positivamente o comportamento pr-

    social, mas talvez no seja pr-requisito para uma resposta emocional emptica.

    Loth et al. (2008) investigaram as dificuldades dos indivduos com TEA na a-

    quisio de esquemas de evento, que so sequncias de aes referentes a de-

    terminado contexto espao-temporal, que devem ser organizadas de acordo com o

  • 36

    sistema de significados que o indivduo adquire. Os autores discutem a importncia

    dessa aquisio para a adequada compreenso cognitiva social, uma vez que ofere-

    ce estrutura sobre as experincias sociais como, por exemplo, uma festa de aniver-

    srio. Foi observado que os indivduos com TEA apresentaram dificuldade nas tare-

    fas de narrativa de eventos, o que pode estar relacionado s dificuldades presentes

    nas situaes sociais reais desses indivduos.

    Os mesmos autores investigaram mais recentemente se crianas e adultos

    com TEA de alto funcionamento estariam atentos a elementos relevantes para um

    contexto. Os participantes da pesquisa (com e sem TEA) leram uma histria e, em

    seguida, examinaram no computador uma cena que continha objetos que eram rele-

    vantes para o contexto, irrelevantes ou neutros. Durante as atividades de memria

    imediata e tardia, pde-se observar diferena significativa nos resultados, sendo que

    o grupo com desenvolvimento tpico se lembrou mais de objetos relevantes para o

    contexto do que o grupo com TEA (Loth et al., 2011).

    Como parte dos indivduos com TEA (com bom funcionamento) consegue criar

    estratgias compensatrias e responder adequadamente a parte dos testes de Teo-

    ria da Mente, alguns estudos e instrumentos com medidas mais sofisticadas foram

    desenvolvidos, como o PCToMM-E (Perceptions of Children`s Theory of Mind Mea-

    sure Experimental Version), um questionrio que deve ser respondido pelos pais

    ou cuidadores, com alternativas para resposta, desenvolvido por Hutchins et al.

    (2008). Os autores observaram diferena significativa entre os resultados da aplica-

    o desse questionrio a um grupo de informantes de indivduos com TEA e um

    grupo de informantes de indivduos com desenvolvimento tpico.

  • 37

    Outro teste que pode ser citado como exemplo o ATOMIC (Animated Theory

    of Mind Inventory for Children), desenvolvido por Beaumont e Sofronoff (2008), um

    teste computadorizado que contm gravuras com questes que avaliam Teoria da

    Mente (inferncias sobre o estado mental dos personagens) e coerncia central.

    O NEPPSI-II (Korkman et al., 2007), em sua segunda reviso, conta tambm

    com o domnio percepo social, em que so utilizadas algumas provas de Teoria

    da Mente, como compreenso de pensamentos dos outros e percepo de senti-

    mentos, alm de metforas e crenas, dentre outras.

    Nesse contexto, este estudo tem como um de seus fins contribuir para a tradu-

    o e adaptao de instrumentos que visam avaliar as habilidades de Teoria da

    Mente e linguagem nos indivduos com TEA, mesmo os indivduos com bom rendi-

    mento capazes de criar estratgias para solucionar provas menos complexas.

    2.3.2 Teste avanado em Teoria da Mente Strange Stories

    Happ (1993b, 1994) construiu e aplicou um teste avanado para investigar a

    Teoria da Mente respaldando-se em observaes de outros autores, conforme segue.

    Baron-Cohen et al. (1985) j haviam mostrado que 80% dos sujeitos autistas

    falharam em atribuir falsa crena para os personagens. Em contraste, 80% dos su-

    jeitos com deficincia intelectual e sujeitos normais com quatro anos conseguiram

    predizer o comportamento do personagem da histria de falsa crena. Se, por um

    lado, o fato de apenas 20% dos sujeitos autistas apresentarem bom desempenho

    numa tarefa de falsa crena de primeira ordem dava suporte para a Teoria da Men-

    te, por outro lado, esses mesmos 20% com bons resultados nessa prova fundamen-

  • 38

    taram crticas sobre o poder de abrangncia dessa Teoria da Mente (Ozonoff et al.,

    1991; Bowler, 1992). Esses autores observaram que o sucesso no teste de Teoria da

    Mente era muito maior em grupos de sujeitos autistas com QI verbal normal, que a-

    presentavam resultados similares aos de sujeitos normais at em testes de segunda

    ordem.

