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Azazel - Isaac Asimov

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Ficção científica.

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Trata-se de uma coleção de contos sobre um pequeno demônio com poderes fabulosos que interfere na vida das pessoas provocando confusões.

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AZAZEL

IsaacAsimov

Nasruínasdeumcasteloinglês,olinguistaGeorgeBimnulencontroumanuscritosdeum rei dinamarquêsdo séculoXI que continhama chaveparaconjurardemônios.Aoproferirestranhaspalavras,Georgepassouainvocar uma pequena criatura a qual denominouAzazel. Esta é a origemdeumaduplaqueviria a aprontar asmaiores confusões. Suas aventurassãonarradaspor IsaacAsimovemdezoitohistóriasqueencantarão tantoos apreciadores da fantasia quanto a legião de fãs do mestre da icçãocientífica.

Com apenas dois centímetros de altura, Azazel possui um gênioimpulsivo e poderes mágicos fabulosos. Embora se recuse a usá-los embene icio de George, o pequeno demônio está sempre disposto a ajudarparentes e amigosdaquelequeo trouxe a esteuniverso tãodiferentedo

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seu.Mas,pornãoconhecerbemnossoscostumeseosmeandrosdaalmahumana, suas intervenções bem-intencionadas invariavelmente resultameminesperadasehilariantesconfusões.

NarradascommuitohumorenoimpecávelestilodeIsaacAsimov,ashistórias de George e Azazel forampublicadas pela primeira vez emTheMagazine of Fantasy and Science Fiction e em Isaac Asimov's ScienceFiction Magazine. Em “O Demônio de Dois Centímetros”, escritoespecialmentepara este livro, o autor conta como surgiu esta criaturinhatravessaquecativaráoleitorcomsuasdiabólicasaventuras.

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Introdução

Em1980,EricPottermepediuparaescrevermensalmenteumcontodemistério para uma revista da qual ele era o editor. Concordei, porquenãoconsigodizernãoapessoassimpáticas(todososeditoresqueconheçosãopessoassimpáticas).

O primeiro conto que escrevi foi uma espécie de mistério-fantasia,estreladoporumpequenodemôniodedoiscentímetrosdealtura.Intitulei-o“AjustedeContas”.EricPotteraceitou-oepublicou-o.NocontohaviaumpersonagemchamadoGriswold,queeraonarrador,etrêsoutroshomens(incluindo um personagem que era eu mesmo, embora isto não fossedeclarado explicitamente, e que contava a história para os leitores), queeramsuaaudiência.Osquatrocostumavamseencontrar toda semananoClubeUnion.EupretendiaescreverumasériedecontosarespeitodessesencontrosnoClubeUnion.

Quando,porém,escreviumasegundahistóriacomomesmopequenodemônio de “Ajuste de Contas” (o novo conto se chamava “UmaNoite deMúsica”),Ericrecusou-seapublicá-la.Elemeexplicouque,nasuaopinião,um pouco de fantasia não tinha importância,mas não queria que isso setornasseumhábito.

Assim, coloquei de lado “UmaNoite deMúsica” e escrevi uma sériede contos de mistério sem nenhum elemento de fantasia. Trinta dessashistórias (que, de acordo com as recomendações de Eric, não podiam termaisde2.000a2.200palavras) forammais tarde reunidasnomeu livroTheUnionClubMisterIes(Doubleday,1983).Nãoincluí“AjustedeContas”nessa coleção porque achei que, como o personagem principal era opequenodemônio,nãocombinavacomorestodashistórias.

Entretanto, eu não havia esquecido “Uma Noite de Música”. Odeiodesperdícios, e não suporto a ideia de deixar algo que escrevi sem serpublicado. Por isso, procurei Eric e disse: “Aquela história “UmaNoite deMúsica”,quevocênãoquispublicar...possosubmetê-laaoutraeditora?”

Ele respondeu: “Claro que sim, contanto que você mude os nomes

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dos personagens. Quero que as histórias a respeito de Griswold e seusamigossejamumaexclusividadedaminharevista!”

Foi o que iz. Mudei o nome de Griswold para George e reduzi aaudiênciaparaapenasumapessoa,opersonagemquecontavaahistóriaequeeraeumesmo.Depoisdefazerisso,vendi“UmaNoitedeMúsica”paraThe Magazine of Fantasy and Science Fiction (F & SF). Pouco depois,escrevi outra história da série que jáme havia acostumado a chamar de“Histórias de George e Azazel” (Azazel era o nome do demônio). Estasegundahistória,“OSorrisoRoubado”,tambémfoicompradapelaF&SF.

Acontecequesoudiretoreditorialdeumarevistade icçãocientí ica,aIsaacAsimov'sScienceFictionMagazine(lASFM),eShawnaMcCarthy,naépoca a editora da revista, alegou que não era justo que eu publicassemeuscontosnaF&SF.

Eu disse a ela: “Shawna, essas histórias de George e Azazel sãocontosdefantasia,ealASFMéumarevistadeFicçãocientífica.”

Elareplicou:“Então,transformeopequenodemônioesuamágicaemumpequeno ser extraterrestre comuma tecnologia avançada e venda ashistóriasparamim.”

Eu izisso,ecomogostavadashistóriasdeGeorgeeAzazel,continueia escrevê-las, demodo que agora posso incluir dezoito delas neste livro,que chamei de Azazel. (Apenas dezoito histórias puderam ser incluídasporque, livredaslimitaçõesimpostasporEric,pudetornarashistóriasdeGeorgeeAzazelduasvezesmaiscompridasqueasdeGriswold.)

Alémdisso,deixeimaisumavezdefora“AjustedeContas”,poracharquenão tinhaexatamenteomesmosaborqueashistórias subsequentes.Porsera inspiraçãooriginaldeduassériesdiferentes, “AjustedeContas”teveatristesinadenãoseencaixarbememnenhumadelas.(Nãoimporta:o conto já apareceu em uma antologia, e pode aparecer no futuro comoutrosdisfarces,demodoqueo leitornãoprecisa icar commuitapena.)Existem algumas observações que eu gostaria de fazer a respeito dashistórias. Coisas que vocês provavelmente vão observar sozinhos, masacontecequesouumtagarela.

1)Como jádisse,omitiaprimeirahistóriaqueescreviarespeitodo

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pequenodemônioporqueacheiquenãocombinavacomasoutras.Minhalinda editora Jennifer Brehl, porém, alegou que era indispensável umaprimeira história contando como eu e George nos conhecemos e como opequenodemôniopassoua fazerpartedavidadeGeorge.ComoJennifer,embora sejaumanjodedoçura, é impossívelde contrariarquandocerraos pequenos punhos, escrevi um conto chamado “O Demônio de doisCentímetros” que atende a suas exigências e é a primeira história destelivro.Alémdisso, JenniferdecidiuqueAzazelseriaumdemônio,enãoumextraterrestre, demodo que estamos de volta ao terreno da fantasia. (Apropósito: Azazel é um nome bíblico, e a maioria dos entendidos pensatratar-se do nome de um demônio, embora a história seja um poucocomplicada.)

2) George é mostrado como uma espécie de parasita, e eu detestoparasitas.Mesmo assim, gosto de George, e espero que vocês também. Opersonagem que conta as histórias (que é na verdade Isaac Asimov) éfreqüentemente insultado por George e no inal sempre acaba perdendoalguns dólares para ele, mas não me importo. Como explico no inal doprimeiroconto, ashistóriasqueele contavalemoqueeleme toma.Alémdisso, ganho muito mais dinheiro com esses contos do que eu dou paraGeorge...especialmenteselevarmosemcontaofatodequeodinheiroquedouparaeleédementira.

3) Lembrem-se, por favor, de que essas histórias são sátirashumorísticas.Seacharemoestiloexageradoe“antiasimoviano”,essa foiaminha intenção ao escrevê-los. Tomem isto como advertência. Nãocomprem o livro esperando alguma coisa diferente, caso contrário,poderão icar desapontados. Finalmente, se detectarem em algumaspassagensumacertain luênciadeP.G.Wodehousepodemestarcertosdequenãoécoincidência!

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ODemôniodeDoisCentímetros

ConheciGeorgeemumaconvenção literária, fazmuitotempo.Oquemechamoumaisaatençãofoiaexpressãodehonestidadeeinocênciaquehavianaquelerostoredondo,demeia-idade.Eraotipodepessoa–pensei- que a gente deixa tomando conta da carteira quando vai dar ummergulho.

Ele me reconheceu pelas fotogra ias que saem na quarta capa dosmeus livros. Cumprimentou-me jovialmente, dizendo que adorava meuscontose romances,oque,naturalmente,meconvenceudequese tratavadeumapessoainteligenteedebomgosto.

Apertamosasmãoscordialmenteeeledisse:

—MeunomeéGeorgeBimnut.

—Bimnut—repeti,paragravá-lomelhor.—Éumnomediferente.

—Édinamarquês—explicou—,emuitoaristocrático.DescendodeCnut,maisconhecidocomoCanuto,umreidinamarquêsqueconquistouaInglaterra no início do século XI. Um dos meus ancestrais era ilho dele,nascidodoladoerradodascobertas,éclaro.

—Éclaro—murmurei,emboranãoentendessebemoquehaviadeevidenteemtalafirmação.

—ElerecebeuonomedeCnutemhomenagemaopai—prosseguiuGeorge.—Quandofoiapresentadoaorei,omonarcaperguntou:

““Homessa,esteéomeuherdeiro?”

“Não,majestade”, disse o cortesão que segurava no coIo o pequenoCnut. “Ele é um ilho ilegítimo. A mãe é aquela lavadeira que VossaMajestade...”

““Ah! Ainda bem!”, exclamou o rei. Daquele dia em diante, meuancestral passou a ser conhecido como Bemcnut. Apenas por este nome.

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Herdei-oporsucessãodireta,mascomotempoosobrenomemudouparaBimnut.

Nesse momento, seus olhos azuis olharam para mim com umaespécie de ingenuidade hipnótica que me impediu de duvidar de suaspalavras.

— Quer almoçar comigo? — disse para ele, fazendo um gesto nadireção de um restaurante muito enfeitado, que obviamente cobravapreçosextorsivos.

— Não acha que ele parece muito vulgar?— observou George.—Talvezalanchonetedooutroladodaruaseja...

—Comomeuconvidado—acrescentei.

Georgelambeuoslábiosedisse:

— Agora que estou olhando para o restaurante de um ângulomelhor,elepareceterumaatmosferaaconchegante.

—Estábem,vamosatélá.

Enquantocomíamos,Georgecomentou:

—MeuantepassadoBimnutteveum ilhodenomeSweyn.Umtípiconomedinamarquês.

— Eu sei — disse eu. — O nome do pai do rei Cnut era SweynForkbeard.Nostemposmodernos,onomegeralmenteéescritoSven.

Georgefranziuatestaeprotestou:

—Não há necessidade,meu velho amigo, de icar se exibindo paramim.Aceitoofatodequevocêtemosrudimentosdeumaeducação.

—Desculpe—respondi,sentindo-meenvergonhado.

Elefezumgestocomplacente,pediuoutrocopodevinhoedisse:

— Sweyn Bimnut era fascinado por mulheres jovens, uma

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característicaque todososBimnutsherdaram, e faziamuitoSucesso comelas, também... o que parece ser um traço de família. Contam que asmulheres o viam passar e comentavam: “Oh, como ele é lindo!”. Eletambémeraumarquimago.—Fezumapausaedepoisperguntou,muitosério:—Sabeoqueéumarquimago?

— Não — menti, sem querer ofendê-lo de novo com meusconhecimentos.—Expliqueparamim.

—Umarquimagoéumgrandemago—disseGeorge,comoquemepareceu ser um suspiro de alívio. — Sweyn havia estudado as artesocultas. Naquela época, isso ainda era possível. As pessoas não eramcéticas como hoje em dia. A intenção dele era descobrir maneiras depersuadirasjovensasecomportaremdaquelaformadócilegentilquesófaz enaltecer a feminilidade e a deixarem de lado qualquer atitude in-transigenteepoucocooperativa.

—Ah.

—Paraisso,precisavadedemônios.Descobriuquepodiaconjurá-losqueimandocertosarbustosepronunciandopalavrasmísticas.

—Edeucerto,Sr.Bimnut?

— Chame-me de George, por favor. Claro que deu certo. Havia umbando de demônios trabalhando para ele, porque, como costumavaobservar, em tom queixoso, as mulheres de sua época eram céticas eindelicadas; recusavam-se a acreditar que fosse neto de um rei e faziamobservações desairosas a respeito da sua genitora. Depois que um dosdemônios entrava em ação, porém, tudo se tornava diferente; elaspassavamacompreenderqueumfilhonaturaléumacoisamuitonatural.

— Tem certeza de que o seu antepassado realmente conseguiaconjurardemônios,George?

— Tenho, sim. No verão passado encontrei o livro dele de receitaspara chamar demônios. Estava em um velho castelo inglês que hoje nãopassadeumaruínamasjápertenceuàminhafamília.Haviaumalistacomosnomesdosarbustos,amaneiradequeimá-los,aspalavrasaseremlidas,tudo. Estava escrito em inglês antigo (anglo-saxão, você sabe),mas estou

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estudandofilologiae...1

Nãopudeesconderumcertoceticismo.

—Vocêdeveestarbrincando—observei.

Georgeolhouparamim,ofendido.

— Por que pensa assim? Por acaso estou rindo? Era um livroautêntico.Testeiasreceitaspessoalmente.

Econseguiuumdemônio.

— Isso mesmo — declarou, apontando para o bolso de cima dopaletó.

—Estáaidentro?

George apalpou o bolso e preparava-se para fazer que sim com acabeçaquandoseusdedossentiram(oudeixaramdesentir)algumacoisa.Olhouparadentrodobolso.

— Ele sumiu— declarou, aborrecido.—Desmaterializou-se.Mas aculpanãoédele.Veiomevisitarontemànoiteporqueestavacuriosoparasabercomoeraumaconvenção,vocêentende.Dei-lheumpoucodeuísquecomumconta-gotaseelegostou.Talveztenhagostadoatédemais,porquecomeçouapuxarbrigacomumacacatuaqueestavaemumagaiola,pertodo bar, chamando-a de nomes horrorosos. Felizmente, adormeceu antesque o pássaro ofendido resolvesse tomar uma atitude. Esta manhã, nãoestavacomumacaramuitoboa.Deveteridoparacasa,curtiraressaca.

Eu me sentia um pouco ofendido. Será que ele esperava que euacreditassenaquilo?

—Estámedizendoquehaviaumdemônionobolsodoseupaletó?

—Seupoderdededuçãoéimpressionante—disseGeorge.

—Qualéaalturadele?

—Doiscentímetros.

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—Masissoémenosqueumapolegada!

—Absolutamentecerto.Umapolegadatem2,54centímetros.

—Querodizer:quetipodedemôniotemdoiscentímetrosdealtura?

— Um demônio pequeno, é claro. Mas, como diz o velho ditado, émelhorumdemôniopequenodoquenenhumdemônio.

—Dependedotipodedemônio.

—Oh,Azazel{éonomedele)éumdemôniobonzinho.Descon ioqueédesprezadopeloscolegas,porquesemostraextremamenteansiosoparame impressionar com seus poderes. Entretanto, recusa-se a usá-los parame tornar rico, o que não seria nada demais, considerando que sou seuúnico amigo terrestre. Não, ele insiste em que seus poderes devem serusadosapenasparafazerobemaoutraspessoas.

—Ora,vamos,George.Estacertamentenãoéafilosofiadoinferno.

Georgelevouodedoaoslábios.

— Não diga coisas como essa, amigo velho. Azazel ica ria muitoofendido. Ele garante que sua terra é simpática, decente e altamentecivilizada, e fala com enorme respeito do governante dele, a quem sereferesimplesmentecomooTodo-poderoso.

—Elefazmesmocoisasboas?

—Semprequepode.Vejaocasodaminhaafilhada,JuniperPen...

—JuniperPen?

—Issomesmo.Possoverpelaexpressãodecuriosidadenoseurostoque você está doido para conhecer a história, e , terei muito prazer emcontá-la.

Juniper Pen [disse George] estava no segundo ano da faculdadequando a história que vou lhe contar começou. Era umamocinha doce einocente, fascinada pelos jogadores do time de basquete, todos rapazesaltosesimpáticos.

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Entre eles, o que mais lhe atraía a atenção era Leander Thomson,alto, esguio, com mãos grandes, capazes de segurar com facilidade umaboladebasqueteouqualquercoisacomaformaeotamanhodeumabolade basquete, o que por alguma razãome faz pensar em Juniper. Ele erasem dúvida o objeto dos gritos dela quando se sentava na arquibancadaparaassistiraosjogos.

Juniperconversavacomigoarespeitodosseussonhos,porque,comotodasasjovens,mesmoasquenãosãominhasa ilhadas,sentiaqueeuerauma pessoa merecedora de toda con iança. Minha postura digna, massolícita,convidavaaconfidências.

— Oh, tio George— costumava dizer—, certamente não é erradosonharcomumfuturoparanósdois.PossoverLeancomoomaiorjogadorde basquete do mundo, como o mais cobiçado de todos os pro issionais,como o dono do maior contrato da história do esporte. Não sou muitoambiciosa. Tudo que quero da vida é uma pequena mansão coberta dehera,umpequenojardimnafrente,estendendo-seatéondeavistapuderalcançar, umamodesta criadagem, dividida em pelotões, todas asminhasroupas arrumadas em ordem alfabética para cada dia da semana e paracadamêsdoano,e...Fuiforçadoainterrompê-la.

—Meu anjo, existe uma pequena falha no seu plano— disse paraela. — Leander não é um dos melhores jogadores do time. Acho poucoprovávelquesejacontratadoporumsalárionababesco.

—Issonãoéjusto!—protestouminhaa ilhada,fazendobeicinho.—Porqueelenãoéumdosmelhoresjogadores?

—Porqueéassimqueouniversofunciona.Porquenãoseapaixonapelomelhorjogadordotime?Ou,melhorainda,porumjovemcorretordeaçõesdeWallStreetquetenhaacessoainformaçõesconfidenciais?

— Já pensei nisso, tio George, mas gosto mesmo é de Leander.Existemocasiõesemquepensoneleedigoparamimmesma: seráqueodinheiroétãoimportanteassim?

—Que é isso,meu anjo!— exclamei, chocado. Asmeninas de hojedizemcadabobagem...

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—Masporquenãopossoserrica,também!Épedirmuito?

Pensando bem, seriamesmo? A inal, eu era amigo de um demônio.Um demônio pequeno, é verdade, mas com um grande coração.Certamente estaria interessado em colaborar para a consolidação de umamor verdadeiro, em levar a felicidade a duas almas cujos coraçõesbateriam em uníssono enquanto pensavam em beijos mútuos e fundosmútuos.

Quandoochamei,usandoapalavramágicaapropriada,Azazelouviuahistóriacommuitaatenção.(Não,nãoposso lhecontarqualéapalavra.Vocênãotemnenhumsensodeética?)Comoestavadizendo,elemeouviucom atenção, mas não com a simpatia que eu estava esperando. Admitoqueo trouxeparaanossarealidadenomomentoemque tomavaalgumacoisaparecidacomumbanhoturco,poisestavaenroladoemumapequenatoalhaetremiadospésàcabeça.Suavozpareciamaisfinaeesganiçadadoquenunca.(Naverdade,nãopensoquesejarealmentesuavoz.Achoqueelesecomunicacomigoportelepatia,masavozqueimagineiouvirera inaeesganiçada.)

—Queébasquete?—perguntou.—Algumtipodeesporte?Comosejoga?

Tenteiexplicar,mas,paraumdemônio,Azazelàsvezesconsegueserincrivelmente obtuso. Ficou olhando paramim como se eu não estivesseexplicandocadadetalhedojogocomclarezatransparente.

Afinal,propôs:

—Seráqueeunãopodiaverumjogodebasquete?

— Claro que pode. Por coincidência, vai haver uma partida hoje ànoite.Leandermedeuumaentrada.Vocêpodeirnomeubolso.

—Ótimo—disseAzazel.—Podemechamarquandoforsairparaojogo.Agora,preciso terminarmeuzymjig (certamenteestavasereferindoaobanhoturco)—concluiu,antesdedesaparecer.

Devoadmitirque icoirritadoquandoalguémcolocaseusinteressesmesquinhosacimadasquestõestranscendentaisemqueestouenvolvido...

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o queme faz lembrar, amigo velho, queO garçomparece estar tentandoatrair a sua atenção. Acho que quer lhe entregar a conta. Pegue-a, porfavor,edeixe-mecontinuarahistória.

Naquelanoite, fuiaojogodebasquetelevandoAzazelnobolso.Parapoder ver a partida, ele teve de colocar a cabeça para fora, o que teriacausadoumaverdadeira comoção se alguémestivesseprestandoatençãoem nós. Sua pele é vermelha e ele tem dois pequenos chifres na cabeça.Ainda bem que só a cabeça estava de fora, porque sua grossa cauda, demaisdeumcentímetrodecomprimento,ésimplesmenterepugnante.

Eumesmonãoentendomuitodebasquete,demodoquedeixeiporconta de Azazel entender o que estava acontecendo na quadra. Suainteligência, embora demoníaca em vez de humana, é bastantedesenvolvida.

Depoisdojogo,elemedisse:

— Pelo que pude deduzir do comportamento dos indivíduoscorpulentos, desajeitados e totalmente desinteressantes que semovimentavamna arena, o objetivo do jogo é fazer aquela bola esquisitapassarpordentrodeumaro.

—Issomesmo—concordei.—Issosechamafazerumacesta.

— Então seu protegido se tornaria um ás deste jogo estúpido seconseguisse fazer a bola passar por dentro do aro todas as vezes quetentasse?

—Exatamente.

Azazelbalançouacaudapensativamente.

— Isso não deve ser di ícil. Preciso apenas ajustar os re lexos dorapaz para que ele possa avaliar corretamente o ângulo, a força doarremesso...

Ficouemsilêncioporummomentoedepoisacrescentou:

—Acontecequeeuaproveiteio jogopara registraro seu complexo

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de coordenadas pessoais... Sim, pode ser feito... Na verdade, já está feito.Daqui em diante, seu amigo Leander não terá a menor di iculdade parafazerabolapassarpordentrodoaro.

Euestavaumpouconervosoenquantoesperavaojogoseguinte.Nãodissenadaparaminhaa ilhadaJuniper,porquenuncahaviarecorridoaospoderes demoníacos de Azazel e não estava inteiramente certo de quefossecapazdefazertudoquea irmava.Alémdomais,queriasurpreendê-la.(Nofinaldascontas,fiqueitãosurpresoquantoela.)

A inal, chegouodiado jogo, eque jogo!Anossa faculdade, aEscolade Engenharia de Buraco Quente, em cujo time de basquete Leanderdesempenhavaumpapeltãoapagado,estariaenfrentandoosbrutamontesda Universidade e Reformatório Al Capone, no que prometia ser umcombateépico.

Mas ninguém esperava que fosse tão épico. O quinteto da Caponeassumiu a dianteira na contagem, enquanto eu observava Leanderatentamente. Ele parecia não saber direito o que fazer e a princípio suasmãosdeixavamescaparabolatodavezquetentavafazerumajogada.Eracomose seus re lexos tivessemsido tãoalteradosquenão se sentiamaisemcondiçõesdecontrolarosprópriosmúsculos.

De repente, porém, foi como se tivesse se acostumado com o novocorpo.Agarrouabolaeelapareceuescorregar-lhedasmãos...masdequeforma!Descreveuumacurvanoareentrounacestasemtocaroaro.

A torcida começou a comemorar, enquanto Leander olhava para acesta,comosenãoestivesseentendendonada.

Acenaserepetiuumasegundavez...eumaterceira...eumaquarta.No momento em que Leander tocava na bola, ela saltava no ar. Depois,descrevia uma curva elegante e entrava na cesta. Tudo acontecia tãodepressa que não dava tempo nem para Leander fazer pontaria.Interpretando isso como uma demonstração de perícia, a torcida icouaindamaishistérica.

Logo em seguida, porém, o inevitável aconteceu, e o jogo setransformouemumcaostotal.Osaplausosderamlugaràsvaias;osalunosmal-encarados que torciam pelo reformatório Al Capone começaram a

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xingaratorcidaadversáriaeváriasbrigasirromperamnaarquibancada.

Oqueeu tinhameesquecidodeexplicaraAzazel, achandoqueeraevidente, e que Azazel não percebera, era que as duas cestas de umaquadradebasquetenãoeramidênticas,queumadelaseraadotimelocale a outrados visitantes, e que cada time tinhade acertar a bola emumacestadiferente.Abola debasquete, comoa lamentável ignorância deumobjeto inanimado, se dirigia para a cesta que estivesse mais próxima dolocalondeLeanderasegurara.OresultadoeraquemuitasvezesLeanderfaziacestascontraseuprópriotime.

Ele continuou a insistir nessa prática suicida a despeito da&advertênciasqueotécnicodeBuracoQuente,FritzSchmitt,maisconhecidocomoAlemão,proferiaatravésdaespumaque lhecobriaoslábios.SchmittcerrouosdentesemsinaldetristezaporterdetirarLeanderdapartidaecomeçou a chorar quando tiraram seus dedos da garganta de Leanderparaqueojogadorpudesseserremovidodaquadra.

Meu amigo Leander nunca mais foi o mesmo. Eu havia imaginado,naturalmente, que ele procuraria refúgio na bebida, tomando-se umbêbado ilosó icoerespeitável.Issoseriacompreensível.Entretanto,elesedegradoumaisainda.Dedicou-seaosestudos.

Diantedosolhosdesdenhosos,eàsvezesatépesarosos,doscolegasdefaculdade,passouafrequentarassalasdeaula,en iouacaranoslivrosemergulhounasprofundezassombriasdaerudição.

Mesmo assim, Juniper não o deixou. “Ele precisa demim”, disse-meela,comosolhosúmidos.Emumgestodesupremosacri ício,casou-secomLeanderlogoqueseformaram.Continuoucomelemesmoquandodesceuatéofundodopoço,adquirindoumignominiosodoutoradoemfísica.

Hoje em dia, ele e Juniper vivem em um pequeno apartamento desubúrbio.Ele ensina ísica e fazpesquisasna áreade cosmogonia.Ganhamenosde60.000dólaresporano,eaquelesqueoconheceramquandoeraum sujeito respeitável cochicham às suas costas, em tom escandalizado,queestácotadoparareceberoprêmioNobel.

Juniper nunca se queixa, mas permanece iel ao seu ídolo caído.Jamais demonstrou sua decepção, nem por pensamentos nem por atos,

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masnãopodeenganarseuvelhopadrinho.Seimuitobemque,devezemquando,pensacomtristezanamansãocobertadeheraquejamaispoderátereno jardimaperderdevistaquepermaneceráparasempre fo-radoseualcance.

—Estaéahistória—disseGeorge,enquantorecolhiaotrocoqueogarçom havia trazido e copiava o valor da conta (para descontar do seuimposto de renda, suponho). — Se eu fosse você — acrescentou —,deixariaumagorjetagenerosa.

Obedeciautomaticamente,enquantoGeorgesorriaeseafastava.Nãome incomodei por ele haver icado com o troco. Ocorreu-me que Georgelucrara apenas uma refeição, enquanto eu tinha uma história que podiacontarcomose fosseminhaemepoderiarenderváriasvezesopreçodeumarefeição.

Naverdade,decidicontinuarajantarcomeledevezemquando.

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UmaNoitedeMúsica

Tenho um amigo que insinua, às vezes, que é capaz de conjurarespíritosdoalém.

Ou pelo menos um espírito. Um espírito pequeno, com podereslimitados.Naverdade, ele só falaa respeitodepoisdoquartouísquecomsoda. É um equilíbrio delicado: com três drinques, não sabe nada arespeitodeespíritos;comcincoelepeganosono.

Naquelanoite,acheiqueeleestavabemnoponto,demodoquepuxeioassunto:

—Vocêselembradaqueleespíritoseuamigo,George?

—Hein?—disse George, olhando para o seu drinque comose nãosoubessedoqueeuestavafalando.

—Aquele pequeno espírito de dois centímetros de altura, que umavezvocêdissequeeracapazdechamarnahoraquequisesse.Aquelequepossuipoderesparanormais.

—Ah!—exclamouGeorge.—EstáfalandodeAzazel!éonomedele,éclaro.Nãoseriacapazdepronunciaronomeverdadeiro.ÉporissoqueochamodeAzazel.Sim,eumelembro.

—Vocêrecorremuitoaele?

—Não.Éperigoso.Muitoperigoso.Hásempreatentaçãodebrincarcomopoder.Soumuitocautelosocomisso.

— Sabe, tenho altos padrões morais. Foi por isso que me senti naobrigaçãodeajudarumamigoemdi iculdades.Foigrandeerro!Nãogostonemdepensar...

—Queaconteceu?

— Acho que estou mesmo precisando desabafar cora alguém —

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disseGeorge,pensativo.—Talvezissofaçacomqueeumesintamelhor...

Euerabemmaismoço[disseGeorge],enaqueletempoasmulhereseramumaparte importantedavidadoshomens.Parecetoliceagora,masmelembronitidamentedepensar,naquelaépoca,quenãomeinteressariaporqualquermulher.

Hoje em dia, a gente ica com que a que aparecer, não faz muitadiferença,masnaqueletempo...

Eu tinha um amigo chamado Mortenson. Andrew Mortenson. Achoquevocênãooconhece.Háanosquenãoovejo.

AcontecequeMortensonestavacaídoporumamulher,umamulheremparticular.Elaeraumanjo,diziameuamigo.Nãopodiaviversemela.Era um ser único no universo. Você sabe como falam as pessoasapaixonadas.

O problema é que ela o havia deixado, e de uma formaparticularmente cruel e humilhante. Começara um namoro com outrohomem bem na frente dele, estalando os dedos na cara dele e rindoimpiedosamentedaslágrimasdele.

Nãoestoufalandodeformaliteral.Estouapenastentandotransmitira impressão que ele me causou. Estava aqui sentado, bebendo comigo,nestemesmobar.Fiqueicommuitapenaedisseparaele:

—Sintomuito,Mortenson,masvocênãodevesedeixarabalardessejeito. Quando puder pensar com clareza, verá que ela é apenas umamulher.Seolharparaacalçada,verácentenascomoela.

Eleprotestou,comamargura:

— De agora em diante, meu amigo, não quero saber mais demulheres...,comexceção,éclaro,daminhaesposa,quedevezemquandonãoconsigoevitar.Sóqueeugostariadefazeralgumacoisaparaela.

—Parasuamulher?—perguntei.

— Não, não, por que eu estaria querendo fazer alguma coisa para

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minhaesposa?Estoufalandodaquelamulherquemetratoude formatãoimpiedosa.

—Oquevocêfariacomela?

—Seilá...

—Talvezeuestejaemcondiçõesdeajudá-lo—disseeu,aindacompena do meu amigo. — Posso recorrer a um espírito com poderesextraordinários. Um espírito pequeno, é claro—mostrei-lhe o polegar eindicador, separadosporumadistânciadeunsdois centímetros,para tercertezadequeestavameentendendo—,quetambémtemsuaslimitações.

Contei-lhearespeitodeAzazeleele,éclaro,acreditou.Járepareiquequando conto umahistória, todos acreditamemmim.Agora quando vocêcontaumahistória, amigo velho, o ar de incredulidadequepaira sobre asala é dedar gosto.Nada comouma reputaçãodeprobidade e umar dedecência.

QuandolheconteisobreAzazel,seusolhosbrilharam.Perguntou-meseelepoderiafazeralgumacoisaparaaex-namorada.

—Dependedoquefor,amigovelho.Esperoquenãoestejapensandoem algo como fazê-la cheirarmal ou cuspir um sapo toda vez que tentarfalar.

—Claroquenão!—protestou, indignado.—Quempensaquesou?Elamedeudoisanosdefelicidadeequerorecompensá-la.Vocêdissequeospoderesdoseuespíritosãolimitados?

—Eleédestetamaninho—disseeu,mostrandodenovoopolegareoindicador.

— Poderia dar a ela uma voz perfeita? Nem que fossetemporariamente?Nemquefosseparaumaúnicaapresentação?

—Vouperguntaraele.

A proposta de Mortenson parecia muito cavalheiresca. Sua ex-namorada cantava na igreja. Naquela época, eu tinha um bom ouvido e

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costumava frequentar a mesma igreja (mantendo distância da caixa deoferendas, é claro). Gostava de ouvi-la cantar e acho que os outros iéistambém. Talvez a sua conduta moral não estivesse de acordo com oambiente, mas Mortenson me explicou que, no caso de sopranos, elesestavamdispostosaserbastantecompreensivos.

De modo que consultei Azazel. Estava ansioso para ajudar. Nadadaquelas bobagens de exigir minha alma em troca. Lembro-me de queumavezpergunteiaAzazelseelequeriaminhaalmaeelemeperguntouoque era alma. Não soube o que responder. Acontece que ele é um serinsigni icante em seu próprio universo e se sente muito importantepodendofazercoisasgrandiosasnonossouniverso.Elegostadeajudar.

Azazel me disse que poderia fazer com que ela cantasse comperfeição durante três horas. Contei a Mortenson, e ele me disse queestava ótimo. Escolhemos uma noite em que ela estaria cantando Bach,Haendel ououtrodaqueles velhosbatucadoresdepiano, e daria um sololongoedifícil.

Mortensonfoiàigrejanaquelanoitee,naturalmente,eufuitambém.Sentia-me responsável pelo que estava para acontecer e achei que eramelhorverasituaçãodeperto.

Mortensonmedisse,emtomsombrio:

— Assisti aos ensaios. Ela estava cantando damesmamaneira queantes.Vocêsabe,comosetivesseumraboeestivessempisandonele.

Nãoeraassimquecostumavadescreveravozdamoça.Amúsicadasesferas, era como se referira a ela em várias ocasiões. Daí para mais.Naturalmente, ele tinha sido passado para trás, o que pode distorcer osensocríticodeumhomem.

Olhei-ocomardecensura.

—Issonãoéjeitodefalardeumamulheraquemvocêestáprestesaoferecerumgrandepresente.

— Aí é que está. Quero que a voz dela seja perfeita. Simplesmenteperfeita.Eagoracompreendo,agoraquemeusolhosestãolivresdomanto

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diáfano do amor que os cobria, que a voz dela está longe da perfeição.Achaqueseuamigopodefazerissoparamim?

—Amudançavaiocorrerexatamenteàs8:15danoite.—Sentiumaponta de suspeita.— Você não estava pretendendo usar a perfeição noensaioparadepoisdesapontaraaudiência?

—Dejeitonenhum—disseele.

Acoisacomeçouantesdahora,equandoelaselevantouparacantar,toda vestida de branco, eram 8:14 pelo meu velho relógio de bolso, quenunca está errado mais que dois segundos. Ela não era um daquelessopranosraquíticos;pelocontrário, tinhaum ísicoavantajado, commuitoespaço interno para conseguir aquele tipo de ressonância que se tornanecessário para sustentar uma nota aguda sem se deixar abafar pelaorquestra. Quando inspirou profundamente para dar o primeiro agudo,pudeveroqueMortensonvianela,mesmodescontandoasváriascamadasdetecido.

Ela começou a cantar normalmente, mas, exatamente às 8:15, foicomo se uma segunda voz tivesse entrado em cena. Vi quando leve umsobressalto, como se não acreditasse no que estava acontecendo; a mão,queestavanaalturadodiafragma,começouatremer.

Avozaumentoudevolume.Eracomosetivessesetrans-formadoemum órgão. As notas eram perfeitas, límpidas, irretocáveis. Diante delas,todasasnotasanteriorespareciamimitaçõesgrosseiras.

Cada nota era emitida com o vibrato correto, se é esta a palavra,aumentando ou diminuindo de intensidade com um controle perfeito daemissão.

E ela melhorava a cada nota. O organista não estava olhando maisparaapartitura,esimparaela,enãopossojurar,masachoqueparoudetocar. Mesmo que estivesse tocando, ninguém notaria. Ninguém ouvirianenhumoutrosomenquantoelaestivessecantando.

Oolhardesurpresadesapareceudorostodamoçae foisubstituídopor uma expressão de júbilo. Ela também pôs de lado a partitura queestavasegurando;nãoprecisavamaisdela.Cantavasemnenhumesforço,

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sem pensar no que estava fazendo. O maestro estava paralisado, e osmembrosdocoropareciamatônitos.

A inal, o solo acabou e o coro começou a cantar de forma tímida,titubeante, como se estivessem com vergonha de que suas vozes fossemouvidasnamesmaigrejaenamesmanoite.

Orestodoprogramafoitododela.Quandocantava,eraaúnicaaserouvida, mesmo que o coro e a orquestra a estivessem acompanhando.Quando calava, era como se estivéssemos no escuro e não pudéssemossuportaraausênciadaluz.

Equandoaaudiçãoterminou...euseiquenãoécostumeaplaudirnaigreja,mas todomundo bateu palmas. Todos se puseram de pé como sefossem marionetes e aplaudiram freneticamente. Era evidente quecontinuariamaplaudindoatéqueelacantassedenovo.

Ela cantou de novo; desta vez, sozinha, acompanhada apenas peloórgãoeiluminadapeloprojetordeluz.Ocorotinhadesaparecido.

Cantava sem nenhum esforço. Era impressionante. Tento observarsua respiração, surpreendê-la tomando fôlego, descobrir quanto tempoconseguiria sustentar uma nota a todo volume com apenas um par depulmõesparaforneceroar.

Mas não podia durar para sempre, e não durou. Até os aplausoscessaram.Sóentãomedei contadeque, aomeu lado,Mortensonpareciaestaremtranse, comoolhos ixos, todooseuserconcentradonosentidodaaudição.Sóentãocomeceiacompreenderoquehaviaacontecido.

A inal de contas, sou uma pessoa reta, sem nenhuma malícia, demodoquepossoserdesculpadopornãoperceberqualeraaintençãorealdemeu amigo.Você, por outro lado, um tipo tão tortuosoque é capazdesubir uma escada em espiral sem virar o corpo, já deve saber hámuitotempooqueelepretendia.

Aex-namoradahaviacantadocomperfeição...masnuncamaisseriacapazderepetirafaçanha.

Era como se fosse cega de nascença e de repente, por apenas três

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horas, fosse capaz de ver. Ver tudo que existe para ver, todas as cores,formasemaravilhasquenos cercamequenãonosdespertamaatençãoporque jáestamosacostumados.Suponhaquevocêpudessevertudoqueexistedurantetrêshoras...edepoisficassecegooutravez!

É relativamente fácil suportar a cegueira se você nunca enxergou.Mas saber por alguns instantes o que é ver e depois icar cego de novo?Ninguémsuportariaisso.

Aquelamulhernuncamaistornouacantar,naturalmente.Masissoéapenaspartedahistória.Atragédiarealfoiparanós,paraaplateia.

Tivemos uma música perfeita durante três horas. Uma músicaperfeita.Achaquedessediaemdiantepodemosnoscontentarcommenosqueisso?

Até hoje, meus ouvidos se recusam a ouvirmúsica. Recente-mente,fui a um desses festivais de rock, que estão tão na moda, só paraexperimentar. Você não vai acreditar, mas não consegui distinguir umanotamusical.Paramira,eraapenasruído.

Meu único consolo é que Mortenson, que escutou com maisansiedade e concentração do que todomundo, foi a pessoamais atingidadaplateia.Elepassaotempotodousandotampõesnosouvidos.Qualquersomodeixanervoso.

Bemfeito!

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OSorrisoRoubado

Recentemente,disseparaomeuamigoGeorge,queestavacomigonobar tomando uma cerveja (ele estava tomando uma cerveja; eu estavatomandoumrefrigerante):

—Comovaioseudiabinho?

Georgesegabadeterumdemôniodedoiscentímetrosdealturaquefaz tudo que ele pede. Jamais consigo fazê-lo admitir que estámentindo.Nemeunemmaisninguém,

Eleolhouparamimedisse,emtoraconspiratório:

—Ah,sim,vocêéaquelequesabearespeito!Esperoquenãotenhacontadoamaisninguém!

—Claro que não! Já basta eu achar que você émaluco. Não queroquepensemomesmodemim!

(Naverdade,elejáfalousobreodemônio,naminhafrente,compelomenos uma dúzia de pessoas, demodo que não haveria nenhuma razãoparaeuguardarsegredo,masacheimelhornãodizerissoaele.)

—Eunãoaceitariaessasuatriste incapacidadedeacreditarnoquenão pode compreender (e você não compreende tantas coisas assim),mesmo queme oferecessem em troca um quilo de plutônio. E o que vairestardevocê,seomeudemônioumdiadescobrirquevocêochamoudediabinho,nãovaleráuraátomodeplutônio.

— Já sabe qual é o seu nome verdadeiro? — perguntei, sem medeixarabalar.

— O nome dele não pode ser pronunciado por lábios humanos. Atradução,peloqueelemedeuaentender,éalgumacoisacomo:“SouoReidos Reis; admiremminha obra e iquem de queixo caído...”. Na verdade,acho que ele está mentindo — acrescentou George, olhandopensativamente para o copo de cerveja. — Ele é um ichinha no seu

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mundo. É por isso que se mostra tão ansioso para fazer as minhasvontades. Em nosso mundo, com nossa tecnologia primitiva, ele pode semostrar.

—Eletemsemostradoultimamente?

—Na verdade, sim— disse George, dando um profundo suspiro elevantando os olhos azuis e tristes que se ixaram nos meus. O bigodegrisalho levoualgum tempoparavoltar ao lugardepoisdaquela exalaçãoforçada.

TudocomeçoucomRosieO'Donnell[disseGeorge],que,alémdeseramigadeumadasminhassobrinhas,éumacoisinhaadorável.

Ela temolhosazuis,quase tãovivosquantoosmeus;cabelosruivos,longos e brilhantes; umnarizinho delicioso, semeado de sardas da formaaprovada por todos que escrevem romances; um pescoço gracioso, uracorpo esbelto que não é opulento de forma desproporcional, massimplesmentedeliciosoemsuaspromessasdeêxtase.

Naturalmente, tudo isso tinha para mim um interesse apenasintelectual, jáquechegueià idadedadiscrição fazmuitosanos,ehojemeentregoaosprazeresdacarneapenasquandoasmulheresinsistem,oque,paradizeraverdade,nãoocorrecommuitafrequência.

Além domais, Rosie havia desposado recentemente (e, por algumarazão, adorava de forma irritante) um irlandês corpulento que não fazianenhumesforçoparaesconderofatodequeeraumapessoamuitoforteepossivelmente mal-humorada. Embora eu não tivesse dúvida de quepoderiaenfrentá-loemminhamocidade,a triste realidadeéqueaminhamocidadejáhaviaficadoparatrás...umpouquinhoparatrás.

Assim,foicomumacertarelutânciaqueaceiteiatendênciadeRosiedemeconfundircomumaamigaintimadomesmosexoefaixaetáriaemefazerobjetodesuasconfidenciasinfantis.

Não que eu a culpe, compreenda.Minha dignidade natural, e o fatodequeminha iguraaltivafazaspessoasselembraremdeumimperadorromano,automaticamenteatraemasjovensmaisbelasparaminhapessoa.Entretanto, eu nunca havia permitido que as coisas fossem longedemais.

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Sempre me conservava a uma distância respeitável de Rosie, pois nãoqueriaquealgumaintrigachegasseaosouvidosdoindubitavelmenteforteepossivelmentemal-humoradoKevinO'Donnell.

— Oh, George— disse Rosie um dia, batendo palmas com aquelaslindasmãozinhas—omeuKevinémesmoumamor...sabeoqueelefaz?

—Achoquevocênãodevia...—comecei,cautelosamente,semsaberquetipoderevelaçãoindiscretaelaestavaparamefazer.

Rosienãoestavanemmeouvindo.

—Ele franzeonariz,piscaoolhoesorrideum jeito tãogostoso... écomo se o mundo inteiro se iluminasse. Oh, se ao menos eu tivesse umretratodelequandofazisso!Játenteitirarum,masnãosaiudireito.

—Porquenãosecontentacomooriginal,minhacara?

A moça hesitou por um momento e depois disse, com um ruborcativantenasfaces:

— Acontece que ele não é sempre assim. Kevin tem um empregomuitoduronoaeroportoeàsvezeschegaemcasaexausto.Nessesdias,seaborrece comqualquer coisa. Chega a implicar comigo. Sepelomenos eutivesseumafotogra iadele,comorealmenteé,issomeserviriadeconsolo.Seriatãobom...—lamentou-se,comosolhosúmidos.

DevoadmitirquesentivontadedelhecontararespeitodeAzazel(éassimqueeuochamo,porquemerecusoausaraquelaque,segundoele,éatraduçãodoseunomeverdadeiro)elheexplicaroqueelepoderiafazerporRosie.

Entretanto, como sabe muito bem, sou uma pessoa extremamentediscreta.Atéagora,nãoconsigoentendercomofoiquevocêdescobriuquesouamigodeumdemônio.

Alémdisso,foifácilparamimresistiraoimpulso,poissouumhomemprático, realista, avesso a sentimentalismos piegas. Admito que meucoração tem um fraco por mocinhas indefesas, contanto que sejamradiantemente belas (no bom sentido, é claro... quase sempre). E me

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ocorreu que, na verdade, eu podia muito bem ajudá-la sem mencionarAzazel.Nãoqueelafosseduvidardemim,éclaro,porquesouumhomemcujaspalavrasmerecemcrédito,anãoserdetipospsicóticoscomovocê.

Levei o problema a Azazel, que não se mostrou nem um poucosatisfeito.

—Vocêsómepedecoisasabstratas—queixou-se.

— Nada disso! — protestei. — O que estou lhe pedindo é umasimplesfotografia.Tudoquetemafazerématerializá-la.

—Oh,issoétudoquetenhoafazer?Seétãosimplesassim,porquevocê não faz? Imagino que conheça o princípio de equivalência entremassaeenergia.

—Sóumafotografia!

— É, mas com uma expressão que você é incapaz de de inir oudescrever.

— Nunca o vi olhar para mim do jeito como olha para a esposa, éclaro.Mastenhoumaféinfinitanasuacapacidade.

Eu estava certo de que conseguiria dobrá-lo com um pouco deadulação.Azazeldisse,decarafeia:

—Vocêvaiterdetirarafotografia.

—Maseunãovouconseguiraexpressão...

—Nãoseránecessário.Possocuidardisso,masserámuitomaisfácilse dispuser de um objeto material para focalizar a abstração. Umafotogra ia, em suma. Uma fotogra ia, ainda que muito mal tirada, comoprovavelmente a que você vaime dar. E sóme comprometo a fazer umacópia.Nãovoumearriscarasofrerumadistensãodomúsculosubjuntivosó para atender a você ou a qualquer outro cabeça de al inete desteplaneta.

Sabe como é... acho que Azazel diz essas coisas para se sentir

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importanteevalorizaroquefazpormim.

Encontrei-me com os O'Donnell no domingo seguinte, quandovoltavam da missa. (Na verdade, estava à espera deles.) Não seincomodaram que eu tirasse um retrato deles em seus trajes dominicais.Rosiepareciamuitoalegre;Kevin,umpoucotaciturno.Depois,damaneiramaiscasualpossível,tireiumafotogra iadorostodorapaz.Elenãoestavasorrindo,nemfranzindoonariz,oufazendooquequerquefaziaqueRosieachava tão atraente, mas achei que não tinha importância. Eu não sabianemmesmoseacâmeraestavafocalizadacorretamente.A inal,nãotenhomuitaexperiênciacomofotógrafo.

Em seguida, visitei um amigo que adora fotogra ia. Ele revelou asduasfotosefezumaampliaçãodorostodeKevin,

Na verdade, ele me atendeu de má vontade, resmungando queestava muito ocupado, mas não lhe dei atenção. A inal, que importânciapoderiam ter suas tolas atividades em comparação com as questõestranscendentaisquemea ligiam?Sempre icosurpresocomonúmerodepessoasquenãocompreendemestasimplesverdade.

Depoisdefazeraampliação,porém,meuamigomudouinteiramentede atitude. Ficou olhando para ela e disse, em um tom que só possocaracterizarcomoofensivo;

—Nãomedigaquevocêconseguiutirarumafotocomoesta!

—Porquenão?—disseeu,estendendoamãoparapegá-la.

Ele,porém,nãopareciadispostoaentregarafotografia.

—Vocêvaiquerermaiscópias—declarou.

—Não,nãovou—disse,olhandoporcimadoombro.

Eraumafotografiaextremamentenítida,emcoresvivas.

Kevin O'Donnell estava sorrindo, embora eu não me lembrassedaquele sorriso no momento em que tirara a foto. Parecia alegre esimpático,masparamimnãofaziaamenordiferença.Talvezumamulher,

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ouumfotógrafocomoomeuamigo(que,paraserfranco,nãoeranenhummodelodemasculinidade)pudessevermaisalgumacoisanafoto.

—Entãosómaisuma...paramim—disseele.

—Não—repeti,com irmeza,aomesmotempoquelhearrancavaoretrato das mãos. — £ o negativo, por favor. Pode icar com a outrafotografia...adocasal.

—Essanãomeinteressa—disse,emtompetulante.

Quandosaí,elepareciamuitodesapontado.

Coloqueiafotogra iaemuraporta-retratos,coloqueioporta-retratossobrea lareira e recueiparaapreciar.O rostodo rapaz tinha, realmente,umaexpressãobastantejovial.Azazeltinhafeitoumbomtrabalho.

Fiquei imaginandoqualseriaareaçãodeRosie.Telefoneiparaelaepedi-lhe para passar na minha casa. Acontece que ela tinha algumascomprasa fazer,masseeupudesseesperá-lamaisoumenosumahora...umahora...

Eu podia e esperei. Eu havia embrulhado a foto para presente eentreguei-aaelasemdizerumapalavra.

—Ei!—exclamou,enquantoabriaoembrulho.—Queideiafoiessa?Não é meu aniversário nem... — Mas nessa hora ela viu o que era einterrompeu o que estava dizendo. Arregalou os olhos e começou arespirarmaisdepressa.A inal,murmurou:—Minhanossa!—Olhouparamim—Vocêtirouesseretratonodomingo?

Fizquesimcomacabeça.

— Está simplesmente perfeito. Oh, Kevin saiu tão bem! Era essa aexpressãoqueeuqueriacaptar!Porfavor,possoficarcomele?

—Claro.Étodoseu—disse,comsimplicidade.

Ela se pendurou nomeu pescoço eme beijou nos lábios. Para umapessoa como eu, que detesta sentimentalismos, é claro que foi

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constrangedor; além disso, mais tarde tive de enxugar o bigode. Mas eusabia que era a maneira que Rosie encontrara para demonstrar suagratidão,demodoquenadafizparaimpedi-la.2

Depoisdisso,passeiumasemanasemvê-la.

Uma semana depois, encontrei-me com Rosie na porta do açougue.Teria sido uma indelicadeza de minha parte não me oferecer paracarregar suas compras. Naturalmente, imaginei se isso signi icaria outrobeijodeagradecimentoetomeiadecisãodenãorecusarparanãoofenderapobrezinha.Entretanto,elapareciaumpoucotriste.

— Como vai a fotogra ia? — perguntei, com medo de haverdesbotado.

Elaimediatamenteseanimou.

— Perfeita! Coloquei-a em cima da cômoda, em um ângulo tal quepossovê-laquandoestousentadaàmesaparajantar.Seusolhosmeveemdesoslaio,deum jeitomaroto, tOnarizestá franzidocomaquele jeitinhoquesóoKevinécapazdefazer.Parecequeestávivo!Minhasamigasnãotiram os olhos dele. Acho que vou escondê-la quando elas me visitarem,antesquealgumadelasaroube.

—Vocêdevetomarcuidadoéparaquenãoroubemoseumarido—disseeu,brincando.

A expressão de tristeza voltou aos olhos de Rosie. Ela sacudiu acabeçaedisse:

—Achoquenãoháperigo.Resolvitentaroutraabordagem.

