AXÉ, ORIXÁ, XIRÊ E MÚSICA

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Estudo de música e performance no candomblé queto na Baixada Santista

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  • Jorge Luiz Ribeiro de Vasconcelos

    AX, ORIX, XIR E MSICA: Estudo de msica e performance no candombl queto

    na Baixada Santista

    Tese apresentada ao Instituto de Artes, da Universidade Estadual de Campinas, para obteno do Ttulo de Doutor em Msica. Orientador: Prof. Dr. Jos Roberto Zan

    .

    Campinas, 2010

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    FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO INSTITUTO DE ARTES DA UNICAMP

    Ttulo em ingls: Ax, orix, xir and music: a study of music and performance in Candombl Queto. Palavras-chave em ingls (Keywords): Candombl ; afro-brazilian music ; afro-brazilian religions ; music and religion ; ethnomusicology. Titulao: Doutor em Msica. Banca examinadora: Prof. Dr. Jos Roberto Zan. Prof. Dr. ngelo Nonato Natale Cardoso. Prof. Dr. Vagner Gonalves da Silva. Prof. Dr. Fernando Augusto de Almeida Hashimoto. Prof. Dr. Antnio Rafael Carvalho dos Santos. Prof. Dr. Alberto Tsuyoshi Ikeda. Prof. Dr. Eduardo Vicente. Prof. Dr. Claudiney Rodrigues Carrasco. Data da Defesa: 30-03-2010 Programa de Ps-Graduao: Msica.

    Vasconcelos, Jorge Luiz Ribeiro de. V441a Ax, orix, xir e msica: estudo de msica e performance no

    candombl queto na Baixada Santista. / Jorge Luiz Ribeiro de Vasconcelos. Campinas, SP: [s.n.], 2010.

    Orientador: Prof. Dr. Jos Roberto Zan. Tese(doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes. 1. Candombl. 2. Msica afro-brasileira. 3. Religies afro-

    brasileiras. 4. Msica e religio. 5. Etnomusicologia. I. Zan, Jos Roberto. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes. III. Ttulo.

    (em/ia)

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    Aos pais e mes, Julio Vasconcelos (em memria) e Helena Ribeiro de Vasconcelos;

    Marcos D'Ogun e Sandra D'Eloy.

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    AGRADECIMENTOS Agradeo: Primeiramente ao meu orientador Prof. Dr. Jos Roberto Zan, pela imensa

    confiana depositada nos caminhos desses aprimoramentos acadmicos.

    A todos da comunidade Il As Alaket Omo Oy As Osun, principalmente seus lderes Pai Marcos D'Ogum e Me Sandra d'Eloy e ao povo de santo da Baixada, gente que faz da luta pela dignidade de sua f o verdadeiro milagre de se ver.

    Ao SESC SP, do qual fui funcionrio durante parte da realizao deste

    trabalho, pela compreenso e apoios financeiros para aquisio de material.

    CAPES, pela concesso de Bolsa de Estudos nos dois ltimos anos do curso, o que permitiu efetivamente a realizao deste trabalho.

    Ao pessoal do Programa de Ps-Graduao em Msica da UNICAMP, especialmente ao assistente tcnico de direo Jayme de Souza Filho e s funcionrias Joice, Luciana e Vivien pela sempre gentil assistncia.

    Aos professores e professoras da UNICAMP Lenita Waldige, Jorge Luiz Schroeder, Ney Carrasco, Rita de Cssia Lahoz Morelli e Rafael dos Santos por suas firmes e sempre muito proveitosas observaes feitas nas bancas de monografia e qualificao necessrias para a concluso do curso de doutorado.

    Ao grande alab Marcos Antnio Augusto Barbosa, respeitosa e carinhosamente conhecido como Marcos Pisca, meu agradecimento, em memria.

    Aos professores Vagner Gonalves da Silva e Tiago Oliveira Pinto, de cujos cursos na FFLCH USP participei como aluno especial, cursos que forneceram suportes tericos de extrema importncia para a realizao deste trabalho.

    Aos professores ngela Lhning (UFBA), ngelo Nonato Cardoso (UFMG),

    Jos Edilberto Fonseca (UNIRIO); pela gentileza e generosidade, fornecendo materiais e informaes fundamentais para a realizao desta tese.

    Aos familiares, pela pacincia e apoio.

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    Quem ateu e viu milagres como eu Caetano Veloso

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    RESUMO

    Atravs deste estudo pretendo trazer discusso alguns elementos

    da relao entre msica e ritual no candombl queto.

    Tal estudo foi centrado na manifestao desta religio em casas de culto da

    Baixada Santista, principalmente no Il As Alaket Omo Oy As Osun,

    localizado na cidade de So Vicente. O enfoque na relao citada foi

    principalmente efetuado na maneira como ela se apresenta nas festas pblicas

    desta religio afro-brasileira, cuja teologia se baseia nos conceitos de orix suas

    divindades; e de ax seu fundamento principal, princpio dinmico que estrutura

    a religio.

    Para tanto, uma das bases tericas a etnomusicologia e, desdobrando as

    relaes entre antropologia e etnografia com o enfoque musicolgico, prope-se

    que esta base se articule com a antropologia interpretativista de Clifford Geertz,

    encaminhando-se para uma etnomusicologia interpretativista em que a base a

    transcrio densa.

    Alm disso, busca-se suporte na antropologia da performance para estudar

    estas manifestaes culturais em que ritual, expresses sonoras e musicais

    articulam-se com narrativas mticas, gerando vvidas exteriorizaes de contedos

    cujos significados so vividos religiosamente pelos devotos.

    Com base nestes aportes pode-se concluir que os sons so utilizados no

    candombl queto como um conjunto de elementos significativos que se articulam

    em discurso no fluxo da performance, incorporando sonoridades mltiplas de

    forma integrada totalidade ritual e mtica. Dessa maneira, busco contribuir para

    demonstrao da existncia de uma linguagem de sonoridades, atravs da

    descrio de algumas formas em que ela se efetua em discurso ritual, com base

    na proposta de Cardoso (2006) de estudar a msica ritual como linguagem.

    Palavras-chave: Candombl e msica, religies afro-brasileiras,

    etnomusicologia, performance.

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    ABSTRACT

    By means of this study, I intent to bring to discussion some elements

    found in the interaction between music and ritual in the afro-Brazilian religion called

    candombl queto. The study was carried focusing forms of such religiosity in cult

    places in the region of So Paulo state called Baixada Santista, mainly in the

    religious house Il As Alaket Omo Oy As Osun, in the city of So Vicente.

    The approach to the relations of music and religiosity was mainly carried on

    the way they appear in the public ceremonies of a long cycle of parties that make

    part of the religion, whose theology is based on the concepts of orix their

    deities and of ax the fundamental and dynamic principle that structures the

    religion. For this, one of the basic theoretical lines is ethnomusicology. Unfolding

    the relation between Anthropology and Ethnography with the musicological

    approach, we propose an articulation of this basis with Clifford Geertz

    Interpretative Anthropology in such a way we go for an Interpretative

    Ethnomusicology, whose basis is the thick transcription.

    One more support to study these cultural manifestations was found in the

    Anthropology of Performance, for their traces in which ritual, sound and musical

    expressions are articulated with mythical narratives, showing vivid contents whose

    meanings are lived religiously by the believers, called povo-de-santo.

    Based on these approaches we can conclude that sounds are used in the

    candombl queto as a set of meaning elements that articulate themselves in the

    flow of discourse during performances, embodying multiple sonorities in an

    integrated way to the ritual and mythic totality. This is an attempt to contribute for

    the demonstration of the existence of an articulate language of multiple sounds in

    that form of religion, by the description of forms of realizations of a musical

    grammar in ritual discourse, based on the proposals of Cardoso (2006) when

    studding ritual music as a language.

    Key-words: Music and Candombl, afro-Brazilian religions,

    ethnomusicology, performance.

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    SUMRIO INTRODUO ...................................................................................................... 19 Captulo 1 - RELIGIES AFRO-BRASILEIRAS. Estudos e estudiosos ................ 23

    1.1 Aspectos gerais: as religies africanas no Brasil.................................... 24 1.2 - Nao ........................................................................................................ 25 1.3 - A autenticidade nag............................................................................... 30 1.4 - Sincretismo................................................................................................ 33 1.5 O Panteo nag-queto: orixs .................................................................. 36 1.6 O fundamento principal: o ax .................................................................. 41 1.7 - O Xir ........................................................................................................ 43 1.8 Candombl: Trajetria histrica da Bahia Baixada Santista (SP) .......... 45 1.9 Orixs: caractersticas gerais e sonoras ................................................... 50

    1.9.1 - Ogum .................................................................................................. 51 1.9.2 - Exu ...................................................................................................... 54 1.9.3 - Iemanj ............................................................................................... 55 1.9.4 - Os orixs e os toques ......................................................................... 57

    Captulo 2 - ESTUDOS ETNOMUSICOLGICOS E REGISTROS FONOGRFICOS SOBRE O CANDOMBL ........................................................ 65

    2.1 - Outras regies e religies.......................................................................... 80 2.2 - Registros Fonogrficos.............................................................................. 89

    2.1.1 - Alta fidelidade ................................................................................... 97 2.3 - A diversidade dos toques .......................................................................... 98

    Captulo 3 A ETNOGRAFIA MUSICAL: TRANSCRIO, DESCRIO E ANLISE EM ETNOMUSICOLOGIA. Definindo metodologias ........................... 100

    3.1 Etnografias................................................................................................. 107 3.2 A msica do candombl queto como linguagem .................................... 114 3.3 Antropologia da performance e Victor Turner ............................................ 118

    Captulo 4. CANDOMBL QUETO, MSICA E PERFORMANCE RITUAL NA BAIXADA SANTISTA .......................................................................................... 125

    4.1 O encontro.............................................................................................. 125 4.2 A casa de candombl Il As Alaket Omo Oy As Osun.................... 127 4.3 - Momentos da prtica ritual. ..................................................................... 145

    4.3.1 - Abertura: ramunha e entrada no barraco ........................................ 146 4.3.2 - Ogum Aj .......................................................................................... 154 4.3.3 - A chegada de Ogum. Transe de orix .............................................. 172 4.3.4 - Ramunha Sada dos orixs............................................................ 191 4.3.5 - Sadas de Oi ................................................................................... 194 4.3.6 Abraando orix ............................................................................... 213 4.3.7 Eparrei! E fim.................................................................................... 216

    Captulo 5 - CONSIDERAES FINAIS ............................................................. 223 REFERNCIAS................................................................................................... 239 DISCOGRAFIA Referncias Fonogrficas....................................................... 249

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    INTRODUO

    Msica e religio tm uma relao bastante estreita. So muitas as religies e suas respectivas cerimnias que possuem sonoridades variadas que cumprem

    igualmente variadas funes rituais. Sonoridades que deslocam a palavra de suas

    funcionalidades mais imediatas atravs de sua melodizao e hipntica repetio;

    que criam sensaes de imerso sonora e presena do divino atravs de

    grandes massas de harmnicos e suas reverberaes, msica para catarse

    coletiva, para organizar o transe propiciado por infuses alucingenas, vrias

    possibilidades que podemos extrair de cada estudo de caso dessa relao entre

    elementos sonoros e religiosidade.