    Happ (1993b), ento, sugeriu duas possibilidades para tais observaes: o

    sucesso desses sujeitos pode ser considerado como prova de que eles apresentam

    Teoria da Mente, ou pode significar uma evidncia de que conseguem criar estrat-

    gias que no fazem parte do conceito de Teoria da Mente para responder correta-

    mente a essas provas. Isso explicaria por que eles mantm o prejuzo social, apesar

    do bom desempenho nos testes de Teoria da Mente.

    Foi nesse contexto que Happ (1993b, 1994) criou o teste avanado em Teoria

    da Mente Strange Stories, no qual so apresentadas aos sujeitos autistas vinhetas

    ou histrias sobre situaes do dia a dia, nas quais as pessoas dizem coisas que

    elas no querem dizer literalmente. O intuito era apresentar histrias que represen-

    tassem situaes mais naturalsticas do que nas baterias de tarefas de Teoria da

    Mente at ento propostas, ou seja, adequar as tarefas envolvendo Teoria da Mente

    a uma forma mais contextualizada e real.

    De acordo com a autora, as histrias no so imaginativas ou ficcionais; so

    simples contos ou eventos que levam a diferentes motivaes que permitem mentir

    em situaes do dia a dia que no so literalmente verdades. Apenas uma interpre-

    tao da situao pode ser feita por sujeitos normais e no autistas com deficincia

    intelectual (Happ, 1993b; 1994).

    Outras pesquisas replicaram o uso desse instrumento, comparando-o, inclusi-

    ve, com outras provas de Teoria da Mente (Jolliffe e Baron-Cohen, 1999; Brent et al.,

  • 39

    2004; Kaland et al., 2005; 2008), e evidenciaram que, em relao a grupos-controle,

    indivduos com TEA no responderam adequadamente s histrias, mesmo quando

    apresentaram bom desempenho nos demais testes de Teoria da Mente.

    No Brasil, Perissinoto (2003) tem defendido a importncia dessa prova na ava-

    liao fonoaudiolgica de linguagem, uma vez que aborda piadas, mentiras, ironias

    e metforas, que so situaes relevantes para o diagnstico de linguagem.

    Em 2009, OHare et al. retomaram o estudo inicial de Happ (1994) e realiza-

    ram pesquisa com as histrias propostas inicialmente, aplicando-as a 140 crianas

    com desenvolvimento tpico, com cinco a 12 anos de idade, com o objetivo de nor-

    matizar o teste tanto para uso na clnica quanto para pesquisas. Os autores defen-

    deram que os testes utilizados para avaliao de Teoria da Mente acessam normal-

    mente habilidades de falsa crena que crianas tpicas com quatro a cinco anos rea-

    lizam; da a importncia de se normatizar um teste avanado em Teoria da Mente

    que tambm seja aplicvel a crianas a partir de cinco anos de idade.

    Os resultados dessa pesquisa demonstraram diferena entre as idades para

    resposta, sendo que o desempenho mais baixo foi observado nas crianas mais no-

    vas, melhorando de forma crescente nas demais idades. No entanto, alguns concei-

    tos se mostraram difceis para as crianas mais novas, como persuaso (OHare et

    al., 2009).

    OHare et al. (2009) modificaram alguns procedimentos que foram utilizados o-

    riginalmente, entendendo que o mtodo utilizado anteriormente no permitia replica-

    es de forma facilitada. Quase todos os procedimentos modificados e atualizados

    por esses autores foram utilizados nesta pesquisa, razo pela qual esto detalhados

    no captulo relativo aos mtodos empregados neste estudo.

  • 40

    2.4 LINGUAGEM

    A linguagem sempre representa um aspecto fundamental do quadro clnico, in-

    dependentemente da abordagem conceitual, da hiptese etiolgica e do critrio di-

    agnstico envolvendo o autismo infantil (Fernandes, 1996). Segundo essa autora,

    muitos estudos associam as dificuldades de linguagem com as causas do autismo

    infantil, seja como elemento desencadeador ou como aspecto afetado pelas mes-

    mas desordens que o determinam.