—OqueKevinachoudafoto?

—Elenãodisseumapalavra.Nemumapalavra.Nemmesmoseiseaviu.

—Porquenãolhemostraoretratoeperguntaoqueacha?

Elasemanteveemsilêncioenquantoeumearrastavaaseuladopor

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meio quarteirão, carregando aquela enorme sacola de compras eimaginando se, além de pegar no pesado, ela também estava esperandoqueeulhedesseumbeijo.

—Naverdade—disseRosie, de repente—, ele estápassandoporuma fase demuita tensão no trabalho, por isso, acho que não seria umaboa ideia. Ele chega em casa tarde e mal fala comigo. Mas não temimportância. Você sabe como são os homens — acrescentou, tentandosorrirsemmuitosucesso.

Tínhamoschegadoaoedi ícioondeelamoravaepassei-lheasacola.Elamedisse,aosedespedir:

—Maisumavez,muitoobrigadapelafotografia!Élinda!

Entrou no edi ício. Não havia pedido um beijo, e eu estava tãodistraído que sóme dei conta do fato quando estava ameio caminho decasaemepareceutolicevoltarlásimplesmenteparanãodesapontá-la.

Maisdezdias sepassaram.Umamanhã, elame telefonou. Seráqueeupodiairalmoçarnasuacasa?Eudisseparaelaquenão icariabem.Oqueosvizinhosiriampensar?

—Ora,quebobagem!Vocêétãovelhoque...querodizer,vocêéumvelho amigo. Ninguém jamais pensaria... além do mais, preciso dos seusconselhos.

Quandoeladisseisso,tiveaimpressãodequeestavasoluçando.

Bem, você sabe que sou um cavalheiro, de modo que na hora doalmoçoláestavaeunaquelepequenoeaprazívelapartamento.Rosiehaviapreparadosanduíchesdequeijoepresuntoe fatiasde tortademaçã,eafotografiaestavaemcimadacômoda,exatamentecomoeladissera.

Rosiemeapertouamãoenão feznenhumamençãodemebeijar,oque teria me deixado aliviado se não estivesse tão preocupado com suaaparência. Ela estava positivamente transtornada. Comi metade de umsanduícheesperandoquedissessealgumacoisa.Quandoviquenãoeslavadisposta a falar, decidi perguntar-lhe diretamente o que a deixara tãoaborrecida.

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—FoiKevin?—perguntei,sóparaconfirmar.

Elafezquesimcomacabeçaecomeçouachorarsemparar.Dei-lheumtapinhanamãoeperguntei-meseissoseriasu icienteparaconsolá-la.Abracei-acomcarinho,eelafinal-mentedisse:

—Achoqueelevaiperderoemprego.

—Nãodigabobagens.Porquê?

— Ele anda tão nervoso! Não só aqui em casa, mas no trabalhotambém,aoqueparece.Háséculosquenãoovejosorrir.Nãome lembrodaúltimavezquemebeijououmedisseumapalavragentil.Estásemprebrigandocom todomundo,o tempo todo.Nãoquermedizeroquehádeerradoe icadanadoquandopergunto.Umamigonosso,que trabalhanoaeroporto comKevin, telefonouontemparamim.DissequeKevinestá secomportandodeumaformatãoestranhanotrabalhoqueseussuperioresjá começaram a notar. Tenho certeza de que se continuar assim vai serdespedido,masquepossofazer!

Eu estava esperando alguma coisa parecida desde o nosso últimoencontro,esabiaqueeramelhordizeraverdade...Azazelquesedanasse.Pigarreei.

—Rosie...afotografia...

— Eu sei, eu sei — disse ela, pegando a fotogra ia e apertando-acontraosseios.—Éelaquemedáânimoparacontinuaraviver.Esteéoverdadeiro Kevin, e sempre o terei, sempre, independente do queacontecer.—Elacomeçouasoluçar.

Foi muito di ícil para mim dizer o que tinha de ser dito, mas nãohaviaoutrasaída.

—Vocênãoentende,Rosie—comecei.—Oproblemaéjustamenteafotogra ia. Tenho certeza. Toda essa simpatia, toda essa alegria de viver,tinhamde vir de algum lugar. Foram tiradas do próprio Kevin. Você nãoentende?

Rosieparoudechorar.

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— Do que é que você está falando! Uma fotogra ia é apenas aimpressãoquealuzdeixanumfilme!

—Claro,claro,masnocasodestafotogra ia...—Desisti.Euconheciaas limitações deAzazel. Ele nãopodia ter criado amágica da fotogra ia apartir do nada,mas seria di ícil explicar a Rosie a lei da conservação daalegria.

— Vamos colocar a coisa deste jeito. Enquanto essa fotogra iacontinuaraqui,Kevincontinuaráinfeliz,nervosoemal-humorado.

—Maséclaroqueelavaicontinuaraqui—disseRosie,colocandoafoto de volta no lugar. — Não entendo como você pode dizer coisasdesagradáveisdeumobjeto tão lindo... Sabedeumacoisa?Vou fazerumcaféparanós.

Elafoiparaacozinha,edei-mecontadequejamaisaconvenceriaadesfazer-se do retrato. Fiz a única coisa que, nas circunstâncias, merestava.A inaldecontas,afotogra iatinhasidotiradapormim.Sentia-meresponsável pelas suas propriedades malé icas. Peguei o porta-retratos,removi rapidamente a fotogra ia, rasguei-a em dois pedaços... quatro...oito...dezesseis,eguardeinobolsoospedaçosdepapel.

Nessemomento,otelefonetocoueRosieentrounasalaparaatender.Coloqueioporta-retratosdevoltanolugar.Sentei-meeesperei.

OuviavozdeRosie,radiante.

—Oh, Kevin, quemaravilha! Estou tão contente!Mas por que vocênãomedisse?Nuncamaisfaçaissocomigo!

Aproximou-se de mim, com um sorriso de felicidade no rostinhobonito.

—Sabeoquemeumaridofez?Eleestavacomumapedranorimháquasetrêssemanas.Consultouinclusiveummédico.Estavasofrendodoresterríveis, talvez tivessede seroperado, enãome contounada!Dissequenãoqueriamedeixarpreocupada.Quetolo!Nãoadmiraqueestivessetãonervoso e mal-humorado. Nem ocorreu a ele que procedendo assim medeixariamuitomaispreocupadadoquesemecontassetudodesdeoinício.

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Francamente!Oshomensnãotêmjeitomesmo!

—Masporqueagoravocêestátãoalegre?

—Porqueeleeliminouapedra.Issoaconteceuháalgunsminutoseaprimeira coisaqueKevin fez foi ligarparamim,oque foimuita gentilezada parte dele... já era tempo. Parecia tão feliz e animado! Era como setivessevoltadoaserovelhoKevin.EracomoseeuestivessefalandocomoKevindafotogra ia,que...—Interrompeuoqueestavadizendoegritou:—Ondeestáafotografia?

Euestavadepé,preparando-mepara irembora.Antesdechegaràporta,disseparaela;

—Euarasguei.Foiporissoqueeleexpeliuapedra.Casocontrário...

—Vocêrasgouaqueleretrato?Seu...

Abri a porta e saí correndo antes que ela terminasse a frase. Nãoespereioelevador,masdesciasescadasdedoisemdoisdegraus,ouvindoaolongeosomdosseusgritos.

Quandochegueiemcasa,queimeiospedaçosdafotografia.

Nuncamais a vi. Pelo queme contaram,Kevin tem sido ummaridoexemplar eosdois sãomuito felizes juntos,mas aúnica cartaque recebideRosie(setepáginasemletramiúda)deixouclaroqueelaachavaqueocálculorenaleraumaexplicaçãomaisdoquesu icienteparaomauhumorde Kevin e que a sua chegada e partida em perfeito sincronismo com afotografianãopassavadesimplescoincidência.

Ela fazia algumas ameaças impensadas contra minha vida e, emparticular, contra certas partes domeu corpo, fazendouso de palavras efrasesqueeujamaissuspeitaradequefizessempartedovocabuláriodela.

Eeusuponhoquejamaismebeijarádenovo,oquemetraz,porumarazãoquenãoseiexplicarbem,umcertosentimentodefrustração.

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AoVencedor

NãoésemprequemeencontrocommeuamigoGeorge,masquandoisso acontece, semprepergunto comovai o pequenodemônioque ele dizsercapazdeconjurar.

—Um escritor de icção cientí ica velho e careca a irmou certa vezque os feitos de uma tecnologia muito mais avançada que a nossapoderiam facilmente ser confundidos com magia — disse-me ele. —Acontece, porém, que meu pequeno amigo Azazel não é um serextraterrestre, mas um demônio autêntico. Ele pode ter apenas doiscentímetrosdealtura,masécapazde fazercoisasespantosas...Espereaí.Comoéquevocêsabequeeleexiste?

—Vocêmesmomecontou.

George franziu a testa em sinal de reprovação e declarou, muitosério:

—JamaismencionoAzazel.

—Anãoserquandoestáfalando—disseeu.—Oqueeletemfeitoultimamente?

George foi buscar um suspiro na região dos dedos dos pés edescarregou-o,carregadodecerveja,naatmosferainocente.

—Pronto—disse—,agoravocêmedeixoutriste.MeujovemamigoTheophilussofreupornossacausa,minhaedeAzazel,emborativéssemosamelhordasintenções.—Levantouacanecadecervejaeprosseguiu.

MeuamigoTheophilus[disseGeorge],quevocênãoconhece,porquecircula em meios bem mais so isticados que os que você frequentahabitualmente,éumrapazde ino tratoquenãopodiaresistiraumrabode saia (algo a que felizmente sou imune), mas enfrentava grandesdificuldadesparaserelacionarcomosexooposto.Umdia,elemedisse:

—Nãoconsigoentender,George.Minhainteligênciaénormal;tenho

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umpapoagradável;nãosounenhummonstro...

—Éverdade—respondi.—Vocêtemosolhos,onariz,oqueixoeabocanoslugarescertosenaquantidadecor-reta.Issoeutenhodeadmitir.

—...eseitudoarespeitodasteoriasdoamor,emboranãotenhatidomuitas oportunidades para praticar. Mesmo assim, sinto-me incapaz deatrair a atenção dessas adoráveis criaturas. Observe que estamospraticamente cercados por elas, e no entanto nenhuma até agora seaproximou de mim tentando puxar conversa, embora eu esteja aquisentadocomumaexpressãomuitoreceptivanorosto.

Suas palavras me deixaram penalizado. Eu o conhecia desde ainfância, quando, lembro-me muito bem, cheguei a segurá-lo no colo, apedido da mãe, que o estava amamentando, enquanto ela ajeitava ovestido.Essascoisasmarcamagente.

— Você icaria muito feliz, meu caro amigo, se as mulheres sesentissematraídasporvocê?

—Paramimseriaoparaíso—disse,simplesmente.

Como eu podia negar-lhe o paraíso? Expliquei o problema a Azazel,que,comosempre,reagiudeformanegativa.

—Porquenãomepedeumdiamante?Possofabricarparavocêumapedra sem jaca, de meio quilate, simplesmente mudando o arranjo dosátomos emumpedaço de carvão...mas tornar o seu amigo irresistível àsmulheres?Comovoufazerisso?

—Vocênãopodemudaroarranjodosátomosdomeuamigo?Querofazer alguma coisa por ele, quando mais não seja para prestar umahomenagemaofabulosoequipamentoalimentíciodamãedele.

— Hum, deixe-me pensar. Os seres humanos secretam feromônios.Naturalmente, com essa mania de tomar banho toda hora e usardesodorantes, vocês nem se lembram mais disso. Entretanto, talvez eupossa estimular as glândulas do seu amigo a produzirem quantidadessigni icativasdeumferomônioparticularmentee icaznomomentoemqueadesagradávelimagemdeumafêmeadasuarepulsivaespécieseformar

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nasuaretina.

—Elenãovaicheirarmal?

— Não, não. Será um odor quase imperceptível, mas exercerá umpoderosoefeitosobreafêmeadaespécie,naformadeumdesejoatávicoeinconsciente de aproximar-se e sorrir. O resto icará por conta do seuamigo.

— Não se preocupe. Theophilus tem muitas qualidades. Tenhocerteza de que, uma vez rompida a barreira inicial, ele dará conta dorecado.

Na vez seguinte em que esbarrei em Theophilus, pude constatar aeficáciadotratamentodeAzazel.Foiemumcafédebeiradecalçada.

Custei um pouco para vê-lo, porque o que me atraiu a atençãoinicialmente foi um grupo de mulheres distribuídas em círculo. Sou,afortunadamente, imune a mulheres jovens, pois cheguei à idade dadiscrição, mas era verão e elas estavam todas vestidas com umainsu iciência calculada de tecido que eu (como homem discreto que sou)comeceiaestudardiscretamente.

Foi apenas depois de alguns minutos durante os quais, lembro-mebem, analisei o esforço a que estava submetido um botão que mantinhafechadaumacertablusa,e imagineiqueaconteceriase...mas issoéoutrahistória.Foiapenasdepoisdealgunsminutosquenoteiqueninguémoutrosenão Teophilus estava no centro do círculo e parecia ser o alvo dasatenções daquelas jovens estivais. O calor da tarde indubitavelmenteacentuaraosefeitosdoferomônio.

Abri caminho naquele anel de feminilidade e, com sorrisos episcadelas paternais e um ocasional tapinha avuncular no ombro, sentei-me em uma cadeira ao lado de Theophilus, que uma atraente raparigadesocuparaparamimcomumbeicinhopetulante.

—Theophilus,meujovemamigo!Quevisãoagradável!

Foi então que notei que o rosto domeu amigo estava contraído emumaexpressãodetristeza.Perguntei,preocupado:

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—Oquehácomvocê?

Elerespondeuquasesemmexeroslábios,falandotãobaixoquemalconseguiouvi-lo.

—PeloamordeDeus,tire-medaqui.

Como você sabe, tenho uma presença de espírito invejável. Leveiapenasalgunssegundosparalevantar-meedizer:

—Queridas,meuamigoaqui,porumarazãobiológicainadiável,temnecessidadedevisitarobanheirodoshomens.

Permaneçamsentadas,queelelogoestarádevolta.

Entramos no pequeno restaurante e saímos pela porta dos fundos.Umadasjovens,cujosbícepsavantajadosnãotinhamnadadefemininos,ecujo olhar de descon iança me chamara a atenção, tinha dado a volta eestavaànossaesperanacalçada,masnósavimosatempoeconseguimospegarumtáxi.Elanosseguiuapépordoisquarteirõesantesdedesistir.

NasegurançadoquartodeTheophilus,pergunteiaele:

—Meuamigo,éóbvioquevocêdescobriuosegredodecomoatrairas mulheres. Não está satisfeito com isso? Não é o paraíso que estavaprocurando?

—Não—disseTheophilus,enquantoseacalmavaaospoucosnoarcondicionado.—Elasmeprocuramtodasaomesmo tempo.Nãosei comoaconteceu, mas de repente descobri, faz algum tempo, que mulheresestranhas eramcapazesde se aproximardemimemeperguntar senãonosconhecíamosdeAtlanticCity.Nunca,emtodaaminhavida,estiveemAtlanticCity!—acrescentou,comindignação.

“No momento em que neguei o fato, outra mulher se aproximou ea irmouqueeutinhadeixadocairmeulençoequegostariadedevolvê-lo,enquantoumaterceirameperguntava:“Queachadetrabalharnum ilme,garoto?”

—Tudoquevocêprecisava fazereraescolherumadelas.Eu icaria

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comaquelheofereceuumempregonocinema.Éumavidamansa,evocêestariacercadodejovensatrizes.

— Maseunãoposso escolhernenhuma!Elas se vigiamcomo feras.Nomomentoemquedoumaisatençãoaumadelas,asoutrascomeçamapuxar-lhe o cabelo e a expulsam da roda. Continuo sem mulher comoantes, e antigamente pelo menos não tinha de icar olhando para elasenquantobalançavamosseiosnaminhafrente.

Suspireiedisse:

— Por que não organiza um torneio eliminatório? Quando estivercercadodemulheres, comoestavaháalguns instantes,digaaelas: “Meusanjos, sinto-me profundamente atraído por todas e cada uma de vocês.Assim sendo, peço a gentileza de se colocarem em ila, em ordemalfabética, para que possa beijá-las sem tumulto. A que tiver o melhordesempenhoseráconvidadaapassaranoitecomigo”.Quetal?

—Humm...—fezTheophilus.—Porquenão?Aovencedorcabemosdespojos,eeuadorariaserodespojodavencedora.—Lambeuoslábiosecomeçou a praticar, jogando beijos no ar.—Acho que agüento. Será quedevosugerirqueelasmebeijemcomasmãosatrásdascostas,paratomaracoisamenoscansativa?

— Não acho que seja uma boa ideia, meu amigo. Um pouco deexercício não faz mal a ninguém. Se eu fosse você, deixaria que elasagissemcomolhesaprouvesse.

—Talvez você tenha razão—disse Theophilus, reconhecendo que,nesseassunto,minhaexperiênciameconfereumaCertaautoridade.

Poucodepoisquetivemosestaconversa, tivedesairdacidadeparatratar de negócios. Quando tornei a ver Teophillus, um mês se passara.Encontrei-o por acaso, em um supermercado. Estava empurrando umcarrinho. Sua expressãome deixou surpreso. Parecia um animal acuado.Olhavaassustadoemtodasasdireções.

Quando me aproximei, ele deu um grito e se abaixou. Depois,reconheceu-meeexclamou:

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—GraçasaDeus!Penseiquefosseumamulher.

Sacudiacabeça.

—Oproblemacontinua?Vocêdesistiudotorneioeliminatório?

—Não.Bemquetentei,masnãodeucerto.

—Queaconteceu?

—Bem...—Eleolhouparaumladoeparaooutroedepoisesticouopescoçoparaexaminarocorredor.Vendoqueacostaestavalimpa,dirigiu-se amim num tom discreto e apressado, como quem sabe que é precisomantersigiloenãohátempoaperder.

Fiqueiesperandoqueelecontinuasse.

—Organizei tudo— continuou.— Fiz com que elas preenchessemum formulárioonde constavama idade, amarcadepastadedentes, trêsreferências... o de praxe. Depois, marquei a data. A competição seriarealizada no salão de baile do Waldorf-Astoria, com um suprimentoabundante de manteiga de cacau, os serviços de uma massagistapro issional e um tanque de oxigênio para me manter em forma. Navéspera do dia marcado, porém, um homem foi me visitar em meuapartamento.

“Eudisseumhomem,masaosmeusolhosatônitoselepareciamaisumapilhadetijolosemmovimento.Tinhamaisdedoismetrosdealturaemais de um metro e cinquenta de largura, com punhos do tamanho demartelos.Elesorriu,mostrandoosdentesafiados,edisse:

““Moço,minhairmãvaiparticipardotorneioamanhã.”

““Que bom!”, exclamei, ansioso paramanter a conversa emum tomamigável.

““Minha irmãzinha prosseguiu. “A única lor delicada de nossafamília. Eu e meus três irmãos temos por ela um profundo carinho edetestaríamosqueficassedesapontada.”

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““Osseusirmãossãoparecidoscomvocê?”,perguntei.

“Não, não”, respondeu, com um suspiro. “Fui muito doente nainfância, e em consequência meu crescimento icou prejudicado. Meusirmãos, porém, são rapazes fortes e saudáveis, mais ou menos destaaltura.”Levantouamãoparaumpontoque icavanomínimodoismetrosetrintaacimadosolo.

““Estoucertodequeasuaencantadorairmãtemumaboachancedeganhar”,apressei-meadizer.

““Ficomuitosatisfeitoemsaberdisso.Naverdade,anatureza,talvezpara me compensar pela debilidade ísica, me concedeu o dom daclarividência, e posso ver diante dos meus olhos que minha irmã vaiganhar a competição. Por alguma estranha razão, minha irmãzinha sesenteatraídaporvocê,eeuemeusirmãosnossentiríamoshumilhadosseelafossepreteridaporoutra.Equandonossentimoshumilhados...”

“Ele sorriu, e seus dentes pareciam ainda mais pontudos do queantes. Depois, estalou devagar as juntas da mão direita, uma por uma,fazendo um barulho como o de um fêmur se partindo. Eu nunca tinhaouvidoobarulhodeumfêmursepartindo,maspodiaimaginarcomoera.

“Disseparaele:“Tenhoumpressentimentodequeasuavisãovaiseconcretizar.Poracasonãotemnobolsoumafotografiadasuairmã?”

““Para dizer a verdade, tenho sim”, disse ele. Mostrou-me a foto, edevo admitir que por ummomentome senti penalizado. Nãome pareciaqueajovemtivesseamenorpossibilidadedevenceracompetição.

“Entretanto, o rapaz devia ter mesmo poderes parapsicológicos,porque,apesardetudo,a irmãdeleganhouporlargamargem.Houveumverdadeiro tumulto quando a decisão foi anunciada, mas a própriavencedora se encarregou de expulsar da sala as outras concorrentes edesde aquele dia, infelizmente (ou melhor:felizmente), nunca mais nosseparamos.Naverdade, láestáela,pertodobalcãodascarnes.Elaadoracarne...emboranemsempresedêotrabalhodecozinhá-la.

Quandoolheinadireçãoparaondeeleestavaapontando, reconheciimediatamenteajovem;eraamesmaquehaviaperseguidonossotáxipor

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doisquarteirões.Era indubitavelmenteumameninadecidida.Admirei-lheos bíceps avantajados, as panturrilhas bem desenvolvidas e assobrancelhascerradas.

Disseparaele:

— Sabe de uma coisa, Theophilus? Pode ser possível diminuir aatraçãoquevocêexercesobreasmulheresaonívelinsignificantedeantes.

Theophilussuspirou.

— Seria muito arriscado. Minha noiva e os irmãos dela poderiaminterpretardeformaerrôneasuafaltadeinteresse.

Alémdisso,existemcertascompensações.Posso,porexemplo,andarem qualquer rua da cidade a qualquer hora da noite e me sentirperfeitamenteseguro;bastaqueelaestejaameulado.Quandoumguardade trânsito se mete a engraçadinho comigo, minha noiva faz uma caretaparaeleetudoseacerta.Alémdisso,elaémuitoexuberanteecriativaemsuasdemonstraçõesdeafeto.Não,George,jáaceiteiomeudestino.

Dia 15 domês que vem, vamos nos casar e ela entrará comigo nosbraços no apartamento que os irmãos compraram para nós. Elesganharamumafortunanonegóciodeferro-velho,porquenãoprecisamdemáquinas compactadoras; usam os punhos. Só que às vezes penso comoseriase...

Osolhosdomeuamigo tinhamsedesviado, involuntariamente,paraa silhueta graciosadeuma jovem louraque caminhavapelo corredor emsua direção. A moça também estava olhando ixamente para ele, e umtremorpareciapercorrer-lheocorpo.

—Desculpe—disse,timidamente,comumavozmusical—,masnãonosencontramosrecentementeemumbanhoturco?

Nesseexatomomento,ouvimososomdepassospesadoseumavozdebarítonoseintrometeunaconversa.

—Teophilus,meubem,essa...essasirigaitaestáincomodandovocê?

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A noiva de Theophilus olhou de cara feia para a mocinha, que seencolheu,aterrorizada.

Coloquei-me rapidamente entre as duasmulheres. estava correndoumsério risco, é claro,mas todos sabemque sou corajoso comoum leão.Disseparaanoivadomeuamigo:

—Asenhoraestácometendoumterrívelengano.Estadocecriançaéminha sobrinha. Quando me viu a distância, dirigiu-se ao meu encontropara me cumprimentar com um casto beijo na testa. O fato de o seunamoradoestarpertodemimfoimeracoincidência.

O mesmo olhar de suspeita que eu havia observado na noiva deTheophilusnaprimeiravezemquenosencontramosapareceudenovonoseurosto.

—Ah,é?—disse,emumtomque,aocontráriodoqueeugostaria,era totalmente desprovido de humor. — Nesse caso, quero que deem ofora.Vocêsdois.Já.

Depoisdepesarospróseoscontras,chegueiàconclusãodequeeramesmo amelhor coisa a fazer. Ofereci o braço à jovem e nos afastamos,deixandoTheophilusentregueaoseudestino.

—Muitoobrigada—disseamocinha.—Osenhorpensoudepressae foimuitocorajoso.Senãotivessemesocorrido,eucertamentenãoteriaescapadosemmuitosarranhõesecontusões.

— O que seria uma pena, pois um corpo como o seu não merecesofrer arranhões.Nem contusões—acrescentei, comum sorriso galante.—Vocêestavafalandoembanhoturco.

Amim parece um ótimo programa. Acontece que, por acaso, tenhoumnomeu apartamento.Bem, não é exatamente umbanho turco,mas éumbanhoamericano./,praticamenteamesmacoisa...

Afinaldecontas,aovencedor...

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ORuídoAbafado

Eu me esforço para não acreditar no que meu amigo George meconta.Comodarcréditoaalguémquea irmateracessoaumdemôniodedois centímetros de altura chamado Azazel, um demônio que é narealidade um ser extraterreno com poderes extraordinários, emboralimitados?

Acontece que George tem a capacidade de me olhar com aquelesolhosazuiseme fazeracreditaremsuashistórias...pelomenosenquantoestáfalando.

Uma vez comentei com ele que achava que o pequeno demônio lheconcederaodomdahipnoseverbal.Georgesuspirouedisse:

—Absolutamente! Seelemeconcedeualgumacoisa, foiopoderdeatraircon idencias...sóqueestajáeraminhasinamuitoantesdeconhecerAzazel. As pessoas mais estranhas insistem em relatar para mim seusinfortúnios. E às vezes... — sacudiu a cabeça, com uma expressão detristeza profunda.— ...às vezes, a desgraça é tão grande que mal possosuportar. Uma vez, por exemplo, conheci um homem chamado HannibalWest...

A primeira vez que o vi [disseGeorge] foi no bar do hotel onde euestava hospedado. Reparei nele porque estava atrapalhandominha visãode uma garçonete escultural, que além do mais usava trajes sumários.Acho que ele pensou que eu eslava olhando para ele, coisa que nemmepassarapelacabeça,etomouissocomoumgestodeamizade.

Aproximou-se da minha mesa, com um copo de bebida na mão, esentou-se sem pedir licença. Sou, por natureza, um homem educado, demodo que o recebi com um rosnado amistoso, que ele aceitou comnaturalidade. Ele tinha cabelos ruivos muito lisos, pele clara e olhosigualmente claros, com o olhar ixo de um fanático, embora eu tenha deadmitirqueleveialgumtempoparanotaresteúltimodetalhe.

—MeunomeéHannibalWest—disseparamim.—Souprofessor

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de geologia. Meu campo de especialização é a espeleologia. Por acaso osenhortambémseriaumespeleólogo?

Percebiqueestavacomaimpressãodehaverencontradoumaalmagêmea.Fiqueiindignadocomaideia,masnãodeixeiissotransparecer.3

—Souumhomemdemúltiplosinteresses—respondi.—Quevemaseraespeleologia?

— O estudo e a exploração das cavernas — explicou. — É o meupassatempo favorito, também. Já explorei cavernas em todos oscontinentes, exceto a Antártida. Sou a maior autoridade mundial noassunto.

—Parabéns.Estouimpressionado—falei.

Achando que minhas palavras encerravam um encontro que nãopodia ser classi icado exatamente como agradável, iz sinal à garçoneteparaquefossebuscaroutrodrinqueeobservei,cominteressecientí ico,oseuandarondulanteemdireçãoaobar.

HannibalWest,porém,nãosedeuporachado.

— Você tem toda a razão em icar impressionado — declarou,fazendo que sim vigorosamente com a cabeça. — Entrei em grutassubterrâneas quenunca haviam sidopisadas por um ser humano. Estiveonde nenhum homem (ou mulher) já mais esteve. Respirei um ar quejamais havia passado pelos pulmões de um ser humano. Vi e ouvi coisasque ninguém mais ouviu... e escapou vivo para contar a história —concluiu,emtomenfático.

Meudrinque tinhachegadoedesvieiosolhosparaadmiraragraçacom que a garçonete se inclinou para colocá-lo namesa, àminha frente.Quasesempensar,disseparaomeuinterlocutor:

—Vocêéumhomemdesorte.

— Está muito enganado — protestou West. — Sou um miserávelpecador,chamadopeloSenhorparapagarospecadosdahumanidade.

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Aquela estranha declaração me fez observá-lo com atenção pelaprimeiravez.Foinessahoraquenoteioolhardefanático.

—Dentrodecavernas?—perguntei.

— Dentro de cavernas — concordou, com ar solene. — Acredite.Comoprofessordegeologia,seidoqueestoufalando.

Conhecimuitosprofessoresemminhavidaquenão faziamamenorideia do que estavam dizendo, mas evitei mencionar o fato. TalvezWesttenha adivinhado o meu pensamento, porque apanhou um recorte dejornalnamaletaqueestavanochãoaseuladoepassou-oparamim.

—Dêumaolhadanisso!

Nãoeranadadeespecial.Apenasumanotíciade trêsparágrafos.Amanchete dizia “Um Ruído Abafado”. O jornal era de East Fishkill, NovaYork. Aparentemente, osmoradores se haviam queixado à polícia de umruídoabafadoquedeixaraapopulaçãoassustadaeprovocaraumagrandeagitação entre os gatos e cachorros. A polícia atribuíra o fenômeno aalguma tempestade distante, embora o serviço de meteorologia alegassequenãohouveranenhumtrovãoeraumraiodecentenasdequilômetros.

—Queachadisso?.—quissaberWest.

—Nãoseriaumaepidemiadeindigestão?

Elefezumcareta,comoseminhasugestãofosseridícula,edisse:

— Tenho notícias semelhantes tiradas de jornais de Liverpool,Inglaterra;Bogotá,Colômbia;Milão,Itália;Rangum,Birmânia;etalvezmeiacentenadeoutrascidadesdomundo.Colecionoessasnotícias.Todasfalamde um ruído abafado que deixou as pessoas com medo e os animaisextremamente agitados.Todas forampublicadas emum intervalodedoisdias.

—Umúnicoevento,deescalamundial!—exclamei.

—Exatamente!Indigestão,umaova!—Olhouparamim,muitosério,tomouumgoledebebidaebateunopeito.—OSenhorcolocouumaarma

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emminhasmãoseprecisoaprenderausá-la.

—Quearmaéessa?

Elenãorespondeudiretamente.

— Encontrei a caverna por acidente — disse. — Pre iro que sejaassim,porqueumacavernacomumaentradamuitoóbviaemgeral já foivisitada por milhares de pessoas. Mostre-me uma abertura estreita eescondida, coberta de vegetação, parcialmente obstruída por umdesmoronamento, escondida por uma cachoeira ou situada em um lugarquaseinacessível,eeulhemostrareiumacavernavirgem,quemereceserexplorada.Vocêdissequenãoconhecenadadeespeleologia?

— Já visitei algumas cavernas. As cavernas Luray, na Virgínia, porexemplo...

—Umasimplesexploraçãocomercial!—exclamouWest,torcendoonariz eolhandoemvolta embuscadeum lugar convenientepara cuspir.Felizmente,nãoencontrounenhum.

“Já que não está familiarizado com as delícias da espeleologia, nãovou incomodá-lo comosdetalhesdeondeencontrei esta cavernanemdecomo a explorei. Naturalmente, nem sempre é seguro explorar cavernasdesacompanhado, mas de vez em quando me aventuro nesse tipo deempreitada.A inal,tenhomuitaexperiênciae,alémdisso,umacoragemdeleão.

“No caso emquestão, foi uma sorte eu estar sozinho, poisnão seriajusto qualquer outro ser humano partilhar da minha descoberta. Eu jáestava explorando a caverna havia várias horas quando entrei em umacâmara enorme, cheia de estalactites e estalagmites. Internei-me nalorestadeestalagmites,desenrolandoacorda-guiaatrásdemim,poisnãoestavaa imdemeperder, ede repentedeparei comoquepareciaumagrossa estalagmite quebrada em um plano natural de cravagem. Ao ladohaviaummontedepedaçosdecalcário.Eraimpossíveldeduziracausadoacidente. Talvez um animal de grande porte, atravessando a câmara àscegas, fugindodealgumpredador,tivesseesbarradonaestalagmite.Podesertambémqueoresponsávelfosseumpequenoabalosísmico.

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“Fossecomofosse,ocotodaestalagmiteeratãolisoquere letiaaluzda minha lanterna como se fosse um espelho. Tinha formaaproximadamente circular e lembrava muito um tambor. Tanto que,obedecendo a um impulso, aproximei-me e bati nele com o indicador damãodireita.

Euouvia-oatento,seminterrompê-lo.

Elebebeuorestododrinquedeumgolesóeprosseguiu:

— Acontece que a coisa era um tambor, ou pelo me nos umaestrutura capaz de entrar em ressonância quando estimulada. Nomomento em que a toquei, um ruído abafado encheu a câmara. Era umsom indistinto, no limiar da audição, mais sentido do que ouvido. Naverdade,comomaistardetiveocasiãodeveri icar,apartedavibraçãoqueera su icientemente aguda para ser ouvida constituía uma pequenaporcentagemdototal.Quasetodasasondassonorassemanifestavamsobaformadeviolentasvibraçõeslentasdemaisparaafetaroouvido,emborafizessemsacudiromeucorpo.

Aquela reverberação inaudível produziu em mim a sensação maisdesagradávelquevocêpossaimaginar.

“Nuncahaviaobservadonadaparecidocomaquilo.Aenergiadomeutoquetinhasidodiminuta.Comoteriasidoconvertidaemumavibraçãotãointensa? Até hoje não consegui entender perfeitamente a causa dofenômeno.É claroque existem fontesde energia respeitáveis no subsolo.Poderia haver uma forma de extrair o calor do magma, transformandouma pequena fração desse calor em som. A batida inicial serviria paraliberar a energia sonora. O resultado seria uma espécie de laser sonoro,ou, se substituirmos “luz” por “som” na acrossemia, uma espécie de“saser”.

—Nuncaouvifalardenadaparecido—observei.

— Claro que não. Nem você nem ninguém. Mas uma combinaçãofortuita de elementos geológicos dera origem a um saser natural. É umacoisaquenãoaconteceria,poracidente,maisqueumavezemummilhãode anos, talvez, e apenas naquele lugar do planeta. Pode ser o fenômenomaisrarodaTerra.

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—Émuitacoisaparaconcluirdeurasimplesruído.

— Como cientista, meu amigo, eu lhe asseguro que não iqueisatisfeitocomumaúnicaobservação.Resolvifazernovasexperiências.Baticom mais força e logo percebi que as vibrações na câmara poderiamdani icar meus órgãos internos. Por isso, montei um sistema através doqualeupodiadeixarcairpedrasdevários tamanhosnosaseratravésdeummecanismooperadoadistância.Descobriqueosompodiaserouvidofora da câmara. Usando um sismógrafo rudimentar, veri iquei que erapossível detectar as vibrações a uma distância de alguns quilômetros dacaverna. Depois, deixei cair uma série de pedras e observei que o efeitoeracumulativo.

—Issoocorreunodiaemqueoruídoabafadofoiouvidonomundointeiro?

— Exatamente. Você não é tão obtuso quanto parece, a inal. Averdadeéqueoplanetainteiroressooucomoumsino.

— Já ouvi dizer que os grandes terremotos podem produzir esseefeito.

— Verdade, mas este saser pode provocar uma vibração maisintensaqueadequalquer terremoto,epode fazê-loemumcomprimentodeondaespecí ico.Podeser,porexemplo,umcomprimentodeondacapazdeabalaraestruturainternadascélulas,quebrandooscromossomos.

—Issomatariaascélulas.

—Claroquesim.Talveztenhasidoissoquematouosdinossauros.

—LiemalgumlugarqueosdinossaurosdesapareceramdepoisqueumasteroidesechocoucomaTerra.

—Algunscientistaspensamassim.Entretanto,paraqueumacolisãocomum produzisse o efeito desejado, o asteroide teria de ser gigantesco.Maisdedezquilômetrosdediâmetro.Alémdisso,temosdeimaginarqueapoeiraseacumulounaestratosferaproduzindouminvernoqueduroutrêsanos. E como explicar o fato de que algumas espécies se extinguiram eoutras não, da forma mais ilógica possível? Suponha, porém, que um

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asteroide muito menor disparasse um saser, e que as vibraçõesproduzidasporestesasertivessemafrequênciaapropriadaparaafetarascélulas. Nesse caso, noventa por cento das células existentes na Terrapoderiam ser destruídas em questão de minutos sem que o ambienteplanetário fosse afetado de forma signi icativa. Algumas espéciesconseguiriamsobreviver,outrasnão.Tudodependeriadasfrequênciasderessonânciadosrespectivoscromossomos.

—E essa—disse eu, com a sensação desagradável de que aquelefanáticoestavafalandosério—foiaarmaqueoSenhorcolocounassuasmãos?

— Exatamente. Calculei os comprimentos de onda exatos do somproduzidoquandoo saser é excitadodevárias formasdiferentes e estoutentando determinar qual o comprimento de onda capaz de quebrar oscromossomoshumanos.

—Porqueoscromossomoshumanos?

—Porquenão?Qualéaespéciequeestásuperpovoandooplaneta,destruindoo ambiente, erradicandooutras espécies, enchendo a biosferade poluentes químicos? Qual é a espécie que ameaça destruir a Terra,torná-la inabitávelemquestão, talvez,dealgumasdécadas?Qual, senãooHomo sapiens? Se eu conseguir encontrar o comprimento de ondaapropriado, estarei em condições de excitar o meu saser de forma abanhar a Terra em vibrações sônicas capazes de exterminar ahumanidade em questão de poucomais de um dia (pois a velocidade dosom é inita), sem afetar outras formas de vida, cujos cromossomos sãosensíveisaoutroscomprimentosdeonda.

—Vocêestádispostoamatarbilhõesdesereshumanos?

—OSenhornãofezamesmacoisa,atravésdodilúvio?

—Nãomedigaqueacreditanalendabíblicado...

—Souumgeólogocriacionista—declarouWest,muitosério.

Foientãoquecompreenditudo.

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—Ah!— exclamei.— O Senhor prometeu que jamais haveria umnovodilúvionaTerra,masnãodissenadaarespeitodeondassonoras...

— Exatamente! Os bilhões de cadáveres servirão para fertilizar efruti icaraTerra.Serãousadoscomoalimentopelasoutrasformasdevida,que tanto sofreram nas mãos da humanidade e merecem algum tipo derecompensa. Além do mais, uma pequena parcela da humanidadecertamente sobreviverá. Tem de haver alguns seres humanos cujoscromossomos não sejam sensíveis às vibrações. Esses sobreviventes,abençoados por Deus, poderão começar de novo, e talvez tenhamaprendidoalição.

— Por que está me contando tudo isto?— perguntei. Na verdade,acabarademeocorrer que era estranhoque ele estivesseme revelandotodooplano.

West se inclinou naminha direção, segurou-me pela gola do paletó(uma experiência muito desagradável, porque ele tinha mau hálito) edisse:

—Tenhocertezadequevocêestáemcondiçõesdemeajudar.

—Eu?Possolhegarantirquenãoentendonadadecomprimentosdeonda,cromossomose...—penseimelhoredisse,rapidamente:—Sabequeachoquetemrazão?—retruquei.

Em um tom mais formal, com a cortesia majestosa que é uma dasminhascaracterísticas,acrescentei:

— Poderia me conceder a honra de esperar por mim uns quinzeminutos?

— Certamente — respondeu, com a mesma formalidade. — Parapassar o tempo, tentarei resolver algumas equaçõesmatemáticas ligadasaoproblema.

Aosair,passeiumanotadedezdólaresparaogarçomesegredei-lhenoouvido:

— Não deixe aquele cavalheiro sair antes que eu volte. Sirva-lhe

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outrodrinqueeponhanaminhaconta,seforabsolutamentenecessário.

SemprelevocomigoosingredientesnecessáriosparachamarAzazel.Minutos depois, ele estava sentado na mesinha de cabeceira do meuquarto,cercado,comosempre,deumbrilhocor-de-rosa.

Disseparamim,comaquelavozinhaaguda,emtomdecensura:

— Você me interrompeu quando eu estava acabando de construirum pasmaraiso que sem dúvida conquistaria o coração de uma adorávelsamini.

— Sinto muito, Azazel — disse eu, torcendo para que ele nãoperdessetempomeexplicandooqueeraumpasmaraisoouquãoadorávelpodiaserumasamini—,masse tratavadeumaemergênciadotipomaisurgente.

—Vocêsempredizisso—observou,decarafeia.

Fiz um resumo da situação e tenho de reconhecer que elecompreendeu de imediato. Azazel é assim mesmo, dispensa grandesexplicações. Descon io que ele lê os meus pensamentos, embora meassegure que considera minha mente inviolável. Mesmo assim, por quedeveria con iar emumdemôniodedois centímetrosde altura, que, comoelepróprioadmite,estásempretentandoconquistaraspobresdassamini,usandoparaissoosexpedientesmaisescusos?

—Ondeestáessehumano?—perguntou.

—Nobardohotel.Ohotelfica...

—Nãoprecisaexplicar.Possoprocuraraaurade corrupçãomoral.Achoquejáencontrei.Comopossoidentificarohumano?

—Cabelosruivos,olhosclaros...

—Não,não.Pelamente.

—Eleéumfanático.

—Ah,porquenãodisselogo?Encontrei-o...eachoquevouprecisar

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deumbombanhoquandovoltarparacasa.Eleéaindapiordoquevocê.

—Esqueçaisso.Eleestádizendoaverdade?

—Arespeitodoíoser?...Oqual,apropósito,éumaideiainteressante.

—Arespeitodosaser.

—Bem,estaéumaquestãodedi ícilresposta,Comocostumodizeraum amigomeu que se considera um grande líder espiritual: Onde está averdade?Tudoqueseiéqueeleacreditanoqueestádizendo.Noqueumser humano acredita, porém, não importa com que convicção, pode nãocorresponderàverdade.Provavelmentevocêjásedeparoucomsituaçõessemelhantesaolongodesuaexistência.

— Claro que sim.Mas não hámeio de distinguir entre uma crençaquesebaseianaverdadeeumafalsacrença?

— No caso de seres inteligentes, certamente que há. Mas isso nãoocorre quanto aos seres humanos. Mas parece que você considera estehomem comouma séria ameaça a sua espécie. Posso remanejar algumasmoléculasdoseucérebroeeleestarámortoemumpiscardeolhos.

—Não,não!—protestei.Possoserumtolosentimental,masa ideiade assassinar uma pessoa me repugna. — Não pode remanejar asmoléculasdocérebrodeleparaqueseesqueçadequeosaserexiste?

Azazelsuspirou.Foiumsuspiroagudo,sibilante.

— Vai sermuitomais di ícil. Asmoléculas são pesadas e tendem agrudar umas nas outras. Por que não recorremos a uma simplesinterrupção...

—Euinsisto.

—Ora,estábem—concordouAzazel,demávontade.

Iniciouentãooritualdebufosegemidoscomosquaistentamefazercrerqueestátrabalhandopesado.Momentosdepois,disse:—Terminei.

—Ótimo.Espereaqui,porfavor.Sóqueroverseestátudobem.Não

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demoro—falei.

CorriparaobareencontreiHannibalWestnomesmo lugarondeodeixara.Ogarçompiscouparamimquandopasseiporele.

— Não foi necessário nenhum drinque— disse para mim, em vozbaixa.Dei-lhemaiscincodólares.

Quando me aproximei, West levantou os olhos e exclamou, muitoanimado:

—Aíestávocê!

— Eu mesmo. Que bom que você notou. Tenho a solução para oproblemadosaser.

—Oproblemadoquê?—perguntou,visivelmenteintrigado.

— O objeto que você descobriu em uma de suas expediçõesespeleológicas.

—Queéumaexpediçãoespeleológica?

—Aexploraçãodeumacaverna.

— Francamente, meu amigo — disse West, franzindo a testa. —Jamaisentreiemumacavernaemtodaaminhavida.Perdeuojuízo?

— Não, mas acabo de lembrar que tenho um compromissoimportante.Adeus.Talvezumdiaagentesevejadenovo—retruquei.

Corridevoltaparaoquarto,umpoucoofegante, e encontreiAzazeltrauteando uma das melodias populares do seu mundo. O gosto musicaldaquelascriaturasdeveseratroz.

— Ele se esqueceu de tudo— informei a Azazel.— Espero que oefeitosejapermanente.

—Claroqueépermanente—disseAzazel.—Agoratemosdecuidardo saser. Para poder ampli icar os sons usando como fonte de energia ocalor interno da Terra, ele deve ter uma estrutura bastante complexa.

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Bastará uma pequena alteração no local apropriado (coisa que, para umser com os meus poderes, não será muito di ícil), e o efeito saser nãotornaráaserepetir.Onde,exatamente,ficaatalcaverna?

Olheiparaele,estupefato.

—Comovousaber?

Ele olhou para mim, provavelmente também estupefato, mas nãoconsigointerpretardireitoasexpressõesdaquelepequenorosto.

— Está querendo dizer que me fez apagar a memória do homemantesdelheextrairestainformaçãovital?

—Aquestãonãomeocorreu—expliquei.

—Masseosaserexisterealmente,outrapessoapoderáencontrá-lo,ou um animal poderá tropeçar nele, ou ummeteorito poderá atingi-lo, enessemomentotodaavidanaTerrapoderáserdestruída.

—MeuDeus!—exclamei.

Aparentemente, ele se comoveu comomeudesespero, pois disse, àguisadeconsolo:

—Vamos,vamos,meuamigo,não iquetãotristeassim.A inal,opiorque pode acontecer é a destruição da raça humana. Apenas da raçahumana.Avidadeseresinteligentesnãoestáemrisco.

Depois de terminar sua história, George disse para mim, em tomdesolado:

—Vejasóemquesituaçãomeencontro.Souaúnicapessoacientedequeomundopodeacabaraqualquermomento.

— Bobagem!— exclamei.—Mesmo que você tenhame contado averdadearespeitodesseHannibalWest,oque,sevocêmedesculpa,nãoéabsolutamente certo, pode ser que ele não passasse de um loucovisionário.

Georgeficouolhandoparamimporummomentoedepoisdisse:

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— Eu não aceitaria a sua desagradável tendência para o ceticismomesmoquemeoferecessemtodasasadoráveis5atinidomundodeAzazel.Comoexplicaisto?—indagou.

Tirou da carteira um pequeno recorte de jornal. Era do FinancialTimes da véspera. O título era: “UmRuído Abalado.” Falava de um ruídoabafadoqueestavaperturbandooshabitantesdeGrenoble,naFrança.

—Umaexplicação,George—disseparaele—,équevocêviuessanotícianojornaleinventouorestodahistória.

Por um momento, parecia que George iria explodir de indignação,mas quando peguei a conta nada desprezível que a garçonete haviacolocado em cima da mesa, pareceu mudar de ideia e se despediu deformamuitoamistosa.

Entretanto, devo admitir que não tenho dormido bemdesde aqueledia. De vez em quando, me surpreendo sentado na cama, às 2:30 damanhã,tentandoouvirdenovooruídoabafadoquepoderiajurarquemetiroudosono.

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SalvandoaHumanidade

Certanoite,meuamigoGeorgemedisse,comumsuspiro:

—Tenhoumamigoqueéumkfutz.Assentigravemente.

— Pássaros da mesma plumagem. George olhou para mim,espantado.

—Quemfalouempenas?Vocêtemumamaniadetestáveldemudarde assunto. Consequência, suponho, de sua incapacidade intelectual... quemencionoporpena,enãocomocrítica.

—Ora,ora...pensecomoquiser.Quandofaladeseuamigoklulz,estásereferindoaAzazel?

Azazel éumdemônioou ser extraterrestre (comovocêpreferir)dedoiscentímetrosdealturaarespeitodequemGeorgefalaconstantemente,parandoapenaspararesponderaumaperguntadireta.Elemedisse,emtomgélido:

—OnomedeAzazelnãodevesermencionadoemnossasconversas.Nãoseicomoouviufalardele.

— Acontece que um dia cheguei a menos de um quilômetro dedistânciadevocê—retruquei.

Georgenãomedeuatençãoecomeçou:

A primeira vez que ouvi a estranha palavra klulz foi em umaconversa commeuamigoMenanderBlock.Vocênãoo conhece,porqueéum homem instruído, professor universitário, bastante seletivo em suasamizades...observandovocê,ninguémpoderiaculpá-loporisso.

Ele me explicou que klutz é usado para designar uma pessoadesajeitada.

— Isso se aplica a mim — explicou. — Klutz vem do iídiche que

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signi icaumpedaçodemadeira,umtronco,umtoro;e,naturalmente,meusobrenome,comovocêbemsabe,éBlock [toroem inglês].—Eledeuumprofundosuspiro.

“Entretanto, não sou umklutz no sentido estrito da palavra.Não hánada de madeirento, troncudo ou toroso em mim. Sei dançar com aagilidade de um zé iro e a graça de uma libélula; meus movimentos sãoluentes como o de um silfo; várias jovens poderiam atestar minhashabilidades nas artes do amor. A verdade é que sou um klutz apenas adistância.Tudoqueme cerca se tornaklutzesco, semque eumesmo sejaafetado. O próprio universo parece tropeçar em meus pés cósmicos. Sevocê não se incomoda de misturar duas línguas e combinar grego comiídiche,suponhoquepoderiachamar-medeíeleklutz.

—Háquantotempoissovemacontecendo,Menander?—perguntei.

— Durante toda a minha vida, mas, naturalmente, só quando metorneiadultofoiquemedeicontadoestranhopoderquepossuo.Quandoeracriança,supunhaqueoqueaconteciacomigosucediatambémcomasoutraspessoas.

—Nuncadiscutiuoassuntocomninguém?

— Claro que não, George, amigo velho. Seria tomado como louco.Digamos que eu procurasse um psicanalista e tocasse na questão doteleklutzismo.Elememandariaparaomanicômionametadedaprimeiraconsulta, escreveria um artigo a respeito da descoberta de uma novapsicose e provavelmente icaria rico.Não estou disposto a passar o restoda vida em um sanatório só para fazer a fama de um idiota vestido debranco.Não,issoeunãopossocontaraninguém.

—Entãoporqueestámecontando,Menander?

—Porque,poroutro lado, tenhode contar a alguémparamanter asanidade.Evocêéapessoamaisinofensivaqueconheço.

Nãoentendibemoqueelequeriadizercomessaúltimaparte,maspercebiqueiriasersubmetido,maisumavez,àscon idenciasindesejadasdeumdosmeusamigos.Eraopreço, eubemsabia, daminhaproverbialcompreensão, simpatia, e,mais que tudo, discrição. Um segredo entregue

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aos meus cuidados jamais chega aos ouvidos de outra pessoa. (Estoufazendo uma exceção no seu caso porque sei que você não consegueprestar atençãopormaisde cinco segundos e suamemória é aindamaiscurta.)

Fizsinalaogarçomparatrazeroutrodrinqueesinalizei,usandoumcódigoquesónósdoisconhecíamos,queeraparasercolocadonacontadeMenander.Afinal,umtrabalhadordevereceberalgumpagamentopelasualabuta.

— Como se manifesta esse seu teleklutzismo? — perguntei aMenander.

— Em sua forma mais simples, e no modo pelo qual primeiro mechamou a atenção, ele se manifesta através do tempo peculiar queacompanhaminhasviagens.Nãoviajomuito,equandoofaço,voudecarro,e sempre que faço isso, começa a chover. Não importa a previsão dotempo;não importaqueosolestejabrilhandoquando inicioaviagem.Asnuvensaparecem,océu icaescuro,começaachuviscaredepoisachuvacai com vontade. Quandomeu teleklutzismo está em dia particularmenteinspirado,atemperaturacaietemosumatempestadedeneve.