    Como ocorre naquele que estudaremos nos captulos e pargrafos que se

    seguem. Uma msica e uma religio com caractersticas muito especiais e

    especficas, como o so todas elas.

    Comecemos com algumas palavras sobre esta que vamos estudar.

    O candombl queto basicamente uma religio afro-brasileira de culto a

    divindades chamadas orixs, que se manifestam - entre outras formas - atravs

    do transe de possesso, propiciando o ax, seu princpio religioso fundamental.

    Surgida na Bahia em meados do sculo XIX, difundiu-se por todo o Brasil,

    principalmente os estados do Rio de Janeiro e So Paulo. A msica est presente,

    de alguma forma, em quase todas as dimenses dessa forma de experincia

    religiosa.

    Escrito assim, parece simples e sinttico. No entanto, ao encararmos cada

    um dos desdobramentos das possibilidades contidas no pargrafo acima, as

    complexidades passam a aparecer.

    Primeiramente, o fato de existir uma religio denominada candombl queto

    (ou ketu, ou nag-queto, entre outras grafias e denominaes utilizadas) indica

    concepes de procedncia tnica, alm do que marca uma posio especfica

    num quadro de religies de origem negro-africanas no Brasil. Isto implica na

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    dificuldade e consequente necessidade - de estudo histrico, uma vez que se

    tratam de manifestaes culturais desprivilegiadas quanto ao seu registro

    documental (principalmente em seus aspectos sonoro-musicais). Depois, quando

    se depara com o panteo dos mltiplos deuses e deusas (os orixs) encontra-se

    frente a uma grande variedade de arqutipos que aliceram vises de mundo e

    explicaes de singularidades pessoais, atravs de um sistema de concepes

    mticas, das quais um canal privilegiado de expresso so as interpretaes dos

    sacerdotes, auxiliadas por um complicado mtodo divinatrio, o conhecido jogo

    de bzios ou erindilogum. Esse sistema explica e indica procedimentos e

    encaminhamentos para harmonizar as influncias e regncias dessas

    divindades sobre seus filhos e filhas. Divindades que se manifestam

    concretamente em alguns destes devotos atravs da possesso, efetuada

    principalmente nas festas pblicas peridicas, uma vez tendo sido atendidas de

    forma devida as prescries para tanto. Prescries que parecem ao nefito

    como foi meu caso complicadas e extenuantes mas que so levadas a cabo com

    devoo e empenho. Algumas dessas prescries so sonoras e musicais. No

    deixam de estar integradas s vrias outras, mas tm dimenses muito prprias e

    se expressam de forma exuberante nas referidas festas, quando se manifestam

    com cantos e execuo de instrumentos de percusso.

    Com uma forma de organizao sonora que perde a maior parte de seu

    sentido se extrada de seu contexto, a msica do candombl precisa ser entendida

    como um elemento ritual, com suas especificidades musicolgicas, mas sempre

    ligadas s suas significaes religiosas.

    Como uma exuberante forma de expresso artstica que faz parte de nosso

    patrimnio cultural, tal msica deve ser considerada como uma construo

    complexa, de cujo entendimento extramos elementos para um intercmbio com

    outros sistemas de concepo musical. Dessa forma busca-se o que Clifford

    Geertz prope no campo da antropologia como o alargamento do universo do

    discurso humano (GEERTZ, 1989, p. 24), aqui focando diretamente os diversos

    discursos musicais.

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    Este trabalho busca atingir seu objetivo estudando essa msica em seu

    contexto de performance nas festas pblicas, inclusive pelo fato de, como a

    prpria denominao desses eventos expressa, serem elementos sonoros e

    simblicos em geral destinados a serem compartilhados com uma audincia

    ampla e que no esteja necessariamente inserida na religio. Ou seja, uma

    msica e um ritual sem segredos - em sua face exposta apreciao pblica, bem

    entendido - porm com mistrios e complexidades que o olhar e a escuta

    despreparados no conseguem abarcar. A redao de tal trabalho de certa forma

    a narrao da histria da construo das habilidades necessrias para se situar

    como interlocutor entre ambos universos musicais, na condio de um intrprete,

    novamente na acepo de interpretao tal como postula o antroplogo norte-

    americano, principal nome de uma corrente que tem precisamente no

    interpretativismo sua marca registrada. Teremos oportunidade de discutir

    detalhadamente as contribuies dessa vertente para a presente tese. Por ora,

    apenas iremos tomar como ponto de partida a afirmao de Geertz, quando ele

    afirma: Situar-nos, um negcio enervante que s bem-sucedido parcialmente,

    eis no que consiste a pesquisa etnogrfica como experincia pessoal (ibid., p. 23)

    e cuidar de expor as rotas e caminhos trilhados a partir de ento.

    Cito esta frase de efeito para frisar que o situar-se do etngrafo - seja ele

    da msica ou no - j est de sada comprometido pelo seu prprio deslocamento

    dentro desse universo do discurso humano (o que voltaremos a discutir) e que,

    assim, o que posso melhor contar a histria particular de um processo. Tal

    histria tem uma dimenso de levantamento dos conhecimentos anteriores sobre

    a rea estudada, fase sempre importante na confeco de trabalhos acadmicos e

    em qualquer estudo, nela buscamos os ombros dos gigantes para podermos

    enxergar - neste meu caso especfico, o que estava mais perto - e alguns ombros

    amigos para dividirmos certas miopias e as angstias delas derivadas. Essa fase,

    sempre focada nas religies afro-brasileiras, encontra-se exposta em seus

    aspectos antropolgicos no captulo 1 e naqueles mais especificamente

    etnomusicolgicos no captulo 2. Neste, agrega ainda alguns comentrios sobre

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    materiais fonogrficos obtidos e que foram importantes para a construo de uma

    escuta mais abrangente do tema estudado e para obter uma maior familiaridade

    com o que se escuta no trabalho de campo.

    O captulo 3 traz a discusso de fundo metodolgico, que implicou na

    tomada de decises de como proceder para fazer o que a tarefa central do

    trabalho. Ou seja, aquela que resultou no captulo 4, no qual a dimenso

    etnogrfica sintetizou e sincretizou conhecimentos adquiridos atravs da leitura e

    da escuta extensiva dos materiais da literatura e da discografia com aqueles

    obtidos atravs do trabalho de campo. esse o capitulo das descries,

    transcries e inscries; ou seja, da etnografia musical de um candombl queto

    propriamente dita, suas sonoridades em seu contexto ritual. Nesse captulo, optei

    pela presena e disposio das partituras e ilustraes ao longo do mesmo e no

    dispostos em apndice ao fim da narrativa, visando cumprirem a funo de fazer

    parte da mesma, como elementos que ajudem a contar e descrever o que se v e

    que se ouve. Ao leitor no familiarizado com a escrita musical, mais que pedir

    desculpas pelo entrave fluncia da leitura que tais inseres possam causar, fica

    a sugesto de tentarem acompanhar o fluxo dos eventos, lendo-as como um

    diagrama de eventos, mais que notas e figuras rtmicas.

    Uma vez realizadas as tarefas da grafia, impor-se-iam quelas destinadas

    a transformar etnografia em etnomusicologia, descrio em cincia analtica e

    generalizvel (sobre esta discusso ver Ikeda, 1998). No me estenderei sobre

    esta questo polmica nesta introduo, apenas destacarei que o projeto deste

    trabalho partiu de uma hiptese que, ao seu final, mostrou-se de difcil

    sustentao. Tratava-se da suposio da ocorrncia de um processo de

    africanizao dos elementos musicais em curso no desenvolvimento histrico

    recente (ltimos 20 ou 30 anos), em paralelo a outros similares ocorridos com

    diversos elementos rituais, detectados por alguns autores. Os esforos de

    reconstruo lingstica esto entre alguns mais patentes e propalados desses

    elementos. Aps os levantamentos e estudos iniciais, ficou claro para mim que

    no dispomos de elementos comparativos que nos permitam afirmar isso em

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    termos gerais. E aps o convvio com os msicos e sacerdotes da religio de

    orixs, posso inferir que o processo de insero e desenvolvimento individual e

    coletivo nessa religio , em si, um processo de entrada num universo

    africanizado e que os seus aspectos musicais, por suas especificidades, so

    pontos de intensificao dessas condies. O que busquei, ento, foi intensificar o

    trabalho analtico-descritivo para entender como os elementos sonoros, ritual e

    performance se relacionam, para argumentar que a msica do candombl queto

    linguagem, estudando-a como discurso vivo. O captulo 5 trata desse que o

    problema central do trabalho.

    Captulo 1 - RELIGIES AFRO-BRASILEIRAS. Estudos e estudiosos

    Neste captulo parto de um levantamento dos trabalhos etnogrficos e

    antropolgicos sobre as religies enfocadas, com o intuito de situar o estado-da-

    questo sobre tal tema e tambm apresentar os conceitos gerais da liturgia do

    candombl queto cujo entendimento julgo fundamentais para a discusso de seus

    aspectos sonoro-musicais.

    A organizao de tal reviso bibliogrfica se d, portanto, tendo como fio

    condutor esses conceitos, objetivando subsidiar o estudo etnomusicolgico, que

    o foco central deste trabalho. Obviamente que no se trata de um trabalho que

    pretende esgotar o tema do ponto de vista da discusso da literatura etnogrfica e

    antropolgica e, portanto, este captulo visa, reitero, fornecer suporte terico para

    o estudo etnomusicolgico.

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    1.1 Aspectos gerais: as religies africanas no Brasil

    Com o nome de religies afro-brasileiras esto elencadas diversas formas

    de culto e celebrao engendradas no Brasil, decorrentes dos processos a que

    foram submetidos os africanos escravizados trazidos Amrica Portuguesa e dos

    mltiplos encontros entre povos e etnias distintos que se deram nesse contexto e

    nessas condies. Sob as denominaes tambm de religies de orixs,

    religies de possesso atribudas a uma srie de formas de devoo

    encontradas em variadas regies do Brasil, tais termos aplicam-se principalmente

    quelas que tm em sua estrutura bsica os seguintes elementos e

    desdobramentos: Os cultos afro-brasileiros, por serem religies de transe, de sacrifcio animal e de culto aos espritos (portanto, distanciados do modelo oficial de religiosidade dominante em nossa sociedade), tm sido associados a certos esteretipos como 'magia negra' (por apresentarem geralmente uma tica que no se baseia na viso dualista do bem e do mal estabelecida pelas religies crists), supersties de gente ignorante, prticas diablicas, etc. (SILVA, 2005, p. 13).