    A diferenciao desses quadros est na intensidade dos desvios de linguagem,

    dficits cognitivos e interao social. Lorna Wing (1988) introduziu o termo espectro

    do autismo, referindo-se a uma entidade nica para os quadros de autismo infantil,

    de baixo ou alto funcionamento, juntamente com a Sndrome de Asperger. Bishop

    (1989) complementou esse conceito, sugerindo a linguagem como ponto comum

    entre o autismo infantil, a sndrome de Asperger e a sndrome semntico-pragm-

    tica.

    A linguagem representa uma caracterstica fundamental nos quadros do espec-

    tro do autismo, independentemente do pressuposto terico utilizado (Fernandes,

    2003). As alteraes de linguagem podem variar de acordo com o grau de severida-

    de do quadro clnico, e de grande importncia para o prognstico desses quadros.

    Portanto, as pesquisas que tm como objetivo caracterizar e compreender a comu-

    nicao desses sujeitos so muito importantes.

    Perissinoto (2003) ressalta que, apesar de a criana com desenvolvimento tpi-

    co no falar durante o primeiro ano de vida, sua interao com os outros essencial

    para o desenvolvimento da linguagem, e o surgimento da linguagem marca o desen-

    volvimento cognitivo e social da infncia. Por esse motivo, torna-se importante con-

  • 41

    siderar as relaes entre linguagem e interao social na fase pr-lingustica e ao

    longo do processo lingustico.

    Segundo Bee (1996), a criana mostra seu interesse na comunicao com os

    demais desde o nascimento, reagindo modulao dos sons da fala, procurando a

    fonte sonora, acompanhando o olhar referencial de seus pais e o movimento de ob-

    jetos.

    Bates (1976) se refere linguagem, do ponto de vista do falante, como um con-

    junto de operaes mentais para construo e uso de sentenas dentro de um con-

    texto. O uso dessas sentenas envolve regras tradicionalmente abordadas nas teo-

    rias sinttica (relao mantida entre os sinais), semntica (relaes entre os sinais e

    os seus referentes) e pragmtica, isto , o objetivo do falante ao usar uma expres-

    so e regras que relacionem essas expresses a um determinado contexto. Para

    que a criana adquira linguagem necessrio que aprenda estruturas abstratas da

    competncia lingustica e o modo de us-las apropriadamente. Halliday (1978) con-

    sidera que a criana cria primeiramente sua prpria linguagem e, depois, adquire a

    lngua materna conforme ocorre a interao com o seu grupo social. A linguagem

    seria, ento, um produto do processo de insero do sujeito na sociedade. Quando a

    criana desenvolve a linguagem, ela est aprendendo os conceitos existentes no

    mundo por meio da prpria linguagem e, dessa forma, construindo sua noo de

    realidade. Esse desenvolvimento depende de habilidades cognitivas (Befi-Lopes et

    al., 2000).

    Uma das consideraes fundamentais sobre a linguagem ser um sistema or-

    ganizado de forma regular e previsvel, possibilitando, com isso, uma lista de regras

    que descrevem a regularidade do sistema. Existem diferentes nveis nos quais o sis-

    tema pode ser dito organizado, cada um lidando com uma unidade de anlise distin-

  • 42

    ta. So eles: fonologia, gramtica, semntica e a prpria prtica (Bishop e Mogford,

    2002).

    As habilidades metalingusticas, segundo Salles et al. (1999), podem ser en-

    tendidas como habilidades de pensar sobre a linguagem como um objeto de estudo

    ou manipulao, e envolvem manipular, conscientemente, aspectos da linguagem.

    A conscincia metalingustica, segundo Barrera e Maluf (2003), um termo ge-

    nrico que envolve diferentes tipos de habilidades, tais como segmentar e manipular

    a fala em suas diversas unidades (palavras, slabas, fonemas), separar as palavras

    de seus referentes (ou seja, estabelecer diferenas entre significados e significan-

    tes), perceber semelhanas sonoras entre palavras, julgar a coerncia semntica e

    sinttica de enunciados. Tal atividade envolve a ateno consciente aos aspectos

    formais da linguagem (nveis fonolgico, morfolgico e sinttico), e no apenas ao

    seu contedo (nvel semntico). Certos julgamentos sobre a gramaticalidade de e-

    nunciados, a compreenso de metforas, e a deteco de ambiguidades semnticas

    parecem se desenvolver tardiamente, enquanto certos comportamentos indicativos

    de reflexo sobre aspectos fonolgicos da linguagem so encontrados mais preco-

    cemente.