“Naturalmente, já estou vacinado. Recuso-me a viajar para a NovaInglaterraatéo inaldemarço.Naprimaverapassada,dirigiatéBostonnodia 6 de abril... o que deu origem à primeira nevasca de abril em toda ahistória do Serviço de Meteorologia de Boston. Outra vez, fui atéWilliamsburg, na Virgínia, em 28 demarço, imaginando que teria algunsdias de graça, já que estava tão no sul. Ah! Williamsburg teve vintecentímetros de neve naquele dia, e os nativos icavam o tempo todopegandonochãoaquelasubstânciabrancaeperguntandounsaosoutrosoqueera.

“Muitas vezespensei que, se supusessequeouniverso eradirigidopessoalmente por Deus, poderia imaginar o arcanjo Gabriel chegando,esbaforido,àpresençadivina,paraexclamar:Senhor,duasgaláxiasestãopara colidir, em uma gigantesca catástrofe cósmica!” Deus responderia:“Nãomeperturbeagora,Gabriel;estouocupadofazendochovernacabeçadeMenander."

—Você é umapessoa cheia de recursos,Menander—disse eu.—

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Porquenãoalugaseus serviços,porumasoma fabulosa, auma irmadeirrigação?

—Jápenseinisso,masnãodariacerto;provavelmenteeupassariaaproduzirumasecarenitenteporondepassasse.

Ouisso,ouverdadeirasinundações.

“Não é só a chuva, nemos engarrafamentosde trânsito; sãomuitasoutras coisas. Objetos caros se quebram espontaneamente na minhapresença,ououtraspessoasosdeixamcairsemnenhumarazãoaparente.ExisteumsofisticadoaceleradordepartículasemWheaton,Illinois.Umdia,uma experiência importantíssima fracassou porque o vácuo foi perdido;um defeito que até hoje não teve explicação. Só eu sabia (isto é, iqueisabendo no dia seguinte, depois de ler no jornal a respeito do incidente)que nomomento estava passando de ônibus nos arredores deWheaton.Estavachovendo,naturalmente.

“Nesteexatomomento,amigovelho,partedovinhodemaisdecincodiasde idadedeste restaurante, que envelhecena adega emgarrafas deplástico da melhor qualidade, está azedando. Alguém que passou pelanossamesaummomentoatrásvaidescobrir,quandochegaremcasa,queum cano do porão estourou nomemento exato em que passou pormim;claroquenãovaisaberquepassoupormimequefoiessaacausadetudo.Assim acontece commilhares de pequenos acidentes. Isto é, de supostosacidentes.

Sentipenadomeuamigo,masaomesmotempomeusanguegelouaopensarqueestavasentadoemfrenteaeleequecatástrofesinimagináveispodiamestarocorrendonomeuhumildetugúrio.

—Emoutraspalavras:vocêéumpé-frio!—exclamei.

Menander jogou a cabeça para trás e olhou para mim com umaexpressãodedesprezo.

—Pé-frio—declarou— é o nome vulgar; teleklutz é a designaçãocientífica.

— Pois muito bem... pé-frio ou (elekluiz, sabe que talvez eu possa

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ajudá-loalivrar-sedessamaldição?

— Maldição é bem o termo — concordou Menander, com artristonho. — Muitas vezes pensei que, quando eu era bebê, uma bruxamalvada,aborrecidapornãotersidoconvidadaparaomeubatizado...Estáquerendome dizer que você pode anular maldições porque é uma fadaboa?

—Fadaumaova!—protestei,indignado.—Imagine,porém,queeusejacapazdeacabarcomessamal...comesseseuproblema.

—Comovaifazerisso?

—Nãoimporta.Estáinteressado?

—Oquevocêvaiganharcomisso?—perguntou,desconfiado.

— A agradável sensação de haver salvado um amigo de uma vidamiserável.

Menanderpensouporummomentoedepoissacudiuacabeça.

—Issonãoserásuficiente.

—Claro,quesequisermeoferecerumapequenaquantia...

— Não, não. Jamais pensaria em insultá-lo dessa forma. Oferecerdinheiro a um amigo! Atribuir um valor inanceiro a uma amizade? Quevocê pensaria de mim, George? O que eu quis dizer foi que não serásu iciente remover o meu teleklutzismo. Você precisa fazer mais do queisso.

—Quemaisvouterdefazer?

— Pense! Duranteminha vida, fui responsável pela infelicidade demilhões de pessoas inocentes.Mesmo que de agora em diante não tragamais infortúniosparaninguém,osmalesque jácausei (embora jamaisdeforma intencional) constituem paramim um fardomuito pesado. Precisomeredimirdealgumaforma.

—Como?

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—Devoestaremposiçãodesalvarahumanidade.

—Salvarahumanidade?

—Dequeoutraformapoderiarepararosdanosquecausei?George,eu insisto. Se vai anular minha maldição, substitua-a pela capacidade desalvarahumanidadeemummomentodecrise.

—Nãoseisevoupoderfazerisso.

— Tente, George. Não seja tímido. Se vai fazer um trabalho, faça-obem,éoqueeusempredigo.Pensenahumanidade,amigovelho.

— Espere um momento — disse eu, alarmado. — Você estácolocandotodaaresponsabilidadenosmeusombros!

— Claro que estou, George — disse Menander, afetuosamente. —Ombros irmes! Ombros de amigo! Feitos para suportar cargas pesadas!Vá para casa, George, e dê um jeito de me libertar da maldição. Ahumanidade lheprestariahomenagens,agradecida,sóque,naturalmente,ninguém icará sabendo, porque não pretendo contar a ninguém. Suasboasaçõesnãodeverasercorrompidaspelaperdadoanonimato.

Fiquetranquilo,amigovelho,nossosegredojamaisserárevelado!

Existe algo de maravilhoso na amizade desinteressada. Nada naTerra a ela se iguala. Levantei-me imediatamente para pôrmãos à obra;agi tão depressa que me esqueci de pagar minha parte do jantar.Felizmente, quando Menander percebeu eu já estava longe.Tive algumtrabalho para entrar em contato com Azazel e abrir o portãohiperdimensional que separa o seu mundo do nosso. Ele não pareceumuitosatisfeitoemmever.Seucorpodedoiscentímetrosdealturaestavaenvoltoemumbrilhoróseo,eelemeperguntou,emsuavozinhadefalsete:

—Nãolheocorreuqueeupodiaestarnochuveiro?

— Trata-se de uma emergência, ó Poderoso-Ser-Para-o-Qual-as-Palavras-São-Insuficientes—repliquei,comtodaahumildade.

—Entãomeconte,mas,porfavor,sejabreve.

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—Estábem!—disseeu.

Relatei-lheocasocomadmirávelconcisão.

—Hummm...— fez Azazel.—Pelomenos uma vez, vocême trouxeumproblemainteressante.

—Verdade?Querdizerqueexistemesmoessetaldeteleklutzismo?

— Existe, sim. É bastante comum emmeu mundo. As crianças sãovacinadas contra ele no primeiro ano de vida. Você sabe, a mecânicaquânticadeixabemclaroqueaspropriedadesdouniversodependem,atécertoponto, doobservador.Assim comoouniverso afeta o observador, oobservador afeta o universo. Alguns observadores afetam o universo deforma desfavorável, ou pelo menos desfavorável para outrosobservadores. Assim, umobservador pode fazer comque uma estrela setransforme em supernova, para desconforto de outros observadores queporventurahabitemumplanetaemórbitaemtornodessaestrela.

— Estou entendendo. Será que você pode tratar o meu amigoMenander e impedir que os seus efeitos de observador sejam tãodesagradáveis?

—Naturalmente!Com todaa facilidade!Vai levar sódez segundos!Depois, poderei voltar aomeu chuveiro e ao ritode laskorati, aoqualmededicareicomduassaminiadoráveis!

—Espere!Espere!issonãoserásuficiente!

—Nãodigabobagens.Duas samini sãomaisque su icientes. Sóumtaradoexigiriatrês!

— Estou falando que não será su iciente anular o telek-lutzismo.Menandertambémquerteraoportunidadedesalvararaçahumana.

Por um momento, pensei que Azazel fosse esquecer nossa antigaamizade e tudo que tenho feito por ele, oferecendo-lhe problemasestimulantes, que certamente o ajudam a exercitar a criatividade. Nãocompreendi tudoquedisse, porqueusoumuitas palavras de sua próprialíngua,masosomeradeumserrotecegoemumpregoenferrujado.

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A inal, depois de esfriar um pouco a cabeça, que assumiu um tomvermelho-claro,eledisse:

—Comopensaqueeuvoufazerisso?

—AchaqueépedirmuitodoApóstolo-da-Incredibilidade?

—Claroquesim!Mas...vamosver!—Elepensouumpoucoedepoisexplodiu:

“A inal, quem, em seu juízo perfeito, iria querer salvar a raçahumana?Queéqueouniversoganharia com isso?Vocês sãoavergonhadaGaláxia...Ora,ora,achoquedáparafazer.

Não levou dez segundos. Levoumeia hora, e umameia horamuitonervosa, com Azazel resmungando parte do tempo e o resto do tempoparandoparaimaginarseassaminiesperariamporele.

A inal, terminou,e,naturalmente, tivede ir testarosresultadoscomMenanderBlock.

AssimqueviMenander,disseparaele:

—Vocêestácurado.

Eleolhouparamimcomarhostil.

—Sabequemedeixoucomacontadojantarnaquelanoite?

—Umfatodesomenosimportância,diantedasuacura.

—Nãomesintocurado.

—Ora,deixedisso!Vamosdarumavoltajuntos.Vocêdirige.

—Otempojáestáficandonublado.Quecura!

—Dirija!Quetemosaperder?

Eletirouocarrodagaragem.Umhomemquepassavadooutroladodaruanãotropeçouemumalatadelixocheiaatéaborda.

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Chegamos ao inal da rua.O sinal não icou vermelho enquantonosaproximávamos e dois carros que freavam no cruzamento conseguirampararaumadistânciasegura.

Quandopassamospelaponte,asnuvensseabriram,eumsolquentebanhouocarro,massemofuscaromotorista.

Aochegarmosemcasa,eleestavachorandocomoumacriançaetivedeguardarocarronagaragem.Arranheideleveapintura,maspodiatersidopior.Eupodiaterarranhadomeuprópriocarro.

Na semana seguinte, ele não desgrudou de mim. A inal, eu era oúnicoquesabiaquehaviaocorridoummilagre.

Diziaparamim:

— Fui a um baile e nenhum casal tropeçou e caiu, que brando umbraço ou uma clavícula. Dancei até cansar e minha parceira não passoumaldoestômago,emborativessecomidotudoquantofoiporcaria.

Ou:

—No trabalho, instalaram um novo aparelho de ar condicionado eelenãocaiunopédeumdosoperários,deixando-oaleijado.

Oumesmo:

—Visitei um amigo no hospital, uma coisa que há alguns dias nemmepassariapela cabeça, e em todososquartosporquepasseinenhumasondasaiudaveiadeumpaciente.

Devezemquando,elemeperguntava,apreensivo:

— Tem certeza de que eu vou ter uma chance de salvar ahumanidade?

—Certezaabsoluta.Istoépartedasuacura.

Umdia,porém,eleapareceucomatestafranzida.

—Escute—disseparamim.—Acabodeiraobancoveri icaromeu

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saldo,queestáumpoucomaisbaixodoquedeviaporcausadasuamaniadedesaparecerdosrestaurantesantesqueacontachegue.Nãoconseguinada, porque o computador saiu do ar no momento em que eu entrei.Estavatodomundoatônito.Seráqueacurafoitemporária?

—É impossível! Aposto que não teve nada a ver com você. Vai verque havia outro teleklutz nas vizinhanças. Ou então o computador estavamesmoparaenguiçar,etudonãopassoudeumasimplescoincidência.

Entretanto, eu estava enganado. O computador do banco parou defuncionar nas duas ocasiões em que o meu amigo tentou veri icarnovamenteoseusaldo.(Apropósito:eramuitomesquinhodesuapartesepreocupar com as modestas quantias que eu havia deixado de pagar.)A inal, quando o computador da irma onde trabalhava enguiçou nomomento em que entrou no centro de processamento de dados, ele veiomeprocuraremestadodepânico.

—Adoençavoltou!Agoranãohámaisdúvida!Adoençavoltou!—gritavaocoitado.—Destavezeunãovouagüentar.Logoagora,queestavameacostumandoaserumapessoanormal!Não,nãopossovoltararainhavidaantiga!Prefiromematar!

—Não,não,Menander.Issoseriairlongedemais!

Ele pareceu se conter no momento em que ia dar outro grito epensounoqueeuhaviadito.

—Temrazão—concordou.—Issoseriairlongedemais.

Talvezfossemelhormatarvocê.A inaldecontas,vocênãofariafaltaaninguém,eissomefariasentirumpouquinhomelhor.

Podia compreender o seu ponto de vista,mas não podia concordarcomele.

—Espereai!—protestei.—Antesdefazerqualquercoisa,deixe-meveri icaroqueocorreu.Tenhaumpoucodepaciência,Menander.Lembre-se de que, até agora, seu azar só afetou os computadores, e quem estáligandoparaoscomputadores?

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Despedi-me rapidamente, antes que ele tivesse tempo de meperguntar como iria descobrir seu saldo bancário se os computadores serecusavam a funcionar na sua presença. Aquilo para ele estava setornandoumaideiafixa.

Azazeltambémtinhaumaideia ixa,sóquedeoutrotipo.Oquequerque andasse fazendo com as samini, a verdade é que estava dandocambalhotasquandoeucheguei.Porque,nãosei.

Não achoque tenhadesviado totalmente a atençãodas samini,masconsegui fazê-lo explicar o que havia acontecido; vi-me então diante danecessidadedeexplicartudoaMenander.

Insistiparaquenosencontrássemosnoparque.Escolhiumlocalbemmovimentado,porquetalvezprecisassedesocorroimediatosemeuamigoperdesse a cabeça {em sentido igurado) e tentasse me fazer perder aminha(nosentidoliteral).

Disseparaele:

— Menander, seu teleklutzismo ainda está ativo, mas apenas paracomputadores.Vocêtemaminhapalavra.Vocêestácuradoparatodososoutrosseresanimadoseinanimados...eissoéirreversível!

—Poisentão,cure-metambémparaoscomputadores!

—Acontece,Menander,que issoé impossível.Vocênãoestácuradoparaoscomputadores...eissoéirreversível.

Faleiaúltimapalavracomoumsussurro,maselemeouviu.

—Porquê?Quetipodecabeçademinhocaévocê?

—Vocêfazsoarcomosehouvessemaisdeumtipo,Menander,oquenão faz sentido. Não compreende que você queria salvar o mundo, e foiissoqueaconteceu?

—Não, não compreendo. Explique-me, com toda a calma. Você temquinzesegundos.

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— Seja razoável! A humanidade está passando pela revolução dainformática. Os computadores tornam-se a cada dia mais versáteis, maiscapazes,maisinteligentes.Ossereshumanosdependemcadavezmaisdoscomputadores.Qualquerdiadesses,seráconstruídoumcomputadorcapazde governar o mundo, que deixará a humanidade sem nada para fazer.Talvez até decida eliminar os seres humanos, como uma raçadesnecessária. Podemos iludir-nos pensando que sempre nos restará orecursode“puxaro iodatomada”,masvocêsabemuitobemqueissonãoserá possível. Um computador su icientemente esperto para governar omundo seria perfeitamente capaz de defender seu próprio io dealimentaçãoe,porquenão,degerarsuaprópriaeletricidade.

“Ele seria imbatível, e a humanidade estaria condenada. E aí, meucaro amigo, é que você entra em cena. Você chega perto desse soberanodos computadores {talvez uma distância de um ou dois quilômetros sejasu iciente), e zás! Ele sofre uma pane fatal! A humanidade será salva! Ahumanidadeserásalva!Pensenisso!

Menanderpensou.Elenãopareciamuitosatisfeito.Disseparamim:

— Mas até que isso aconteça, não posso me aproximar doscomputadores.

— Ora, tivemos de tornar permanente o klutzismo computadorialpara ter certeza de que ele funcionaria na ocasião apropriada; que o reidos computadores não teria nenhuma defesa contra você. É o preço quevocê tem de pagar por esse grande dom, que você mesmo pediu e peloqualtodaahumanidadelheserágratapormuitosemuitosséculos.

—Ah,é?Equandotereiaoportunidadedeusaressemeudomparasalvarahumanidade?

— De acordo com Azaz... de acordo com os meus cálculos, issoocorrerádaqui a uns sessenta anos. Encare as coisas dessa forma: agoravocêsabequeviveránomínimonoventaanos.

—E nesse intervalo—disseMenander, falandomuito alto, sem seimportarcomaspessoasqueparavamparaolharparanós—omundovaiicarcadavezmaisinformatizado,eeutereidedeixardefrequentarmaisemaislugares.Acabareicomoumeremita...

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—Masnofinalvocêsalvaráahumanidade!ÉissoqueVocêqueria!

— Para o inferno com a humanidade! — gritou Menander,avançandoparamim.

Só consegui escapar porque as pessoas que estavam assistindo àdiscussãoseguraramopobrecoitado.

Hoje em dia, Menander está sendo analisado por um psiquiatrafreudiano dos mais famosos. Certamente vai custar-lhe uma fortuna e,certamente,nãovairesolvercoisaalguma.

Depois de terminar sua história, George olhou para o copo decerveja,peloqualeusabiaqueteriadepagar.Eledisse:

—Essahistóriatemumamoral,sabe?

—Qualé?

—Nãohágratidãonestemundo!

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UmaQuestãodePrincípios

George olhou tristemente para o seu copo, que continha o meudrinque(nosentidodequeeucertamentepagariaporele)edisse:

—Hojesouumhomempobreapenasporumaquestãodeprincípios.—Puxouumprofundosuspirodaregiãodoumbigoeacrescentou:—Aofalar em “princípios” devo, naturalmente, pedir desculpas por usar umapalavra comaqual vocênãoestá familiarizado, excetona acepçãovulgarde início de alguma coisa. Mas a verdade é que sou um homem deprincípios.

—Émesmo?—disseeu.—SuponhoqueAzazeltenhalheconcedidoesse traço de caráter há poucos minutos, já que até hoje, pelo que sei,nuncaoexibiunapresençadeninguém.

George olhou para mim com ar ofendido. Azazel é um demônio dedoiscentímetrosquepossuipoderesmágicosespantosos.Georgeéaúnicapessoacapazdeconjurá-lo.Eledisse:

—NãoconsigoimaginarondefoiquevocêouviufalardeAzazel.

—Éumcompletomistérioparamim, também.Oumelhor, seriaummistério,sevocênãofalasseneleotempotodo.

— Não seja ridículo! — protestou George. — Jamais mencionei onomedeAzazelemnossasconversas!

Gottlieb Jones [disseGeorge] era tambémumhomemdeprincípios.Você poderia considerar isso impossível, tendo em vista sua pro issão depublicitário,maseleconseguiasemanteracimadasmazelasdoo íciocomum admirável jogo de cintura. Um dia, enquanto comíamos umhambúrguercombatatasfritas,elemedisse:

— George, é impossível descrever com palavras o horror que é omeu trabalho, ou o desespero que sinto ao buscarmaneiras persuasivasdevenderprodutosque,emminhaopinião,nemdeveriamexistir!Ontem

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mesmo, tive de ajudar a vender uma nova variedade de repelente deinsetosque,nostestes,atraiumosquitosemumraiodeváriosquilômetros.“Seosinsetosoincomodam”,dizmeuslogan,“useAfastex.”

—Afastex?—repeti,arrepiado.

Gottliebcobriuosolhoscomumadasmãos.Tenhocertezaqueusariaasduas,senãoestivessecolocandobatatasfritasnabocacomaoutra.

—Tenhodeconvivercomestavergonha,George.Maiscedooumaistarde,sereiforçadoapedirdemissão.Esteempregoviolameusprincípiosde ética comercial e de honestidade literária, e você sabe que sou umhomemdeprincípios.

Observei,dedicadamente:

— Por outro lado, meu amigo, esse emprego lhe rende trinta mildólaresporano,evocêtemumaesposalindaejovemparasustentar,alémdeumfilhopequeno.

—Dinheiro!—exclamouGottlieb,comviolência.—Lixo!Ovilmetalpelo qual o homem é capaz de vender a sua alma! Repudio o dinheiro,George; afasto-odemimcomoumapraga;nãoquero ternadaa ver comele.

—MasGottlieb,vocênãoestáfazendonadadisso!Recebeseusalárionofimdomês,certo?

Devo admitir que, por um momento de apreensão, pensei em umGottlieb sem vintém e no número de almoços que sua virtude tornariaimpossívelpagarparanósdois.

— Sim, sim, é verdade. Marilyn, minha querida esposa, tem oembaraçosohábitodemencionarsuamesadaparaascomprasdomésticasem conversas de cunho eminentemente intelectual, para não falar dasvezesemqueserefere,comoqueporacaso,àsdívidasquelevianamentecontraiu em supermercados e butiques. Tudo isso interfere nos meusplanosdeação.QuantoaGottliebJr.,queestáparafazerseismeses,aindanão estápreparadopara compreenderqueodinheironão temnenhumaimportância.Embora,parafazer-lhejustiça,eutenhadeadmitirquejamais

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mepediuumempréstimo.

Suspirou, e suspirei com ele. Sei perfeitamente que as esposas efilhosmenoresnãotêmomenorespíritodecooperaçãonoquedizrespeitoàs inanças familiares, e esta é a razão principal pela qual permaneçosolteiro até hoje, apesar da perseguição insistente de lindas mulheres,atraídaspormeusencantosnaturais.

Gottlieb Jones interrompeu involuntariamente minhas agradáveisdivagações,perguntando:

—Vocêsabequalémeumaiordesejo,George?

Disse issocomumbrilho tão lúbriconosolhosque iqueiassustado,achando que de alguma forma conseguira ler meus pensamentos. Paraminhasurpresa,porém,acrescentou:

—Meumaiordesejoéserumromancista,descrevercomdetalhesasprofundezas da alma, revelar aos meus leitores extasiados a gloriosacomplexidade de condição humana, inscrever meu nome em grandesletras indeléveis na literatura clássica e marchar para a eternidade nacompanhiadehomensemulherescomoEsquilo,ShakespeareeEllison.

Tínhamos terminado a refeição e eu esperava, nervoso, pela conta,aguardando omomento conveniente para distrair-me com outra coisa. Ogarçom, depois de nos observar com a aguda percepção resultante demuitosanosdeprática,entregou-aaGottlieb.

Respirei,aliviado,edisse:

—Pense,meucaroGottlieb,nasconsequênciasdesagradáveisqueseseguiriam.Lirecentemente,numjornalconceituadoqueumpassageirodeônibusmantinhaaberto,queexistem35milescritoresnosEstadosUnidoscompelomenosumromancepublicado,dosquais apenas700ganhamavida como escritores; desses, não mais que 50, repare bem, são ricos.Comparadocomisso,seusalárioatual...

—Queimportaisso?-—exclamouGottlieb.—Nãoestouinteressadoem ganhar dinheiro, e sim em conquistar a imortalidade e presentear asfuturas gerações com um tesouro literário de valor incalculável. Poderia

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suportarcomfacilidadeodesconfortodepermitirqueMarilyntrabalhassecomogarçonete,motoristadeônibusouqualqueroutracoisaacessívelaosseusmodestos dotes intelectuais. Tenho certeza de que consideraria umprivilégio trabalhar de dia e cuidar de Gottheb Jr. à noite, enquanto euestariadedicadoàcriaçãodeminhasobras-primas.Sóque...—Elefezumapausa.

—Sóque...—repeti,encorajando-o.

—Nãoseibemporque,George—disse,comumtraçodepetulâncianavoz—,masháumpequenoobstáculonocaminho.Faltaalgumacoisa.Meu cérebro está sempre fervilhando de ideias. Cenários, trechos dediálogos,situaçõesdegrandeimpactodramáticosemisturamotempotodonaminhamente. É apenas a questão secundária de colocar tudo isso nopapel que parece me escapar. Deve ser um problema de somenosimportância,jáquequalquerescribaincompetente,comoaqueleseuamigoque tem um nome esquisito, parece não ter di iculdade para produzirlivrosàscentenas.Mesmoassim,éumproblemareal.

(Certamente ele estava se referindo a você,meu caro amigo, já queas palavras “escriba incompetente” lhe caem como uma luva. Senti-metentadoadizeralgumaspalavrasemsuadefesa,masdepoismedeicontadequeseriaumatarefainglória.)

—Vaiver—observei—vocênãoseesforçouobastante.

—Achaquenão?Tenhocentenasdefolhasdepapel,cadaumacomoprimeiro parágrafo de um romancemaravilhoso. O primeiro parágrafo,nadamais.Centenasdeprimeirosparágrafosparacentenasderomances.Énosegundoparágrafoqueeusempreempaco.4

Umaideiabrilhantemeveioàmente,masnãomesurpreendi.Estousempretendoideiasbrilhantes.

— Gottlieb — disse-lhe —, posso resolver o seu problema. Possotorná-loumgrandeescritor.Possofazercomque iquerico.Eleolhouparamimcomumaexpressãodedescrença.

— Você pode? — perguntou, com uma ênfase quase ofensiva nopronome.

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Àquela altura já estávamos saindo do restaurante. Observei queGottlieb se esquecera de deixar uma gorjeta para o garçom, mas meabstivedemencionarofato, jáquemeuamigopoderiasugerirqueeumeencarregassedadesagradáveltarefa.

— Meu amigo, tenho o segredo do segundo parágrafo, e portantopossotorná-loricoefamoso!

—Hum!Qualéosegredo?

Com toda a delicadeza (e é aqui que chegamos à minha brilhanteideia),eulhedisse:

—Gottlieb,todotrabalhotemseupreço.

Gottliebdeuumarisada.

— Minha con iança em você é tão grande, George, que não tenhomedo de jurar que seme tornar um escritor rico e famoso, você poderáicar commetade do que eu ganhar, depois de descontadas as despesas,naturalmente.

Commaisdelicadezaainda,fuiemfrente:

— Sei que é um homem de princípios, Gottlieb, de modo que suapalavravalemaisparamimquequalquercontrato,massódebrincadeira(ah,ah!),estariadispostoaescreverissonumpapel,assinarembaixoe(sópara tornar a brincadeira ainda mais engraçada, ah, ah!) registrar emcartório?

Podemosficarcomumacópiacadaum.

A pequena transação tomou apenas meia hora do nosso tempo, jáquerecorremosaumtabeliãoquetambémeradatilógrafoemeuamigodelongadata.

Guardeinacarteiraumacópiadopreciosodocumentoedisse;

—Nãopossofornecer-lheimediatamenteosegredo,mas,assimqueestiver tudo arranjado, terá notícias minhas. Poderá então começar um

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romance e não terá nenhum problema para escrever o segundoparágrafo... nemomilésimo segundo.Naturalmente, nãome deverá coisaalgumaatécomeçaremaentrarosprimeirospagamentos.

—Claroquenão!—exclamouGottlieb,emtomirritado.

Naquelamesmanoite,dediquei-meaoritualdecostumeparachamarAzazel. Azazel é apenas o nome que inventei para ele, pois me recuso ausaroqueeleusaparasereferirasipróprio.Essenome,escritonopapel,édezvezesmaiorqueodono.

Azazel tem apenas dois centímetros de altura e é uma pessoa semnenhum destaque em seu próprio mundo. Esta é a única razão por queestásempredispostoameajudar;issoofazsentir-seimportante.

Naturalmente, jamais conseguirei persuadi-lo a fazer alguma coisaque contribua, de forma direta, para me tornar uma pessoa rica. Acriaturinhainsisteemdizerqueissoseriaumacomercializaçãoinaceitávelde sua arte. E não parece acreditar quando lhe asseguro que tudo quefizerpormimseráusado,deformatotalmentedesprendida,paraobemdahumanidade. A primeira vez que lhe iz essa declaração, emitiu ura somestranho,cujosigni icadomeescapou,equea irmouhaveraprendidocomummoradordoBronx.

Foi por esse motivo que não lhe revelei a natureza do acordo queirmaracomGottliebJones.NãoseriaAzazelqueiriametornarmilionário.Na verdade, Gottlieb se encarregaria disso, depois que Azazel o tornasserico.Maseu teriaum trabalhodosdiabospara fazeropequenodemôniocompreenderadiferença.

Azazel,comosempre, icouirritadocomainterrupção.Suacabecinhaestava ornamentada com o que pareciam ser pequenasmechas de algasmarinhas. Ele me explicou, de forma um tanto incoerente, que eu ochamarabemnomeiodeuma cerimôniauniversitária, naqual receberiaalgumtipodediploma.Sendo,comojáexpliquei,umapessoasemnenhumdestaque no seu planeta natal, tem a tendência a dar importânciaexcessiva a esse tipo de cerimônia. Assim, sua primeira reação foi deextremodesagrado.

Procureiconsolá-lo.

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—Ora,vocêpodeatenderaomeupedido,umacoisamuitosimples,eretornaraoexatomomentoemquepartiudelá.

Ninguémvainotarqueesteveausente.

Eleresmungouumpouco,mastevequeadmitirqueeuestavacerto,demodoqueoaremtornodoseucorpoparoudeestalarcompequenosrelâmpagos.

—Oquevocêquer,afinal?—perguntou.

Expliqueiaele.

—Apro issãodessehomemnãoé comunicar ideias?—quis saberAzazel.—Não é transformar ideias em palavras, como aquele seu outroamigoquetemumnomeesquisito?

—É verdade.Mas ele gostaria de fazer isso commaior e iciência ebeleza, demodo a se tornarmundialmente famoso... e rico, também,masdeseja a riqueza apenas como prova palpável do seu talento, já que, porprincípio,abominaodinheiro.

— Compreendo. Temos artesãos da palavra no nosso mundo,também,e todosestão interessadosapenasnoaplausodopúblico; jamaisconcordariam com uma remuneração inanceira, se não a considerassemindispensávelcomoprovapalpáveldeseustalentos.

Concordeicomumsorriso.

—Uma fraquezadapro issão. Felizmente, eue vocêestamosacimadessascoisas.

— Bem— disse Azazel—, não posso icar aqui parado o resto doano, ou terei di iculdade para localizar a hora exata em que devo voltarpara a cerimônia. Esse seu amigo está dentro do raio de ação dosmeuspoderesmentais?

Tivemostrabalhoparaencontrá-lo,mesmodepoisqueeulhemostreinomapaonde icavasua irmadepublicidadeelheforneciumadescriçãoprecisa e eloquentedomeu amigo,masnãoquero cansá-lo comdetalhes

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irrelevantes.

A inal, Gottlieb foi encontrado. Depois de um breve exame, Azazeldeclarou:

— Um tipo de mente relativamente comum entre os seres da suadesagradável espécie. Viscosa, porém quebradiça. Examinei o circuito deformaçãodepalavrasedescobriqueestácheiodenóseobstruções.Nãoadmiraqueencontredi iculdadesparaescrever.Nãoserádi ícil removeros obstáculos principais,mas isto poderá comprometer a estabilidade damentecomoumtodo.Achoquenãohaveránenhumdano,seeuagircomcautela,masexistesempreoperigodeumacidente.Achaqueeleestariadispostoacorrerorisco?

—Oh, claro que sim!exclamei.—Eledaria tudopara ser famosoeservir ao mundo através de sua arte. Claro que aceitaria o risco sempestanejar.

—Está certo,mas, pelo quemedisse, vocês dois sãomuito amigos.Talvez ele esteja cego pela ambição e pelo desejo de servir ao próximo,masvocêestáemcondiçõesdeavaliara situaçãode formamais racional.Estádispostoapermitirqueelecorraorisco?

— Meuúnico objetivo— declarei— é torná-lo feliz. Vá em frente,façao trabalho,e se tudodererrado...bem, terásidoporumaboacausa.— (Claro que era por uma boa causa, já que, se as coisas dessem certo,metadedoslucrosiriapararnomeubolso.)

Foi assim que izemos nossa boa ação. Como de hábito, Azazelprocurouvalorizaraomáximooseutrabalho,e icoualiparado,ofegante,resmungandoalgumacoisaarespeitodepedidospoucorazoáveis,maseulhe disse para pensar na felicidade que estava levando a milhões depessoas e o exortei a evitar o feio vício da autopromoção. Inspirado porminhas palavras edi icantes, despediu-se de mim para voltar à talcerimôniadequeestavaparticipando.

Uma semana depois, fui procurar Gottlieb Jones. Não tinha feitonenhum esforço para vê-lo mais cedo porque achei que precisaria dealgum tempoparaacostumar-seao seunovo cérebro.Alémdisso,preferiesperaresaberarespeitodeleporoutraspessoas,paraversesuamente

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havia sido dani icada no processo. Caso isso houvesse ocorrido, preferianãotornaravê-lo.Minhaperda(eadeletambém,suponho)tornarianossoencontrodemasiadamentetraumático.

Nãoouvidizerqueestivessefazendonenhumasandice,ecertamenteelemepareceuperfeitamentenormalquandoovisaindodoedi ícioondetrabalhava.Noteilogoseuarmelancólico.Nãoligueimuitoparaisso,jáqueosescritores, comoédeconhecimentogeral, sãomuito sujeitosaataquesde melancolia. Tem alguma coisa a ver com a pro issão, acredito. Talvezsejaoconvívioconstantecomoseditores.

—Olá,George—disseele,apático.

— Gottlieb! Como é bom ver você! Estámais bonito do que nunca!(Naverdade,comotodososescritores,eleéfeiocomoapraga,mastemosdesereducados.)—Tentouescreveralgumromanceultimamente?

— Não, não tentei. — Depois, como se tivesse se lembrado derepente de nossa última conversa, acrescentou:— Por quê? Já podemeensinarosegredodecomopassarpelosegundoparágrafo?

Fiquei exultante por ele ter se lembrado; ali estava outra prova dequeseucérebrocontinuavaintacto.

—Masjáestátudofeito,meucaroamigo.—Nãoprecisavaexplicar-lhetodososdetalhes;adiscriçãoéumadasminhasvirtudes.—Tudoquetem a fazer é ir para casa, colocar o papel na máquina e começar aescrever. Seus problemas terminaram. Escreva dois capítulos e umasinopsedoresto.Estoucertodequequalquereditoraquemvocêmostraraobradarágritosdealegriaelheofereceráumpolpudocheque,doqualametadeserámerecidamentesua!

—Hum!—fezGottlieb,comardedúvida.

—Con ieemmim—disseeu,levandoamãodireitaaocoração,que,como você sabe, é su icientemente grande, em sentido igurado, paraocupar toda a minha cavidade torácica. — Na verdade, acho que deviapedirdemissão imediatamentedeste seuodiosoemprego,demodoanãocontaminar as joias que a qualquer momento começarão a sair da suamáquina de escrever. Experimente uma vez, Gottlieb, e verá que o que

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estoudizendoéamaispuraverdade!

—Querqueeupeçademissãodomeuemprego?

—Exatamente.

—Impossível!

— Impossível por quê? Dê as costas a essa pro issão ignóbil.Abandoneparasempreatristetarefadeenganaropúblico.

— Estou lhe dizendo que não posso pedir demissão. Acabo de serdemitido.

—Demitido?

— Isso mesmo. E com expressões de desagrado que jamais hei deperdoar.

Caminhamosemdireçãoàlanchoneteondecostumávamosalmoçar.

—Queaconteceu?—perguntei.

Ele me contou, sem pressa, enquanto saboreávamos um sanduíchedemortadela.

—Estava revendoo anúnciodeumdesodorante emedei contadequeo texto era fraco, contido.Nósnos limitávamos timidamente a usar apalavra “odor”. De repente, senti vontade de dar asas à imaginação. Seestávamos declarando guerra ao mau cheiro, por que não dizer issoclaramente?Por isso, coloquei,noaltodoanúncio: “Abaixoobodum!”.Noinal, escrevi, em letras bem grandes: “Inhaca, nunca mais!”. Depois,mandei um fax do anúncio para o cliente, sem me dar o trabalho deconsultarninguém.

“Depoisdemandarofax,porém,pensei:“Porquenão?”eenvieiumacópia para o meu chefe, que imediatamente teve um ataque apoplético.Mandou me chamar e disse que eu estava despedido, usando algunstermosque, tenho certeza, não aprendeu coma senhora suamãe... a nãoser que ela fosse uma depravada. De modo que aqui estou eu,

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desempregado.

Olhouparamimcomarhostil.

—Suponhoquevaimedizerque é o responsável pela situação emquemeencontro.

—Claro que sou. Você fez o que, inconscientemente, sabia que eramelhor para você. Deu um jeito de ser demitido e poder dedicar-seintegralmente à verdadeira arte. Gottlieb,meu amigo, vá para casa agoramesmo. Escreva o seu romance e peça no mínimo cem mil dólaresadiantados.Comonãoterápraticamentedespesaalguma,anãoseralgunscentavosdepapel,poderáficarcomcinquentamildólares!

—Vocêestálouco—disseGottlieb.

—Tenhoconfiançaemvocê.Paraprovarisso,pagooalmoço.

— Você está louco— repetiu meu amigo, admirado, e foi embora,deixando-me com a conta na mão, sem perceber que eu estava apenasusandoumartifícioderetórica.

Telefonei para ele na noite seguinte. Normalmente, teria esperadomais tempo. Não queria pressioná-lo. Entretanto, a coisa se transformaraem um investimento inanceiro. O almoço me custara onze dólares, semcontaragorjetade25cents,demodoqueeuestavaimpaciente.

—Gottlieb—disse-lheeu—,comovaioromance?

—Muito bem— respondeu, distraidamente.—Nenhumproblema.Jáescrevivintepáginaseestoumuitosatisfeitocomoresultado.

Disse isso com ar ausente, como se estivesse pensando em outracoisa.

—Porquenãoestápulandodealegria?—perguntei.

— Por causa do romance? Não seja tolo. Recebi um telefonema deFeinberg,SaltzbergeRosenberg.

—Dosseuspatrões...seusex-patrões?

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— Isso mesmo- Na verdade, falei apenas com um dos donos, o Sr.Feinberg.Elemequerdevolta.

—Tenhocerteza,Gottlieb,dequedisseparaeleque jamaisvoltaráa...

Gottliebmeinterrompeu.

— Parece que o fabricante do desodorante adorou omeu anúncio.Resolveucon iarà irmaumagrandecampanhadepublicidadena tevêenos jornais, contanto que fosse comandadapela pessoa que havia escritoaqueleprimeiroanúncio.Afirmouqueeuhaviausadoumalinguagemclarae ousada, perfeitamente de acordo com o espírito dos anos 90. Estavainteressadoemoutrosanúnciosnomesmoestilo,eparaissoprecisavademim.Naturalmente,eudisseaoSr.Feinbergqueiriapensar.

—Estácometendoumerro,Gottlieb.

— Acho quemereço um bom aumento. Nãome esqueci das coisascruéis que Feinberg disse quandome pôs para fora... algumas delas emiídiche.

—Odinheiroélixo,Gottlieb.

— Claro que é, George, mas quero ver quanto lixo eles estãodispostosamepagar.

Eu não estava muito preocupado. Sabia que escrever anúncios eraum trabalho grosseiro demais para a alma sensível domeu amigo e queembreve icariafascinadocomseusnovosdonsliterários.Bastavaesperarqueanaturezaseguisseseucurso.

Acontecequeosanúnciosdodesodoranteapareceramnosmeiosdecomunicação e conquistaram imediatamente o público. “Abaixo o bodum”setornouimediatamenteolemadosjovensedosvelhos,oquecontribuiuenormementeparaapopularidadedoproduto.

Você talvez se lembre dessamoda... pensandomelhor, claro que selembra, pois ouvi dizer que as revistas nas quais você tenta publicar ashistóriasqueescrevepassaramausarafrasenascartasderecusa.

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Outros anúnciosdomesmo tipo foramveiculados e tiveramsucessoinstantâneo.

Derepente,compreendioqueestavaacontecendo.Azazelmodi icaraa mente de Gottlieb para que meu amigo escrevesse de uma formaagradávelaopúblico,mas,sendopequenoeinsigni icante,foraincapazdeexecutar o ajuste ino que tornaria o novo dom aplicável apenas aromances.TalvezAzazelnemsoubesseoqueeraumromance.

Ora,quediferençafazia?

Não posso dizer que Gottlieb tenha icado radiante quando chegouemcasaemeencontrounaporta,àsuaespera,massesentiunaobrigaçãodemeconvidarparaentrar.Naverdade,foicomumacertasatisfaçãoquepercebi que ele também se sentia obrigado ame convidar para o jantar,emboratenhatentado(deliberadamente,pensoeu)estragaromeuprazerfazendo-mesegurarGottlieb Jr.nocoloporumperíodode tempoquemepareceuinterminável.Foiumaexperiênciaterrível.

Maistarde,quandoestávamossozinhosnasaladejantar,eudisse:

—Afinal,quantolixovocêestáganhando,Gottheb?

Elemeolhoucomarreprovador.

—Nãochameissodelixo,George.Éfaltaderespeito.

Trintamilporanopodeserlixo,mascemmilporano,foraosextras,constituemumarendarespeitável.

“Alémdisso,embrevepretendo fundarminhaprópriacompanhiaemetornarummultimilionário.Nessenível,dinheiroésinônimodevirtude...oudepoder,oquedánomesmo,éclaro.Comomeupoder,porexemplo,podereilevarFeinbergàfalência.Issooensinaráanãosedirigiramimemtermosqueumcavalheirojamaisusariaaosereferiraoutrocavalheiro.Apropósito:sabeoquequerdizer“schmendrick”,George?

Eu não sabia. Considero-me um poliglota,mas uma das línguas quenãoconheçoéourdu.

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—Querdizerquevocêficourico.

—Epretendoficarmuitomaisainda.

—Nesse caso, Gottlieb, permita-me observar que isso só aconteceudepois que concordei em torná-lo rico, ocasião em que você tambémmeprometeumetadedoslucros.

Gottliebfranziuatesta.

—Foi?Foimesmo?

— Claro que sim! Admito que acordos desse tipo são fáceis deesquecer, mas, felizmente, colocamos tudo no papel e registramos emcartório.Porcoincidência,tenhonobolsoumacópiadocontrato.

—Ah!Possovê-la?

— Pode, mas é bom que saiba que se trata apenas de uma cópiaxerox, demodo que se por acaso, na pressa de examinar o papel, ele serasgaremmilpedaços,ooriginalcontinuarácomigo.

— Uma sábia providência, George, mas não tenha medo. Se o queestámedizendo forverdade, receberáatéoúltimocentavodasuaparte.Afinal,souounãoumhomemdeprincípios?

Entreguei-lheacópia,eeleaexaminouatentamente.

—Ah,sim—disseele—,estoumelembrando.Éclaro.

Sóqueháumpequenodetalhe.

—Qual?

—Ora,estecontratofaladosmeuslucroscomoromancista.Nãosouumromancista,George.

— Você tinha vontade de ser. Lembra-se? E agora está equipadoparaisso!Bastasentar-seatrásdeumamáquinadeescreverecomeçaratrabalhar!

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—Minhavontadepassou,George.Nãopretendomesentaratrásdeumamáquinadeescrever.

— Acontece que os grandes romances o tornariam imortal. O quevocêganhaescrevendoessesslogansidiotas?

—Pilhas e pilhas de dinheiro, George.Mais uma grande irma queserá todaminha e na qual empregareimuitos escritoresmiseráveis, quedependerão de mim para sobreviver. Acha que Tolstoi teve tanto? AchaquedeiReytemtanto?

Eusimplesmentenãopodiaacreditar.

—Querdizerque,depoisde tudooque izporvocê, vaimedeixarchupando o dedo, apenas por causa de uma única palavra no nossocontrato?

—Talvezvocêestejadesperdiçandooseutalento,George,porqueeupróprio não poderia descrever a situação de formamais clara e sucinta.Meusprincípiosmeobrigamaseguirocontratoaopéda letra.Comoestáfartodesaber,souumhomemdeprincípios.

Dessaposiçãonãoarredou,epercebiqueseriainútiltrazeràbailaaquestãodosonzedólaresquehaviagastonaquelealmoço.

Issoparanão falarda gorjetade25 cents,George se levantou e foiembora.Fezissoemtalestadodedesesperohistriônicoquenãotivecomolhepedirquepagasseprimeirosuapartenasbebidas.Pediacontaenoteiqueototalregistrava22dólares.

Admirei a precisão matemática do meu amigo, que conseguira sereembolsar da quantia exata perdida para o publicitário, e me sentiobrigadoadeixarumagorjetademeiodólar.

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OsMalesdaBebida

— Os males que a bebida causa— disse George, com um suspiropesadamentealcoólico—sãodifíceisdeavaliar.

—Nãoseriam,sevocêestivessesóbrio—observei.

Seusolhosazuismefixaramcomummistodecensuraeindignação.

—Estáinsinuandoquenãoestousóbrionomomento?

—Vocênãoestásóbriodesdequenasceu.—Percebendoquehaviacometido uma grande injustiça, apressei-me a corrigir:— Você não estásóbriodesdeodiaemquefoidesmamado.

—Imagino—disseGeorge—queestasejaumadassuastentativasfrustradasdefazergraça.

Levou distraidamente o meu copo aos lábios, bebeu um gole ecolocou-odenovonamesa,massemlargá-lo.

Deixei icar.TirarumdrinquedeGeorgeécomotentararrancarumossodeumbuldoguefaminto.

— Quando iz o comentário, estava pensando em uma jovem porquem me interesso como se fosse uma sobrinha. O nome dela é IshtarMistik—disseele.

—Éumnomebastanteexótico—observei.

— Mas muito apropriado, pois Ishtar é a deusa do amor dosbabilônios,eIshtarMistikeraumaverdadeiradeusadoamor...pelomenospotencialmente.

Ishtar Mistik [disse George] era uma mulher que, sem nenhumexagero, podia ser chamada de adorável. O rosto era bonito no sentidoclássico,comtodosostraçosperfeitos,coroadoporumaauréoladecabelosdouradostão inosecintilantesquepareciampossuirluzprópria.Ocorpo

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só podia ser descrito como afrodisíaco. Era ondulante e bem-feito, umacombinaçãodefirmezaeflexibilidade,cobertoporumapeledeveludo.

Você, que tem umamente suja, deve estar imaginando como é queposso falar com tantosdetalhes a respeitodos seusdotes ísicos,mas lheasseguro que se trata de uma avaliação a distância, que me julgoautorizadoafazer,dadaminhagrandeexperiêncianessesassuntos,enãode uma observação direta. Totalmente vestida, Ishtar daria uma melhorpáginacentralderevistamasculinaquequalquerdessasbeldadesquenãodeixamnadaparaa imaginação.Cintura ina, seios fartos,braçosesguios,movimentosgraciosos.

Emboraninguémfosseser indelicadoapontodeexigirmaisdoqueperfeição ísicadeumajoiararacomoIshtar,averdadeéqueelatambémpossuía umamente privilegiada. Completara os estudos na UniversidadedeColumbiacomummagnacumlaudae...sebemqueseriadi ícilimaginarque um professor, ao atribuir uma nota a Ishtar Mistik, não se sentissetentado a garantir-lhe o bene ício da dúvida. Sabendo que você é umprofessor,meucaroamigo(edigoissosemnenhumaintençãodeferir-lheossentimentos),nãopossotermuitaconfiançanaprofissãoemgeral.

Qualquerumpensariaque,comtodosessesatributosnaturais,Ishtarviveria cercada de homens, entre os quais poderia selecionar uma novalevaacadadia.Naverdade, jámehaviapassadopelacabeçaque, seporacasome escolhesse, faria tudo para corresponder ao desa io,mas, paraserfranco,jamaistivecoragemdetomarainiciativa.

Porquese Ishtar tinhaum levedefeito,eraodesergrandedemais.Tinha quase um metro e oitenta e cinco e uma voz que, quando estavaentusiasmada, soava como um toque de clarim. Unia vez, quando umsujeitoatécorpulentoquistomarcertas liberdadescomela, levantou-odochão e jogou-o do outro lado da rua, de cara num poste. Ele passou seismesesnohospital.

Havia, portanto, uma certa relutância por parte da populaçãomasculinaemseaproximardela,mesmoqueda formamaisrespeitosa.Odesejo quase irrefreável de fazê-lo era temperado pela ideia do quepoderiaocorrer caso ela interpretassemal o gesto.Eumesmo,que, comovocê sabe, sou corajoso como um leão, não podia deixar de pensar na

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possibilidadedealgunsossosquebrados.

Ishtar compreendia a situação e se queixava amargamente comigo.Lembro-me de uma ocasião. Era um dia lindo, no inal da primavera, eestávamos sentados em um banco do Central Park. Foi nesse dia, tenhocerteza, que nada menos que três corredores deixaram de fazer umacurva para olhar para Ishtar e acabaram batendo com a testa numaárvore.

— Acho que vou morrer virgem — queixou-se, com os lábiosdeliciosos fazendo beicinho. — Nenhum homem se interessa por mim.Nenhum.Ejávoufazervinteecincoanos.

— Precisa compreender, minha... minha querida — disse eu,inclinando-mecautelosamenteparadar-lheumtapinhanascostasdamão—, que os rapazes se impressionam com a sua perfeição ísica e não sejulgammerecedoresdoseuamor.

— Isso é ridículo! — exclamou, com tanta veemência que váriospassantes olharamna nossa direção.—O que está tentando dizer é queeles morrem de medo de mim. Há alguma coisa no modo como essesinfelizes olhamparamimquando somos apresentados e esfregamosnósdosdedosdepoisquenoscumprimentamosquemedizqueseguramentenadavaiacontecer.Elesse limitamamurmurar“Prazeremconhecê-la”eseafastamnaprimeiraoportunidade!

— Você precisa encorajá-los, Ishtar, querida. Precisa considerar ohomem como uma frágil lorzinha, que só pode desabrochar no calor doseu sorriso. Deve deixar transparecer de alguma forma que aceitará debomgradoassuasinvestidas,emvezdelevantá-lospelagoladacamisaebatercomacabeçadelesnaparede.

—Nunca izisso!—exclamouIshtar,emtomindignado.—Ou,se iz,foi apenas algumas vezes. Como quer que eu demonstre que estoureceptiva?Eusorrioedigo“Comovai?”,esempredigo“Quedialindoestáfazendo”,mesmoquandoodianãoestátãobonitoassim.

— Isso não basta, minha querida. Precisa pegar o braço de umhomemeintroduzi-losuavementedebaixodoseu.Devebeliscarafacedeum homem, acariciar-lhe os cabelos, mordiscar os seus dedos. Pequenas

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coisas como essas servem para indicar um certo interesse, uma certadisposição de sua parte para passar à fase dos abraços e beijos. Ishtarpareciahorrorizada.

—Nãopossofazerisso.Simplesmentenãoposso.Tiveumaeducaçãomuitorígida.Éimpossívelparamimmecomportardeumaformaquenãoseja amais correta.Ohomeméquedeve tomar a iniciativa.Amim, caberesistir,resistirsempre.Foioqueminhamãesempremeensinou.

—Ishtar,façaissoquandosuamãenãoestiverolhando.

— Não posso. Sou muito... muito inibida. Por que os homenssimplesmentenãoseaproximamdemim?

Ela corou com algum pensamento que deve ter passado pela suacabeça quando estava dizendo essas palavras e levou ao peito a mãogrande mas muito bem torneada. (Confesso a você que senti invejadaquelamão.)

Achoquefoiapalavra“inibida”quemedeuaideia.Disseparaela:

—Ishtar,minha ilha,jáseioquefazer.Vocêdevecomeçaraingerirbebidasalcoólicas.Existemalgumasbastantesaborosas.Seconvidasseumrapazpara tomar comvocê algunsmartínis, daiquiris, coisas assim, veriaquesuasinibiçõesdesapareceriamcomoqueporencanto,juntamentecomasdoseuparceiro.Eleteriaaousadiadelhefazerpropostasquenenhumcavalheiro faria a uma dama e você teria a ousadia de começar a rir epropor que visitassemummotel das vizinhanças, onde suamãe jamais aencontraria.

