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Aventuras do Imaginário Aventuras do Imaginário 1 F. A. Pereira

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Aventuras do Imaginário

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1 F. A. Pereira

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Aventuras do Imaginário Contos e Minicontos Escrito entre 1987 e 2011

Rio de Janeiro – Brasil

Capa Óleo na tela de F. A. Pereira

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Dedicadoa

Esposa, Lenita Gonçalves PereiraFilhos, Wagner e Otávio Emanuel

Nora, Ana Quirino

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Introdução

De agora em diante estaremos só nós dois.Eu por traz do livro, e você que começa a folheá-lo com a

curiosidade de conhecer minhas experiências, meus segredos e minhas imaginações.

Confesso que relutei muito em colocar tudo no papel, mas de que valeria toda uma existência se não a dividisse com você, leitor?

Meu objetivo maior é que, no final da sua leitura, eu tenha conseguido não só distraí-lo, mas também mostrar em algum

desses contos como o ser humano usa a dignidade para conseguir seus intentos ou simplesmente a ignora.

Agora sinta-se à vontade e saiba o que esse contador de histórias e estórias tem a lhe dizer.

Boa leitura

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Agradecimento

Ao meu filho Otávio Emanuel por se dedicar pacientemente em revisar os textos

Pedido

“Senhor, por favor, cuida bem da pessoa que está lendo esta mensagem. Derrame seu amor, sua luz e sua ternura sobre ela... Lembra-lhe o benefício do perdão. Ajude-a a deixar fluir o amor

que há dentro dela para que a alegria de viver e a fé sempre morem em seu coração, pois ela é minha irmã e amiga nesta

jornada na Terra.”

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Os ladrões

Em pleno século 22, a humanidade vive uma época extremamente conturbada e, em que tudo está cada vez mais escasso. Falta trabalho e a saúde, cada vez mais, deixa a desejar. Sem contar a comida que está, a cada hora, mais cara e difícil de ser encontrada, razão pela qual todo e qualquer alimento é guardado a sete chaves e protegido a qualquer custo. Complementado tudo, e mais grave é sem dúvida a falta de moradia digna, que atinge as populações carentes. Com isso grandes aglomerações aparecem pela cidade e se existe uma comunidade que cresce assustadoramente, dia após dia, essa é com certeza a do Sovaco Fedorento. Por ser um local seguro, de todos os lugares migram os novos habitantes em busca de melhores condições de sobrevivência. Sua densidade demográfica começava a incomodar até mesmo aos moradores do local e era justamente nessa turbulenta comunidade que vivia o casal Roy e Dora. Dois marginais irrecuperáveis da mais alta periculosidade, os piores ladrões da atualidade. Não havia uma só casa pelas adjacências que não tivesse sido visitada por eles. Até mesmo a delegacia de polícia, com todo aparato tecnológico de vigilância, não escapou as suas investidas e por isso é claro que suas cabeças estavam a prêmio por toda a redondeza. Em quase todos os locais podiam ser visto seus retratos falados afixados nas paredes bem como faixas oferecendo premio pela captura desses dois meliantes, algumas até, contrariando a ética e a justiça, mencionavam como válido até mesmo se eles aparecessem mortos.Muito espertos, e quando resolviam atuar sempre conseguiam escapar, aumentando a cada dia que passava ainda mais a fama dos dois. Durante o dia, invadiam e se escondiam em qualquer barraco no Sovaco Fedorento levando quase sempre o terror ao seu morador. A maioria das pessoas não os via nesses momentos. Era durante a noite que saíam para suas certeiras investidas criminosas,

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mas verdade seja dita – jamais assaltaram alguma residência cujos ocupantes não tivessem o que comer. A fama que alcançaram era tanta que passaram a ser referência para os mais jovens, não só daquela comunidade como de outras. Qualquer menor que perguntado o que seria ao crescer, logo dizia: “quero ser igual a Roy e Dora”.E não ficava só nisso, várias eram as histórias que contavam envolvendo os dois. Sem contar os boatos de atuações múltiplas em uma só noite. Para o pessoal da redondeza era sabido que não tinha porta ou janela que eles não conseguissem vencer, e para seus perseguidores cada dia mais difícil ficava capturá-los.Suas vidas ganharam tanta evidência que até é cogitado no meio artístico fazer um filme baseado na história dos dois. Na madrugada deste sábado, quando passavam por aquela rua onde faziam seu tradicional caminho de volta para casa, Roy comentou com sua amiga:— Olha que interessante Dora!— Olhar o que meu querido?— Tenho passado sempre por aqui e até hoje não havia reparado nessa linda mansão.— É mesmo? Não acredito!— É verdade, acho que é porque quando voltamos estamos sempre fugindo e cansados.— Não creio que seja por isso, pois eu sempre a vi, só não entrei ainda por achar muito arriscado. — Não tem nada de arriscado. Pelo menos não vejo assim.— Mas pode acreditar, essa é a sensação que sinto e eu costumo acatar minhas intuições. Por isso estou livre e viva até hoje.— Pode até ser que você tenha razão, mas hoje vou entrar. Não deixarei passar essa oportunidade.— Você deve estar ficando louco... Olha só para o tamanho dela! Acredita mesmo que podemos entrar e sair ilesos daí de dentro?

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— Mas é claro, repare bem agora, por exemplo: está me parecendo que não há ninguém em casa, o que você acha?— Não tenho tanta certeza como você. Olha bem, daqui não dá para ver direito lá dentro, e a claridade indica que tem uma lâmpada acesa. É sinal que pode muito bem ter alguém aí, sem contar essas câmeras espalhadas por todo o local.— Dora, toda vez que proponho um ganho extra você dá para trás. Precisa ser mais confiante e ambiciosa.— Não é que eu não seja confiante ou ambiciosa, eu sou apenas precavida... e essa casa me parece muito perigosa — Acontece que assim estaremos sempre da mesma forma. Um dia agasalhado e bem alimentado outro, sem roupa, com fome e com frio. – Lembrou Roy.— Concordo, embora prefira algumas vezes sentir frio e fome a ter a cabeça a prêmio. É preciso que tenhamos certeza absoluta de que a casa está vazia e segura para que possamos agir com tranquilidade e sem risco. – Defendeu-se Dora.— Presta atenção amiga! O silêncio é total e já tem alguns minutos que não vejo nenhum movimento no interior. É agora ou nunca, vamos pular o muro e entrar na casa.— Não tem jeito, você é mesmo insistente e pelo jeito não vai desistir.— Pode estar certo disso. Não vou desistir.— Está bem, mas lembre-se que vou sob protestos.Roy sabia muito bem como fazer valer sua vontade, por isso não perdeu tempo em justificar sua ação. — Hoje é o dia que nós vamos tirar a barriga da miséria. Faremos uma boa refeição aqui mesmo no local.— Vamos correr todo esse risco para fazer somente uma refeição? – Reclamou Dora.— É claro que não. Depois de comermos, levaremos o que pudermos carregar, combinado?

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— Agora sim melhorou. Mas veja, teremos que tomar distância para pular, pois esse muro aqui é bem alto.Mostrando ser possuidor de grande elasticidade, em instantes, Roy estava em cima do muro e desafiava sua comparsa.— Deixa de conversa. Ação minha garota! Venha! Daqui de cima dá para ver que realmente a casa está vazia.De cima do muro Dora fez a sua constatação.— Roy, a coisa complicou, as portas são todas protegidas.— E desde quando porta protegida ou não, foi problema para nós. Deixa de conversa e vamos. Realmente a porta não foi problema para eles. Logo os dois ladrões, pensando que o caminho estava livre, entraram na casa.— Roy, não se esqueça, que todo cuidado é pouco.— Vamos rápido Dora e deixa de tanta conversa. Já estavam dentro da mansão quando descobriram.— Olha ali no quarto, Roy. Eles estão em casa.— O que tem de mais? Vamos fazer o que sabemos.— Estou ficando preocupada. Não gosto dessa adrenalina. – Dora não parava de reclamar.Roy que sempre foi o mais arrojado, agora procurava acalmar a amiga e incentivava-a a continuar.— Estão dormindo um sono pesado. Vai ser mais fácil do que pensei.— Olha pra frente e tome muito cuidado. – Recomendava Dora.— Não tem perigo. Vamos agir rápido.— Mesmo assim muito cuidado. Não devemos acordar o gato, ele pode fazer barulho e nos comprometer.Os dois chegaram à parte da casa que a princípio seria a primeira parada. Estavam no centro da cozinha e o cheiro da comida ainda pairava no ar, aumentando ainda mais o apetite deles. — Veja Roy, como você disse vamos tirar a barriga da miséria.— Estou vendo Dora, tem comida para um batalhão.

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— Vamos comer que estou louca de fome. Depois fazemos o resto do serviço.Os dois não pensaram duas vezes e começaram a comer. O tempo passou e com a visão acostumada ao ambiente puderam ver melhor todo o local. — O local tem ratoeira armada pra todo lado, Dora. Parece que não somos os únicos a vir comer por aqui. Temos que redobrar a atenção. — Eu avisei que não seria tão fácil como parecia. Agora você está concordando comigo. Da próxima vez vê se você da mais crédito as minhas intuições.— Agora não tem mais jeito. Vamos rápido porque temos muito que fazer. Terminaram de comer e partiram para o assalto. Neste momento devido à escuridão Roy esbarrou num copo na beira da pia, derrubando-o. Com o susto Dora sem querer tropeçou em uma das ratoeiras que ao desarmar prendeu em seu pé. O barulho do copo quebrado e da ratoeira desarmada ecoou pela casa fazendo com que gato e os donos da casa acordassem.— Roberto, acorda! Anda! – Madalena sacudia seu marido.— Hum? O que você quer, mulher? — Escutei um barulho e parece ter vindo da cozinha. Tem alguém por lá. Será que alguém está tentando roubar a nossa comida.Os espertos ladrões escutaram os donos da casa conversando e resolveram fugir para livrar a pele como sempre faziam. — Vamos sair fora, Dora. O pessoal acordou.— Já ouvi. Vai indo que eu vou em seguida.— Anda rápido, menina. Está esperando o que?— Estou tentando, mas não consigo, Roy. Fiquei presa por causa dessa ratoeira e também acho que estou com a perna quebrada. Fuja você, enquanto há tempo.Devido à rápida intervenção dos moradores, nada mais foi feito

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pelos dois ladrõezinhos. Tiveram um trágico fim.De uma só bocada Roy foi abatido pelo Rajado, gato de estimação da casa, e Dora que estava presa à ratoeira foi espancada com a tradicional vassoura pelos moradores, até a morte. Desta vez à teimosia do amigo custou-lhes as vidas. De nada adiantando sua intuição.Demonstrando total falta de arrependimento aqueles moradores penduraram os corpos dos marginais na rua como a servir de aviso para algum outro roedor aventureiro que tivesse a infeliz ideia de invadir aquela mansão.A notícia correu como rastro de pólvora acesa, proporcionando alívio e alegria por toda a vizinhança, entretanto, lá na comunidade do Sovaco Fedorento fez-se luto de três dias e uma faixa pendurada na entrada com a inscrição “Perdemos os Grandes Roy e Dora”, homenageava aos dois.

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A Grande Surpresa

Como tudo na vida vira uma rotina, a de Antenor Albuquerque não é diferente. Todos os dias acorda as cinco horas da manhã toma seu banho e ainda debaixo do chuveiro faz a barba. Depois de se enxugar, escova os dentes e espalha desodorante por quase todo corpo. Sempre nessa ordem, diz para si, que assim não esquece de nada. Ainda de cueca e camiseta, sim gosta de usar camiseta por baixo da sua camisa social, senta-se a mesa para tomar seu café da manhã sempre reforçado, pois só irá almoçar lá pelas duas da tarde.Logo após seu desejum acaba de se arrumar.Hoje veste uma calça cinza e camisa social amarela. É sexta-feira. Costuma usar uma cor de camisa para cada dia da semana e na mesma ordem: - azul nas segundas, verde nas terças, amarelo as quartas, rosa nas quintas e branco as sextas. Como bom supersticioso garante que é para afastar o que estiver para acontecer de ruim. Entretanto, hoje não se dá conta de que pela primeira vez troca a ordem das camisas, vestiu a amarela, quando deveria estar usando a branca. Os sapatos, sempre marrons, e o blazer combinando com a calça.Terminado todo o ritual pega seu carro e com ele vai até ao estacionamento próximo do Metrô, onde embarca religiosamente no terceiro vagão e desce na estação da Carioca. Toma um cafezinho na cafeteria do Edifício Central e as sete e cinquenta da manhã, religiosamente, entra na portaria do prédio onde trabalha.Pronto. Outra rotina a partir de agora se faz presente em sua vida. Seu escritório fica no sexto andar mas não usa o elevador. Subir as escada é um hábito que pratica há mais de quinze anos, mas não sobe sem antes pegar suas correspondências e cumprimentar ao

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porteiro e todos os seis ascensoristas, um a um. No segundo andar passa pela recepção do curso de informática que ali funciona e admira a linda recepcionista recém contratada sem deixar é lógico de também cumprimentá-la. Enfim, até chegar ao seu escritório sempre passa pelas salas dos amigos que ali dividem com ele há anos, aquele espaço. Costuma dizer, sem medo de errar, que conhece cada pedacinho e cada fresta que ali existe. Ritual completado, lá esta ele sentado em sua confortável cadeira, prontinho para começar a rotina trabalhista.Como em todos os dias retira do bolso seu velho relógio Patek Philippe e o consulta: São precisamente nove horas da manhã.Começa a trabalhar, porém, não pode deixar de lembrar. Nesta sexta-feira notara que as pessoas que o conhecem cumprimentaram-no de forma diferente do costume: - o zelador do seu edifício se referiu ao dia como se algo novo fosse acontecer, detalhe - ele era um pessimista nato; por sua vez, o vendedor de bilhete no metrô, um homem sempre sisudo e de poucas falas disse: - hoje o dia promete seu Antenor, olha só, lhe chamando atenção para uma rapariga exótica que acabara de passar; o proprietário da cafeteria mandou essa: - então Antenor, está preparado para o dia de hoje? Por que ele deveria estar preparado? No sinal o guarda de trânsito alertou: - cuidado ao atravessar seu Antenor espere o sinal fechar senão pode não ver mais a rua. Também não entendeu. Sempre esperou para passar ao outro lado da rua; - O porteiro do prédio em que trabalha, sempre sorridente, também se referiu ao dia de forma não muito positiva. Muito estranho! Um dos ascensoristas manifestou-se da seguinte forma: - hoje estou pressentindo que o dia não vai ser só de sobe e desce e por incrível que pareça seu colega do elevador ao lado ao escutar tal comentário, também concordou; a recepcionista reclamou: - não vejo a hora de ir embora desse prédio hoje isso aqui está sufocante, e o dia mal começou. E nas salas por onde passou

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então? Todos de alguma forma ou por algum motivo lhe pareceram diferentes. Acabou por concluir que o dia estava estranho, muito estranho mesmo. Seria por estar vestindo amarelo? Tantas foram as mudanças de comportamento que Antenor pensa no pior, mas porque pensar no pior? Com a mente borbulhando resolve entregar-se ao trabalho para esquecer tudo aquilo e de tal forma se entrega, que até esquece da hora de almoçar. Ao se dar conta descobre que o dia tinha terminado e já está sim é na hora de voltar para casa.Novamente outra etapa de rotina diária. Fechar seu escritório, descer pelas escadas ir de sala em sala se despedir dos amigos, pois agora só os veriam na segunda-feira.Assim faz.Desce todos os andares e qual não é a sua surpresa quando de cima do último lance das escadas vê aquela multidão. Algumas daquelas pessoas ele conhece bem.Estão todas aglomeradas a sua frente impedindo que termine de descer os degraus, e pelo que tudo indica aquela multidão se estende até a saída principal do prédio. Mas o que será que está acontecendo por aqui? - Se pergunta Agenor.Avista mais à frente, Noêmia, a amiga de porta escritório, e gesticula perguntando.― O que está acontecendo?― Estamos presos! - Respondeu.― Como estamos preso? - Grita já nervoso.De onde Antenor estava não dava para ver nada. Resolve então se certificar de perto o que acontecia, e de desculpa em desculpa e com licença daqui e com licença dali, vai se chegando até onde esta Noêmia.O aperto é total, mal pode respirar. Dali também não vê nada. Nem os altos prédios que sempre estavam a frente do seu, consegue ver. Tenta ir mais adiante e ouve o grito lá da frente:

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― Não empurra se não podemos cair no nada.Cair no nada. Que diabos está acontecendo aqui? - Pensa.Se aperta mais um pouco e segue na direção da porta de saída. Para. Se ajeita na ponta dos pés e mesmo assim continua a não ver nada.Mesmo com as reclamações e pedidos de cuidado, força mais um pouco e consegue chegar próximo a saída. É quando para seu espanto e surpresa entende o porque da amiga ter lhe dito que estavam todos presos. Não via nada diante do prédio, mas nada mesmo. Vazio total.De certa forma seus amigos haviam previsto aquilo. Era realmente um dia diferente de todos os outros. Afinal, simplesmente não tinha mais para onde ir, pois toda a rua sumira.

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Perfume Indesejável

Dionísio é motorista de táxi há muitos anos e apesar de sua mulher achar desnecessário e ser contra, ele ainda trabalha sábados, domingos e feriados, todos sem exceção, não atendendo aos seus pedidos para descansar e se distrair com a família. Entretanto após esta experiência vivida decidiu atender a esposa. Naquele sábado de verão Dionísio saiu para trabalhar às dezoito horas, um pouco mais tarde que o de costume. Ainda bem próximo de casa – para ser mais exato, na Praça Jauru –, foi logo parado. Muito se estranhou com aquele passageiro ali por Jacarepaguá, porque, normalmente, o pessoal do local sempre pedia o serviço dos táxis existente na área por telefone. “Mas já que apareceu um perdido no caminho, vamos atendê-lo” – pensou.Seu primeiro cliente era de estatura mediana, moreno, magro, de olhos negros penetrantes e frios. O cabelo era preto e totalmente liso; vestia calça, cinto e sapato branco com uma camisa tipo social de seda, estampada nas cores azul e amarelo dourado, de fundo também branco.Ele abriu a porta dianteira, e com um lenço na mão, fez menção de limpar o banco. Não deu continuidade ao ato, pois viu que o carro e os assentos estavam bem cuidados. Sentou-se elogiando a conservação do táxi, mas não se identificou. Em seguida pediu que o levasse até Nilópolis, na Baixada Fluminense. Usava um perfume forte que lembrava o cheiro peculiar de flores que enfeitam os caixões mortuários. Alguma coisa dizia a Dionísio que deveria tomar o máximo de cuidado com aquele passageiro. – uma espécie de sexto sentido – Na tentativa de começar uma conversa e tornar aquela viagem melhor, mas sem saber o que dizer, a clássica pergunta foi sua salvação:— Por onde gostaria de ir, senhor?