    Importante ressaltar que tais caractersticas das religies afro-brasileiras

    destacadas acima foram e continuam sendo alvo de forte discriminao, o que se

    reflete nas condies de sua insero no quadro da sociedade brasileira, em

    diferentes contextos histricos. Isso, conseqentemente, se reflete na sua

    documentao e registro por pesquisadores e outros observadores.

    O que fica patente j desde Joo do Rio, com suas muitas pginas de

    deliciosa preciso e explicitssimo preconceito (PRANDI, 1991, p. 51) nas

    descries das religies no Rio de Janeiro no comeo do sculo XX. No entanto,

    os estudos sistemticos comearam com o trabalho do mdico Nina Rodrigues, o

    principal fundador do campo de estudos das religies afro-brasileiras, ainda na

    ltima dcada do sculo XIX. Esse pesquisador, que possua um enfoque

    positivista evolucionista firmemente baseado nas teorias raciais da poca que

    atribuam mestiagem grande parte dos males de nossa nao, o grande

    pioneiro nas pesquisas sobre a religiosidade do negro brasileiro. Buscando

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    inicialmente as causas mdicas de comportamentos sociais desviantes,

    principalmente entre os negros, acabou trazendo o foco de seu interesse para o

    misticismo e a religiosidade destes.

    Atravs dos textos de Nina Rodrigues a religiosidade de origem africana foi vista como um 'dado psicolgico positivo', num contexto em que no se pensava que essa religiosidade fosse sequer passvel de ser observada seriamente, muito menos pela cincia (SILVA, 2002, p. 87).

    Como nosso interesse de coligir subsdios para o entendimento das

    relaes entre msica e ritual, no nos deteremos nos trabalhos de estudiosos

    dessas primeiras tendncias evolucionistas e culturalistas, como Nina Rodrigues,

    Artur Ramos, dison Carneiro, Donald Pierson, Ruth Landes e Melville Herskovits

    (embora o trabalho deste ltimo tenha grande interesse musicolgico histrico,

    como veremos frente). O texto de Vgner Gonalves da Silva citado acima traz

    maiores detalhamentos sobre os primrdios da construo desse campo de

    estudos. Tambm em Ferretti (1995, p. 41 53), h uma resenha detalhada sobre

    este perodo dos estudos do campo, embora seja direcionada ao balano crtico

    da produo acadmica (ibid., p. 41) sobre o tema do sincretismo, com

    informaes importantes para o entendimento da construo desse campo.

    Vamos adiante, ento, seguindo uma ordem baseada nos conceitos

    fundamentais para o entendimento das relaes entre msica e religio,

    sonoridades e especificidades rituais.

    1.2 - Nao

    uma dessas noes que perpassa a organizao em geral das religies

    afro-brasileiras, conforme veremos, um conceito chave nos processos de

    atribuio de identidade das suas diferentes formas de culto. Inicialmente uma

    idia que exprimia mais as diferenas calcadas nos interesses escravagistas,

    designando as procedncias dos escravos, do que realmente as identificaes

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    tnicas dos grupos, esta noo passa por muitas transformaes at atingir seus

    significados atuais. Ao se referir utilizao desse termo, analisando a construo

    da identidade jeje, em estudo sobre a importncia desse grupo na formao do

    candombl, Pars busca suas origens nos sculos XVII e XVIII:

    Ao lado de outros nomes como pas ou reino, o termo 'nao' era utilizado, naquele perodo, pelos traficantes de escravos, missionrios e oficiais administrativos das feitorias da Costa da Mina, para designar os diversos grupos populacionais autctones. O uso inicial do termo 'nao' pelos ingleses, franceses, holandeses e portugueses, no contexto da frica ocidental, estava determinado pelo senso de identidade coletiva que prevalecia nos estados monrquicos europeus dessa poca, e que se projetava em suas empresas comerciais e administrativas na Costa da Mina (PARS, 2006, p. 23).

    No entanto, no tratava de uma atribuio aleatria ou unicamente

    eurocntrica de conotaes grupais pois, a par com diversas categorias artificiais

    por eles criadas, os europeus encontraram um forte e paralelo sentido de

    identidade coletiva nas sociedades da frica ocidental, baseada, de forma

    multidimensional e multiarticulada pela etnicidade, religio, territrio, lngua e

    poltica, na afiliao por parentesco a certas chefias normalmente organizadas

    em volta de instituies monrquicas. (ibidem).

    A partir, ento, desse contexto de trocas assimtricas e calcadas no

    interesse mercantil, o comrcio de seres humanos promove uma situao de

    necessidade de rearticulao e reformulao de identidades dos negros e negras

    africanos e seus descendentes na Amrica portuguesa. O que afetar

    profundamente as atribuies de sentido dadas s noes anteriores de nao. O

    autor citado acrescenta:

    Desse ponto de vista, no existiria tanto uma identidade nica, fixa e rgida, mas mltiplos e cruzados processos de identificao gerados por contextos e interlocutores especficos. Nessas interaes sociais, certos sinais diacrticos, fludos e flexveis, seriam valorizados em funo da utilidade de uma determinada identificao e de acordo com as preferncias e os interesses do momento. Mas essa instrumentalizao da identidade tem seus limites no sentido de que a identidade tambm resultante da identificao imposta pelos outros, e o indivduo ou grupo deve considerar esses limites na sua estratgia (ibid., p. 16).

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    Essas identificaes impostas, metatnicas, poderiam vir de dois tipos de

    outros em relao ao indivduo, conforme vemos em outros trechos do trabalho

    citado: aqueles de seu prprio grupo e os de outros grupos (ibid, p. 21, nota n.

    9). Nesse jogo de espelhos das identidades, uma das estratgias dos grupos de

    africanos e descendentes foi a agremiao em torno das naes, ressignificando

    os sentidos originais dessas formas de identidade coletivas. Esse processo foi

    importantssimo ao plasmar as religies afro-brasileiras e perpassa sua

    historicidade at os dias de hoje.

    No entanto, essas mesmas conjunturas histricas imprimiram dinmicas

    diferenciadas para negros, mulatos, escravos, libertos e seus descendentes, o que

    o caso de quem tem sempre que correr atrs das transformaes sociais, para

    usar de forma significativa uma conhecida expresso popular. O que, pode-se

    dizer, aproxima esses sujeitos marginais nas sociedades colonial, imperial e

    posteriormente republicana brasileiras do sujeito ps-moderno, preconizado por

    Hall (2006), no que diz respeito a suas concepes de identidade. Mantidas as

    ressalvas, uma vez que para Hall essa identidade encarada como uma

    celebrao mvel e formada e transformada continuamente em relao s

    formas pelas quais somos representados nos sistemas culturais que nos rodeiam

    (ibid., p.13). J no caso do negro subalternizado, deve-se muito mais s

    estratgias de adaptao e procura de espaos para insero num contexto social

    hostil do que por ofertas e possibilidades de escolha num mundo globalizado.

    A partir disso, podemos perceber como tais negociaes e atribuies de

    identidades foram paulatinamente se transformando e tomando uma conformao

    mais prxima da atual, de carter mais religioso que tnico ou, como se pode ler

    no trecho a seguir:

    A nao, portanto, dos antigos africanos na Bahia foi aos poucos perdendo sua conotao poltica para se transformar num conceito quase exclusivamente teolgico. Nao passou a ser, desse modo, o padro ideolgico e ritual dos terreiros do candombl da Bahia estes sim, fundados por africanos angolas, congos, jejes, nags,

  • 28

    - sacerdotes iniciados de seus antigos cultos, que souberam dar aos grupos que formaram a norma dos ritos e o corpo doutrinrio que se vm transmitindo atravs dos tempos e da mudana nos tempos (LIMA, 1976, p. 77).

    Portanto, de social e poltico a religioso - e, como veremos posteriormente,

    de religioso-tnico a religioso-universal - o conceito de nao formula, estrutura e

    caracteriza as diferentes formas de culto e suas liturgias. Alm de se refletir nas

    devidas diferenas de expresso sonora, conforme teremos oportunidade de

    discutir mais detalhadamente no captulo sobre a literatura etnomusicolgica e sua

    recenso. L veremos como essas vrias formas de culto de origem africana se

    articulam musicalmente com suas respectivas identificaes de nao.

    No entanto, vale a pena antes traar um breve panorama geral de como

    essas religies distribuem-se no territrio brasileiro. Alis, convm tambm

    ressaltar que a dispora negra no continente americano legou uma srie de

    formas religiosas similares em outros pases, como o caso da santeria cubana e

    do vodu do Haiti. No Brasil, elas se distriburam de forma bastante ampla pelo

    territrio nacional, assumindo variaes como o candombl queto (nos estados da

    Bahia e posteriormente Rio de Janeiro e So Paulo), o xang em Pernambuco e

    estados adjacentes, o batuque (Rio Grande do Sul), o candombl jeje (BA) e o

    igualmente jeje tambor-de-mina (Maranho e Par) juntamente com o babassu

    no Par, elencadas como formas oriundas da fuso entre prticas sudanesas e

    influncias das religies indgenas, do catolicismo popular e concepes

    espritas surgidas na Europa no sculo XIX (SILVA, 2005, p. 98). Esse autor

    ainda acrescenta algumas formas decorrentes de fuso similar, no entanto tendo

    como diferencial o fato das matrizes africanas serem prticas bantas, das quais

    as mais disseminadas atualmente seriam o candombl angola (BA, RJ, SP),

    candombl de caboclo (BA) e a umbanda (RJ, SP e todo o Brasil) (ibidem).

    Convm comentar que a distribuio, conforme indicada pelo autor referido, reflete

    uma ordem de difuso das religies atravs dos estados at certo ponto inversas,

    como se pode observar nos dois percursos: o da umbanda, que de suas origens

    cariocas se difunde para todo o pas e o do candombl queto, que de suas origens

    na Bahia se propaga para o Rio de Janeiro e posteriormente para So Paulo e,

  • 29

    outros estados (como o Cear, entre outros - cf. ALMEIDA JNIOR, 2002). Sobre

    tal processo, nos interessam mais diretamente os percursos que levaram esta

    religio de suas origens baianas (principalmente na capital do estado Salvador -

    e na regio do Recncavo Baiano) a suas expresses no litoral paulista, onde se

    realiza o trabalho de pesquisa desta tese.