Ishtarsuspirouedisse:

—Seriaótimo,sefossepossível.Masnãodariacerto.

—Claroquedaria.Nenhumhomememseujuízoprefeitorecusariaoseu convite para beberem um drinque. Se ele hesitar, ofereça-se parapagaraconta.Nessascondições,elenãoterácoragemde...

Elameinterrompeu.

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— Não é isso. O problema é meu. Não posso beber. Nunca tinhaouvidonadaparecido.

—Bastaabriraboca,querida...

—Seidisso.Vocêmeentendeumal.Estavamereferindoaoefeitodabebidanomeuorganismo.Euficotonta.

—Ésónãoexagerar...

—Fico tonta logonoprimeirodrinque, sem falarnasvezesemqueico enjoada e começo a vomitar. Já experimentei várias vezes. Se beberumagotadeálcoolqueseja,nãoestareiemcondiçõesde...vocêsabeoquê.É um defeito nomeumetabolismo, acredito, masminhamãe acha que éumadádivados céus, que ajuda amemanter virtuosa apesardosbaixosinstintosdehomensmalvadosquetentammeprivardeminhapureza.

Devo admitir que iquei sem fala por um momento ao pensar quehouvesse alguém capaz de ver alguma vantagem na incapacidade dedesfrutar dos prazeres do vinho. Mas isso serviu apenas para forti icarminha resolução emedeixou em tal estadode indiferença aoperigoquechegueiaapertarcomforçaobraçomaciodeIshtar,aomesmotempoquedizia:

—Minhacriança,deixeporminhaconta.Voudarumjeitonisso.

Eusabiaexatamenteoquefazer.

Nunca comentei com você a respeito domeu amigo Azazel, porquenãogostodefalardoassunto...nãoadiantafazeressacaradequejáouviufalardele;semepermiteafranqueza,dizeraverdadenãoéumadassuasqualidades.

Azazel é um demônio que possui poderes mágicos. Um demôniopequeno. Na verdade, tem apenas dois centímetros de altura. No fundo,porém, isso é uma vantagem, pois Azazel está sempre ansioso parademonstrar o seu valor e importância para pessoas, como eu, queconsideracomoseresinferiores.

Eleatendeuaomeuchamado,comosempre,masnãopossoexplicar

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avocêométodoqueusoparatrazê-loàminhapresença,poisestariaforadoalcancedasualimitada(nãoleveamal)inteligência.

Azazelchegoudemauhumor.Parecequeestavaassistindoaalgumtipodeeventoesportivonoqualhaviaapostadocercadecemmilzakiniseparecia um pouco desapontado por não ter podido icar até o inal.Pondereiqueodinheironãoeratudonavidaequeelehavianascidoparaajudar outros seres emdi iculdades e nãopara acumular zakinis que, dequalquerforma,poderiamuitobemperdernaapostaseguinte,mesmoqueconseguisse ganhar a aposta corrente, o que não era absolutamentegarantido.

Essas observações sensatas e irrespondíveis não conseguiramacalmar aquela criatura mesquinha, cuja característica predominante éumadesagradável tendênciaparaoegoísmo,demodoqueofereci-lheumquarto de dólar. O alumínio, penso eu, é o meio de troca no planeta deAzazel; emboranão sejaminha intençãoencorajá-lo a esperar algum tipoderecompensamaterialpelaassistênciaquemeproporciona,calculoqueoquartodedólar valia urapoucomais queos cemmil zakinis quehaviaapostadoe,emconsequência,eleadmitiucavalheirescamentequeminhaspreocupações erammais importantes que as suas próprias. Como já tiveocasião de declarar várias vezes, amigo velho, a força da razão sempreacabaporprevalecer.

ExpliqueioproblemadeIshtar,eAzazelcomentou:

— Até que en im você me aparece com um problema fácil deresolver!

— Naturalmente— disse para ele. — A inal de contas, como bemsabe, souumhomemrazoável.Basta fazeremaminhavontadequeestousempresatisfeito.

— É verdade— disse Azazel.— Sua raça inferior não é capaz demetabolizar o álcool de forma e iciente, de modo que produtosintermediários se acumulam no sangue, produzindo os vários sintomasdesagradáveis associados à intoxicação (umapalavraque, de acordo comosdicionáriosterráqueos,vemdogregoesignifica“venenointerior”).

Nãopudeevitarumsorriso irônico.Osgregosmodernos,comovocê

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sabe,misturamovinhodelescomresina,eosgregosantigosomisturavamcomágua.Nãoadmiraquefalassemem“venenointerior”,quandohaviamenvenenadoovinhoantesdebebê-lo.

Azazelprosseguiu:

—Seráprecisoapenasajustarasenzimasdeformaapropriadaparaque sua amiga metabolize rapidamente o álcool até o estágio de doiscarbonos, que é o ponto de partida para a síntese de gorduras,carboidratos e proteínas. Os sintomas de intoxicação vão desaparecertotalmente. O álcool se tornará um alimento para ela, como é para nós.Naturalmente, temosumasubstânciaanálogaàgomademascardevocês,queaoseringeridaproduzumestadode...

EunãoestavanemumpoucointeressadonosvíciosrepugnantesqueoscompatriotasdeAzazelpudessemcultivar.Interrompi-o:

—Eprecisoquehajaalgumefeito,Azazel; apenaso su icienteparaqueIshtaresqueçaostabusqueaprendeucomamãe.

Elepareceucompreenderimediatamente.

— Ah, sim. Sei como são as mães. Lembro-me de quando minhaterceiramãeme disse: “Azazel, você não deve jamais bater com as suasmembranas nictitantes na frente de uma jovemmaloba.” Ora, se a gentenãofizerisso,comovai...Interrompi-onovamente.

—Nãopodeprovidenciar paraquehaja um ligeiro acúmulodeumproduto intermediário do metabolismo, fazendo com que a moça iquealegre?

— É fácil — disse Azazel, e, em uma demonstração deplorável decobiça,começouaafagaramoedaqueeulhedera,eque,postadepé,eramaisaltadoqueele.

Umasemanasepassouantesqueeutivesseaprimeiraoportunidadede testar minha amiga. Foi no bar de um hotel da cidade, onde Ishtariluminou o ambiente de tal forma que vários frequentadores foramobrigadosacolocaróculosescuros.Elaestavarindo.

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—Queviemosfazeraqui?Vocêsabequenãopossobeber.

— Não se trata de uma bebida alcoólica, querida. Apenas umalimonada.Vocêvaigostar.

Eu já tinha combinado tudo com o garçom e iz sinal para que metrouxesseumTomCollins.Elaprovouedisse:

—Oh,émuitogostoso!—Jogouacabeçapara trásebebeuorestodeumgole só. Passouapontada línguanos lábios adoráveis epediu:—Possotomaroutro?

— Naturalmente — concordei, com entusiasmo. — Isto é, poderiatomar outro se não fosse pelo falo de que, infeliz-mente, esqueci minhacarteira...

—Oh,podedeixarqueeupago.Afinal,dinheiroéquenãomefalta.

Como sempre digo, uma bela mulher nunca é tão bela quando securvaparatirarumacarteiranabolsaqueestáentreseuspés.

Daí por diante, bebemos à vontade. Pelo menos, ela bebeu. Pediuoutro Tom Collins; depois, bebeu uma vodca com laranjada, dois uísquespuros comgeloemaisalgumasbebidas.Depoisde tudo isso,nãoparecianem um pouquinho tonta, embora seu sorriso fossemais estonteante doquequalquercoisaquehaviaingerido.Disseparamim:

—Sinto-me tãobem!Finalmenteestoupreparadaparavocê sabeoquê.

Euachavaquesabia,masnãoqueriatirarconclusõesapressadas.

—Achoquesuamãenãoiriagostar.—(Testando,testando.)

—Oqueminhamãesabearespeitodisso?Nada!Eoquevaisaber?Nada!—Olhouparamimespeculativamente,depoissegurouminhamãoelevou-aatéoslábiosperfeitos.—Aondevamos?

Meu amigo, acho que sabe comome sinto a respeito dessas coisas.Recusarumsimplesfavoraumaamigaquelhepedecomtodaagentileza

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não é uma coisa que eu costume fazer. Considero-me um perfeitocavalheiro.Naquelaocasião,porém,algunspensamentosmeocorreram.

Em primeiro lugar, embora talvez você possa achar di ícil deacreditar, minha energia não é mais a mesma de antiga-mente, e umamulherjovemesaudávelcomoIshtartalvezfossedi ícildesatisfazer,seéquemeentende.Alémdisso,seelamaistardeselembrassedoacontecidoe achasse que eu havia me aproveitado da situação, as consequênciaspoderiam ser desagradáveis. Ela eramuito impulsiva e poderia quebrar-meváriosossos,antesqueeutivessetempodemeexplicar.

Por isso, sugeri que fôssemos a pé até o meu apartamento. O arfresco da noite dissipou os efeitos da bebida e pude me despedir emsegurança.

Outros não tiveram a mesma sorte. Mais de um rapaz se queixoucomigode Ishtar,pois, comodevesaber,existealgumacoisanomeu jeitoao mesmo tempo digno e amistoso que induz a con idencias. Isso nuncaaconteceu em um bar, infelizmente, porque os homens em questãopareciamevitarosbares,pelomenosporunstempos.QuasetodostinhamtentadobeberamesmacoisaqueIshtar,comresultadosfunestos.

—Tenhocertezaabsoluta—disse-meumdeles—dequehaviaumtubosecretoquelevavadabocadamoçaaumtonelescondidodebaixodamesa,masnãoconsegui localizá-lo.Masseachaque issoé tudo,devia tervistooqueaconteceudepois!

Opobresujeitoaindaeslavatraumatizadocomaexperiência.Tentoucontartudoparamim,maseslavaquasein-coerente.

—Elaéinsaciável]—repelia,semparar.—Insaciável!

Cumprimentei-me mentalmente por ler tido o bom senso de evitarumvexamequehomensmuitomaismoçosdoqueeuhaviamsofrido.

Naquelaépoca,nãotinhamuitasoportunidadesdemeencontrarcomIshtar,vocêcompreende.Elaeslavamuitoocupada...Noentanto,eupodiaver que estava consumindo o estoque masculino da cidade com umavelocidade espantosa. Mais cedo ou mais tarde, teria de ampliar o seucampodeação.Foimaiscedo.

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Ela foi me ver certa manhã, a caminho do aeroporto. Estava maiszaftig, mais pneumática, mais deslumbrante do que nunca. As aventuraspelasquaishaviapassadonãopareciam tê-la afetadoemnada, excetonosentidodetorná-laaindamaisexuberante.

Ishtartirouumagarrafadabolsa.

—Érum—explicou-me.—AbebidamaispopularnasAntilhas.

—VaiparaasAntilhas,querida?

— Vou, sim. Os homens daqui são muito tímidos e inibidos. Estoudesapontada, embora tenha passado com eles alguns momentosagradáveis. Muito obrigada, George, por tornar isso possível. Tudocomeçouno dia emque vocême ofereceu umTomCollins como se fosseumalimonada.Éumapenaqueeuevocênunca...

—Bobagem,querida.Eupensoapenasnobemdahumanidade.Nãosouumapessoaegoísta.

Elaplantouumbeijonomeurostoquequeimoucomoácidosulfídricoe se foi. Enxuguei a testa, aliviado, mas disse a mim mesmo que, pelaprimeiravez,umainterferênciadeAzazelhaviaresultadoemsucessototal,já que Ishtar agora podia desfrutar inde inidamente, sem nenhumaconsequênciadesagradável,dosprazeresdosexoedabebida.

Ouassimeupensava.

SótorneiaouvirfalardeIshtarumanodepois.Elaestavadevoltaàcidade e telefonou paramim. Levei algum tempo para compreender queelaera.Pareciahistérica.

—Minhavidaestáacabada!—gritou,emprantos.—Atéminhamãenãogostamaisdemim!Nãoentendooqueaconteceu,mas tenhocertezade que a culpa é sua! Se não tivesse praticamente me forçado a beber,estoucertadequenadadissoteriaacontecido.

— Mas o que aconteceu, querida? — perguntei, com voz trêmula.Quandoficavazangada,Ishtarpodiasermuitoperigosa.

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—Venhaparacáagora.Vocêvaiverpessoalmente.

Umdiaminhacuriosidadeaindavaiacabarcomigo.Naquelaocasião,quase acabou.Nãopude resistir à tentaçãode ir visitá-lana suamansão,nosarredoresdacidade.Sabiamente,deixeiaportaaberta.Quandoelaseaproximoucomumfacão,deimeia-voltaesaícorrendo.Devoterbatidoorecorde mundial dos cem metros rasos. Felizmente, ela não estava emcondiçõesdemeperseguir.

Diasdepois,Ishtarviajoudenovo,enuncamaistivenotíciasdela.Asvezes sonho que está de volta e acordo gritando. As Ishtar Mistik destemundonãoperdoamcorafacilidade.

Georgepareciapensarquehaviachegadoaofinaldahistória.

—Afinal,oquehaviaacontecidocomamoça?—perguntei.

—Vocênãoentende?Azazelhaviaajustadoometabolismodelaparatransformar o álcool em precursores de carboidratos, gorduras eproteínas. O álcool se tornou para ela um alimentomuito nutritivo. E elabebia como uma esponja. Começou a engordar. Em pouco tempo, todaaquela beleza deslumbrante estava escondida debaixo de camadas ecamadasdegordura.

George sacudiu a cabeça, com um ar penalizado, e declarou, muitosério;

—Osmalesqueabebidacausasãodifíceisdeanalisar.

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TempoparaEscrever

— Conheci uma pessoa que era um pouco parecida com você —disseGeorge.

Estávamos almoçando em um pequeno restaurante, em uma mesapertodajanela,eGeorgeolhavaparaforacomarpensativo.

—Estousurpreso—disseeu.—Penseiqueeufosseúnico.

—Eé.Ohomemaquemere irosósepareciaumpoucocomvocê.Ninguém mais no mundo possui essa sua capacidade de escrever,escrever,escreversemcolocarnenhumaideianopapel.

—Acontecequeeuusoumprocessadordetexto.

—Usei a palavra “escrever” no sentido igurado. Qualquer escritorde verdade compreenderia isso— declarou, parando de comer amousedechocolateparadarumsuspirodramático.

Euconheciaosinal.

—VaimecontarmaisumadaquelashistóriasfantasiosasarespeitodeAzazel,nãovai,George?

Elemedirigiuumolhardedesprezo.

—Vocêveminventandomentirashátantotempoquenãosabemaisreconhecer um relato verdadeiro. Mas não tem importância. A história étristedemaisparasercontada.

—Mesmoassim,vocêvaimecontar,nãovai?

Georgesuspiroudenovo.

Foi aquela parada de ônibus lá fora [disse George] que me fezlembrardeMordecaiSims,queganhavamodestamenteavidaproduzindolaudas e mais laudas de lixo variado. Não tantas quanto você, nem tão

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imprestáveis, e é por isso que eu disse que só se parecia umpouco comvocê.Paraserhonesto,àsvezesoqueeleescreviachegavaaserrazoável.Semquerer ferirseussentimentos,você jamaischegouaesseponto.Pelomenos pelo que me contaram, porque ainda não baixei meus padrões apontodelerpessoalmenteoquevocêescreve.

Mordecai era diferente de você em outra coisa: era terrivelmenteimpaciente. Mire-se naquele espelho, se é que não se importa de sercruelmente lembrado de sua aparência, e veja como está sentadodisplicentemente,comumbraçojogadonascostasdacadeiraeorestodocorpo em total abandono. Olhando para você, ninguém diria que estápreocupado em entregar a tempo sua cota diária de caracteres digitadosaoacaso.

Mordecai não era assim. Vivia preocupado com os prazos, quepareciamestarsempreparavencer.Naquelaépoca,eualmoçavacomeletodaterça-feira,maseletiravatodaagraçadarefeiçãocomsuaslamúrias.

—Tenhodecolocaresteartigonocorreioamanhãdemanhã,omaistardar — dizia ele —, mas primeiro tenho de rever outro artigo, esimplesmentenãovaidar tempo.Quandoéquevaichegaracomida?Porqueogarçomnãoaparece?Oqueelesestãofazendonacozinha?Batendopapo?

Elesemostravaparticularmenteirrequietonahoradepagaraconta,e mais de uma vez temi que fosse embora, deixando para mim a tristeincumbência. A bem da verdade, isso nunca aconteceu, mas a simplespossibilidadeerasuficienteparameestragaroapetite.

Olhe para aquele ponto de ônibus. Estive a observá-lo durante osúltimosquinzeminutos.Nãopassounenhumônibus,ehojeéumdiafrioeventoso. O que vemos são casacos abo-toados, mãos nos bolsos, narizesvermelhosouarroxeados,péssearrastandonochãoem 5buscadecalor.Oque não vemos é nenhum sinal de revolta, nenhum punho cerradolevantado para o céu. As injustiças da vida tornaram aquelas pessoastotalmentepassivas.

Mordecai Sims não era assim. Se estivesse naquela ila de ônibus,icaria nomeio da rua para espreitar o horizonte à procura do primeirosinaldeumveículo;estariaresmungando,rosnandoeagitandoosbraços;

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comandaria uma passeata em direção à prefeitura. Seu sangue, pararesumir,estariacarregadodeadrenalina.

Mais de uma vez, ele me procurou para se queixar, atraído, comotantosoutros,pelomeuarserenodecompetênciaecompreensão.

— Sou um homem ocupado, George — a irmava, atropelando aspalavras. Ele sempre atropelava as palavras. — É uma vergonha, uraescândaloeumcrimeaformacomoomundoconspiracontramim.Tivedepassar no hospital para alguns exames de rotina, só Deus sabe por quê.Acho que meu médico resolveu justi icar o dinheiro que eu lhe pago.Disseram-meparameapresentarnasaladeesperaàs9:40.

“Chegueiláexatamenteàs9:40,éclaro,ehaviaumcartaznaparedeque dizia: “Aberto a partir das 9:30.” Era exatamente isso que o cartazdizia, George, para quemquisesse ver.Namesa da recepcionista, porém,nãohavianinguém.

“Consulteiorelógioedisseparaumafaxineiraquepassava:“Ondeseencontraafuncionáriarelapsaquedeviaestaratrásdessamesa?”

““Aindanãochegou”,respondeuafaxineira.

““Aquidizqueolugarfuncionaapartirdas9:30.”

““Mais cedo ou mais tarde, alguém vai aparecer”, observou afaxineira,comirritanteindiferença.

“A inal de contas, eu me encontrava em um hospital. Podia estar àmorte.Alguémse importavacomisso?Não!Eutinhaprazoparaentregarum trabalho importante, que me havia custado muito esforço e merenderia dinheiro su iciente para pagar a conta domédico (supondoqueeu não tivesse uma forma melhor de gastá-lo, o que não era provável).Alguém estava se incomodando? Não! A recepcionista só apareceu às10:04,equandomeaproximeidamesa,aquelamalditaretardatáriaolhouparamimdecarafeiaedisse:“Vaiterdeesperarasuavez!

Mordecai vivia contando histórias como aquela; falava de edi íciosnosquaistodososelevadoresestavamsubindoaomesmotempo,parandoem todosos andares, enquanto ele esperavanaportaria; depessoasque

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almoçavamdomeio-diaàs15:30ecomeçavamo imdesemananaquarta-feirasemprequeprecisavafalarcomelas.

Não sei por que alguém se deu o trabalho de inventar o tempo,George — dizia para mim. — Não passa de um arti ício para tornarpossível a formação de novos métodos de desperdício. Se eu pudessetransformar as horas que passei esperando esses imbecis em tempo detrabalho, minha produção aumentaria de dez a vinte por cento. O que,apesar da sovinice criminosa dos editores, resultaria em um aumentosubstancialdaminharenda...acomidavaichegarounão?

Eu não podia deixar de pensar que ajudá-lo a aumentar a rendaseriaumaboaação,principalmenteporqueeletinhaobomgostodegastarparte dela comigo. Além disso, costumava escolher os melhoresrestaurantesparajantarmosjuntos,oquemedeixavacomovido...Não,nãocomoesteaqui,amigovelho.Coisamuitomelhor.Oseugostodeixamuitoadesejar,oquecombina,peloqueouçodizer,comoquevocêescreve.

Comecei, portanto, a dar tratos à bola para encontrar umamaneiradeajudá-lo.

Nãome lembrei imediatamentedeAzazel.Naquelaépoca,aindanãoestava acostumado com ele; a inal de contas, um demônio de doiscentímetrosdealturaéumacoisarelativamenteincomum.

A inal,porém,ocorreu-mequetalvezAzazelpudessefazerqualquercoisaparaaumentaro tempodequemeuamigodispunhaparaescrever.Nãopareciaprovável e talvez euo estivesse fazendoperder tempo;paraqueserveotempoparaumacriaturadeoutromundo?

Passeipela rotinadeantigos feitiços e encantamentosqueusoparainvocá-lo,eelechegoudormindo.Seusolhinhosestavamfechadoseemitiaum som agudo e desagradável que devia ser o equivalente a um roncohumano.

Eunãosabiaaocertocomoacordá-lo,e inalmentedecidipingarumpoucodeáguanoseuestômago.Ele temab-domeperfeitamenteesférico,vocêsabe,comosetivesseengolidoumabilha.Nãotenhoamenorideiaseissoécomumnoplanetadele,masquandofaleinoassunto,elefezquestãode saber o que era uma bilha. Quando expliquei, disse que estava com

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vontadedemezapulniclar.Nãoseioqueé isso,maspeloseu tomdevoznãodevesernadaagradável.

Aáguarealmenteoacordou,mastambémodeixoumuitoaborrecido.Disse que eu quase o havia afogado e começou a explicar, com detalhesirrelevantes,comosefaziaparaacordaralguémnoseumundo.Tinhaalgoa ver com danças, pétalas de rosa, instrumentos musicais e o toque dosdedosde lindasdonzelas.Eu lhedissequenonossomundoéramosmaispráticos e ele nos chamoude bárbaros ignorantes antes de se acalmar osuficienteparaqueeupudesselheexplicaroquequeria.

Contei-lhe o meu problema, convencido de que, na melhor dashipóteses,elemedariaalgumconselhotrivialantesdeirembora.

Estavaenganado.Azazelolhouparamim,muitosério,edisse:

— Escute aqui, você está me pedindo para interferir nas leis dasprobabilidades?

Fiqueisatisfeitoporeletercompreendidotãodepressaaquestão.

—Exatamente.

—Maisissonãoénadafácil!

— Claro que não. Se fosse fácil eu pediria a você? Se fosse fácil eumesmo faria. Só quando não é fácil é que tenho de recorrer a um sersuperiorcomovocê.

Nauseante, é claro, mas essencial quando se está lidando com umdemônioqueseenvergonhadoseutamanhoedesuabarrigaemformadebilha.

Elepareceugostardomeuargumentoedisse:

—Bom,eunãodissequeeraimpossível.

—Ótimo.

—Euteriadeajustarocontínuopsicalóbicodoseuplaneta.

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—Tirouaspalavrasdaminhaboca.

— O que vou fazer é introduzir alguns nós na ligação entre ocontínuoeo seuamigo, esseque temprazos a cumprir.Apropósito: quesãoprazos?

Quandotenteiexplicar,eleobservou,comumsuspirofundo:

— Ah, sim, temos coisas parecidas em nossas demonstrações maisetéreas de afeição. Se você deixa um prazo passar, as adoráveiscriaturinhasnãooperdoam.Lembro-medeumavez...

Masvoupoupar-lheosdetalhessórdidosdavidasexualdeAzazel.

— O único problema — disse ele, a inal — é que depois que euintroduzirosnósnãopodereimaisdesfazê-los.

—Porquenão?

— É teoricamente impossível — declarou Azazel, em tomdeliberadamentecasual.

Não acreditei nele. Para mim, aquele demônio incompetentesimplesmente não sabia como. Entretanto, já que ele era competente obastante para tornar a vida impossível para mim, não lhe revelei o queestavapensando,masdisse,simplesmente:

— Você não vai ter de desfazer nada. Mordecai precisa de maistempoparaescrever,equandooconseguir icarásatisfeitoparaorestodavida.

—Nessecaso,voucomeçar.

Ficou fazendo passes durante muito tempo. Parecia um mágico nopalco,excetopelo fatodequedevezemquandoeu tinhaa impressãodeque suasmãos icavam invisíveis. Entretanto, eram tão pequenas que àsvezeseradi ícildizerseestavamounãovisíveis,mesmoemcircunstânciasnormais.

— Que está fazendo?— perguntei, mas Azazel sacudiu a cabeça e

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seuslábiossemoveramcomoseestivessecontando.

Depois,eleseapoiounamesaesuspirou.

—Terminou?—perguntei.

Elefezquesimcomacabeçaedisse:

—Esperoquevocêcompreendaqueeu tivedereduziroquocientedeentropiadoseuamigodeformamaisoumenospermanente.

—Quesignificaisso?

—Signi icaqueapartirdeagoraascoisasserãomaisregularesnasproximidadesdoseuamigodoquecostumavamser.

— Não há nada de errado com a regularidade — disse eu. (Vocêtalveznãoacredite,amigovelho,massempregosteideorganização.Tenhoum registro de todo o dinheiro que lhe devo, até o último centavo. Asquantiasestãoanotadasempedaçosdepapel,aquienomeuapartamento.Sequiser,possomostrar-lhe...)

Azazeldisse:

— Claro que não há nada de errado com a regularidade. Só que éimpossívelviolarasegundaleidatermodinâmica.Paramanteroequilíbrio,ascoisasserãoumpoucomenosregulareslongedoseuamigo.

— De que forma?— perguntei, veri icando se o meu zíper estavaaberto.

—Devárias formas, quase todasdi íceisdenotar. Espalhei o efeitoportodoosistemasolar,demodoquehaveráumnúmeroumpoucomaiorde colisões entre asteroides, um número um pouco maior de erupçõesvulcânicasemIoetc.Omaiorefeito,porém,serásobreosol.

—Quevaiacontecercomosol?

— Calculo que ele icará quente o bastante para tornar a vidaimpossívelnaTerradoismilhõesemeiodeanosmais cedodoque se eunãotivesseintroduzidoosnósnocontínuo.

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Deideombros.Queimportamunspoucosmilhõesdeanosquandoéuma questão de arranjar alguém para pagar de boa vontade as minhasrefeições?

Só voltei a jantar com Mordecai uma semana depois. Ele pareciamuitoanimadoaoentrarnorestaurante,equandochegouàmesaondeeuoesperavapacientementecomomeudrinque,sorriuparamim.

—George, tive uma semana incrível!— exclamou. Estendeu amãosem olhar e não pareceu nem um pouco surpreso quando alguém lhepassou um cardápio. Logo naquele restaurante, emque os garçons eramtãoprepotentesqueexigiamumrequerimentoemtrêsvias,assinadopelogerente,paraentregarumcardápio!

“George,parecequeestounoparaíso!Disfarceiumsorriso.

—Verdade?

—Quando entro no banco, há sempre um guichê vazio e um caixasorridente.Quandoentrono correio,há sempreumguichêvazioe... bem,achoqueesperarumsorrisodeumfuncionáriodoscorreiosseriademais,mas pelomenos eles registramminhas cartas sem fazer cara feia. Chegonopontodeônibusehásempreumàminhaespera.Outrodia,nahorademaiormovimento, levantei amãoe imediatamenteum táxi encostouparame pegar. Quando disse que queria ir para a esquina da Quinta com aQuarenta eNove, eleme levouaté lápelo caminhomais curto. E falava aminhalíngua!Queéquevocêvaiquerer,George?

Uma consulta rápida ao cardápio foi su iciente. Parecia que tudoestava arranjado para que ninguém pudesse atrasar o meu amigo.Mordecaipôsocardápiode ladoe fezospedidosparanósdois.Observeique não se deu o trabalho de levantar os olhos para ver se havia umgarçomàespera.Jáseacostumaraaesperarquehouvesse.

Ehavia.

O garçom esfregou as mãos, fez uma mesura e nos atendeu compresteza,cortesiaeeficiência.

Eudisseaele:

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— Você parece estar passando por uma fantástica maré de sorte,Mordecai, meu amigo. Como explica isso? (Devo admitir que por ummomentotiveatentaçãoderevelaraelequeeuemoresponsável.A inal,sesoubessedisso,não teriavontadedemecobrirdeouro,ou,emnossosdiasprosaicos,depapel?)

— É muito simples — disse ele, pendurando o guardanapo nopescoço e agarrando a faca e o garfo como se quisesse estrangulá-los,porqueMordecai, com todas as suas qualidades, não é exatamente o quesechamariadeumhomemre inado.—Nãotemnadaavercomasorte.Éaconsequênciainevitáveldasleisdasprobabilidades.

—Dasprobabilidades?—repeti,comindignação.

— Claro! Passei a vida inteira tendo de suportar a série maisrevoltante de atrasos fortuitos que já ocorreu neste planeta. De acordocom as leis das probabilidades, é preciso que esta sequência infeliz deeventos seja compensada. E o que está acontecendo agora, e espero quecontinue a ocorrer durante o resto de minha vida. Espero, não, tenhocerteza.Ascoisas têmdeseequilibrar.— Inclinou-senaminhadireçãoeespetou o dedo nomeu peito.—Acredite nisso. É impossível desa iar asleisdasprobabilidades.

Passou o resto do jantar discorrendo sobre as leis dasprobabilidades, a respeito das quais, tenho certeza, conhecia tão poucoquantovocê.

Afinal,euperguntei:

—Agoravocênãotemmaistempoparaescrever?

—Claroquetenho.Calculoqueomeutempoparaescreverdeveteraumentadounsvinteporcento.

—Easuaproduçãoaumentounamesmaproporção,imagino.

— Ainda não— disse ele, parecendo meio constrangido. — Aindanão.Naturalmente, precisome adaptar.Não estou acostumado com tantafacilidade.Fuiapanhadodesurpresa.

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Naverdade,elenãoparecianemumpouquinhosurpreso.Levantoua mão e, sem olhar, tirou a conta dos dedos de um garçom que seaproximava cora ela. Examinou-a rapidamente e devolveu-a, com umcartão de crédito, ao garçom, que, para meu espanto, tinha icadoesperandoe,aorecebê-la,levouimediatamenteàcaixa.

O jantar inteiro tinha levadopoucomais de trintaminutos.Não vouesconderdevocêofatodequeteriapreferidoumjantarcivilizadodeduashoras emeia, precedidopor champanha, seguidopor conhaque, cora umou dois vinhos inos separando os pratos e uma conversa civilizadapreenchendo todos os interstícios. Entretanto, consolei-me com o fato deque Mordecai havia economizado duas horas que poderia passarganhandodinheiroparasimesmoe,atécertoponto,paramimtambém.

Depois daquele jantar, passei três semanas semme encontrar comMordecai. Não me lembro por quê; acho que nós dois viajamos emsemanasdiferentes.

Sejacomofor,certamanhãeuestavasaindodeumalanchoneteondeàsvezes comoumovomexido com torradaquandoviMordecaidepénaesquina,cercademeioquarteirãodedistância.

Tinhaacabadodenevareestavatudomolhado.Eraotipodediaemqueostáxisvaziosseaproximamdevocêapenasparajogarrespingosdenevesujanaspernasdassuascalçasantesdebaixaremosinalde livreeseafastaremrapidamente.

Mordecai estava de costas para mim e acabava de levantar a mãoquandoumtáxivazio reduziuamarchae seaproximoudele.Paraminhasurpresa,Mordecaiolhouparaoutrolado.Omotoristaesperouumpoucoedepoisfoiembora,desapontado.

Mordecai levantou a mão pela segunda vez e, aparente-mentesurgidodonada,umsegundo táxi apareceueparouparaele.Meuamigoentrou no carro, mas, como pude ouvir claramente, embora estivesse auma distância de uns quarenta metros, brindou o motorista com umatorrente de impropérios que fariam corar uma pessoa de respeito, seaindahouvessealgumaemnossacidade.

Telefonei para ele naquela mesma manha e marquei um encontro

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paramais tarde em um bar que costumávamos frequentar, que ofereciauma“HappyHour”apósoutraduranteodiainteiro.EumalpodiaesperarpelaexplicaçãodeMordecai.

Oqueeuqueriasabereraosigni icadodospalavrõesqueelehaviausado. Não, amigo velho, não estou me referindo à de inição dessesvocábulosnodicionário, seéqueelesconstamdealgumdicionário.Estoufalando da razão pela qual ele ofendera o motorista de táxi. Pela lógica,deveriaagradecer-lheefusivamenteporhaverparado.

Quandoele entrounobar,nãopareciamuito satisfeito.Naverdade,tinhaumarpreocupado.

Disseparamim:

—George,querchamaragarçoneteparamim?

Eraumdessesbaresemqueasgarçonetessevestemsemnenhumapreocupaçãode semanter aquecidas, o que, naturalmente, ajudava amemanteraquecido.Chameiumadelascomtodooprazer,emborasoubessequeinterpretariameusgestossimplesmentecomorepresentandoodesejodepedirumdrinque.

Na verdade, ela não interpretou coisa alguma, pois me ignoroutotalmente,mantendo-sedecostasparamim.

Eudisseparaomeuamigo:

— Mordecai, se você quer ser atendido, é melhor chamá-lapessoalmente.Asleisdaprobabilidadeaindanãocomeçaramaagirameufavor, o que é umapena, porque já eramais do que tempode omeu tioricomorreredeserdarseuúnicofilho,deixandotodaafortunaparamim.

—Vocêtemumtiorico?—perguntouMordecai,comumapontadeinteresse.

—Não!Oque tornaascoisasaindamais injustas.Peçaumdrinqueparanós,estábem,Mordecai?

— Por que a pressa? Deixe que eles esperem — resmungou

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Mordecai,decarafeia.

Eunãotinhanenhuminteresseemdeixá-losesperando,éclaro,masminhacuriosidadefoimaiorqueaminhasede.

—Mordecai, você parece infeliz. Hoje de manhã, você não me viu,maseuovi.Vocêignorouumtáxivazioemumdiaemqueelesvalemseupesoemouroedepois,quandotomouumsegundotáxi,xingouomotorista.

—Émesmo?Acontecequeestoufartodesses ilhosdamãe.Ostáxismeperseguem.Elesmeseguememlongas ilas.Nãopossonemolharparaa rua sem que um deles pare. Quando chego a um restaurante, soucercado por hordas de garçons. Lojas já fechadas são abertas porminhacausa.Nomomentoemqueentroemumedifício,todososelevadoresestãono térreo. Salto em um andar, e eles esperam pacientemente por mim.Quando marco uma consulta médica, sou atendido imediatamente. Seprecisodeumdocumentoemumarepartiçãopública...

Àquelaaltura,porém,eutinharecuperadoavoz.

—Mordecai—protestei—,nãocompreendeque issoéótimoparavocê?Asleisdasprobabilidades...

O que sugeriu que eu izesse com as leis das probabilidades étotalmenteimpossível,éclaro,jáqueelasnãopassamdeabstrações.

—Mordecai—insisti—,tudoissolhedámaistempoparaescrever.

—Estámuitoenganado.Pareideescrever.

—Porquê?

—Porquenãotenhomaistempoparapensar.

—Comoassim?

—Otempoqueeupassavaesperando,nas ilasdebanco,nospontosde ônibus, nas salas de espera... era esse o tempo que eu usava parapensar, para planejar o que eu iria escrever quando chegasse em casa.Essapreparaçãoeraessencialparaomeutrabalho.

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—Eunãosabiadisso.

—Nemeu,masagorajásei.

— Pensei que você passasse todo o tempo de espera reclamando,xingandoeseaborrecendo.

— Parte do tempo eu passava assim. O resto do tempo, passavapensando.Emesmoo tempoqueeupassavamequeixandodas injustiçasdouniversoeraútil,porqueeumeexaltava,aadrenalinanomeusangueialá em cima e quando eu inalmente chegava em casa usava o teclado damáquinadeescreverparadescarregartodasasminhasfrustrações.Meuspensamentosforneciamamotivaçãointelectualeminharaivaamotivaçãoemocional. Juntos, faziamcomqueosfogossombriose infernaisdeminhaalmadespejassem grandes blocos de excelente literatura. E agora? Comovoufazer?Observe!

Estalou os dedos e imediatamente uma garçonete sumariamentevestidaestavaaseulado,perguntando:

—Quepossofazerpelosenhor?

Eu podia imaginar várias coisas, mas Mordecai se limitou a pedirdrinquesparanósdois.

—Penseiqueprecisavaapenasmeacostumarcomanovasituação,masagoracompreendoquenãoétãosimplesassim.

— Pode se recusar a tirar vantagem das facilidades que os outrosoferecemavocê.

— Possomesmo? Vocême viu estamanhã. Se recuso um táxi, logoapareceoutro. Se eu recusar cinquenta vezes, haveráumquinquagésimoprimeiro esperando pormim na primeira esquina. Eles me vencem pelocansaço.

—Nessecaso,porquenãoreservaumahoraouduaspordiaparapensar,noconfortodoseuescritório?

— Exatamente! No conforto do meu escritório! Só consigo pensar

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direito quando estou roendo as unhas em uma ila de banco, sentado nobancodurodeumasaladeesperaoumorrendodefomeemumamesaderestaurante.Éarevoltaquemedáinspiraçãoparaescrever.

—Masvocênãoestárevoltadonomomento?

—Não é amesma coisa. Possome revoltar comuma injustiça,mascomo posso me revoltar com as pessoas que me tratam com tantaconsideração? Não, não estou revoltado; estou apenas triste, e quandoestou triste não consigo escrever. Acho que nunca passei uma “HappyHour”tãoinfelizcomonaqueledia.

— Juro para você, George — disse Mordecai —, que tenho aimpressão de que fui amaldiçoado. Acho que alguma fada madrinha,aborrecida por não ter sido convidada para o meu batizado, descobriuinalmente alguma coisa pior do que ser forçado a esperar em ilas. É amaldiçãodesepoderfazerimediatamentetudoquesedeseja.

Aoouviraqueletristerelato,meusolhos icaramúmidos,poismedeicontadequeafadamadrinhaaqueelesereferiaeranaverdadeaminhapessoa, e talvez um dia ele viesse a descobrir esse fato. Se Mordecaisoubesseaverdade,poderiamuitobem,emumatodedesespero, tiraraprópriavida,ou,piorainda,tiraraminha.

Mas o pior ainda não tinha chegado. Depois de pedir a conta e,naturalmente,recebê-lasemdemora,examinou-aseminteresse,passou-aparamimedisse,comvozrouca:

—Tome,podepagar.Vouparacasa.

Paguei.Queremédio?Mas issomedeixouuma feridaqueaindameincomoda quando o tempo está paramudar. A inal, é justo que eu tenhaencurtadoavidadosolemdoismilhõesemeiodeanoseacabetendodepagar,nãosóomeudrinque,mastambémodomeuamigo?Éjusto?

NuncamaistorneiaverMordecai.OuvidizerquedeixouopaísesetornouumvagabundodepraianosMaresdoSul.

Nãoseiexatamenteoquefazumvagabundodepraia,masdescon ioqueelesnão icamricos.Sejacomofor,tenhocertezadequeseeleestiver

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napraiaequiserumaonda,elanãodemoraráaaparecer.

—Entãovocênãovaifazernadapormim?

—Não.

—Ótimo.Entãoeupagoaconta.

Éomínimoquevocêpodefazer—disseGeorge.

Aquelaaltura,umgarçomjáhaviatrazidoacontaeacolo-caraentrenós,enquantoGeorgeaignoravacomadesenvolturadesempre.

— Você não está pensando em pedir a Azazel para fazer algumacoisapormim,está?—perguntei.

—Achoquenão—disseGeorge.—Infelizmente,amigovelho,vocênão é o tipo de pessoa em que a gente pensa quando sente vontade defazerboasações.

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DeslizandonaNeve

George e eu estávamos sentados no La Bohème, um restaurantefrancêsqueele frequentavadevezemquandoàminhacusta,quandoeudisse:

—Parecequevainevar.

Nãoeraumagrande contribuiçãoparao conhecimentouniversal.Odia tinha sido muito sombrio, a temperatura estava abaixo de zero, e oserviçodemeteorologia tinhaprevisto umanevasca.Mesmo assim, iqueiofendidoquandoGeorgeignoroutotalmentemeucomentário.

Eledisse:

—VejaocasodomeuamigoSeptimusJohnson.

—Por quê?O que ele tem a ver como fato de que parece que vainevar?

—Foi uma associação de ideias—explicouGeorge,muito sério.—Umprocessoquevocêdeveterouvidoosoutrosmencionarem,mesmoquejamaisotenhaexperimentadopessoalmente.

Meu amigo Septimus [disse George] era um rapaz demeter medo,com o rosto sempre contraído em uma carranca e um par de bíceps defazerinvejaaqualquerum.Eraosétimo ilho,daíonome.TinhaumirmãomaismoçochamadoOctaviuseumairmãmaismoçachamadaNina.

Acho que foi porque passou a infância cercado de gente que, maistarde,semostrouestranhamenteenamoradodosilêncioedasolidão.

Depoisdeadulto,conseguiualgumsucessocomoescritor(comovocê,amigovelho,excetopelo fatodequeoscríticosàsvezeselogiamos livrosdele) e ganhou dinheiro su iciente para seguir a sua tendência: comprouuma casa isolada em uma pequena cidade do estado de Nova York epassouaescreverseusromanceslá.Não icavamuitolongedacivilização,masatéondeoolhopodiaalcançar,pelomenos,pareciatotalmenteisolada.

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Achoqueeu fui aúnicapessoaqueSeptimus convidouparapassaruns dias na sua casa de campo. Deve ter-se deixado fascinar pela calmadignidade da minha conduta e pelo brilhantismo da minha conversação.Pelomenos,éaúnicaexplicaçãoquemeparecelógica.

Naturalmente,erapreciso tomarcuidadocomele.Qualquerumquejá tenha sentido o tapa amistoso nas costas que constitui o cumprimentofavorito de Septimus Johnson sabe o que é ter uma vértebra deslocada.Entretanto,oseuvigorfísicoveioacalharnodiaemquenosconhecemos.

Eu tinha sido abordado por um bando de desocupados, que,certamenteiludidospelomeuportenobre,estavamconvencidosdequeeuconduzia uma fortuna em dinheiro. Defendi-me furiosamente, porque, naocasião,estavasemvintém,etemiaqueosbandidos,quandodescobrissemofato,descarregassemsuafrustraçãoemminhapobrepessoa.

Foi quando Septimus apareceu, preocupado com alguma coisa queestava escrevendo. Osmarginais estavam no caminho e, como ele estavadistraídodemaisparasedesviar,passoubempelomeiodeles, jogando-osparao ladoemgruposdedoisede três.Acontecequeelemeencontrou,no fundo da pilha, exatamente nomomento em que conseguiu encontrarumasoluçãoparaoseudilema literário.Achandoqueeueraumsinaldeboa sorte, convidou-me para jantar. Achando que um convite para jantarcom todas as despesas pagas era um sinal ainda maior de boa sorte,aceitei.

Quando acabamos de jantar, eu já havia estabelecido o tipo deascendência sobre ele que o fez convidar-me para visitar sua casa decampo.Oconvite foi repetidováriasvezes.ComoSeptimusmedissecertavez, estar comigo era praticamente como estar sozinho. Considerando aforma como ele prezava a solidão, só podia tomar este comentário comoumcumprimento.

Eu esperava encontrar uma casa modesta, mas estava totalmenteenganado. Septimusganharadinheiro comseus romances enãopouparadespesas. (Sei que é indelicado falar de escritores bem-sucedidos na suapresença,amigovelho,mas,comosempre,souumescravodosfatos.)

A casa, na verdade, embora isolada a ponto de memanter em umestado permanente de inquietação, era totalmente eletri icada, com um

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geradoraóleonoporãoepainéissolaresnotelhado.Comíamosbem,eelepossuíaumaexcelente adega.Vivíamos comextremoconforto, algoaquesempre fui capaz de me adaptar com surpreendente facilidade,considerandominhafaltadeprática.

Infelizmente, era impossível deixar de olhar pelas janelas, e a faltatotal de paisagem me deixava muito deprimido. Tudo que havia eramcampos,colinas,umpequenolagoeumaquantidadeincríveldevegetação,deumverdedoentio,masnãoseviaomenorsinaldecasas,estradas,oudequalqueroutracoisaquevalesseapenaservista.Nemmesmopostestelefônicos.

Um dia, depois de uma boa refeição e um bom vinho, Septimusmedisse,muitoanimado:

—George,gostodetê-loaquicomigo.Depoisdeconversarcomvocê,sinto tantoalíviodevoltarparaoprocessadorde textoquemeu trabalhomelhorouconsideravelmente.

Sinta-se livre para me visitar quando quiser. Aqui— fez um gestoamplo — você está a salvo de todos os problemas e preocupações. Eenquantoeuestiverescrevendo,podeusarsemcerimôniaosmeuslivros,meuaparelhode televisão,ageladeirae... achoquevocêsabeonde icaaadega.

Para dizer a verdade, eu sabia, sim. Chegara a fazer um pequenomapa para uso próprio, com um grande X no lugar da adega e váriostrajetospossíveiscuidadosamentemarcados.

— A única restrição — disse Septimus — é que este refúgiopermanece fechado entre 1? de dezembro e 31 de março. Durante esteperíodo, não posso lhe oferecerminha hospitalidade, pois ico emminhacasanacidade.

Anotíciamedeixoupreocupado.Oinvernoéapiorépocaparamim.A inaldecontas,meuamigo,éno invernoquemeuscredoresse revelammais insistentes. Esses indivíduos desagradáveis, que, como todo mundosabe, são ricos o bastante para não se importarem com os míseroscentavos que lhes devo, parecem extrair um prazer especial da ideia deme ver no olho da rua em época de frio. Por isso, era exatamente nessa

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estaçãodoanoqueeumaisprecisavaderefúgio.

— Por que não usa esta casa de campo no inverno, Septimus? —perguntei. — Com um fogo aceso nesta magní ica lareira paracomplementar o trabalho do seu igualmente magní ico sistema deaquecimentocentral,poderíamosenfrentaroinvernomaisrigoroso.

—É verdade—disse Septimus—,mas acontece que esta região émuito sujeita anevascas.Nessasocasiões,minha casa,perdidana solidãoqueadoro,ficaisoladadomundoexterior.

—Omundoexteriorquesedane—ponderei.

— Tem razão — concordou Septimus. — Acontece que meussuprimentos vêm domundo exterior. Comida, bebida, óleo, roupa lavada.Infelizmente,nãopossosobreviversemomundoexterior.Pelomenos,nãopoderialevarotipodevidasibaritaquequalquerserhumanodecentetemodireitodelevar.

—Sabe,Septimus,talvezeuencontreumasoluçãoparaoproblema.

—Achodi ícil.Dequalquermaneira,acasaésuaduranteosoutrosoitomesesdoano,oupelomenosenquantoeuestiveraquiduranteessesoitomeses.

Eraverdade,mascomoumhomemrazoávelpodeseconformarcomoitomesesquandosabequeexistemdoze?Naquelamesmanoite, chameiAzazel.

Achoquevocênuncaouviu falardeAzazel.Ele éumdemônio,umacriaturadedoiscentímetrosdealturaquepossuipoderesextraordináriose adora exibi-los, porque no seu mundo, onde quer que seja, ocupa umlugarsemnenhumdestaque.Emconsequência...

Ah, você jáouviu falarnele?Francamente, amigovelho, comopossocontar-lhe uma história de forma coerente se você não para de meinterromper? Não compreende que a verdadeira arte da conversaçãoconsisteemmanter-seemcompletosilêncioenãoperturbarointerlocutorcom pretextos como o de que já se ouviu o que ele está contando. Sejacomofor...

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Azazel, como sempre, estava furioso por ter sido chamado. Parecequeestavanomeiodeumaimportantecerimôniareligiosa.Eutambémtiveuma certa di iculdade parame controlar. Ele está sempre envolvido comalguma coisa que considera importante e não percebe que, quando ochamo,éporqueestouenvolvidoemalgumacoisaimportante.

Esperei calmamente até que ele parasse de reclamar e expliquei asituação.

Eleescutoucomumaruganapequenatestaedepoisperguntou:

—Queéneve?

Expliqueiaele.

— Está querendo dizer que neste planeta cai água solidi icada docéu?Pedaçosdeáguasolidificada?Eavidaaindanãoseextinguiu?

Nãomedeiaotrabalhodemencionarogranizo,masdisse:

—Caisobaformadeflocosmacios,óPoderosoSer.

— (Ele gosta de ser chamado por esses nomes tolos.) — Éinconveniente,porém,quandocaiemexcesso.

Azazeldisse:

— Se está pensando em pedir que eu modi ique o clima do seumundo, pode perder as esperanças. Isto implicaria uma intervençãoplanetária,oquefereaéticadomeupovo.Eumerecusoterminantementea praticar qualquer ato contrário à ética, especialmente porque, se forapanhado,servireidecomidaparaotemidoPássaroLamell,umacriaturadetestável, cujos modos à mesa são simplesmente indescritíveis. Eu nãotenhonemcoragemde lhedizerque tipode temperoeleusariaparamecozinhar.

— A ideia de uma intervenção planetária nem me passou pelacabeça, ó Ente Sublime. Estava pensando em algo muito mais simples. Aneve,quandocai,étãomaciaquenãosuportaopesodeumserhumano.

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—Ninguémmandou vocês serem tão pesados—disseAzazel, comardedesdém.

— É verdade, mas é justamente esse peso que torna as coisasdi íceis. Eugostariaquevocê izessemeuamigopesarmenosquandoeleestáandandonaneve.

Eradi ícilparamimprenderaatençãodeAzazel.Ele icourepetindoparasimesmo:

— Água solidi icada... por toda parte... cobrindo a terra. Sacudiu acabeça,comosenãopudesseaceitaraideia.

—Vocêpodetornarmeuamigomaisleve?—insisti.

—É claro— respondeuAzazel, em tomofendido.—É só aplicar oprincípiodaantigravidade,ativadopelasmoléculasdeáguanascondiçõesapropriadas.Nãovoudizerqueéfácil,masépossível.

—Espere—disseeu,emtomhesitante, lembrando-medealgumasexperiências anteriores com Azazel. — Talvez seja melhor colocar aintensidadedocampoantigravitacionalsobocontroledomeuamigo.Podeserque,emcertascircunstâncias,eleprefiraconservarseupesonormal.

—Colocarumso isticadosistemaantigravidadesobocontroledeumrelesserhumano?Seriaumaverdadeiraheresia!

— Só estou pedindo porque é você— argumentei.— Sei que nãoadiantariapediramesmacoisaaoutracriaturadasuaespécie.

Esta mentira diplomática surtiu o efeito esperado. Azazel estofou opeitoempelomenosdoismilímetrosedeclarou,comvozaguda:

—Deixecomigo.

Acho que Septimus adquiriu sua nova habilidade naquele mesmoinstante,masnãopossotercerteza.Estávamoseraagostoenãohavianevepara fazer a experiência. Eu também não estava disposto a fazer umaviagemrápidaàAntártida,PatagôniaouGroenlândiaparabuscarmatéria-prima.

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Tambémnãohavia razãopara explicar a situação a Septimus antesdechegaroinverno.Elenãoacreditariaemmim.Poderiamesmochegaràconclusãoridículadequeeu(logoeu!)andarabebendo.

Masodestinocolaborou.EuestavanacasadecampodeSeptimusnoinal de novembro, para o que ele chamava de última estada do ano,quandocomeçouanevar.

Septimus soltou uma praga e declarou guerra ao universo por nãolhehaverpoupadoaquelegolpebaixo.

Para mim, porém, a nevasca era uma bênção dos céus. Para eletambém,sóquenãosabia.Eudisse:

— Não se preocupe, Septimus. Chegou a hora de descobrir que anevenãoénenhumobstáculoparavocê.—Eexpliquei-lheasituaçãocomtodososdetalhes.