    Vrios elementos esto envolvidos no conceito de comunicao e linguagem, e

    a efetividade comunicativa estabelecida na relao falante-ouvinte, levando-se em

    conta tanto as emisses do emissor quanto as do receptor e as trocas de papis en-

    tre eles (Perissinoto, 2003).

    A linguagem verbal de crianas com TEA pode apresentar algumas alteraes,

    como a escolha de palavras pouco usuais, inverso pronominal, ecolalia, discurso

    incoerente, alterao de prosdia, no resposta a questionamentos, o que leva a um

    distrbio de comunicao (Rapin e Dunn, 2003; Botting e Conti-Ramsden, 2003).

  • 43

    No autismo, a compreenso e a pragmtica esto sempre afetadas, sendo que

    sujeitos com essa condio apresentam tambm alterao da comunicao no

    verbal, comportamentos estereotipados e perseverantes, interesses restritos e alte-

    rao das capacidades sociais (Wilson et al., 2003).

    As crianas que se enquadram no espectro do autismo apresentam dificuldade

    na compreenso de seu prprio estado mental, assim como o dos outros, lembrando

    que apresentam dificuldade nas interaes sociais que envolvem atribuir estados

    mentais aos outros. Portanto, apresentam alterao na capacidade de metarrepre-

    sentao (Povinelli e Preuss, 1995). Essas crianas apresentam, assim, grande difi-

    culdade em construir um discurso durante um dilogo, uma vez que no conseguem

    se colocar a partir do ponto de vista do outro que faz parte do dilogo.

    Crianas autistas apresentam dificuldade especfica no mecanismo cognitivo

    necessrio para representar estados mentais, e manifestam, como consequncia,

    dificuldades nos padres de interao social, habilidade que pr-requisito para o

    desenvolvimento do jogo simblico, criatividade, originalidade e pragmtica, ou seja,

    padres que podem estar alterados nesses sujeitos (Adamson et al., 2001).

    Pastorello (1996) estudou aspectos do desenvolvimento da linguagem na Sn-

    drome de Asperger, e observou que crianas com essa sndrome apresentam bom

    desenvolvimento da linguagem em seus aspectos formais (elementos fonolgicos e

    sintticos), independentemente da poca de incio do desenvolvimento da linguagem

    verbal, e que apresentam fala pedante durante toda a vida.

    Perissinoto (1995) descreveu alteraes de linguagem presentes no autismo,

    ressaltando alguns aspectos notados pelos pais dessas crianas e pelos profissio-

    nais que trabalham na rea, como atrasos ou alteraes no comportamento inicial

    de linguagem, dentre os quais a no resposta a estmulos verbais e no verbais o

  • 44

    primeiro sinal a chamar a ateno, o que levanta a hiptese inicial de prejuzo da

    audio. A autora refere que os pais dessas crianas descrevem anormalidades de

    forma e contedo do discurso, desde a ausncia de verbalizao e mmica, at o

    uso estereotipado da fala, ecolalia, repetio constante de assuntos, desrespeito a

    padres meldicos de fala, dentre outros sinais de inadequao comunicao. H

    inabilidade em iniciar ou manter situaes de dilogo, mesmo naquelas crianas em

    que se observa a fala estruturada.

    Segundo Fernandes (1996), o indivduo com TEA apresenta dificuldade de inte-

    rao recproca, na qual a linguagem depende de ateno a pistas de atitudes e

    emoes prprias e do outro. Para Sigman e Capps (1997), h inadequao do indi-

    vduo com TEA ao contexto em que a comunicao acontece, desrespeito para com

    o interlocutor, falhas na estrutura do discurso e reduo das funes de comunica-

    o. Essas pessoas apresentam inabilidade em antecipar o que o ouvinte quer ouvir,

    e raramente assumem o papel de iniciador ou propositor de tema comum de interes-

    se (Perissinoto, 2003).

    O uso adequado de informaes do contexto crtico para o processo de com-

    preenso da linguagem, uma vez que o contexto est na situao presente e ativa o

    histrico do ouvinte que acompanha a situao (Milosky, 1996). Neste sentido, a lin-

    guagem figurada, ou exemplos de linguagem na qual o significado literal das pala-

    vras diferente do significado pretendido, fornece uma fonte de ambiguidade em

    potencial. Milosky e Hardy (1990) registraram 55 usos de linguagem figurada em

    cinco minutos de dilogo num programa de televiso familiar em horrio nobre. Para

    Pollio et al. (1990), todavia, a linguagem figurada no um caso especial de input

    lingustico, mas deve ser vista como parte do contnuo processo criativo na interao

    comunicativa. De maneira semelhante, num contexto discursivo especfico, as pala-

  • 45

    vras podem ser usadas de modo sintaticamente indito, mas os seus significados

    sero claros.