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O homem olhou-o com um olhar frio e distante e falou secamente.— Podemos ir por dentro mesmo. Assim aproveito e dou uma passada por uns lugares que não vejo há muito tempo, e no caminho revejo antigos amigos.Dito isso, voltou a ficar calado. Quando estavam passando em frente ao cemitério de Ricardo de Albuquerque, pediu que fizesse o contorno na praça alegando que queria comprar umas flores. Assim foi feito e Dionísio parou quase em frente à floricultura existente na rua ao lado do cemitério. O passageiro, que até aquele momento ainda não tinha se identificado, desceu do carro e o chamou para ir junto. Caminharam até a loja. Dentro desta, seu perfume que já era forte se misturou ao cheiro das flores que lá estavam e ficou mais acentuado. A forma como tratou a dona da floricultura pareceu ser íntima, entretanto Dionísio não pode deixar de notar a surpresa demonstrada por ela ao vê-lo. Comprou duas dúzias de rosas nas cores brancas, vermelhas, rosas e amarelas. Misturando-as, juntou a elas alguns ramos verdes e um pouco de mato chamado chuva de prata. Pediu para a senhora atrás do balcão, que continuava paralisada e pálida, para fazer um arranjo bem bonito. Em seguida, bateu nas costas de Dionísio e falou:— Enquanto ela prepara meu arranjo, vamos até aqui, no bar ao lado, tomar uma cerveja.— Posso até acompanhá-lo, mas eu não bebo, ainda mais quando estou trabalhando. – Respondeu-lhe Dionísio.— Então vai tomar um guaraná. – Insistiu o misterioso passageiro. — Tudo bem, vou aceitar o refrigerante. – Não tendo mais alternativas, concordou.O bar era amplo, com umas oito mesas espalhadas; tinha duas portas para entrar. Quando chegaram ao local, reparou que ele examinou todo o ambiente. Ficaram em pé e encostados no balcão: Dionísio de costas para a rua e o salão, e ele ao contrário, olhando o salão e a rua. Assim que entraram, ele pediu um conhaque, uma

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cerveja e o guaraná. Antes mesmo de tomar a cerveja, bebeu o conhaque num só gole. Dionísio percebeu que a pessoa que os servia não estava à vontade com a presença deles. Ao final não o deixou pagar o refrigerante, e antes mesmo que Dionísio terminasse de beber seu refrigerante, tomou mais dois copos de conhaque. Pensou: “esse cara vai ficar bêbado e vou ter problema com ele”. Voltaram até a floricultura e apanharam o arranjo de flores que já estava pronto. O sujeito pagou e falou para a mulher:— Amanhã vou mandar três bonecos para vocês enfeitarem, mas não precisa caprichar. – Sua voz tinha mudado completamente de tonalidade quando proferiu aquela frase.A mulher, que continuava pálida, instintivamente se benzeu. Ele riu e saiu puxando Dionísio pelo braço. Entraram no carro e atravessaram mais adiante para o outro lado da linha férrea. Assim que o fez, um pouco mais à frente na direção de Anchieta, ele novamente mandou parar na porta de um bar mercadinho. Outra vez pediu para acompanhá-lo. Mandou descer uma cachaça, uma cerveja e um refrigerante. Dionísio presenciou a mesma cena de antes: o dono do mercadinho estava lívido e quase não conseguia pronunciar uma palavra. Não dava para entender o porquê daquelas reações. O misterioso passageiro pediu um cigarro e Dionísio automaticamente disse que não fumava. Aí o homem virou-se para ele e, com ironia, perguntou:— Você não bebe... Não fuma... Será que também não trepa? Não respondeu. Fez um ar de sorriso, mas não estava se sentindo a vontade com aquele sujeito. Ele pediu outra cachaça e mais uma cerveja, bebendo tudo quase que de uma só vez. Comprou além de um maço de cigarros, outras coisas no mercadinho e pediu para embrulhar. Pagou a conta e foram embora. Não se sabe se já era efeito da bebida ou o quê. O fato é, que o homem resolveu falar:— Preciso encontrar minha irmã. Estou preocupado com ela, essas flores são dela e as compras para meu irmão, que está sem

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trabalhar. – Falou de uma forma como que há justificar seu comportamento. — Esse seu gesto é muito bonito, mas porque está preocupado com sua irmã? Ela está doente?— Não. Ela foi e agredida pelo marido. Também quero saber por que aqueles safados ajudaram a ele a espancá-la. Isso não vai ficar barato.Dionísio continuou calado. O perfume daquele homem, agora mais acentuado, continuava impregnando tudo à volta e sua voz soava assustadora.Chegaram em Nilópolis e ele começou a orientar no caminho a ser seguido. Vira pra cá, vai em frente, vira pra lá. De repente falou:— Pode estacionar ali na frente daquela birosca.Desceram mais uma vez; eram dez horas da noite. Tinha uma rapaziada sentada na mureta da varanda do barzinho, bebendo. Quando o viram, baixaram a cabeça e pararam de conversar. Silêncio total e inquietante. Estavam todos assustados. Parecia que confrontavam um fantasma, igual à mulher da floricultura e ao dono do mercadinho.Ele lançou a pergunta ao ar, para todo mundo ouvir.— Minha irmã, alguém sabe onde ela está?Alguém respondeu que não sabia. Ele continuou:— Vocês estão é me escondendo, mas não tem problema. Vou encontrá-la. E os safados que bateram nela, sabe onde eles estão? – Perguntou, se dirigindo agora àquele que tinha lhe respondido anteriormente.— Dizem que estão lá para o lado de São João.— Hoje eu pego todos eles. – Afirmou enfurecido.Dizendo isso foi em direção ao banheiro do bar, mas antes pediu outro conhaque, uma cerveja e perguntou a Dionísio se ele ia tomar outro refrigerante, que para não contrariá-lo aceitou. Foi quando um senhor que estava no meio deles chegou perto dele e

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falou tão baixo que parecia até que não queria que o próprio Dionísio escutasse.— Pelo jeito o senhor não sabe quem é esse homem, né?— Não, nunca o vi mais gordo. – Respondeu normalmente.— Imaginei, mas fala baixo, amigo. Ele foi conhecido aqui na favela como Índio, o pior dos matadores que existiu na Baixada. Era muito perigoso.Continuava falando tão baixo que quase não dava para ser ouvido.— Por que o senhor diz que ele existiu? – Dionísio quis saber.— Porque correu a notícia que ele havia morrido, mas parece que foi outro o enterrado. O caixão dele estava fechado e não foi aberto.— Sabe o por que de não ter sido aberto?— Isso é um mistério até hoje. Hum! Esse cheiro é igual ao do dia do enterro.— Então você está dizendo ele não morreu e está de volta? – Indaguei, rindo.— Não sei não, mas é o que está parecendo. Que está estranho, está.— Vai querer me convencer que estou conduzindo uma assombração no meu táxi?— Você é quem está falando. Eu não disse nada e como a família dele toda mora aqui na comunidade, pode ser que estejamos enganados. Pelo jeito, está procurando o marido da irmã, que junto com mais dois quase a mataram de tanta pancada. Com certeza vai empacotá-los quando os encontrar. O senhor precisa arrumar um jeito de pular fora dessa.Começava a fazer sentido o aviso que Índio deixara na floricultura, mas agora não dava mais para desvencilhar-se dele. O relógio estava marcando uma quantia elevada e Dionísio não ia perder o valor daquela corrida por nada. A final, o dinheiro com que ele pagou suas contas, – na floricultura, no bar e no armazém – era

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verdadeiro, e não tinha nada do outro mundo.Índio saiu do banheiro bebeu a cerveja, dois conhaques e pagou a conta. Veio em direção a Dionísio, que encostado no carro, mal podia acreditar que um homem pudesse beber tanto e ainda continuasse andando sem cambalear, não aparentando qualquer sinal de embriaguez.Índio pegou as flores e as compras no carro, e de novo, ao sair andando, o chamou:— Vem comigo.— Espera um pouco que eu vou fechar o carro. – Falou preocupado.— Pode deixar essa merda aberta aí mesmo. Todo mundo já sabe que eu voltei e que você está comigo, ninguém vai mexer nele.Lá foi ele obrigado novamente a segui-lo. Desta vez entraram ainda mais na favela. As pessoas, assim que os avistavam, fugiam para dentro de suas casas procurando os evitar. Pode ser até que ele estava influenciado pelo que tinha ouvido e presenciado até ali, mas essa era a impressão que Dionísio tinha. Parou na frente da casa do irmão. Olhou para todos os lados. A rua estava deserta. Entrou, e lá de dentro gritou:— Entra aí, piloto.Dionísio entrou e viu ele bebendo mais uma dose de cachaça. Melhor dizendo, bebeu um copo cheio. O irmão também parecia estar vendo assombração. Quando acabou de beber, perguntou pela irmã.Muito nervoso, o rapaz disse que não sabia onde ela estava. Aí escutou Índio avisando, alto e em bom som:— Zeca, não adianta ela se esconder para proteger o marido. Vou matá-lo junto com os dois safados assim que os encontrar. Você também não devia acobertá-los. Tenho de ir. Essas compras são para você e entrega essas flores para Gilda, eu sei que você sabe onde ela está.

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Após esse mal estar, o sujeito dirigiu-se ao Dionísio:— Vamos embora, piloto.Voltaram tudo a pé novamente até o táxi e as pessoas agiram da mesma forma. Era notório: – por onde eles passavam os moradores do lugar olhavam às escondidas pelas frestas das janelas e pelas portas entreabertas. Parecia que ninguém tinha coragem de cruzar o caminho do tal Índio. Quando chegaram ao carro, não tinha uma viva alma na rua e nem no bar. Dionísio estava impressionado e com medo; nesse momento ele já não sabia se o que sentia era por ser o cara um matador profissional ou por ser uma possível assombração. Entraram no veículo e Dionísio escutou o que não queria:— Vamos a São João de Meriti.— Daqui eu não sei como ir para lá.— Isso não é problema, eu ensino.Dionísio realmente não conhecia nada por ali e o tal do Índio passou a orientá-lo qual caminho seguir. Sem mais nem menos, de repente convidou-o para pegar umas mulheres e ir para um motel fazer uma noitada. Recusou. Ele agora rindo, mas com uma voz bem diferente. Aliás, bem diferente da que Dionísio já estava acostumado a ouvir. Afirmou:— É, parece que você também não transa.Como queria se livrar dele o mais rápido possível, nem deu muita atenção ao que acabava de escutar e continuou dirigindo. Mas como é que ele iria fazer? – Pensava. À medida que o caminho ia sendo percorrido, o local começou a parecer-lhe familiar, pois tinha trabalhado por ali como vendedor. Aí Dionísio falou:— Aqui eu já conheço. Logo ali é a estação de São João. Se atravessarmos a cancela em frente, saímos na Pavuna. Se formos para a direita, na próxima cancela, volto para Ricardo. Certo? — Ótimo. Já que você não quer curtir a noite e não vai mais se perder, pare o carro que aqui eu fico.

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Dionísio parou na esquina da encruzilhada, da rua com a linha férrea. O sujeito lhe deu uma nota de cem reais para pagar sessenta e três, e desceu. Quando ele virou para dar o troco, a porta continuava entreaberta e o misterioso passageiro caminhava no meio da encruzilhada.Era exatamente meia noite.Como fumaça Dionísio viu seu passageiro sumir na escuridão. Olhou rapidamente para todos os lados e nada, o local estava deserto e muito escuro. Assustado, ainda pode ouvir aquela mesma voz dizer:— A vida é curta. Beber, fumar e transar faz parte dela. Aproveite. Nada mais ouviu, além de uma risada sinistra, mas aquele perfume de flores ainda pairava no ar, mais forte do que nunca.

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Insatisfação geral

Amanhecera. José um renomado escritor acordara inspirado, mas não muito disposto a escrever. Porém tinha que adiantar ao máximo o seu texto, pois aquele seria o último fim de semana que passaria escrevendo na fazenda. O final do livro pensava fazê-lo dentro do próprio museu em que trabalhava, palco onde praticamente desenrola toda sua história.O dia estava muito bonito, desses, que não dá para ninguém botar defeito, mesmo assim, encaminhou-se preguiçosamente em direção a varanda resmungando, sem sequer imaginar que a reclamação era também o tema do dia entre os seus pertences. Uma cadeira de espaldar alto, a mesa de jacarandá com tampo de vidro, um notebook, uma impressora, as folhas de papel, um grampeador, o velho telefone, um cachimbo inglês, um isqueiro, o pacote de fumo e um cinzeiro de Pau Brasil, peças integrantes daquela comprida e ampla varanda, comentavam suas mazelas, cada um querendo mostrar que o seu sofrimento era maior que o do outro. Sem, contudo encontrarem um bom termo para a situação. — Pessoal, acabou a moleza, o homem está vindo para cá. – Avisou o telefone.— Xi! Estou pressentindo que hoje terei que imprimir muito. – Resmungou a Impressora.— Espero que se mantenha calma e não desregule. Estou cansado de ficar engastalhado em você. Sempre que isso acontece saio todo amassado, rasgado e vou parar no lixo. – Lembrou o papel.— Pois eu vou adorar se isso acontecer. Só assim não perco meus dentes. – Desejou o grampeador. — Cachimbão meu velho companheiro de guerra, se prepara também; já, já você vai levar fumo. – Fez questão de lembrar o notebook.

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— Não gosto nem de lembrar. Toda vez que ele me abre, perco parte dos meus cabelos. O jeito é rezar para que hoje ele tenha esquecido o fósforo, só assim não pegamos fogo. – Resmungou o pacote defumo.— Melhor mesmo é que ele pegue o telefone e não pare de falar. – Torceu o cachimbo.— Também acho. Assim ele não me bate desesperadamente. – Concordou o notebook e também reclamando. – Ainda estou todo dolorido da sessão de ontem.— Vocês são muito engraçados. Esquecem que se isso acontecer eu é que sou obrigado a sentir aquele mau hálito, que mais parece o bafo do diabo. Tomara que ele comece logo a fumar e a escrever, assim ele não me agarra com aquela mão fedida e eu continuo cheiroso. – Disse o telefone.— Agora sim, alguém disse algo que prestasse. O bom mesmo é que ele fume. Dessa forma, ao invés de sentar em mim ele vai andar de um lado para o outro nesta longa varanda e quando cansar vai se debruçar no parapeito me deixando livre por mais tempo. – Falou a velha cadeira. — Egoístas, só pensam em vocês. Esquecem que ele ao me usar, respiro fumaça, queima meu corpo, deixa sarro na minha boca e me morde o tempo todo. – Reclamou o cachimbo.— Sofredor sou eu. Não se esqueça, nobre cachimbo, que a todo instante recebo seu golfado de cinzas e o restante de suas brasas por todo meu corpo, deixando marcas irreparáveis. – Afirmou o cinzeiro. — E eu, o que digo? Suporto o peso de todos vocês, estou fosco, com algumas lascas nas bordas, continuo sendo arranhado a cada vez que os puxam ou os arrumam em cima de mim, estou manchado de nicotina e tenho cinzas acumuladas à volta de quase toda minha extensão. Aguento tudo isso, e ainda por cima sou obrigado a ouvir todo dia suas reclamações. – Disse o tampo da

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mesa.— Cala essa boca seu intruso do inferno! Está reclamando porquê? – Gritou a mesa.— Mas o que isso? Sempre nos demos tão bem. Por que essa agressividade assim tão fora de hora? – Surpreendeu-se o tampo de vidro.— Eu sim é que sou a mais prejudicada, meus donos durante todos esses anos me torturaram, rabiscaram-me, furaram-me, cortaram-me, queimaram-me e quando me racharam trocaram a minha cabeça por você, um vidro vagabundo de quinta categoria. Tem algo pior que isso? – Lamentou-se a mesa de jacarandá.— Vê-se logo que você não sabe o que diz, minha cara. Graças a mim você continua tendo utilidade. Vagabundo mesmo é esse nosso dono, que quando está aqui, não faz nada além de ficar sentado nessa cadeira o dia inteiro escrevendo baboseiras. – Defendeu-se o grosso tampo de vidro.— Pensei que fossem me esquecer. – Reclamou a cadeira – Na verdade quem mais sofre aqui sou eu. Olhem bem para mim. Vocês são muito jovens, por isso nem imaginam como já fui majestosa. Como acham que eu me sinto agora? Várias personalidades ilustres já me usaram; barões, condes marquesas e até ministros. Naquela ocasião eles sentavam numa almofada de pena de ganso, forrada em couro de cromo alemão, afixada a meu corpo e, diga-se de passagem, sem cheiro ruim. Hoje estou aqui bamba de tanto ele me gangorrear e com uma almofadinha de espuma picada envolta num pano fedorento, jogada encima de mim, e ainda por cima tendo que suportar o peso desse imbecil gordo e vagabundo que você acaba de mencionar, pode?Nesse exato momento José chega ao portal da varanda e como estivesse ouvindo todas aquelas reclamações a seu respeito, falou alto e decidido:“Deixa de preguiça e vai trabalhar José, que hoje você tem muito a

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escrever”.Dizendo isso automaticamente pegava seu cachimbo em cima da mesa e o enchia de fumo.“Onde será que coloquei os fósforos?” – Pensou José.

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A curiosidade pode matar

No vilarejo Barra Perdida, a vizinhança do bairro Sintonia, já não aguentava mais tanta correria e barulheira naquela casa. Não havia um só final de semana que aqueles moradores deixassem passar em branco. Já na sexta feira começavam a ser entregues as carnes e as bebidas para o churrasco do dia seguinte, e o alvoroço era total no local, principalmente na hora em que as garrafas de cervejas vazias eram devolvidas. Nesse exato momento a vizinhança tinha uma amostra de como seria o final. Era batata. Todo mundo já ficava sabendo: o pagode começava no sábado, e se estenderia até as tantas. E como de costume, continuava até à tarde do Domingo e no final da reunião, novamente aquela confusão e a gritaria arretada. Mais um final de semana se aproximava e a expectativa como sempre era geral. Na residência vizinha a esse evento um casal comentava apreensivo. — Rodolfo, nós teremos sossego neste Domingo ou será como nos outros finais de semana? – Margarida perguntava a seu marido que descansava tranquilamente no canto da varanda.— Da minha parte estou torcendo para que tenhamos paz. Mas isso, só Deus sabe, minha filha. Só Deus sabe! — Eu respeito e concordo que todos devem se distrair, mas toda semana! Isso não pode continuar eternamente, alguém tem que achar uma solução e dar fim a esse martírio. Há continuar desse jeito acabaremos neuróticos. — Ouvi dizer que os vizinhos estão se reunindo e pesquisando uma forma para solucionar o problema. Pelo ardor com que me falaram, parece até que estão dispostos a contratar alguém especializado. Pensam até chegar ao extremo, ao extermínio se for o caso.— Será que eles vão ter coragem para chegar a tanto? – Margarida mostrou-se preocupada.

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— Nos dias de hoje, com a violência dominando, não duvido de nada. Tudo é possível, mas o melhor é irmos dormir que amanhã é um novo dia. Precisamos estar descansados para aguentar o repuxo.Não demorou muito e naquela mesma noite vários convidados começaram a chegar. Trazendo junto o barulho costumeiro daqueles dias festivos.— Mas o que é isso Rodolfo? Hoje não é sexta feira? – Perguntou meio na dúvida Margarida.— Pelo jeito o pagode vai começar mais cedo. Provavelmente será dobrada a confusão.Lá pelas tantas – de madrugada – o pagode ainda comia solto no quintal. O barulho de algumas garrafas quando quebravam era infernal. Em vários pontos podia ser visto cerveja derramada; a impressão que dava é que de tão bêbedos já não acertavam a boca. No meio da cantoria, de vez em quando, podia-se ouvir uma ou outra mulher gritando:— Mata! É muito abuso. Mata logo!Curiosos Rodolfo e Margarida mantinham-se escondidos para não serem vistos, mas mesmo assustados conversavam no quintal ao lado de toda aquela confusão.— O que será que está acontecendo dessa vez? – Perguntava Margarida. – Essas mulheres estão incentivando que matem. Mas por que essa violência?— Fica calma que daqui a pouco eles terminam. Quando tudo acalmar irei até lá para ver o que aconteceu. — Nada disso. Não vou deixar você ir lá. Pode ser perigoso. O muro é muito alto e pelo jeito estão armados. – Proibiu Margarida.Como previra Rodolfo, logo acabou o pagode e tudo serenou.— Vou lá agora. – Disse Rodolfo baixinho procurando não ser ouvido.— Não, não vá! Estou lhe pedindo. É perigoso!

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Mas Rodolfo não atendeu aos pedidos da mulher. Subiu no muro deu uma rápida olhada e pulou para o outro lado. Os minutos pareciam se arrastar vagarosamente. Passados alguns instantes, para desespero de Margarida, ela ouviu novamente uma mulher gritando.— Olha lá!— Onde? – Dessa vez a voz era masculina.— Atrás da mesa tentando se esconder, não deixa fugir! Mata logo!— Calma que eu vou matar.— Rápido, está querendo fugir pelo muro. Não deixa, não deixa fugir. Mata! Mata logo, homem!Rodolfo rapidamente pulou de volta para casa, sem antes dar mais uma olhada por cima do muro e apavorado gritava procurando sua mulher. Estava realmente esbaforido.— Margarida! Margarida!— Que foi que aconteceu homem? Nossa! Você esta fedendo a cerveja pura. Não tem vergonha. Invade a casa dos vizinhos e ainda bebe a cerveja deles? — Não é nada disso Margarida. Assim que pulei quase me afoguei com tanta cerveja espalhada pelo chão. Mais à frente, dei de cara com o cadáver da Esmeralda estendido. Você não faz ideia do que vi. Foi terrível.— Eu lhe disse para não ir lá. – Lembrou Margarida. – Mas a sua teimosia é maior que a prudência.— Quase sobrou para mim. Por pouco não fui apanhado – Rodolfo ainda estava pálido ao lembrar.— Então o melhor é sairmos logo daqui do quintal. Não estou me sentindo nada segura. – Sugeriu a Margarida. O casal já mais calmo e em plena fuga, ainda pode ouvir a dona da casa do outro lado gritar. — Zezinho! Tire essas baratas mortas daqui. Estão me dando nojo.