    Portanto, convm fechar um pouco mais o foco nas negociaes de

    identidade que resultaram na construo da nao cuja musicalidade ser aqui

    estudada mais detalhadamente. Vamos partir da afirmao de Vivaldo da Costa

    Lima de que: dentre os grupos iorubs nags, por motivos que tentarei explicar

    ou rever, nao de Ketu, passou a significar o rito de todos os nags. (LIMA,

    1976, p. 77). Para entend-la um pouco melhor, preciso frisar que o autor est

    referindo-se predominncia de uma denominao de nao, no caso aquela

    especificamente ligada cidade de Ketu, onde havia a primazia do culto ao orix

    Oxssi. Isso ocorre dentro de um grupo de possibilidades que incluem sem

    entrar na anlise mais complexa de suas origens e significados etimolgicos e

    seus sentidos tnicos as denominaes iorub e nag. Tampouco nos

    arriscaremos por ora sobre os processos de sincretismo entre as prprias naes

    de origem africana que levaram designao tambm bastante usada pelo termo

    jeje-nag, indicando a dupla procedncia dessa forma de culto. Apenas

    tomaremos o ensejo da observao de Vivaldo Costa Lima para definir a

    denominao que ser adotada neste trabalho para essa modalidade de religio

    afro-brasileira, tomando o timo em sua grafia em lngua portuguesa e a

    denominando, portanto, como candombl queto.

    importante que no seja confundida a observao feita pelo autor citado

    com uma concepo do campo religioso bastante arraigada em alguns crculos, de

    superioridade de algumas formas de culto em termos de manuteno da tradio

    e fidelidades s origens, o que tambm matria de anlise no artigo referido.

    Nele, o prprio Costa Lima assim como outros autores em outras obras - cita o

    pioneiro Nina Rodrigues como um dos responsveis pela construo de tal

  • 30

    concepo, pela qual os cultos de origem nag seriam os mais puros e autnticos.

    No entanto, outros pesquisadores foram importantes na consolidao desta forma

    de ver e de se relacionar com as religies.

    1.3 - A autenticidade nag

    O que nos leva at Roger Bastide, de cuja obra h conceitos bastante

    importantes para discutir. Um primeiro o do chamado princpio de corte,

    segundo o qual a religiosidade amenizaria a tenso que os indivduos de origem e

    ascendncia africana sofreriam por viverem num mundo de brancos:

    Os mesmos indivduos se encontram, portanto, submetidos a duas espcies de influncias ou de presses: as que eles sofrem enquanto membros do candombl e as que sofrem enquanto participantes da comunidade multirracial brasileira... Aquilo a que chamamos 'princpio de corte' lhes faculta sem dvida viverem em dois mundos diferentes, evitando tenses e choques: o choque de valores bem como as exigncias, no entanto contraditrias, das duas sociedades (BASTIDE, 1971, p. 515 e 517).

    Importante dizer que isso nos introduz e nos situa numa srie de abordagens

    que procuram relacionar a prtica das religies de orixs com tendncias como

    aculturao, resistncia, aquisio de dignidade pelos indivduos oprimidos,

    sincretismo/dessincretismo, entre outras que discutiremos de acordo com sua

    importncia nos desdobramentos de interesse musical. No caso do princpio de

    corte proposto por Bastide, ele ilustra sua maneira prpria de enfocar a insero

    do negro na sociedade brasileira, principalmente do ponto de vista da articulao

    das religies de possesso, como a recriao de uma frica incrustada na

    sociedade eminentemente branca. No toa que a obra que expe esse

    princpio se chama As Religies Africanas no Brasil. Em outra obra, ao se referir,

    por exemplo, s relaes entre o calendrio religioso do candombl e o do

    catolicismo, tece uma afirmao que ilustra bem essa sua perspectiva: O africano

  • 31

    da Bahia pode muito bem aceitar essas datas do calendrio ocidental (id., 2001,

    p. 98).

    O que aponta tambm para outro dado relevante que esse pesquisador vai

    trazer ao campo de estudos. Fornecendo uma srie de novas orientaes e

    diretrizes e propiciando um caminho para colegas e seguidores importantes na

    consolidao deste campo, como Pierre Verger e Juana Elbein dos Santos, os

    alicerces lanados pela obra de Bastide trazem elementos que se referem ao

    segundo tema que havamos sugerido anteriormente discutir. Refiro-me ao

    princpio de pureza nag, implcito em variados discursos cientficos, religiosos,

    artstico-culturais, etc.

    Por esse aspecto, a diversidade dos candombls e outras religies afro-

    brasileiras fica hierarquizada de acordo com critrios de pureza no sentido de

    fidelidade s matrizes africanas. E, dentro dessa concepo, est muito bem

    definido por seus proponentes qual o topo dessa hierarquia: porm evidente

    que os candombls nag, queto e ijex so os mais puros de todos, e que s eles

    sero estudados aqui. (ibid., p. 29), como afirma o autor referindo-se ao estudo

    que dar origem ao fundamental Candombls da Bahia. Em que pese a opo

    de cada pesquisador por determinada nao tomada como objeto de estudo

    como o subttulo (rito nag) da obra referida acima evidencia a de Bastide

    patente que houve, no caso de alguns deles que se envolveram com a vertente

    jeje/nag/queto, uma srie de atribuies de maior legitimidade e autenticidade a

    esta.

    Assim, estabelece-se uma ordem de valores que nortear no s um

    determinado segmento do campo de estudos, como concepes da prpria

    religio e a difuso e o desenvolvimento histrico da mesma, como veremos mais

    detalhadamente quando discutirmos a expanso do candombl para o estado de

    So Paulo onde se localiza a rea onde realizado o estudo. Vale ressaltar que

    tal processo alvo de acaloradas discusses e que coloca diversas vertentes e

    correntes de pensamento e seus inteletuais, pesquisadores e religiosos em

  • 32

    diferentes posies em meio a tais discusses. Este debate est muito bem

    apresentado e discutido em Ferreti (1995, p. 64 71).

    Vale ainda destacar que minha escolha do tema para esta tese no se deveu

    a esta referida e suposta hierarquia dentre tal ordem de valores, mas sim a uma

    opo de recorte que se faz necessria em qualquer plano de trabalho e que se

    deve a escolhas pessoais e, do ponto de vista prtico, de planejamento e

    objetivos. Seria possvel ter tomado como objeto de pesquisa qualquer um dos

    sistemas religiosos e seus respectivos sistemas sonoros e musicais, considerando

    a riqueza de elementos e complexidade de sua organizao. No entanto, minha

    opo pelo rito queto e suas sonoridades no implica em uma adeso a idias de

    pureza ou superioridade nag que perpassa determinados enfoques e pontos

    de vista.

    Um deles o da pesquisadora e figura de grande influncia no meio

    religioso, Juana Elbein dos Santos, uma grande referncia. Seus argumentos

    incluem uma defesa do candombl baiano como uma reserva de pureza em

    relao s prprias matrizes africanas:

    Enquanto no Brasil os grupos considerados puros, isto , que se estruturaram com o mximo de fidelidade aos elementos e aos modelos especficos de sua cultura de origem [...], evoluram para uma sntese, concentrando os valores essenciais de uma tradio que corresponde poca mais florescente da cultura Yorb sculo XVIII e incio do XIX nos reinos ento poderosos de y e de Ktu, esta mesma cultura, na prpria frica Ocidental, sofreu consideravelmente o impacto da presso colonial (SANTOS, 2002, p. 14).

    A essa noo de pureza associam-se os terreiros considerados, tanto na

    narrativa oral quanto nos registros histricos, como os mais antigos, autnticos e

    tradicionais:

    No entra em nosso propsito tratar dos grupos aculturados; ao contrrio, aos fins tericos e prticos do presente trabalho, queremos limitar-nos aos grupos tradicionais bem representados pelas comunidades agrupadas nos trs principais 'terreiros', lugares de culto Ng, onde at hoje, se continua a praticar a religio tradicional legada pelos fundadores (Ibidem).

  • 33

    Os trs so, a saber, o Il Ax Iy Nass Ok, o mais antigo de todos, cuja

    fundao remonta aos anos 1850, conhecido como Casa Branca do Engenho

    Velho e seus dois derivados, o Iya Omi Ax Iyamase (o popularssimo Gantois) e o

    Ax Op Afonj. A lder religiosa deste ltimo Me Stella de Oxssi, notria por

    suas posies bastante firmes na defesa da integridade da religio, manifestadas

    inclusive atravs de colunas escritas para jornais de Salvador. Dentre essas suas

    posies, inclui-se tambm um constante combate ao sincretismo com os santos

    catlicos e esta religio em geral como forma de enfatizar tal defesa.

    1.4 - Sincretismo

    O sincretismo um tema bastante importante para contextualizarmos o

    desenvolvimento histrico da religio e suas relaes com as estruturas de poder

    vigentes em cada contexto histrico. Tambm um elemento fundamental para o

    entendimento das formas religiosas afro-brasileiras no geral e como esse

    processo se desdobra em suas mltiplas sonoridades.

    Em sua acepo dicionarstica mais simples, o sincretismo apresenta-se

    como a fuso de diferentes cultos ou doutrinas religiosas, com reinterpretao de

    seus elementos1.

    No entanto, tal simplicidade enganadora desaparece quando nos

    deparamos com suas expresses concretas e com as mltiplas maneiras de

    enfoc-las, reveladoras de posies bastante marcadas em relao aos sentidos

    de fuso ou mistura, justaposio, convergncia, adaptao ou alguns dos outros

    mais de trinta termos coligidos por Ferretti (1995, p. 90) em dicionrios diversos.

    Alis, no s se amplia a divergncia e a problematizao entre concepes e

    acepes, como se estendem as contextualizaes histricas e adeses a

    1 SINCRETISMO. In: HOUAISS, Dicionrio da Lngua Portuguesa, on-line. Disponvel em

    . Acesso em 16/jun./2006.

  • 34

    diferentes correntes tericas e escolas de pensamento, como podemos ver nas

    pginas da obra citada. Dessa forma, ocorre fenmeno semelhante quele quando

    se trata de conceitos complexos e controversos, como o de cultura, que ser

    enfocado mais frente, no captulo mais especificamente destinado discusso

    do mtodo etnogrfico musical: fica complicado estabelecer-se uma definio

    clara e funcional do mesmo. Na carncia de definies escolsticas, acaba-se se

    criando um campo mais abrangente que possa ajudar a compreender os

    processos de sincretismo nas vrias dimenses dos elementos da religio e da

    relao desta com a sociedade.