    A linguagem apresenta muitos tipos de ambiguidade (fonolgicas, semnticas,

    sintticas e pragmticas), e os pesquisadores que estudam a compreenso lingusti-

    ca apontam diferentes hipteses sobre como os ouvintes usam as diferentes fontes

    de informao para determinar o significado.

    Os modelos autnomos em srie (Cairns, 1983; Holmes, 1984) propem que o

    significado preferido para cada palavra numa frase acessado primeiro, e a repre-

    sentao sinttica ou anlise gramatical preferida gerada. A representao resul-

    tante , ento, comparada com o contexto para determinar se o significado apro-

    priado. Se no combinar, a frase analisada novamente ou um significado alternati-

    vo da palavra encontrado.

    Os modelos autnomos paralelos (Tananhaus et al., 1985) propem que vrias

    representaes possveis so geradas, independentemente do contexto, e s ento

    o contexto consultado para se escolher a anlise gramatical correta. O significado

    dominante e independente do contexto pode ser escolhido mais rpido do que os

    outros.

    Outra explicao se refere ao fato de que apenas certos sentidos relevantes

    das palavras e da sintaxe aparecem porque o contexto dirigiu a busca do significado

    ou foi usado para predizer significado. Os modelos interacionistas (Marslen-Wilson e

    Tyler, 1980; Crain e Steedman, 1985) propem que as decises sobre sintaxe de

    frases e significados de palavras interagem uns com os outros e com a informao

    do contexto.

  • 46

    Os modelos de acomodao (Sperber e Wilson, 1986) sugerem que uma pers-

    pectiva modular do processamento pode ser parcialmente mantida, com processa-

    dores lexicais e sintticos que sejam capazes de construir todas as interpretaes

    possveis para os constituintes de um enunciado. O primeiro constituinte da frase

    gera essa ativao exaustiva. No entanto, depois de apresentar todas as interpreta-

    es possveis para uma unidade mais central que tem acesso ao conhecimento

    contextual, essa unidade central alimenta a informao de volta para os mdulos do

    input e inibe a gerao de anlises exaustivas e interpretaes mltiplas para cada

    constituinte subsequente. Em vez disso, para o segundo constituinte e os subse-

    quentes, o sentido consistente com o primeiro constituinte est sendo gerado, com

    outros sendo inibidos. Assim, o mdulo de input ainda no tem acesso amplo in-

    formao contextual, mas o contexto poderia afetar o processamento.

    O modelo proposicional impreciso, sugerido por Rueckl e Oden (1986), defende

    a ativao de muitos sentidos em potencial das palavras e postula um papel para o

    contexto na resoluo da lista de possveis sentidos antes de o item lxico real ser

    acessado. A seleo lxica o resultado de dois processos independentes (aut-

    nomos): anlise de traos ou sensorial e anlise semntica com base contextual.

    Quando se considera como o conhecimento de mundo usado no processo de

    compreenso, torna-se claro que a histria completa de cada elemento situacional

    ou cada palavra num enunciado no ativada em qualquer situao. Alguns aspec-

    tos do contexto so mais salientes do que outros, e alguns aspectos do contexto e

    do conhecimento de mundo so mais relevantes do que outros. A salincia, ou o que

    enfatizado ou percebido na situao presente, pode ser determinada, em parte,

    por elementos da frase, por aspectos da situao, ou por experincia anterior. Os

    ouvintes podem usar quaisquer fontes de informao que lhes estejam disponveis,

  • 47

    porque uma ou outra fonte muitas vezes no est disponvel, incompleta, distorci-

    da ou barulhenta. A noo de salincia prov um meio para determinar significado

    numa dada situao (Milosky, 1996).