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O velório

Começava a disputa familiar pela herança de Damasceno, um rico e poderoso fazendeiro do estado de Goiás. Típico matuto do interior, mas que de bobo nunca teve nada.Mal acabara de falecer. Seu corpo ainda estava sendo velado numa das capelas existente no pequeno cemitério da cidade de Baliza, localidade quase na divisa com Mato Grosso, e a luta já se mostrava ferrenha. Parentes que em vida nunca o visitaram, agora chorosos se faziam presentes na pequena capela, afinal tinham que dar o ar da graça, pois logo seria lido o inventário deixado pelo morto. A impressão que dava era que o local tinha sido reservado exclusivamente para aquele velório, pois não havia outro defunto. A maioria dos que ali estavam, chorava falsamente, entretanto o defunto sorria. Sim, você leu corretamente, – o defunto sorria – e se leu certo, deve estar agora intrigado e se perguntando: Porquê sorrindo? É simples, mas terá que continuar com a leitura para descobrir o porquê desse sorriso.Aquele encontro estava longe de ser um funeral ou uma cerimônia religiosa tradicionalmente adotada para a despedida de um ente querido logo após sua morte. Mais parecia uma reunião festiva, onde cada um ostentava o máximo de joias, que podia usar, para dar a entender que da herança deixada, não precisavam e não estavam interessados. Enfim, uma coisa insignificante e de segundo plano. Na verdade, só aparência, pois o que queriam mesmo era saber quanto tinha tocado para cada um deles.O tempo passava e o defunto continuava sorrindo, para alguns pareceu até que o sorriso havia se acentuado.Por volta da meia noite, seis homens fortemente armados entraram rapidamente no recinto. Quatro deles, se dispuseram estrategicamente pelo local, enquanto os outros dois anunciavam se tratar de um assalto e automaticamente foram recolhendo os

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pertences de valor. A ação foi tão rápida que não houve reação. Ao terminarem, um dos ladrões pediu a atenção dos presentes.— Senhores... Senhoras... Devem estar lembrados de que quando nós entramos, eu anunciei que era um assalto. Certo?— Ninguém aqui é surdo, e muito menos idiota. E claro que lembramos. – Respondeu um dos presentes, que nem parente era. — Pois bem. Gostaria muito que não entendessem dessa forma e não registrassem queixa na delegacia deste roubo. — Então você acha que pode entrar aqui, nos roubar, sair e viver como se nada tivesse acontecido? – Reagiu o mesmo que falara anteriormente.— É isso o que quero que todos entendam. O que aconteceu aqui não foi um roubo, mas sim o pagamento de algumas dívidas, de jogo, que o senhor Damasceno deixou na praça.— Você além de ladrão é um gozador. – Reclamou um dos filhos do morto. — Não reclamem comigo. Reclamem com o morto.— Além de tudo você deve ser louco, para fazer uma sugestão dessa. – Um outro filho deixou no ar a afirmação. — Engano seu, Altair. Fazermos esse assalto no dia em que ele estivesse sendo velado foi ideia dele mesmo. Ele nos garantiu que todos os presentes estariam com dinheiro e portando tantas joias que daria para saldar todas as suas dívidas. Sou obrigado a concordar que ele estava com razão. A dívida está totalmente paga.Dizendo isso, saíram como entraram; – rapidamente.Os ladrões, além de levarem todo o dinheiro e as joias dos familiares, comeram e beberam o lanche que os parentes e amigos tinham levado para passar a noite no velório, deixando-os morrendo de raiva e também de fome.Quando tudo serenou puderam constatar mais uma vez, que o defunto continuava sorrindo. Começaram a atribuir aquele ar de riso, ao constrangimento e susto que acabaram de sofrer com o

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roubo encomendado por ele. Pela manhã acharam muito estranha a presença do padre da pequena cidade, uma vez que Damasceno era ateu, e para completar a surpresa ele estava acompanhado do Arcebispo de Goiânia. Afinal, quem e porquê os teriam chamado ali.Não dando importância à surpresa e incredulidade dos presentes, o padre Alvarez foi logo cumprimentando um a um e em seguida aproveitou para apresentar o Arcebispo. — Caríssimos fiéis. Gostaria imensamente de neste momento dizer algumas palavras em sufrágio da alma do nosso querido Damasceno, porém deixarei essa honra para que Dom Aloísio, nosso Arcebispo, o faça.Feita a apresentação o religioso tomou imediatamente a palavra.— Meus irmãos, eu sei que não devia dizer isso, mas não vejo outra maneira de expressar todo o nosso contentamento, não só meu, mas de toda a igreja. Nós tivemos o privilégio e a graça de conhecer o senhor Damasceno. Homem íntegro e de caráter nobre. Eu tenho certeza de que assim que vocês tomarem conhecimento de quem realmente foi esse nosso irmão que acaba de fazer seu desenlace, também se sentirão orgulhosos de terem convivido com ele.Como todo religioso que se presa, Dom Aloísio aproveitou o momento para dar vazão aos seus dotes de oratória. Falava muito, mas não chegava aos finalmente, e isso estava deixando os parentes cada vez mais curiosos em saber o tamanho da integridade e da nobreza do velado. Até que não aguentando mais tanta falação e querendo dar um basta naquilo tudo, Altair, um dos filhos perguntou:— Dom Aloísio. Convivi com meu pai durante toda sua vida. Dia após dia, noite atrás de noite. E pelo que sei, ele sempre deixou bem claro a sua posição religiosa; – ele foi um ateu convicto. Muito me espanta essa sua rasgação de seda para com alguém que

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nunca frequentou sua igreja e muito menos acreditava no seu Deus?— Por isso mesmo, meu filho. Esse homem durante toda a sua existência teve posição contrária a nós, entretanto nos últimos momentos de vida deu-se conta do quanto estava errado em negar o Divino, e num ato de total desprendimento nos procurou e doou todos os seus bens. Sua fazenda em especial deixou para que a igreja fizesse dela a morada dos necessitados, e nela montasse uma escola que ajudasse seus filhos a alcançar a sabedoria. Sinto-me orgulhoso de tê-lo conhecido em vida e digo com toda certeza, que Deus o está recebendo de braços abertos no céu. Agora que todos tomaram conhecimento do que este grande homem fez, espero que a paz possa estar presente no coração de todos.Com essas palavras, assegurando a Damasceno sua entrada no céu, pareceu aos olhos dos presentes que o defunto sorria mais ainda. Agora só restava saber se esse sorriso era por sua entrada no paraíso ou porquê havia pregado aquela peça em todos. Ninguém acreditava no que acabara de ouvir. Mas era o Arcebispo que falara, então não podia ser mentira, pensava a maioria.O enterro estava marcado para as quatro horas da tarde. Altair desesperado, por saber não ter mais direito a nada, resolveu ir até ao cartório da cidade, precisava por a limpo aquela história. Lá constatou que realmente seu pai havia doado tudo o que tinha para a Arquidiocese, que era a responsável pela administração da fundação religiosa. Voltou ao cemitério e confirmou a todos o que tinha sido dito pelo Arcebispo.Não ficou ninguém para assistir ao sepultamento de Damasceno, mas quando o caixão desceu ao túmulo, uma forte gargalhada foi ouvida no cemitério se misturando com a dos coveiros, que acabavam de saber da história.

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Complicando a vida

Claudemir, Manfredo e Afrânio ficaram órfãos ainda nos primeiros anos de vida. Por causa desse trágico acontecimento foram criados por três famílias amigas, mas que não eram seus parentes. Raramente os três irmãos se viam quando criança, só vindo a acontecer alguns encontros quando já estavam na adolescência. Praticamente por volta dos dezoito anos é que Manfredo passou a ter um relacionamento com seus irmãos, mesmo assim não tão constante e também foi nesta época que conheceu alguns de seus parentes de sangue. Assim a vida foi passando, sempre afastado dos irmãos e familiares... Manfredo sempre gostou de não depender dos seus padrinhos e assim que dera baixa do exército precisando dar continuidade a sua vida profissional, não perdeu tempo. Saiu em busca de um trabalho digno da sua capacidade. Sabia que não podia contar com seu irmão mais velho, pois o mesmo já havia deixado bem claro que não o indicaria na empresa em que trabalhava. Alegando que lá não permitiam que irmãos ou até mesmo parentes distantes trabalhassem juntos. Manfredo mesmo assim não se importando com essa informação inscreveu-se para ser vendedor em um dos depósitos de vendas que a tal empresa mantinha em Madureira, um subúrbio do Rio. Já que seu irmão trabalhava no departamento de ações na matriz, entendia que dessa forma não estariam trabalhando juntos. Foram prestados exames intelectuais e psicológicos. Depois de realizadas as entrevistas e feitos os exames médicos, Manfredo é aprovado e contratado para trabalhar como vendedor. Entretanto não existia vaga naquele depósito e ele foi transferido para a filial da empresa que funcionava no bairro de São Cristóvão. Para sua surpresa também não tinha uma vaga para o cargo de vendedor. Como o nível do seu conhecimento estava acima do exigido para a função, os responsáveis pela seleção não quiseram descartá-lo e

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devido a isso ele foi aproveitado como assistente do gerente do depósito, que funcionava junto daquela filial.Lá na matriz seu irmão ficou sabendo e naquele fim de semana foi visitá-lo. Quando chegou nem o cumprimentou, indo direto ao assunto que estava lhe incomodando.— Manfredo você esqueceu do que lhe falei?— Bom dia! Não dormimos junto, meu irmão. Esqueceu as boas maneiras?— Você não está respondendo a minha pergunta.— Claudemir, eu estou trabalhando na filial em São Cristóvão. Jamais a diretoria ficará sabendo que somos irmãos e se isso acontecer basta dizer que nos conhecemos há pouco tempo.— Como posso falar isso, Manfredo? Ficou maluco?— Meu irmão. Está esquecendo que nós dois fomos apresentados ao nosso primo de sangue um dia desses? E que oitenta por cento da nossa família nós ainda não conhecemos?— Mas isso é outra coisa. Não fomos criados juntos, mas sempre que possível nos encontrávamos.— Pois o encontro com nosso primo vai passar a ser a nossa história. Se me perguntarem, direi que o conheci outro dia. Faça o mesmo.Dizendo isso deu por encerrada a discussão. Claudemir saiu soltando fogo pelas ventas e foi embora. Manfredo continuou trabalhando naquela função. Em seis meses deu mostra de ser um profissional capaz e versátil, além de conquistar um espaço social na empresa. Sendo em seguida promovido para a função de caixa da filial de vendas, cargo que exigia extrema confiança da gerência. Não demorou muito e já era o caixa geral daquela filial. Sua capacidade e senso profissional saltavam aos olhos da direção da empresa, tanto que na primeira oportunidade foi transferido para o depósito de Botafogo no cargo de subgerente.A trajetória de Manfredo dentro da empresa era impossível de ser

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notada e como tal seu nome sempre era citado nas reuniões da diretoria como exemplo de profissional a ser seguido pelos demais funcionários. Seus superiores nunca perdiam a oportunidade de mostrar que daquela forma a empresa cresceria cada vez mais e todos sairiam lucrando. Todavia seu esforço e dedicação também eram o combustível que alimentava a inveja da maioria dos colegas. Seu irmão continuava não se dando por satisfeito e sempre que se encontravam batia na mesma tecla. Obviamente sua ponderação era rebatida com a mesma resposta. Como toda grande empresa, ela também estimulava em muito o social entre seus funcionários, com isso quase todas as seções tinham um time de futebol para os mais jovens. Todo ano era realizado um campeonato interno com a participação de todos os times. No segundo mês do ano todos eram reunidos para disputar um torneio relâmpago e comemoravam com um churrasco o início da temporada, depois durante o decorrer do ano, os times se enfrentavam todo fim de semana em busca do título.No ano seguinte, Manfredo passou a fazer parte do time de futebol do seu departamento. Compareceu ao evento esportivo e também ao churrasco inaugural. Seu irmão Claudemir que também fazia parte do time de futebol da matriz estava presente e a semelhança física entre ambos chamou a atenção dos demais colegas de trabalho o que levou ele outra vez a conversar com Manfredo.— Está vendo o que você arrumou?— O que foi que eu arrumei? Até agora não vi nada e nem notei nenhuma reação por parte da diretoria.— É só uma questão de tempo, logo irão nos chamar para tirar a limpo do porquê de estarmos trabalhando juntos.— Primeiro não trabalhamos juntos e depois basta você contar à história que combinamos.— Eu não combinei nada. Recuso-me a mentir, mesmo que você ache ser por uma boa causa.

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— Faça como quiser. De minha parte, caso me perguntem eu vou contar da forma que lhe falei.Os dois continuaram nas semanas seguinte se encontrando durante os jogos. Assim que confirmaram o parentesco entre eles, seus colegas viram a grande oportunidade de tirar o Manfredo do caminho. Daquele dia em diante sua derrocada foi tramada pelos inimigos que não se conformavam com sua ascensão vertiginosa dentro da empresa. Não era mais possível Manfredo continuar trabalhando ali, uma vez que seu irmão fazia parte do quadro de funcionários. Isso feria o estatuto interno e assim deu-se início a campanha do seu desligamento e o primeiro da lista nesta luta era nada mais nada menos que o seu próprio irmão.— Precisamos fazer alguma coisa. Estou correndo o risco de perder meu emprego.— O jeito é denunciá-lo. E aguardar os acontecimentos.— Eu não posso denunciá-lo, façam vocês.Assim fizeram e Manfredo logo foi chamado na diretoria e perguntado sobre seu parentesco com Claudemir. Não teve nenhuma dúvida e contou à história que dissera ao irmão que iria falar. Há de que se conheceram meses antes, como acontecera realmente com seu primo. Claudemir também foi chamado e não confirmou o que seu irmão dissera, inclusive foi ele o maior responsável por sua demissão. Não tendo alternativa a diretoria se viu obrigada a ceder as pressões que não eram poucas. Mas só oito meses mais tarde, e depois de muita pressão para afastá-lo é que demitiram o Manfredo. Nessa mesma ocasião todas as pessoas envolvidas no episódio Manfredo, foram transferidas para o depósito em que ele trabalhava, o de Botafogo.Estavam todos felizes, mas o que os inimigos de Manfredo não contavam foi com a desativação deste depósito quatro meses mais tarde, com isso foram demitidos todos os funcionários que ali trabalhavam, inclusive o irmão dele.

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Um tiro no próprio pé

Um novo processo de recrutamento e seleção estava acontecendo naquela multinacional de renome. Tal projeto ficava sob a responsabilidade dos supervisores distritais, e não da gerência. Depois de escolhidos os melhores dentre os que se apresentaram, vinte e cinco desses profissionais foram levados para um hotel da cidade serrana de Friburgo para realizarem o curso onde daria a eles o conhecimento de todos os produtos que iriam comercializar, bem como saber regras e normas internas da empresa.Durante as três semanas, tempo que levou para serem passadas todas as informações necessárias, em momento algum foi dito a eles que os aprovados no curso seriam contratados, mas que alguns teriam de morar nos locais em que iriam trabalhar. Essa falta de informação causou um transtorno, pois nenhum dos novos vendedores concordou em mudar de cidade. Inclusive ao serem pressionados ameaçaram demitirem-se antes mesmo de começarem a trabalhar. Os responsáveis por essa falha não tendo alternativa acharam que poderiam contornar a situação obrigando os vendedores antigos a mudarem-se, no lugar dos novos contratados, pois aqueles provavelmente não pediriam demissão. Tinham muito mais a perder do que os novos. Dessa forma estariam cumprindo a determinação da gerência e consertando o erro por eles cometido. Assim ficou combinado entre os supervisores.Odair, segunda-feira saiu de casa bem cedo e foi para a filial. Essa era a rotina antes de viajar. Passava no escritório onde normalmente havia uma pequena reunião informando sobre promoções de produtos para o período, deixar os relatórios de vendas, de despesas e para pegar propagandas.— Bom dia Marta, tudo bem? – Odair cumprimentou a secretária.— Comigo está, mas se prepara que tem novidades para vocês, e

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não são nada boas.— O que está havendo?— Não posso falar. Na reunião você vai ficar sabendo.“Quanto mistério”. – Pensou Odair, mas não a deixou sem resposta.— Tudo bem. Não se preocupe, vou lá encarar a fera, não tem jeito mesmo.— Boa sorte.Já estavam presentes todos os vendedores do setor. Só estavam esperando ele chegar para começar a reunião. Odair sentiu que ia se aborrecer e se preparou psicologicamente antes de entrar na sala.— Olá, bom dia! - Se espantou, pois não conhecia aquele homem que estava sentado no lugar do Alberto, seu supervisor.— Bom dia. Meu nome é Márcio Couto o novo supervisor desta área. Você é o Odair, certo?— Sim sou eu.— Então fique sabendo. Você tem até o final do mês para estar morando em Volta Redonda. Do contrário vou lhe demitir no dia trinta.Forma estranha de negociação. A falta de tato do atual supervisor deixou a todos irritados e resultou num início de queda de braço. Quem venceria? O Mais forte ou o mais inteligente? — Acho melhor não esperar até lá. Pode me demitir agora mesmo, porque eu não vou me mudar. – Odair respondeu no mesmo tom.— Calma, não se precipite e pense direito. – Esse cara vai me trazer problemas, pensou Márcio— Estou calmo e já pensei. Não vou mudar. – Afirmou Odair.Márcio por sua vez pensou preocupado com o desenrolar que conversa estava tomando. Preciso acabar com essa resistência de uma vez, caso contrário ele vai jogar a equipe contra mim.Odair era o melhor vendedor de todo o setor. Estava preste a ser

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promovido a treinador de vendas, apesar de não ter conhecimento disso e pela forma como o novo supervisor falou com ele, também não sabia.— Até o final do mês temos muito tempo, dá para você pensar com calma... Bem, eu hoje vou levar toda equipe para sua área e fazer um trabalho especial. Veja qual distribuidor vai atender os pedidos da blitz que iremos fazer. – Com essa medida Márcio acabava de mudar a sequência de trabalho da equipe.— Podemos entregar para o Comercial Junqueira, para o Possidente ou para o Bevoreli. Qualquer um deles está acostumado a fazer esse trabalho.— Ótimo. Enquanto o pessoal varre todo o varejo eu fico com você durante a semana para conhecer os principais clientes. Principalmente estes que você mencionou.— Tudo bem.— Então fica combinado. Vocês passem em casa, peguem suas malas e nos encontramos no posto da policia rodoviária para viajarmos juntos.Não sendo preciso passar em casa, pois já estava preparado para viajar, antes de se encontrar no local indicado, Odair resolveu passar pela matriz da empresa e comunicar à gerência o que estava acontecendo. Lá foi orientado pelo gerente de treinamento para fazer seu trabalho como vem fazendo e que não assinasse nenhuma demissão. Ele iria resolver aquela situação quando o supervisor Márcio voltasse da viagem.Naquela noite no hotel, Márcio conversou com Odair na tentativa de persuadi-lo a mudar, mas como mais uma vez não conseguiu seu objetivo apresentou-lhe uma carta de demissão. Este orientado pela gerência não a assinou obrigando Márcio a usar um outro vendedor para assinar como testemunha. No segundo e terceiro dia de trabalho a todos os clientes que Márcio era apresentado ele fazia questão de informar que estava

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trocando o vendedor da área. Para sua surpresa a reação desses clientes não foi favorável à mudança, deixando-o preocupado a ponto de ponderar com Odair sobre sua decisão de não mudar para aquela cidade.— Veja só, você praticamente tem a maioria dos clientes a seu favor, não dá para reconsiderar e arrumar um jeito de vir morar aqui?— Não tem como Márcio, minha mulher trabalha fora e não posso de uma hora para outra simplesmente mandá-la pedir demissão.— Por que você não aluga um quarto por aqui. Só para dormir e guardar o seu material.— Se a empresa pagar o aluguel, não vejo nenhum problema.— De forma alguma, a responsabilidade da moradia é sua.— Então nada feito. Continuo viajando e me hospedando nos hotéis como sempre fiz.— Mas você é teimoso. Vai perder o emprego por uma bobagem.— Parece que você não sabe mesmo de nada. A minha área de atuação também abrange toda a baixada fluminense. Mudando pra cá, vou passar a viajar ao contrário e aonde vou dormir quando estiver por lá.— Bem esse é um problema seu.— Acredito ser mais seu do que meu.— Sem problemas. Vou voltar ao Rio e comunicar a gerência o seu afastamento.Márcio ao voltar, sem saber que a gerência estava a par dos últimos acontecimentos, foi surpreendido. Não podia demitir ninguém e teria que se virar para convencer um dos novos vendedores a se mudar no lugar do Odair, pois o acertado era de que os novos contratados é que morariam nas áreas de viagens. Odair, sabendo que sua cabeça poderia rolar, seguiu o conselho do gerente de treinamento e seguiu fazendo seu trabalho, só que resolveu abrir seu problema para os três maiores clientes da área e

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os mais chegados a ele, que ao tomarem conhecimento do verdadeiro motivo daquela mudança, reagiram de forma inusitada. Reuniram-se e compraram toda a cota de vendas do Odair para aquele mês. Para desespero de Márcio a gerência ficou sabendo que Odair havia coberto seus objetivos antes mesmo do fechamento das vendas. Com o resultado positivo na área sob a responsabilidade de Odair e como o quadro junto aos novos vendedores não se modificou, Márcio é que acabou desligado da empresa no final daquele mesmo mês.

