AVELAR Idelber - A Morta de Oswald de Andrade

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    A M orta de Oswald de Andrade: A Emergncia de umaMimesis Paradoxal no Teatro Brasileiro1Idelber Vasconcelos AvelarI. O Conceito de MimesisEscrevendo no momento mais efervecente da vanguarda modernista, nasdcadas de vinte e trinta, Oswald de Andrade representa, tanto na poesia quantono romance, um momento de ruptura profunda na literatura brasileira. Com apublicao da Poesia Pau-Brasil (1925), Oswald, juntamente com Mrio deAndrade e sua Paulicea Desvairada (1922), contribui para trazer a poesiabrrasileira ao ritm o alucinante da modernidade. O poema se torna um jogorpido de aluses, imagens fragmentadas, recortes, e exibe uma liberdade formale um poder de sntese que revela o anacronismo da verborragia parnasiana atento hegemnica. Com os romances-inveno Memrias Sentimentais de JaoMiramar (1924) e Serafim Ponte Grande (1933), Oswald absorve de formacriativa o impulso liberador das vanguardas europeias (em seu caso especialmenteo futurismo e o surrealismo e do cinema, construindo um texto que se organizaa partir da primazia do corte e da montagem, e no mais da sucesso linear e dacausalidade.Seu teatro foi to radical como sua produoficcionale potica. Tanto emO Homem e o Cavalo (1934), uma sucesso catica de quadros alegricos comfortes tons polticos, como em O Rei da Vela (1937), stira mordaz aocapitalismo, o teatro oswaldiano se caracteriza por uma ruptura com o modelomimtico do sculo XIX, ou seja, se trata de um teatro radicalmente anti-naturalista e anti-ilusionista, no qual a iluso de realidade substituda peloquestionamento da fronteira que at ento distinguia ontologicamente o mundoda representao do espao tranquilo e seguro do espectador burgus. Entretanto, em A Morta (1937), "pea de menor viabilidade cnica" (191), segundo SbatoMagaldi, que Oswald mais avana na elaborao de um teatro de vanguarda. Caidefinitivamente a quarta parede que separa os espaos do espectador e darepresentao, elemento chave no pacto mimtico proposto pelo realismo. Alinguagem no mais reproduz o surrado dilogo domstico predominante no teatrobrasileiro do sculo XIX e toma a forma de um texto onrico, potico, no qual a

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    22 LATIN AMERICAN THEATRE REVIEWconexes no esto dadas de antemo e tm que ser reconstrudas em meio a umverdadeiro caos de aluses e pardias.Apesar de tudo isso, me parece pertinente resgatar o conceito de mimesispara o estudo do teatro oswaldiano, na medida em que o problema da mimesisno se esgota dentro dos limites do realismo do sculo XIX. Todos os momentosem que a teoria da literatura descartou o conceito de mimesis, ou simplesmentedefiniu certos textos como "anti-mimticos," estava na verdade tomando comoparadigma a concepo realista de mimesis. Neste contexto, "anti-mimtico"passou a significar simplesmente "anti-realista." O reducionismo de talpressuposto se revela na medida em que os cnones estticos de um estilo depoca passam a ordenar a compreenso de um conceito que historicamentemuito anterior.A abordagem do teatro de Oswald a partir do conceito de mimesis sejustifica pelo fato de que em Oswald est implicado o problema darepresentaoentendida aqui no s como "representao teatral,""performance," mas principalmente em termos semiticos mais amplos, no sentidoda relao particular que o texto oswaldiano estabelece entre o signo teatralsejaele sonor, visual, etc.e seu referente? No basta dizer que em Oswald estarelao no mais naturalizada e transparente como no realismo, pois definirOswald meramente em funo de seu maior ou menor afastamento do modelorealista significaria tomar um estilo de poca como parmetro para a avaliaode uma obra que no pertence a ele. A quebra dos cnones realistas no implicanecessariamente que o problema da referencialidade esteja superado.2 aqui,no estudo de como se relacionam signo e referente no teatro de Oswald, querecorro ao conceito de mimesis. Torna-se necessrio, portanto, uma revisosinttica da histria do conceito, no no sentido de buscar sua "verdadeiradefinio" ou "a acepo original," mas com o objetivo de perceber quais osproblemas normalmente implicados quando se fala de mimesis.Em Mimesis e Modernidade, Luiz Costa Lima retoma a histria do conceitoentre os gregos. A mimesis surge no pernsamento grego a partir do sculo V,com os pitagricos, que a teorizaram como "conceito fundamental de sua filosofiada expresso dos estados psquicos, manifestados pela dana e pela msica" (30).A mimesis originalmente se relaciona com o culto a Baco e pressupe umaindissociabilidade entre palavra, msica e danalgos, mlos e rythmos (31).Poderia ento ser melhor compreendido modernamente como "presentificiar,""tornar manifesto" o xtase dionisaco. No tem, portanto, nada que ver com aideia de imitao ou cpia. A mimesis do culto a Baco, tal como teorizada pelospitagricos, no se baseia na confrontao entre representante e representado, ouseja no se coloca em jogo a questo da fidelidade ou da verdade.