Acho que era de se esperar que sua primeira reação fosse dedescrédito,maselefezváriasreferênciasabsolutamentedesnecessáriasàminhasanidademental.

Entretanto, eu dispusera demeses para prepararminha estratégia.Disseaele:

—Septimus,atéhojenãolhereveleicomoganhoavida,oquetalveztenha despertado a sua curiosidade. Não icará surpreso com a minhareticência quando eu lhe disser que trabalho para o governo, em umprojetodepesquisaqueenvolveaantigravidade.Nãopossolherevelarosdetalhes, mas ique sabendo que a experiência que pretendo fazer comvocêseráextremamenteimportanteparaoprograma.Naturalmente,tudoterádesermantidoemsegredo.

Ele olhou paramim, espantado, enquanto eu assoviava, baixinho, ohinoamericano.

—Estáfalandosério?—perguntou.

—Achaqueeubrincariacomumassuntotãosério?—repliquei.—AchaqueaCIAbrincariacomumassuntotãosério?

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Ele engoliu a história, persuadido pela aura de veracidade queenvolvetodososmeuspronunciamentos.

—Quedevofazer?—perguntou.

—Nomomento,osoloestácobertoporquinzecentímetrosdeneve.Imagine que o seu peso foi reduzido a zero, saia de casa e comece acaminhar.

—Bastaeuimaginar!

—Éassimqueacoisafunciona.

—Meuspésvãoficargelados.

—Porquenãocalçaumpardebotas?—disseeu,ironicamente.

Elehesitouedepoisrealmentefoibuscarumpardebotasecomeçoua calçá-las. Esta demonstração de falta de con iança me deixouprofundamentesentido.Alémdisso,elevestiuumcasacopeludoepôsnacabeçaumgorromaispeludoainda.

—Sevocêestápreparado...—disseeu,friamente.

—Nãoestou—declarouSeptimus.

Abri a porta e ele saiu. Não havia neve na varanda coberta, masassimquepisounosdegraus, elespareceramsairdebaixodos seuspés.Septimussegurou-senocorrimãoeolhouparamim,apavorado.

De alguma forma, ele havia chegado ao último degrau e resolveusubiraescadadevolta.Nãoconseguiu.Seuspésdeslizaramparaafrente,eelecaiudecostasnaneve.Continuouaescorregarpelojardimatépassarporumaárvoreeabraçar-seaotronco.Aindadeuduasoutrêsvoltasemtornodaárvoreantesdeparar.

—Porqueanevehojeestátãoescorregadia?—perguntou,comvoztrêmula.

Devoadmitirque,apesardeminhaféemAzazel,acenamedeixaraatônito. Não havia pegadas na escada, e seu corpo não deixara nenhum

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sulconaneve.

—Vocênãopesanadaquandoestásobreaneve—expliquei.

—Vocêestámaluco—disseSeptimus.

—Olheparaaneve!Vocênãodeixounenhumamarca.

Ele olhou e disse algumas coisas que até alguns anos atrás seriamtotalmenteimpublicáveis.

— Acontece — prossegui — que o atrito depende em parte dapressão exercida por um sólido sobre a super ície na qual está apoiado.Quantomenorapressão,menoroatrito.Vocênãopesanada,demodoquesua pressão na neve é zero, o atrito é zero, e você escorrega como seestivessesobreomaislisogelodomundo.

—Quevoufazer,então?Nãopossocontinuarescorregandoassim!

—Nãodoeu,doeu?Sevocênãopesanada,nãosemachuca.

—Mesmoassim.Oquevocêquer?Queeupasseavidatodadeitadodecostasnaneve?

—Ora,Septimus,ésópensarquevocêrecuperouopesoepronto!

Eleolhouparamiradecarafeiaedisse:

—Ésópensarquerecupereiopeso,hein?—Masfoiexatamenteoquefez,e levantou-sede formameiodesajeitada.Seuspésdeixaramumamarca na neve e quando tentou andar, com todo o cuidado, não tevenenhumproblema.

— Como é que você faz isso, George?— perguntou, com um novorespeitonavoz.—Jamaisimagineiquevocêfosseumcientista.

— A CIA me obriga a esconder meus conhecimentos cientí icos—expliquei.—Agoraimaginequeestá icandocadavezmaisteveecomeceaandar.Vocêvaideixarmarcascadavezmaisrasasnaneveeelavai icarcada vez mais escorregadia. Pare quando achar que está icandoescorregadiademais.

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Ele me obedeceu, porque nós cientistas temos uma grandeascendênciaintelectualsobreosoutrosmortais.

— Agora experimente escorregar um pouco — sugeri. — Quandoquiserparar,ésótornar-semaispesado.Masfaçaissogradualmente,paranãocairdecaranochão.

Comomeuamigoeraumtipoatlético,pegouojeitonuminstante.Eleme disse uma vez que o único esporte que detestava era a natação.Quando tinha três anos, o pai o jogara na água, em uma tentativa bem-intencionadadefazê-lonadarsemterdesesubmeteraotediosoprocessode aprendizado, e em consequência Septimus tivera de passar por dezminutos de respiração boca a boca. Ele explicou que o infeliz episódio odeixaracomumaaversãoinstintivapelaáguaetambémpelaneve.

— A neve não passa de água sólida — declarou, repetindo aspalavrasdeAzazel.

Na nova situação, porém, a aversão pela neve parecia haverdesaparecido.Elecomeçouaescorregar,soltandogritosdejúbilo,e,devezemquando,tornava-semaispesadoeparava, jogandoneveparatodososlados.

Derepente,elemepediuparaesperar,correuparadentrodecasaevoltou(imaginevocê!)comumpardepatinsdegelo.

—Aprendiapatinarnolago—explicou,enquantocalçavaospatins—,mas estava sempre preocupado, commedo de o gelo quebrar. Agorapossopatinaremterra,emtotalsegurança.

—Nãoseesqueça—adverti—queaantigravidadeéativadapelasmoléculas de H,0. Se você passar por um tre-cho sem neve, seu pesovoltaráinstantaneamente.Vocêpoderásemachucar.

— Não se preocupe— disse ele, começando a patinar. Observei-oenquanto se exercitava no terreno gelado da propriedade. Aos meusouvidoschegaramosversos:“Deslizandonaneve/emumlindotrenó...”

Septimus pode ser tudo, menos a inado. Tapei os ouvidos com asmãos.

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Oinvernoqueseseguiufoiomaisfelizdeminhavida.Passeiotempotodo naquela casa confortável, comendo e bebendo como um rei, lendolivros muito estimulantes, nos quais eu tentava ser mais esperto que oautor e descobrir o assassino, e imaginando com prazer as atribulaçõesporqueestariampassandoosmeuscredoresnacidade.

Olhandopela janela,podiaverSeptimus,quenãoparavadepatinarnaneve.Elesesentiacomoumpássaro;oexercíciolhedavaumasensaçãodeliberdadequejamaisexperimentara.Bem,cadaqualcomseugosto.

Pedi-lheparatomarcuidadoparaqueninguémovisse.

— Eu icaria em uma situação di ícil— expliquei—, porque a CIAnão aprova experiências particulares. Na verdade, não estou muitopreocupado com isso, porque, para uma pessoa como eu, a ciência estáacimadetudo.Entretanto,sevocêforvisto lutuandoacimadanevecomocostuma fazer, num instante isto aqui estará cheio de repórteres. A CIAsaberá do caso e o deterá para investigações. Você será examinado porcentenasdecientistasemilitares.Ficaráfamosoepassaráorestodavidacercadopormilharesdepessoas.

Septimusestremeceu.Comoeuestavacansadodesaber,a ideianãolheagradavanemumpouco.Elemeperguntou;

— Mas como é que eu vou buscar os suprimentos quando a nevebloquearaestrada?Nãoeraesseoobjetivodaexperiência?

— Tenho certeza de que a estrada permanecerá aberta durante amaiorpartedoinvernoenossoestoqueserásu icienteparanossustentarenquantoelaestiver fechada. Seeuestivererrado,porém, tudoquevocêtem a fazer é lutuar na neve até chegar bem perto da cidade, tomandocuidado para que ninguém o veja. (Certamente, nessas ocasiões, nãohaverámuita gente na rua). Depois, recupere o peso normal e entre naloja.Compreoquevocêprecisa,afaste-seumpoucoetorneadecolar.Viucomoésimples?

Naquele inverno, não houve necessidade de fazer aquilo nenhumavez. Eu sabia que meu amigo havia exagerado os perigos da neve. Eletambémnãofoivistoporninguémenquantoestavapatinando.

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Septimus estava radiante. Devia ver sua expressão quando paravadenevarouatemperaturacomeçavaasubir.Nãopodeimaginarcomoeleadoravaaquelacamadadeneve.

Queinvernomaravilhoso!Quepenatersidooúnico!

Que aconteceu? Já lhe conto o que aconteceu. Lembra-se do queRomeudissepoucoantesdeen iarafacaemJulieta?Vocêprovavelmentenão sabe. Ele disse: “Deixe uma mulher entrar em sua vida e adeustranquilidade.”

Na primavera seguinte, Septimus conheceu uma mulher chamadaMercedesGumm. Já tivera alguns namoros antes,mas nada de sério. Umcurto período de romance e ia cada um para o seu lado, sem rancores.A inaldecontas,eumesmotenhosidoperseguidopelasmulheresdurantetoda rainha vida e nunca assumi um compromisso sério, emborafreqüentementeelasme forcema...masémelhoreuvoltaràhistóriaqueestavacontando.

Septimusveiomeprocurarumdia.Pareciamuitoabatido.

—Estou apaixonadopor ela,George—con idenciou-me.—E!amedeixalouco.Nãopossoviversemela.

—Estábem—concordei.—Temaminhapermissãoparaviverporunstemposcomela.

—Muitoobrigado,George—disseSeptimus,emtommelancólico.—Agorasóprecisodaaprovaçãodela.Nãoseiporque,masachoqueelanãometememboaconta.

—Éestranho.Emgeral,você fazsucessocomasmulheres.A inal,érico,musculosoenãoémaisfeioqueamédia.

— Acho que são os músculos. Talvez ela me considere umbrutamontes.

Tive de admirar o poder de observação da moça. Na verdade,Septimuseraumbrutamontes.Acheimelhor,porém,nãomencionarissoaele.

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Eledisse:

— Mercedes me falou que para ela o ísico não tem a menorimportância. Ela está à procura de um homem que seja culto, sensato,racional, compreensivo e mais uma dezena de adjetivos semelhantes. Edeclarouquenãosounenhumadessascoisas.

—Jálhecontouqueescreveromances?

—Claroquesim.Elachegoua leralgunsdosmeus livros.Acontece,George,quemeuslivrossãoarespeitodejogadoresdefutebolamericano,coisasassim.Elanãogostounemumpouco.

—Suponhoqueelanãosejadotipoesportivo.

—Claroquenão.Elasabenadar—observouSeptimus,fazendoumacareta, provavelmente ao se lembrar da respiração boca a boca quandotinhaapenastrêsanos—,masissonãoajudamuito.

—Nessecaso,esqueça-a,Septimus.Asmulheresvãoevêm.Existemmuitospeixesnomaremuitospássarosnoar.Ànoite, todososgatossãopardos.Umamulherououtra,nãofazamenordiferença.

Eu teria continuado inde inidamente, mas parecia que ele estavaficandonervoso,eagentenãodevedeixarumbrutamontesnervoso.

—George,agoravocêmeofendeu—disseSeptimus.—

Mercedes é a única mulher do mundo para mim. Não posso viversem ela. Mercedes é o centro deminha existência. É o ar que respiro, osanguequecirculaemminhasveias.Elaé...

Elecontinuouindefinidamente,enãopareceuseincomodaramínimacomofatodeestarofendendoamim.Afinal,declarou:

—Demodo que não vejo outra saída a não ser continuar a insistirparaquesecasecomigo.

Euestavachocado.Sabiaexatamentequaisseriamasconsequências.O casamento deles representaria o im domeu paraíso. Não sei por que,

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mas se há uma coisa que as mulheres recém-casadas detestam são osamigossolteirosdomarido.

EununcamaisseriaconvidadoparairàcasadecampodeSeptimus.

—Vocênãopodefazerisso!—exclamei.

—Oh, admito que parece di ícil,mas eu tenho umplano.Mercedespodemeconsiderarumbrutamontes,masnãosouoquesepossachamardeumhomeminculto.Vouconvidá-laparasehospedarnaminhacasadecampo no inicio do inverno. Lá, na paz e tranquilidade do meu paraíso,icará mais à vontade e poderá perceber a verdadeira beleza da minhaalma.

Isso, pensei, era esperar demais atémesmo do paraíso, mas o quedissefoi:

— Não pretende mostrar a ela que é capaz de lutuar na neve,pretende?

—Claroquenão!Sódepoisquenoscasarmos.

—Mesmodepois...

—Quebobagem,George!—protestouSeptimus,emtomdecensura.—Entremaridoemulhernãopodehaversegredos.Aesposaéaqueleseraquem sepode con iar o quehádemais recôndito emnossa alma.Umaesposa...

Mais uma vez, ele continuou naquilo inde inidamente, e tudo quepudedizerdebilmentefoi:

—ACIAnãovaigostar.

OqueeledissesobreaCIAteriaagradadobastanteaosrussos.Aoscubanos,também.

—Vouconvencê-laairparalánocomeçodedezembro.

George. Espero que compreenda que precisamos icar sozinhos. Seique você nem sonharia em interferir nas incontáveis possibilidades

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românticas que se apresentarão para nós na solidão da natureza.Certamenteseremosatraídosumparaooutropelomagnetismodosilêncioedapaz.

Reconheci a frase, é claro. Foi a mesma coisa que Mac-beth disseantes de en iar a faca em Duncan, mas me limitei a icar olhando paraSeptimus, com um brilho gélido nos olhos. Ummês depois, Mercedes foiparaacasadecampocomSeptimuseeufiqueinacidade.

Não assisti pessoalmente ao que aconteceu na casa de campo. SeiapenasoqueSeptimusmecontou,demodoquenãopossojurarquetodososdetalhessejamverdadeiros.

Mercedes era uma boa nadadora, mas Septimus, que sentia umaaversão compreensível por aquele esporte, não fez nenhuma questão deconversarsobreoassunto.Ajovem,porsuavez,nãotinhamotivoparasereferiraoseupassatempo favorito.DemodoqueSeptimusnãosabiaqueelaeraumadaquelasnadadoras fanáticasquegostamdevestirummaiono meio do inverno e mergulhar nas águas gélidas de um lago paraalgumasrevigorantesbraçadas.

Assim, certamanhãde sol, enquantoSeptimus roncavano seu sonode brutamontes, Mercedes se levantou, vestiu o maio, vestiu um roupãoporcima,calçouumpardetênisefoiatéolago.Haviauma inacamadadegelopertodamargem,masocentroestavalimpo.Amoçatirouoroupãoeotênisecomeçouanadar.

Poucodepois,Septimusacordoue,comoinstintodeumapaixonado,percebeu instantaneamente que sua amadaMercedes não se encontravaem casa. Começou a procurá-la. Encontrando suas roupas e outrospertencesnoseuquarto,percebeuqueelanãohaviavoltadosecretamenteparaacidade,comotemeraaprincípio.Deviaestarláfora.

Calçou rapidamente umpar de botas e vestiu o casacomais grossoquetinhaporcimadopijama.Correuparafora,gritandoonomedamoça.

Mercedes o ouviu, é claro, e começou a acenar para ele, gritando:“Estouaqui!Nãocorra!Nãocorra!”

Para lhe contar o que ocorreu em seguida, vou usar as próprias

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palavrasdeSeptimus.Elemedisse:

—Paramim,Mercedes estava gritando: Socorro! Socorro! Só podiapensarqueminha amadahavia caído acidentalmenteno lago e estava seafogando.Comopoderiaimaginarquealguémteriacoragemdemergulharvoluntariamentenaquelaáguaenregelante?

“Euestavatãoapaixonadoporela,George,queimediatamentetomeia resoluçãodedominar omedoque sintopela água (especialmente águagelada)etentarsocorrê-la.Bem,talveznãotenhasidoimediatamente,mas,com toda a franqueza, não leveimais do quedois, ou talvez trêsminutosparamedecidir.

“Então gritei: Estou indo, meu amor. Mantenha a cabeça fora daágua!,ecomeceiacorrer.Eunãopodiaandaratélá.Eraumaemergência!Diminuí de peso enquanto corria e comecei a escorregar cada vez maisdepressa na neve fofa. Em segundos cheguei ao lago, deslizei pelo gelopróximoàmargememergulheinaágua,fazendoumagrandemarola.

“Como você sabe, não sei nadar. Além disso, estava de botas esobretudo.CertamenteteriameafogadoseMercedesnãoestivesseali.6

“Você poderia pensar que o incidente serviu para nos unir aindamais,mas...

Septimussacudiuacabeça,ehavialágrimasnosseusolhos.

—Nãofoibemassim.Mercedes icoufuriosa.“Seuidiota!”,exclamou.“Imagine, mergulhar no lago de botas e sobretudo! Que ideia maluca foiessa? Sabe o trabalho que tive para tirá-lo de lá? E você estava tãoapavorado queme deu um soco no queixo. Se eu tivesse desmaiado, nósdoismorreríamosafogados.Estádoendoatéagora.”

“Ela fez asmalas e foi embora sem dizer adeus. Tive de icar paratrásecurtirumtremendoresfriado,queatéagoraaindanãopassou.Nãotorneiavê-la.Elanãorespondeàsminhascartaseserecusaaatenderaosmeustelefonemas.Estátudoterminadoentrenós,George.

—Sónãoentendiumacoisa, Septimus:porquevocêmergulhounolago?Porquenão icounamargemeestendeuparaelaumpedaçodepau,

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jogou-lheumacordaoucoisaparecida?

Septimusolhouparamim,indignado.

— Eu não pretendia mergulhar! Minha intenção era deslizar naágua!

— Deslizar na água? Mas eu não lhe disse que o sistemaantigravidadesófuncionanogelo?

—Não senhor!—protestoumeu amigo, cada vezmais aborrecido.—VocêdissequesófuncionavacomH2O.Issoincluiaágua,nãoinclui?

Eleestavacerto.EutinhafaladoemH2O,poisacharaqueissopareciamaiscientífico.Protestei:

—MaseuqueriadizerH2Osólida!

—Queriadizer,masnãodisse!—exclamou,levantando-sedevagar,comumolharquerevelavaclaramentesuaintençãodemeesquartejar.

Não iquei para veri icar se havia interpretado correta-mente a suaexpressão.Nuncamaistorneiavê-lo.Ouvidizerqueestámorandoemumailhatropical.Provavelmentequerficaromaislongepossíveldaneve.

E como eu digo: “Deixe uma mulher entrar em sua vida...” Aliás,pensandobem, achoque foiHamlet quedisse isso antesde en iar a facaemOfélia.

Georgedeixousairumsuspiroalcoólicodasprofundezasdoqueeleconsideracomosuaalmaedisse;

—Maspareceque já estãopara fechar e émelhor irmos andando.Pagouaconta?

Infelizmente,eutinhapago.

— Pode me emprestar cinco dólares, amigo velho? Estou semdinheiroparaotáxi.

Infelizmente,eupodia.

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LógicaELógica

Georgenão eraumadessas almas tímidasque achamqueninguémtemodireitode criticaruma refeiçãopelaqual não estápagando.Assim,informou-me que estava decepcionado com o almoço, com todo o tato dequefoicapaz,ouporoutra,comtodootatoqueachavaqueeumerecia,oque,naturalmente,nãoéamesmacoisa.

—Estesmorgasbordestáumadroga—declarou.—Asalmôndegasestãofrias,faltasalnoarenque,oscamarõesnãoestãobemfritos,oqueijoestávelho,osovossemtempero,os...

—George,estaéa terceiravezquevocêencheoprato—disseeu.— Daqui a pouco, vamos ter de operá-lo para aliviar a pressão nasparedesdoestômago.Porqueestáseempanturrandocomessacomidadeterceiraclasse?

—Achaqueeuseriacapazdeofendermeuan itrião,recusando-meacomersuacomida?—disseGeorge,comaltivez.

—Acomidanãoéminha,esimdorestaurante.

—É ao proprietário desta espelunca que estoume referindo.Diga-me,amigovelho,porquenãoentraparaumclubedeclasse?

—Eu?Pagarumafortunaporprivilégiosduvidosos?

—Estou falando de um clube de classe, no qual eu pudesse entrarcomo seu convidado para desfrutar de um jantar decente. Não, não...—acrescentou, em tom queixoso —... este é um sonho impossível. Qual oclubedeclassequearriscariasuareputaçãoaceitandovocêcomosócio?

— Qualquer clube que permitisse a sua entrada como convidadocertamente me aceitaria... — comecei, mas George já estava perdido emreminiscências.

—Lembro-medotempo—disse,comosolhosbrilhando—emquejantava pelo menos uma vez por mês em um clube que oferecia o bufê

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maisgenerosoerequintadoquejáenfeitouqualquermesadesdeotempodeLuculo.

—Apostoquevocêfrequentavaoclubedegraça,comoconvidadodealguém.

— Não sei de onde tirou essa ideia, mas, por uma estranhacoincidência, acertou em cheio. O sócio do clube a quem devo agradecerportantasnoitesagradáveissechamavaAlistairTobagoCrumpVI.

—George,estavaiseroutrahistórianaqualvocêeAzazelsejuntampara levar um pobre infeliz ao desespero enquanto tentam ajudá-lo daformamaisdesajeitadapossível?

—Nãoseioquequerdizercomisso.Fizemoscomqueoseumaiordesejo se concretizasse, movidos pelos princípios mais elevados debondadedesinteressadaeamoraopróximo...paranãofalarnofatodequeeu realmente adorava aqueles jantares no clube. Mas deixe-me contar ahistóriadocomeço.

AlistairTobagoCrumpVIeramembrodoClubeParaísodesdeodiaemquenascera,porqueopai,AlistairTobagoCrumpVcolocaraonomedoilho na lista assim que uma inspeção visual o assegurara de que ainformaçãodomédicoarespeitodosexodacriançaestavacorreta.AlistairTobago Crump V tinha sido igualmente registrado no clube pelo pai, eassimpordiante,desdeodiaemqueBiilCrump,enquantoserecuperavadeumabebedeira, tinhasidoalistadoà forçanamarinhabritânicabematempodesevercomomembro indignadoda tripulaçãodeumdosnaviosdafrotaquerecuperaraNovaAmsterdãdosholandesesem1664.

Acontece que o Paraíso é o clubemais seleto de toda aAmérica doNorte. É tão fechado que os únicos que sabem da sua existência são ossócios eunspoucos convidados. Eumesmonão sei onde ica; sempremelevarampara ládeolhosvendados,emumcabrioléde janelasopacas.Sópossolhedizerque,quandochegávamospertodonossodestino,oscascosdocavalopassavamporumaestradadeparalelepípedos.

NinguémeraaceitonoParaísoanão serqueosancestraisdosdoislados da família remontassem ao período colonial. E não era só a famíliaque contava. A conduta do candidato devia ser irrepreensível. George

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Washington foi recusado por unanimidade porque havia faltado com orespeitoparacomasautoridadesconstituídas.

Os convidados eram selecionados comomesmo rigor,mas isso nãome deixou de fora, naturalmente. Ao contrário de você, não sou umimigrante de primeira geração, nascido em Dobrudja, Herzegovina ououtro lugar igualmente improvável. Minha linhagem é impecável, já quemeusantepassadosvêminfestandooterritóriodestanaçãodesdeoséculoXVII e já que todos, sem exceção, evitaram os pecados de rebelião,deslealdade e antiamericanismo durante a Guerra da Independência e aGuerra Civil, aplaudindo com imparcialidade os dois exércitos emconfronto.

Meuamigo,Alistair,tinhaumorgulhoespecialempertenceraoclube.Freqüentemente me dizia (porque era um chato daquele tipo que viverepetindo amesma coisa): “George, o Paraíso é a essência domeu ser, onúcleo da minha existência. Se eu tivesse tudo que a riqueza e o poderpudessemmedarenãotivesseoParaíso,seriacomoseeunadativesse.”

Naturalmente,Alistairtinhatudoqueariquezaeopoderpodiamlhedar,porqueoutradasexigênciasparapertenceraoParaísoerasermuitorico. Quando mais não fosse, a anuidade cobrada tomava isso essencial.Entretanto, mais uma vez, ser rico não era tudo. A riqueza tinha de serherdada.Nãopodiatersidoganhapelopretendente.Qualquersuspeitadequeocandidatotivessetrabalhadopordinheirootornariaimediatamenteinelegível. Nomeu caso, a única coisa queme impediu de entrar para oclube foio fatodemeupai ter-seesquecidodemedeixaralgunsmilhõesdedólaresdeherança,jáque,noqueserefereaotrabalho...

Nãodiga“issoeujásei”,amigovelho.Nãohámaneiradevocêsaber.

Naturalmente,ninguémobjetariaseumsócioresolvesseaumentarasua renda através de um método inteligente, que não envolvesse otrabalho.Haviasemprearti ícioscomoaespeculaçãonabolsa,asonegaçãodeimpostos,otrá icodein luênciaeoutrascoisasquenosricoschegamaserumasegundanatureza.

TudoissoeralevadomuitoasériopelossóciosdoParaíso.Falava-sede sócios que, depois de perderem tudo que possuíam por causa de umataque inexplicável de honestidade, tinham preferido morrer de fome a

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arranjar um emprego e terem de renunciar ao clube. Os nomes dessesheróisaindasãomencionadoscomrespeito, eplacasemsuahomenagempodemserencontradasnasparedesdasede.

Não,nãopodiampedirdinheiroemprestadoaosamigos,meuvelho.Sóvocêmesmopara leressa ideia.TodosossóciosdoParaísosabemquenão se pede dinheiro emprestado a um homem rico quando existe umnúmero enormede pessoas pobres esperando ansiosamente na ila paraserem esposadas. A Bíblia nos lembra que “tendes sempre os pobresconvosco”eosmembrosdoParaísosãomuitoreligiosos.

Entretanto, Alistair não se sentia inteiramente feliz, e por umasimples razão; os outros sócios do Clube Paraíso o evitavam sempre quepossível. Jámencionei o fato de que ele eramuito chato.Nunca tinha umcaso interessante para contar, um dito espirituoso para acrescentar àconversa, ou uma opinião digna de nota sobre qualquer assunto. Naverdade, mesmo em um ambiente que, em termos de perspicácia eoriginalidade, estavamaisoumenos aoníveldequarta sériedoprimeirograu,elesedestacavacomoomaisobtusodetodos.

Podeimaginarasuafrustração,alisentado,noiteapósnoite,sozinhonomeiodamultidão.Ooceanodavidasocial,porassimdizer,passavaporelemasnãoomolhava.Mesmoassim,todanoiteiaaoclube.Mesmonodiaemqueteveumviolentoataquededisenteria,chegoucarregado,masnãodeixou de comparecer. Essamostra de idelidade foi admirada de formaabstratapelosoutros sócios,mas,poralgumarazão,nãodespertoumuitasimpatia.

Claro que às vezes ele tinha o privilégio de me receber comoconvidadonoParaíso.Minhalinhagemeraimpecável,meupassadodenão-trabalhador convicto granjeava o respeito de todos, e em troca de umalauta refeição e de um ambiente re inado, tudo à custa de Crump,naturalmente,dava-me

Otrabalhodeconversarcomeleerirdesuaspiadastotalmentesemgraça. Como tenho coração mole, comecei a sentir uma profundacompaixãodaquelepobre-diabo.

Devia haver alguma forma de torná-lo a vida da festa, a alma doParaíso, um homem invejado por todos os outros sócios. Comecei a

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imaginar os sócios mais antigos e respeitados disputando a honra de sesentaremaoseuladonojantar.

A inal de contas, Ahstair era a própria imagem da respeitabilidade,detudoqueumsóciodoclubeambicionavaser.Eraalto,magro,seurostotinha a expressão de um cavalo ruminando, os cabelos eram louros eescorridos.Tinhaolhosazuiseoardeortodoxia formal, conservadoradeum homem cujos ancestrais tinham a si mesmo em conta tão alta quejamais se casariam com uma pessoa de estirpe inferior. Tudo que lhefaltava era qualquer vestígio de alguma coisa interessante para dizer oufazer.

Masissonãoeradifícildecorrigir.EraumcasoperfeitoparaAzazel.

Daquelavez,Azazelnão icouaborrecidocomigoquandoochameidoseumundomístico.Tinhaestadoemalgumaespéciedebanquete, aoqueparecia,estavanasuavezdepagaracontaeeuohaviatiradodelácincominutos antes de a conta chegar. Deu uma risadinha com voz de falsete,porque,comovocêsabe,temapenasdoiscentímetrosdealtura.Disseparamim:

—Vou voltar quinzeminutos depois. Até lá, com certeza, alguém játerápagadoaconta.

—Comovaiexplicarsuaausência?—pergunteiaele.

Eleseempertigoutodoebalançouacauda.

— Contarei a verdade; que fui chamado por um monstroextragaláctico de inteligência subnormal, que necessitavadesesperadamentedosmeusconselhos.Oquevocêquerdestavez?

Contei a ele e,paraminha surpresa, começoua chorar.Pelomenos,gotículas de um líquido vermelho jorraram dos seus olhos. Suponho queeram lágrimas. Uma delas caiu na minha boca e percebi que tinha umgostohorrível,parecidocomodevinhotintobarato,ou,pelomenos,comoimagino que seria o gosto de vinho tinto barato, se eu um dia tivessecoragemdeexperimentaressetipodebebida.

— Émuito triste— declarou, a inal.— Conheço o caso de um ser

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muito inteligenteecapazqueestásempresendoesnobadoporgentequenemlhechegaaospés.Nãoconheçodestinomaistriste.

—Quempoderiaser?Esteserinfeliz,querodizer.

—Eumesmo!—exclamou,batendocomforçanopequenopeito.

—Achoissodifícildeimaginar—disseeu.—Você?

— Eu também acho. Mas garanto que é verdade. O que esse seuamigosabefazerquepodeseraperfeiçoado?

—Bom,ele contapiadas.Oupelomenos tenta. Sãohorríveis.Ele searrasta interminavelmente, fazrodeiosdesnecessáriosedepoisesqueceodesfecho.Aspiadasdomeuamigosãodefazerchorar.

Azazelsacudiuacabeça.

— Isso é mau. Muito mau. Acontece que, por coincidência, sou umexcelentecontadordepiadas.Jálheconteidaquelavezemqueumplóquioeumjiniramoestavamfazendoumaandesantoriaeumdelesdisse...

—Jámecontou,sim—disseeu,mentindocomconvicção.—VamosvoltaraocasodeCrump.

— Existe algummeio simples de melhorar a forma de contar umapiada?—perguntouAzazel.

—Umcertodesembaraço,éclaro—disseeu.

— É claro. Uma simples divaiinação das cordas vocais resolverá ocaso...supondoquevocês,bárbaros,tenhamcordasvocais.

— Temos sim. Além, naturalmente, da capacidade de imitar váriossotaques.

—Sotaques?

— Maneiras incorretas de falar. Os estrangeiros que nãoaprenderam uma língua quando crianças quase sempre pronunciamerrado as vogais, trocam a ordem das palavras, cometem erros de

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gramáticaeassimpordiante.

UmaexpressãodehorrorpassoupelopequenorostodeAzazel.

—Masistoéumaofensamortal!—exclamou.

—Nãonestemundo—assegurei-lhe.—Deveriaser,masnãoé.

Azazelsacudiutristementeacabeça.

— Seu amigo já teve oportunidade de ouvir essas atrocidades quevocêchamadesotaques?

— Certamente. Qualquer pessoa que more em Nova York estáconstantementeexpostaatodosostiposdesotaques.Naverdade,oqueéraroéouvirumapronúnciacastiça,comoaminha.

— Muito bem— disse Azazel. — Então é apenas uma questão deescapularamemória.

—Fazeroquêcomamemória?

—“Escapular”, istoé, tornarmaise iciente.Apalavraéderivadade“escapos”,odentedeumdiriginozumbívoro.

—Ecomissoeleserácapazdecontarpiadascomsotaque?

— Apenas os sotaques a que tiver sido exposto. A inal de contas,meuspoderesnãosãoilimitados.

—Poistratedeescapulá-lo.

Umasemanadepois,encontrei-mecomAlistairTobagoCrumpVI,naesquinadaQuintaAvenidacomaRua53,eprocureiemvãonoseurostoporsinaisdeumtriunforecente.

—Alistair,temcontadomuitaspiadasultimamente?—perguntei.

—George,meuamigo,ninguémseinteressaporelas.Háocasiõesemquechegoapensarquenãotenhojeitoparacontarpiadas.

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— Pois vou lhe fazer uma proposta. Venha comigo a um clubenoturno que conheço. Eu lhe apresento, você se levanta e diz a primeiracoisaquelhevieràcabeça.

Posso lheassegurar, amigovelho,quenão foi fácil convencê-lo.Tivede fazerusode todaa forçadaminhapersonalidademagnética.No inal,porém,eleconcordou.

Levei-oauminferninhodeterceira,parecidocomumdesseslugaresaondeàsvezesvocêmelevaparajantar.Euconheciaodonodaespelunca,econvenci-oaconcordarcomaexperiência.

Às 11:00 da noite, quando a folia estava no auge, levantei-me esilenciei a plateia com meu ar de dignidade. Só havia onze pessoaspresentes,masacheiqueerasuficienteparaaprimeiravez.

— Senhoras e senhores — disse eu —, temos hoje em nossacompanhiaumcavalheirodegrandeintelecto,ummestredenossalíngua,que todos, certamente, terão prazer em conhecer. Trata-se de AlistairTobago Crump VI, professor de inglês da Universidade de Columbia eautordeComoFalarumInglêsPerfeito.ProfessorCrump,querselevantaredizeralgumaspalavrasparanossadistintaplateia?

Crumpselevantou,comumarmeioassustado,edisse:

—Muchoobrrigadaparratodasvocêis.

Olhe, meu velho, já ouvi você contar piadas no que pretende fazerpassarporsotaquede judeu,maspoderiaserapronúnciadeum locutorde rádio em comparação com Crump. O caso é que Crump parecia umprofessorde inglêsdeumagrandeuniversidade.Olharparaaquelerostoaltivo, solene, e de repente ouvir uma frase num inglês todo estropiadodeixou as pessoas a princípio totalmente sem ação. Depois, as risadaschegaramàsraiasdahisteria.

Crumpmedirigiuumolhar levementesurpreendidoemedisse,emum sotaque sueco, levemente cantado, que não me atrevo a tentarreproduzir:

—Nãoesperavaumareaçãotãoimediata.

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—Esqueça—disseeu.—Continue falando.Crumpesperouqueosrisosparassem,oquelevoualgumtempo,ecomeçouacontarpiadascomsotaque escocês, espanhol, grego etc. etc. Sua especialidade, porém, era osotaquedoBrooklyn...alínguaquevocêfala,amigovelho.

Depois disso, toda noite eu o deixava passar algumas horas noParaísoedepoiso levavaparaaquelamesmacasanoturna.Anoticia logose espalhou. Naquela primeira noite, como eu disse, a audiência erapequena, mas em pouco tempo havia gente na porta brigando paraconseguirumlugar.

Crumpaceitoutudocommuitanaturalidade.Naverdade,pareciaumpoucodeprimido.Disseparamim:

—Escute, não há sentido em desperdiçar omeu talento com essessimplórios.QueromostrarminhashabilidadesaosmeuscompanheirosdoParaíso. Eles não prestavam atenção àsminhas piadas porque nuncamehaviaocorridocontá-lascomsotaque.Naverdade,eumesmodesconheciaeste meu talento, o que mostra até que ponto uma pessoa inteligente esensível pode se subestimar. Só porque não sou do tipo que gosta deaparecer...

EstavafalandonoseumelhorsotaquedoBrooklyn,queconstituiumaverdadeira agressãoparameusouvidos, se vocêmeperdoa a franqueza,amigo velho, de modo que apressei-me a assegurar-lhe que cuidaria detudo.

FaleiaodonodoestabelecimentoarespeitodariquezadossóciosdoParaíso, semmencionar, é claro, que seu pão-durismo estava à altura desuas fortunas. O homem, babando com a ideia de conquistar um públicotão desejável, mandou convites para todos eles. Tinha sido ideia minha,poiseusabiaquenenhumsóciodocluberesistiriaàtentaçãodeassistiraum espetáculo de graça, especialmente depois que lancei o boato de queseriamexibidosfilmespornográficos.

Os sócios do Clube Paraíso compareceram em peso, o que deixouCrumpradiante.

— Vai ser uma beleza. Tenho ura sotaque coreano que vai acabarcomeles.

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Ele também contava no seu repertório com um sotaque sulista queeraprecisoouvirparacrer.

Por alguns minutos, os sócios do Paraíso icaram sentados em umsilêncio mortal, e tive a horrível impressão de que não haviamcompreendido o humor sutil de Crump. Entretanto, estavam apenasparalisados de espanto; quando se recuperaram, começaram a rir àsgargalhadas.

Barrigas imponentes balançaram, pincenês caíram no chão, suíçasbrancastremularamaovento.Todosossonsdesagradáveis,dorisinhoemfalseiedealgunsaogargalhartrovejantedeoutros,encheramsubitamenteorecinto.

Crump icou envaidecido com aquela demonstração de estima. Ogerente, certo de que aquilo era o início de um empreendimentoextremamentelucrativo,aproximou-sedeCrumpnointervaloedisse:

—Meuamigo,meuamigo, sei quepediu apenasumaoportunidadeparamostrarsuaarteequeestáacimadolixoqueaspessoaschamamdedinheiro,masnãopossoresistirpormaistempo.Podemechamardetolo.Podeme chamar de sentimental. Mas tome, tome, meu amigo, tome estecheque.Vocêfezpormerecê-lo,atéoúltimocentavo.Use-ocomoquiser.

E comagenerosidadedoempresário típico, queesperamilhõesemtroca,colocounamãodeCrumpumchequede25dólares.

Isso foiapenasocomeço.Crump icou famoso, tornou-seo ídolodascasasnoturnas,ocômicomaisbempagodacidade.Comojáeramilionário,graçasàsnegociatasdosantepassados,nãoprecisavadarendaadicional,erepassou-a inteiramente para seu empresário... para mim, em outraspalavras.Emmenosdeumano,eujáhaviaganhoumafortuna.OquepõeporterrasuateoriaridículadequeeueAzazelsótrazemosmásorte.

OlheiironicamenteparaGeorge.

— Como no momento você não tem um tostão furado, George,suponhoqueagoravaimedizerquetudonãopassoudeumsonho.

—Absolutamente!—protestou George.—A história é verdadeira,

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palavraporpalavra,comotodasashistóriasqueconto.Eo inalqueacabeiderelataréprecisamenteoqueteriaacontecidoseAlistairTobagoCrumpVInãofosseumidiota.

—Umidiota?

—Issomesmo.Avalieporvocêmesmo.Orgulhosodochequedevinteecincodólaresquehaviarecebido,mandouemoldurá-lo,levou-oaoClubeParaísoemostrou-oatodos.Queescolhatinhamossócios?Elehaviaganhodinheiro. Tinha sido pago por serviços prestados honestamente. Foramobrigados a expulsá-lo. E Crump, privado do seu clube, achou por bemmorrerdetristeza.Comseuataquecardíacoláseforammeusmilhõesdedólares.ClaroqueeueAzazelnãotivemosculpanenhuma.

—Masseelemandouemoldurarocheque,nãochegouadescontá-loenãoganhoudinheiroalgumcomseutrabalho!

George levantou a mão direita com um gesto dogmático, enquantoempurravaacontadojantarnaminhadireçãocomamãoesquerda.

— É o princípio da coisa que conta. Já lhe disse que os sócios doClube Paraíso são muito religiosos. Quando Adão foi expulso do Paraíso,Deus lhedissequedaíemdiante teriade trabalharparaviver.Achoqueaspalavrasexatasforam:“Comerásopãocomosuordoteurosto.”Segue-seque,damesmaforma,sevocêtrabalhaparaganharavida, temdeserexpulsodoParaíso.Lógicaélógica.

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ManiadeViajar

Eu tinha acabado de chegar de uma viagem a Williamsburg, naVirgínia, e meu alívio por estar de volta ao meu amado processador detexto se misturava com um vago ressentimento pelo fato de ter aceito oconviteemprimeirolugar.

George não parecia levar em conta o fato de que havia acabado desaborear uma excelente refeição em um restaurante de primeirainteiramenteàminhacusta,razãomaisdoquesu icienteparameoferecerumpoucodesimpatia.

Depois de remover um iapo de carne que icara preso entre osdentes,eledisse:

—Não consigo entender, amigo velho, por que você se ressente dofato de que organizações supostamente respeitáveis estejam dispostas alhepagarmilharesdedólaresporumapalestradeumahora.A inal,játiveoportunidade de ouvi-lo falar e acharia muito mais razoável que vocêfalasse de graça e se recusasse a parar a menos que lhe pagassemmilharesdedólares. Isso semquererofender seus sentimentos, se équevocêtemalgum.

— Quando foi que você me ouviu falar? — perguntei. — Nosintervalos entre as suas divagações é praticamente impossível encaixarmais do que duas dúzias de palavras! (Naturalmente, tive o cuidado deusarexatamentevinteequatropalavrasparamedefender.)

Georgemeignorou,comoeutinhacertezaquefaria.

—Você diz que detesta viajar,mas está sempre aceitando convitesparaconferências,atraídoporesselixochamado“dinheiro”.Sabequeissodepõe contra o seu caráter? Issome faz lembrar a história de SophoclesMoskowitz, um homem que também relutava em sair de casa, a não serquelheacenassemcomapossibilidadedeaumentarasuajágrandecontabancária. Ele também usava um eufemismo para essa relutância,chamando-ade “aversãoaviagens”.FoiprecisoomeuamigoAzazelpara

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mudarisso.

—Nãopeçaaesseseudemôniodedoiscentímetrosparameajudar!—exclamei,comosetivesserazõesparaacreditarqueopequenosereramaisdoqueumfrutodaimaginaçãodoentiadeGeorge.

Georgemaisumavezmeignorou.

Naverdade [disseGeorge], foi umadasprimeiras vezesquepedi aajudadeAzazel.Issoaconteceuhámaisdetrintaanos,vocêentende.Faziapoucotempoqueeuaprenderaaconjurá-loeaindanãocompreendiabemosseuspoderes.

É claro que, se eu acreditasse nas bazó ias de Azazel, chegaria àconclusão de que ele era capaz de fazer qualquer coisa, mas será queexiste algum mortal (com exceção da minha pessoa, é claro) que nãoexagereumpoucoquandoestáfalandodasprópriasqualidades?

Na época, eu conhecia muito melhor uma garota sensacionalchamada Fi i. Um ano antes, Fi i havia pesado os prós e os contras echegadoàconclusãodequeariquezadeSophoclesMoskowitzmaisdoquecompensavaosseusdefeitoscomopessoa.

Mesmo depois que os dois se casaram, Fi i continuou a ser minhaamiga secreta, embora se mantivesse inesperadamente iel ao marido.Apesar disso, eu gostava de vê-la, coisa que você entenderia se aconhecesse.Na suapresençaeu sempreme lembrava, comsatisfação,decertasatividadesdescontraídasquehavíamoscompartilhadonopassado.

— Bum Bum — disse eu, que jamais a havia chamado por outronome que não fosse o seu nome artístico, proposto pelos fascinadosespectadoresdeseuinteressantenúmero—,vocêestácomótimoaspecto.

— É mesmo? — disse ela, com aquela voz sensual que me fazialembrar das ruas de Nova York em seu feérico esplendor. — Pois nãoestoumesentindonadabem.

—Qualéoproblema,minhaquerida?

—EaquelechatodoSophocles.

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—ComotemcoragemdeFalarassimdoseumarido,BumBum?Umhomemtãoricocomoelenãopodeserchato.

—Eoquevocêpensa.Queblefe! Lembra-sedequevocêmedisseque Sophocles era tão rico quanto um tal de Creso, um cara de quemeununcaouvi falar?VocêseesqueceudemedizerqueesseCresodeviaserumpão-durodemarcamaior.

—Sophoclesépão-duro?

—Ecomo!Queadiantacasarcomumsujeitocheiodagranaseeleéumunha-de-fome?

—Ora essa, Bum Bum, é claro que você pode descolar uma granaprometendo-lheemtrocaasdelíciasdeumEhseunoturno.

Fififranziuatesta.

—Não sei bemoquevocê estáquerendodizer,mas eudisse a elequenãoencostariaumdedoemmimsenão fosseumpoucomais liberalcom o seu dinheiro. Não adiantou nada! Tenho ou não razão para icartriste?

A pobrezinha pôs-se a soluçar. Segurei-lhe amão, da formamenosfraternalquefoipossível.Elaselamentou:

—Quandomecaseicomaquelepilantra,penseicomigomesma:“Fi i,daqui para a frente vai ser só Paris, a Riveera, Bônus Airs, Casablancaeteceteraetal.”Qualoquê!

—Nãomedigaqueaqueledesalmadoserecusaalevá-laaParis!

—Elenãomelevaalugarnenhum!NuncasaímosdeManhattan.Eledizquenãogostadomundoláfora.Detestaplantas,animais,estrangeiros,casas e edi ícios que não sejam os edi ícios de Nova York. Eu mecontentariacomumshoppingcenter,masnemdissoelegosta.

—Porquenãoviajasemele,BumBum?

—Seriaatémaisdivertido,mascomquedinheiro?Ocaranãoabrea

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mãonempara jogar peteca. Tenhode fazer todas asminhas comprasnoMacy”s.—Elaestavaquasegritando.—NãomecaseicomaquelepalhaçoparafazercomprasnoMacy”s!

Olheiespeculativamente para várias partes do corpo de Fi i elamentei-mepornão ser rico.Antesde se casar, ela às vezes concordavaemcontribuirparaaminhacausaapenasporamoràarte,maseutinhaaimpressão de que, após o casamento, abandonara por completo taisatividades amadorísticas. Naquele tempo, como você já deve terpresumido, eu era ainda mais atraente do que hoje, mas nem por issodesfrutavadeumamelhorposiçãofinanceira.

— E se eu despertasse no seu marido o gosto pelas viagens? —perguntei.

—Puxa,Seriatãobom!

—Vocênãoficariaagradecida?

Elaolhouparamimcomumaexpressãosaudosa.

— George, no dia em que eleme disser queme leva a Paris, eu evocêvamosfazercomoemAsburyPark.Lembra-se?

Seeume lembravadoquehavíamos feitonaquela cidadebalneáriade Nova Jersey? Como poderia me esquecer? Dois dias depois, meusmúsculosaindaestavamdoendo.

Discuti o assunto com Azazel enquanto tomávamos cerveja: umacanecaparamim,umagotapara ele.Azazel adora cerveja. Perguntei-lhe,cauteloso:

—Essespoderesmágicosquevocêvivealardeandosãoparavaler?

Eleolhouparamim,ofendido.

—Diga-meoquequerqueeufaça.Diga-me,eeulhemostrodoquesoucapaz.Depoisdisso,querovermechamarde“trapalhão”.

Uma vez, sob o efeito de um lustra-móveis com perfume de limão

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(queAzazelachavadelicioso), elemerevelaraquealguémdoseumundousaraessaexpressãopoucoedificantereferindo-seaele.

Deixei-otomaroutragotadecervejaeprossegui,emtomcasual:

—Tenhoumamigoquenãogostadeviajar.Suponhoqueparaumapessoa tão habilidosa como você não seria di ícil transformá-lo em umturistacompulsivo.

Devoadmitirquepartedoseuentusiasmodesapareceu.

— Imagineiquevocê fossepedir alguma coisa sensata—disse, emsuavozaguda—,comocolocaraquelequadrohorrorosonolugarapenascomaforçadopensamento.

Enquanto falava, o quadro se moveu e icou inclinado para o ladooposto.

— Por que eu lhe pediria isso? Os ângulos de inclinação dosmeusquadros obedecem a considerações de ordem estética. O que eu quero équevocêincutaemSophoclesMoskowitzamaniadeviajar,viajarotempotodo, mesmo que a esposa não possa acompanhá-lo. — Acrescentei aúltima condição porque me ocorreu que uma vez ou outra seriaconveniente que Sophocles viajasse desacompanhado, deixando Fi i nacidade.

— Isso não será fácil. Uma aversão a viagens como essa pode sercausadaporexperiênciasdesagradáveisnainfância.Pararemovê-las,tereiderecorreraumadelicadamanipulaçãocerebral.Nãodigoquenãopossaser feito, já que as mentes primitivas da sua raça têm uma estruturarelativamente simples, mas você terá de me mostrar o indivíduo emquestãoparaqueeupossaexaminarsuamente.

Não havia nenhum problema. Pedi a Fi i para me convidar parajantarcomose fosseumvelhocolegadeescola. (Elahaviapassadoalgumtempo no campus de uma universidade, fazia alguns anos, embora euduvidasse que Jamais tivesse posto os pés em uma sala de aula. AsatividadesdeFifieramtodasextracurriculares.)

Levei Azazel no bolso do paletó e de vez em quando podia ouvi-lo

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murmuraralgumas fórmulasmatemáticascomputadascomasuavozinhade falsete. Supus que estivesse analisando a mente de SophoclesMoskowitz, o que seria por si só uma façanha, pois não era precisoconversarmuito comohomemparaperceberquenãohavia quasenadanasuamenteparaseranalisado.

Quandochegamosemcasa,disseparaAzazel:

—Então?

— É possível — declarou, fazendo um gesto vago com o braçocoberto de escamas. — Você por acaso tem à mão um sinaptômetromentodinâmicomuhifásico?

—Infelizmente,não.EmpresteiomeuaumamigoqueviajouparaaAustrália.

—Queazar!—lamentou-seAzazel.—Agoratereidefazertodososcálculosamão!—Elecontinuouselamentando,mesmodepoisdeconcluira tarefa. — Foi quase impossível — declarou. — Só uma pessoa com aminhaextraordináriacapacidadepoderiaexecutarumajustetãodelicado.Depoisdecolocaramentedelenoestadoemqueseencontra,tivede ixá-lanolugarcomgrandespregos!

Acheiqueestavafalandoemsentidofiguradoedisseissoparaele.

Azazelreplicou:

— Bem, é como se fossem grandes pregos. Ninguém vai conseguirfazê-lomudar de ideia. Ele vai estar querendo viajar com tal intensidadequeserácapazdequalquercoisaparaconseguiroquedeseja. Istoserveparamostraràqueles...

Des ilouuma longasériede sílabasestridentesemsua línguanatal.Naturalmente, não entendi nada, mas o fato de os cubos de geloderreteremnageladeiraeraumaclaraevidênciadequenãosetratavadeelogios. Descon io que ele estava xingando os compatriotas, que nãopareciamtermuitafénasuacapacidade.

Trêsdiasdepois,Fi ímetelefonou.Elanãoétãosedutoraaotelefone

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como empessoa, por razões que são óbvias, pelomenos paramim; podeser quenão sejampara você, que temuma tendência a não dar valor àsmelhores coisas da vida. A gente nota com mais facilidade uma certaasperezanavozdelaquandonãoestáolhandoparaosaspectosmaciosdesuapessoa.

—George,vocêdevesermágico!—exclamou.—Nãoseioquevocêfeznaquele jantar,mas funcionou.Sophoclesvaime levaraParis.A ideiafoideleeparecemuitoanimado.Nãoéótimo?

— Émais do que ótimo— observei, com natural entusiasmo.— Ésensacional. Agora você pode cumprir a sua parte no trato. Vamos fazerumareprisedeAsburyParkebotarparaquebrar.

As mulheres, porém, como até você talvez já tenha notado, muitasvezes não cumprem o que prometem. Sob esse aspecto, são muitodiferentes dos homens. Parecem não compreender a importância decumprirapalavraempenhada.Eladisse:

— Vamos viajar amanha, George. Não dá tempo. Ligo para vocêquandovoltar.