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A prima do interior

Lá estava Fernando saindo do Rio de Janeiro para visitar Odete e sua família em Além Paraíba. Eram uns parentes da sua mãe que ele só conhecia de nome.Contava nessa ocasião com dezessete anos e estava nessa viagem muito contra vontade.Imagina ter que visitar uns velhos lá no meio do mato, num final de semana, quando poderia estar desfrutando do futebol, tira gosto e cerveja com a rapaziada durante o dia e a noite. Ou até mesmo participando do "hi-fi", nome dado aos bailes da época, com suas amigas e amigos depois do namoro. Uma condenação era o tal "passeio".Sabia que a tal de Odete tinha cinco filhos, mas não fazia ideia de como eram. Sendo assim o preconceito falava mais alto.Para Fernando deviam ser uns matutos do interior, onde o progresso passava pelo lado de fora da cidade. Provavelmente no máximo ouviam falar das coisas da capital pelo rádio e ficavam a imaginar, pois com certeza ainda não havia o poder da televisão por lá.Com isso, foi se preparando durante o trajeto, que era longo, para dar as informações que certamente gostariam de saber. Perguntas do tipo "é verdade que a água do mar é salgada?", "tem muitos cinemas?", "o Maracanã é grande mesmo?", "vai a muitos bailes de formatura?", etc, etc e etc. "Nossa, isso vai ser duro de aturar!". Fernando não parava de pensar na situação que iria encarar.Lembrou ter ouvido falar que os filhos da tal parente eram três rapazes e duas moças.Agora ele se perguntava: será que regulavam com a sua idade? São bem informados? As meninas serão bonitas ou feias? Como será que se vestem?

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Lembrou das festas à caipira. "Ridículo! Não! Não é possível que se vistam daquela forma!"Apreensivo e cansado da viagem, perguntou ao seu pai se ainda faltava muito para chegar à tal cidade. A resposta de que a viagem deveria durar mais ou menos uma hora o deixou mais agitado.Achou melhor tirar um cochilo para relaxar, afinal não tinha mais como evitar o encontro. O jeito era se conformar e torcer para tudo ser diferente do que estava imaginando.O tempo passou. Seu pai o acordou informando que já estavam chegando. Olhou pela janela do ônibus e viu que estavam atravessando uma ponte sobre um rio bem largo e de águas barrentas. Era diferente dos rios que estava acostumado a ver na sua cidade, estreitos e com pouco volume d'água.Logo descortinou-se uma praça, com a estação ferroviária de um lado e o comércio do outro. Imaginou ser ali o centro da cidade, local onde aconteciam os grandes festejos. Quem sabe os jovens também se reunissem por ali.Chegaram e desembarcaram as malas. Da rodoviária podia ver o hotel onde se hospedariam, mas logo chegaram os primos de sua mãe, que não os deixaram ir ao hotel. Alegaram que a casa era grande e confortável o suficiente para acomodá-los durante a estada por lá.No carro que os levava, Fernando continuava preso aos seus pensamentos, agora já não tão preconceituosos. Viu que as pessoas do local não se vestiam como imaginava.Na frente da casa confirmou ser ela bem espaçosa. Estava localizada na margem do tal rio que vira quando chegou e isso o deixou intranquilo. Prestes a entrar, sua apreensão aumentou, pois até aquele momento não tinha visto os filhos da Odete. Como seriam?Entraram, se acomodaram e nada de aparecer o restante da família. Na verdade só a mãe da Odete estava lá, uma senhora beirando os

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setenta anos e responsável, ao que pareceu, pelo bom cheiro do tempero da comida.Já era hora do almoço naquela sexta feira, e a fome logo fez Fernando esquecer seus problemas existenciais. Enquanto comiam, ficou sabendo que as meninas e um dos meninos almoçaram mais cedo e estavam na escola. Os dois outros estavam trabalhando e todos só estariam de volta às seis horas da tarde. O que fazer até lá? Eis a grande questão a ser resolvida.Os mais velhos estavam num entusiasmo só, afinal havia anos que não se viam e a conversa comia solta entre eles.Fernando foi encorajado a dar uma volta pelo bairro para conhecer o local. Não havia perigo. Por ser o lugar pequeno, todos se conheciam. Segundo Odete, a maioria dos moradores já sabiam que eles, seus parentes, chegariam de visita. Andou por todo canto e chegou a ser cumprimentado várias vezes.Nunca vira tanta tranquilidade. Parece que as pessoas não tinham pressa naquela parte do mundo e a sensação era de que a hora não passava ― na verdade se arrastava."Que martírio! Esse final de semana vai ser longo demais para o meu gosto!", resmungava sozinho.Voltou para a casa e resolveu esperar pelos primos na varanda. Aproveitaria o tempo para continuar com a leitura do seu livro.Entretido, não se deu conta de que a hora passara, nem de quando as duas moças, suas primas, chegaram da escola. Assustou-se quando as duas ao mesmo tempo numa brincadeira deram-lhe as boas vindas gritando "bem vindo à roça, primo", seguidas de uma bela risada.Apresentaram-se descontraidamente como os jovens da época e já começaram um bate papo como já se conhecessem a anos.Fernando quase não conseguia se concentrar na conversa. O julgamento precipitado das meninas foi por água abaixo. Cristina e Elisabete eram duas moças alegres, bem informadas e antenadas

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com o que estava acontecendo no momento, mesmo estando tão longe da capital. Entretanto, o que mais lhe impressionou foi a beleza da Elisabete, a prima mais nova. Não conseguia disfarçar, estava enamorado. E lhe pareceu que a recíproca era verdadeira.Os três conversavam animadamente quando foram alertados do adiantar da hora. Precisavam dormir. Fernando notou que a hora voara. Que pena!Na manhã de Sábado todos estavam em pé logo cedo, o que chamou atenção dos mais velhos, pois normalmente ficavam na cama até as tantas.Novas conversas, olhares, risos e inevitavelmente o flerte. Elas visitavam os amigos apresentando o primo recém chegado da cidade. Assim o dia inteiro estiveram juntos indo a todos os locais. À noite a conversa já não era mais a três, e sim a dois, com o incentivo da irmã mais velha. Fernando e Elisabete já estavam namorando.A hora passou mais rápido ainda. Pensaram e reclamaram os dois. Tinham uma madrugada no meio da vida deles para atrapalhar aquela magia que o amor constrói. Logo ele estaria indo embora. Como ficariam? Quem diria! O rapaz da cidade estava amarrado na moça do interior. Onde foi parar o preconceito? Parece que o amor falou mais alto.Amanheceu.Tudo era alegria. Entretanto, à medida que a hora passava os corações dos jovens enamorados se entristeciam. O tempo como sempre correu normal, mas para eles voou. Chegou a hora da despedida. Mil promessas trocaram, cartas seriam escritas para estreitar mais suas afinidades e no ar havia expectativa de um encontro breve.Cartas foram trocadas como o prometido.Após três meses se encontraram novamente. Desta vez a menina

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do interior veio conhecer a cidade grande. Encantou-se com que viu, e com a proximidade o amor ficou mais fortalecido. Durante uma semana os dois curtiram o romance minuto a minuto sem desperdiçar um segundo, mas a separação era inevitável.Elisabete voltou para sua pequena cidade e Fernando seguiu sua vida junto aos amigos. No início oito eram as cartas trocadas por mês, e nelas as juras de amor eterno eram o tema central que entremeava as novidades de cada um.Porém, Fernando e Elisabete não contaram com a distância entre eles e as oportunidades de novos namoros surgirem.Com o tempo essa cartas foram diminuindo, o amor eterno esfriando e quando se deram conta, tudo passou a ser apenas uma nostálgica e doce recordação.

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A Azarada

Azaraldina Honorata, este é o nome que a menina recebeu de seus pais.Coitada. Não sabia do fardo que carregaria pela vida afora. Tudo começou pouco antes de nascer. Aliás, é preciso registrar aqui que ela nasceu há cinquenta anos na bucólica cidade de Ibiá, interior de Minas Gerais, no ceio de uma das famílias mais podres do lugar.No último mês de gestação, sua mãe estava sendo examinada no precário posto de saúde da cidade por seu médico, quando a velha cadeira de ginecologista quebrou e todos foram ao chão: gestante, médico e enfermeira. Por pouco Azaraldina não sofreu uma sequela. Porém, logo que nasceu, outro acidente marcou sua vida. A alça da balança que pesava os bebês na maternidade rebentou e ela caiu. Dessa vez não escapou. Fraturou a coluna, vindo a ficar corcunda.O tempo passou, mas a falta de sorte não — muito pelo contrário, passou a fazer parte de sua vida de tal maneira que acabou se acostumando e já não dava tanta importância a tudo que lhe acontecia. Chegava às vezes a fazer piada com o seu azar.Poucos eram os seus amigos. Aliás, a bem da verdade apenas duas colegas do orfanato em que viveu sua infância e adolescência — ficara órfã aos dois anos — continuaram a amizade. Já adulta resolveu vir ganhar a vida na cidade grande e mudou-se para Belo Horizonte. Já na ida para a capital foi experimentando a força do seu azar, pois o ônibus em que viajava furou quatro vezes os pneus, atrasando em mais de oito horas a viagem. Era reclamação de todo lado. Várias vezes escutou afirmarem: “Tem algum pé frio aqui dentro desse ônibus?”, “Faço essa viagem toda semana e nunca isso aconteceu!”, “Nossa! Parece que o azar resolveu viajar também!”.

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Azaraldina ria às escondidas.Em Belo Horizonte foi morar numa pensão, dessas só para moças. No pequeno quarto havia um armário com quatro divisões, uma para cada moradora, e dois beliches, cada um encostado nas laterais do aposento. Coube para ela o de cima. Logo na primeira noite, ao deitar-se, o estrado de sua cama rebentou e ela veio abaixo, caindo em cima da colega que já estava dormindo. Resultado, um corte profundo em sua cabeça e o braço quebrado da nova colega.Mesmo com tanta falta de sorte, Azaraldina não se deixava abater. Batalhou e conseguiu um emprego de recepcionista numa firma que vendia pisos e que tinha como mostruário o belo piso na entrada da recepção. Feliz com o trabalho que ia começar no dia seguinte, passou na loja exotérica e comprou pedras de cristal para energizar o ambiente, uma figa, uma pequena ferradura e um pé de coelho. Escondeu tudo na bolsa para afastar o azar. Não podia perder aquele emprego.Tudo corria bem nas primeiras horas, até quando o gerente da empresa, ao entrar na recepção, escorregou no piso que acabara de ser limpo e caiu — suspense no ar. Azaraldina rezava para que nada de grave tivesse acontecido. Apenas um pequena luxação no pé, mas com a primeira cliente que entrou naquele dia a coisa foi mais grave: a senhora quebrou a bacia e meteu um processo na empresa.Durante os dois meses em que Azaraldina ali trabalhou, toda semana alguém escorregava naquele piso, e olha que nunca houve registro de tantos escorregões. Até ela foi vítima. Conclusão, foi demitida.Os anos foram passando. Casou e teve filhos, mas o azar era seu companheiro inseparável.Viúva, voltou a trabalhar para poder sustentar os cinco filhos. E de emprego em emprego, de azar em azar, foi vivendo sua vidinha

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precariamente.Já com quarenta e sete anos, conseguiu um trabalho como operadora de telemarketing. Já no primeiro dia de trabalho seu companheiro inseparável deu o ar da graça. A luz e o sistema de telefonia de metade do centro da cidade foram interrompidos e sua empresa, que estava localizada nesta área, não pôde dar continuidade aos trabalhos. Na semana seguinte, o computador em que trabalhava foi o causador de uma pane geral no sistema operacional da empresa. Tudo parado novamente. Foram dois dias para identificar a origem do problema. Três meses depois, outra vez a empresa foi paralisada por uma pane no sistema de telefonia oriundo da caixinha telefônica ligada ao seu computador. Todos foram dispensados novamente e ela mais uma vez demitida.Nesse dia resolveu fazer um lanche em uma dessas carrocinhas de cachorro quente que ficam na rua. Foi contaminada por uma dessas bactérias que se instalam no intestino e vão fazendo buracos na parede intestinal. Sofreu quatro cirurgias devido ao problema e, como o tratamento para acabar com a bactéria não dava resultado, resolveu que iria voltar para sua cidade natal pois meteu na cabeça que queria ser enterrada no mesmo lugar onde estavam seus pais.Assim fez, mas os transtornos causados pelo seu azar não pararam por aí não. Mesmo depois de morta, por onde seu corpo passou, deixou estragos. Pouco antes de falecer, ao dar entrada no hospital, aconteceu um blecaute que levou ao falecimento de mais doze pessoas que estavam na UTI. Perfazendo assim, no total de mortos daquele dia, o fatídico número 13. Seu corpo foi levado ao necrotério da cidade para confirmar a causa mortis. Ao sair do local, o carro fúnebre pegou fogo. Trocados o caixão e o carro, o corpo de Azaraldina seguiu para o cemitério. Não havendo vaga nas capelas de lá, ficou do lado de fora em uma das alamedas esperando a desocupação para ser velada pelos familiares. Um temporal não previsto ocorreu, e novamente seu caixão se acabou,

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dessa vez não pelo fogo mas pela água. Corre corre, e um novo caixão comprado. Com muito custo seus familiares conseguiram junto à direção do local dividir o espaço de uma das capelas. Para lá levaram o corpo de Azaraldina. Estavam todos na capela mais antiga do cemitério e as rachaduras pelas paredes mostravam que era preciso uma reforma urgente no local. Novamente a tempestade caiu, e junto com ela a velha capela. Dessa vez o corre corre foi maior, pois eram os familiares de dois corpos tentando se refugiar dos escombros e da chuva. Com mais esse acontecimento, a família resolveu enterrar o corpo rapidamente para não causar mais prejuízos a ninguém. Afinal, era muito o azar que rondava aquele corpo.Mesmo já estando escuro, mais uma vez a direção do cemitério cedeu e atendeu aos pedidos dos familiares de Azaraldina, permitindo que aquele corpo, em especial, fosse enterrado fora do horário. Partiram todos em direção ao local do sepultamento. A procissão seguia lentamente, e de onde estavam ouviram ao longe o sino tocar, avisando a hora de um outro enterro não especificado. Mas como tais badaladas poderiam ocorrer, se era noite e não mais se fazia sepultamentos naquela hora?Os coveiros apreensivos resolveram apressar os trabalhos, e nessa pressa um deles escorregou no lamaçal que se formara devido à chuva. Ao cair, bateu a cabeça na quina de uma das sepulturas do local e ali mesmo morreu. Novo corre corre. Ninguém mais queria ficar perto do corpo de Azaraldina. Até os coveiros evitaram voltar ao local.Fala-se que até hoje os restos do caixão e dos dois corpos permanecem expostos ao tempo. Aquela parte do cemitério, que era bem retirada, ficou isolada e não mais recebeu qualquer outro sepultamento.

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Tempos mais tarde a notícia de tanto azar se espalhou pela cidade, e devido a isso o cemitério foi fechado. Ninguém queria se aventurar a entrar ou trabalhar naquele local.E você, que acaba de ler, conhece alguém que tem ou emane tanto azar assim?

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O Bispo e o Fazendeiro - 2

A notícia de que Rafael, um assíduo fiel da paróquia de Sant’Ana, havia ganhado na loteria correu que nem rastilho de pólvora e chegou aos ouvidos de Dom Amorim, bispo da diocese. Este por sua vez, em conversa com o padre Onofre, responsável por aquela paróquia, deixou claro que gostaria de estar com Rafael e que se fosse possível providenciasse para trazê-lo até ele, pois gostaria muito de conversar com aquele fiel escolhido de Deus. Assim, passados alguns dias, lá estava Rafael diante de Dom Amorim, ouvindo-o. Não entendia como que de uma hora para outra, o bispo passou a lhe dar tamanha atenção. Ainda recordava-se que há bem pouco tempo atrás, quando tentou um encontro, não foi nem recebido. Qual seria a razão da radical mudança? Seria pelo fato de ele ter acertado o prêmio acumulado da loteria? Iria ele lhe pedir dinheiro para as obras da igreja? – Pensava ao mesmo tempo em que escutava aquele homem falar.Por sua vez, Dom Amorim, um dedicado religioso seguidor da doutrina cristã, sendo conhecedor da simplicidade de Rafael e julgando sê-lo ingênuo e de fácil manipulação, resolveu protegê-lo. Não deixaria passar a oportunidade para alertá-lo sobre os falsos amigos e interesseiros que provavelmente tentariam se aproximar dele para tirar alguma vantagem, usando da famosa e antiga conversa de cerca Lourenço para enganá-lo. Por isso o encontro.O bispo parecia ansioso na busca de encontrar as palavras para ajudá-lo, mas continuava conversando calmamente. Falava de vários assuntos ao mesmo tempo sem se prender a um em específico e emendava um problema atrás do outro da diocese, quase o deixando tonto. Até que conseguiu entrar no assunto envolvendo o dinheiro que ganhara. — E então, meu filho. Já pensou a respeito do que fazer com o

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dinheiro que ganhou na loteria?— Estou comprando a fazenda Outeiro Santo. Pretendo plantar e lidar com gado.— É aquela fazenda abandonada que fica aqui ao norte de Diamantina?— Essa mesma. O senhor a conhece, Dom Amorim?— Conheço, mas não é um pouco longe, meu filho?— Nem tanto, é aqui mesmo no Vale do Jequitinhonha. Com apenas duas horas a cavalo e estamos aqui na cidade. De automóvel é bem mais rápido.— Ah! Muito bom. É uma região que está necessitando muito de ajuda. Acredito que seu investimento naquela região vai contribuir bastante para o progresso dela.— Foi o que eu pensei. Na verdade o corretor que me procurou para fazer o negócio achou que estava me enganando, mas não estou comprando gato por lebre. Sei que vai ser preciso trabalhar muito. — Com esse seu entusiasmo, Rafael, eu tenho certeza de que a sua fazenda vai ficar bonita e produtiva como nunca esteve.— Eu sei disso, seu bispo, e para isso eu conto com a ajuda do senhor.Era o que Dom Amorim queria ouvir. Tendo-o próximo de si, poderia ajudá-lo e protegê-lo dos aproveitadores. — Pode contar sempre, Rafael, não só com a minha ajuda, mas também com a de Deus. Você vai ver que trabalhando juntos tudo se transformará.— Nada disso, Dom Amorim. Só quero contar com a sua ajuda.— Como assim? Não o estou entendendo.— É simples. O senhor conhece muito bem aquele pedaço de terra e não vai poder negar; enquanto Deus esteve lá sozinho, nada foi feito. Não vai ser agora que ele irá me ajudar.— Como não, meu filho? É evidente que Ele vai lhe ajudar.