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    FALL 1995 23Com Plato, se assiste condenao da mimesis. "Pela primeira vez, amimesis confrontada com o representado e . . . questionada por seu grau deverdade" (31). Entra em questo, portanto, o problema da fidelidade darepresentao. Para isso, teve que ser quebrada a "antiga unidade entre palavra,msica e dana" (31). A mimesis agora passa ser subordinada a um critrio tico(60). Submetida lgica do modelo (mundo ideal das formas), cpia (mundoemprico) e simulacro (arte), a mimesis artstica ser expulsa da Repblica comointrodutora da desordem, da falsidade, da representao imperfeita, como esferaduplamente afastada da verdade ideal.Aristteles introduz mudanas importantes na concepo de mimesis herdadade Plato. Como afirma Costa Lima, a mimesis passa a constituir umaespecificidade do potico (47). Seu referente reenviado physis: trata-se deimitar uma ao, no qualquer uma, mas uma que seja significativa o suficientepara estabelecer um paradigma universal. essa compreenso particular dofenmeno mimtico que permite a Aristteles considerar o poeta superior aohistoriador, na medida em que este imitaria o particular (o que foi), enquantoaquele se ocuparia do universal (o que poderia ter sido). Pode-se ler toda a

    Potica como a formulao das leis que regem as mimesis trgica e pica. Estclaro, pois, que o conceito aristotlico de mimesis refere-se a regras deconstruo discursiva, e no se confunde com a ideia de adequao darepresentao ao referente. O efeito da mimesis no (e no procura ser) oefeito do objeto real: "the forms of those things that are most distressful to seein realityfor example, the basest animals and corpseswe contemplate withpleasure when we find them represented . . ." (Aristotle 47). Uma releitura atentada Potica nos revela que vrias posies que foram historicamente apresentadascomo sendo de Aristtles so na verdade estranhas a seu pensamento. Como, porexemplo, a ideia de que a mimesis seria detalhista e descritivista, que esteve nabase das invocaes a Aristteles feitas pelo naturalismo. Encontra-se na Poticaa negao explcita de tal concepo: "In composing his Odyssey, he (Homer)did not put into it every event that had befallen Odysseus" (53), comenta ele comaprovao.O sculo XVIII retoma a ideia de imitao com uma insistncia nunca antesvista. O referente no mais uma ao, como em Aristteles, mas a natureza.Isto deriva da equivalncia, na esttica neoclssica, entre o belo, o verdadeiro eo natural. O natural s pode ser belo e verdadeiro; toda variao e discordnciaentre as teorias da poca pode ser reduzida a trs posies bsicas, como mostraTodorov em seu Teorias do Smbolo: os aplogos da cpia perfeitareproduzira natureza exatamente como ela , da cpia seletivaimitar alguns de seusaspectos, os "belos" ou "prazeirosos"ou da cpia imperfeitaintroduzir algumadessemelhana na imitao (113-50). Em todos eles, note-se no entanto,

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    24 LATIN AMERICAN THEATRE REVIEWpermanece a ideia de pr-existncia modelar da natureza face literatura. nestesculo que se explicita um dos paradoxos da mimesis: quanto mais perfeita aimitao, mais ela se afasta de sua prpria condio como tal. "Artistic imitationis, as it happens, a paradoxical notion: it disappears at the very moment itachieves perfection" (Todorov 112).3O realismo do sculo XIX enviaria o referente da mimesis "realidade,"entendida empiricamente. A mimesis aqui reinventada sob o signo daneutralidade cientificista. Trata-se de tornar o signo to transparente que oreferente se revele "por si." O desejo maior de todo realismo dissolver aespessura do signo e encontrar a pureza intacta de seu referente. A mimesissubmete-se a um paradigma positivista, na medida em que a "realidade" passa afuncionar como um mecanismo de legitimao do texto. O que vale oconhecimento do objeto, do qual o signo artstico torna-se o veculo: sob orealismo, portanto, a mimesis transorma-se em instrumento hermenutico.No sculo XX, a literatura se desloca progressivamente em direo a umquestionamento de sua prpria existncia enquanto discurso e a uma tomada deconscincia de si mesma como construo de linguagem. A naturalizao dosculo XIX d lugar, especialmente nas poticas modernistas dominantes naprimeira metade do sculo, auto-reflexividade, o que torna impossvel qualquerrelao de transparncia entre signo e referente. Esta relao torna-se aquiobliterada, incompleta, mediada por uma espessa camada sgnica queincessantemente chama ateno sobre si mesma. Por vezes, a prpria existnciado referente (ou sua pr-existncia face ao signo) colocada em cheque. Comorepensar a mimesis neste contexto? Ela ainda estaria em questo? este omundo de Oswald de Andrade e a partir das insuficincias das formulaescontemporneas do problema da mimesis que se abre o espao no qual sua obradramtica adquire um estatuto paradoxal.A sada mais comumente encontrada pela teoria contempornea para aquesto da mimesis na nova literatura tem sido descartar o conceito. Surge pelaprimeira vez com insistncia o adjetivo "anti-mimtico." No entanto, toda ajustificativa para o abandono do problema baseada no argumento de que "aliteratura moderna no mais cpia o real." Ora, a reviso do conceito acaba demostrar que mimesis no implica necessariamente cpia do realno implicanem mesmo cpia. Esta uma concepo de mimesis, a de um estilo de pocadefinido e determinado, o realismo do sculo XIX, que portanto no pode sertomado como parmetro de avaliao universalmente vlido. A anlise deWladimir Krysinski sobre o drama moderno exemplifica a postura que critico:"la obra dramtica moderna alcanza autonoma mediante la modificacin deltringulo semitico en el cual, la solidariedad tripartita y la continuidad ya noestn determinadas por una realidad entendida segn parmetros lgicos y