Fin desligou e pronto. A mulher tinha vinte e quatro horasdisponíveis, e eu não precisava de mais do que a metade desse tempo...maselanãoquisnemdiscutirapossibilidadedemever.

Fi íligouparamimquandovoltouaopaís,masissosóaconteceuseismesesdepois.

Aprincípio,nãoreconheciasuavoz.Estavaroucaecansada.

— Com quem estou falando? — perguntei, com minha dignidadecostumeira.

—AquiéFifiLaverneMoskowitz.

— Bum Bum! Você está de volta! Que maravilha! Venha para cáagoramesmo.Vamos...

— George, vá para o inferno! Se todas as suas mágicas são como

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essa,vocêéumfarsante,eeunãofariadenovooque izemosemAsburyPark mesmo que você conseguisse icar o dobro do tempo penduradopelosdedõesdospés.

Euestavaatônito.

—SophoclesnãolevouvocêparaParis?

—Claroque levou.Agoramepergunteseeu izalgumacompraemParis.

—VocêfezalgumacompraemParis?

—Umaova!Sophoclesnãodeixou!

Oarcansadodesapareceudesuavoz,que,soboefeitodaemoção,setornouestridente.

—ChegamosaParis,masnãoparamosumsóinstante.

Eleapontavaascoisasparamimdepassagem:“AliéaTorreEiffel”,disse,apontandoparaumedi ícioemconstruçãosemgraçanenhuma.“Ahé Notre Dame.” Ele nem sabia do que estava falando. Uma vez entreiescondidoemNotreDamecomdoisjogadoresdefuteboleseiquenão icaemParis.FicaemSouthBend,Indiana.

“Mas, e daí? Estivemos em Frankfurt, Berna e Viena, que osestrangeiros ignorantes chamam de Vin. Existe uma cidade chamadaTriste?

—Trieste—corrigi.—Sim,existe.

—Poistambémestivemoslá.Masnãonoshospedávamosemhotéis.Ficávamos em casasde fazenda. Sophocles dizia que era amaneira certade viajar. Ele dizia que assim a gente podia entrar em contato com aspessoaseanatureza.Quemquersaberdaspessoasedanatureza?Oquenósnãovimosfoiumbanheirodecente.Depoisdealgumtempo,euestavacheirando mal. Meu cabelo icou um desastre. Já tomei cinco banhos eaindamesintosuja!

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—Porquenão tomamais cincobanhos aqui nomeu apartamento?—sugeri.

Ela nem me escutou. E incrível como as mulheres não prestamatençãonoqueagentediz.

— Semana que vem, ele pretende começar tudo de novo —prosseguiu.—QueratravessaroPací icoeconhecerHongKong.Pretendeviajar emumvelhopetroleiro.Disse que é amaneira certa de viajar pormar.Eudisseaele:“Escute,seuvelhomaluco,eumerecusoaviajarparaaChinanessabanheira,aindamaiscomvocê!”

—Muitoromântico—observei.

—Sabe o que ele respondeu? “Está bem, querida. Eu vou sozinho.”Eudisseaelequenessecaso,sómerestavapedirodivórcio.Elereplicou:“Faça como quiser, minha cara mentecapta, mas não vai conseguir mearrancar um tostão. E para mim, o que interessa é viajar.” Dá paraentender? Depois de tudo que fez, ainda veio com essa história dementecapta,querendomeagradar!

Você deve levar em conta, amigo velho, que esse foi um dosprimeiros trabalhos de Azazel e ele ainda não sabia controlar direito osseuspoderesaquinaTerra.Alémdisso,eutinhapedidoaelequeumavezououtrafizesseSophoclesviajarsozinho.

Aindatenteitirarvantagemdasituação.

—BumBum,porquenãovemaquiparanósconversarmossobreodivórcio?

—Epensar que eu con iei emvocê, seumiserável. Suamágica nãovaleumtostão.Senãolargardomeupé,conheçoumcaraquepodefazê-loempedacinhos.

Foinessemomentoquecompreendiqueaparadaestavaperdida.

Pedi socorro a Azazel, mas, por mais que tentasse, não conseguiudesfazeroquehavia feito.E recusou-se terminantemente amexer comamente de Bum Bum de modo a torná-la mais acessível às minhas

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propostas. Disse que isso estava acima dos seus poderes. Não consigoentenderporquê.

Entretanto,eleconcordouemmemanterinformadodoparadeirodeSophocles.Ohomemnãoparoumais.SubiuoNilonumJetski.AtravessouaAntártidaemumaasa-delta.

QuandoopresidenteKennedyanunciouem1961queosamericanoschegariamàluaantesdofinaldadécada,Azazelcomentoucomigo:

—Maisumaconsequênciadomeuajuste.

—QuerdizerqueoquevocêfezcomocérebrodeSophoclesdáaeleopoderdeinfluenciaropresidenteeoprogramaespacial?

—Elenãofazdepropósito—respondeuAzazel—,maseulhedissequeoajusteerasuficientementeforteparaabalarouniverso.

E ele foimesmo para a lua, amigo velho. Lembra da Apoio 13, quesofreuumsupostoacidenteem1970,quandoestavaacaminhodalua,eatripulação mal conseguiu voltar para a Terra? Na verdade, Sophoclesestava clandestinamente a bordo e partiu no Módulo Lunar, deixando atripulaçãoparatrás.

Elepousouna luaecontinua láatéhoje, explorandoa super íciedonosso satélite. Lá não existe ar, nem água, nem comida, mas acho que oajustedeAzazel tambémcuidoudesteaspecto.Naverdade,podeserqueestejasepreparandoparaviajarparaMarte...ouatéparamaislonge.

Georgesacudiuacabeça,comumsorrisotristenoslábios:

—Émuitoirônico.Muitoirônico!

—Ondeestáaironia?—perguntei.

— Não percebe? Coitado do Sophocles Moskowitz! É a versãomoderna e aperfeiçoadado JudeuErrante, e a ironia estáno fatodequenemmesmopraticaareligiãoortodoxa!

George levou a mão esquerda aos olhos e tateou com a direita, à

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procuradeumguardanapo.Comisso,pegouacidentalmenteanotadedezdólaresqueeuhaviacolocadosobreamesacomogorjetaparaogarçom.Eleenxugouosolhoscomoguardanapo,masnãovioqueaconteceucomanotadedezdólares.Eledeixouorestaurantesoluçando.

Suspireiecoloqueinamesaoutranotadedezdólares.

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OsOlhosdeQuemVê

Georgeeeuestávamossentadosemumbanco,admirandoapraiadeareiasmuitobrancaseomardistante.Eumededicavaaoinocenteprazerdeolharparaasgarotasdebiquínieimaginarserecebiamdasbelezasdavidaomesmocomquecontribuíam.

Conhecendo George como eu conhecia, descon iava que seuspensamentos eram bem menos desinteressados do que os meus.Provavelmente estaria pensando em aspectos mais práticos dessasmesmasgarotas.

Foicomconsiderávelsurpresa,portanto,queoouvidizer:

— Amigo velho, aqui estamos sentados, desfrutando da belezanatural, na forma de um corpo de mulher, e no entanto a verdadeirabelezanãoé,enãopodeser,tãoevidente.Averdadeirabeleza,a inal,étãopreciosa que deve ser escondida dos olhos de observadores casuais. Jápensounisso?

— Não — respondi. — Nunca pensei e, agora que você chamouatenção para o fato, continuo a não pensar.Mais ainda, duvido que vocêpense.

Georgesuspirou.

—Conversar comvocê, amigo velho, é comonadar emumapiscinademelado: muito esforço e quase nenhum resultado. Estava vendo vocêolharparaaqueladeusaah,cujosfarraposdetecido inonadafazemparaesconderospoucoscentímetrosquadradosquesepropõemacobrir.Nãocompreendequeseusatributossãotodossuperficiais?

—Nunca pedimuito da vida— disse eu, nomeu jeito humilde.—Atributossuperficiaiscomoaquelesmesatisfazemplenamente.

—Penseemcomoseriamaisbonitauma jovem,mesmouma jovemsem atrativos externos para olhos pouco treinados como os seus, se ela

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possuísse as glórias eternas da bondade, do altruísmo, da jovialidade, dadiligência e da caridade... todas as virtudes, em suma, que emprestamglóriaegraçaaumamulher.

—Oqueestoupensando,George,équevocêdeveestarbêbado.Queéquevocêsabedevirtudescomoasqueacabademencionar?

—Conheço-as a fundo—declarou George, com orgulho—porqueestouacostumadoapraticá-las.

—Sósefornaintimidadedoseuquarto—declarei—,enoescuro.

Ignorandoa suaobservaçãogrosseira [disseGeorge], devoexplicarque mesmo que não tivesse conhecimento pessoal dessas virtudes,travaria contato com elas através da minha amizade por uma jovemchamada Melisande Ott, née Meli-sande Renn, que o dedicado maridoOctavius Ott chamava carinhosamente deMaggie. Eu também a chamavade Maggie, porque era ilha de um grande amigo meu, infelizmente jáfalecido,eelasempremechamoudetioGeorge.

Devoadmitirque existeumapartedemimque, comovocê, apreciaosatributossutisquevocêchamade“superficiais”.Sim,amigovelho,euseique usei a expressão primeiro, mas não chegaremos a lugar algum secontinuarmeinterrompendoporcausadetrivialidades.

Graçasaestapequena fraqueza,devo tambémadmitirquequando,em um acesso de alegria por estar comigo, ela me abraçava com força,minha satisfação não era tão grande como teria sido se ela possuísseformas mais generosas. Maggie era muito magra e ossuda. Tinha narizgrande, pouco queixo, cabelos lisos e sem viço, e seus olhos eramde umcinzainde inido.Asmaçãsdorostoerammuitosalientes,fazendolembrarumesquilotransportandonozes.Pararesumir,nãoeraotipodemoçaquefazocoraçãodosrapazesbatermaisdepressa.

Entretanto, tinha um bom coração. Suportava, com um sorrisoresignado,osobressaltovisívelqueassaltavaosjovensqueaencontravampela primeira vez sem terem sido prevenidos. Tinha sido damade honradetodasasamigas.Eramadrinhadeumincontávelnúmerodecriançasetomavacontadeoutrasquandoospaisprecisavamsairànoite.

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Levava sopa quente para os pobres dignos de comiseração, etambém para os indignos, embora houvesse quem achasse que eram osindignos que mais mereciam suas visitas. Executava várias tarefas naigreja do bairro, e realizava a mesma tarefa várias vezes, uma para elaprópria e outras para as amigas, que preferiam se divertir no cinema atrabalharparaacomunidade.Ensinavanaescoladecatecismo,divertindoas crianças com caretas (pelo menos, era o que as crianças pensavam).Tambémgostavadelerparaelasosnovemandamentos.{Deixavadeforao mandamento sobre adultério, porque a experiência lhe ensinara quedava margem a perguntas maliciosas.) Também trabalhava comovoluntárianabibliotecamunicipal.

Naturalmente, perdera toda a esperança de se casar quando tinhaaproximadamentequatroanos.Aosdez,aideiadesaircomummembrodosexo oposto já lhe parecia um sonho quase impossível. Costumava dizerparamim:

—Nãosouinfeliz,tioGeorge.Omundodoshomensestáforadomeualcance,éverdade,excetoporvocêepelamemóriadopapai,masmesintofelizfazendoobem.

Maggie visitava os presos na penitenciária, aconselhando-os arepudiar a vida de crimes e começar vida nova. Apenas os maisempedernidosseofereciamparaficarnasolitárianosdiasdevisita.

Umdia,porém,MaggieconheceuOctaviusOtt,umjovemengenheiroelétricoquesemudararecentementeparaobairroeocupavaumaposiçãoimportantenacompanhiadeluz.Eraumrapazdevalor:sério,trabalhador,perseverante,corajoso,honestoerespeitoso.Entretanto,nãoeraoqueeuou você chamaríamos de boa-pinta. Na verdade, ninguém em seu juízoperfeitoochamariadeboa-pinta.

Octavius tinha uma calvície incipiente, nariz achatado, lábios inos,orelhasdeabanoeumpomodeAdãosalientequejamais icavaparado.Oque lhe restavade cabeloera corde ferrugem;o rostoeosbraçoseramcobertosdesardas.

Por acaso, eu estava com Maggie quando ela e Octavius seencontraram na rua pela primeira vez. Os dois estavam igualmentedesprevenidosederamumsaltoparatrás,comoumpardecavalosariscos

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que de repente se vissem diante de uma dúzia de palhaços usando umadúziadeperucasesoprandoumadúziadeapitos.Porummomento,tiveaimpressãodequeMaggieeOctaviusiriamempinarerelinchar.

Omomentopassou,porém,ambosconseguiramsuperarosusto.Elanão fezmaisdoque levaramãoao coração, comoquepara impedi-lodepularforadopeitoembuscadeumesconderijomaisseguro,enquantoeleenxugava a testa como se estivesse tentando apagar uma memóriaapavorante.

Eu conhecera Octavius alguns dias antes, de modo que resolviapresentá-losumaooutro.Elesestenderamasmãostimidamente,comosenãoestivessemansiososparaacrescentarosentidodotatoaodavisão.

Naquela mesma tarde, Maggie quebrou um longo silêncio e disseparamim:

—OSr.Ottpareceserumapessoamuitoestranha.

Repliquei,comaquelaoriginalidadequemeusamigosinvejam:

—Nãosedevejulgarumlivropelacapa,minhaquerida.

—Mas a capa existe, tio George, e não podemos ignorá-la. Tenho aimpressãodequeamaioriadasminhasamigas,quesãogarotasfrívolaseinsensíveis, jamaisse interessariampeloSr.Ott.Seriaumatodecaridade,portanto,mostraraelequenemtodasasmocinhassedeixamlevarapenaspelas aparências; que pelo menos uma delas não despreza um rapazapenas porque ele se parece com um... — Maggie interrompeu o queestavadizendo,semconseguirencontrarumelementodecomparaçãoemtodo o reino animal. A inal, teve de completar a frase de forma evasiva,emboracalorosa:

—...comoquequerqueelesepareça.Precisosergentilcomele!

Não sei se Octavius tinha algum con idente com quem pudessedesabafar de forma semelhante. Provavelmente não, porque existempoucostiosGeorgenomundo.Mesmoassim,tenhoquasecerteza,a julgarpelo desenrolar dos eventos, que precisamente osmesmos pensamentoslheocorreram.Comrelaçãoàmoça,éclaro.

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Seja como for, os dois começaram a se tratar com carinho,timidamente a princípio e depois de forma cada vez mais apaixonada. Oque começou como conversas rápidas na biblioteca transformou-se emvisitasaojardimzoológico,depoisemcinemasànoite,depoisembailes,atéque ocorreu o que só pode ser descrito (se você perdoa a minhalinguagem)comoencontros.

Aspessoascomeçaramaesperarverumdelesquandoviamooutro,poissehaviamtornadoumparindissolúvel.Algunsvizinhossequeixaramamargamente de que uma dose dupla de Octavius eMaggie eramais doqueumserhumanopodiatolerar,emaisdeumelitistaarrogantecomprouóculosescuros.

Nãovoudizerquenãocompreendesseasrazõesdessesextremistas,masoutrosvizinhos,mais tolerantese, talvez,maisrazoáveis,observaramque os traços de um deles eram, por uma estranha coincidência,exatamente o oposto dos traços correspondentes do outro. Assim, ver osdoisjuntostendiaaintroduzirumefeitodecancelamento,demodoqueosdois juntos erammais toleráveis do que separados.Ou pelomenos era oquealgunsafirmavam.7

Finalmente,chegouumdiaemqueMaggiemedisse:

—TioGeorge,Octaviuséaluzeavidadaminhaexistência.Eleéleal,forte,firme,seguroeestável.Éumhomemadorável.

—Pordentro,pode ser,minhaquerida—disseeu.—Aaparênciadele,porém,é...

— Adorável — declarou Maggie com lealdade, força, irmeza,segurança e estabilidade.—TioGeorge, ele sentepormimomesmoquesintoporele,enósvamosnoscasar.

—Émesmo?

Uma imagem involuntária do fruto provável de tal união passoudiantedosmeusolhos,fazendo-meestremecer.

—Verdade.Elemedissequesouosoldeseuprazerea luadesuaalegria.Depoisacrescentouqueeueratodasasestrelasdesuafelicidade.

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Meuamadoémuitopoético.

—Assimparece—concordei,semmuitaconvicção.—Quandovocêsvãosecasar?

—Omaiscedopossível.

Nãohavianadaqueeupudessefazeranãoserrangerosdentes.Asproclamas foram feitas, os preparativos chegaram ao im, a cerimônia foicelebrada. A noiva subiu ao altar de braço comigo. Toda a vizinhançacompareceu;queriamvercomosprópriosolhos.Atéopadrepermitiuqueumaexpressãodeassombroreverentepassassepeloseurosto.

Naturalmente,aplateiaevitouolhardiretamenteparaojovemcasal.Durante a cerimônia, todos conservaram os olhos baixos. A não ser oministro,quepassouotempotodoolhandoparaovitralacimadaportadeentradadaigreja.

Poucotempodepois,eumemudeiparaoutrobairroeperdiocontatocomMaggie.Onzeanosmaistarde,porém,tivedevoltaràvizinhançaparaconsultar um amigo meu a respeito de um investimento que pretendiafazer,algorelativoàprobabilidadedequeumcavaloganhasseumacertacorrida. Aproveitei a oportunidade para visitarMaggie, que, entre outrasqualidadesbemescondidas,eraumaexcelentecozinheira.

Chegueinahoradoalmoço.Octaviusestavanotrabalho,masissonãoimportava.Nãosouumhomemegoístaenãomeimporteidecomerapartedelealémdaminha.

Não pude deixar de notar, porém, que Maggie parecia triste.Enquantotomávamoscafé,pergunteiaela:

—Estátriste,Maggie?Algumproblemacomoseucasamento?

—Oh,não,tioGeorge.Nossocasamentofoifeitonocéu.Emboranãotenhamos ilhos,estamostãoenvolvidosumcomooutroquemalsentimosa falta deles. Vivemos em ummar de êxtase perpétuo e não temosmaisnadaapedirdouniverso.

— Entendo. Então por que essa ponta de tristeza que percebo em

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você?

Maggiehesitouedepoisdisse:

—Oh,tioGeorge,vocêéumapessoatãosensível!Sóexisteumacoisaquerepresentaumtravoamargoemminhavidaventurosa.

—Queé?

—Minhaaparência.

—Suaaparência?Quehádeerrado...-—Engoliemsecoaoperceberquenãoconseguiriaconcluirafrase.

— Não sou bonita — declarou Maggie, cora ar de quem estavarevelandoumgrandesegredo.

—Ah!

— E bem que gostaria de ser... por causa de Octavius. Queria serlindaparaele.

—Elesequeixadasuaaparência?—perguntei,cauteloso.

—Octavius?Claroquenão.Elesuportaestesofrimentoemsilêncio.

—Comosabequeeleestásofrendo?

—Meucoraçãodemulherjamaisseenganaria.

—Maggie,nãoseesqueçadequeOctavius tambémé...querodizer,Octaviustambémnãoéoquesepoderiachamardebonito.

—Comotemcoragemdedizerisso?—protestouMaggie,indignada.—Meumaridoélindo!

—Talvezeletambémachevocêlinda.

—Oh,não!Comopoderia?

—Escute,eleestáinteressadoemoutrasmulheres?

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—TioGeorge!Quecoisafeiadesedizer!Estoudecepcionadacomosenhor.Octaviusnãotemolhosparamaisninguémanãosereu.

—Entãoqueimportasevocêélindaounão?

—Eume importo por ele. Oh, tio George, como eu queria ser lindaparaele!

E pulando no meu colo da forma mais inesperada e desagradável,molhou a lapela do meu paletó com suas lágrimas. Na verdade, quandoparoudechorarmeupaletóestavapingando.

Naquelaépoca,eujáconheciaAzazel,odemôniodedoiscentímetrosque, senãomeengano,umavezmencio... ora, amigovelho,nãoéprecisomurmurar ad nauseam com esse ar superior. Qualquer pessoa queescrevecomovocêdeviapensarduasvezesantesdefalardenáusea.

Comoeuiadizendo,decidichamarAzazel.

Azazel estava dormindo quando chegou. A pequena cabeça estavacobertaporumsacoverdeeapenasosomabafadodeumroncoindicavaqueaindaestavavivo.Issoeofatodequedevezeraquandosuapequenacaudabalançavaparaumladoeparaoutro.

Esperei alguns minutos para ver se ele acordava naturalmente.Quando isso não aconteceu, removi com cuidado o saco com o auxílio deuma pinça. Seus olhos se abriram devagar e se focalizaram na minhapessoa,ocasiãoemquedeuumpulo.

— Por um raromomento pensei que estava tendo um pesadelo—explicou.

Ignoreiocomentárioedisse:—Precisodeumfavorseu.

— É claro — resmungou Azazel, de cara feia. — Você jamais mechamariaparameoferecerumfavor.

— Chamaria, sim — disse eu, em tom submisso. — Infelizmente,porém, um ser insigni icante como eu pouco tem para oferecer a umacriaturapoderosacomovocê.

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—Issoéverdade—concordouAzazel.

É revoltante a forma comoalgumaspessoas reagema lisonjas. Já vivocê, por exemplo, babar na gravata quando alguém lhe pede uraautógrafo.Mascomoeuiadizendo...

—Quequerqueeufaça?—perguntouAzazel.

—Queroquetornebonitaumaamigaminha.Azazelestremeceu.

— Isso eu não sei se posso fazer. Os padrões de beleza da suaespéciesãoatrozes.

—Massãoosúnicosquetemos.Eulhedireioquefazer.

—Vocême dirá o que fazer?— gritou Azazel, furioso.—Vocêmedirá como estimular emodi icar os folículos capilares, como fortalecer osmúsculos,comoaumentaroudiminuirosossos?Francamente!

—Não foi issoqueeuquisdizer—expliquei, humildemente.—Osdetalhes do processo são conhecidos apenas por seres superiores comovocê. Permita-me, entretanto, descrever os efeitos inais a seremconseguidos.

Azazelafinalconcordou,ediscutimosoassuntoafundo.

— Não se esqueça — observei — que os efeitos devem surgirgradualmente,emumperíododenomínimosessentadias.Umamudançamuitorápidadespertariasuspeitas.

— Quer que eu passe sessenta dias supervisionando, ajustando ecorrigidominhaobra?Pensaquemeutemponãotemvaloralgum?

—Ah,masdepoisvocêpoderáescreverumartigoetantoparaumarevistadebiologiadoseumundo.Poucoscolegasseusteriamahabilidadeeapaciênciaparaembarcaremumprojetodestes.Vocêvaificarfamoso.

Azazelfezquesimcomacabeça,pensativo,—Sabequenãogostodeadulação, mas talvez você esteja certo. É meu dever servir de modelo einspiração para outrosmembros daminha espécie.— Suspirou, com um

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somagudo,sibilante.—Podesertrabalhoso,maséomeudever.

Eu também tinha um dever. Achei que devia permanecer nasvizinhanças durante a transformação de Maggie. Meu amigo tur istaconcordou em me hospedar em troca de informações a respeito dosprováveisganhadoresdecertospáreos.

TododiaeuarranjavaumadesculpaparaverMaggie,eosresultadoslogocomeçaramaaparecer.Ocabelo icoumaismacioeadquiriuumaleveondulaçãoeumbrilhodourado.

Poucoapouco,omaxilarse tornoumenosproeminente,osossosdafacemaisdelicados.Osolhos,de cinzaqueeram, icaramazuis.Oazul foiicando cada vez mais profundo, até ser quase violeta. As pálpebrasadquiriram um leve toque oriental. As orelhas icaram mais bemtorneadas. O corpo de Maggie adquiriu formas mais opulentas e suacinturaseestreitou.

Aspessoasficaramsurpresas.

— Maggie — diziam —, que foi que você fez? Seu cabelo estásimplesmentemaravilhoso.Vocêparecedezanosmaismoça.

—Não iz nada— respondiaMaggie. Estava tão espantada quantotodomundo.Excetoeu,naturalmente.

—Notoualgumamudançaemmim,tioGeorge?—perguntouela.

—Vocêestáótima,massempreacheivocêótima,Maggie.

— Podeser,mas nuncame achei tão bem como ultima-mente. Nãocompreendo. Ontem um rapaz fez meia-volta para olhar para mim. Elessempreapressavamospassoseescondiamosolhos.Masessepiscouparamim!Fiqueitãosurpresaquesorriparaele.

Algumas semanasdepois, encontrei omaridodela,Octavius, emumrestaurante, enquanto examinava o cardápio na porta. Como ele estavachegandoparaalmoçar,foiquestãodeummomentoconvidar-meparalhefazercompanhiaequestãodeoutromomentoeuaceitar.

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—Vocêparecetriste,Octavius.

—Euestoutriste.NãoseioquedeunaMaggieultima-mente.Parecetão distraída que nem repara que eu existo. Vive saindo com outraspessoas. E ontem... — Seu rosto assumiu uma expressão de miséria tãoprofundaquequasequalquerumsesentiriaenvergonhadoderir.

—Ontem?Queaconteceuontem?

— Ontem ela me pediu para chamá-la de Melisande. Não possochamarMaggiedeumnomeridículocomoMelisande.

—Porquenão?Éonomedebatismodela,nãoé?

—MaselaéaminhaMaggie!

— Ora, minha sobrinha mudou um pouco. Não reparou que estáficandomaisbonita?

—Reparei—concordouOctavius,decarafeia.

—Issonãoébom?

—Não. Quero aMaggie de antes. Esta novaMelisande estásempreajeitando o cabelo, experimentando novos tons de sombra de olho,provandovestidosnovosesutiãsmaiores,enãotemtempoparamim.

O almoço terminou em um silêncio constrangedor. Achei que eramelhorterumaboaconversacomMaggie.

—Maggie—comecei.

—Chame-medeMelisande,porfavor.

—Melisande,parecequeOctaviusestáinfeliz.

—Eutambém!Octaviuséumchato.Nãoquersairdecasa.Nãoquerfazer nada. Implica com as minhas roupas, com a minha maquilagem.Quemelepensaqueé?

—Vocêcostumavadizerqueeleeraumrei.

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— Isso mostra como eu era boba. Ele é um sujeitinho feio e semgraça.Tenhovergonhadeservistacomele.

—Vocêqueriaserbonitaparaagradá-lo.

—Quequerdizercomqueriaserbonita?Eusoubonita.Semprefuibonita. Era só uma questão de encontrar um penteado que combinassecomaformadomeurostoeaprenderamemaquilardireito.EstoufartadeOctavius.

Elaestavafalandosério.Seismesesdepois,elaeOctaviustinhamsedivorciado e emoutros seismeses,Maggie (ouMehsande) estava casadacomumhomemdeboaaparência,masdecaráterduvidoso.Umavezjanteicomelee levou tanto tempoparapegara contaquepenseique fosse terdepagá-la.

Encontrei-me com Octavius um ano depois do divórcio. Ele,naturalmente,nãotinhasecasadodenovo,poiscontinuavaesquisitocomosempre e o leite ainda talhava na sua presença. Estávamos sentados noapartamento dele, que estava cheio de fotogra ias de Maggie, a velhaMaggie,cadaumamaisapavorantedoqueaoutra.

—Vocêaindadeveestarsentindofaltadela,Octavius.

—Demais!Sómerestarezarparaqueestejafeliz.

—Ouvidizerquenãoestá.Quemsabeelavoltaparavocê?

Octaviussacudiuacabeçatristemente.

—Maggiejamaisvoltaráparamim.UmamulherchamadaMelisandepodeme procurar,mas eu jamais a aceitaria. Ela não éMaggie, aminhaadoradaMaggie.

—MehsandeémaisbonitadoqueMaggie.

Eleficoumuitotempoolhandoparamim.

—Aosolhosdequem?—perguntou.—Certamente,nãoaosmeus.

Nuncamaistorneiavê-los.

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Fiqueisentadoporummomentoemsilêncio,edepoisdisse:

—Vocêmesurpreendeu,George.Estourealmentecomovido.

Nãodeviaterditoisso.Georgemedisse:

— Issome faz lembraruma coisa, amigovelho.Podemeemprestarcincodólaresporumasemana?Dezdias,nomáximo?

Pegueiumanotadecincodólares,hesiteiedepoisdisse:

—Tome!Ahistóriavaleu.Éumpresente.Étodasua.

(Por que não? George nunca paga mesmo o dinheiro que pedeemprestado...)

George tomou a nota sem comentários e guardou-a na sua carteirasurrada. (Já devia estar bastante gasta quando a comprou, porque elenuncaausa.)Eledisse:

—Voltando ao assunto. Podeme emprestar cinco dólares por umasemana?Dezdias,nomáximo?

—Masvocêjátemcincodólares!—protestei.

—O dinheiro émeu—disse George—, e você não tem nada comisso. Por acaso ico falando do estado das suas inanças quando vocêmepededinheiroemprestado?

—Mas eu nunca...— eu ia começando,mas suspirei e dei-lhemaiscincodólares.

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MaisCoisasnoCéuenaTerra

George tinha estado estranhamente quieto durante o jantar e nemmesmo se dera o trabalho deme interromper quando resolvi contar-lhealgumasdasmuitasfrasesdeefeitoqueeuescreveranosúltimosdias.Umlevesorrisoparaaminhamelhorfrasefoiomáximoqueconseguiextrairdele.

Depois, quando estávamos na sobremesa (torta de blue-berry à Iamode),arrancouumsuspirodofundodoabdome,brindando-mecomumareprise não inteiramente desejada dos camarões fritos que havia comidonoiníciodarefeição.

—Quehouve,George?—perguntei.—Vocêparecepreocupadocomalgumacoisa.

— Você sempre me surpreende com esta sensibilidade inusitada.Geralmenteestápreocupadodemaiscomosseusprosaicosproblemasdeescritorparaobservarosofrimentodopróximo.

—Podeser,masjáqueobserveidestavez,nãovamosdesperdiçaroesforçoquemecustou.

—Eu só estava pensando em um velho amigomeu. Pobre-diabo. OnomedeleeraVissarionJohnson.Achoquenuncaouviufalardele.

—Tenhocertezadequenão.

—Bem,assiméafama,emboranãosejanenhumadesgraçanãoserreconhecido por uma pessoa com uma visão tão limitada como você.AcontecequeVissarioneraumeconomistafamoso.

— Deve estar brincando. Como pôde travar amizade com umeconomista?Seriamuitadegradação,mesmoparavocê.

—Degradação?VissarionJohnsoneraumhomemmuitoculto.

—Nãoduvido.Oquequestionoéa integridadedapro issão.Dizem

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queopresidenteReaganestavapreocupadocomoorçamentofederale,aotentar equilibrá-lo, perguntou a um ísico: “Quanto é dois mais dois?” Ofísicorespondeu,sempestanejar:“Quatro,Sr.Presidente.”

“Reagan analisou a resposta por um momento, fazendo uso dosdedos, e não icou inteiramente satisfeito. Por isso, perguntou a umestatístico: “Quanto é dois mais dois?” O estatístico pensou um pouco erespondeu: “De acordo com a última pesquisa de opinião pública, Sr.Presidente,amédiadasrespostasestámuitopróximadequatro.”

“Masoassuntoeraoorçamentofederal,demodoqueReaganachoumelhor consultar um entendido no assunto. Por isso, perguntou a umeconomista; “Quanto é dois mais dois?” O economista fechou a cortina,olhou rapidamente para um lado e para o outro e sussurrou: “Quanto osenhorquerqueseja,Sr.Presidente?”

George não demonstrou ter achado nenhuma graça na história.Limitou-seadizer;—Vocênãoentendenadadeeconomia,amigovelho.

—Oseconomistastambémnão,George.

—Então deixe-me contar-lhe a triste história domeubomamigo, oeconomistaVissarionJohnson.Issoaconteceufazalgunsanos.

Vissarion Johnson, comoeu já lhecontei [disseGeorge], eraumdosmaiores economistas deste país. Estudara no Massachusetts Institute ofTechnology,ondeaprenderaaescreverasequaçõesmaiscomplicadassemumaúnicatremidanogiz.

Depoisdeseformar,dedicou-seimediatamenteàpro issão,e,graçasaosfundoscolocadosàsuadisposiçãoporalgunsclientes,aprendeumuitacoisa sobre a importância do acaso nas lutuações diárias da bolsa devalores.Era tãohabilidosoquealgunsdosseusclientespraticamentenãoperderamnenhumdinheiro.

Emvárias ocasiões, teve a ousadia deprever quenodia seguinte abolsairiaoperaremaltaouembaixa,dependendodeseaatmosferafossefavoráveloudesfavorável,respectivamente,eemtodososcasosomercadosecomportouexatamentecomoelehaviaprevisto.

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Naturalmente,triunfescomoessesotornaramfamosocomooChacalde Wall Street, e seus conselhos eram procurados por muitos dos maisfamosospraticantesdaartedeganhardinheirofácil.

Entretanto,eleestavacomosolhosvoltadosparaalgomuitomaiordoque omercado de ações, algomaior do que omundo dos negócios, algoaindamaiordoqueacapacidadedepreverofuturo.Oqueelequeriaeranadamenos do que o cargo de economista-chefe dos EstadosUnidos, ou,como este funcionário é mais conhecido, “assessor econômico dopresidente”.

Você, com seus interesses limitados, provavelmente não conhece aposição extremamente delicada do economista-chefe. O presidente dosEstadosUnidosprecisatomarasdecisõesquedeterminamainterferênciadogovernonaeconomiaenosnegócios.Eleprecisa controlar aofertadedinheiro e os bancos. Precisa propor ou vetar medidas que afetem aagricultura, o comércio e a indústria. Precisa decidir para onde irá odinheiro dos impostos, determinando qual a parcela destinada às ForçasArmadas e se vai sobrar alguma verba para outras atividades. E ele faztudo isso baseado principalmente nas recomendações do economista-chefe.

Quando o presidente se volta para ele, o economista-chefe devedecidir instantaneamente e sem erro o que o presidente deseja ouvir, edeve acompanhar essa exposição com palavras demagógicas que opresidente possa repetir para o público americano. Quando você mecontouahistóriadopresidente,o ísico,oestatísticoeoeconomista,amigovelho,penseiporummomentoquecompreendesseanaturezadelicadadotrabalho de um economista,mas a gargalhada totalmente imprópria comque encerrou o relato mostrou claramente que não havia entendido amoraldafábula.

Quando Vissarion fez quarenta anos, já possuía as quali icaçõesnecessárias para ocupar qualquer cargo, por mais elevado que fosse.Corria nos bastidores do Instituto de Economia Governamental que nosúltimosseteanosVissarionJohnsonnãohaviaditoumaúnicavezaalguémalguma coisa que ele ou ela não quisesse ouvir. Alémdomais, tinha sidoeleitoporunanimidadeparaocírculoseletodoCRD.

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Você, que não conhece nada além do seu processador de texto,provavelmentenuncaouviu falardoCRD,que sãoas iniciaisdeClubedeRetornos Decrescentes. Para dizer a verdade, poucas pessoas ouviramfalardesseclube.MesmoentreoseconomistasdosegundoescalãoexistemmuitosquenãoconhecemoCRD.Seusmembrospertencemaopequenoeexclusivo grupo de economistas que dominam o so isticado reino daeconomia taumatúrgica, ou, como disse uma vez um político no seu jeitosimplesedireto,da“economiadovodu”.

Era fato bem conhecido que ninguém que não pertencesse ao CRDpodia ocupar postos de destaque no governo federal. Assim, quando opresidente do CRD faleceu inesperadamente e uma comissão do clubeprocurou Vissarion para oferecer-lhe a posição, o coração de Vissarionexultou.Comopresidentedoclube,certamenteserianomeadoeconomista-chefenaprimeiraoportunidade,eestariabempróximodafontedopoder,movendo a própriamão do presidente exatamente na direção em que opresidentequisessequeelasemovesse.

Uma questão, porém, preocupava Vissarion e o deixava em umdilema terrível. Sabia que precisava de alguém com a cabeça no lugar euma inteligência aguçada, e decidiu imediatamente me procurar, comofariaqualquerpessoadebomsenso.

— George — disse ele —, a presidência do CRD representa aconcretizaçãodosmeus desejosmais recônditos e dosmeus sonhosmaisdesejados. É a porta aberta para um futuro glorioso de servilismoeconômico, no qual eu talvez consiga superar até mesmo o con írmadoro icial de todos os palpites do presidente: o cientista-chefe dos EstadosUnidos.

—Vocêquerdizeroassessorcientíficodopresidente.

—Sevocêquerserinformal,sim.DepoisdesereleitopresidentedoCRD, levareimenosdedoisanosparaserconvidadoparaocuparocargodeeconomista-chefe.Sóque...

—Sóque...?—repeti.

Vissarionpareceureunirforçasparaprosseguir.

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—Émelhorcomeçardocomeço.OClubedosRetornosDecrescentesfoifundadohásessentaedoisanos.OnomefoiescolhidoporqueaLeidosRetornosDecrescenteséuma leideque todososeconomistas jáouviramfalar. O primeiro presidente, uma igura muito querida que previu emnovembro de 1929 que o mercado acionário passaria por uma sériaqueda, foi reeleito ano após ano e continuou a ser presidente durantetrintaedoisanos,morrendocomaidaderespeitáveldenoventaeseis.

—Umaatitudelouvável—disseeu.—Tantaspessoasdesistemcedodemais,quandoéprecisoapenas ibraedeterminaçãoparaagüentaratéosnoventaeseisoumesmoalém.

—Nossosegundopresidentetambémsesaiuacontento,mantendo-senocargopordezesseisanos.Foioúnicoquenãosetornoueconomista-chefe.Tinhatodasasquali icaçõesparaopostoefoiindicadoporThomasE. Dewey, um dia antes da eleição, mas infelizmente... Nosso terceiropresidentemorreu depois de se manter no cargo durante oito anos, e oquarto morreu depois de ser presidente por quatro anos. Nosso últimopresidente, quemorreu nomês passado, foi o quinto da lista e ocupou oposto por dois anos apenas. Você vê alguma coisa estranha em tudo isto,George?

—Estranha?Todoselesmorreramdecausasnaturais?

—Éclaro.

—Bem,considerandoopostoqueocupavam,istoéestranho.

—Bobagem—disseVissarion,comumacertairritação.

— Vou chamar sua atenção para o tempo que os sucessivospresidentespassaramnoposto:trintaedoisanos,dezesseis,oito,quatroedois.

Penseiumpouco.

—Parecequeotempoestádiminuindo.

— Não é só isso. Cada período de tempo é exatamente metade doanterior.Acrediteemmim.Pediaumfísicoparaconferir.

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—Sabedeumacoisa?Achoquevocêestá certo.Alguémmais sabedisso?

—Naturalmente.Mostreiessesnúmerosaosmeuscolegasdeclubeetodos a irmam que a coincidência não é estatisticamente signi icativa, amenos que o presidente faça uma declaração a respeito. Mas você nãoentende o que isso quer dizer? Se eu aceitar o posto de presidente,morrerei daqui a um ano. Nesse caso, o presidente encontrará sériasdificuldadesafimdemenomearparaocargodeeconomista-chefe.

— É, Vissarion, você está com um problema. Conheci muitosfuncionários do governoquenãomostravamqualquer sinal de vida,masnenhum que estivesse realmente morto. Dê-me um dia para pensar noassunto,estábem?

Marcamosumencontroparaodia seguinte,namesmahorae local.A inal de contas, era um excelente restaurante, e, ao contrário de você,amigovelho,Vissarionnãorelutavaparapagarummíseropedaçodepãoparamim. Está bem, está bem, ele também não relutava para pagar ummíserocamarãofritoparamim.

Era obviamente um caso para Azazel, demodo que não hesitei emchamar meu pequeno demônio de dois centímetros de altura para nosauxiliarcomseuspoderesextraterrenos.

A inal de contas, não só Vissarion era um homem generoso, comextremo bom gosto em matéria de restaurantes, mas eu achavasinceramente que poderia prestar excelentes serviços à naçãoassegurandoaopresidentequeochefedanaçãoestavacerto,mesmoquetécnicos competentes a irmassem o oposto. A inal, quem tinha sido eleitopelopovo?

Azazel não icou nada satisfeito por ter sido chamado. Nomomentoemquemeviu, jogounochãooquesegurava.Osobjetoserampequenosdemaisparaqueeupudessevê-loscomclareza,maspareciamretângulosdepapelãocolorido.

— Droga! — exclamou, com uma expressão de raiva na pequenacara. A cauda balançava de um lado para o outro, e os pequenos chifresvibravamsobaimpactodeforteemoção.

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“Você percebe, seu verme desprezível, que eu inalmente tinha nasmãosumzotchil;enãosóumzotchil,masumzotchilcomumcuminrealeumpardereilsparacompletar?Elestodospagaramaminhaaposta,eeunãopodiaperder.Ganharianomínimomeiobletchke!

— Não sei se entendi bem — disse eu, com severidade —, masparece que você estava jogando a dinheiro. Isso é uma coisa re inada ecivilizada para fazer?O que a sua pobremãe diria se soubesse que estágastandoseutempojogandocoraumgrupodedesocupados?

Azazelpareceusurpreso.Pensouumpoucoedepoismurmurou:

— Tem toda a razão. Minhas mães icariam desoladas. Todas três.Especialmenteminhamãedomeio,que tanto se sacri icoupor raim.—Ecomeçouasoluçaremfalsete.Erahorríveldeseouvir.

— Calma, calma — disse eu, tentando fazê-lo parar. Estava comvontadedetaparosouvidoscomasmãos,masacheique icariaofendido.—PodecompensarissofazendoumaboaaçãoaquinaTerra.

Contei-lheahistóriadeVissarionJohnson.

—Hummm...—fezAzazel.

—Quesignificaisso?—perguntei,ansioso.

— Signi ica “hummm” — respondeu Azazel. — Que mais poderiasignificar?

— Está bem, mas não acha que tudo não passa de coincidência eVissarionnãotemrazãoparasepreocupar?

— Talvez... se não fosse pelo fato de que não é coincidência eVissariontemtodarazãodeestarpreocupado.Naverdade,sópodeseroefeitodeumaleinatural?

—Comopodeserumaleinatural?

—Vocêachaqueconhecetodasasleisnaturais?

—Não.

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— Claro que não! Nosso grande poeta, Cheefpreest, escreveu umversoque, comomeugrande talento, vou traduzirparaa suadeplorávellíngua.—Azazelpigarreou,pensouporummomentoedeclamou:

Toda a natureza não passa de arte, sem que você saiba; Apenaschance,direção,quevocênãopodever.

—Quesignificaisso?—perguntei,desconfiado.

— Signi ica que estamos diante de uma lei da natureza e temos dedescobrirqualéecomopodeserusadaparamodi icarosacontecimentosdeacordocomosnossosdesejos.Éissoquesigni ica.Achaqueumgrandepoetadomeupovodiriaumainverdade?

—Nessecaso,vocêpodefazeralgumacoisa?

—Talvez.Existemmuitasleisnaturais,vocêsabe.

—Existem?

— Oh, sim. Há até mesmo uma pequena e simpática lei natural(representada por uma equação particularmente bela quando expressaemtermosdetensoresdeWeinbaumian)querelacionaatemperaturadasopaaotempodequevocêdispõeparaterminá-la.Talvez,seestareduçãoprogressiva do mandato dos presidentes for governada pela lei quedescon ioqueagoverna,eupossaalterarocorpodoseuamigodeformaatorná-lo imunea todososperigosdesteplaneta.Elenãoestaráprotegidocontra as doenças degenerativas, é claro. A intervenção que tenho emmente não o tornará imortal, mas pelo menos não poderá morrer deinfecçãoouporacidente.Issoseriasatisfatório,imagino.

—Plenamentesatisfatório.Masquandovaiacontecer?

— Não posso dizer com certeza. Tenho andado muito ocupadoultimamente com uma jovem de minha espécie que se apaixonouperdidamente por mim. — Ele bocejou, enrolando por um momento alíngua bipartida.— Primeiro vou colocar o sono em dia,mas em dois outrêsdiasotrabalhoestarápronto.

—Estábem,mascomovousaberquevocêfezoserviço?

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—Issoéfácil.Esperealgunsdiasedepoisjogueoseuamigodebaixode um caminhão em movimento. Se ele escapar ileso, é porque asmodi icações que introduzi já estão em ação. Agora, se não se incomoda,vouterminarestamão, lembrar-medaminhapobremãedomeioepedirlicençaparasairdojogo.Levandoodinheiroqueganhei,éclaro.

Não pense que não tive trabalho para convencer Vissarion de queestavaperfeitamenteseguro.

—Estou imune a todos os perigosdesteplaneta?Comopode saberdisso?—perguntou.

— Isso não importa. Escute, Vissarion, eu questiono seusconhecimentosespecializados?Quandovocêmedizqueas taxasde jurosvãocair,euperguntocomoéquevocêsabe?

—Nissovocêtemrazão,masquandoeudigoqueosjurosvãocairenaverdadeelessobem(oquesóacontece,emmédia,cinquentaporcentodas vezes), o pior que pode acontecer é você sofrer umprejuízo. Se, poroutrolado,euaceitarapresidênciasupondoquenadavaimeacontecerealgumacoisameacontecer,eupossoatémorrer]

Não se pode argumentar com a lógica,masmesmo assim continueiargumentando.A inal, consegui convencê-loapetomenosadiaradecisãoporalgunsdias,emvezdesimplesmenterecusaroposto.

—Elesnãovãoconcordarcomumadiamento—disseele.Acontece,porém, que era feriado da Sexta-feira Santa, e o CRD fechou para ostradicionaistrêsdiasdelutoeoraçõespelosmortos.Oadiamentoportantofoiautomático,oqueVissarionconsideroucomoumindiciodequetalvezasorteestivessedoseulado.

Três dias depois, terminado o período de recolhimento, nós doisestávamos atravessando uma rua movimentada. Não me lembro direitocomoaconteceu,masmeabaixeiparaamarrarosapato,perdioequilíbrioeesbarreiemVissarion.Elecaiunafrentedoscarros.Houveumchiardefreioseumcantardepneus,etrêsveículossechocaram.

Vissarion não escapou totalmente ileso. Estava com o cabelodespenteado,osóculosforadolugaretinhaumamanchadeóleonaperna

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dacalça,àalturadojoelho.

Entretanto, ele nem reparou nisso. Olhou para os escombros eexclamou,deolhosarregalados:

— Eles nem encostaram emmim!Meu Deus, eles nem encostaramemmim!

Nodia seguinte, foi pegopela chuva sem capa, galochas ou guarda-chuva.Umachuvagelada, inclemente.Enão se resfriounoato.Chegandoem casa, telefonou para o clube, sem nem mesmo se dar o trabalho deenxugarocabelo,eaceitouapresidência.

Meuamigoteveummandatotranquilo.Logodesaída,quintupliouascomissões, sem dar ouvidos aos protestos dos clientes, que exigiam ummelhor índicede acertosparaos seusprognósticos.A inalde contas, nãosepodequererdemais.Sealguémtemahonradeserservidoporumdoscorretores mais famosos do país, será justo esperar que, além disso, eleescolhasempreosmelhoresinvestimentos?

Além do mais, Vissarion estava levando uma boa vida. Nada deresfriados. Nada de acidentes. Atravessava as ruas com impunidade,ignorandoossinaisquandoestavacompressa,emesmoassimraramenteprovocavadesastres.Nãotinhamedodeentrarnosparquesànoite.Certodia, um assaltante encostou uma faca no seu peito e sugeriu umatransferênciade fundos.Vissarion simplesmentedeuumchutena virilhadojoveminvestidorefoiandando.Obandido icoutãopreocupadocomosefeitosdopontapéqueseesqueceuderenovaraaplicação.

No dia do primeiro aniversário de sua eleição para a presidência,encontrei-me com ele no parque. Ele estava a caminho do almoçocomemorativodaocasião.Eraumlindodiadeoutonoe,aonossentarmosnobancodoparque, ladoa lado, sentíamo-nosperfeitamente felizeseempazcomomundo.

—George,eutiveumanoexcelente—disseele.

—Ficomuitosatisfeitoemouvirisso.

—Hoje sou o economista demaior prestígio no pais. Mês passado,

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quandoeudissequeaSiderúrgicaAuroraseuniriaàFundiçãoPrimaverae ela se fundiu à União Primavera, todos icaram maravilhados com aprecisãoquasematemáticadasminhasprevisões.

—Eumelembro.

—Eagora,queroquesejaoprimeiroasaber...

—Sim,Vissarion?

— O presidente me convidou para ser o economista-chefe dosEstados Unidos. Estou prestes a realizar omaior dosmeus anseios. Vejaisto.

Estendeu-me um envelope de luxo, com as palavras “Casa Branca”impressasemalto-relevo.Nomomentoemqueeuiaexaminaroconteúdodoenvelope,ouviumzumbido,comoseumabalativessepassadopertodaminhaorelha,eviumestranhoclarãocomocantodoolho.

Vissarion estava estirado no banco, morto, com uma mancha desanguenopeitodacamisa.Algunspassantescorreramemnossadireção;outroscomeçaramagritar.

—Chamemummédico!—berrei.—Chamemapolicia!

Mais tarde, a polícia a irmou quemeu amigo tinha sido alvejado nocoração por uma arma de calibre desconhecido, disparada por umpsicopata.Elesjamaisconseguiramencontraroassassino,oumesmoabalafatal. Felizmente, havia testemunhas dispostas a jurar que eu estavasegurando uma carta no momento da tragédia; caso contrárioprovavelmenteteriapassadomauspedaços.

Pobre Vissarion! Tinha sido presidente exatamente por um ano,como temia, mas a culpa não era de Azazel. Ele a irmara que Vissarionestava imune a todos os perigos deste planeta, mas, como disse Hamlet,“Existemmaiscoisasnocéuenaterra,Horácio,doqueexistemapenasnaterra”.

Antesdechegaremosmédicoseapolícia,eutinhavistoumpequenofuro no encosto do banco, bem atrás de onde estivera sentado o meu

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amigo.

Usei um canivete para arrancar o objeto encravado na madeira.Aindaestavaquente.Mesesdepois,mandei examiná-lodiscretamenteemummuseu.Euestavacerto.Eraummeteorito.

Estavaclaro,portanto,queVissariontinhasidomortoporumobjetode fora da Terra. Tratava-se, provavelmente, da primeira pessoa nahistória a ser vitimada por um meteorito. Não contei isso a ninguém, éclaro, pois Vissarion era um homem discreto, que detestaria atingir anotoriedade dessa forma. Sei que ele gostaria de ser lembrado por suascontribuições para a ciência da economia, e não havermorrido de formatãoinsólita.

Entretanto, a cada aniversário de sua eleição e de suamorte, comohoje,nãopossodeixardepensar:pobreVissarion!PobreVissarion!

—Ah,é?Ecomofoiqueelesfizeramisso?

— Ocorreu-lhe que o nome do clube, CRD, ou Clube de RetornosDecrescentes, estava afetando a duração do mandato dos presidentes.Assim,elesinverteramasiniciaisparaCDR.

—QuesignificaCDR?

—ClubedaDistribuiçãoRandômica,éclaro.Opresidenteatualestánocargohámaisdedezanoseaindagozadeperfeitasaúde.

Quando o garçom voltou com o meu troco, George pegou-o com olenço, guardou o lenço e as notas no bolso do paletó com um loreio,levantou-seefoiembora,despedindo-sedemimcomumacenojovial.

Georgeenxugouosolhoscomolenço,eeuperguntei:

— Que aconteceu com o presidente seguinte? Deve ter morridodepoisdeseismeses.Eopresidentequeosucedeu...

— Não precisa icar exibindo seus conhecimentos de matemáticasuperior para mim, amigo velho. Não sou um dos seus pobres leitores.Nadadoquevocêestápensandoaconteceu.Aironiaestánofatodequeo

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próprioclubeseencarregoudemudaraleidanatureza.