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— Nada disso, mas o senhor sim poderá me ajudar e muito.O bispo, não querendo contrariá-lo, resolveu concordar e escutar o que ele pretendia. Com o tempo o faria entender o quanto era confortante estar com Deus. — Está bem, mas o que eu posso fazer para ajudar você?— Preciso que na próxima missa o senhor esteja presente e use a pregação em nosso favor.— Não estou entendendo muito bem isso de “nosso favor”. A onde você quer chegar?— Vou lhe explicar. Quero que o senhor incentive e faça ver aos fiéis, que também são meus empregados, para não fazerem questão das exigências trabalhistas. E como eu já ofereço a eles casa e comida lá na fazenda, não há necessidade de receberem mais do que o salário mínimo.Dom Amorim entendeu o quanto estava enganado sobre a ingenuidade de Rafael e chamou-lhe a atenção severamente. Afinal, como poderia imaginar que o dinheiro tivesse transformado tanto aquele homem simples que ele pensava conhecer. — Quando eu estou pregando não me canso de repetir: todo filho precisa amar, respeitar seu próximo e estar em contato com as coisas de Deus, Rafael. Como posso agora de repente fazer o que você está me pedindo? Não posso ir de encontro a tudo que prego e acredito só para compactuar com sua ganância, meu filho.Rafael, demonstrando não estar nem um pouco preocupado com o que Dom Amorim acabava de falar, continuou com sua tentativa de convencê-lo a lhe ajudar. — Lembre-se de que estou disposto a lhe dar comissão sobre os lucros, sem contar que pretendo fazer algumas reformas por aqui. Basta para isso que os convença de que não precisarão vir à cidade para fazer compras, pois estou mandando fazer, lá, uma grande mercearia onde eles terão de tudo. Da agulha ao chapéu.— Rafael, todo esse dinheiro o está cegando e não lhe deixa

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raciocinar. Pense melhor no que está querendo, o que você vai fazer é pior do que escravizar.— Isso é uma questão de ponto de vista seu, Dom Aguiar. O que estou tentando fazer é que o meu dinheiro retorne aos meus cofres, e não vá parar em mãos alheias. Tenho absoluta certeza de que assim será muito melhor para todos.— É lamentável o que acabo de ouvir, mas vou rezar para que o Senhor o ilumine e o traga para a realidade cristã. Mesmo assim peço que reconsidere essa sua atitude e mude sua posição.— Lamentável digo eu, Dom Amorim. Pense bem. O senhor precisa fazer o que lhe pedi. Vai deixar passar a oportunidade de ganhar um dinheiro extra que não é pouco, com o qual poderá reformar toda a igreja e concertar a casa paroquial?— Rafael, meu filho, as coisas não funcionam dessa maneira. Tenho certeza de que eu e o padre Onofre conseguiremos o dinheiro para as reformas sem ser preciso compactuar com a exploração dos seus empregados. Torno a lhe pedir, reconsidere. Será melhor para você. Saiba que Deus está vendo tudo, meu filho.— Lamento muito que o senhor tenha tomado essa decisão, Dom Amorim. Da minha parte, não só continuarei com meu projeto, como alertarei meus empregados para que não façam doações para suas obras.

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O Rei e o Sábio

Enquanto príncipe, Ozir era uma doçura de pessoa. Não havia um só súdito no reino que não o amasse. Com a morte de seu pai tornou-se pelas circunstancias o novo rei. Durante algum tempo manteve seu temperamento calmo e de fácil trato, porém com a descoberta do poder que tinha nas mãos foi se modificando, de tal forma que ultimamente não conseguia mais se controlar. Perdera a paciência por completo, tornando a vida na corte insuportável. Por menor que fosse o delito cometido por alguém já estava disposto a infligir rigorosa pena. E quando mais grave, até a de morte. Foi quando a pedido da rainha, sua amada esposa, resolveu recorrer ao grande sábio. Reuniu-se com seu primeiro ministro e ordenou-lhe que trouxesse à sua presença o sábio do reino.— Quer que mande buscar o Merval, majestade? – Perguntou-lhe o primeiro ministro.— E tem outro sábio no reino por acaso? Eu ainda não ouvi falar de outro.Como sempre seus nervos andavam a flor da pele, mas o ministro procurou acalmá-lo. — Vou providenciar para que vossa majestade seja atendida imediatamente.— Faça isso o mais rápido possível, Górgoran.Merval morava fora dos domínios do reino, muito afastado da cidade. Sua avançada idade foi o principal motivo da demora de sua chegada ao castelo. Deixando o rei mais irritado do que de costume.Após oito longos meses de espera, finalmente o rei foi avisado por Górgoran que o sábio havia chegado. Só faltava autorizar a sua presença diante dele.— Mande-o vir agora. – Ordenou o rei enfurecido pela demora.O velho sábio entrou no grande salão e sem nenhuma pressa ou

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cerimônia dirigiu-se ao rei. — O que está acontecendo de tão grave, majestade? Para mandar me chamar. O rei, vendo aquele ancião marcado pela fragilidade, num esforço sobrenatural conteve sua ira e relatou-lhe pacientemente o que sentia. Ao final perguntou-lhe:— Diante do tudo que lhe expus, de que adianta minha coragem para mudar as coisas, se não tenho a serenidade para usufruir as mudanças?— Meu rei, eu tenho a impressão que você está sofrendo tudo isso que acaba de me relatar por ter esquecido o sentido da humildade.— Mas eu sou o rei!— Eu não lhe disse que não o é. O poder deve ser praticado, entretanto a humildade pode caminhar junta. — Tenho que me preocupar com os impostos e manter a lei. Por isso puno os infratores. — Até os reis necessitam da humildade, majestade. Sem essa sabedoria fica bem mais difícil guiar seus súditos.Mais uma vez o rei sentiu vontade de explodir, mas respondeu-lhe docemente.— Pode acreditar meu velho, encontro-me numa encruzilhada. O sofrimento é muito grande e já não sei mais o que fazer.— Exercite, majestade. Permita que venham diariamente a sua presença, seus súditos. Cobre-os as suas obrigações e deveres, mas trate-os com dignidade.— Mas é por não saber mais me controlar, nem quando devo usar de humildade, que não os recebo mais. – O rei continuava conversando amavelmente com o sábio.— A solução do seu problema só se realizará através do exercício. Comece desde já.— Ultimamente uso e abuso da arrogância. Será que conseguirei?— Para saber terá que tentar, majestade. – Pacientemente o velho

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sábio empurrava o rei de contra seu orgulho e prepotência.— Nunca o importunei, quando recorro à sua ajuda, você só me diz isso? — Exatamente, nada mais do que isso. – O velho ancião sorria interiormente com o desespero do rei.— Não sei se conseguirei, meu velho. – Lamentou o rei, docilmente.— Saiba que todos nós temos em nosso interior a arrogância e a prepotência. Não deixe que elas assumam o controle e esmaguem a humanidade e a simplicidade. — Fácil é falar quando se sabe.— Mas você sabe, esqueceu de quando era o príncipe.— Já faz tanto tempo, não sei se conseguirei.— Então tente. Só saberá se conseguiu depois que colocar em prática tudo o que nós estamos conversamos.— Não tenho tanta certeza. – Lamentou-se mais uma vez. — Tente. Eu já estou indo majestade.— Mas já está indo? Eu não o dispensei e ainda não acabei!— Você não. Eu sim, mas lembre-se: – respeitando-me, controlaste sua arrogância e trataste a um dos teus súditos com humanidade, por tanto acabas de alcançar a sabedoria para distinguir uma coisa da outra. Pratique-a mais vezes, não é tão difícil assim.

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Momentos

Bernadete, mulher rica, elegante e atraente. Bem casada e amada por todos. Virou-se na cama e deparou com sua imagem no espelho. As labaredas na lareira por trás dela e a meia luz do aposento, distorciam um pouco a imagem confundindo-a. Seria ela mesmo que estaria ali?Pensou... No marido, nos filhos, nos pais e nos amigos. Que vergonha! Como podia estar ali traindo a confiança de tanta gente.Por um momento arrependeu-se de tal ato. Valdir, seu amante, saiu do banho pegou as taças de cristal e as encheu com o melhor Champanhe.Beberam e voltaram a fazer amor...

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O Roubo

As joias da loura sumiram! Quem as terá roubado?O filho adotivo de sua irmã mais velha, chamado Antônio, foi logo acusado por ser um moreno trigueiro.Henrique, outro irmão da loura, sentindo no ar o preconceito saiu em defesa do sobrinho postiço. Além disso tinha certeza de que o rapaz não teria realizado tal ato.O constrangimento era geral pois a loura insistia a todo custo em culpar Antônio. Baseava-se na informação de uma cartomante que afirmara que o ladrão era uma pessoa de pele morena.Só que ele não era o único moreno na família e isso piorou ainda mais a confusão e a dúvida. Os nervos andavam à flor da pele. Até de esquizofrênico, Antônio foi taxado pela loura.Mais tarde descobriram:Manoel, o marido da loura, também moreno, havia empenhado as joias para pagar dívidas de jogo.

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Paciência: Ação e Reação

Emanuel estudava na mesma escola desde o jardim de infância. Contava agora quinze anos e cursava a primeira série do segundo grau. Pelo tempo de convívio, todos o conheciam e viam nele uma pessoa extremamente calma e atenciosa. Um pouco reservado para fazer novas amizades, mas sem dúvida alguma, leal aos amigos e possuidor de bom caráter. Dalmo, seu novo colega, um irresponsável que acabara de ingressar na escola no ano anterior, vinha insistentemente provocando-o diariamente de todas as formas. Ignorava aos pedidos de que parasse com aquelas brincadeiras fora e dentro da sala de aula, que só serviam para irritá-lo e desviar sua atenção do que estava sendo ensinado pelo professor. Na verdade não só a dele, mas de todos os colegas da classe.A paciência de Emanuel vinha sendo testada há algum tempo e ultimamente mais acintosamente, pois seu colega aumentara a dose das brincadeiras de mau gosto. Um belo dia, entretanto, e para espanto de todos, ele a perdeu. Depois de ser perturbado por Dalmo diversas vezes naquela manhã e não sendo atendido em seu pedido para encerrar com a brincadeira de mau gosto, levantou-se e numa fração de segundos o esmurrou, quebrando seus óculos e machucando-lhe levemente o rosto.Desequilibrado e meio atordoado pelo soco, Dalmo caiu por cima das carteiras.Alvoroço total no ambiente. Como foi acontecer aquilo?Ninguém imaginava que Emanuel fosse tomar uma atitude tão drástica. Na verdade nem os responsáveis pela escola entenderam, mas não podiam culpá-lo totalmente. Afinal, ele por diversas vezes havia comunicado, aos professores e ao inspetor, que seu colega o estava importunando, sem que ninguém tomasse uma providência. Sequer chamaram a atenção de Dalmo e em momento algum

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comunicaram aos seus responsáveis sobre sua conduta na escola.Por outro lado, esses mesmos responsáveis pela ordem do recinto, embora não tendo sido a forma correta a tomada de decisão por parte de Emanuel, foram unânimes em concordar que seu ato impulsivo contribuiu para que; não só o Dalmo, mas também os demais colegas que alimentavam a perturbação passassem a se portar condignamente na escola e a prestar mais atenção à aula.Tal atitude, mesmo que errada, acabou beneficiando não só a ele, mas também aos demais colegas de turma que se sentiam prejudicados com aquelas brincadeiras.

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Trajetória fatal

Os amigos de Eça que já o conheciam bem e sabiam que ele quase não se alimentava direito resolveram convidá-lo para fazer um lanche. Estavam dirigindo-se para a lanchonete quando de repente o pânico tomou conta da praça, uns corriam enquanto outros se jogavam ao chão para se protegerem das balas que os dois homens que passavam em uma moto atiravam para todo lado. Estavam sendo perseguidos pela polícia.Quando o perigo passou e Eça que também havia caído ao chão, não se levantou, seus amigos correram para socorrê-lo, pois viram que ele havia sido alvejado por uma bala perdida. Levaram-no rapidamente para o pronto socorro para que fosse atendido. Mas ele não resistiu ao ferimento e faleceu. Os moradores da Colina Azul, uma de muitas comunidades carentes que existem pelo país afora, sentiam-se órfãos naquele momento. Não falavam de outra coisa no velório. O aparecimento a dois anos, de Eça, pela redondeza tinha mudado para melhor não só o comportamento dos que ali viviam, como suas condições de vida.Era completamente diferente dos padres, pastores e políticos que por ali constantemente passavam. Os primeiros sempre em busca unicamente do dinheiro para suas igrejas e templos; já os últimos só apareciam para prometer melhorias, na intenção de conseguir os tão sonhados votos para se elegerem. Todos sem exceção, mesmo conseguindo seus intentos, não faziam nada para melhorar a vida deles. Enfim, na essência eram todos iguais; – vazios e egoístas, mas espertos aproveitadores da boa fé. No pouco tempo de convivência que as pessoas da comunidade tiveram com Eça aprenderam com seus ensinamentos, sua luta e suas ideias, que era preciso formar uma associação de assistência

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social e uma cooperativa, para que eles próprios administrassem e melhorassem suas condições de vida.Não perderam tempo.Com a ajuda e orientação dele, o que era um sonho virou realidade. Fundaram a associação dos moradores, onde passou a funcionar o centro de instrução e recreações para os adolescentes e neste mesmo local, um grande espaço foi criado para atendimento sociais, com advogados, médicos, dentistas e assistente social dando todo apoio necessário aos moradores da comunidade, além é claro, da cooperativa que oferecia os alimentos e os remédios a preço mais baixo que todos os supermercados e drogarias da redondeza. Aos jovens, não deixava dúvidas: deveriam estudar e lutar sempre por aquilo que acreditassem ser o melhor, não importando o tempo que levasse para consegui-lo. As conquistas e as melhorias implantadas por ele naquela comunidade mudaram a vida de todos, contrariando com isso os grandes interesses de alguns, que eram contrários a essas melhorias e por esse simples ato, Eça pagou com a própria vida, conforme ficou comprovado mais tarde com as investigações. Fora executado. Ainda no velório e lembrando do que ele fizera, na e para a comunidade, todos cada vez mais se conscientizavam de que deveriam manter a chama da cidadania acesa e seguir com as ideias e os conselhos de Eça.Mesmo tendo sido retirado da vida, as ideias de Eça não foram desperdiçadas, e o que os poderosos não contavam, aconteceu. A semente da dignidade foi semeada em outras comunidades sendo seus frutos colhidos mais tarde.

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A Voz da Consciência

Um grande concurso de literatura estava sendo realizado por um renomado banco. Os prêmios para o primeiro, segundo e terceiro lugares eram de fazer qualquer um tentar ser escritor. O tema pedido era; “quem acreditou em mim”.Fernando, um homem mestiço, e já com a idade avançada, viu neste concurso a oportunidade de homenagear Hernâni, seu tio postiço e já falecido, que no passado acreditando nele o apoiou, quando acusado de ter roubado as joias de sua irmã Lelete, uma autêntica representante da raça alemã. Aliás, toda a família era descendente de europeus.Sendo um escritor que até aquele momento não havia conseguido editar nenhum texto, achou que vencendo o concurso, ou quando muito tirasse o terceiro lugar poderia ele próprio financiar a primeira edição de um dos seus livros. Com isso passou a elaborar o mini texto de trezentos caracteres, exigência pedida para concorrer.Terminado, revisado e corrigido Fernando enviou seu texto ao banco, feliz por estar homenageando seu tio mesmo que para isso expusesse seus “familiares”, pois manteve os reais nomes dos personagens em questão.Dois meses mais tarde através de um e-mail, enviado pelos organizadores do concurso, recebeu os agradecimentos por sua participação e tomou conhecimento do resultado do mesmo.Seu nome não aparecia entre os primeiros ganhadores.Logo veio o desapontamento e a curiosidade de conhecer as histórias vencedoras. Ao fazê-lo, encontrou defeito nos três textos vencedores; Um, achou apelativo. Outro, uma grande invencionice. E o terceiro, totalmente sem sentido. Foi dormir pensando que o critério adotado para a escolha dos textos não fora correto ou provavelmente não foi feito por profissionais da área

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literária o que lhe causava mais indignação. Como podia um concurso literário ser avaliado por pessoas não capacitadas? Era o fim da picada. – Imaginava tudo aquilo, sem ter a certeza de que o que pensava era verdadeiro. Na verdade tudo não passava de uma frustração por não ter sua história escolhida. Achava que dessa forma não havia conseguido homenagear seu tio.Assim logo adormeceu.Lá pelas tantas da madrugada acordou e voltou a pensar e a julgar o resultado. Não era possível que ele não tivesse conseguido ao menos o terceiro lugar. Sua história havia sido bem contada e sem sombra de dúvidas era muito melhor que as vencedoras. - “na sua opinião é claro”.Durante alguns minutos ficou remoendo e lamentando não ter ganhado um daqueles prêmios. Que injustiça?De repente uma voz suave pareceu soprar-lhe ao ouvido:“Fernando... Fernando... Esqueceu que quando você tomou conhecimento do concurso sua primeira intenção só foi homenagear seu tio? Então, por que toda essa indignação se o objetivo inicial foi alcançado? Jamais se desfaça de um ato nobre por um punhado de dinheiro. Asseguro-lhe que não se sentirias bem”.Depois disso, aquela agitação cessou e ele voltou a dormir em paz.

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Os Demóstenes

Demóstenes de Alcântara Martins, ilustre senador da republica. Eleito a quarta vez pelo voto direto. Homem tido como íntegro e a cima de qualquer suspeita. Formado em direito, usineiro e próspero fazendeiro na área de pecuária. Sua renda mensal do ano que passou foi em torno R$ 200.000,00.Demóstenes de Alcântara Martins, homônimo, de origem extremamente pobre e não tão ilustre quanto o senador. Desempregado desde novembro último, mas também um homem íntegro e sem nenhuma mancha. Conseguiu terminar o primeiro grau. Sua renda mensal quando trabalhava era de R$ 950,00. Isso porque fazia três horas de serão todos os dias.O senador Demóstenes há mais de dez anos não sabe o que é declarar imposto de renda e para não perder o costume não declarou esse ano também.Já o seu homônimo, mesmo sem ter a necessidade de fazer tal declaração, não deixa passar um ano se quer sem enviar a mesma. Entretanto esse ano deixou de fazê-lo devido a sua internação, que por culpa de um erro médico encontra-se em coma na UTI de um hospital público, há cinco meses.A Receita Federal como todo o ano não se furtou em avisar. Mandou sua correspondência de advertência ao senhor Demóstenes.

Ilustríssimo Senhor Senador,Doutor Demóstenes de Alcântara Martins.Tomamos a liberdade de informar a Vossa Excelência, que nos últimos cinco anos não temos registro de ter recebido sua declaração do Imposto de Renda. Solicitamos que verifique junto a seu contador se procede nossa lembrança. Caso já tenha regularizado tal situação queira desconsiderar essa

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correspondência.Secretário de Fazenda.

Demóstenes quando saiu do coma a primeira coisa que quis saber foi à data em que estavam. Tão logo soube, perguntou para a sua mulher se ela tinha providenciado a entrega da declaração do imposto de renda.Sua mulher carinhosamente pediu para que ele não se preocupasse com aquilo, afinal eles nem eram obrigados a fazer declaração. Mesmo assim José mostrava-se preocupado com tal situação. Passados alguns dias obteve alta do hospital e foi para casa.Como todos aqueles que não entregaram a declaração do imposto de renda, também recebeu a notificação da receita federal.

Senhor Demóstenes.Nossos computadores acusam o não recebimento da sua declaração do ano passado. Compareça dentro de 48 horas para regularizar tal situação. O não comparecimento a este órgão implicará na inclusão do seu bem (uma casa) na divida ativa da união, sob pena de confisco da mesma e perda da inscrição no cadastro de contribuintes.Secretário de Fazenda.

Sua excelência, o senhor Demóstenes, honrado senador da República, continuou viajando pelo Brasil e o mundo as custa dos contribuintes, e desfrutando de tudo a que tem direito, não dando a menor atenção para a cobrança recebida.Já o senhor Demóstenes, humilde cidadão, com o impacto da cobrança voltou a ser internado e encontra-se em coma.