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    FALL 1995 25mimticos" (29). O autor no fornece um conceito de mimesis (nem de "lgica"):bvio est, ao longo de seu texto, que toma como parmetro a mimesis realistae define o drama moderno a partir de uma contraposio binria e dicotmica,como se sete se limitasse a ser uma negao daquela. A insuficincia dobinarismo mimesis x anti-mmesis ntida: uma obra como a de Bertolt Brecht,que redefine tanto a referencialidade como a auto-reflexividade em termosprprios, rotulada de "semirealista" (11), um mero "meio-do-caminho," j quea fraqueza da leitura terica no consegue desvendar sua lgica interna.Costa Lima, alm da reviso histrica citada acima, tambm elabora maisconsistentemente o problema da mimesis na literatura contempornea em seuMimesis e Modernidade. O terico brasileiro a ope mimesis derepresentao"representar um Ser previamente configurado" (171)a mimesisde produo"produzir uma dimenso do Ser" (171), "Ser" aqui entendido como"a maneira como a sociedade concebe a existncia, o que ela arecortacomo opassvel da existncia" (169). Na anlise de poemas de Mallarm, Costa Limademonstra como o texto torna-se "puro trabalho das palavras, que j no fingemrepresentar o visvel, mas visualizam o no visvel" (159). As ideias de vazio ede silncio corporificam a impossibilidade de comunicao com o real. Este submetido uma lgica de aniquilamento, que faz com que qualquer tentativa doleitor de encontrar um referente externo leve-o novamente ao prprio poema, quelabirinticamente se volta sobre si mesmo e sobre o vazio que o constitui. Osentido do poema emerge, portanto, no do reconhecimento da representao, mas"pela anlise de sua produo" (170).A oposio entre produo e representaoou entre processo e produto,nos termos de Linda Hutcheon (38-47)4certamente capta uma dimenso centraldo fenmeno mimtico na modernidade, ou seja, o questionamento da preexistncia do referente. Nota-se em Mallarmbem como em Borges, tambmanalisado por Costa Lima (229-257)a nfase na meta-textualidade emdetrimento da referencialidade. Na formulao de Costa Lima, portanto,produo e representao se contradizem mutuamente. No se excluem,obviamente, j que podem conviver no mesmo texto. Mas mantm uma relaode contradio mtua na medida em que a nfase maior ou menor na produoimplica um evanescimento correspondente do aspecto representacional do texto.No entanto, seria esta oposio vlida para toda a literatura moderna? comcerteza pertinente para determinadas obras (especialmente aquelas derivadas daexperincia da vanguarda), como a de Mallarm, Borges, Beckett, e, na literaturabrasileira, como bem aponta Costa Lima, Guimares Rosa (171). Mas at queponto o carter processual, auto-reflexivo e metatextual da escrita modernaimplicaria necessariamente um abandono, mesmo relativo, da referencialidade?

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    2 6 L A T I N A M E R I C A N T H E A T R E R E V I E W o problema que passo a discutir agora em A M orta, uma obra que reescreve demaneira completamente diferente o par metatextualidade/referencialidade.

    II. A Mora: O Retorno Paradoxal do ReferenteA Mora inicia com um a quebra abrupta da iluso de realidade: sobe aopalco o Hierofante, que se dirige diretamente ao pblico e se apresenta com o "umpedao de personage m" (7). Os oxmoros preparam o terreno para o tomparadoxal de toda a obra: o espectador avisado, por uma personagem, de que

    assistir a um "banquete desagradvel" (7 ). Com ea-se a ser criado um efeito dedistanciamento, na medida em que o pblico se v diante de uma representaocom a qual no mais deve se envolver emocionalmente, mas julgar criticamente.Um efeito bem semlhante quele teorizado e praticado por Bertolt Brecht,portanto. Mas o drama de Osw ald apresenta um elemento novo: o espectador tambm informado de que ele que est sendo representado no palco: "novos retireis das cadeiras horrorizados com a vossa autpsia" (7). O efeito dedistanciamento ento criado passo a passo com uma identificao que j no ilusionista, mas crtica. A sensao provocada no espectador ("eu estou sofrendouma autpsia no palco") comea a prepar-lo para uma auto-anlise. a partirdesse encontro entre distanciamento e identificao, entre referencialidade emetatextualidade, cujo carter paradoxal tentarei demonstrar, que se constri amimesis que me parece prpria a Oswald.A primeira cena implode definitivamente a conveno da quarta parede,bastio da mim esis teatral realista: as quatro personagens so colocadas ao fundoda plateia, sentada s, enquan to no palco marionetes dublam sua falas. M ais umavez, o efeito de distanciam ento adqu ire um estatuto paradoxal: distncia, pois ailuso de realidade quebrada, m as ao m esmo tempo aproximao, na m edida emque a presena dos atores no meio do pblico passa a simbolizar que o mundodo qual ele parte que est em ques to. A quebra de iluso reforada pelapresena das marionetes (que apontam para a artificialidade do teatro enquantoconstruo de linguagem ) e pelo fato de que os atores esperam que elas executema mmica.

    Ne ste primeiro qua dro, a Enfermeira Sonm bula a nica atriz real a ocuparo palco . O s atores na plateia O Poeta, Beatriz, A Outra e OHierofanteexpressam-se "estticos, sem um gesto e em camera lenta" (13).Enumciam frases curtas, que se sucedem sem acionar o desenvolvimento denenhuma trama. N o se trata propriamente nem m esmo de um dilogo, uma vezque uma fala no decorre da outra, no se articula como reposta a nada nocomenta nenhuma ao:

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    FALL 1995 27OUTRA: Sou a imagem impassvel onde ondulam tuas cargas . . .BEATRIZ: Minha imagem frustrada.OUTRA: O silncio necessrio nossa amizade.POETA: Toda nudez termina no tero de amanhh.OUTRA: Esto batendo (14).