    O que nos lega a necessidade de se tomar uma posio em relao a essa

    diversidade e divergncias, como muito bem explicita Ferretti, num campo

    bastante problematizado com relao a questes de legitimidade e pureza:

    O sincretismo ocorre na religio, na filosofia, na cincia, na arte, e pode ser de tipos muito diversificados. Nas religies afro-brasileiras podemos localizar vrios tipos, conforme o aspecto que se esteja estudando ou a nfase do estudo. Para evitar mal-entendidos e confuses, preciso explicar exatamente o sentido que se quer dar ao termo que est sendo utilizado. Apesar dos aspectos pejorativos que prevalecem, sincretismo um fenmeno que existe em todas as religies, est presente na sociedade brasileira e deve ser analisado, quer gostemos ou no (Ibidem).

    E que tem tambm seus desdobramentos quando se analisa a musicalidade

    da religio. Por exemplo, so muitas, como veremos adiante, as fontes que

    afirmam a existncia de toques jeje2 dentro do conjunto da msica queto, bem

    como do conhecido ijex de nao homnima. A prpria existncia de processos

    similares na configurao do panteo de divindades indica junes, justaposies

    e convergncias entre diferentes grupos de origem, um sincretismo j entre

    naes de origens africanas formadoras. Portanto, mais do que fornecer uma

    definio especfica, a noo de sincretismo nos instrumentaliza a pensar o

    candombl e as religies correlatas como sistemas dinmicos formados a partir de 2 E, como ser comentado posteriormente, a proposio bastante enftica em PARS (2006) da

    origem jeje de estruturas fundamentais do candombl queto, como, por exemplo, o panteo de mltiplas divindades.

  • 35

    elementos variados e sujeitos a diferentes processos em diferentes contextos

    histricos e sociais. A atual tendncia de dessincretizao faz parte de um

    contexto mais recente e que tem suas respectivas implicaes sonoro-musicais.

    Sendo assim, para o pesquisador musical que se aproxima das religies afro-

    brasileiras penso que o sentido mais adequado de sincretismo seja o que permite

    entender as vrias trocas entre as atribuies de significados religiosos e

    simblicos a elementos sonoros, sob determinados contextos histricos e sociais

    que as modulam e formulam.

    Pelo menos, o sentido que assumo atendendo, dessa forma, a demanda

    conforme exposto acima de tomada de posio frente multiplicidade de

    significados que o termo e os conceitos de sincretismo podem assumir

    Para finalizar, acrescento ainda, um sentido que surge inspirado por uma das

    razes etimolgicas do termo. Com os devidos cuidados que esse tipo de

    referncia exige, uma vez que determinadas acepes podem perder suas

    significaes com o passar do tempo, aqui utilizo esse recurso mais como mote

    para uma digresso sobre um possvel sentido que talvez fique subalterno a

    outros mais presentes e candentes nas atuais negociaes de espao e poder das

    religies. Trata-se do seguinte:

    Etimologia gr. sugkrtisms, ou 'unio de cretenses contra um adversrio comum', donde 'coligao de dois adversrios contra um terceiro', [...] pelo fr. syncrtisme (1611) 'unio de dois antigos inimigos contra uma terceira pessoa' (HOUAISS, loc. cit.).

    Quero com isso me referir ao fato de que, muitas vezes, so obliteradas as

    possibilidades de reflexo sobre o sincretismo como um encontro entre as

    concepes religiosas africanas e aquelas oriundas do catolicismo popular, ambas

    sob a dominao da religio oficial. Costuma-se pensar num catolicismo

    hegemnico impondo elementos de culto a uma religiosidade negra subordinada.

    No entanto, sabemos, pela literatura e por experincia etnogrfica anterior

    (VASCONCELOS, 2003), que formas de religiosidade popular denominadas por

  • 36

    Queirz (1968) como catolicismo rstico so tambm muitas vezes alvo da

    intolerncia do clero e outros poderes institudos. Essas prticas religiosas de

    comunidades rurais ou pequenas cidades do interior e do serto, com suas

    devoes a santos padroeiros locais, organizam-se margem da instituio

    eclesistica. Por outro lado, houve na formao do candombl grande presena

    das irmandades catlicas de homens e mulheres negras compondo um quadro de

    um catolicismo subalterno que pode muito ser o outro dos dois adversrios que

    se coligam contra um terceiro, segundo esse entendimento que a etimologia

    pode sugerir. O que nos permite pensar em sincretismos mais horizontais,

    trnsitos e trocas entre formas diferentes de religiosidade porm colocadas em

    patamares similares em relao dominao religiosa oficial.

    E, ento, prosseguir com a exposio de caractersticas dos fundamentos

    religiosos da prtica que estamos diretamente enfocando nesse quadro geral que,

    como vimos se estende ao lado ocidental do Novo Mundo, o continente

    americano como um todo, que recebeu grandes contingentes de seres humanos

    traficados como mercadoria, mas que trouxeram consigo culturas mltiplas que

    aqui propiciaram embora num quadro de dominao e opresso o surgimento

    de formas religiosas como o candombl queto que estamos enfocando.

    1.5 O Panteo nag-queto: orixs

    Nesta religio, a crena em um panteo prprio de divindades outra

    caracterstica fundamental. Ou de fundamento, se preferirmos os termos dos

    prprios grupos de devotos em geral, o chamado povo de santo, ao se referir a

    estes princpios de suas prticas e concepes. Essas divindades so muito

    caractersticas e conhecidas no mbito da cultura brasileira em geral: os orixs.

    Esses deuses e deusas africanos cultuados aqui por vrias naes de

    candombl, por serem elementos centrais desses cultos, foram amplamente

  • 37

    estudados. Um autor igualmente central por sua contribuio a esses e outros

    estudos foi o francs radicado em Salvador, Pierre Verger, figura de grande

    importncia tanto nos campos acadmicos quanto no prprio territrio da

    religiosidade, principalmente em terras baianas. Em suas mltiplas idas e vindas

    atravs do Atlntico, Verger no s se integrou de forma marcante entre as

    lideranas religiosas, mas tambm legou uma obra marcante para o campo de

    estudos sobre as religies afro-brasileiras, principalmente em sua vertente nag-

    queto (a despeito da sua reduzida atuao nos meios acadmicos inclusive pela

    averso que demonstrava ao dilogo com os intelectuais 3), e estabeleceu uma

    nova perspectiva de relao com as comunidades estudadas.

    Etnlogo de caudalosa produo, mas tambm exmio fotgrafo tornou-se

    babala na prpria Keto africana, em 19504, a partir da recebendo o ttulo de

    Fatumbi: aquele que nasceu novamente pela graa de If. Este portador de

    vrios olhares e saberes sobre o candombl expe sua concepo sobre as

    divindades dessa religio, em obra dedicada ao estudo desses deuses no Brasil e

    na frica, da seguinte forma:

    O orix seria, em princpio, um ancestral divinizado, que, em vida, estabelecera vnculos que lhe garantiam um controle sobre certas foras da natureza, como o trovo, o vento, as guas doces ou salgadas, ou, ento, assegurando-lhe a possibilidade de exercer certas atividades como a caa, o trabalho com metais ou, ainda, adquirindo o conhecimento das propriedades das plantas e de sua utilizao. O poder, se, do ancestral-orix teria, aps sua morte, a faculdade de encarnar-se momentaneamente em um de seus descendentes durante um fenmeno de possesso por ele provocada (VERGER, 2002, p. 18).

    Veremos, como o trecho acima j antecipa, a importncia tambm de dois

    outros princpios religiosos fundamentais, integralmente relacionados s

    3 Conforme SILVA, 2000, p. 97. Neste livro o autor efetua tambm uma anlise sobre a

    importncia de Verger e de Roger Bastide na construo do campo acadmico referido e na configurao de uma postura diferenciada do pesquisador, em termos de que vir a ser uma antropologia inicitica, como a de Juana Elbein dos Santos. Ver ibid., p. 95 -100.

    4 Conforme CASA NOVA, 2001, p. 175. Babalas so os adivinhos, os orculos, em Cuba e na frica. Ketu, localizada na atual Nigria , na narrativa mtica, a cidade em que teria reinado o orix Oxossi.

  • 38

    divindades e que sero reiteradamente evocados, principalmente por sua relao

    com os aspectos sonoros: o transe/ possesso e o ax. Ambos integralmente

    ligados s concepes de orix. E todos operando conjuntamente para a

    solidificao dos laos entre os membros do grupo religioso, num quadro de

    reconstruo de relaes tnicas, culturais, sociais e religiosas. Pois, em suas

    formas originais, os cultos a ancestrais e divindades estavam fortemente ligados

    s estruturas familiares e a relaes locais:

    Na frica, cada orix estava ligado a uma cidade ou a um pas inteiro [...] Sng em Oy, Yemoja na regio de Egb, Iyewa em Egbado [...] Os orixs viajaram, em seguida, para outras regies africanas, levados pelos povos no curso de suas migraes [...] Quando o africano era transportado para o Brasil, o orix tomava um carter individual, ligado sorte do escravo, agora separado do seu grupo familiar de origem. A qualidade das relaes entre um indivduo e o seu orix , pois, diferente, caso ele se encontre na frica ou no Novo Mundo. Na frica, a realizao das cerimnias de adorao ao orix assegurada pelos sacerdotes designados para tal [...] No Brasil, ao contrrio, cada um deve assegurar pessoalmente as minuciosas exigncias do orix, tendo, porm, a possibilidade de encontrar num terreiro de candombl um meio onde inserir-se, e um pai ou me-de-santo competente, capaz de gui-lo e ajud-lo a cumprir corretamente suas obrigaes em relao ao seu orix [...] Existem, assim, em cada terreiro de candombl, mltiplos orixs pessoais, reunidos em torno do orix do terreiro, smbolo do reagrupamento, do que foi dispersado pelo trfico (ibid., p. 32-33).

    Portanto, foi a re-elaborao das prticas religiosas africanas no Brasil, no

    contexto da opresso escravagista principalmente nos ltimos tempos desse

    regime - que deu origem ao candombl queto. Dessa forma, algumas

    caractersticas locais tornaram-se bastante presentes nessas religies, como a

    estruturao dos grupos em comunidades denominadas terreiros, termo que

    acabou sendo sinnimo da associao e do lugar onde se pratica a religio

    tradicional africana (SANTOS, 2002, p. 32). Ou seja, um plo de reunio dos

    praticantes da religio por abrigarem os fundamentos de suas prticas e tambm

    moradia para alguns de seus membros. Sobre esses membros, convm destacar

    outra peculiaridade de sua organizao:

  • 39

    A famlia-de-santo foi a forma de organizao que estruturou os terreiros onde negros e mulatos, destitudos de um grupo de referncia pela escravido, se reuniam, estabelecendo vnculos baseados em laos de parentesco religioso. Essa forma de organizao persiste at hoje (SILVA, 2005, p. 56-57).