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Amor Passageiro

Júlio conheceu a bela Clarice num final de semana dentro do ônibus. Estavam indo para numa dessas festas que aparecem de repente e se vai só porque nada se tem para fazer.O casal chamava a atenção de todos por sua beleza. Era o par perfeito. A inveja e o desejo tomavam conta da maioria dos presentes, deles por ela e delas por ele. Desse encontro começou o namoro, que hoje em dia é comum dizer “ficaram” e desse ficar passaram as juras de amor eterno. Tudo ia as mil maravilhas. Até música para ela, ele fez. Casaram-se e o sucesso bateu-lhes a porta. Tudo era só felicidade.A vaidade burra e a busca pela beleza perfeita o levaram a uma plástica. Diga-se de passagem, desnecessária. Como se a natureza quisesse se vingar pelo desperdício, a operação que era coisa simples, complicou. Júlio entrou em coma e ao retornar dela, trouxe junto as sequelas. Com os movimentos comprometidos e a fala arrastada, passou rapidamente de belo, a fera.Tristeza total e geral.Que pena! Aquele amor que parecia eterno, imediatamente desapareceu, deixando-o só com sua nova parceira.A cadeira de rodas.

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Voo Trágico

Conceição do Mato Dentro.Os filhos do lugar como costumam mencionar sua localização assim; – A capital mineira do ecoturismo. Aqui é pertim di bel-orizonti. Como toda cidade do interior sempre tem um caso para ser contado, está também tem o seu. – Só não sei se é verdade, mas juro que vou contar tintim por tintim sem mudar uma só vírgula dessa história. Padre Augusto, incansável e fiel seguidor dos dogmas da igreja elegeu o dia treze para nesta data todos os meses realizar sua missa, uma vez que não era ele o pároco oficial da pequena cidade. Tinha sido transferido para lá há nove meses.Já há alguns meses, todo santo dia uma beata da paróquia trazia um recado do centro, para o padre Augusto.— Padre, sua benção...— Deus a abençoe irmã.— Andam falando do senhor lá no centro. — A senhora anda frequentando aquele terreiro de macumba?Como todo brasileiro que se presa; vai, mas diz que não, mentiu. — Não senhor! Ouvi falar num sei bem onde. — Deixa que falem não tem problema.Chegou novamente o dia treze e lá estava o padre Augusto mais uma vez em sua pregação sentando o pau na outra religião.— Minhas irmãs e meus irmãos o terreiro do seu Joaquim e casa do diabo são a mesma coisa... Afastem-se de lá... Depois não venham dizer que eu não avisei. Padre Augusto ameaçava até de excomunhão aqueles que por ventura a frequentassem, mesmo que só por curiosidade.Maria Padilha, uma das beatas mais velhas, passava dos oitenta anos, procurou o padre depois da missa e o alertou.

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— Escuta padre! Fiquei sabendo lá no centro que o senhor mete o pau na macumba é por que tem medo de ser médium.— Não diga besteiras, dona Maria Padilha e pare de ir lá porquê senão serei obrigado a proibir até mesmo a senhora de vir às missas.Tantos foram os recados e as investidas junto ao padre, insistindo na sua mediunidade, que ele resolveu tirar a limpo tal situação. Sem qualquer aviso prévio, num dia reunião, ele foi pessoalmente ao centro.Assim que chegou ficou surpreso com a quantidade de fiéis presentes no local. Alguns, até de branco estavam vestidos. Eram médiuns.Entrou terreiro adentro indo direto na direção do Pai de Santo que naquele momento já estava incorporado.Era sessão de povo de rua.Aquele, vendo o padre caminhando em sua direção deu ordem aos Ogãs para que tocassem um determinado ponto.Não foi possível dar mais nem um passo. O padre caiu de joelhos dando uma forte gargalhada. Ao levantar-se, cantando, cumprimentou e apresentou-se.Boa noite, gente...Como vai... como passou...Tranca-rua é pequenino...Mas é bom trabalhador...Rararara!!! Para surpresa de todos lá estava de batina e tudo, o padre Augusto, incorporado com o Exu Tranca-ruasE foi assim que eu escutei, contei e nada aumentei.

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Moralização

São Pedro conversava com São Paulo durante sua caminhada matinal.— É Paulo, o homem lá de cima me chamou e me deu a nova direção a seguir.— Do que você está falando, Pedro?— Vou explicar; “Ele” não aguenta mais ver essa montoeira de santo andando pra lá e pra cá sem fazer nada de produtivo.— Mas porquê isso agora?— É que “Ele” acha um desperdício. Tantas almas perfeitas aqui e à toa, enquanto no setor 171 da terra o caos impera sob o controle de almas imperfeitas. Fui obrigado a concordar com “Ele”. O homem está cheio de razão.— E o quê “Ele” pretende fazer? — “Ele” quer que todos os santos encarnem imediatamente e permaneçam por lá durante oitenta anos. Tempo suficiente para eles ocuparem todos os cargos chave do setor e arrumar de uma vez por todas aquele local.— Esse local lá na terra não é o Brasil?— É lá mesmo.— Xi! Aquilo lá não tem jeito não, Pedro. E melhor tomar outra providência.— Mas o homem quer assim. O que eu posso fazer? — Isso não vai dar certo. Escuta o que estou lhe falando. E quando começaremos a enviar santos?— Imediatamente. Amanhã encarnam de uma só vez 8.000.— Nossa! Pelo visto a coisa é pra valer.— Com certeza. Depois de amanhã irão os restantes. — E quantos mais, são?— Mais 5.000 e pronto, está completo o quadro da moralização.Assim foram cumpridas as determinações do altíssimo. Todos

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encarnaram. Foram educados nos melhores colégios. Formaram-se e ocuparam todas as posições de comando no país. O tempo passou rapidamente. Um belo dia São Pedro foi chamado à presença de Deus.— Pois não Senhor. No que posso servi-lo?— Pedro? Por acaso você esqueceu de enviar nossos santos ao Brasil conforme ordenei? — De forma alguma, Senhor. Enviei-os no devido tempo. Eles já devem estar até voltando da missão, pois já se passaram os 80 anos. Prazo que o Senhor mesmo determinou.— Então algo deu errado. Procure saber e me informe, porque pelo que estou sabendo não mudou nada no setor 171. Muito pelo contrário, piorou demais.— Vou verificar Senhor e o colocarei a par.São Pedro saiu esbaforido para saber o que tinha acontecido, afinal nem ele e nem São Paulo acompanharam de perto a missão. A pressa era tanta que esbarrou com São Paulo e não notou.— A onde você vai dessa maneira, Pedro? – Paulo segurou-o pelo braço parando sua trajetória.— Cadê os santos, Paulo? Pelo tempo sei que já voltaram, mas onde eles estão?— Eu lhe avisei que não ia dar certo. Você não quis acreditar. E não foi por falta de aviso!— Deixa de conversa e diz logo onde estão?— Estão todos lá no INFERNO.

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Aprendendo pelos corredores

Esse caso me foi contado, como uma piada e aos risos dos presentes, quando eu ainda viajava por Brasília. Se realmente aconteceu não posso garantir, entretanto foi narrado com a riqueza de detalhe que transcrevo agora. Dia primeiro de Janeiro. Posse dos novos mandatos no Congresso Nacional. Após as solenidades todos os políticos estavam dirigindo-se ao salão nobre para o coquetel, quando um dos novos deputados, eleito para o primeiro mandato, dirigiu-se ao velho astuto e experiente senador. — Excelência, sabe me dizer se temos ratos aqui no Congresso?— Fale baixo, nobre deputado. Você está querendo comprometer a casa?— Como assim? Por que toda essa preocupação?— Não vê que estamos rodeados por jornalistas? Estão sedentos por um novo caso. Não bastam os que já nos preocuparam no ano passado? Quer arrumar mais um?— Mas eu só estou querendo saber sobre a existência ou não de ratos, nada mais.— E você acha que isso não nos compromete?— Evidente que não, senador.— Evidente que sim, senhor deputado. Com a avidez por notícias que o pessoal da imprensa anda, logo irão transformar seus pequenos ratos em grandes bodes expiatórios, que com certeza seremos nós.— Mas como pode o senhor pensar dessa forma, excelência?— Nobre deputado, vê-se logo que este é o seu primeiro mandato. O senhor ainda terá muito que aprender nesta casa.— Senador, eu só perguntei...— Pois não pergunte, deputado. Ainda mais quando se trata de assunto tão comprometedor e sendo a hora nada apropriada. Daqui

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para frente procure só observar. Entendeu?— Estou começando a entender, excelência.— E o que o nobre deputado entendeu dessa nossa conversa? Posso saber?— Entendi que precisamos zelar pela aparência. Evitando ao máximo falar de assuntos que possam vir a nos comprometer, afinal temos que nos manter acima de qualquer suspeita. Certo?— Certíssimo. Vejo que entendeu perfeitamente.— Pelo entusiasmo com que defendeu meu silêncio, penso que por enquanto...— É melhor nem pensar, deputado... Nem pensar. Pode vir a se comprometer seriamente.— Não estaria o senhor, radicalizando, excelência?— Lembre-se deputado; – silêncio, observação e caldo de galinha não fazem mal a ninguém.

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Uma grande amizade

Armindo, ex-gerente de uma grande multinacional, nos últimos dez anos vivia de teimoso, como todo pobre, mas mesmo assim jamais perdera o senso de humor. Tinha perdido o emprego e desde então não mais conseguiu se colocar, passando a viver de trabalhos que nada tinham a ver com ele.Um belo dia estando no supermercado a fazer compras com sua mulher, avistou na saída dos caixas um velho conhecido que há vinte e cinco anos atrás havia empregado na empresa onde trabalhava, alias não só a ele, mas também a sua mulher, só que em outro local.Armindo achegou-se despercebidamente de Lauro e num movimento rápido fingiu roubar-lhe a chave do carro, mas continuou parado esperando a sua reação. Este, com ar de superioridade levantou um dos cenhos, olhou-o e fingindo grande esforço para lembrar, perguntou:— Nogueira? – Era o sobrenome de Armindo e com o qual é conhecido no mercado.— Estou tão diferente assim, Lauro?— Não muito, mas tem bastante tempo que não lhe vejo e a gente ficando velho muda um pouco... Sabe como é.— Não, não sei. Só estou com sessenta! – Riu. Você é que está diferente. Está parecendo até um português.— Português, eu? Com essa cara de paraibano? – Riu também. Como vai a família?— Todos bem. – E mostrando sua mulher que estava ao lado perguntou irônico: “Não está conhecendo mais a Magda”?— Claro! Como vai, Magda? Tudo bem? – Cumprimentou meio sem graça.Magda respondeu afirmativa e Armindo deu continuidade ao papo.— Onde você está agora?

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— Sou supervisor de vendas... – Dizendo o nome da empresa que não vem ao caso. Agora mesmo no mês passado estive em Portugal pela a empresa. - Falou não cabendo de contentamento.— Então está explicado. Vai ver por isso o achei parecido com um português. – Outra vez riu.— E você, onde está?— Estou desempregado. A propósito, lá tem vaga para um quase velho?— Não, no momento não, mas não temos problemas com idade. Manda-me seu currículo que vou ver o que dá para fazer.— Farei isso, mas me diga o que achou de Portugal.— Uma maravilha, outra cultura. É a Europa, você sabe como é. – Elogiou cheio de vaidade. Despediram-se depois de terem batido um longo papo no estacionamento lembrando os velhos tempos.Naquele dia mesmo, tão logo chegou em casa Armindo enviou seu currículo por e-mail ao amigo.Lauro, meu amigo,Conforme o combinado, aí vai meu Currículo.Abraços,Nogueira.Armindo recebeu no outro dia a seguinte resposta do velho amigo:Bom dia, Nogueira.Vamos ver o que Deus terá reservado para você, e que ele abençoe nossos contatos.Um abraço,Lauro Batista.Alguns meses depois, nada ainda tinha sido reservado para Armindo. E pelo visto Deus também não tinha abençoado os contatos, pois nunca mais se falaram e nem se encontraram, mesmo com algumas tentativas do Armindo.

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Do sonho à realidade

Adalgamir não tinha mais aquela determinação em ter um carro 0km, pois já não seria o primeiro; e verdade seja dita, não tinha a menor intenção de comprar um novo carro. Portanto, não deu muita atenção quando Sigismundo, o vendedor de consórcios de automóveis, veio visitar seu amigo no escritório para vender um.Porém ao saber que Aldegundo, seu amigo, não fizera negócio e tendo sido ele o responsável pelo vendedor ter ido visitá-los, Adalgamir resolveu fazer parte daquele novo grupo de consorciados que se iniciaria.Para surpresa de ambos foi logo sorteado no primeiro sorteio.Visitou a agência da concessionária e lá escolheu o melhor carro do momento. Como gostava de viajar, aproveitou e mandou que fosse instalado um bagageiro.Chegando no condomínio a vizinhança não pôde deixar de notar aquele carro vermelho.A família ficou encantada com a aquisição, mas Adalgamir não conseguia entrar naquele clima de alegria que contagiara a todos. Tinha a sensação de que algo não muito bom iria acontecer — e aconteceu. Em menos de uma semana estava parado no sinal quando Dona Gravitolina, uma senhora desatenta ao volante, entrou na traseira do seu carro. Discussões à parte, o veículo foi consertado.Não demorou muito e teve a notícia de que o plano de consórcios havia mudado, e o seu também. Passara de 50 prestações para 75 sem nenhum aviso ou consulta. Adalgamir decidiu que não pagaria uma prestação a mais. Decidiria na Justiça tal arbitrariedade. Pois bem, aquela sensação de que não deveria ter comprado o carro aumentava a cada dia, a ponto de até sonhar. Foi num desses sonhos que se viu parando num estacionamento quando, ao retornar para pegar o carro, só encontrou o bagageiro suspenso por

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quatro canos no local. Acordou assustado e comentou com a Audicréia, sua esposa. Mas a mesma enfatizou que tudo aquilo não passava de um sonho.Adalgamir teve as suas dúvidas.Passado os 50 meses, parou de pagar o consórcio e o caso foi parar na Justiça.Seu amigo, o advogado Furdêncio garantia sempre que a causa seria ganha. Entretanto, num belo dia, bem cedo, um oficial de justiça o acordou e levou seu automóvel, só deixando o bagageiro apoiado no muro da garagem, igualzinho ao sonho que teve.

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Progresso

Auge dos anos cinquenta. O progresso chegava a todo vapor. Cada vez mais os automóveis tomavam conta das ruas. A televisão começa a fazer parte da vida das pessoas mais abastadas, entretanto ainda era comum vermos pela cidade, o lixo sendo recolhido em carroças puxadas por burros. Incrível, mas era a pura realidade da época.Gustavo, condutor de uma das carroças da limpeza urbana estava com o tempo contado para terminar seu trabalho. Precisava ir a maternidade visitar sua esposa que acabara de dar a luz. Não via a hora de conhecer seu novo filho.Sabendo que o hospital ficava do outro lado da linha férrea. Resolveu ver o bebê rapidinho durante seu trabalho. Deixou a carroça estacionada em frente à passagem de nível e lá foi. Não demoraria nada. Correu atravessando a rua livrando-se dos poucos carros que passavam com exímia maestria. Seu trabalho dera-lhe também essa habilidade para lidar com aquele novo perigo. Já na travessia da linha não teve tanta sorte e foi atropelado por um trem que passava naquele momento.A noite sua mulher ainda no hospital assistiu pela televisão a notícia de sua morte.

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O Garanhão

Numa operadora de cobrança, dessas que abrigam uma enorme quantidade de rapazes alegres, lá estava ele, o Garanhão. Não se pode dizer que ele era o protótipo da espécie, pois não era alto e tampouco bonito, mas dominava como ninguém o mistério da sedução.Em toda a empresa não havia quem não ficasse imantado pelo seu carisma. Entretanto, um grande segredo estava adormecido ou guardado a sete (cores) chaves, sabe-se lá, que nem mesmo ele tinha se dado conta. Até que, logo após uma festa carnavalesca na empresa, esse segredo aflorou e o cobiçado garanhão não teve mais como segurar tais impulsos de alegria.Durante alguns dias após essa descoberta, ele ainda tentou em vão conter a desenfreada mudança. Mas como não obteve êxito, resolveu entregar-se de corpo e alma ao grupo dos alegres. Para mostrar que estava decidido no intento de se assumir, naquele dia já foi trabalhar vestindo uma camisa na cor rosa com a estampa de uma bela flor nas costas.Logo que chegou na empresa a alegria foi quase que geral. Só ficaram entristecidos os amigos mais chegados e a mulherada que sempre alimentou a chance de poder a qualquer hora desfrutar algum prazer com ele. Tudo isso porque, até pouco tempo, o mesmo, além de noivo, era tido como grande pegador. Depois disso restou a dúvida: O suposto garanhão era pegador de que?

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O visitante indesejado

Naquele sábado, Maldonado e Arlete acordaram bem cedo e saíram para as compras no supermercado, pois tinham a intenção de ficar com o resto do dia livre para outros afazeres.Quando voltaram já o encontraram refastelado em sua varanda. Parecia até que a casa era dele, tal a maneira como os recebeu.Não disseram nada, devido à surpresa do momento, e ele também não, obviamente. Mas logo que abriram a porta foi inevitável, ele adentrou sem nenhuma cerimônia e se instalou.O que fazer?Diz a boa educação que deveriam receber bem o visitante, pois é a partir desse ato que saberiam se ele voltaria ou não a visitá-los. Entretanto, o casal não fazia a mínima questão de que voltasse. Decidiram então cortar o mal pela raiz, mesmo que isso fosse de encontro aos seus princípios. Mas como? Gritar não seria de bom alvitre, pois chamaria a atenção dos vizinhos e eles poderiam interpretar mal tal atitude.Uma boa comida é claro que o levaria a visitá-los outras vezes, já uma de pior qualidade provavelmente não mais o deixaria tão seguro em retornar. Tinham de ser rápidos na decisão, pois poderiam perder o controle da situação e com certeza se arrependeriam amargamente.Assim o fizeram:Que gritar que nada! Comida? Nem boa e nem ruim.Cada um pegou uma vassoura e meteram a porrada naquele rato safado que achou que ia se dar bem na nova mansão, mas o trataram com o máximo respeito pós mortem.Enterraram-no bem fundo no belo jardim da casa e colocaram uma pequena placa avisando aos futuros visitantes da espécie. “Se não fores o Super Mouse, acabarás aqui.”

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Passeio Mortal

Certa vez Maneco se viu dormindo em sua cama: Como posso estar ali estando aqui, se perguntava.Mas não acabou ai, de repente, sentindo que realmente podia flutuar saiu janela afora. Meio sem entender o que estava acontecendo resolveu passear pela cidadezinha.Maravilha! Posso voar! Gritava alegremente.Mais tarde voltou, mas não encontrou seu corpo no quarto. Onde estaria ele? – Pensou.Viu Alice, sua irmã, chorando. Tentou lhe perguntar o que estava acontecendo, mas ela não o ouvia. Resolveu segui-la para ver aonde ia.Surpresa!Foi parar no cemitério. Entrou com ela. Na capela viu uma família reunida, mas não reconheceu ninguém. Quem teria morrido? - Pensou.Aproximou-se do caixão e viu que era ele!Gritou apavorado: – Sou eu! Não pensou duas vezes. Pulou dentro do seu corpo e levantou gritando. Estou vivo de gente... Estou vivo!Alvoroço geral nas capelas.Feliz, Maneco saiu porta afora abraçado com a irmã. Entretanto, Jurandir, o velhinho intrometido que por ali passeava, com o susto caiu fulminado.

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A Bala Perdida

Comunidade da Pomba Branca. O nome refere-se ao símbolo é da paz, mas o tiroteio comia solto na região. O corre-corre era geral. Desespero total. Ninguém se arriscava a por a cara na janela, quanto mais, o corpo na rua. Em pouco tempo o local estava deserto.Lá do fundo de um dos becos chegava o choro de criança, que aos poucos tomou conta do lugar. Impressionante o pulmão daquele guri. Devia ter uns seis anos no máximo, mas gritava como gente grande. Quando o tiroteio acabou, acudiram o menino, que logo justificou o seu berreiro.— Tem uma bala perdida.Entraram na casa a procura de alguém que pudesse ter sido atingido por algum tiro, mas não encontraram ninguém. Lá dentro dormia sua mãe bêbada que nem um gambá e sem nenhum ferimento.Tentaram acalmar a criança de todas as formas, mas em vão. Ela continuava insistindo que tinha uma bala perdida. Continuaram com a procura pela redondeza. Depois de procurarem por meia hora e não encontrando ninguém ferido, desistiram, mas não deixaram de dar atenção ao garoto explicando-o que não havia nenhuma bala perdida.Entretanto o guri ainda chorando, rechaçou dizendo:— Tem sim, uma bala perdida. Olha aqui olha. Tinham três balinhas no meu saquinho agora só tem duas.