    O cdigo verbal assim, neste primeiro quadro, surge como uma sucesso defragmentos concisos, que o espectador deve recompor a posteriori. Ordenam-sepor uma lgica do descontnuo, que portanto desnaturaliza os enunciados, nomais apresentando-os como "decorrncia natural" dos enunciados anteriores oude alguma ao. Cada fragmento tende a ser percebido em si, de formaabsolutizada, e posteriormente questionado pelo espectador. A sintaxe que taisfragmentos compe s emergir num segundo momento. O efeito dedistanciamento comea a operar tambm a nvel do cdigo verbal.A partir da, veremos a peregrinao do poeta port trs pases imaginrios,que correspondem aos trs quadros da pea: o pas do indivduo, da gramticae da anestesia. Como bem apontam Clark e Gazolla em seu artigo sobre a obra,as personagens "simplesmente formam parte do mundo interior do poeta, no qualse manifesta o conflito" (161). O conflito se trava entre duas concepes de arte:o lirismo descompromissado e idealizador e o engajamento poltico-social. O quese est a discutir, portanto, o lugar da poesia numa sociedade de classes. preciso ressaltar, no entanto, que o conflito no apresentado de maneira didticae simplista ao espectador, mas reconstitudo por ele ativamente, em meio a umasintaxe permeada pela descontinuidade.5A fragmentaodos enunciados verbais no primeiro quadro indicializam,portanto, o estado de incomunicabilidade do pas do indivduo. Habitam, naspalavras do prprio poeta, um pas dissociado" (14). Beatriz, a musa do poeta,reconhece que "estamos fora do social" (21). A incomunicabilidade no , noentanto, simplesmente tematizada, mas transformada em elemento estruturante dotexto, j que a ausncia de comunicao no meramente comentada pelospersonagens, mas vivida, presentificada no palco. Ela a prpria lgica queordena o primeiro quadro. O caos social que se critica no portanto apenas daordem do enunciado, mas reduplica-se ao nvel da enunciao. Comea-se aqui,acreditamos, a mapear elementos de uma nova concepo de mimesis.O elemento metateatral surge com vigor em A Morta: a quebra da ilusode realidade, inciada na primeira cena, reforada por comentrios dospersonagens que indicializam a performance enquanto tal. Ao ver o poeta desistirde atender as batidas na porta, Beatriz comenta: "Tens medo que seja umpersonagem novo" (15). Na verdade, durante toda a obra, o espectador podeencontrar fragmentos que ganham dimenso metateatral e comentam a estrutura

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    28 LATIN AMERICAN THEATRE REVIEWdo texto como um todo, por exemplo quando o poeta diz: "As classespossuidoras expulsaram-me da ao. Minha subverso habitou as Torres deMarfim que se transformaram em antenas . . ." (16). Ele a comenta sua arte,mas a metfora adquire alcance suficiente para se referir ao prprio texto deOswald e concepo de literatura defendida por ele. Note-se que a imagem daarte na torre de marfim substituda pela arte-antena, ou seja, uma arte atentapara captar o real e retransmiti-lo.A dicusso sobre os rumos da arte reforada pela clara aluso intertextuala Dante. Um poeta, guiado por uma musa chamada Beatriz, peregrina por trspases imaginrios. Evidentemente, tal citao cumpre um papel no texto, quese realiza a nvel da recepo no momento em que o espectador percebe apardia: o poeta e Beatriz so retirados de toda idealizao e situados numcontexto completamente anti-herico, em meio a determinaes sociais, problemasfinanceiros, dvidas, angstias e acusaes mtuas. Beatriz suplica: "Resolveminha questo econmica antes que eu morra em plena mocidade!" (20). Sepensarmos o quo absurdo seria uma musa lrica da literatura clssica morrer porproblemas econmicos, perceberemos a radicalidade da pardia de Oswald.Alguns momentos antes, Beatriz conclamara o poeta a ter coragem de am-la"num necrotrio lavado" (17), produzindo no espectador um efeito anti-climtico.A arte assim trazida para o duro cho de uma poca decadente, os "tempossombrios" de que nos falou tantas vezes Bertolt Brecht. Contrapondo-se assimao intertexto pardicamente, Oswald refora sua oposio a uma arte idealista, jdesprovida de papel numa poca marcada pela agudeza dos conflitos sociais.O segundo quadro (o pas da gramtica) marca o incio do processo deescolha do poeta, que ter que optar entre as duas concepes de arte. Paraescolher a arte politicamente comprometida, no entanto, ter que romper com amusa lrica e consigo mesmoseu passado, seus fantasmas, seus medos. Suaindeciso simbolizada pelo prprio cenrio, como mostram Clark e Gazolla:"trata-se de uma praa para a qual convergem vrias ruas que simbolizam por umlado as vrias direes que o poeta pode tomar em sua peregrinao, e por outrolado reafirmam a noo de seu caos interior" (164). O estado interior de umapersonagem assim trazido para o prprio cenrio da pea, apresentadovisualmente, atravs de um sub-sistema sgnico no-verbal.6No pas da gramtica, o conflito interior do poeta, reduplicado no palcovisualmente, se d entre os Conservadores de Cadveres, defensores de umalinguagem arcaica, e os Cremadores, revolucionrios que prope uma novalngua. O conflito entre os mortos e os vivos assim alegorizado a partir daprpria linguagem, que alm de tratar a si mesma evidentemente aponta para algomais amplo: o embate social entre formas arcaicas que querem se perpetuar e onovo que luta pela transformao. O elemento metateatral comea a trazer

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    FALL 1995 29consigo a referencialidade a uma luta histrica concreta. Como aponta RobertAnderson, "what emerges in the ensuing debate between the Vivos and theMortos is that the Vivos present a Marxist view point. . ." (61). com efeito, naalegoria de Oswald, no se trata, por exemplo, de matar o que est velho, mas dequeimar o que est morto, uma tese marxista conhecida no sculo XX. A Mortaassim acaba por apresentar uma releitura de Marx a nvel teatral bastante prximaa, e significativamente independente daquela de Brecht.Surge no segundo quadro um outro motivo tpico de Brecht (O Julgamentode Lculus, As Medidas Tomadas) e de Oswald (O Homem e o Cavalo). Para"solucionar" o conflito entre vivos e mortos aparece o tribunal, dirigido pelafigura do juiz. Ao som da charanga e aps uma manifestao de boas-vindas,dadas pelos mortos ao juiz, trava-se o dilogo:

    CREMADOR: Conhecemos o julgamento! contra ns!JUIZ: Silncio! Julgarei segundo os cnones.VOZES: Os cnones mortos.JUIZ: Comeai a exposio do pleito. Sou todo ouvidos! Que Deuse Jesus Cristo me inspirem e me garantam o cu (34-5).Desaparece o mito da neutralidade. Qualquer cnone comprometido.Evidentemente, podemos a identificar um julgamento que a pea convida a sereduplicar a nvel de recepo. O espectador chamado a se posicionar, mesmoporque o texto apresenta a possibilidade de um julgamento diferente. Ao melhorestilo de Brecht, o juiz vem a desnaturalizar o lugar da lei, revelando-a comoconstruo comprometida com a manuteno da cominao de classe,acompanhada da stira anti-religiosa to comum em Oswald. O espectadorrecebe um convite para confiscar a posio do juiz, no mais a partir da retricados valores eternos do ser humano, mas sim das necessidades da classerevolucionria em ascenso.Uma instncia improtante da rica combinao entre os vrios sub-sistemassgnicos teatrais em A Morta ocorre no momento em que se dissocia o vesturiodo corpo de um dos atores/personagens. Uma "roupa de homem" surge enquanto

    personagem, alegorizando o "vazio" do reino dos mortos, ao mesmo tempo emque confere a esse vazio uma materialidade no palco. O sentido emerge daprpria ausncia de algum que "recheie" a roupa. O elemento semioticamenteimportante nesse momento no exatamente a roupa, mas o vazio que elaenvolve. Transforma-se assim o vazio no espao de maior informao semntica,lugar mesmo da produo do sentido durante o momento em que essa paradoxalpersonagem permanece em cena.

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    30 LATIN AMERICAN THEATRE REVIEWO conflito que se d no palco entre os grupos de personagens alegricos

    (Vivos/Mortos) prossegue no interior do poeta. Tentado por Beatriz, queacompanha o vitorioso exrcito dos mortos, e aconselhado por Horcio aabandon-la, ele acaba por optar por um mergulho na morte. Alegricamente, oelemento social surge novamente na medida em que a escolha definitiva do poetater lugar no interior do sistema putrefato e decadente, e no fora dele. Pode-secertamente ligar isso a uma estratgia militante de implodir com o velho pordentro, como far o poeta ao final do terceiro ato, ao queimar o prprio palco.Entra-se no pas da anestesia.O cenrio do terceiro quadro tem um carter futurista: inclui um aerdromoservindo de necrotrio, uma rvore da vida desfigurada em forma de cruz e umautogiro, tudo em alumnio e carvo. O comprometimento conservador docristianismo, j dado a entender verbalmente pelo juiz, simbolizado visualmentepelo prprio cenrio. A utilizao de uma mquina moderna como necrotriorefora o carter lgubre do alumnio e do carvo o aspecto de putrefao edecadncia. O desmoranamento de uma arte, de uma escrita, de uma concepode literatura/teatro, bem como de uma classe social. A cena entre pai e filho emblemtica da prpria degenerao da famlia burguesa:CRIANA {Pela vigia): Esse sujeito, alm de ter me suicidado, noquer me dar doce!PAI: Cala a boca!CRIANA: Depois diz que pai!PAI: O amante da tua me te dava doces!CRIANA: Por isso eu gostava dele . . .PAI: Cnico, bastardo, filho de uma . . . Pancadaria, urros, choros(47).

    E aqui, ressalte-se mais uma vez a conciso do teatro de Oswald ao produzirsentido. Em frases secas, curtas, toda uma ordem social que desaba.O elemento intertextual explorado a nvel de personagens, cenrio e cdigoverbal. A rvore da vida, ironicamente desgalhada e decadente, parodia edesconstri o mito cristo do paraso. Ao recontar-se a queda de Ado enquantoorigen, da propriedade privada (48), desnaturaliza-se o discurso mtico sobre acriao do mundo, apresentando-o como ligado a uma concepo determinada,histrica e mutvel. Oswald regata o carter culturalmente construdo do que eraapresentado como natural, numa pardia da Bblia que assume uma dimensoeminentemente poltica.A intertexualidade delirante desse terceiro quadro inclui o Urubu de Edgar(bvia aluso a "The Raven," de Poe), a Dama das Camlias, e saindo do terreno

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    FALL 1995 31literrio, a Senhora M inistra. O corvo do poeta romntico americano digeridoantropofagicamente e vomitado como urubu; retirado, tal como Beatriz, de todaidealizao. Deixa de ser solene anunciador do destino para ser fornecedor decertides de bitos (49). A Dama das Camlias, romanceada por Dumas, apresentada como "mulher da vida" (50), ligada ordem vigente e personificandosua decadncia. A Senhora Ministra, "socialite" ftil que procura joguinhos (49)e discursos de recepo (51) enquanto seu mundo desmorona, violentamenteironizada. O dilogo rpido e dinmico, violentamente ironizada. O dilogorpido e dinmico, que ainda inclui o Atleta Completo, o Radiopatrulha e oHierofante, transforma o palco num delrio carnavalesco que encena o crepsculode uma ordem social.A escolha final do poeta assistida pelos cadveres, quese juntam plateia.O cdigo cinsico, alm de ser usado novamente para quebrar a conveno daquarta parede, dialoga com o cdigo verbal: no comeo da pea, o pblico haviasido definido como "cadver gangrenado," tal como os prprios personagens.Assistido pelos "cadveres" intra e extra-ficcionais, o poeta vive a angstia daescolha, da impossibilidade de harmonizar o velho e o novo. talimpossibildade que faz dele um incendirio; afinal, o novo s poder surgir daqueima do velho (ou, mais propriamente, do j morto). O poeta coloca emchamas o palco, Beatriz e sua "prpria alma" (56). O Hierofante ironicamenteconvoca o pblico a "salvar vossas tradies e a vossa moral" (57), chamar osbombeiros e salvar-se da "fogueira acesa do mundo" (57). A ltima cenaimpressiona tanto pelo impacto esttico na recepo como no que se refere a suaproposta poltica. Ao final, fica a pergunta: precisamos de bombeiros? Ou demais fogo?III. A Mimesis Oswaldiana