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AObradaMente

Naquela manhã, eu estava com inclinações ilosó icas. Sacudindo acabeçaemtristereminiscência,declarei:

—Nãoexisteartequeensinea lerno rostoas feiçõesdaalma.Eraumfidalgoemquemdepositavaabsolutaconfiança.

Era uma manhã de domingo e fazia muito frio. George e euestávamos emuma lanchonete. George, lembro-mebem, havia terminadoseusegundosanduíche.Eledisse:

— Tirou esse pensamento de uma das histórias que costumasubmeteraoseditoresmenosexigentes?

— Não, tirei de Shakespeare — expliquei. — É um trecho deMacbeth.

—Ah,eutinhaesquecidoquevocêéumplagiadorbarato.

— Não é plágio quando a gente reconhece a fonte. O que estavadizendo é que tinha um amigo que sempre considerei como uma pessoaagradáveledegostoapurado.Àsvezes jantávamos juntos, e eupagavaaconta. Uma vez ou duas, emprestei-lhe dinheiro. Sempre elogiei a suaaparênciaeoseucaráter.Efaziaissodeformatotalmentedesinteressada,sem levar em conta absolutamente o fato de que era resenhistaprofissional...seéquesepodechamarissodeprofissão.

—Eapesardisso,quando chegouahorade comentarumdos seuslivros,seuamigodissequeeraumaporcaria.

—Vocêleuaresenha?

— Nada disso. Simplesmente perguntei a mim mesmo que tipo decomentárioumlivroescritoporvocêseriacapazdesuscitar,earespostasurgiudiantedosmeusolhos.

— Não me importei quando ele disse que o livro não prestava,

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George (pelo menos, não mais do que qualquer outro escritor seimportaria diante de uma a irmação tão distante dos fatos), mas quandopassouausarexpressõescomo“demênciasenil”,acheiquetinhaidolongedemais. A irmar que o livro tinha sido escrito para crianças de oito anos,mas que elas se divertiriam mais jogando o jogo-da-velha foi um golpebaixo,nãoacha?—Suspireierepeti:—Nãoexistearte...

—Vocêjádisseisso—interrompeuGeorge.

—Eleparecia tão simpático, tão solidário, tão gratopelospequenosfavoresqueeu lheprestava.Comopoderiaeusaberquehaviaumaalmanegraportrásdessafachada?

—Mas ele eraumcrítico—argumentouGeorge.—Quemais vocêpoderia esperar de um crítico. Eles treinam para o cargo difamando aprópriamãe. É incrível que você tenha se deixado enganar de forma tãoridícula. Você é pior do que o meu amigo Vandevanter Robínson, e ele,como você logo vai icar sabendo, foi indicado uma vez para o prêmioNobeldeIngenuidade.Ahistóriadeleémuitocuriosa...

— Hoje não, por favor. A resenha saiu no New York Review ofBooks...cincocolunasdevenenodestilado.Nãoestoucomdisposiçãoparaouviroutradesuashistórias.

Mesmo assim, eu vou lhe contar [disse George]. Servira para tirarsuacabeçadessaspreocupaçõesmesquinhas.

Meu amigo Vandevanter Robínson era um rapaz que todosconsideravam muito promissor. Era bem-apessoado, culto, inteligente ecriativo. Frequentara as melhores escolas e estava apaixonado porMinervaShlump,umajovemderarabeleza.

Minervaeraumadasminhasa ilhadasetinhaumaprofundaafeiçãopormim, como era de se esperar. Uma pessoa com aminha ibramoralnormalmente não permite que mocinhas isicamente bem-dotadas oabracemcom força e se sentemno seu colo,mashavia algo tão cativanteemMinerva, tão inocentemente infantil, e, acima de tudo, tãomacio, quedecidiabrirumaexceção.

Naturalmente, jamais permitia tais demonstrações de afeto na

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presençadeVandevanter,quetinhaumciúmeirracionaldaamada.

Uma vez, ele me explicou esta sua fraqueza em termos que metocaramocoração.

—George—disse—,desdea infânciaquesonhoemapaixonar-meporuma jovemdevirtudesuperlativa,depureza intocada, inocentecomo(se me perdoa a expressão) uma boneca de porcelana. Em MinervaShlump, se meus lábios são dignos de pronunciar seu nome divino,encontreiessamulher.Éoúnicocasoemquetenhocertezadequejamaispoderei ser enganado. Se um dia descobrir que ela abusou da minhacon iança,nãotereimaisrazõesparacontinuaraviver.Estareicondenadoa terminarosmeusdiascomoumvelhoamargo, semnenhumconsolonavida a não ser minhamansão, meus criados, meu clube e a fortuna queherdeidosmeuspais.

Pobresujeito.Nãoseequivocaraaoescolhera jovemMinerva,comoeu bem sabia, pois quando se remexia satisfeita no meu colo podiaperceberqueeratotalmentedesprovidademalícia.Entretanto,eraaúnicacoisa na vida (pessoa, coisa ou ideia) que Vandevanter avaliaracorretamente. Pois o pobre rapaz simplesmente não possuía nenhumsensocritico.Era,semnenhumfavor,tãodesprovidodevisãoquantovocê.Nãodominavaaartede... sim,euseiquevocê jádisse isso.Sim,sim,vocêdisseduasvezes.

ComoVandevantereradetetivedapolíciadeNovaYork,issotornavaascoisasparticularmentedifíceis.

Aambiçãodesuavida (alémdeencontraradonzelaperfeita) tinhasidotrabalharcomodetetive,serumdaquelesindivíduosdeolhosdelinceenariz de gaviãoque constituemo terror dosmalfeitores em todaparte.Comesseobjetivoemmente, formara-seemcriminologiaemGrotoneemHarvard, e lia regularmente os artigos cientí icos escritos pelos grandesmestres,comoArthurConanDoyleeAgathaChristie.Tudoisso,combinadocomousoinfatigáveldain luênciadafamíliaeofatodequeumtioseuerapresidente do distrito administrativo de Queens, resultará na suanomeaçãoparaaforçapolicial.

Infelizmente, e para surpresa geral, ele não se revelou um sucessocomo detetive. Insuperável em sua capacidade de tecer uma cadeia

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inexorável de deduções lógicas enquanto sentado em uma cadeira debraços, fazendo uso de provas colhidas por outras pessoas, mostrou-setotalmenteincapazderecolherasprovaspessoalmente.

Oproblemaeraqueacreditavapiamenteemtudoquelhecontavam.Qualquerálibi,pormaisesfarrapadoquefosse,deixava-osemação.Erasóumperjuronotóriodarapalavradehonra,eVandevanternãoseatreviaaduvidardele.

Aquilo se tornou tão conhecido que todos os criminosos, desde ospivetes de rua até os políticos e industriais, passaram a exigir queVandevanterfosseescaladoparainterrogá-los.

—QuerofalarcomVandevanter—pediam.

—SóconfessoseforparaVandevanter—declaravam.

— Posso colocar Vandevanter a par de todos os fatos,cuidadosamente arrumados em ordem alfabética no dossiê que preparei—afirmavaopolítico.

—ExplicareiaVandevanterqueaquelechequedogoverno,novalordecemmilhõesdedólares,estavaesquecidonagaveta,eeuprecisavadeumagorjetaparaoengraxate—diziaoindustrial.

A consequência era que quem conseguia entrar em contato comVandevanter não ia nem a julgamento. Ele tinha o toque de impunidade,parausaraexpressãocriadaporumamigomeuqueéliterato.(Claroquevocê não se lembra de a ter inventado. Não estou falando de você. Achaqueserialoucodechamá-lode“literato”?)

Com o passar dos meses, o trabalho dos tribunais diminuiu e umnúmero imenso de ladrões, assaltantes e contraventores foi restituído aoseiodesuasfamíliassemamenormanchaemsuasreputações.

Naturalmente,apolícianão levoumuito tempoparaperceberoqueestava acontecendo e quem era o responsável. Vandevanter estava nopostohaviaapenasdoisanosemeioquandopercebeuqueoscolegasnãootratavamcomamesmacamaradagemdeantes,eossuperioresolhavampara ele de cenho franzido. Ninguém falava mais em promoção, mesmo

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quando Vandevanter mencionava o tio que era presidente do distritoadministrativo.

Elefoimeprocurar,comoosjovensemdi iculdadescostumamfazer,à procura da sabedoria de um cidadão do mundo. (Não sei o que querdizer,amigovelho,meperguntandoqualfoiapessoaqueeuindiquei.Porfavor,nãomeinter-rompacombobagens.)

—TioGeorge—disseele—,achoqueestoucomumproblema.(Elecostumava me chamar de tio George, acho que impressionado peladignidade e nobreza dosmeus cabelos grisalhos, tão diferentes das suascosteletashirsutas.)

“Tio George, estou enfrentando sérias di iculdades para conseguirumapromoção.Continuoatéhojecomodetetivejúnior.Meuescritório icanomeiodocorredoreminhachavedobanheironãofunciona.Eupormimnãomeimportaria,osenhorentende,masminhaqueridaMinerva,emsuaingenuidade, acha que isso pode signi icar que sou um fracassado e nãoquer nem pensar nessa possibilidade. “Jamais me casaria com umfracassado”, declarou, fazendo beicinho. “Não quero que as pessoas riamdemim.”8

—Sabede alguma razãoparaque esteproblemaesteja ocorrendo,meurapaz?—perguntei.

— Para mim, é um grande mistério. Admito que ainda não resolvinenhum caso,mas não acho que seja esse o problema. A inal, ninguéméperfeito.

—Osoutrosdetetivesresolvempelomenosalgunscasos?

— Resolvem, sim, mas os métodos que usam me deixam chocado.Elessãoextremamentedescon iados.Têmohábitodesagradáveldeolharparaumsuspeitocomarsuperioredizer;“Ah,émesmo?”,ou“Issoéoquevocêestádizendo!”Nãoestácerto.Éhumilhante.

—Épossível que às vezeso acusadoestejamentindo emereça sertratadocomceticismo?

Vandevanter pareceu surpreso. Pensou por um momento e depois

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disse:

—É,parecepossível.Queideiaassustadora!

—Vouveroqueposso fazerporvocê—dissea ele, encerrandoaconversa.

NaquelanoitechameiAzazel,odemôniodedoiscentímetrosque,vezououtra,meajudacoraseuspoderesmisteriosos.Nãoseisejáfaleisobreelecomvocê...Ah,jáfalei?

PoisAzazelapareceunopequenocírculodemar imemtornodoqualqueimo incenso e recito” palavrasmágicas sempre que preciso dele. Nãome pergunte mais nada; os detalhes são secretos, por motivos que vocêpodeimaginar.

Quando ele apareceu, estava usando uma veste comprida. Ou pelomenos parecia comprida, comparada com os dois centímetros que elemede da base da cauda à ponta dos chifres. Estava com o braço direitolevantado e falava com voz de soprano, balançando a cauda de um ladoparaoutro.

Era evidente que eu o havia surpreendido no meio de algumaatividade.Eleéumacriaturaquesepreocupacomdetalhesinsigni icantes.Quandoeuochamo,raramenteestátranquilamenteemrepouso.Não,estásempre empenhado em alguma tarefa de somenos importância e icafuriosoportersidointerrompido.

Desta vez, porém, ele sorriu e baixou o braço nomomento em quemeviu.Pelomenos,achoquesorriu,porqueparamimédi ícildistinguir-lhe as feições, por causa do tamanho. Uma vez, usei uma lente paraobservá-lomelhor,maselepareceuficarofendido.

—Nãotemimportância—disse,àguisadecumprimento.—Estavamesmoprecisandodeumdescanso.Jádecoreiodiscursoeestoucertodequetudovaidarcerto.

—Oquevaidarcerto,óPoderosoSer?Sebemquenadaquecontecom a participação de um ente tão esclarecido pode deixar de dar certo.(Eleparecesermuitosensívela lisonjas.Sobesseaspecto, separececom

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você.)

—Estouconcorrendoaumcargopúblico—disse,comsatisfação.—Soucandidatoaapanhadordegrods.

—Perdãopelaminha ignorância,maspoderiame informaroqueéumgrod?

—Ora,ogrodéumanimaldomésticomuitopopularnomeumundo.Algunsdessesanimaisnãotêmlicença.Amissãodoapanhadordegrodsérecolhê-los.Comoosgrodssãocriaturaspequenas,inteligenteseariscas,éprecisomuitahabilidadeparacapturá-los.Existempessoasquedizem,comardedesdém: “Azazel jamais seráeleitoapanhadordegrods”.”Mas, elesvãoverumacoisa!Mas,mudandodeassunto,quepossofazerporvocê?

Expliquei-lheasituação,eAzazelpareceusurpreso.

— Quer dizer que nestemundo é impossível saber se uma pessoaestádizendoaverdadeounão?

— Nós temos um aparelho chamado “detector de mentiras” —expliquei. — Ele mede a pressão sanguínea, a condutividade elétrica dapeleeoutrascoisas.Emcertascircunstâncias,poderevelarseumapessoaestámentindo. Entretanto, a tensão nervosa às vezes produz osmesmossintomasemumapessoaqueestádizendoaverdade.

— É claro. Entretanto, em qualquer espécie racional, a mentiraprovocaaalteraçãodecertasfunçõesglandulares.Ouseráquevocêsnãosabemdisso?

Eviteiresponderàpergunta.

—Haveria algumamaneirade tornarodetetiveRobinson capazdedetectaressaalteração?

—Semusarnenhumamáquina?Apenascomopensamento?

—Issomesmo.

—Compreendequeestámepedindoparaajustaramenteprimitiva

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deummembrodasuaespécie?

—Compreendo.

—Bem,pelomenosposso tentar.Vocêvai terdeme levar a eleoutrazê-loamimepermitirqueeuoexamine.

—Nãoháproblema.

Umasemanadepois,Vandevantermeprocurou.Pareciapreocupado.

— Tio George— começou—, uma coisamuito estranha aconteceucomigo.Euestavainterrogandoumhomemacusadoderoubarumalojadebebidas. Ele me contou que passava casualmente pela loja, pensando napobremãe,queestavacomumaterríveldordecabeçadepoisdeconsumirmeiagarrafadegim,quandolheocorreuentrareperguntaraodonoseadordecabeçatinhasidocausadapelogim.Derepente,odonodaloja,semnenhummotivoaparente, colocouumaarmanasuamãoecomeçoua lheentregaroconteúdodacaixaregistradora,nomomentoexatoemqueumpolicial entrava na loja. O homem me disse que pretendia aceitar odinheiro como compensação pela dor de cabeça que a mãe estavasofrendo.Foientãoquetiveasensaçãodequeeleestavamentindo.

—Verdade?

— Sim. Foi uma coisamuito estranha.— A voz de Vandevanter sereduziuaumsussurro.—Nãoapenaseusabiaqueelehaviaentradonalojacomaarmanamão,mastambémqueamãedelenãoestavacomdordecabeça.Imagine!Alguémmentirarespeitodaprópriamãe!

Comoprosseguimentodasinvestigações,tinha icadoprovadoqueopressentimento de Vandevanter estava correto sob todos os aspectos. Ohomemhaviamesmomentido.

Daquelediaemdiante,oinstintodeVandevanterfoificandocadavezmaisapurado.

Emummês,elesetornaraumdetectordementirasambulante.

Os colegas observavam, assombrados, enquanto suspeito após

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suspeito tentava em vão enganá-lo. A alegação de um acusado de queestavarezandonomomentodoroubodacaixadedonativosdaigrejacaiuporterradiantedointerrogatórioimplacáveldeVandevanter.Oadvogadoquedizia ter investidoporenganoodinheirodeumorfanatona reformado seu escritório foi logo desmascarado. O contador que a irmava haversubtraído acidentalmente um número de telefone da linha rotulada“imposto a pagar” foi pego em contradição e forçado a confessar. Umtra icante de drogas que, em suas próprias palavras, tinha apanhado umpacotedecincoquilosdeheroínaemumalanchonete,pensandoquefosseaçúcar, viu-se encurralado pela lógica irrefutável do rapaz e admitiuconheceroconteúdodopacote.

O rapaz passou a ser chamado de Vandevanter, o Vitorioso. Ocomissáriodepolícia empessoa, sobos aplausosde todoo corpopolicial,entregouaVandevanterumachavedobanheiro,alémdetransferiroseuescritórioparaumaextremidadedocorredor.

Euestavacomemorandoosucessodenossapequenaoperação,certode que não haviamais nenhum obstáculo ao casamento de Vandevantercom a adorável Minerva Shlump, quando Minerva em pessoa bateu àminhaporta.

— Oh, tio George — murmurou fracamente, enquanto seu corpoesguio balançava de um lado para outro. Parecia a ponto de desmaiar.Amparei-a e apertei-a contraomeu corpodurante cincoou seisminutos,enquantodecidiaexatamenteemquecadeirasesentiriamaisconfortável.

— Que aconteceu, meu bem? — perguntei, depois de arriar comcuidadoopreciosofardo.

— Oh, tio George — repetiu, com os lindos olhos marejados delágrimas—,éVandevanter.

—Poracasotentouseaproveitardevocê?

—Oh,não,tioGeorge.Eleéumapessoamuitorespeitadora.Aliás,eulheexpliqueiqueos jovensàsvezesestãosujeitosa impulsos irresistíveisde natureza hormonal e que estava preparada para perdoá-lo caso algosemelhante ocorresse com ele. Apesar disso, porém, jamais se portou demaneirainconveniente.

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—Quefoi,então,Minerva?

—Oh,tioGeorge,elerompeunossonoivado.

—Éinacreditável.Vocêsforamfeitosumparaooutro.Porquê?

—Elealegaqueeu...queeufalteicomaverdade.

—Chamouvocêdementirosa?

—Nãoexatamente,masdánomesmo.Estamanhã,olhouparamimcom aquele ar de veneração a que estou habituada e perguntou: “Minhaquerida,vocêsemprefoi ielaoseuamado?”Respondi,comosempre:“Sim,amor,soutão ielcomooraiodesolparaosol,comoapétaladerosaparaarosa!”Nessemomento,porém,elemeolhoucomatestafranzidaedisse:“Acontecequesuaspalavrasnãocorrespondemàverdadedosfatos.Vocêestáquerendomeenganar!”Foicomoseeutivesselevadoumsoco.Dissea ele: “Vandevanter,meuanjo, que estádizendo?”Ele respondeu: “Oquevocêacaboudeouvir.Vocêmedecepcionou.Nãoqueromais vê-la!”E foiembora. Oh, que vou fazer? Que vou fazer? Onde vou encontrar outrorapazcomoele?

— Vandevanter em geral sabe o que está dizendo... nas últimassemanas,nãoerrounenhumavez.Vocêfoiinfiel?

Minervaenrubesceulevemente.

—Nãoexatamente.

—Comoassim?

—Háalgunsanos,quandoeueraapenasumacriançadedezesseteanos, beijei um rapaz. Segurei-o com força, admito, mas foi apenas paraevitarquefugisse,enãoporgostardele.

—Compreendo.

— Não foi uma experiência muito agradável. Quando conheciVandevanter, iqueisurpresaaoconstatarqueoseubeijoeramuitomaisgostoso que o daquele rapaz. Naturalmente, essa constatação me deixou

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muito satisfeita. Assim, durante todo o tempo que durou minha relaçãocom Vandevanter, tenho beijado outros homens, para assegurar-me dequenenhum, absolutamente nenhum, se compara aomeu amado. E olhe,tioGeorge,quelhespermitiexperimentaremtodasasvariedadespossíveisde beijo, para não falar de outras atividades correlatas. Mesmo assim,nenhumchegouaospésdeVandevanter.Eeleaindaalegaquefuiinfiel!

— Que injustiça! — exclamei. — Minha ilha, isso não pode icarassim.—Beijei-aquatrooucincovezeseperguntei:—Veja,meusbeijosnãosecomparamaosdeVandevanter,nãoé?

—Vamos ver—disse ela, beijando-memais quatro ou cinco vezescomgrandehabilidadeeardor.—Claroquenão—concluiu.

—Voufalarcomele—disseeu.

Naquela mesma noite, fui ao apartamento do rapaz. Ele estavasentadonasaladeestar,carregandoedescarregandoumrevólver.

—Estápensandoemsuicídio?—perguntei.

—Claroquenão—respondeu, comumagargalhada cínica.—Quemotivoeuteriaparamematar?Aperdadealguémquenuncamedisseaverdade?Estoumelhorsemela,eulheasseguro.

—Vocêestácometendoumainjustiça.Minervasemprefoi ielavocê.Suas mãos, seus lábios e seu corpo nunca entraram em contato com asmãos,oslábioseocorpodeumhomemquenãofossevocê.

—Sabequeissoémentira.

— Estou lhe dizendo que é amais pura verdade— insisti.— Tiveuma conversa séria com a sua noiva e ela me revelou os seus segredosmaisrecônditos.Umavez,jogouumbeijoparaumrapaz.Tinhacincoanosnaépoca,eele,seis;desdeentão,elasearrependeamargamentedaquelegestoimpensado.Talveztenhasidoesseremorsoquevocêdetectou.

—Estádizendoaverdade,tioGeorge?

—Examine-mecomoseuolharinfalívelepenetrante.

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—Vourepetiroqueacabeidedizer,evocêsaberáseestouounãodizendoaverdade.

Repetiahistóriaeelemurmurou,comarpensativo:

—Oqueosenhordisseéamaispuraverdade,tioGeorge.SeráqueMinervameperdoaria?

— Claro que sim. Peça desculpas a ela e volte a ser o terror dosmalfeitores que habitam as lojas de bebidas, as salas de reuniões dasgrandescompanhiaseoscorredoresdospaláciosdogoverno,masnunca,nunca mais duvide da mulher que você ama. Para ser perfeito, o amorexigeconfiançaintegral.

—Temrazão,temrazão!—exclamouVandevanter.

E até hoje tem seguido o meu conselho. É o investigador maisconhecido de toda a força policial e foi promovido a detetive de segundaclasse,comdireitoaumescritórionoporão,ao ladodamáquinade lavar.Casou-secomMinerva,eosdoissãomuitofelizesjuntos.

Minerva continua a comparar os beijos de Vandevanter com os deoutros homens, e os resultados são sempre lisonjeiros pa-ra o rapaz.Existemocasiões emquepassaanoite inteira investigandoumcandidatomais promissor, mas ninguém ainda conseguiu suplantar o seu marido.Hoje ela é mãe de dois ilhos, um dos quais se parece ligeiramente comVandevanter.

E assim vai por terra a sua alegação, amigo velho, de que todas asintervençõesdeAzazelsãodesastrosas.

— Acontece — argumentei — que você mentiu quando disse aVandevanterqueMinervajamaishaviatocadoemoutrohomem.

—Fizissoparasalvarumadonzelainocente.

—MascomofoiqueVandevanternãodetectouamentira?

—Imaginoquetenhasidoporcausadomeuardedignidade.

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— Tenho outra teoria. Acho que nem você, nem sua pressãosanguínea,nemacondutividadeelétricadasuapele,nemassuasfunçõesglandularesconseguemmaisdistinguirentreoqueéverdadeiroeoqueéfalso.Demodoqueéimpossívelinterpretarcorretamenteassuasreações.

—Nãosejaridículo—disseGeorge.

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AsBrigasdaPrimavera

EueGeorgeestávamosolhandoparao compusdauniversidade,dooutro ladodorio.George,quehavia jantado lautamenteàminhacusta,seencontravaemumestadodenostalgialacrimejante.

—Ah,ostemposdefaculdade,ostemposdefaculdade!—gemeu.—Que podemos encontrar na vida de adultos para compensar o queperdemos?

Olheiparaele,surpreso.

—Nãomedigaqueestudounauniversidade!

Eleamarrouacara.

—NãosabequefuiopresidentemaisfamosodafraternidadedeFiFoFum?

—Mascomopagavaastaxasescolares?

— Através de bolsas de estudos! Elas não faltaram, depois quemostrei do que era capaz, comemorando nossas vitórias nos dormitóriosfemininos.Isso,eumtiorico.

—Eunãosabiaquevocêtinhaumtiorico,George.

—Depoisdosseisanosque leveiparame formar,elenãoeramaisrico. Pelomenos, não tão rico.Deixou o dinheiro que havia sobrado paraum abrigo para gatos abandonados, fazendo várias observações a meurespeito no testamento que tenho vergonha de repetir. A vida nuncamefezjustiça.

—Umdia,nofuturodistante,façoquestãodeouvirahistóriadasuavida,comtodososdetalhes.

— Entretanto— continuou George—, os dias de faculdade foramuma época dourada emminha dura existência. Pude ver isso claramente

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háalgunsanos,quandoestivenocompusdavelhaUniversidadedeTate.

— Eles o convidaram para voltar lá? — perguntei, quaseconseguindoesconderumtraçodeincredulidadenavoz.

— Pretendiam convidar, estou certo— disse George.—Mas antesdissovolteiapedidodeumex-colegaevelhoamigo,AntiochusSchnell.

Já que vocêparece tão interessado [disseGeorge], vou contar-lhe ahistória do velho Antiochus Schnell. Ele era meu amigo inseparável nostemposdecolégio,meu idusAchates(nãoseiporquegastomeulatimcomum ignorantecomovocê).Mesmohojeemdia, embora tenhaenvelhecidomuitomaisacentuadamentedoqueeu,lembro-medecomoeranosvelhostempos, quando engolíamos peixinhos dourados, lotávamos cabinestelefônicaseremovíamoscalcinhascomgolpescerteiros,semligarparaosgritos histéricos das nossas colegas. Em suma: desfrutamos de todos oselevadosprazeresdeumainstituiçãodeensinosuperior.

Assim, quando o velho Antiochus Schnell disse que precisavaconversar comigo a respeito de um assunto de suma importância, atendiimediatamenteaoseuchamado.

—George—disseele—,éomeufilho.

—ArtaxerxesSchnell?

— Ele mesmo. Está na Universidade de Tate, cursando o segundoano,masascoisasnãoestãocorrendobemparaele.

Franziatesta.

—Viciou-seemdrogas?Endividou-se?Apaixonou-sepelagarçonetedorestauranteuniversitário?

— Pior! Muito pior!— exclamou o velho Antiochus Schnell. — Elenãomecontou (achoquenão tevecoragem),mas iquei sabendode tudoatravésdeumcolega,quemeescreveuemsegredo.George,velhoamigo,meu pobre ilho... vou dizer com toda a franqueza, sem usar deeufemismos...estáestudandomatemática!

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— Estudando mate... — Não consegui pronunciar a abominávelpalavraporinteiro.

OvelhoAntiochusfezquesimcomacabeça.

— E ciências políticas, também. Ele está assistindo às aulas eestudandoamatéria!

—Minhanossa!—exclamei,chocado.

—Artaxerxesdeveterummotivopara fazer isso,George.Seamãesouber, não vai resistir. Ela é uma mulher sensível e não goza de boasaúde. Eu lhe peço, em nome da nossa antiga amizade, que vá a Tate einvestigue o assunto. Se o rapaz está sendo vítima de um engodo, faça-ovoltaràrazão.

PelobemdamãedeleepeloprópriobemdeArtaxerxes!

Apertei-lheamãocomlágrimasnosolhos.

— Nada me impedirá — declarei. — Nenhum prazer terreno medesviará destamissão sagrada. Gastarei a última gota domeu sangue, senecessário...porfalaremgastar,vouprecisardeumcheque.

—Deumcheque?—repetiuovelhoAntiochusSchnell,quenãoerapropriamenteoquesepodeconsiderarummão-aberta.

— Para as diárias do hotel — expliquei. — Isso sem falar nasrefeições,bebidas,gorjetas,nain laçãoenoscustosoperacionais.A inal,oqueestáemjogoéofuturodoseufilho,enãodomeu.

OvelhoAntiochus inalmenteconcordouemmedarocheque,eviajeiparaTate.Assimquechegueiàcidade,trateideprocurarArtaxerxes.Maltive tempo de jantar num restaurante de primeira, beber um excelenteconhaque,dormir até asdezdamanhae tomar café antesdevisitá-lonoseuquarto.

Quandoentreinoquarto, iqueichocado.Asestantesqueescondiamas paredes estavam cheias, não de lâmulas e troféus esportivos, não degarrafasde rótulos coloridos, nãode fotogra iasde jovens atraentemente

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despidas,masdelivros.

Um livro estava desavergonhadamente aberto sobre a cama, eacredito que ele o estivesse folheando pouco antes da minha chegada.Havia uma marca de tinta suspeita na mão direita, que eledesajeitadamentetentouesconderatrásdascostas.

Entretanto, o próprio Artaxerxes foi um choque ainda maior paramim.Elemereconheceu,éclaro,comoumvelhoamigodafamília.Eunãoovia fazianoveanos,masnoveanosnãohaviammudadomeuportenobrenemminha postura franca e aberta.Nove anos antes, porém, Artaxerxeseraummeninodedezanos,semnenhumatrativoespecial.Agoraeraumrapazdedezenove,semnenhumatrativoespecial.Tinhapoucomaisdeummetroesetentadealtura,usavaóculosgrandese redondoseo rostoeraencovado.

—Quantovocêpesa?—perguntei,impulsivamente.

—Quarentaequatroquilos—murmurou.

Olhei para ele, penalizado. Era um fracote de quarenta e quatroquilos.Deviaseroalvonaturaldasbrincadeirasdaturma.

Sentiocoraçãoapertadoquandopensei:Pobrerapaz!Pobrerapaz!Com um corpo como aquele, como poderia tomar parte nas atividadesprincipais da educação universitária? No futebol? No atletismo? Na lutalivre? Nas representações teatrais? Quando os outros rapazes diziam:“Vamosalugarovelhoceleiro,arranjarumaspeçasderoupadesegundamãoemontarumacomédiamusical”,oqueelepodiafazer?Compulmõescomo aqueles, o máximo que conseguiria fazer era uma voz de sopranotuberculoso.

Naturalmente, as circunstâncias o haviam forçado a regredir àinfância.

—Artaxerxes,meu rapaz—disse, baixinho, quase carinhosamente—,éverdadequevocêandaestudandomatemáticaeeconomiapolítica?

Elefezquesimcomacabeça.

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—Eantropologia,também.

Procureidisfarçarminhaindignaçãoeprosseguiointer-rogatório.

—Éverdadetambémquevocêassisteàsaulas?

—Sintomuito,maséverdade.

Haviaumalágrimafurtivanocantodeumdosseusolhos,enomeiodo horror que estava sentindo extrai alguma esperança do fato de quepelomenoseleeracapazdereconheceroníveldedegradaçãoaquehaviacaído.

—Meu ilho, por que não renuncia, agoramesmo, a essas práticasdevassaseretornaàvidasimplesepuradeumestudanteuniversitário?

—Não posso— soluçou.— Já fui longe demais. Ninguémpodemeajudar.

Euestavaficandodesesperado.

—Não há nenhumamulher decente nesta universidade que possaajudá-lo?Oamordeumamulherpodeconseguirmaravilhas...

Seusolhosseiluminaram.Eutinhaacertadoemcheio.

—PhilomelKribb—balbuciou.—Elaéosol,aluaeasestrelasqueiluminamomardaminhaexistência.

—Ah!—exclamei,detectandoossentimentosqueseescondiamportrásdaquelaspalavrascontidas.—Eelasabedisso?

—Comopossocontaraela?Tenhocertezadequeririademim.

—Vocênãodesistiriadamatemáticaporela?Elesacudiuacabeça.

—Soufraco...muitofraco.

Despedi-me do rapaz, disposto a falar imediatamente com PhilomelKribb.

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Não foidi ícil localizá-la.Veri iqueinasecretariaqueestava fazendoocursodetorcidaorganizada.Encontrei-anoginásio,ensaiando.

Esperei pacientemente até os pulos e os gritos terminarem e pediquememostrassemPhilomel.Eraumamoça lou-ra,deestaturamediana,brilhandodesaúdeetranspiração,edonadeumcorpoquemefezlamberos lábios. Era evidente que, por trás das perversões acadêmicas deArtaxerxes,aindahaviaumrapaz interessadonosverdadeirosvaloresdavidauniversitária.

Depoisde sairdo chuveiro e vestiruma roupa colorida e esportiva,Philomelfoiaomeuencontro,frescaeperfumadacomoumcampocobertodeorvalho.

Fuidiretoaoassunto,dizendoaela:

—ParaArtaxerxes,vocêéofenômenoastronômicomaisimportantedanatureza.

Tiveaimpressãodequeelaficoucomovida.

—PobreArtaxerxes!Eleéumrapaztãocarente!

—Talvezprecisedaajudadeumaboamulher.

— Eu sei. Sei também que sou boa... pelomenos é o que dizem—acrescentou, corando ligeiramente.—Mas,queposso fazer?Nãoposso ircontraabiologia.CostiganCoicedeMulavivehumilhandoArtaxerxes.Eleoridiculariza empúblico, derruba seus livros tolosno chão, fazdele gato esapato,tudodiantedosrisoscruéisdamultidão.Sabecomoéaatmosferaefervescentedaprimavera.

—Sei,sim—concordei,lembrando-medosdiasfelizesedasmuitas,muitasvezesemquehaviaseguradoospaletósdosbrigões.—Aslutasdaprimavera!

Philomelsuspirou.

— Gostaria que um dia Artaxerxes enfrentasse Coice de Muia,mesmo que para isso precisasse de umbanquinho. A inal, Coice deMula

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tem dois metros e cinco de altura. Mas, por alguma razão, Artaxerxesjamaisreage.Achoquetodoesseestudodeveestarfazendomalaele.

—Éverdade,massevocêoajudasseacombaterovicio...

—Oh, seique,no fundo,eleéumrapazdecente,eeuoajudariasepudesse,mas o equipamento genético domeu corpo é fundamental e eleme coloca do lado de Coice de Mula. Coice de Mula é simpático, forte edominador,eessasqualidadestocamomeucoraçãodemembrodatorcidaorganizada.

—EseArtaxerxeshumilhasseCoicedeMula?

—Umamoçahonesta—disseela,empertigando-seorgulhosamente,e com isso brindando-me com uma fantástica exibição de proeminênciasfrontais — deve seguir o seu coração, que inevitavelmente foge dohumilhadoesegueohumilhador.

Palavrassimples,saídas,eusabia,daalmadeumajovemdebem.

Agora estava tudo claro para mim. Se Artaxerxes ignorasse apequenadiferençadetrintaecincocentímetrosecinquentaquilosedesseuma surra em Coice de Mula, Philomel seria de Artaxerxes e otransformaria em um homem de verdade, desses que passam a vidabebendocervejaevendofutebolnatelevisão.

EraumcasosobmedidaparaAzazel.

Não sei se já lhe falei de Azazel, mas ele é um demônio de doiscentímetros de altura, de outro tempo e lugar, que só eu sou capaz deconjurar, usando ummétodo secreto que não posso revelar nemmesmoparavocê.

Azazel possui poderes muito superiores aos nossos, mas édesprovido de outras qualidades, pois coloca sempre os seus interessesmesquinhosacimadasminhasnecessidadesmaisfundamentais.

Desta vez, quando ele apareceu, estava deitado de lado, com osolhinhosfechadoseapequenacaudaacariciandolanguidamenteoar.

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—ó Poderoso Ser— disse eu, porque ele insiste em ser chamadodestaforma.

Seus olhos se abriram, e ele soltou um grito agudo, muitodesagradável.

— Onde está Ashtaroth?— perguntou.— Onde está minha bela epreciosaAshtaroth,queháummomentoseencontravaemmeusbraços?

Entãoelemeviueresmungou,rangendoosdentes;

— Ah, é você! Sabe que me chamou justo no momento em queAshtaroth...masissonãoéaquinemlá.

—Nemacolá—disseeu.—Pense,porém,quedepoisdemeajudar,você pode voltar ao seu mundo meio minuto depois de haver partido.Assim, Ashtaroth terá tempo de icar preocupada com o seudesaparecimento súbito, mas não de icar furiosa. Seu reaparecimento adeixará radiante, e poderão voltar ao que estavam fazendo quando ochamei.

Azazelpensouporummomentoedepoisdisse,noqueeraparaeleumtomagradável:

— Você tem um cérebro pequeno, verme primitivo, mas às vezespodesertortuosoeportantoútilapessoascomoeu,dotadasdequalidadesmentais superiores mas incapazes de um pensamento que se afaste daretidão.Dequetipodeajudaestáprecisando?

ExpliqueioproblemadeArtaxerxes,eAzazellogosugeriu:

—Possoaumentaraforçadosseusmúsculos.

Sacudiacabeça.

—Nãoéumaquestãoapenasdemúsculos.Elevaiprecisartambémdeespertezaecoragem.

—Achaqueéfácilmexernasqualidadesespirituaisdeumapessoa?—protestouAzazel,indignado.

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—Temalgumaoutrasugestão?

—Claroquetenho.A inal,nãosouin initamentesuperioravocê?Seoseuamigofracotenãopodeenfrentardiretamenteoinimigo,quetalumaaçãoevasiva?

— Quer dizer sair correndo?— Sacudi a cabeça.— Acho que nãoficariamuitobemparaele.

—Nãofaleiemcorrer;faleiemaçãoevasiva.Sóprecisoaumentarosseus re lexos, o que não será di ícil para uma pessoa com as minhashabilidades.Paraevitarquesecansedesnecessariamente,possofazercomque esses re lexos acelerados sejam ativados por uma descarga deadrenalina. Em outras palavras, ele icará com os re lexos aceleradossempre que sentir medo, raiva ou outra emoção forte. Mostre-me o seuamigodeperto, e resolverei tudo empoucosminutos.—Está combinado—disseeu.Quinzeminutosdepois, fuivisitarArtaxerxesnoseuquartoepermiti que Azazel olhasse para ele do bolso do meu paletó. Azazelaproveitouaoportunidadeparamodi icarosistemanervosoautônomodorapazantesdevoltarparasuaAshtaroth.Meupassoseguintefoiescreverumacarta,disfarçandominhaletracomosefosseadeumestudante(istoé,escrevendoalápiseemletrasdeimprensa),een iaracartadebaixodaportadoquartodeCoicedeMula.Nãotivedeesperarmuitotempo.CoicedeMulacolocouumrecadonoquadrodeavisosdesa iandoArtaxerxesaencontrar-se com ele na cantina da universidade. Artaxerxes não podiarecusar.

Philomel e eu fomos lá, também, e icamos do lado de fora de ummultidão de alegres estudantes, ansiosos para se divertirem. Artaxerxes,trêmulodemedo, tinhanasmãosumgrossovolume intituladoManualdeQuímicaeFísica.Mesmonosmomentosdecrise,nãoconseguialivrar-sedovício. Coice de Mula, alto e musculoso, usando uma camisa de meiacuidadosamente rasgada, foi o primeiro a falar; — Schnell, soube queandou espalhando mentiras a meu respeito. Como sou bonzinho, querodar-lheaoportunidadede sedefenderantesqueeuo reduzaapedaços.Disseaalguémqueumavezmesurpreendeulendoumlivro?

—Umavezvivocêcomumarevistadehistóriasemquadrinhos,masela estava de cabeça para baixo, de modo que não acho que estivesse

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lendo.Dequalquermaneira,nuncaconteiparaninguémoquevi,—Disseaalguémquetenhomedodemeninasesoudemuitofalarepoucofazer?

— Já ouvi algumas garotas comentarem isso, Coice de Mula, masnuncarepetiparaninguém.

CoicedeMulafezumapausa.Opioraindaestavaparavir.

—Escute,Schnell,vocêdissequeeuerabicha?

—Dejeitonenhum!

—Entãovocênegatodasasacusações?

—Nego!

—Ereconhecequeétudomentira?

—Reconheço!

—Nessecaso—disseCoicedeMula,cerrandoosdentes—,nãovoumatarvocê.Vousimplesmentequebrarumossinhooudois.

— As brigas da primavera! — gritaram os estudantes, rindo,enquantofaziamumcírculoemtornodosdoiscombatentes.

— Vai ser uma luta justa— anunciou Coice de Mula, que, emborafosseumvalentão, respeitavao códigodehonra.—Ninguémmeajuda eninguémajudavocê.Istoficaentrenósdois.

—Vaiserumalutajusta!—repetiu,emcoro,aplateia.

—Tireosóculos,Schnell—ordenouCoicedeMula.

— Não!— protestou valentemente Artaxerxes, pouco antes de umdosespectadoresarrancarosóculosdoseurosto.

—Ei!VocêestáajudandoCoicedeMula!—exclamouArtaxerxes.

— Não, não estou. Estou ajudando você — disse o estudante, queagoraestavasegurandoosóculos.

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—MaseunãopossoverCoicedeMuladireito!

—Nãosepreocupe.Logovocêvaimesentir!—disseCoicedeMula.

E semmais palavras, desferiu umpotente direto, apontandopara oqueixodeArtaxerxes.

O golpe atingiu o vazio, pois Artaxerxes havia recuado no últimomomento, fazendo comqueopunhodoadversáriopassasseamilímetrosdoseurosto.

CoicedeMulapareciasurpreso.Artaxerxespareciaestupefato.

—Agora chega de brincadeiras— disse Coice deMula, desferindodoissocosemrápidasequência.

Artaxerxes inclinou o corpo para a direita e para a esquerda, comuma expressão assustada, e temi que pegasse uma pneumonia com odeslocamentodearcausadopelosgolpesdeCoicedeMula.

CoicedeMulaestavaficandocansado.Respiravacomdificuldade.

—Quediaboestáfazendo?—perguntou,furioso.

Artaxerxes, porém, já havia compreendido àquela altura que, poralguma razão, o adversário não podia atingi-lo. Assim, aproximou-se dooutro e, levantando a mão que não estava segurando o livro, deu umasonorabofetadaemCoicedeMula.

Aplateiadeixouescaparumsuspirodeassombro,aomesmotempoqueCoicedeMulaperdiatotalmenteocontrole.Tudoquesepodiavereraumpar de braçosmusculosos golpeando seguidamente um alvo que nãoparavadesemexer.

Depoisdealgunsminutosali estavaCoicedeMula,ofegante, a testacoberta de suor e totalmente exausto. Ao lado dele, Artaxerxes, calmo esemumarranhão.Aindaconservavaolivronasmãos.

Derepente,en iouolivronoplexosolardeCoicedeMula,equandoeste dobrou o corpo, golpeou-o na cabeça com o livro, com mais força

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ainda. O livro icou seriamente avariado, mas Coice de Mula perdeu ossentidos.

Artaxerxesolhouemtornoedisse:

—Seráqueopatifequepegoumeusóculospodedevolvê-losagora?

— Pois não, Sr. Schnell — disse o estudante que estava com osóculos, comumsorriso servil.—Aqui estão.Tomei a liberdadede limpá-los.

—Ótimo.Agoradêofora.Issovaleparatodosvocês.Fora!

Elesobedeceram,atropelando-senaansiedadeparaseafastaremdacenadocombate.ApenasPhilomeleeuficamos.

Os olhos de Artaxerxes se ixaram na jovem. Ele levantou assobrancelhasefezumgestocomodedomindinho.Philomelaproximou-sehumildemente,equandoeledeumeia-voltaeseafastou,elaoseguiucomamesmahumildade.

Foium inalfelizemtodaalinha.Artaxerxes,cheiodeautocon iança,descobriu que não precisava mais dos livros para se sentir importante.Passoua frequentaroginásioese tornoucampeãouniversitáriodeboxe.Eraadoradoportodasasestudantes,massecasoucomPhilomel.

Asuafamacomoboxeadoroajudouaconquistarumaboaposiçãonomundodas inanças. Combinandouma inteligênciabrilhante comum tinoincomum para negócios, conseguiu uma concessão para vender assentosdeprivadaparaoPentágono.Omelhornegócioquefez,porém,foiadquirirmáquinasdelavarnocomércioerevendê-lasparaórgãosdogoverno.

Por outro lado, seu antigo vício não deixou de ter alguma utilidade.Artaxerxesusaseusconhecimentosdematemáticaparacalcularoslucros,os conhecimentos de economia política para conseguir que a receitafederalaceite suasdeduçõesno impostode rendaeos conhecimentosdeantropologiaparaUdarcomosfuncionáriosdogoverno.

OlheiparaGeorge,incrédulo.

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—EstádizendoquenestecasovocêeAzazelrealmenteconseguiramajudarumpobreinocente?

—Claroquesim—disseGeorge.

— Mas isso quer dizer que vocês conhecem um homemextremamentericoequedevetudoquepossuiavocês.

—Vocêentendeuperfeitamenteasituação,amigovelho.

—Entãoporquenãoarrancaalgumdinheirodele?

Foi nessa altura que o rosto de George assumiu uma expressãosombria.

— Parece muito fácil, não é? Você diria que ainda existe gratidãonestemundo, certo? Você diria que existem indivíduos que, após se lhesexplicar que sua capacidade sobre-humana de evasão é o resultado doárduo trabalho de um amigo, não hesitariam em cobrir esse amigo depresentes,nãoémesmo?

—QuerdizerqueArtaxerxesnãofezisso?

— Não fez, não. Quando o procurei uma vez, para lhe pedir queinvestissedezmildólaresemumplanomeuquecertamenterenderiacemvezes essa quantia, unsmíseros dezmil dólares que ele ganha toda vezquevendeumapartidadeparafusoseporcasparaasForçasArmadas,elemandouqueumdosseuscapangasmepusessenoolhodarua.

—Masporque,George?Vocêsabeporquê?

— Custei para descobrir, mas agora já sei. Como lhe contei, amigovelho, Artaxerxes tem seus re lexos acelerados sempre que se encontrasob os efeitos de uma emoção violenta, como a raiva ou o medo. Azazelcuidouparaquefosseassim.

—Eusei.Edai?

— Sempre que Philomel pensa nas inanças da família e sente umcerto ardor libidinoso, aproxima-se de Artaxerxes, que, percebendo a

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intenção da esposa, sofre uma descarga de adrenalina. Assim, quandoPhilomelselançasobreele,comentusiasmojuvenil...

—Queacontece?

—Eleseesquiva.

—Ah!

—Naverdade,elajamaisconseguiuaproximar-sedomarido.Quantomais ele se sente frustrado,maior sua emoção ao vê-la emais rápidos eautomáticososseusre lexos.Ela,naturalmente,é forçadaaprocurar foradecasaalguémquea console.Ele,porém,nãopode fazeramesmacoisa.Esquiva-seautomaticamentedequalquermulher jovemqueseaproxime,mesmo que seja simplesmente para tratar de negócios. Artaxerxes seencontra na posição de Tântalo: a coisa está sempre ali, aparentementedisponível,masforadoseualcanceparasempre.—Nesteponto,avozdeGeorgeassumiuumtomindignado.—Eporessepequeno inconveniente,elemedetesta.

— Você poderia pedir a Azazel para remover a maldição, querodizer,pararemoverodomqueelelhedeu.

—Azazel não gostade operarduas vezesnomesmo indivíduo, nãoseibemporquê.Alémdisso,porqueeufariaumnovofavoraumapessoatãoingrata?Poroutrolado,olheparavocê!Umavezououtra,você,mesmosendopão-durocomoé,nãoserecusaameemprestarumanotadecinco(eu lhe asseguro que guardo um registro desses empréstimos empequenos pedaços de papel que devem estar em algum lugar do meuquarto)enoentanto,qualfoiofavorquelhe iz?Sevocêpodemeajudar,mesmo sem ter recebido nenhum favor, por que ele não pode imitá-lo,depoisdetudoquefizporele?

Penseiumpoucoedepoisdisse:

—Escute,George.Pre iroquenãomefaçanenhumfavor.Nãotenhoqueixasdavida.Naverdade, sóparaquevocê se lembrebemdequeeunãoqueronenhumfavor,quetalumanotadedez?

—Sevocêinsiste...

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Galatéia

Poralgumarazão,euàsvezesusoGeorgecomocon idente.Comoeletemumareservailimitadadesimpatia,todaelavoltadaparasimesmo,issoéinútil,masexistemocasiõesemquenãopossoevitar.Foioqueaconteceunaqueledia.

Estávamos esperando nossa torta de morango, depois de um lautoalmoçonoPeacockAlley,eeudisse:

—Estoufarto,George,dafaltadecompreensãodoscríticos.Elesnãofazem nenhum esforço para descobrir o que estou tentando fazer. Nãoestou interessado a mínima no que eles fariam se estivessem em meulugar. A inal de contas, não sabem escrever, ou não perderiam tempotrabalhando como críticos. Tenho impressão de que o único prazer queelestêmnavidaéfazerpoucodaspessoasdetalento.Piorainda...

Masatortademorangochegou,eGeorgeaproveitouaoportunidadepara tomar conta da conversa, algo que provavelmente faria mais oumenosàquelaaltura,mesmoqueasobremesanãotivessechegado.

— Amigo velho, precisa aceitar com mais tranquilidade asvicissitudes da vida. Diga para si mesmo, porque é verdade, que vocêsescritores têm tão pouca in luência sobre os destinos do mundo que aspalavras dos críticos são incapazes de atingi-los. Se pensar assim,certamentesesentirámelhor.Talvezescapedecontrairumaúlcera.Maisainda,podeserqueparedeselamentarnaminhapresença,oquefariadequalquer maneira se tivesse sensibilidade su iciente para perceber quemeutrabalhoémuitomais importantedoqueoseuequeascríticasquerecebosãoàsvezesmuitomaisdevastadoras.

—Estáquerendomedizerquevocêtambémescreve?—perguntei,emtomsardônico,comendoumpedaçodetorta.

— Não — respondeu George, entre duas garfadas. — Sou umindivíduo muito mais importante, um benfeitor da humanidade... umanônimoedepreciadobenfeitordahumanidade.

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Eupoderiajurarqueseusolhosficaramúmidosaodizerisso.

— Acho di ícil acreditar que a opinião de alguém a seu respeitopudessedescertãobaixoapontodeserconsideradadepreciativa.

—Vouignoraressecomentário—disseGeorge—e lhecontarqueestavapensandoemumabelamulherchamadaEl-derberryMuggs.

—Elderberry?—repeti,comumtoquedeincredulidadenavoz.

Elderberryeraoseunome[disseGeorge].Nãoseiporqueospaisabatizaramassim.Talvez tenha sidopara comemorarumeventomarcantedesuasrelaçõespré-nupciais.DeacordocomaprópriaElderberry,ospaisbeberammuitovinhodeelderberryantesde iniciaremas atividadesqueresultaramnoseunascimento.Senãofossepelovinho,talvezamoçanemexistisse.

Sejacomofor,opaidela,queeraumvelhoamigomeu,meconvidoupara ser o padrinho, e não tive como recusar. Muitos amigos meus,impressionados pelomeu porte nobre e comportamento impecável, só sesentemàvontadenaigrejaquandoestouaoladodeles,demodoquetenhoum número relativamente grande de a ilhados. Naturalmente, levo essascoisasasérioecompreendomuitobemaresponsabilidadequepesasobreos meus ombros. Procuro não perder o contato com os meus a ilhados,aindamais quando se tornammoças de rara beleza, como foi o caso deElderberry.

AcontecequeopaimorreuquandoElderberrytinhavinteanos,eelaherdou uma soma considerável, o que, naturalmente, só fez aumentar asuabelezaaosolhosdomundoemgeral.Eu,pessoalmente,estouacimadecoisasmateriaiscomoodinheiro,massentiqueeraomeudeverprotegê-lacontrapossíveiscaçadoresdefortunas.Porisso,passeiaprocurá-lacomfrequência ainda maior, e era rara a semana em que não jantávamosjuntos,nacasadela.A inal,elagostavamuitodotioGeorge,comovocêbempodeimaginar,enãopossoculpá-laporisso.

Acontece tambémqueElderberrynãoprecisavadodinheirodopai,porquesetornaraumaescultoraderenome,produzindoobrascujovalorartístico não podia ser questionado, já que eram vendidas por somaselevadíssimas.

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Eu, pessoalmente, não compreendia muito bem os seus trabalhos,pois meu gosto artístico é muito re inado e me considero incapaz deapreciar as coisas que ela criava para o deleite daquela parcela dapopulaçãocapazdepagarospreçosextorsivosqueelapedia.