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Calculando

O início da tarde mais parecia noite, tal a quantidade de nuvens negras.Tudo indicava que a tempestade começaria a qualquer momento. A forte ventania e os relâmpagos que já riscavam o céu eram a prova disso, calculou Jandira.Começou rapidamente a fechar todas as janelas da casa grande e, de uma delas, avistou lá fora no meio do pátio, amarrado ao tronco, o escravo fujão Dionísio ― o amor da sua vida.Correu a falar com Ágata, sua ama, calculando que ela intercederia por ele, pois se o mesmo ficasse ali, morreria na certa.Teve como resposta: “Não vou atendê-la. Meu marido viajou e não posso desautorizar o capataz. Calcule o que ele diria.”Logo teve início a violenta tempestade. Jandira, desesperada e sem nada poder fazer, rezava para que o tempo se acalmasse. No final da tarde, Oduvaldo, o amor de Ágata, chegando de viagem, avistou ao longe o seu escravo mais valioso preso ao tronco e deduziu: “Ele deve ter fugido de novo, por isso está preso”. Correu para tirá-lo de lá, calculando que se um raio atingisse o escravo, teria um enorme prejuízo.Como ele estava amarrado fortemente, Oduvaldo teve dificuldade em soltá-lo. E no desespero, não calculou que também poderia ser atingido.Da janela onde a chuva batia forte e dificultava a visão, Jandira e Ágata se esforçavam para assistir a cena desesperadora, calculando como tudo acabaria.Não demorou e elas logo viram quando os dois foram atingidos por um raio fatal...

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O Último ato

Não se falava noutra coisa na cidade. A mídia a todo instante avisava que seria uma única apresentação daquela companhia estrangeira. Durante seis meses, Moacyr, juntou dinheiro para comprar o ingresso e assistir a peça.Dia e hora marcados lá estava ele, foi o primeiro a chegar no saguão do teatro, aguardando para se acomodar. Tinha comprado o camarote mais próximo do palco e ter uma visão privilegiada. Pagou uma fortuna, mas estava feliz. Um pouco nervoso e preocupado com sua barriga, mas feliz.Começou a peça. Atores em cena. Figurino deslumbrante. Via tudo sem perder um único detalhe. Acústica excelente parecia até que os atores falavam para ele, tal a clareza. Moacyr estava fascinado com tudo a sua volta, era a primeira vez que ia a um teatro, e esse, era o Municipal do Rio de Janeiro. De um pouco nervoso, passou a muito nervoso. Soltou um peidinho! Achou que tinha se sujado. Passou a mão na bunda por fora da calça, mas não conseguiu confirmar sua suspeita. Primeiro intervalo. Deixou o camarote e dirigiu-se rapidamente ao banheiro, pois precisava ver se tinha se sujado e porque também já não aguentava mais, tanta dor na barriga. Passou o intervalo inteiro no vaso sanitário. Quando saiu, pode ouvir o anúncio do segundo ato. Correu e se acomodou. A dor de barriga continuava. Moacyr já desesperado, em pé e com calafrios rezava para aguentar até o próximo intervalo. Conseguiu.Segundo e último intervalo. Saiu correndo em direção ao banheiro. Lá se deparou com todos os reservados ocupados. Esperou saltitando pé em pé e suando frio de tanta dor e vontade de cagar. Quando o último ato foi anunciado, ele acabava de sentar-se ao vaso. Cortou pela metade o que estava fazendo, se ajeitou e voltou

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correndo. Afinal aquela companhia não iria se apresentar novamente na cidade e ele não podia de jeito algum perder aquele ato. Na pressa, ao entrar no camarote escorregou e caiu. Na queda, bateu a cabeça e desmaiou. Ato contínuo cagou-se todo, ainda desmaiado. O cheiro de merda impregnava todo o ambiente. Os olhares se voltaram para seu camarote, mas não viam nada, pois, ele desmaiado continuava caído ao solo. Terminou a peça. Moacyr acordou com os funcionários do teatro levando-o para tomar banho. Descobriu duas coisas; estava todo cagado e não assistiu o último ato da peça.

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Doença maligna

Juvenal saiu de casa naquele domingo e não voltou. Valquíria, sua mulher, estranhou pois ele não tinha o hábito de demorar. A noite passou e ele não apareceu. No dia seguinte, já preocupada, a esposa saiu à sua procura. Esperando encontrá-lo, passou em todos os locais que ele gostava de frequentar. Nada, nem sinal dele.Dois dias mais tarde, Juvenal foi encontrado dormindo debaixo do viaduto. Levado para casa, foi cuidado e tratado com todo carinho. Estava muito mal. Dias depois, sumiu outra vez. Mesma maratona de busca. Achado e levado para casa, Valquíria resolveu levá-lo ao médico, que logo pediu vários exames.Com os resultados em mãos, o diagnóstico foi rápido: insanidade mental em último estágio, sem contestação.A prova estava visível na tomografia cerebral. Aparecia nela o escudo do Flamengo.

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Desvendando a Justiça

Praticamente toda a família estava reunida na ampla varanda da fazenda a espera de algum comunicado. Entretanto até aquele momento ninguém se manifestara reivindicando qualquer quantia pelo sequestrado.O juiz Yuri acabara de se oferecer para levar o dinheiro do sequestro que seu tio, o desembargador Orles, sofrera. Quando veio o anúncio...— O Dr. Breno, o delegado Mol e o juiz Brigs estão subindo.Todos ouviram pelo interfone o aviso vindo da portaria e voltaram à atenção para o carro de polícia que subia em direção ao antigo casarão que pertencera ao Barão do Mato Alto.— O Brigs? O que esse canalha está fazendo aqui? – Indagou Laura, mãe de Yuri.— Calma, não vamos nos precipitar. – Recomendou Justus, o pai de Yuri. — Terão descoberto algo sobre o sequestro? – Dúvida levantada pelo ministro do supremo tribunal, o Senhor Aral. — Preparem seus corações, que vem notícia do tio Orles. – Yuri tentava preparar sua tia Ilma e seu primo Melo, que estavam na casa de seus pais para não tomarem um choque.Na verdade, nem de longe imaginava que quem receberia o choque era ele.O delegado Mol prendera o juiz Brigs, pois descobrira ser ele um dos mandantes do sequestro.— Delegado, por que o senhor trouxe esse senhor a nossa casa? – Perguntou Yuri.— Não tive alternativa, juiz.— Como assim? Pode se explicar melhor?— Claro que posso. Descobri que o juiz Brigs, junto com o Dr. Breno e seu pai, são os responsáveis pelo sequestro do seu tio.

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Como pode ver, não tive outro jeito.Yuri, incrédulo, quis saber do próprio pai se tal acusação era verdadeira.— Ouvi bem o que o delegado acaba de nos informar, pai?— Fomos obrigados a realizar o sequestro, filho.— Mas por quê?— Foi à maneira que encontramos de ter o voto dele a nosso favor.— Sequestrado ele não vota, esqueceu?— Por isso mesmo. Sem o voto contra dele, nós venceríamos e após as eleições nós o soltaríamos.— Custo a acreditar no que ouço, mas enfim, o que está feito está feito. O que você pretende fazer, delegado?— Estou aqui justamente para saber sobre isso. O que fazer?— Agiu muito bem vindo até nós, delegado. – Elogiou a senhora Laura.— Então, o que faço agora?— Nada e não se preocupe, que nós nos encarregamos do caso a partir de agora. Afiançou o ministro Aral. — Já entendi, vou abortar toda operação, libertar o acusados e não efetuar nenhum registro. Certo? – Ironizou o delegado.— E cuide para que a imprensa não tenha acesso aos resultados das suas investigações, delegado Mol. – Recomendou o ministro Aral com ar ameaçador. — Fique tranquilo, senhor. Boa noite. – Despediu-se o delegado, agora sem deixar transparecer sua indignação.— Boa noite. – Despediram-se todos quase que ao mesmo tempo.

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Campanha Eleitoral

Naquela pequena cidade do interior, o sujeito revoltado estava sentado no banquinho do pé sujo da esquina soltando a língua nos políticos, quando de repente chegou um. É claro que tudo parou. Até porque, quem é que consegue falar mais do que um verdadeiro político em campanha. Este por sua vez como que a não desmitificar a fama de falador, começou a soltar o verbo. Era promessa de todo tipo e para todos os gostos. Mas como é que o senhor vai fazer isso? - Surgiu do nada a pergunta. Quem perguntou? - Quis saber o político. Eu. - Acusou-se o sujeito que a pouco metia o pau neles, (os políticos). É simples, assim que eu me eleger vou fazê-lo meu assessor e você será o responsável direto pelo cumprimento das minhas promessas. - Assegurou o político. Mas quem garante que o senhor irá cumprir o que acaba de falar. - Fustigou o sujeito. Ah! Isso você terá que pagar para ver. - Afirmou o político. Pagar para ver? Mas ainda nem recebi e já terei que pagar? - Reclamou o sujeito. Correto, mas não vai lhe custar muito, na verdade você só terá que angariar votos a meu favor para que tudo o que foi dito aqui se realize. Fácil, não? - Sorriu o político certo de que havia convencido mais um para sua nobre causa (locupletar-se). “Afinal não é assim que sempre funciona? Promessas mirabolantes mais ilusão do povo é igual a voto certo.” O político dando por encerrada sua apresentação despediu-se e foi embora.— E aí pipoca? ( era o apelido do sujeito em questão) Vai trabalhar para o futuro deputado? - Surgiu a sarcástica pergunta.

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— Nem a pau Juvenal! Ele nem disse quanto eu ia ganhar... Como posso me comprometer?

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O negociador

Na sala de reunião de um grande banco, Álvaro e Roberto, presidente e vice-presidente respectivamente, discutiam sobre a eficiência e a capacidade de um dos gerentes em negociar. Estava em jogo sua promoção ao cargo de diretor naquela organização.— O Ivo é capaz de efetuar qualquer tipo de negócio e de qualquer maneira. Até mesmo se estivesse vestido como um indigente ele se sairia bem. – Garantiu Roberto defendendo o seu preferido para o cargo de diretor.— Você não acha que está exagerando um pouco? Temos outros profissionais tão bons quanto ele. Eu por exemplo posso citar...Álvaro foi logo interrompido. — Mas não seriam capazes do que eu falei. – Roberto tornou a afiançar o que tinha dito. Desse impasse surgiu o desafio da aposta. — Aposto cem mil reais que o Ivo não consegue negociar dessa forma. – Álvaro duvidou.Roberto não se intimidou.— Apostado, mas qual instituição será beneficiada? — Quem vencer escolhe. Não só a instituição, mas também quem será o promovido. – Lembrou Álvaro.— Combinado.Aposta acertada, os dois foram consultar o funcionário em questão se toparia o desafio. Ivo sem saber que sua promoção dependeria do seu sucesso, impôs sua condição.— Tudo bem eu aceito, mas se conseguir realizar a negociação eu mesmo quero escolher a instituição a ser beneficiada com a quantia. Nenhum dos dois se opôs à reivindicação. Como já era de esperar, Ivo foi mal recebido na loja de antiguidades. Não se importou com o atendimento a ele

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dispensado. Depois de muito procurar encontrou a antiguidade que seria colocada no salão do banco.— Gostei muito dessa aqui, quanto custa?Eudes, o dono da loja, que não estava nem um pouco satisfeito com a presença daquele cliente mal vestido, que mais parecia um mendigo, deu o preço bem acima do valor real. O dobro.— Duzentos mil reais.— A peça é realmente muito bonita e valiosa, mas esse não é o seu valor real e o senhor sabe muito bem disso.Começando com esse argumento, Ivo deu continuidade a sua intenção de compra e negociando habilmente, conseguiu convencer o senhor Eudes a vendê-la por noventa mil reais. Um preço menor do que realmente ela valia e ainda conseguiu que a mercadoria fosse entregue na sua residência sem custo adicional. Dessa forma também conseguia não revelar quem realmente ele era, pelo menos até aquele momento como fora combinado, pois agora tendo de pagar com seu cartão de crédito, provavelmente seria descoberta sua identidade. — Com certeza esse homem tem bom gosto. – Comentário do proprietário com os vendedores.— É o que está me parecendo. – Concordou um dos vendedores. – Mas como terá conseguido tanto dinheiro para efetuar essa compra? — Grande mistério, mas antes de entregar este pedido pedirei para a polícia investigar, mesmo com o seu cartão não tendo sido recusado, quero saber quem realmente ele é. – Sentenciou o proprietário. — Provavelmente ainda tem muito dinheiro. Só que agora por algum motivo prefere viver como se fosse um abandonado. Comentou o mesmo vendedor.— Ou quem sabe ele não é um milionário excêntrico e resolveu nos gozar? – Concluiu o outro vendedor.

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Ivo saiu da loja do esperto antiquário, feliz. Tinha cumprido todos os quesitos e ganhado a aposta para a instituição de caridade que ele mesmo iria escolher.Em contra partida, Bob, o antiquário, não entendia como pôde se deixar envolver por aquele mendigo. Acabara de vender a antiguidade mais rara da loja por um preço abaixo do estipulado.

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Seu Venâncio: o funcionário padrão

Qualquer empresa quer ter um funcionário como o Sr. Venâncio. Entretanto, onde ele resolveu trabalhar?Isso mesmo! Naquela operadora de cobrança, que abrigava vários rapazes alegres e o garanhão, não podia de forma alguma faltar ele, o seu Venâncio. E para lá ele foi.Na visão de todos, por sua simplicidade e gentileza, ele era um amor de criatura. Desde que começou a trabalhar nunca chegou atrasado. Não lhe era chamado a atenção por nenhum motivo. Não tirava hora de lanche, economizando com essa medida o café que a empresa oferecia pela manhã. Não se tinha notícia do mesmo sair para almoçar. Sempre que solicitado, apresentava rapidamente a tabela de descontos atualizada.Seu Venâncio não atrapalhava o andamento do serviço, pois não era visto conversando pelos corredores. Seu humor era contagiante pois, sempre que era mencionado, não havia um funcionário que não sorria. Não fazia fofoca e nem falava mal de ninguém. Enfim, um encanto de pessoa a ponto do dono da empresa querer saber de quem se tratava, já que dos mais de quatrocentos funcionários, só não conhecia o Venâncio.O único problema é que, apesar de todas essas qualidades, até hoje não se tem notícia de alguém tê-lo visto vestido. A não ser por um funcionário que sempre solicitava seus préstimos e este que relata.Dessa forma a única conclusão plausível é que ele, o seu Venâncio, não passa de uma grande farsa, fruto dessa gostosa imaginação.

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O herói voador

Dona Eugenia, uma senhora de 90 anos, estava conversando com alguns vizinhos no portão de casa, acompanhada do seu genro, quando surgiram quatro marginais anunciando o assalto e obrigando todos a entrar.Foi aquele "Deus nos acuda", um corre-corre geral, mas o fator idade pesou e Dona Eugenia teve que obedecer a ordem dos bandidos.Já dentro da casa, ela e seus familiares foram amarrados e amordaçados. Os safados começaram a pegar tudo que viam pela frente.Louro Goia, o falante papagaio de estimação de dona Eugênia, começou a voar pela casa e a berrar qual um louco: "Tropa de Elite osso duro de roer!". Os bandidos não acreditavam no que ouviam.E o papagaio continuava voando e gritando "Tropa de Elite osso duro de roer!".Até que um deles, provavelmente o chefe, deu a ordem: "Acabem com esse maldito falador!".Largaram o que estavam fazendo e começaram a caçada ao voador. Pula daqui, pula de lá, depois de algum tempo perdido conseguiram pegar o papagaio, que ainda assim mais uma vez conseguiu gritar "Tropa de Elite osso duro de roer!".— O que fazemos agora, chefe? - perguntou o que estava com o pássaro na mão.— Pisa nele, idiota! Mata esse maldito!Os quatro pisotearam o papagaio várias vezes, até terem certeza de que ele estava morto. Entretanto essa perda de tempo foi mortal para eles também, pois os vizinhos que fugiram chamaram a polícia, que chegou e prendeu todos eles ainda dentro da casa.Louro Goia foi sepultado no cemitério dos animais com honras e glórias da vizinhança.

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Ironia da morte

Amadeu nascera no dia 29 de fevereiro. Quando alcançou o entendimento, costumava brincar dizendo que as pessoas que nascem nesse dia só fariam aniversário oficialmente de quatro em quatro anos. Com isso, vivia a vangloriar-se que viveria muito mais e que levaria mais tempo para envelhecer do que as demais pessoas. E mais, quanto às chances de morrer no dia do seu aniversário então, era remota.Com essa brincadeira ia levando a vida. Porém, o que o levava na verdade a brincar desta forma era o pavor de saber que um dia teria de morrer. Nada o tirava mais do sério nem o preocupava tanto quanto essa realidade inevitável. E esse assunto complicava mais, quando algum amigo de molecagem lembrava que todos ao nascer já vinham com a passagem de volta para o além, comprada. Por acreditar ser a morte uma ignorante, pois desde criança a via levando as boas pessoas e deixando as que ele achava ruim, às vezes passava em sua mente a vontade de fazer o mal, mas logo se conscientizava de que este não era o caminho, teria que descobrir outro. Dedicou-se a estudar. Amadeu fizera bacharelado em Biblioteconomia e Documentação, além de alguns cursos de extensão. Todo esse estudo foi à forma encontrada para distrair a cabeça, parar de pensar na morte e encontrar um meio de enganá-la o máximo possível. Trabalhando na Biblioteca, um local tranquilo, só frequentado por estudiosos e intelectuais ele acreditava estar mais protegido ali. Quando perguntado porquê escolhera aquela profissão, justificava dizendo: – tudo ali dentro permanece vivo.Na sua concepção, não se sabe de onde tirou essa ideia, costumava dizer: – As bibliotecas sofrem ao longo dos anos a ação do tempo, as guerras, a censura e as pragas, contudo isso, mesmo assim elas conseguem sobreviver a todos esses ataques. É por isso que eu

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acredito que a morte jamais executará seu trabalho lá dentro.O tempo passou e a idade veio chegando sorrateira como acontece com todos, mesmo para os que nasceram naquela data. Estava para completar sessenta anos e como não podia deixar de ser, as pequenas doenças e os mal-estares também vieram junto. Mais até do que nos seus amigos.Amadeu envelhecia e não deixava de temer a morte, razão pela qual passava a maior parte do seu tempo dentro da biblioteca. Mesmo com a idade continuava pensando que dessa forma estaria livre dela ou pelo menos a prorrogando. Nos últimos tempos raramente ia para casa, e seus familiares já não sabiam mais o que fazer para mantê-lo junto a eles. Hoje, porém estavam todos felizes, pois sabiam que no dia seguinte – 29 de fevereiro, seu aniversário – ele ficaria em casa. Tinham tudo praticamente organizado e pronto para a festa, afinal não era sempre que se fazia aquela idade. Entretanto, naquela madrugada Amadeu acordou passando muito mal e com fortes dores no peito.“Não posso morrer no dia do meu aniversário”. – Pensou.Levantou rápido, se arrumou e saiu de casa deixando um bilhete explicando sua ausência.Sua mulher e os filhos pensaram que ele fora para o hospital, mas qual? Ao invés disso dirigiu-se para a biblioteca, pois o medo da morte o fazia pensar que ali estaria seguro. Chegando lá se sentiu aliviado, a dor até desaparecera, deitou na poltrona que tinha no seu escritório para descansar e ali adormeceu.Amanhecera. Marivaldo, seu colega de trabalho, chegou mais cedo do que o de costume e estranhou encontrá-lo ali deitado no sofá. Não era seu costume. Tentou acordá-lo, mas não conseguiu; Amadeu não respondia à sua chamada. Estava morto. Ao invés da festa; velório.Magda, sua mulher comentava com os amigos:— Meu marido passou a vida com medo e fugindo da morte. Nem

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mesmo suas previsões e o que achava se concretizaram; – não morrera tão velho como sempre previa, faleceu justo no dia de seu aniversário e dentro do local que achava mais impróprio, a biblioteca onde trabalhava.— A morte não escolhe lugar nem hora. – Disse um amigo.Que ironia da morte. – Pensava seus familiares.