    No entanto, Milosky (1996) refere que uma informao saliente no necessa-

    riamente relevante para a tarefa de compreenso do momento. O ouvinte utiliza a-

    penas os aspectos especficos do contexto ao identificar e usar apenas o que rele-

    vante para a tarefa imediata de compreenso. A relevncia, ou grau de importncia,

    de vrios significados de palavras, de experincias anteriores e de vrios aspectos

    da situao corrente determinada pela inteno do falante e pelos objetivos, aten-

    o e estado afetivo do ouvinte. A compreenso mxima quando o que est mais

    saliente tambm o mais relevante. Assim, a interpretao do ouvinte de qualquer

    enunciado uma interao entre o enunciado, os aspectos salientes do contexto

    presente e todos os aspectos salientes da experincia experincia com palavras,

    estruturas de frases, pessoas, lugares, coisas e eventos (Milosky, 1996).

    Em relao ao papel central da relevncia no processamento da linguagem,

    Sperber e Wilson (1986) argumentaram que os processos cognitivos humanos esto

    direcionados para alcanar o maior efeito cognitivo possvel com o menor esforo de

    processamento possvel. Para alcanar isso, o indivduo deve focalizar sua ateno

    no que lhe parece a informao mais relevante disponvel. A relevncia, portanto,

    determinada pelos objetivos de um indivduo e pelo que de seu interesse.

    Seguindo o raciocnio da importncia do contexto na comunicao, falhas na

    integrao de pistas dos contextos e na habilidade de criar suposies das experi-

    ncias se manifestam nos desvios pragmticos do sujeito com TEA (Perissinoto,

    2003). Questes referentes funcionalidade da linguagem se fundem s questes

    cognitivas e de interao social, especialmente se analisadas sob os pontos de vista

  • 48

    propostos por falhas nas habilidades de deteco do olhar, metarrepresentao, co-

    erncia central e teoria da mente. A inabilidade da pessoa com autismo em integrar

    informaes com contexto e significado pode gerar referncias fragmentadas ou

    parciais das pistas de comunicao (Perissinoto, 2003).

    As relaes entre esses mecanismos e a construo da linguagem so polmi-

    cas. Assim, para Scheuer (1997), a Teoria da Mente tem consequncias na constru-

    o da linguagem.

    Astington e Jenkins (1999) observaram em estudo longitudinal que habilidades

    iniciais de linguagem predizem o desempenho posterior nas provas de Teoria da

    Mente, mas no verificaram o processo inverso, o que lhes levou a concluir que a

    linguagem fundamental para a configurao da Teoria da Mente.

    Portanto, cabe ao interlocutor papel importante na relao entre os processos e

    produtos da linguagem do sujeito autista, ao identificar e salientar pistas de informa-

    o e buscar sua coeso em um determinado contexto. Esse papel facilitador e de

    suporte no desenvolvimento de habilidades permite ajustes na compreenso do

    mundo fsico e social por parte da criana com autismo (Perissinoto, 2003).

    A noo de espectro do autismo inclui grande variedade de manifestaes,

    como os conceitos de Sndrome de Asperger e de autismo de alto funcionamento,

    quadros em que o distrbio autstico no envolve grandes prejuzos em algumas das

    reas analisadas. A noo de espectro do autismo permite que se pense em cada

    indivduo em termos de sua posio em um grfico, estando em um dos eixos os inte-

    resses e relacionamentos sociais e no outro a comunicao verbal. Uma criana autis-

    ta tpica estaria em algum ponto determinado por graves prejuzos em ambos os ei-

    xos, e uma criana com Sndrome de Asperger estaria em algum ponto determinado

    por um grave prejuzo no eixo referente aos interesses e relacionamentos sociais e

  • 49

    desenvolvimento relativamente bom na comunicao verbal (fala), o que no elimina

    grandes dificuldades no uso funcional da comunicao verbal (Fernandes, 2003).

    Nesse sentido, a ao de avaliar permeia todo o fazer clnico, e a sntese das

    evidncias conclui o processo diagnstico com um objetivo final para o caso. Um

    diagnstico de linguagem tem o objetivo de explorar todo o desenvolvimento da

    compreenso e da expresso do indivduo, levando-se em conta a linguagem antes

    da fala propriamente dita (Perissinoto e Chiari, 2003).

    Vale ressaltar que, atualmente, h escassez no Brasil de instrumentos formais

    e objetivos disponveis comercialmente e indicados para avaliao e diagnstico de

    linguagem, principalmente que possam ser direcionados a indivduos com TEA, o

    que indica a necessidade de pesquisas nesta rea.