    A partir desse estudo, podemos traar o que seria a manifestao da mimesisem A Morta. Mimesis concebida em termos semiticos, como relaosigno/referente, lembrando que o signo pode ter como referente sua prpriaexistncia enquanto signo, como frequente em Oswald. Trata-se realmente deuma ruptura com o teatro predominante na poca, fenmeno j estudado porRobert Anderson como a emergncia de um novo cdigo (65). De fato, damimesis naturalizada e ilusionista do sculo XIX no resta nada. Alm dapresena constante do elemento metateatral e dos sucessivos efeitos dedistanciamento, j exaustivamente mencionados em nosso estudo, h trs outrosaspectos importantes nessa ruptura.O primeiro deles se refere ao fato de que o signo oswaldiano essencialmente descontnuo. H trs quadros, que no decorrem um do outro,num despedaamento completo da linearidade da progresso de aes. Rompe-se

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    32 LATIN AMERICAN THEATRE REVIEWcom o realismo por uma via paralela e semelhante ao teatro-metralhadorateorizado por Brecht, no qual as cenas so disparadas sucessiva eindependentemente no rosto do espectador. Em Oswald, tal como em Brecht,"each scene exists for itse lf e no mais "for another," apresentando um curso deacontecimentos ento necessariamente "curved," ao invs de "linear" (Bentley 43).O processo de independizao de cada cena se converte tambm em elementoanti-ilusionista, j que o lugar do corte exposto, mostrado ao pblico comorecurso textual, num espetculo que se apresenta como fatias que so justapostasao espectador, convidando-o a compor uma sintaxe. Tal tarefa dificultadaoespectador tende a perceber a descontinuidade como caospela ruptura deOswald com a mimesis realista, que moldava, e em grande parte ainda molda, ohorizonte de expectativas do pblico teatral.Um outro aspecto da mimesis oswaldiana que se afasta dorealismo/naturalismo a conciso. O signo em Oswald certamente no referenciade forma verborrgica, descritivista, mas sim econmica: uma econommesis.Tal conciso se manifesta no s a nvel da linguagem verbal (frases curtas,secas, dilogo rpido), como tambm dos outros componentes da performance.Cada subsistema sgnico acrescenta informao semntica mensagem teatral;no h redundncia semitica. Os sub-sistemas se completam ou, por vezes, secontradizem, como no momento em que personagens apresentados verbalmentecomo mortos andam pelo palco e participam da ao. O espectador chamadoa perceber o jogo entre os diferentes sub-sistemas. No basta decodificar cadaum deles, mas perceber a sintaxe contraditria que compem: o efeito irnicomuitas vezes emerge da incongruncia entre eles, como no exemplo dado acima.Uma terceira faceta da mimesis em A Morta que a relao com o referente, tal como em Brecht, essencialmente analtica, e no descritiva. No gratuitaa insistente presena do tribunal em sua obra teatral. Isso implica que o referenteno simplesmente "refletido pelo texto," mas analisado, julgado, submetido auma autpsia, nas palavras do prprio Oswald. Tal trao nos leva a uma deduode que se trata de uma mimesis que, ao contrrio da realista/naturalista, essencialmente tridica. Expliquemos.A mmesis-espelho do sculo XIX apresentava o signo como decorrncianecessria, existencial do referente (mantendo com ele uma relao que sepretendia portanto indiciai). Evidentemente, qualquer texto literrio pressupetriadicidade e presena do simblico. No entanto, a mimesis pretendida eteorizada pelo realismo binria, especular, guiada pelo projeto de fazer com queo signo tenha com o referente uma relao de decorrncia necessria que prpria do ndice. O sonho realista "alterer la nature tripartitie du signe pourfaire de la notation la pur recontre d 'un objet et de son expression" (Barthes 174).Mascarar o terceiro (o interpretante que sempre media a expresso do qualquer

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    FALL 1995 33referente por qualquer signo) e tentar apresentar como indiciai uma relao que simblica, eis o projeto realista. A mimesis realista uma mediao qu e nose assume enquanto tal: a metfora da mmesis-espelho indica exatamente amediao que se quer invisve l, idntica ao referente. Exatamente o que Barthesj definira como "la collusion directe d'un referent et d'un signifiant; le signifiest expulse du signe . .. " (1 74). Por oposio mm esis-espelho, em Oswaldencontramos a mmesis-antena, um terceiro que capta o referente e retransmite-oatravs de signos. A mediao analtica assume seu carter de construosimblica. O texto no se apresenta com o a realidade, mas com o uminterpretante possvel desta.Por que no definir a m imesis oswaldiana ento com o mimesis de procuo(Costa Lima) ou mim esis de processo (Linda Hutcheon)? Oswald no constriuma mimesis essencialmente metatextual, que desnaturaliza a relao com oreferente? Sim , mas nossa hiptese que o teatro de Oswald reescreve essarelao de forma tambm completamente diferente da tradio moderna deescritores forjados a partir de uma experincia de vanguarda, e que sonormalmente tomados como exemplares da mimesis de produo/processo(Borges, Mallarm, Beckett).

    Nessa mimesis, quase um paradigma da literatura na modernidade7, achamada de ateno para o carter de construo do signo artstico oblitera areferencialidade, torna-a impossvel, aniquila-a. Vim os como em Mallarm opoema se volta insistentemente sobre seu vazio e sua impossibilidade de dizer doreal. Vemos Barthes vrias vezes definir o projeto da literatura moderna como"vider le signe e t . . . reculer infiniment son objet" (1740 . Na mimesiscontempornea, a auto-reflexividade um ataque referencialidade.Em A Morta, ao contrrio, o elemento auto-reflexivo, metateatral, no anula,no oblitera, mas presentifica o referente para oespectador. Note-se que no setrata simplesmente de uma combinao de auto-reflexividade e referencialidade,mas de uma relao mtua. A sim ples coexistncia de ambos os fenmenos nomesmo texto no seria paradoxal: encontramo-la, em graus variados, em vriosautores. O que paradoxal no teatro oswaldiano que quanto mais o signochama a ateno sobre si mesmo, mais ele traz consigo o referente: areferencialidade se nutre da metateatralidade e a refora. Em Oswald, os doisfenmenos no mantm entre si uma relao de contradio, como nas mimesisde representao (em que a referencialidade predomina sobre a auto-reflexividade)e de produo (em que o predomnio inverso ocorre). O paradoxo do teatrooswaldiano que quanto mais ele enfatiza a produo, mais ele representa.Exemplifiquemos com uma passagem de A Morta.