    Tais formas de agrupamento possuem, obviamente, implicaes musicais,

    que podem ser percebidas na composio de repertrios pessoais e dos grupos.

    Como se v, tanto do ponto da reestruturao da sociabilidade quanto da

    formao de um panteo local com base nas divindades como eram cultuadas em

    solo africano, as formas de culto brasileiras rearticularam a religiosidade original.

    Os orixs formaram, ento, um conjunto de divindades cuja importncia nas

    concepes e prticas da religio primordial. Seu panteo na Amrica

    constitudo de cerca de uma vintena de orixs e, tanto no Brasil como em Cuba,

    cada orix, com poucas excees, celebrado em todo o pas (PRANDI, 2001, p.

    20).

    E a concepo religiosa de que esses ancestrais divinizados, como se

    refere Verger, tm seus filhos que so por eles influenciados espiritualmente.

    Alm das foras da natureza e das atividades por eles presididas, sua

    multiplicidade de temperamentos e a riqueza narrativa dos mitos propiciam uma

    srie de explicaes religiosas para a igual diversidade de personalidades e

    destinos de seus filhos espirituais. Em todas as obras citadas at aqui, no decorrer

    deste captulo, encontram-se expostas e analisadas as caractersticas, funes

    religiosas e atribuies dos orixs, sendo que em Verger (2002) encontramos mais

    detalhadamente aspectos gerais das formas de culto na frica e no Novo Mundo e

    em Prandi (2001) uma coleo de mitos coligidos de vrias fontes, oriundos

    desses cultos.

    Portanto, Exu, Ogum, Oxssi, Nan, Oxumar, Omolu/Obaluai, Xang,

    Oi ou Ians, Ob, Oxum, Iemanj e Oxal entre vrios outros, so alguns desses

    deuses e deusas africanos que compem o culto no candombl queto e cuja

    presena no imaginrio de nosso pas j bastante difundida, seja na msica

    popular (ver PRANDI, 2005, p. 175-214 e AMARAL e SILVA, 2008) ou nas

    representaes, imagens, ilustraes, etc. As esttuas de Iemanj em vrios

  • 40

    locais litorneos de turismo e/ou culto, como o caso da Praia Grande no estado

    de So Paulo e afluncia a festas populares em que as benesses desta divindade

    so invocadas, como o rveillon no Rio de Janeiro e o dois de fevereiro

    soteropolitano, atestam isso.

    No contexto das festas pblicas do candombl, cujo interesse para este

    trabalho bastante acentuado, existe um calendrio de efemrides dos orixs

    fortemente influenciado pelo sincretismo, com as datas das festas relacionadas s

    das comemoraes catlicas em sua distribuio ao longo do ano.

    Por essa influncia do catolicismo no calendrio das festas de candombl

    notamos a associao das datas que, considerando as equivalncias sincrticas,

    seriam consagradas s aproximaes catlicas dos orixs. Assim, por exemplo,

    atribui-se a data de 8 de dezembro, dia de Nossa Senhora da Conceio, a festas

    de Oxum ou de Iemanj conforme a interpretao da correspondncia da

    simbologia entre ambas (sobre suas variaes regionais, ver SILVA, 2005, p. 75 -

    98) e assim por diante.

    O que se observa no trabalho de campo, principalmente no

    acompanhamento de festas do candombl queto, uma razovel variabilidade

    que, no entanto gira em torno das datas estabelecidas de forma geral (23 de abril

    para Ogum/ So Jorge; as Fogueiras de Xang em finais de junho, associadas s

    festas dos santos juninos; etc.), mas que obedece a condies particularizadas,

    tais como disponibilidade de recursos, de tempo dos principais envolvidos;

    disposies oraculares dos orixs homenageados e outras variveis. Observa-se,

    no entanto, uma tendncia de desvinculao da especificidade da data catlica,

    como mais um sinal da tendncia de dessincretismo bastante evidente nos

    processos mais recentes no desenvolvimento histrico da religio.

    Que leva a uma busca e cultivo dos princpios mais fundamentais. Vamos

    nos deter um pouco em alguns desses fundamentos e sua importncia para a

    compreenso do contexto em que as sonoridades se articulam.

  • 41

    1.6 O fundamento principal: o ax

    Este , sem dvida, um dos elementos fundamentais da religio. tambm

    um conceito extremamente importante para entender a performance musical ritual

    no candombl.

    Sendo um dos princpios ou o princpio mais estruturantes da religio, ocupou

    as preocupaes dos principais autores que escreveram sobre ela. Segundo

    Juana Elbein dos Santos:

    Dizamos no captulo precedente que o contedo mais precioso do 'terreiro' era o se. a fora que assegura a existncia dinmica, que permite o acontecer e o devir. Sem se, a existncia estaria paralisada, desprovida de toda a possibilidade de realizao. o princpio que torna possvel o processo vital. Como toda fora, o se transmissvel; conduzido por meios materiais e simblicos e acumulvel. uma fora que s pode ser adquirida pela introjeo ou por contato. Pode ser transmitida a objetos ou a seres humanos (SANTOS, p. 39).

    Ax, nas referncias, aparece grafado em variadas formas, conforme a

    inteno do autor de aproximar da grafia original em iorub5 ou no. um

    princpio constante, praticamente onipresente na religio. To importante que se

    pode dizer que a atividade fundamental de uma casa de candombl, em princpio,

    obter, manter e propagar o ax, desdobrada em uma srie de aes e preceitos.

    Nos sacrifcios animais e nas coletas de plantas diz-se: isso ax para

    determinadas partes ou espcimes de importncia litrgica, nas casas de religio

    planta-se o ax como fundao para as prticas. O ax particular, individual e

    tambm coletivo, tambm identidade de filiao religiosa: diz-se sou do ax

    tal ou tal para se afirmar pertencer a uma determinada linhagem religiosa ou a

    uma determinada casa. Usa-se o termo para designar o grau de compromisso

    com a casa ou com a religio, ento pode se dizer: fulano no muito do ax....

    Com a msica no poderia ser diferente, sua execuo pode ser propiciadora ou

    5 A questo da adoo de uma grafia iorubana e suas aproximaes pode ser observada tambm

    nas denominaes das casas religiosas. Seu sistema de notao exige uma srie de smbolos nem sempre disponveis nos redatores de texto, como o exemplo do ssubscrito com um ponto, muitas vezes substitudo por um s.

  • 42

    no de ax, sendo que as sonoridades esto presentes em praticamente todas as

    atividades: rezas, colheitas, prticas divinatrias e rituais particulares de

    realizao de prescries, sempre indicadas como forma de manter o prprio

    equilbrio do ax. Nas cerimnias pblicas, conforme veremos frente, essa

    relao assume uma face bastante perceptvel nos momentos rituais em que a

    performance atinge nveis altos de energia, de efuso e alegria dos devotos ou

    seja, de ax - como a chegada ou a apresentao de orixs considerados mais

    importantes dentro do contexto de cada festa.

    Dessa forma, a msica constitui elemento fundamental nas vrias formas e

    dimenses da difuso do ax enquanto princpio dinmico da religio:

    No candombl, os cantos religiosos (ou cantigas) e os toques de acompanhamento possuem o poder dinmico do som, como agente condutor do ax, a 'fora que torna possvel a existncia dinmica', pois eles transmitem o poder de ao para mobilizar a atividade ritual (BHAGUE, 1999, p. 42).

    No captulo destinado descrio etnogrfica teremos oportunidade de

    contextualizar essa relao em uma srie de exemplos, alm de podermos nos

    deter mais detalhadamente sobre a ordem ritual que estrutura as cerimnias

    pblicas do candombl. Esse outro conceito essencial na estrutura da religio e

    muito importante na constituio das festas pblicas de orixs e nosso prximo

    tpico de discusso tendo como base a literatura antropolgica e etnogrfica.

    Entretanto, antes de passarmos a esse tpico, preciso ressaltar um dado

    relevante do conjunto da literatura etnogrfica deste campo: trata-se da

    importncia dos autores Ren Bastide, Pierre Verger e Juana Elbein dos Santos.

    Essa importncia talvez tenha ficado turvada devido a uma tendncia a se

    ressaltar a contribuio dos mesmos na construo da idia de supremacia nag.

    No entanto, a contribuio desse trio para a descrio detalhada dos ritos, mitos,

    do sistema religioso em geral com suas vrias dimenses, a liturgia, os elementos

    sagrados e vrios outros temas imensamente significativa. Inclusive com

    importncia prescritiva, chegando a terem seus livros utilizados como verdadeiros

    manuais pelo povo-de-santo. Falemos agora do xir.

  • 43

    1.7 - O Xir

    um conceito que evidencia suas caractersticas como uma seqncia de

    louvaes muito peculiar das festas de candombl. No entanto, por sua

    importncia como espinha dorsal da face pblica da religio - a festa - e como

    espcie de sntese da mesma, vale a pena ressaltar alguns de seus aspectos. E,

    principalmente atravs da leitura crtica de um trabalho cuja proposta entender

    como se articula um modo de crer e viver tpicos dos adeptos do candombl,

    inserido no contexto maior das sociedades urbanas, dando formas a um ethos

    prprio. Trata-se de um livro cujo ttulo e o prprio fio condutor do texto este

    elemento da estrutura ritual: o Xir - o modo de crer e viver no candombl

    (AMARAL, 2002). A dimenso da festa enfocada como uma espcie de

    microcosmo da religio, expressando vrios aspectos desta em sua face pblica:

    A festa uma das mais expressivas instituies dessa religio e sua viso de mundo, pois nela que se realiza, de modo paroxstico, toda a diversidade dos papis, dos graus de poder e conhecimento a eles relacionados, as individualidades como identidades de orixs e de 'nao', o gosto, as funes e alternativas que o grupo capaz de reunir. Nela no encontramos apenas fiis envolvidos na louvao aos deuses; muitas outras coisas acontecem na festa. Nela, andam juntos a religio, a economia, a poltica, o prazer, a esttica, a sociabilidade, etc. Por essa razo as festas de candombl podem ser classificadas na categoria dos fatos sociais totais que, para Mauss (1974), tm uma dimenso estratgica na elaborao do conhecimento antropolgico. A vivncia da religio e da festa to intensa que acaba marcando de modo profundo o gosto e a vida cotidiana do povo-de-santo. A religio passa a se confundir com a prpria festa (ibid., p. 30).