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Esperança inabalável.

Solange não estava nada satisfeita nos últimos anos. Há muito que sua vida virara de pernas para o ar. Não podia mais viajar, nem passear e tão pouco se distrair, já que a situação financeira da família tornara-se extremamente difícil. Além do mais, também tinha se aposentado, e sentia falta dos tempos da escola barulhenta, quando ainda ensinava a criançada. Em seus pensamentos, agora sempre rondavam as piores ideias. A incerteza do amanhã era sua companheira constante, assim como passou a fazer parte de seu pensamento o sentimento de ter se tornado uma inútil; coisa que não era nem de longe. Por algumas vezes surpreendeu-se pensando até em acabar com a própria vida, ou sair porta afora e sumir, mas logo deixava essas ideias de lado. Sabia não ser esse o caminho; tinha uma família que ela adorava de paixão e a controlava nos mínimos detalhes. Por essas razões, nada desse mundo a faria deixá-los. Fazia sua rotina diariamente. Levantava cedo, fazia e servia o café da manhã e logo despachava todo mundo. Um filho para o trabalho, o outro para a escola. O marido, como estava desempregado, para o escritório onde ficava o computador. Arrumava as camas e colocava a roupa suja na máquina de lavar. Enquanto isso era processado, lavava a louça da noite anterior e a do café da manhã. Logo em seguida começava a preparar o almoço e ao mesmo tempo ia estendendo a roupa lavada para secar. Após a refeição recolhia-as da corda e as passava. Não sendo dia de faxina, quando tudo estava terminado, começava sua agonia. Como todo animal encarcerado, andava por dentro da casa procurando alguma coisa para passar o tempo. Não encontrando, dava uma meio descansada assistindo algum programa na televisão. Algumas vezes estava pelo quintal a cuidar do jardim ou a limpar a frente da casa, sempre com a esperança de acabar com

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aquela sensação de vazio. Mas tudo era em vão.Tinha doado seu cão, mistura de Labrador com vira-lata. Embora este tivesse lhe mordido a mão, ainda sentia muita falta dele.Assim Solange ia levando sua vida, mas sempre cutucava o marido, pois este botara na cabeça que era escritor e sonhava conseguir editar um livro, não fazendo mais nada do que escrever. Atitude esta que a deixava muito preocupada, pois o que recebia de aposentadoria era pouco para sobreviver e seu marido não tinha nenhuma fonte de renda. Entretanto, Osório acreditava piamente que iria conseguir editar seus textos e não desistia. Essa sua insistência algumas vezes causava mal estar ao casal, mas logo voltavam ao equilíbrio e ele tornava a lhe pedir ajuda. — Nós vamos conseguir e tudo vai voltar a ser como era antes, mas preciso que você faça a revisão gramatical - Dizia Osório, cheio de esperança.— Eu não vou perder meu tempo corrigindo nada. Acorda, homem! Para de viajar na maionese! Você não vai nunca conseguir editar esses textos. Se ainda fosse famoso eu não diria nada, mas você não o é. - Solange sempre procurava trazê-lo à realidade.— Eu entendo como você se sente, mas na minha idade é muito difícil tentar uma recolocação, por isso estou apostando nesses textos. Preciso fazê-los acontecer.— Pelo jeito você não vai desistir, não é mesmo?— Tenho que continuar acreditando que vale a pena insistir. – Dizia Osório cheio de alegria e orgulho. Solange continuava irredutível, mas a insistência de seu marido acabou por convencê-la. E como existem mais coisas entre o céu e a terra que a nossa vã filosofia pode imaginar, um dia o inesperado aconteceu. Tantas foram às editoras às quais Osório enviou seus textos, que uma resolveu editar um deles a título de experiência. Para grande surpresa dos editores e alegria dele, o livro foi sucesso absoluto e virou um best-seller. Logo outros textos seus eram

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editados acabando de vez com as dificuldades. Tudo voltou a ser como era antes, graças ao sonho, a insistência e a perseverança de Osório.

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Ratos e Gatos de gravata

Desde o primórdio dos tempos, para o nosso bem, os ratos foram condenados pelos Deuses a viverem isolados nos esgotos. Entretanto, passados alguns milhares de anos, resolveram que deveriam tentar a sorte na superfície. Para isso marcaram uma reunião onde compareceriam os representantes de várias regiões, e nesse dia traçariam seus novos destinos. No dia escolhido lá estavam ratos de todos os tipos: grandes e pequenos, pretos e brancos, velhos e jovens, fortes e fracos, da roça e da cidade. A impressão geral é de que nenhum faltara ao chamado. E ninguém se preocupava com tantas diferenças, porque na verdade sabiam-se irmanados em torno de um sonho comum: viver na superfície e comandar do grande queijo redondo, afinal, porquê só eles vivam nos esgotos e os gatos tão ladrões quanto eles não. Seria a suprema felicidade… Mas como, se para chegar a esse queijo teriam que esmagar uma quantidade enorme de gatos? Os ratos representavam apenas 0,00042% da população total daquela região.Já que estavam todos reunidos, começaram a conversar e desenvolver estratégias.― Vamos acabar com alguns desses gatos! Assim seremos a maioria! ― Diziam uns.― Para que isso? O queijo é grande o bastante para todos! ― Disse um outro.― Devemos socializar esse queijo e dividi-lo em partes iguais! ― Acrescentou o mais velho.Os discursos filosóficos eram emendados um após o outro e cada um ao seu término era aplaudido e ovacionado. Nunca se vira antes tanta união e fraternidade entre as ratazanas e os camundongos. No final ficou decidido que estudariam minuciosamente o

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comportamento daqueles gatos e tentariam se igualar a eles, para que dificilmente fossem distinguidos uns dos outros.Após algum tempo de sacrifício os ratos conseguiram se igualar aos gatos de tal maneira que até os Deuses não perceberam. Era chegado o glorioso dia de se infiltrarem na superfície.Saíram dos esgotos todos os ratos: fortes, fracos, velhos, novos, pretos, brancos. Passaram a fazer parte de todos os segmentos sociais, mas o objetivo maior era o grande queijo redondo.Uma nova reunião foi feita para saber como seria a divisão daquele enorme queijo e quem saborearia dele. Depois de muita polêmica ficou decidido que já estando o queijo dividido em duas partes: a meia lua voltada para cima ficaria sob a responsabilidade dos jovens camundongos e a outra meia lua voltada para baixo seria comandada pelas ratazanas mais velhas e experientes e elas é que dariam a aprovação final em tudo.Aprovado o projeto de socialização do queijo, tomaram posse. Mas logo a maioria dos ratos também perceberam que não mais havia diferença entre os ratos e gatos, pois todos eram farinha do mesmo saco. Os ratos mais fortes, juntos com os gatos, continuaram a enganar e subjugar os mais fracos, a fazer leis para se proteger e a aprovar aumentos de impostos sobrecarregando a todos. Tudo isso para poderem tirar do queijo uma parte maior. Agora só resta aos humanos exterminar esses ratos e gatos do Congresso, ou esperar que os Deuses tomem essas providências.

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Proposta Diabólica

— Táxi! – Gritou o estranho homem na beira da calçada, que aparecera do nada.Paulo parou seu carro e ouviu a pergunta do cidadão que acabava de entrar em seu carro. — O senhor pode ficar a nossa disposição o dia inteiro?Aquele passageiro cheirava a enxofre puro. — Como nossa, se só estou vendo o senhor?— É que outras pessoas nos aguardam. – Respondeu rindo. — Depende, o que desejam que eu faça?— Sou agenciador de programas para a alta sociedade.— Mas como funciona isso?— Meus clientes têm o desejo de se relacionar intimamente com um taxista.— Tem que ser eu? Por acaso fui escolhido ou eles se interessaram por qualquer um?— Não, a escolha é feita por meu chefe e eu sou encarregado de recrutar.— Você trabalha para alguma agência de emprego?— Mais ou menos... Então? Você vai passar o dia na residência deste casal?— Fazendo o que, propriamente? – Paulo insistiu em saber.— Ora transando com os dois ao mesmo tempo, ora só com ele, ora só com ela.— Agora sim está ficando interessante... Mas quanto eles estão pretendendo pagar pelo serviço extra? – Especulou o motorista já com a intenção de aceitar.— Aceita ou não?— Você ainda não me respondeu sobre o pagamento! — Vai depender da sua atuação.— Como assim?

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— A tabela varia: – Se for boa você continua livre; se for razoável, terá uma nova chance; se for ruim terá que frequentar o curso de reciclagem que meu chefe administra.— E quem faz essa avaliação: – o diabo? – Paulo gozou o passageiro sem saber na verdade de quem se tratava.— Que isso, amigo? Sou eu mesmo, meu chefe tem mais o que fazer. Ele só entra em ação se a sua atuação estiver abaixo da crítica. – Riu mostrando uma dentadura pra lá de amarela, de tão sujos que estavam seus dentes.— E esse curso que teu chefe ministra é feito no inferno? – Paulo continuou ironizando.— Agora você acertou em cheio, meu amigo. É lá mesmo. — E você que fica assistindo o meu desempenho aqui.— Claro, eu daqui e ele lá do escritório. Como vou poder avaliar seu desempenho? Não posso ser enganado.— Se me garantir que vai avaliar na melhor tabela, leva um qualquer. – Paulo continuava com a ironia.— Desculpe, mas não preciso de remuneração. Temos um contrato com eles pela eternidade e somos bem pagos.Nessa hora o cheiro do enxofre se acentuou ainda mais.— Meu amigo, não faço negócio do qual eu não possa ter controle. — Basta que você se esforce. Se precisar faça um acordo com o meu chefe que ele te ajuda.— Opa! Assim fica complicado. Melhor deixá-lo fora dessa conversa.— Ai sim complicou. Não tem como deixá-lo de fora, Ele participa de tudo e adora assistir essas festinhas. — Vai que eu passo com eles o dia todo e no final eles dizem que não gostaram? Como eu faço?— Você vai poder reclamar diretamente com meu chefe.O motorista demonstrando preocupação resolveu terminar aquele encontro.

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— Com essa resposta, aí mesmo é que acaba de complicar a coisa.— É pegar ou largar. Aceita?Paulo virou-se para responder ao passageiro.— Não posso aceitar. Tenho outro compromisso neste momento.Para sua surpresa ele tinha desaparecido.

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O herdeiro

Iran herdara com a morte da sua mulher aquela enorme fazenda. Parece que depois disso acentuou ainda mais a sua avareza, que não era pouca.A vista da paisagem passou a ser aconchegante, graças à construção do lago e da arborização colocada à volta, imposição feita por sua mulher um pouco antes de morrer, e essa vontade custou a Iran uma fortuna que vivia a reclamar tal desperdício. Seu apego ao dinheiro era tanto que certa vez ao ser indagado pelo irmão se poderia pagar o tratamento que seu sobrinho precisava fazer, respondeu:— Acha mesmo que eu gastaria meu dinheiro com doença, Alfredo?— Mas o meu filho pode morrer se não for operado urgente.— É a vida, meu irmão. Não posso fazer nada. Seu velho e compreensivo amigo Ari, dedicado espírita, que estava presente neste momento chegou a interceder em favor do menino, mas foi em vão.Quinze dias mais tarde morria o sobrinho desafortunado.Algum tempo depois da morte do menino, Iran foi visitado pelo amigo Ari, que o repreendeu e alertou:— Sua atitude com seu irmão não foi digna de um cristão. Arrependa-se enquanto há tempo.— Do que deveria eu me arrepender? — O pior cego é aquele que não quer ver, meu irmão.— Ari, deixe as citações para uma outra ocasião. — Então vou lhe dar um conselho; Já que você não quer mudar, procure deixar algum dinheiro à mão para um eventual tratamento que possa precisar. Sem ele, você poderá morrer.— Não estou doente. Por que faria isso?— E só uma precaução. Pense a respeito.

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— Não. De forma alguma farei isso. Ari, vendo que não conseguiria dissuadir o amigo de sua posição, deu por encerrada a conversa e a visita. O tempo passava e Iran continuava cada vez mais avarento. Praticamente virou uma doença esse seu comportamento.Sabendo disso, seu amigo Ari mais uma vez voltou a visitá-lo.— E então meu amigo, como tem passado?— Mais ou menos. Vez por outra a saúde da umas rateadas.— Iran, você ainda lembra do que lhe falei?— Claro, mas não é nada de tão grave, que um bom chazinho de ervas não possa resolver.— Eu continuo com o mesmo pensamento. Você precisa deixar um dinheiro aqui na fazenda para qualquer emergência. — Não posso deixar de aplicar meu dinheiro. Além do mais, o meu procurador é o Alfredo, meu irmão. Esqueceu-se? Ele não me deixaria morrer por falta de recurso. Afinal, o dinheiro ainda é meu, ele só o administra para mim.— Não se esqueça que você se enfiou nesta fazenda, longe de tudo e de todos.— Não tem problema. Qualquer coisa mando avisar meu irmão.— Ponha pelo menos um telefone aqui para poder se comunicar rapidamente.— Ficou maluco? Acha que vou desperdiçar meu dinheiro com essa porcaria? Será mais uma conta para eu pagar.— Trata-se de uma necessidade.— Com certeza assim que souberem da existência dele, ligarão para me pedir dinheiro. Não farei isso. Ari resolveu não falar mais nada. Era perda de tempo, sabia que não mudaria o pensamento do amigo. Devido a sua teimosia, Iran dois anos mais tarde vem a pagar um preço bastante alto. Sofre um AVC ficando totalmente incapacitado e não podendo se mexer e sem meio de se comunicar, dias mais tarde falece por falta do

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atendimento médico especializado que não pode chamar. No velório, por curiosidade Ari em conversa com Alfredo, o procurador do falecido, quis saber.— Por que você não cuidou do seu irmão? Pelo que sei ele tinha recursos para o tratamento. — Disse-o bem, “ele tinha recursos”. Entretanto, sendo eu o seu único herdeiro, você acha mesmo que eu gastaria meu dinheiro com doença, Ari?

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O Garanhão II

Naquela famosa operadora de cobrança, que abrigava uma grande quantidade de rapazes alegres, eles começaram a semana entristecidos. Afinal, o grupo foi desfalcado pela mais recente aquisição, que, arrependendo-se de sua decisão anterior (voltou para o armário), regenerou-se — e pelo visto voltou à ativa em grande estilo.O Garanhão tomara tal decisão atendendo aos seus instintos másculos e também devido ao grande apelo da mulherada que não se conformava com aquela atitude (androgenára-se). O seu retorno à normalidade foi logo notado, pois veio trabalhar com uma calça de brim não tão justa e uma camisa azul escuro fabricada sob a grife Aldeia dos Ventos, da tribo Skate Board, cujo símbolo é uma caveira.Para espanto de alguns ele não parou por aí. Neste primeiro dia, durante o expediente, demonstrou sua atenção em larga escala, e na saída fez-se acompanhar de uma das interessadas. Essa cena passou a ser corriqueira, motivando grande confusão entre as disputantes ao posto de “primeira dama”, como ele gostava de se referir àquela que conseguisse conquistar seu coração.Não demorou muito e a situação fugiu ao seu controle, de tal forma que na sexta-feira, após o expediente, estavam todos reunidos em frente ao prédio tomando o tradicional chopinho, quando o garanhão chegou acompanhado de uma das pretendentes. Seu ar, que era de superioridade, logo se perdeu ao avistar vindo na sua direção a ex-noiva, mulher de poucas palavras e decisão rápida. Tinha estatura bem mais alta que a sua e impunha certo respeito por estar sempre séria. Ela não disse nada, e sem mais nem menos desceu a lenha nele, o que foi seguido pelas surras das outras que se sentiam usadas. O Garanhão apanhou tanto que, sem poder revidar, acabou cheio

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de hematomas e arranhado. Já todo rasgado de nada valeram suas súplicas, pois a ex-noiva e as outras rapidamente o deixaram de cueca no meio da rua.Ao final, foi embora da mesma forma que chegou: pisando firme e sem dizer uma única palavra.

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Conquistar ou não?

Oduvaldo estava sentado há horas naquele banco da praça. Seu olhar perdia-se na distância como a querer encontrar lá no infinito as respostas para tudo que tinha lhe acontecido. Trabalhara duro na vida até ali. Por várias vezes viajou a trabalho e com isso não pode acompanhar de perto o crescimento de seu filho. Sua mulher sempre lhe perguntava se valia a pena tudo aquilo, mas na sua cabeça nada era mais importante que uma bela casa e um bom automóvel na garagem.Esquecia-se das mais simples necessidades, tipo; curtir um fim de semana com a mulher e filhos ou ir a uma reunião festiva dos amigos e parentes.De repente, da noite para o dia, Oduvaldo viu seu carro importado e a bela mansão com vista exuberante para o mar serem soterrados com o deslizamento da encosta ocorrida na região. Quase perdera a família e a própria vida. Teria valido a pena tanto esforço e sacrifício?

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Uma campanha, um MBA

Quinto dia de uma promoção comercial. Até aquele momento a venda dos tais produtos em evidência não tinha decolado.Os empregados responsáveis pelo evento estavam todos reunidos confortavelmente na aconchegante varanda existente no terraço do grande atacado de variedades, aguardando a chegada do gerente e do exigente proprietário da organização.Enquanto isso Oduvaldo, – que acabara de fazer MBA em Administração, e era pós-graduado com mestrado em marketing – recém contratado como gestor de negócios por todas essas qualificações e muito bem remunerado, ouvia do dono da empresa uma significativa reclamação.— Quando olhei para aquilo lá na entrada da loja não imaginei que alguém fosse capaz de fazer tal coisa, Oduvaldo. Pode me explicar quem foi o autor da ideia?Como dizer ao patrão que tinha partido dele a iniciativa daquela campanha.— É realmente impressionante, e ao que tudo indica não está surtindo o efeito desejado.— Com certeza! Ainda bem que voltei antes da minha viajem de férias e pude constatar o erro a tempo. O que me diz de suspender a campanha e corrigir seu curso?— Farei isso imediatamente, seu Gregório.— Antes faça o favor de pegar sua equipe e ensine-os como deve ser feito.— Embora eu tivesse certeza de que os envolvidos no trabalho não eram lá muito qualificados, não imaginei que conseguisse chegar a tanto. Vou tomar as providencias para que não errem novamente.— Não entendi ainda por que você deixou fazerem aquilo, se sabia das limitações deles? — Não há justificativa eu sei, mas deixei de propósito para que os

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responsáveis das outras seções a vissem e não cometessem o mesmo erro.— Mas é o meu dinheiro que está queimando. Não é uma burrice deixar aquilo lá exposto tanto tempo? Reúna o pessoal e oriente para que aquilo não se repita novamente.— Pode deixar. Vou falar com eles ainda hoje.Oduvaldo não perdeu tempo e partiu para o alerta.— Todos já tomaram conhecimento daquela “merda” que foi feita?— Não. Do que o senhor está falando?— Então não sabem que aquilo feito lá na entrada da loja não pode ser repetido?— Mas foi o senhor quem mandou fazer daquele jeito, só cumprimos sua determinação.— Refaçam tudo. Até porque, o patrão não está nem um pouco satisfeito com as vendas.— Então o que iremos fazer para não cometer outro erro? Ou melhor, como o senhor mesmo disse, “aquela merda!”— Primeiro, jogaremos todo o material fora, é claro.— Só isso, senhor?— Evidente que não. Vamos elaborar outra campanha e corrigir o que erramos, pois se acontecer de novo, a empresa não arcará com o prejuízo e todos já sabem como iremos ficar.— Na “merda”. – Respondeu rapidamente um dos funcionários sem pensar.— Vejo que entenderam o meu recado e aprenderam como trabalhar.— Quanto ao recado entendemos perfeitamente, mas com referência a nova campanha, o senhor ainda não disse nada.— Usem da imaginação, já os ensinei da vez passada e não vou repetir tudo novamente. Vocês precisam arcar com as responsabilidades do que vão criar. É para isso que são pagos. Está encerrada a reunião.

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