    No segundo quadro, temos um pas imaginrio, personagens deformados eartificializados, um cenrio vanguardista, falas descontnuas. O terico guiado

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    34 LATIN AMERICAN THEATRE REVIEWpelo binarismo mimesis x anti-mimesis se apressaria em definir a cena como"anti-mimtica." No entanto, quanto mais a cena nega a linearidade da pea bemfeita realista, quanto mais ela chama a ateno sobre sua artificialidade enquantoconstruo, quanto mais o pas da gramtica parece absurdo e catico, mais oespectador percebe que o seu mundo que est sendo comentado no palco.Como se a prpria ausncia de uma verossimilhana imediatemente identificvele assimilvel pelo referente histrico servisse, no para afastar, mas para trazercom mais nitidez este mesmo referente. Ao desnaturalizar-se o signo teatral erevel-lo enquanto conveno, revela-se tambm o carter de construo dasrelaes sociais, que surgem assim como passveis de serem transformadas.Vemos ento que em Oswald o referente retorna por uma via paradoxal. Namimesis de representao, temos o real como pressuposto naturalizado: oespectador entra no teatro com seu horizonte de expectativas j moldado para queele ali procure sua realidade espelhada. Na mimesis de produo, temos o realaniquilado, incomunicvel, obliterado (pense-se em Beckett e na impossibilidadede relacionar palavra e mundo). Baseados em nossa anlise, podemos afirmarque na mimesis paradoxal oswaldiana, o real um ponto de chegada. Vimoscomo a pea inicia destruindo qualquer possvel iluso de realidade e negandoqualquer identificao que o espectador possa querer estabelecer. Entretanto, emmeio ao caos, o real progressivamente retorna, mas agora no mais como termode identificao, e sim como objeto de estudo, de autpsia.E como se atualizaria esse retorno do real a nvel da recepo? Como oespectador se move no interior do jogo complexo dessa mimesis? J lanamosmo de alguns conceitos da semitica de Peirce e retornamos a ela para tentarreponder essa indagao. Retornamos a Peirce porque refletir sobre a recepode signos refletir sobre a produo de interpretantes8 Acreditamos que a chavepara o estudo da recepo em A Morta est na progressiva atualizao de signosincialmente percebidos como remticos. Peirce define o rema como "a signwhich, for its Interpretant, is a sign of qualitative Possiblity, that is, is understoodas representing such and such kind of possible Object. Any Rheme, perhaps, willafford some information; but it is not perceived as doing so" (2.250).9 Apercepo da infomao esttica fornecida pelo signo est, como j mostramos,incialmente bloqueada ao espectador. Movendo-se pelos fragmentos de sentidodo primeiro quadro, sob o impacto da quebra da iluso de realidade e semnenhum referente visvel no qual ancorar uma interpretao, o espectador se vdiante de signos que lhe surgem enquanto puras possibilidades. Por exemplo, areferncia do poeta sua arte enquanto "antena" evidentemente no , nos termosde Peirce, argumentalizada pela recepo no momento em que enunciada. So posterior estabelecimento do conflito lirismo x engajamento social possibilitaa interpretao. O espectador forado assim a uma reconstruo retrospectiva.

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    FALL 1995 35A mimesis paradoxal pode ento ser definida como a progressivaargumentalizao de signos inicialmente percebidos como remticos. Em grausdiferentes, talvez qualquer mimesis pressuponha esse movimento. Mas namimesis paradoxal ele surge com toda nfase, j que a o referente inicialmenteobliterado (rematizando, virtualizando, o signo) e progressivamente retorna, emmeio s prprias dobras do signo sobre si mesmo.Tambm o jogo distanciamento/aproximao no qual se involve o espectadordo texto de Oswald se articula de forma paradoxal. Ao mesmo tempo em quea obra lana mo de efeitos de distanciamento comparveis ao do teatro brectiano(a quebra da quarta parede, a insistente metateatralidade, a nfase no artifco,etc.), rearticula-se a conexo histrica e restabelece-se o vnculo com o mundodo qual faz parte o espectador. Este, ao ver-se, por exemplo, comparado aos"cadveres gangrenados" que sofrem a autpsia no palco, forado a, por assimdizer, distanciar-se de si mesmo. O progressivo distanciamento que a pea impeao espectador exatamente o elemento que o fora a perceber que dele mesmoe de seu mundo que trata a obra. Reconstri-se uma "identificao distanciada,"mais um paradoxo dessa mimesis que recusa tanto o espelhamento binrio eilusionista do drama burgus do sculo XIX como o afastamento do pblico paraum julgamento crtico promovido, por exemplo, pelo teatro de Brecht. umteatro que pede um espectador cindido em si mesmo, projetado para o interior daao dramtica mas sendo, ao mesmo tempo, chamado a julg-la e analis-la.Aqui uma leitura semitica no pode deixar de assumir um carter poltico. a paradoxalidade que analisamos que politiza o teatro de Oswald, muito mais,inclusive, que o "contedo" social das obras. Ao demonstrar a possibilidade deum teatro formalmente inovador, auto-relexivo, anti-ilusionista, mas que aomesmo tempo estabelece uma relao analtica com o referente histrico, Oswaldabre o caminho para uma literatura na qual o engajamento poltico j no sejasinonimo de verborragia e didatismo; e na qual, por outro lado, ametatextualidade no se reduza a mero hedonismo lingstico. Que a combinaodesses elementos haja sido realizada pela via do paradoxo, e no da snteseunificadora ou da moderao liberal, me parece uma vitria nada desprezvel.Chapel Hill NC

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    36 LATIN AMERICAN THEATRE REVIEWNotas:

    1. Agradeo ao CNPq (Conselho Nacional de pesquisa e Desenvolvimento Tecnolgico), doBrasil, o apoio financeiro durante o perodo de produo deste artigo.