    Ainda sobre este tema e sobre essa obra, alguns dados interessantes sobre

    a religio em geral e que se podem observar no trabalho de campo sugerem

    comentrios. Uma delas a dimenso econmica da festa e da religio. Os

    eventos no candombl so por vezes bastante dispendiosos, pela utilizao de

    prescries em geral, que podem ter custos elevados e so, a princpio, de

    responsabilidade do devoto que realizar tais obrigaes. Assim, as demandas

    materiais para a realizao de determinados rituais so bem grandes, e podem ser

    de roupas especficas, alimentos e sacrifcios animais nem sempre os mais

  • 44

    disponveis no mercado, como cabritos, galinhas d'angola, pombos-brancos,

    caracis adereos e adornos razoavelmente luxuosos (capacetes, braceletes,

    ornamentos, etc.), entre outros. Embora seja responsabilidade individual, muitas

    vezes se efetuam redes de solidariedade para ajudar naqueles custos mais

    pesados para o devoto e para o terreiro. No texto citado (ibid., p. 40-47), uma

    anlise detalhada de alguns desses custos exemplificam o argumento. Convm

    frisar que, dentro da concepo religiosa e social da religio, as festas tm

    tambm uma dimenso de atendimento aos convivas, com bebidas e comidas por

    vezes especficas do santo homenageado, que oneram esse oramento, j que

    ponto de honra receber bem.

    Outras dimenses da vivncia do grupo tambm tm na festa um momento

    de observao privilegiado. Uma dessas dimenses a constituio de uma

    lngua do santo, ou seja, um conjunto de expresses, de grias, formando um

    jargo prprio que serve de cdigo e uma espcie de teste para ver quem do

    santo ou pelo menos, como do santo. Ou seja, o grau de insero e

    comprometimento com a religio e a forma de se relacionar com a mesma. Outra

    questo bastante candente nesse meio a da sexualidade. O candombl uma

    religio que no recrimina ou discrimina as orientaes sexuais nem as associa

    com algum tipo de desvio ou pecado.

    Ainda h uma srie de outros elementos e caractersticas que se podem

    observar trazendo coincidncias muito marcantes entre os relatos que constam do

    livro e as observaes do trabalho de campo em geral e de outros relatos da

    literatura que poderemos observar em uma srie de oportunidades, quando da

    referncia a pesquisas realizadas em solo baiano, carioca ou outros locais. Entre

    elas esto a valorizao do corpo, da sade integrados ao equilbrio do ax, item

    tratado anteriormente - um senso de humor prprio e supersties peculiares

    (Ibid., p. 66 - 90).

    Que, como foi dito anteriormente, atestam a forma como se configura um

    ethos prprio do povo-de-santo. Ethos que inclui uma face musical,

    principalmente considerando os repertrios compartilhados de msica sacra.

  • 45

    1.8 Candombl: Trajetria histrica da Bahia Baixada Santista (SP)

    H praticamente um consenso em torno da primeira metade do sculo XIX

    como o perodo em que a religio que hoje se denomina candombl queto tenha

    surgido na Bahia. Tambm h uma concordncia geral entre os autores em torno

    do que postula Verger (2002, p. 28) com base em relatos orais, de que o primeiro

    dos terreiros tenha surgido prximo igreja da Barroquinha, ligado a duas

    irmandades religiosas catlicas. Este grupo religioso, aps uma srie de

    mudanas de locais para suas prticas instalou-se sob o nome de Il Iyanass na

    Avenida Vasco da Gama, onde ainda hoje se encontra, sendo familiarmente

    chamado de Casa Branca do Engenho Velho (ibid., p. 29). O terreiro

    considerado, portanto, a mais antiga e tradicional casa de candombl queto da

    Bahia e do pas. Em pleno funcionamento no mesmo local indicado por Verger, no

    entanto tendo sido engolido pelo crescimento da cidade, o Il Ax Iy Nass Ok

    considerado a casa me do candombl queto, por sua longevidade e por dela

    terem se originado outras casas igualmente respeitadas na tradio: o Iy Omi

    se Iymase, bastante conhecido como Terreiro do Gantois (inclusive bastante

    tematizado no universo da cano popular, por compositores como Dorival

    Caymmi e Vinicius de Moraes) e Centro Santa Cruz do Ax Op Afonj que foi

    instalado em 1910, em So Gonalo do Retiro (ibid., p. 30).

    As origens desta prtica religiosa remontam, como vemos, primeira metade

    do sculo XIX. No entanto, um autor recentemente questionou que o modelo

    surgido naquele perodo fosse o mesmo que posteriormente se fixou e perdurou

    at os dias de hoje, conforme os relatos orais calcados na tradio costumam

    reforar. Segundo esse autor, teria havido uma grande influncia das etnias jeje na

    formao do prprio candombl queto e essa influncia teria at propiciado o

    surgimento de uma das caractersticas mais estruturais dessa religio:

  • 46

    Embora, segundo a tradio oral, o culto de mltiplas divindades remonte s primeiras dcadas do sculo XIX, com a fundao do candombl Il Iy Nass, na Barroquinha, s em 1858 que achamos os primeiros indcios documentais que sugerem essa realidade. No entanto, contrariamente idia prevalecente nos estudos afro-brasileiros, a minha hiptese que o culto de mltiplas divindades no foi uma simples inovao brasileira, resultado das novas condies da sociedade escravista e do encontro das vrias etnias africanas. Sustento que essa prtica ritual encontra claros antecedentes africanos na rea gbe e que, logicamente, a matriz jeje ou as tradies do culto de voduns tiveram um papel determinante no processo constitutivo desse modelo de Candombl. Trata-se de um assunto complexo e controverso (PARS, 2006, p. 143).

    Complexo, controverso e de difcil documentao histrica no que diz

    respeito s sonoridades musicais. A verdade que, as formas sudanesas de

    candombl baiano de outras naes que no a nag-queto foram ofuscadas por

    esta e existem poucos remanescentes de tais prticas. So elas o candombl jeje

    citado e o ainda mais raro candombl ijex.

    A partir de suas origens baianas, principalmente da capital Salvador e da

    regio do Recncavo Baiano, esse candombl jeje-nag difundiu-se pelo territrio

    nacional, como j frisamos, principalmente pelos estados de Rio de Janeiro e So

    Paulo.

    Estes dois estados, embora similares enquanto plos de atrao da

    migrao por sua condio de estados mais ricos e influentes da nao ao longo

    dos sculos XIX e XX, tm caractersticas bastante peculiares no que diz respeito

    ao desenvolvimento histrico das religies afro-brasileiras durante esse perodo.

    ,As relaes econmicas, sociais e culturais entre Rio de Janeiro e Bahia

    propiciaram um trnsito intenso de lderes e seguidores das religies afro-

    brasileiras, principalmente na primeira metade do sculo XX. Vrios sacerdotes

    baianos estabeleceram-se na ento capital da repblica ou mantinham estreita

    relao de filiao com terreiros cariocas, tanto dos cultos angola quanto os jeje-

    nags. Podemos observar essa relao tambm nos relatos sobre o terreiro Il

    Omolu Oxum (FREITAS, 2004) e sua relao com casas tradicionais da Bahia

    como o Il Ogunj e seu lder religioso Procpio D'Ogum. Fonseca (2003, p. 8 e

    26) indica tambm relaes bastante estreitas de linhagem religiosa entre a casa

  • 47

    por ele estudada no estado do Rio de Janeiro com lideranas importantes da Casa

    Branca do Engenho Velho.

    Prandi (1991) nos traz tambm informaes que reiteram esta ligao entre

    as duas capitais e dois grandes centros de circulao da cultura negra e sua

    religiosidade. Por exemplo, ao afirmar que grandes pais e mes-de-santo da

    Bahia passaram parte de suas vidas religiosas no Rio, como Aninha, fundadora

    dos Ax Op Afonj de Salvador e do Rio de Janeiro (ibid., p. 52). E que,

    portanto:

    assim muito antiga essa presena de tantos sacerdotes de candombl no Rio, fazendo filhos-de-santo, mantendo casas. Entre eles tambm era freqente no Rio o babala Felizberto Amrico de Souza, o Benzinho Sowzer, que dividiu com Martiniano do Bonfim, nos anos das dcadas de 1920 e 30, o papel dos dois ltimos babalas da Bahia. [... ] O trnsito de sacerdotes e aspirantes das religies dos orixs e encantados entre Bahia e Rio tem se mantido constante desde esse passado at os dias de hoje. (p. 53). A pesquisa da origem religiosa de muitas casas do Rio nos conduz de volta Bahia dos anos 10 aos anos 40 do sculo XX, mas essa histria no tem sido documentada, com exceo do terreiro do Op Afonj do Rio de Janeiro nascido, como vimos, das andanas de Me Aninha (Ibid., p. 54). Alm disso, nas narrativas em geral sobre as origens do samba e no estudo

    de Moura (1983), j estabelecido como uma das referncias melhor

    documentadas sobre estas origens, patente a descrio de um campo de

    religiosidade dos candombls bastante alentado nos quais era intensa a circulao

    de figuras chave na construo do gnero musical e da cultura popular da poca.

    Os plos dessa circulao eram as casas das mes de santo baianas radicadas

    no Rio e a quase legendria Tia Ciata era uma delas.

    J a difuso para o estado de So Paulo, capital e litoral, teve uma dinmica

    diferente, sendo que o candombl nesses locais um fenmeno posterior aos

    anos 1960 embora haja evidncias da existncia de grupos pioneiros j no

    sculo XIX, como as apresentadas pelo pesquisador Vagner Gonalves da Silva.

    No entanto, na mesma obra em que as apresenta o autor observa que:

  • 48

    Se possvel encontrar sinais da presena do candombl em So Paulo h pelo menos um sculo, verdade que esta religio s se tornar demograficamente expressiva, aqui, a partir dos anos 60. (SILVA, 1995, p. 75).

    A regio do litoral paulista apontada por esse autor como bastante

    relevante neste perodo de implantao e desenvolvimento das religies de orixs

    no estado de So Paulo: A importncia do candombl litorneo em So Paulo pode tambm pode ser atestada na relao dos mais antigos pais e mes-de-santo em So Paulo, elaborada pela Comisso de Candombl formada por algumas lideranas religiosas paulistas, a partir da Assessoria para Assuntos Afro-Brasileiros da Secretaria de Estado da Cultura do Governo Franco Montoro, em 1983. Dos vinte e sete babalorixs e ialorixs citados, quinze localizam-se na capital e doze em Santos. (Ibid., p. 82).