    2.5 LINGUAGEM E TEORIA DA MENTE

    Vrios pesquisadores tm demonstrado interesse em investigar a relao entre

    linguagem e Teoria da Mente. Uma investigao da linguagem que as crianas utili-

    zam para se referir a estados mentais poderia, a princpio, revelar dados importantes

    a respeito do processo de aquisio de uma Teoria da Mente. Entretanto, ainda h

    divergncias sobre o papel da linguagem, ou mais precisamente sobre quais aspectos

    da Teoria da Mente so influenciados pela linguagem e de que forma essa influncia

    exercida (Astington e Jenkins, 1999; Astington, 2001; De Villiers e De Villiers, 2003).

    Astington e Jenkins (1999) realizaram pesquisa com 59 crianas com 3 anos

    de idade que foram avaliadas trs vezes durante um perodo de sete meses para

    determinar a contribuio da Teoria da Mente para o desenvolvimento da linguagem

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    e a da linguagem para o desenvolvimento da Teoria da Mente (incluindo as contribui-

    es independentes de sintaxe e semntica). A competncia de linguagem foi avali-

    ada com uma medio padronizada de recepo e produo de sintaxe e semntica

    (The Test of Early Language Development). A Teoria da Mente foi avaliada com ta-

    refas de falsas crenas e tarefas de aparncia-realidade. Habilidades precoces de

    linguagem predisseram o desempenho do teste da Teoria da Mente posterior, porm

    a avaliao de Teoria da Mente no predisse o desempenho no teste de linguagem

    posterior. Essas descobertas so consistentes com o argumento de que a linguagem

    fundamental para o desenvolvimento da Teoria da Mente.

    Alguns pesquisadores afirmam que a linguagem pode exercer papel importante

    e especfico no desenvolvimento da Teoria da Mente. Para Happ (1995), o sucesso

    na tarefa de falsa crena est significativamente correlacionado com o vocabulrio

    receptivo. Alm disso, indivduos com autismo precisam de um nvel mais elevado

    de habilidade verbal do que crianas com desenvolvimento tpico para que possam

    apresentar bom desempenho nas tarefas de falsa crena. De Villiers e de Villiers

    (2003) argumentam que a compreenso da falsa crena, evidenciada mediante a

    aplicao de tarefas especficas de falsa crena, depende da linguagem.

    Outros pesquisadores tm se dedicado a outros aspectos lingusticos do de-

    senvolvimento da Teoria da Mente. De Villiers e De Villiers (2000) estudaram o papel

    da sintaxe, argumentando que a sintaxe de complementao pr-requisito impor-

    tante para a aquisio da Teoria da Mente.

    Os mtodos atuais de avaliao da Teoria da Mente se apoiam fortemente na

    linguagem. Comumente se contam histrias para as crianas ou se explica o proce-

    dimento da atividade. As crianas precisam compreender essas informaes, pro-

    cessar as questes do avaliador e fornecer alguma resposta. Assim, prope-se que

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    crianas com trs anos de idade compreendem a falsa crena, mas, devido com-

    plexidade lingustica das tarefas, no conseguem demonstrar sua compreenso no

    contexto dos testes-padro de falsa crena (Chandler et al., 1989).

    Astington e Jenkins (1999) discutem a possibilidade de a Teoria da Mente de-

    pender da linguagem, uma vez que o desenvolvimento lingustico apoia o desenvol-

    vimento da Teoria da Mente. Os autores aventam que o desenvolvimento da Teoria

    da Mente e o desenvolvimento da linguagem so fundamentalmente relacionados e

    interdependentes. O desenvolvimento da linguagem pode, ele mesmo, fornecer re-

    cursos s crianas, como habilidade sinttica ou compreenso semntica, que pro-

    movem ou permitem compreenso da falsa crena.

    Em contrapartida, os autores que apoiam a possibilidade de a Teoria da Mente

    ser necessria para o desenvolvimento da linguagem afirmam que a Teoria da Men-

    te no dependente da representao lingustica, e que as crianas primeiramente

    adquirem uma compreenso conceitual da falsa crena e da aparncia-realidade, e

    s ento a linguagem se torna elaborada para refletir esse desenvolvimento (Perner,

    1991; Leslie e Roth, 1993; Baron-Cohen, 1995).

    Outros pesquisadores argumentam que a Teoria da Mente e a linguagem se

    correlacionam, porque ambas so dependentes de algum outro fator, um fator