    2. Se trata aqui, creio, de uma clarificao importante na medida em que o conce ito de m imesistem sido sistematicamente associado com o realismo, e especialmente com a noo de "cpia do real,"o que, como tento demonstrar, no corresponde nem a origem do conceito nem totalidade do seualcance terico.

    3. O carter paradoxal do fenmeno m imtico se manifesta claramente na obra de Diderot. Oartigo de Philippe Lacoue-Labarthe sobre o filsofo francs, "Diderot, le paradoxe et la mimesis,"proporciona um estudo interessante do problema. Para um estudo do pradoxo e sua relao com aproduo do sentido a partir de uma filosofia da diferena, ver Deleuze, Logique du Sens.

    4. O par conceituai de Linda Hutcheon anlogo ao de Costa Lima. A autora define m imesisde produto com o aquela em que "the reader is required to identify the products being imitated . . . andrecognize their similarity to those in empirical reality . . ." (38). A mim esis de processo se construiriaa partir da noo de "self-reflexing art," no m omento em que a literatura se volta sobre sua prpriamaterialidade enquanto linguagem (45).

    5. Para uma boa anlise do caos sgnico do primeiro ato de A M orta, veja-se Ronald Burgess,"Birth. Life. A Morta. De Andrade," especialmente 104-7, onde Burgess analisa a pea de Oswaldem funo da oposio barthesiana entre textos legveis e escriptveis.

    6. A noo de sub-sistema sgnicos aqui tomada da extensiva relao dos treze componentesdo performance teatral, tal como elaborada por Kowsan em seu artigo "Os Signos no Teatro."

    7. No se trata, obviamente de sugerir que toda a literatura moderna se construi a partir do quese tem denominado c om o mim esis de produo. Se trata de reconhecer a primazia que adquiriu, nosculo XX, o projeto de obliterao do referente e nfase na meta-textualidade, especialmente nasexperincias de vanguarda. Para uma discusso mais detalhada sobre referencialidade e auto-reflexividade na literatura moderna, ver Lus Costa Lima, Mimesis e Modernidade. Para astransformaes que sofre o problema na era ps-moderna, ver Linda Hutcheon, A Poetics ofPostmodernism.

    8. Basead o nas categorias fenom enolgicas da primeiridade, segundidade e terceiridade, Peircetambm classifica o sign o a partir de sua relao com o interpretante, nesse aspecto, o sign o podeser um rema, um d icissigno ou um argumento. O rema corresponderia primeiridade, para a puraqualidade. O dic issigno aquele que, para seu interpretante, signo de uma existncia real, enquantoo argumento o signo de uma lei (Peirce 2.250-3).

    9. Referncias aos Collected Papers so feitas indicando-se o volume e nmero do pargrafo.

    Bibliografa:Anderson, Robert. A Semiotic Approach to the Theater of Oswald deAndrade. MA Thesis. Chapel Hill: UNC, 1984.Andrade, Oswald de. Obras Completas. Teatro. Vol. viii. Rio de Janeiro:Civilizao Brasileira, 1973.Aristotle. Poetics. Trans. James Hutton. New York and London: Nortonand Company, 1982.Barthes, Roland. Le Bruissement de la Langue. Paris: Seuil, 1984.

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    FALL 1995 37Bentley, Eric. The Brecht Com mentaries. New York: Grove, 1987.Burgess, Ronald. "Birth. Life. A Morta. De Andrade." Luso-BrazilianReview 22 (1985): 103-10.Clark, F. e Gazolla, A. "A Morta, de Oswald de Andrade: Teatro deSntese." Atas do XVIII Congresso Internacional de Literatura Ibero-Americana. Rio de Janeiro: n.p., 1978. 157-68.Deleuze, Giles. Logique du Sens. Paris: Minuit, 1969.Hutcheon, Linda. Narcissistic Narrative: The Metaficcional Paradox.Waterloo: Wilfried Laurier University, 1980.. A Poetics of Postmodernism. New York and London: Routledge,

    1988.Kowsan, Tadeuz. "Os Signos no TeatroIntroduo Semiologia da Artedo Espetculo." Semiologia do Teatro. Ed. J. Guinsburg, T. CoelhoNetto e R. Chaves Cardoso. So Paulo: Perspectiva, 1978. 93-123 .Krysinski, Wladimir. "La Manipulacin Referencial en el Drama Moderno."Gestos: Teora y Prctica del Teatro Hispn ico 4 (1989): 9-31.Lacoue-Labarthe, Phillipe. "Diderot, le Paradoxe et la Mimesis." Poetique11 (1980): 267 -81.Lima, Luiz Costa. M imesis e M odernidade. Rio de Janeiro: Graal, 1980.Magaldi, Sbato. Panoram a do Teatro Brasileiro. So Paulo: Difuso Europeiado Livro, 1962.Peirce, Charles S. The Collected Papers of Charles Sanders Peirce. Vol.ii. Ed. Charles Hartshorne and Paul W eiss. Cambridge: HarvardUniversity, 1931.Plato. The R epublic. Trans. Benjamin Jowett. The Portable Plato. Ed. ScottBuchanan. New York: Viking, 1977.Todorov, Tzvetan. Theories of the Symbol. Trans. Catherine Porter.Ithaca: Cornell University, 1982.