Lembro-sedeumaocasiãoemquelhepergunteioquerepresentavaumacertaescultura.

— Como pode ver— disse ela—, o trabalho se chama “O Voo daCegonha”.

Examineioobjeto,queeraumapeça fundidadomais inobronze,eobservei:

—Estábem,euviaetiqueta,masondeestáacegonha?

—Aqui—disseela, apontandoparaumconedemetalquesaíadeumabaseinformeeterminavaemumapontaafiada.

Olheiparaaquilo,pensativo,edepoisperguntei:

—Issoéumacegonha?

—Claroqueé,seuvelhocabeçadevento(elasempre foicarinhosacomigo).Issorepresentaapontadobicodacegonha.

—Ebastaisso,Elderberry?

— Claro que sim! Não é a cegonha em si que estou tentandorepresentar,mas a ideia abstrata de cegonhice, que é exatamente o queestaesculturadespertanamentedoobservador.

—Tem razão—concordei, levemente surpreso.—Agoraque vocêchamouminhaatençãoparao fato...Ei,deacordocomonomedapeça, acegonhaestávoando.Comoexplicaisso?

—Ora,seupedaçodeasno,nãoestávendoabaseamorfa?

—Comopoderiadeixardevê-la?

— Vai negar que o ar (como aliás qualquer gás) é uma massa

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amorfa? Pois esta base de bronze, sem forma de inida, representaexatamente a atmosfera. Observe também que em uma das faces existeumalinhareta,perfeitamentehorizontal.

—Estouvendo.

—Poisrepresentaaideiaabstratadeumpássarovoando.

— É notável! — exclamei. — Depois que você explicou, tudo fazsentidoparamim.Quantoestápedindoporela?

— Oh — fez ela, levantando a mão num gesto vago, como que aressaltar a irrelevância da minha pergunta—, dez mil dólares, talvez. Éuma coisa tão simples, tão pouco so isticada, queme sentiria culpada sepedissemais.Émaisummorceaudoquequalqueroutracoisa.Esteaquiédiferente—acrescentou,apontandoparaummuralnaparede,construídocomsacosdeaniagemepedaçosdepapelão.Nocentrohaviaumbatedordeovosquebrado,aindacomrestosressecadosdeovonaspás.

Olheirespeitosamenteparaaobra.

—Deveterumvalorinestimável.

—Éoqueeuacho—concordou.—Obatedordeovosnãoénovo,vocêsabe.Temapatinada idade.Tivemuitasortedeencontrá-loemumferro-velho—explicou.

Nesse momento, por alguma razão inexplicável, seu lábio inferiorcomeçouatremereelaexclamou,emtomchoroso:

—Oh,tioGeorge!

Fiqueiinstantaneamentealarmado.Segurei-lheamãoesquerda,queeraaqueusavaparaesculpir,eapertei-a.

—Quefoi,meuanjo?

—Oh,George!Estou cansadadeproduzir essas abstrações simplessóporqueagradamaopúblico.—Levouamãodireitaà testaedeclarou,emtomdramático:—Comoeugostariadefazeroquequero”,oquemeu

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coraçãodeartistamedizparafazer.

—Eoqueé,Elderberry?

—Quero fazerexperiências.Queropartiremnovasdireções.Querotentar o que ninguém nunca tentou, ousar o que nunca ninguém ousou,produziroquenuncaninguémproduziu.

—Entãoporquenão faz isso,querida?Vocêé su icientemente ricaparafazeroquequer.

Derepente,seurostoseiluminoueelasorriuparamim.

— Muito obrigada, tio George. Muito obrigada por dizer isso. Naverdade, eu faço o que quero... de vez em quando. Tenho um quartosecreto que uso para guardar minhas pequenas experiências, aquelasobras que só podem ser apreciadas por quem possua um gosto artísticoapurado.

—Possovê-las?

— Claro que sim, meu querido tio! Depois de suas palavras deestímulo,comopossomerecusaramostrá-las?—exclamou.

Elaafastouumagrossacortina,revelandoumaportasecretaqueeraquase invisível de tão bem encaixada na parede. Apertou um botão, e aportaseabriuautomaticamente.Entramose,enquantoaportasefechavaatrásdenós,lâmpadas luorescentesacenderam-separailuminaroquartosemjanelas,tornando-oclarocomosefossedia.

Quase imediatamente, vi diante demim uma cegonha esculpida empedra,osolhosvivos,obicoentreaberto,asasasmeioestendidas.Pareciaqueaqualquermomentoiriasairvoando.

—Quecoisalinda,Elderberry!—exclamei.—Nuncanaminhavidavinadaparecido!

—Osenhorgostamesmo?Chamoissode“artefotográ ica”.Trata-sedeumatécnicatotalmenteexperimental,éclaro.Oscríticoseopúblicoemgeral não compreenderiam o que estou tentando fazer. Eles estão

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acostumadoscomabstraçõessimples,trabalhossuper iciais,quequalquerum pode compreender. As obras que reuni nesta sala se destinam apessoas de gosto re inado, que se dispõem a contemplar uma obra atéassimilá-lacomtodasassuasimplicações.

Depoisdisso,tiveoprivilégiodeentrarnoquartosecretodetemposemtempos,paraexaminarasobrasexóticasqueosdedosforteseocinzelinspirado de minha a ilhada haviam criado, Fiquei muito impressionadocom uma cabeça de mulher que apresentava uma semelhançaextraordináriacomaprópriaElderberry.

—Euachamode“OEspelho”—explicouela,comumsorrisotímido.—Retrataminhaprópriaalma,nãoacha?

Concordeientusiasticamente.

Foiisso,pensoeu,que inalmenteainduziuacon iar-meseusegredomaisbemguardado.Euhaviaperguntadoaela:

— Elderberry, por que você não tem... — iz uma pausa e depois,desistindo de usar eufemismos, completei a frase com: — nenhumnamorado?

— Namorados... — disse, com desprezo na voz. — Bah! Estão portodaparte,essespossíveisnamoradosdequeestáfalando,masporquemeinteressaria por eles? Sou uma artista. Tenho nomeu coração, naminhamenteenaminhaalmaumaimagemdaverdadeirabelezamasculinaquea carne seria incapazde imitar. Sóalguémassimpoderia conquistarmeucoração.Foialguémassimqueconquistoumeucoração.

— Conquistou, você disse? Então você tem um namorado, a inal decontas!

—Nãoébemassim...masvenha,tioGeorge,voulhemostrar.Comosenhorpossocompartilharmeugrandesegredo,

Voltamosaoquartodaartefotográ ica,eminhaa ilhadapuxououtracortina, revelandoumalvoqueeunãohaviapercebidoantes.No interiorda alvo havia a estátua de um homem de ummetro e oitenta e cinco dealtura, completa-mente nu e, até onde eu podia ver, anatomicamente

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perfeitonosmínimosdetalhes.

Elderberryapertouumbotãoeaestátuacomeçouagirarlentamentenopedestal.Pareciaperfeitavistadequalquerângulo.

—Éminhaobra-prima—murmurouamoça.

Não sou um grande admirador da beleza masculina, mas, no rostoadorável de Elderberry, detectei uma expressão que só podia sercaracterizadacomoamor.

—Vocêestáapaixonadaporestaestátua!—exclamei,chocado.

— Estou, sim— sussurrou a moça.—Morreria por ele. Enquantoexistir, acharei os outros homens feios e desinteressantes. Não teriacoragem de permitir que outro homem me tocasse. É ele que desejo.Apenasele.

—Minhapobrecriança...eleéumaestátua,enãoumapessoareal.

—Eu sei, eu sei— soluçouElderberry.—Meupobre coração estápartido.Quepossofazer?

—Éumcasomuitotriste!Faz-melembraralendadePigmalião.

—Quem?—perguntouElderberry,que,comotodososartistas,eraumaalmasimples,comumaeducaçãoumpoucodeficiente.

—Pigmalião.AhistóriasepassanaGréciaantiga,Pigmaliãoeraumescultor como você, a não ser, naturalmente, pelo fato de ser homem. Eesculpiu uma estátua, como você, só que, naturalmente, foi a estátua deuma mulher. Ele a chamou de Galatéia. A estátua era tão bonita quePigmaliãoseapaixonouporela.Comopodever,foiumcasomuitoparecidocomoseu,anãoserpelofatodeque,noseucaso,éGalatéiaqueestávivaeaestátuaéde...

—Não!—protestouElderberry,comveemência.—Nãoesperequeeuo chamedePigmahão! É umnome grosseiro, pesado.Gostodenomespoéticos. Eu o chamo de Hank — a irmou, enquanto nos seus olhos seacendia de novo o fogo da paixão. — Hank. É um nome simples, suave,

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musical.MasoqueaconteceuaPigmaliãoeGalatéia?

—Perdidamenteapaixonado,PigmaliãorezouaAfrodite...

—Quem?

—Afrodite, a deusa grega do amor. Afrodite teve pena do rapaz eatendeu a suas preces, dando vida à estátua. Galatéia se tornou umamulher de verdade, casou-se cora Pigmalião e viveram felizes parasempre.

—Hummm...— fez Elderberry.—Acho queAfrodite não passa deummito,nãoémesmo?

—Infelizmente,sim.Poroutro lado...—Nãomeatreviaprosseguir.Não sabia qual seria a reação da moça se ouvisse falar de Azazel, meudemôniodedoiscentímetros,

— É uma pena— disse Elderberry—, porque se alguém pudessetrazeràvidaomeuHank,sehouvessealguémcapazdetransformarafriarigidez do mármore na tépida maciez da carne, eu lhe daria... Oh, tioGeorge,imaginepoderabraçarHank,sentirocalordoseucorpo,acariciá-lodospésàcabeça...

—Naverdade,meuanjo,eujamaisimaginariaumacoisadessas,masentendo o que quer dizer. Mas você a irmou que se houvesse alguémcapazdetransformarafriarigidezdomármorenatépidamaciezdacarne,daria alguma coisa a essa pessoa. Estava pensando em alguma coisaespecífica?

—Estava,sim!Eudariaummilhãodedólaresaessapessoa.

Fizumapausa,comoqualquerpessoafaria,emsinalderespeitoporaquelasomafantástica,edepoisperguntei:

—Vocêtemummilhãodedólares,meuanjo?

—Eu tenho doismilhões de dólares, tio George— respondeu, comseujeitosimplesedireto.—Enãomeimportariadeabrirmãodametade.Valeria a pena, só para icar com Hank. Além disso, não levaria muito

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tempopararecuperarodinheirovendendoobrasabstratasparaopúblico.

—Entendo—murmurei.—Poisnãodesanime,Elder-berry,queseutiovaiveroquepodefazerporvocê.

Era um caso sobmedida para Azazel, demodo que não hesitei emchamar meu pequeno amigo, que se parece com um pequeno demônio,tantonacorcomonospequenoschifresenacaudapontuda.

Como sempre, ele estava de mau humor e me fez perder tempoescutando as razõespelas quais estavademauhumor. Parecequehaviaproduzido um trabalho artístico (artístico pelos padrões do seu mundo,que considero totalmente ridículos) e que o trabalho tinha sido arrasadopeloscríticos.Oscríticossãodomesmojeitoemtodoouniverso,suponho:umaraçainútileperversa.

Naverdade,achoquedevemosnossentiragradecidospelofatodeoscríticos terrestres ainda respeitarem algumas das normas de decência. AjulgarpeloqueAzazelmecontou,oqueoscríticosdisseramarespeitodesuaobraexcedeutudoquejáfoiditoarespeitodasua,amigovelho.Foiasemelhança entre a sua situação e a dele queme fez lembrar deste casoemparticular.

Foi com grande di iculdade que consegui interromper a enxurradade lamúrias para pedir-lhe que desse vida à está-tua. Ele deu um gritoagudoquequasemeestourouostímpanos.9

—Darvidaaumobjetofeitodesilicato?Porquenãomepedeparaconstruir um planeta a partir de excrementos? Como posso transformarpedraemcarne?

—Certamentevossamagni icênciaencontraráummeio,óPoderosoSer. Depois de realizar esta obra momentosa, vosso prestígio crescerá aníveisnuncavistos.Oscríticosdovossomundosesentirãocomoumbandodeasnos.

—Elessãomuitopioresqueumbandodeasnos—protestouAzazel.—Seelessesentissemcomoumbandodeasnos,sesentiriammuitobem.Queroquesesintamcomoumbandodefarfelanimores.

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— Pois é exatamente como vão se sentir. Tudo que vossamagni icência tem a fazer é transformar o frio em quente, a pedra emcarne,oduroemmole.Especialmenteoduroemmole.Uma jovemamigaminha, a quem prezo muito, quer poder abraçar a estátua e sentir umacarne macia na ponta dos dedos. Não deve ser muito di ícil para vossamagni icência.Aestátuaéumarepresentaçãoperfeitadeumserhumano.Bastaenchê-lademúsculos,vasossanguíneos,órgãosenervos,cobri-ladepele,epronto.

—Sóisso,nãoé?Muitofácil,nãoé?

— Lembre-se de que os críticos vão se sentir como um bando defarfelanimores.

— Hummm... isso é verdade. Você sabe como é o cheiro de umfarfelanimore?

—Não,masnãoprecisameexplicar.Epodemeusarcomomodelo.

—Comummodelo assim, vou estar bem arranjado. Sabe como umcérebrohumanoécomplexo?

— No caso do cérebro, não precisa caprichar muito. Elderberry éuma moça simples e o que pretende fazer com a estátua não envolvediretamenteocérebro,pensoeu.

—Vaiterdememostraraestátuaemedarumtempoparapensar.

— Está bem, mas não se esqueça: a estátua terá de criar vidaenquanto nós a estivermos observando, e deverá estar perdidamenteapaixonadaporElderberry.

— Esta última parte é fácil. É só uma questão de ajustar os níveishormonais.

No dia seguinte, dei um jeito de Elderberry me convidar (De novoparaveraestátua.Azazelestavanobolsodomeupaletó.Quandoentramosnoquarto, elepôs a cabecinhapara fora e emitiuuma sériede gritinhos.Felizmente, Elderberry tinha olhos apenas para a estátua e não teriareparadonemsevintedemôniosdosgrandesestivessemaliconosco.

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—Eentão?—disse,maistarde,paraAzazel.

— Vou tentar. Como não sei direito como devem ser os órgãosinternos, usarei cópias dos seus. Você é um representante normal dessaespécierudimentar?

—Maisdoquenormal—-declarei,comorgulho.—Tenhoum ísicodeprimeira.

— Muito bem. Sua amiga vai ter uma estátua feita de carne viva,maciaepalpitante.Sóqueterádeesperaratéomeio-diadeamanhã.Essacoisavailevaralgumtempo.

— Está bem. Eu e ela estaremos esperando. Na manhã seguinte,telefoneiparaElderberry.

—Elderberry,meuanjo,converseicomAfrodite.

—Querdizerqueelaexiste,a inal,tioGeorge?—ex-clamouamoça,agradavelmentesurpresa.

—Decertaforma,existe,minhacriança.Seuhomemidealcriarávidahojeaomeio-dia,diantedosnossosolhos.

—Oh,meuDeus!Osenhornãoestábrincando,está,tio?

— De jeito nenhum — assegurei-lhe. Devo admitir que estavanervoso, porque dependia inteiramente de Azazel. Por outro lado, elenuncahaviamedesapontado.

Ao meio-dia estávamos mais uma vez na alcova, olhando para aestátua,cujosolhosdepedrafitavamoespaço.Disseparaminhaafilhada:

—Seurelógioestácerto,meuanjo?

—Está,sim.Acerteipelorádio.Faltaaindaumminuto.

— Talvez a mudança ocorra com um minuto ou dois de atraso. Édifícilcalcularessascoisascomprecisão.

— É claro que a deusa vai chegar na hora— disse Elderberry;—

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Afinal,elaéounãoumadeusa?

É isso que chamo de fé, e nesse caso uma fé justi icada, porque,exatamente aomeio-dia, a estátua começou a tremer. Pouco a pouco, suacorfoimudandodobrancodomármoreparaumtomrosadodecarne.Osbraçosassumiramumaposiçãomaisnatural,osolhosganharamurabelotomazul,oscabelos icaramcastanho-clarosnacabeçaeemoutraspartesestratégicas do corpo. Ele virou ligeiramente a cabeça e olhou paraElderberry,quenãocabiaemsidecontentamento.

Depois, desceu do pedestal e caminhou lentamente em direção àmoça,comosbraçosestendidos.

—MimHank,vocêElderberry—disse.

— Oh, Hank! —exclamou Elderberry, abandonando-se nos seusbraços.

Ficaramabraçadosporumlongotempo.Depois,elaolhouparamimporsobreoombroedisse,comosolhosbrilhando:

—Hank e eu vamos icar aqui por alguns dias, emuma espécie deluademel,edepoiseuqueroconversarcomosenhor, tioGeorge.—Fezumgestocomosdedos,comseestivessecontandodinheiro.

Quando vi aquele gesto, meus olhos também começaram 3 brilhar.Retirei-mepéantepé.Paradizeraverdade,achavaaquelacenaumtantoincongruente: uma jovem totalmente vestida, abraçada a um homem nu.Estava convencido, porém, que, no momento em que deixasse o recinto,Elderberryseencarregariadecorrigiraincongruência.

Esperei em vão durante dez dias pelo telefonema de Elderberry. Aprincípio,não iqueiinteiramentesurpreso,porqueimagineiqueestivesseocupada com coisas mais importantes. Entretanto, comecei a pensar queum dia teria de parar para tomar fôlego, e, além disso, era justo que eufosserecompensadopelosmeusesforços.

Dirigi-me ao seu apartamento, onde havia deixado o feliz casal, etoqueiacampainha.Levoualgumtempoparaquealguématendesse,eeujá estava começando a imaginar que eles poderiam ter-se amado até

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morrerquandoaportaseabriuligeiramente.

EraElderberry,comumarperfeitamentenormal,sevocêconsideraumolharfuriosocomoperfeitamentenormal.

—Oh,évocê!—exclamou.

— Eu mesmo. Já estava começando a achar que vocês tinhamresolvidocontinuara luademelemoutracidade.—Nãodissequetemiaqueelestivessemcontinuadoaluademelatémorrer,porquemepareceudemaugosto.

—Oquevocêquer?—perguntouamoça,emumtomnadaamistoso.Eu podia compreender que ela não estivesse ansiosa para interrompersuas atividades, mas depois de dez dias, uma pequena interrupção nãopodeserconsideradacomoofimdomundo.

—Vim falar sobreomilhãodedólaresquemeprometeu,meuanjo—disse,empurrandoaportaparaentrar.

Elaolhouparamimdecarafeiaeresmungou:

—Podeperderasesperanças.

—Porquê?—perguntei, entresurpresoeofendido.—Porquê?Oquehouve?

— O que houve? Vou lhe dizer o que houve. Quando eu disse quequeria que Hank fosse macio, não queria dizer no corpo inteiro,permanentemente—retrucou.

Comsuaforçadeescultora,empurrou-meparaforaebateuaporta.Enquantoestavalá,estupefato,abriuaportadenovo.

—Eseaparecerdenovoporaqui,voupediraHankparafazê-loempedaços.Apesardetudo,eleéfortecomoumtouro.

De modo que fui embora. Que mais podia fazer? E que acha dissocomoumacríticaaosmeusesforçosartísticos?Demodoquenãomevenhacomsuaslamúriasmesquinhas.

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Quando terminou a história, George balançou a cabeça e fez um artãotristequemedeixoucomovido.Eudisseaele:

—George, sei quevocê icouaborrecido comAzazel,masdesta vezele não teve culpa. Vocêmesmo disse a ele para transformar o duro emmole...

— Estava apenas repetindo as palavras dela!— protestou George,comindignação.

—Éverdade,mas tambémdisse aAzazelparausá-lo comomodeloparaprojetaraestátuaviva,demodoquenãoédeadmirarque...

Georgemeinterrompeucomumgesto.

—Esse seu comentáriomedeixa aindamais sentido do que deixardeganhartodoaqueledinheiro.Fiquesabendoque,apesardejánãoestarmaisnaflordaidade...

— Está bem, está bem, George. Me desculpe. Sabe de uma coisa?Acabeidemelembrarquelhedevodezdólares.

Bem, dez dólares são dez dólares. Parameu alívio, George pegou anotaesorriu.

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VoodeImaginação

Quando jantocomGeorge,pre ironãopagaracontacomumcartãode crédito. Uso dinheiro, para quemeu amigo tenha oportunidade de seapoderar do troco, o que constitui um dos seus hábitos favoritos.Naturalmente,tenhoocuidadodenãopagarcomumanotagrandedemais,paraqueo troconãosejaexcessivo,edeixoumagorjetaseparadaparaogarçom.

Naquela ocasião, tínhamos almoçado no Boathouse e estávamospasseandonoparque.Eraumlindodia,efaziaumpouquinhodecalor,demodoquenossentamosemumbanco,nasombra,paradescansar.

Georgeolhouparaumpassarinhopousadoemumgalhoedepoisoseguiucomosolhosquandovoou.

Disseparamim:

— Quando eu era pequeno, icava furioso porque esses bichinhospodiamvoareeunão.

—Achoque todas as crianças têm invejadospássaros—observei.—Osadultos,também.Acontecequeossereshumanospodemvoar,eatémais depressa e pormais tempo que os pássaros. Outro diamesmo, umaviãocircunavegouaTerraemnovedias, sempararnemsereabastecer.Nenhumpassarinhoseriacapazdefazerisso.

—Nemestaria interessado—protestouGeorge,comardedesdém.— Não estou falando em icar sentado em uma máquina que voa, oumesmo sair por aí pendurado em uma asa-delta. Esses são arti íciostecnológicos. Estou falando em controlar o voo, em bater os braçosenquanto você se desloca na direção desejada, lutuando suavemente noar.

Suspirei.

— Ser imune à gravidade, em outras palavras. Uma vez tive um

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sonhoassim,George.Sonheiquepodiadarumpuloepermanecernoarotempo que quisesse, bastando para isso mover os braços bem devagar.Claroque eu sabiaque era impossível, demodoque cheguei à conclusãode que estava sonhando. Mas logo depois (no meu sonho) acordei edescobrique estavana cama. Levantei-meda camaedescobri que aindapodia lutuar. Nesse momento, já que eu pensava que havia acordado,acrediteiquerealmentepodiavoar.Quandoacordeideverdadeedescobrique continuava prisioneiro da gravidade, como sempre, tive uma grandedecepção.Leveiváriosdiasparamerecuperar.

—Conheçoumcasomuitopior—declarouGeorge.

—Émesmo?Vocêteveumsonhoparecido?Sóquemaioremelhor?

—Sonho!Não lido com sonhos.Deixo isso para escribas amadores,comovocê.Estoufalandodavidareal.

—Querdizerquevocêrealmentevoou.Esperaqueeuacreditequeesteveabordodeumaespaçonaveemórbita?

—Não,nãofoiemumaespaçonave.MasaquimesmonaTerra.Enãofui eu, e sim meu amigo Baldur Anderson... mas acho que é melhor eucontarahistóriadocomeço...

Quase todos os meus amigos [disse George] são intelectuais epro issionais liberais, mas Baldur era uma exceção. Trabalhava comomotorista de táxi.Mesmo assim, tinha umprofundo respeito pela ciência.Quantas noites passamos no nosso pub favorito, bebendo cerveja econversando sobre o big bang, as leis da termodinâmica, engenhariagenética,coisasdessetipo.Elesempresemostravamuitoagradecidopelapaciência que eu tinha para lhe explicar questões tão obscuras e, apesardosmeusprotestos,comovocêpodebemimaginar,nãomedeixavapagaraconta.

Sóhaviaumaspectodesagradávelnasuapersonalidade:eleeraumcético.Nãoestoumereferindoaocéticodotipo ilosó ico,queserecusaaacreditarempoderessobrenaturais,queseassociaaalgumaorganizaçãohumanista secular e se expressa, elegantemente, em uma língua queninguémconhece,atravésdeartigospublicadosemrevistasqueninguémlê.Quemalhánisso?

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Não,Baldureraoqueantigamente teriasidochamadodeoateudacidade.Freqüentemente,nopub,seenvolviaemdisputascompessoastãoignorantesquantoele,discussõesemaltosbrados, recheadasdepalavrasde baixo calão. Não era um espetáculo agradável de se ver. Um diálogotípicoseriaassim:

—Jáquevocêseconsidera tãoesperto,cabeça-de-minhoca—diziaBaldur—,digaondefoiqueCaimarranjouumamulher!

—Nãoédasuaconta—diziaooponente.

—Porque,segundoaBíblia,Evaeraaúnicamulherqueexistia.

—Comoéquevocêsabe?

—ÉoquediznaBíblia.

— Conversa iada. Mostre para mim onde está escrito: “Naquelaépoca,EvaeraaúnicamulherqueexistiaemtodaaTerra.”

—Issoestáimplícito.

—Implícito,umaova.

—Ah,é?

—É!

ÀsvezeseutentavaargumentarcomBaldur.

— Baldur, não adianta discutir a respeito de questões de fé. Nãoresolvenada,esóserveparacriarantagonismos.

— Tenho o direito constitucional de não aceitar essas besteiras eproclamarissoemaltoebomsom!

—Éclaroque tem.Umdia,porém,umdos rapazesquevêmbeberaquipodeperderapaciênciaepôrvocêanocauteantesdeselembrardosseusdireitosconstitucionais.

— Esses rapazes têm obrigação de oferecer a outra face —

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argumentouBaldur.—ÉoquediznaBíblia.

—Nahora,podemseesquecer.

—Nãosepreocupe.Souperfeitamentecapazdemedefender.

Edeviaserverdade,porqueeleeraumhomemgrandeemusculoso,com um nariz que parecia haver detido muitos socos e punhos quepareciamhavercastigadodeformaexemplarosautoresdetaisatos.

— Sei que é — disse eu —, mas nas discussões sobre religiãogeralmenteháváriaspessoasdeum ladoe você sozinhodooutro. Se foratacadoaomesmotempoporumadúziadepessoas,poderãoliteralmentereduzi-lo a pedaços. Além do mais — acrescentei —, suponha que vocêganhe a discussão a respeito de algum ponto religioso. Nesse caso, vocêpoderia fazer algumdos cavalheiros aquipresentesperder a fé.Gostariadesesentirresponsávelporisso?

Baldur pareceu preocupado, porque no fundo era um homem debomcoração.Eledisse:

—Nuncadiscutoospomos realmentedelicadosda religião. FalodeCaim; a irmo que Jonas não poderia sobreviver três dias na barriga deumabaleia, equeé impossível alguémandar sobrea água,masnãodigonadacapazderealmenteabalara fédealguém. Jámeouviu falarmaldePapai Noel? Olhe, uma vez ouvi um cara anunciar em voz alta que PapaiNoel tinha apenas oito renas e que Rudolph, a rena de nariz vermelho,jamaishaviapuxadoaquele trenó.Eudisseparaele: “Queestáquerendofazer, deixar as crianças infelizes?” E dei-lhe um soco no nariz, para eleaprender.

Fiqueicomovidocomtantasensibilidade.Pergunteiaele:

— Como chegou a esse ponto, Baldur? O que o tornou uma pessoatãocética?

—Foramosanjos—explicou,comumacareta.

—Osanjos?

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—Issomesmo.Quandoeu era criança, vi retratosde anjos.Você jáviuretratosdeanjos?

—Éclaro.

— Eles têm asas. Eles têm braços e pernas, mas também grandesasasnascostas.Quandoeueracriança,gostavadelerlivrossobreciência,eoslivrosdiziamquetodososanimaisdotadosdecolunavertebraltinhamquatro membros. Podiam ser quatro nadadeiras, quatro pernas, duaspernasedoisbraçosouduaspernaseduasasas.Àsvezes,podiamperderas duas pernas traseiras, como aconteceu com as baleias, as duas patasdianteiras, comoosquivis,ou todasasquatropatas, comoas cobras.Masnenhumpodiatermaisquequatromembros.Aconteceque,deacordocomosretratos,osanjostinhamseismembros:duaspernas,doisbraçoseduasasas. Eles têm coluna vertebral, certo?Não são insetos ou coisaparecida.Pediaminhamãeparameexplicarcomo issoerapossíveleelamedisseparacalaraboca.Foiaíquecomeceiaduvidar.

—Naverdade,Baldur—observei—,vocênãopodetomaraopédaletra essas representações dos anjos. As asas são simbólicas. Estão aliapenasparasugerirarapidezcomqueosanjospodemsedeslocardeumlugarparaoutro.

— Ah, é? Pois pergunte a algum daqueles sujeitos se os anjos têmasas. Eles acreditam que os anjos têm asas. São estúpidos demais paraentender a questão dos seis membros. A coisa toda não faz sentido. Osanjostambémmeincomodamdeoutraforma.Seelespodemvoar,porqueeunãoposso?Issonãoéjusto—retrucou.

Elefezbeicinhoepareciaestarapontodechorar.Meucoraçãomolecomeçouaderretereprocureialgumaformadeconsolá-lo.

—Baldur,quandovocêmorrere forparaocéu,vaiganharumpardeasas,umaauréola,epoderávoaràvontade!

—Vocêacreditamesmonessabobagem,George?

—Nãoexatamente,meuamigo,masseriauragrandeconfortoparamimseacreditasse.Porquevocênãotenta?

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—Nãoposso,porquenãoécientí ico.Durantetodaaminhavida,tivevontade de voar, por mira mesmo, apenas eu e meus braços. Acho quedevehaveralgummeiocientíficodevoar,aquimesmonaTerra.

Euaindaestavatentandoconsolá-lo,demodoquedeclarei,deformaimprudente(achoquetinhabebidoumpouquinhodemais):

—Tenhocertezadequeexisteummeio.

Ele me olhou com uma expressão de censura nos olhos levementeinjetados.

—Estámexendocomigo?Temcoragemdefazertroçadeumdesejohonestodeinfância?

— Não, não — disse eu, e de repente me ocorreu que ele tinhabebido uns doze drinques a mais e que seu punho direito parecia meioirrequieto.—Comopoderiafazertroçadeumdesejohonestodeinfância?Oumesmodeumaobsessãodeadulto?Acontecequeeuconheçoum...umcientistaquetalvezpossaajudá-lo.

Eleaindapareciabeligerante.

—Pergunteaele—disse,decaraamarrada—,edepoismeconteoresultado.Nãogostoquandoaspessoasmexemcomigo.Nãoestácerto.Eunãomexocomvocê,mexo?

Ficodizendogracinhassóporquevocênuncapagaumaconta?

Estávamosentrandoemterrenoperigoso.Apressei-meadizer:

—Vouconsultarmeuamigo.Nãosepreocupe.Eucuidodetudo.

E estava falando sério. Não queria icar sem os meus drinques degraçaequeriaaindamenosincorrernafúriadeBaldur.Elenãoacreditavanas recomendações da Bíblia para amar os inimigos e oferecer a outraface.Baldureramaisdateoriadesocarosinimigos.

Demodo que chamei Azazel, meu amigo extraterrestre. Já contei avocêqueeutenho...contei?Poisdecidichamá-lo.

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Azazel,comosempre,estavadepéssimohumorquandochegou.Suacauda estava levantada em um ângulo estranho. Quando lhe perguntei oque havia acontecido, começou a fazer comentários desairosos a respeitodos meus antepassados... que, diga-se de passagem, eram totalmentefalsos.

Deduziquealguémpisaranasuacauda.Azazeléumacriaturamuitopequena; não deve ter mais que dois centímetros de altura, sem contarcomacauda.Mesmonoseumundo,suspeitoquesuaestaturaestáabaixodamédia, oque, semdúvida, devia ter contribuídopara aquele incidentetãohumilhante.

Disseparaele,tentandoaplacá-lo:

—Se tivésseisacapacidadedevoar,óPoderosoSeraQuemtodooUniverso Presta Homenagem, não estaríeis sujeito às botas pesadas deidiotasquenãoolhamporondeandam.

Isso pareceu animá-lo um pouco. Repetiu a segunda parte da frasepara simesmo, como se estivesse tentandomemorizá-la para uso futuro.Depois,disse:

—Eu lenhoa capacidadedevoar, suaMassaRepugnantedeCarneInútil, e teriavoado, semedesseo trabalhodenotarapresençadaqueleindivíduo das classes inferiores que, em sua incompetência, acabou porcruzar o meu caminho da forma mais dolorosa. Mas a inal, o que vocêquer?—Eledisseessasúltimaspalavrasnoquepretendiaque fosseumtomríspido,masque,emsuavozinhaaguda,sooumaiscomoumzumbido.

—Acontece,óSerSublime,queexistempessoasnomeumundoquenãosãocapazesdevoar.

— No seu mundo, nenhuma pessoa pode voar. Vocês são tãopesados,tãovolumosos,tãodesajeitadosquantoossha-lidraconicônios.Sevocê soubesse alguma coisa de aerodinâmica, seu Inseto Infeliz, saberiaque...

— Curvo-me ao vosso intelecto superior. Sábio dos Sábios, maspassou-me pela cabeça que talvez, com a ajuda de um pouquinho deantigravidade...

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—Antigravidade?Sabecomoédifícil...

— Permita-me lembrar, ó Mente Colossal, que já houve umprecedente*...

—Aquele, se bemme lembro, foi apenas um tratamento parcial—disseAzazel.—O su iciente apenasparaumapessoa semover acimadaáguasólidaqueexistenesteseumundohorroroso.Oqueestámepedindoagoraéalgomuitomaisdrástico.

—Sim,tenhoumamigoquegostariadevoar.

—Vocêtemamigosestranhos—retrucou.

Ele se sentou na cauda, como costumava fazer quando precisavapensar,e,naturalmente, levantou-sedeumsalto,comumgritinhodedor.Soprei-lhe a cauda, o que pareceu fazer algum efeito e deixá-lo maisdispostoacolaborar.Eledisse:

— Vamos precisar de um aparelho antigravitacional, que, é claro,tereideconstruirparavocê.Vamosprecisar tambémdacooperação totaldosistemanervosoautônomodoseuamigo,seéqueeletemum.

— Acho que ele tem, sim. Mas como vamos fazer com que elecoopere?

Azazelhesitou.

—Achoquebastaqueeleacreditequepodevoar.

VisiteiBaldurdoisdiasdepois,noseumodestoapartamento.Tireioaparelhodobolsoemostrei-oparaele.

“Vide“DeslizandonaNeve”.

—Tome—disseparaomeuamigo.

Não era nada de chamar a atenção. Tinha o tamanho e a forma deuma noz. Quando colocado perto do ouvido, podia-se ouvir um levezumbido. Eu não sabia que fonte de alimentação usava, mas Azazelassegurara-mequejamaisseesgotaria.

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Ele também me dissera que o aparelho tinha de estar em contatocomapeledousuário,demodoqueeuohaviaprendidoemumacorrente,transformando-oemummedalhão.

—Tome—disse,denovo,enquantoBaldurseencolhia,descon iado.— Ponha a corrente no pescoço e use-a debaixo da camisa. Debaixo dacamiseta,também,seestiverdecamiseta.

—Queéisso,George?

— É um aparelho antigravitacional, Baldur. A última novidade napraça.Muitocientí icoetambémmuitosecreto.Nãodevecontaraninguémarespeitodele.

Eleestendeuamãoparapegá-lo.

— Tem certeza? Foi seu amigo que lhe deu? Fiz que sim com acabeça.

—Pendurenopescoço.

Commuitahesitação,Balduren iouacorrentenacabeça.Encorajadopormim,desabotoouacamisa,deixouoaparelhocairportrásdacamisetaetornouaabotoar-se.

—Eagora?

—Agoraésóbaterosbraçosevocêvaivoar.

Elebateuosbraçosenadaaconteceu.Assobrancelhassecontraíramsobreosolhosmiúdos.

—Estáquerendomegozar?

—Não.Você temdeacreditarquevaivoar,NãoviuoPeterPannocinema?Digaparavocêmesmo:“Possovoar,possovoar,possovoar.”

—Maselestinhamumespéciedepó.

— Aquele pó não era nada cientí ico. O aparelho que você estáusandoécientífico.Digaparavocêmesmoqueécapazdevoar.

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Baldurolhouparamim ixamente,edevoconfessarque,emborasejacorajosocomoumleão,fiqueiumpouquinhopreocupado.Disseparaele:

—Podelevarumcertotempo,Baldur.Vocêprecisaantesdominaratécnica.

Ele ainda estava olhando para mim de cara feia. mas agitouvigorosamenteosbraçosedisse:

—Possovoar.Possovoar.Possovoar!

Nadaaconteceu.

—Pule!Talvezestejasóprecisandodeumimpulso—exclamei.

Comecei a imaginar se daquela vez Azazel realmente sabia o queestavafazendo.Baldurdeuumpulo,aindamexendocomosbraços.Subiuunscinquentacentímetrosnoar, icoualiparadoenquantoeucontavaatétrêsedepoisdesceulentamente.

—Ei!—exclamou,muitoanimado.

—Ei!—repeti,comumacertasurpresa.

—Achoqueeuestavaflutuando.

—Ecommuitaelegância.

—É.Eupossovoar.Vamostentardenovo—falou.

Foioquefez,deixandoumamarcadegorduranotetonolugarondesuacabeçabateu.Eledesceuesfregandoacabeça.

—Vocênãopodesubirmaisqueummetroemeio—observei.

—Aquidentro,não.Vamosláparafora.

— Estámaluco? As pessoas não podem saber que você pode voar.Vão tomar-lheo aparelhoantigravitacionalparaqueos cientistaspossamexaminá-lo, e você nuncamais o terá de volta.Meu amigo é o único queconheceoaparelho.

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—Quedevofazer,então?

—Contente-seemvoardentrodecasa.

—Issoémuitopouco.

—Pouco?Hácincominutos,vocênãoconseguianemsairdochão!

Minhalógicabrilhante,comosempre,prevaleceu.

Devoadmitirqueenquantooobservavaadejargraciosamentenoarnãomuitoperfumadodos limitadoscon insdesuasaladeestar,sentiumimpulso quase irresistível de experimentar pessoalmente o aparelho.Entretanto, não sabia se o meu amigo estaria disposto a emprestá-lo e,alémdomais,tinhaumafortesuspeitadequenãofuncionariacomigo.

Azazelsempreserecusouafazeralgumacoisadiretamenteemmeubene ício, alegando razões éticas. Seus dons, a irma, são para ajudar osoutros, sem receber nada em troca. Gostaria que não pensasse assim, oupelo menos que os outros não pensassem assim. Jamais consegui obterumarecompensajustapelosserviçosdeAzazel.

Finalmente,Baldurpousouemumadascadeirasdasalaecomentou,muitoanimado:

—Querdizerqueeusópossovoarporqueacreditoqueposso?

—Issomesmo—concordei.—Éumvoodeimaginação.

A frase me agradou muito, mas Baldur não tem nenhumasensibilidadeparaessascoisas.Eledisse:

—Estávendo,George,émuitomelhoracreditarnaciênciadoquenocéueemtodasessasbobagensarespeitodeanjos.

—Concordoplenamente.Vamossairparajantaredepoistomarunsdrinques?

—Boaideia—disseBaldur.Etivemosumanoiteexcelente.

Daqueledianteemdiante,porém,percebiquenemtudoestavabem.

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Baldur parecia triste, melancólico. Abandonou os lugares que costumavafrequentareencontrounovosbares.

Eunãomeimportei.Osnovosestabelecimentoseramdemelhornívelqueosantigos,eumdelestinhaumexcelentemartíniseco.Mesmoassim,fiqueicuriosoepergunteiaeleoqueestavaacontecendo.

— Não agüento mais discutir com aqueles idiotas— disse Baldur,comumacareta.—Atodahora,sintovontadededizeraeles:“Possovoarcomo um anjo; será que só por causa disso vocês vãome considerar umsanto?” Acha que acreditariam em mim? Acreditam em todas aquelasbobagens a respeito de cobras que falam e mulheres que sãotransformadas em sal... contos de fadas, nada mais que contos de fadas.Mas emmim, eles não iriam acreditar. Não, senhor. Por isso, preferi meafastar deles. É como diz a Bíblia: “Não procures a companhia devagabundos,nemtesentesàmesacomdesocupados.”

Devezemquando,eleexplodia:

—Nãoagüentomais icarvoandoapenasnomeuapartamento.Sintofalta de espaço. Não dá para sentir. Tenho de fazer a coisa ao ar livre.Querosubirparaocéuesairplanandoporaí.

—Vãovervocê.

—Possovoarànoite.

—Vocêvaibaternumamontanhaequebraropescoço.

—Não,sesubirparavaler.

—Oquevocêvaiverládecima,ànoite?Émelhorcontinuarvoandodentrodecasa.

—Possoencontrarumlugarondenãohajapessoas.

—Hojeemdianãoexistenenhumlugarassim.

Minha lógicabrilhantesempreoconvencia,masele foi icandocadavezmaisinfelizatéque,derepente,passouvá-riosdiassemaparecer.Não

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estava em casa. A companhia de táxis onde trabalhava disse que tinhatirado duas semanas de férias, sem avisar para onde ia. Não que eusentisse muita falta da sua hospitalidade (pelo menos, esse não era omotivoprincipal),mas estava commedode que omeu amigo semetesseemalgumaconfusãocomasuamaniadevoar.

Umdia, eleme ligou do seu apartamento. Quase não reconheci suavozchorosae,naturalmente, fui logovê-loquandoexplicouqueprecisavamuitofalarcomigo.

Estavasentadonasala,comumarmuitotristeedesanimado.

—George—disse—,cometiumgrandeerro.

—Quefoiquevocêfez,Baldur?

—Lembra-se de que eu lhe disse que precisava de um lugar ondenãohouvessepessoas?

—Lembro.

— Pois eu tive uma ideia. Quando o serviço de meteorologia dissequehaveriaumasemanadesol, tireiumas fériasealugueiumavião.Fuiparaumdessesaeroportosondevocêpodepagarparadarumavoltadeavião...comosefosseumtáxi.

—Eusei,eusei.

— Disse ao cara para sair da cidade e icar sobrevoando osarredores.Expliqueiquequeriaapreciaravista.Oqueeuqueriafazernaverdade era procurar um lugar bem deserto; quando encontrasse o quequeria, descobriria onde era e nos ins de semana iria até lá para voarcomosempredesejeivoardurantetodaaminhavida.

—Baldur—protestei—,deládecimaéimpossívelsaber.Umlugarpodeparecervazioenaverdadeestarcheiodepessoas.

—Nãoadiantamedizerissoagora—observou,emtomamargo.Fezumapausa,balançouacabeçaeprosseguiu.—Eraumdessesaviõesbemantigos. Uma carlinga aberta na frente e um assento aberto para o

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passageiroatrás.Eume inclineipara foraa imdepoderolharbeme tercertezadequenãohaviaestradas,nemautomóveis,nemcasasdefazenda.Tinhatiradoocintodesegurançapara icarmásàvontade.Vocêentende,depois que aprendi a voar, perdi o medo das alturas. Só que estavainclinadopara fora, opilotonão sabia e fezumacurvabrusca, o avião seinclinounadireçãoparaondeeuestavaolhando,eantesqueeupudessefazeralgumacoisa,estavanoar.

—NossaSenhora!—exclamei.

Baldurtinhaabertoumalatadecervejaefezumapausaparatomarumgole.Enxugouoslábioscomascostasdamãoedisse:

—George,vocêjácaiudeumaviãosempara-quedas?

—Não...pormaisquepense,nãomelembrodeterpassadopor issoalgumaveznavida.

—Poisdeveexperimentar.Éumasensaçãoengraçada.

Fui pego totalmente de surpresa. Por alguns momentos, não sabianem mesmo o que havia acontecido. Estava cercado de ar por todos osladoseo chãocomeçouagirar, enquantoaomesmo temposubiaaomeuencontro. Perguntei para mira mesmo: “Que diabo está acontecendo?”Depoisdealgumtempo,comeceiasentirumventomuitoforte,sóquenãodava para saber de onde estava vindo. Foi ai que me ocorreu que euestavacaindo.Disseparamimmesmo:“Ei,estoucaindo!”

E nomomento em que disse isso, percebi que era verdade, que euestavacaindocadavezmaisdepressanadireçãodaquelechãoduroequetaparosolhoscomasmãosnãoiaadiantarnada.

“Você acredita, George, que nesse tempo todo nem me lembrei deque era capaz de voar? Tal havia sido minha surpresa. Eu podia termorrido.Masquandoeuestavaquaseláembaixo,lembrei-meedisseparamimmesmo:“Possovoar!

Posso voar!” Foi como derrapar no ar. Foi como se o ar setransformasseemumagrande tiradeborrachapresaàsminhascostaseme puxasse para cima, de modo que a velocidade com que eu estava

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caindo começou a diminuir. Quando estava quase chegando à altura dacopadasárvores.Jáestavaindobemdevagarepensei:“Bemqueeupodiaarriscar um voozinho.” Mas eu estava um pouco cansado, de modo queendireiteiocorpo,reduziaindamaisavelocidadeetoqueiosolocomtodaasuavidade.

“E você tem toda razão,George.Quando eu estava lá em cima, tudopareciadeserto,masquandochegueiaochãoumamultidãomecercouevique havia uma igreja ali perto. Acho que eu não havia visto a igreja porcausadasárvores—falou.

Baldur fechou os olhos e, por alguns instantes, se contentou emrespirarfundo.

—Queaconteceu,Baldur?—perguntei,afinal.

—Vocênuncavaiadivinhar.

— Não pretendo adivinhar. Simplesmente me conte. Ele abriu osolhosedisse:

— Todos tinham acabado de sair da igreja. Eram gente muitoreligiosa.Umdeles se ajoelhou, levantou asmãospara o céu e exclamou:“Milagre!Milagre!”Osoutroscomeçaramaimitá-lo.Foiumaalgazarradosdiabos.Umsujeitogordoebaixinhochegoupertodemimedisse;“Eusoumédico.

Conte-meoqueaconteceu.”Eunãosabiaoquedizer.Comoéqueeuiaexplicarmeusúbitoaparecimento?Poderiamacharqueeueraumanjo.Demodoqueresolvicontaraverdade:

“Caí de um avião.” Foi o que bastou para todo mundo começar agritar“Milagre!”denovo.

“Omédico perguntou: “Você estava de para-quedas?” Eu não podiadizer que sim porque não tinha nenhum para-quedas para mostrar, demodoquerespondi:“Não.”Eledisse:“Viramvocêpousarsuavemente.”Foientão que outro sujeito, o padre da igreja, comentou, muito sério: “Foi amãodeDeusqueosustentou.”

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“Sabequenãoagüentoouviressasbobagens,demodoqueprotestei:“Não foi nada disso. Estava usando um aparelho antigravitacional.” Omédicoperguntouparamim:

“Estava usando o quê?” Eu repeti: “Um aparelho antigravitacional.”Elecomeçouariredisse:“Seeufossevocê,preferiaamãodeDeus”,comoseeuestivessecontandoumapiada.“Àquelaaltura,opilototinhapousadooaviãoeapareceu,brancocomoumafolhadepapel,dizendo:*Aculpanãofoiminha.Oidiotadesa ivelouocintodesegurança.”Foientãoquemeviu,ali parado, e quase desmaiou. “Como conseguiu se salvar?”, perguntou.“Você não estava usando para-quedas.” E todomundo começou a cantaralgumtipodehinoreligioso.Opadrepuxouopilotodeladoedisse-lhequetinha sido amão deDeus, que eu havia sido salvo para realizar grandesobrasnestemundo e que todos em suaparóquia que estavampresentesnaquelediaestavammaiscertosdoquenuncadequeDeusestavanoseutrono,trabalhandootempotodopelahumanidade,ecoisasassim.

“Atéeucomeceiaficarimpressionado.Querodizer,aacharquetinhasido salvo para fazer alguma coisa importante. Depois chegaram osrepórteres e mais alguns médicos (não sei quem os chamou). Osrepórteres me izeram tantas perguntas que me deixaram quase louco,mas a inal os médicos disseram que chegava e me levaram ao hospitalparaserexaminado.

Euestavaestupefato.

—Querdizerqueeleslevarammesmovocêparaumhospital?

—Enãomedeixaramsozinhoumsómomento.Anotíciaapareceunaprimeira página do jornal local, e um cientista veio de Rutgers ou coisaparecida parame interrogar. Eu expliquei que tinha usado um aparelhoantigravitacional, e ele começou a rir. Disse para ele: “Que acha queaconteceu, então? Um milagre? Logo você? Um cientista?” Ele disse:“Existemmuitos cientistasqueacreditamemDeus,masnenhumcientistaacreditanaantigravidade.”Eacrescentou:“Massememostraroaparelho,Sr. Anderson, pode ser que eumude de ideia.” Acontece que o aparelhonãofuncionou,nemnaquelaocasiãonemnuncamais.

Paraminhasurpresa,Baldurcobriuorostocomasmãosecomeçouachorar.

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—Procurecontrolar-se,Baldur.Vocêsabequeoaparelhofunciona.

Elesacudiuacabeçaedisse,comvozembargada:

— Não, não funciona mais. Para que funcione, é preciso que euacreditenele,oquenãoocorremais.Todomundodizquefoiummilagre.Ninguémacreditanaantigravidade.

Oscientistasdizemqueoobjetoqueeutinhapenduradonopescoçoera apenas um pedaço de metal, sem nenhuma fonte de energia, semnenhum controle, e que de acordo com Einstein, aquele sujeito darelatividade, a antigravidadeera impossível.George, eudevia ter seguidoosseusconselhos.Agora,nuncamaisvouvoardenovo,porqueperdiafé.TalvezaantigravidadenãoexistaetenhasidotudoobradeDeus,queporalguma razão estava agindo por seu intermédio. Estou começando aacreditaremDeus,sabe?

Pobre sujeito.Nuncamais tornou a voar. Elemedeu o aparelho devolta,eeuoentregueiaAzazel.

Algum tempodepois,Baldur largouo empregoe foi trabalhar comodiácono na igreja perto da qual havia caído. Todos o tratam muito bem,porqueacreditamqueDeusoprotege.

OlheiparaGeorge,masseurosto,comosempreacontecequandofaladeAzazel,permaneceuimpassível.

—George,issoaconteceuhápoucotempo?—perguntei-lhe.

—Anopassado.

—Comtodaessahistóriademilagre,jornalistasemanchetes?

—Issomesmo.

— Como é que você explica, então, o fato de que não vi nenhumanotíciaarespeitonosjornais?

Georgemeteuamãonobolsoetirouoscincodólareseoitentaedoiscentavos que representavam o troco que havia recolhido depois que eu

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pagara o almoço comumanota de vinte e uma de dez. Separou a nota edisse:

—Apostocincodólaresquepossoexplicarisso.

—Apostocincodólaresquenãopode—disseeu,semhesitação.

—OúnicojornalquevocêlêéoNewYorkTimes,certo?

—Certo.

— E o New York Times, como prova de respeito para o que há demelhor em Ficção Cientí ica, com o que considera o seu públicointelectualizado, coloca todas asnotícias sobremilagresnapágina31, emalgumlugarobscuro,pertodosanúnciosdebiquínis,certo?

— Pode ser, mas o que o faz pensar que eu não leria a notícia,mesmoquefossepublicadacompoucodestaque?

—Porque—concluiuGeorge,comartriunfante—todomundosabeque,comexceçãodasmanchetes,vocênãolênadanojornal.VocêfolheiaoNewYorkTimesapenasparaverseoseunomeémencionadoemalgumlugar.

Penseiumpoucoedepoisodeixei icarcomosoutroscincodólares.O que ele disse não é verdade,mas sei quemuita gente pensa amesmacoisa,demodoqueacheiquenãoadiantavadiscutircomele.

FIM

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1EstelivrofoidigitalizadoedistribuídoGRATUITAMENTEpelaequipeDigitalSourcecomaintençãodefacilitaroacessoaoconhecimentoaquemnãopodepagaretambémproporcionaraosDeficientesVisuaisaoportunidadedeconheceremnovasobras.

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