    J em Prandi (1991), encontramos interessantes observaes sobre os

    fluxos que caracterizam essas formas religiosas, como estes a seguir:

    At o final da dcada de 1940 os registros acusavam a presena de 1.097 centros kardecistas, 85 centros de umbanda e nenhum candombl. Na dcada de 50 surgia nos registros apenas um terreiro de candombl, mas a umbanda j ameaava definitivamente a presena do kardecismo, disputando com ele passo a passo o surgimento de novas casas de culto. Ao final da dcada de 80, entretanto, pelas estimativas obtidas a partir dos dados do CER, chegaremos a cerca de 17 mil terreiros de umbanda, 2.500 centros de espiritismo kardecista e o mesmo nmero de terreiros de candombl. Mudanas fantsticas. O kardecismo, que representava 92% dos registros no incio, chegar a 3%. O candombl, que nada tinha at os anos 60, alcanar a taxa de 14% dos registros. No decorrer desse perodo, a umbanda firmou-se majoritria desde o final dos 50, mas a curva crescente do candombl vem a reduzir em parte a velocidade expansionista da umbanda (ibid. p. 27).

    Concluses que apontam para um dado a princpio surpreendente, pois,

    considerando que Ortiz (1978) anteriormente havia analisado o processo

    crescente de branqueamento das religies afro-brasileiras, em So Paulo o

    desenvolvimento destas tomava uma diretriz diferente: como se o movimento

    histrico do candombl umbanda, das dcadas recentes, se invertesse, criando

    um arco de filiao religiosa que vai agora da umbanda ao candombl (PRANDI,

    op. cit., p. 27). Criando o que seria uma nova tendncia de adeses nesse perodo

    do sculo XX:

  • 49

    As primeiras investigaes-tentativas que fizemos junto a candombls de So Paulo j indicavam algo que a pesquisa mais abrangente confirmaria: da umbanda que saem, esmagadoramente, os adeptos que vo se inscrever nas fileiras do candombl. O candombl j encontra, portanto, um mar de adeptos formado pela expanso da umbanda, gua em que navegar mas no a nica (ibid., p. 28). Tendncia que, paradoxalmente, ao buscar a inovao nas prticas

    estabelecidas, como o intuito de torn-las mais eficazes e legitimadas, ir

    encontrar essa novidade justamente nos ritos mais ligados tradio:

    Em outras palavras, havia um processo em curso, j estava se criando na So Paulo do comeo da dcada de 1960 a demanda por um novo estilo de cultuar os orixs e que era o velho estilo (ibid. p. 103).

    Neste processo de difuso e reelaborao das prticas religiosas afro-

    brasileiras no estado de So Paulo, a regio da Baixada Santista foi, tambm para

    Prandi, local de pioneirismo dos religiosos e de seus terreiros: O mais antigo terreiro de candombl no Estado de So Paulo foi fundado, pelos dados de que disponho, em Santos, em 1958, por Seu Bob. Vindo da Bahia, Seu Bob, Jos Bispo dos Santos, hoje com 75 anos de idade, ficou no Rio de 1950 a 1958. [...] A casa-de-santo de Seu Bob est h muito tempo no bairro do Itapema, rua Projetada Caic, 63, municpio do Guaruj, do outro lado do canal do porto de Santos. Bob pai-de-santo de chefes de muitas casas de So Paulo (ibid. p. 118) Prandi ainda cita outros grandes sacerdotes e sacerdotisas desses tempos

    pioneiros, como Diniz da Oxum (Diniz Neri), filho-de-santo de Waldomiro Baiano,

    que se estabeleceu em So Vicente antes de 1960 (Ibid., p. 124); [...] o pai-de-

    santo Vav Negrinha, Valdemar Monteiro de Carvalho Filho, baiano de nao jeje

    da casa de Guaiacu e Me Toloqu (Regina Clia dos Santos Magalhes).

    Iniciada ainda na Bahia por Joozinho da Gomia (Ibid., p. 119). Esta foi uma

    ialorix de grande destaque na regio e que posteriormente transferiu-se para a

    cidade de Itanham, tambm no litoral sul paulista (ALEXANDRE, 2006, p. 35 -

    40). No apenas ela, mas: Todo esse grupo fixado na Baixada Santista mantinha estreitas relaes com Joozinho da Gomia e com certos terreiros de umbanda de So Paulo (PRANDI, op.cit., p. 119)

  • 50

    Posteriormente a esse grupo pioneiro, ir transferir-se para a regio, no incio

    dos anos 1970, o babalorix Vivaldo de Loguned que, alm de ter ento se

    tornado um dos pais-de-santo mais influentes na Baixada Santista, tem

    importncia especial neste trabalho por ser o pai-de-santo que iniciou a ialorix da

    casa onde a maior parte da pesquisa realizada. Segundo a biografia deste

    sacerdote:

    Foi em 1975, apenas quatro anos depois de ter se mudado para cidade de Santos, que Pai Vivaldo conseguiu comprar o terreno no bairro do Jardim Rdio Clube, iniciando as obras do que ele chamava de sua 'barraca', mas que na verdade era a casa de Loguned ou Il Ax Ode Omi Fon. Boa parte do dinheiro foi conseguida com o jogo de bzios, que ele praticamente popularizou na regio (ALEXANDRE, op. cit., p. 73)

    Durante trinta anos, at seu falecimento em 2005, este babalorix manteve

    sua casa na Zona Noroeste de Santos, uma das regies mais pobres da cidade e

    que abriga grandes contingentes da populao nordestina local. Ali, fez Filhos de

    Loguned como ele, de Oi; de Oxssi, o caador; da sedutora Oxum; do

    guerreiro Ogum; enfim de um vasto panteo de divindades que possibilitam

    interpretaes das personalidades e destinos de seus filhos e que tm mltiplas

    formas de serem representados, simbolizados e louvados. Inclusive com

    sonoridades especficas. Passemos a algumas particularidades dessas

    divindades.

    1.9 Orixs: caractersticas gerais e sonoras

    A relao entre os elementos constitutivos, as atribuies dos orixs e a

    musicalidade da religio um dos temas centrais a serem expostos e discutidos.

    Gostaria de apresentar alguns traos marcantes, para introduo a aspectos que

    sero trabalhados quando da descrio das performances em festas pblicas.

  • 51

    Nestas, essa relao assume aspectos bastante perceptveis de como algumas

    particularidades das divindades so representadas sonoramente. Estes traos

    esto relacionados a narrativas mticas obtidas na literatura e a caractersticas

    observadas durante o trabalho de campo. Como j foi frisado, para uma tipologia

    ou para uma extensiva relao das narrativas dos mitos dos orixs, obras como as

    de Verger (2002) e Prandi (2001), respectivamente, trazem maiores referncias.

    Aqui, apresentamos alguns comentrios sobre trs orixs, dentre um panteo que

    abarca muitos mais, apenas para efeito de ilustrarmos como so integralmente

    ligados mito, sonoridades e rito nas representaes dos orixs como uma

    totalidade.

    1.9.1 - Ogum

    O orix Ogum uma figura imponente e impressionante. Iniciar por sua

    caracterizao e descrio deve-se a uma srie de motivos, principalmente alguns

    elementos de subjetividade no processo de aproximao com o universo do

    candombl queto. Um dos primeiros desses motivos, como veremos adiante mais

    detalhadamente na exposio da pesquisa de campo, deve-se ao fato de que as

    festas desse orix foram as primeiras que presenciei no terreiro pesquisado.

    Nesse processo de aproximao, uma pessoa que foi muito importante filho-de-

    santo desse orix e o babalorix do terreiro estudado, onde as festas

    primeiramente freqentadas tiveram tal divindade como dono da festa. Alm

    disso, sua caracterstica de divindade que abre os caminhos, senhor das

    demandas e orix guerreiro o coloca como um dos mais procurados como

    propiciador de conquistas pessoais e sucesso nos projetos. o primeiro a ser

    saudado no xir. H tambm o fato de que sua sincretizao mais evidente com o

  • 52

    santo catlico So Jorge (na regio sudeste), outra figura bastante disseminada

    no imaginrio popular e que torna sua difuso na cultura brasileira bastante

    intensa, com especial destaque sua presena na chamada Msica Popular

    Brasileira e seus registros fonogrficos. As performances de Ogum nas festas

    tematizam seu carter enrgico e guerreiro e uma caracterstica marcante a

    figurativizao sonora do ferro. Explicando melhor, este orix tambm o

    responsvel pela regncia da metalurgia e em vrios mitos apresentado como

    ferreiro que confecciona no s as armas da guerra como as ferramentas para a

    agricultura e outras atividades. Nas festas, sua presena evocada ou celebrada

    com as sonoridades dos idifonos de metal como o g e outros de acentuado

    simbolismo ritual6, sempre remetendo s sonoridades do ferro e suas

    manufaturas. Musicalmente, ainda se pode dizer que este orix tem uma

    predileo por alguns toques, conforme exposto pelas fontes a seguir. Segundo o

    og alab Marcos de Xang, em sesso de gravao realizada em

    29/maro/2007, o toque para esse orix seria o agabi7. Para o autor que trabalhou

    extensivamente na casa mais antiga do Brasil, a predileo desse orix seria

    outra:

    Em toda a bibliografia consultada, o nome aderej no foi encontrado. Apesar desse toque acompanhar cantigas de outros orixs, todos os meus professores, do Engenho Velho, so incisivos ao afirmarem que esse e o ader so os toques principais de Ogum (CARDOSO, 2006, p. 272).

    Em outra abordagem, tomando como referncia principal o candombl do

    Rio de Janeiro e o g, num amplo estudo comparativo centrado nesse idifono de

    metal similar ao agog, temos a verso mais prxima da denominao encontrada

    no trabalho de campo na Baixada Santista:

    6 Como os chamados instrumentos de fundamento, conforme Cardoso (2006, p.48), assunto a

    que retornaremos frente, no captulo 2. 7 No captulo 2 retomaremos com mais detalhes as caractersticas peculiares e a diversidade dos

    toques percussivos do candombl; e para mais detalhes sobre as entrevistas e informaes de campo ver o cap. 4.

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    Devido a semelhanas de execuo, comum, por exemplo, ouvir alguns alabs se referirem ao Agabi como um Aluj de Ogum. O Agabi tambm conhecido como Eg (FONSECA, 2003, p. 120).

    Em Pessoa de Barros (2005a, p. 65 -71), numa relao de dezoito ritmos

    executados na liturgia das comunidades-terreiro, pertencentes ao complexo

    cultural Jje-Nag do Rio de Janeiro, indicado apenas uma relao entre esse

    orix e o toque de adarrum, que apresentado a princpio como ritmo invocatrio

    de todos os orixs. Inicialmente lento, progressivamente acelerado, objetivando

    vencer as resistncias ao transe; ao que o autor acrescenta: sua execuo pode

    ser acompanhada de canto, especialmente para o orix Ogum. O que nos leva a

    comentar duas caractersticas importantes da religio como um todo e dos orixs