AZEVEDO Experimentando o Sagrado Em Kerenyi

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIA DA RELIGIO

    EXPERIMENTANDO O SAGRADO: A RELIGIO GREGA A PARTIR DE KARL KERNYI

    Tese apresentada como requisito parcial obteno do ttulo de Doutora ao Programa de Ps-Graduao em Cincia da Religio, do Instituto de Cincias Humanas, por Cristiane Almeida de Azevedo. Orientador: Prof. Dr. Paulo Afonso de Arajo.

    Juiz de Fora 2008

  • Alguns agradecimentos...

    Ao Paulo por sua doao, ajuda, apoio e fundamental orientao. Em quem eu encontrei mais que um orientador, tambm um grande amigo. E quem desde a primeira conversa sempre apostou na minha pesquisa.

    Ao eterno mestre, Marcio, com carinho, por poder compartilhar comigo mais esse momento. De quem a fora do pensamento me serve sempre de inspirao.

    Ao professor Eduardo Gross pela importante participao durante o processo, seja por suas aulas ou por sua participao no exame de qualificao.

    Aos professores Luis Dreher e ao Fernando Santoro pela pronta e generosa participao na banca.

    professora Vitria Peres, saudades de suas aulas instigantes.

    professora Rene Koch Piettre por toda sua dedicao e preocupao com a pesquisa. Suas sugestes foram essenciais para o enriquecimento da discusso.

    professora Stella Georgoudi pelas aulas, por sua generosidade e pelas sugestes.

    Aos professores Claude Calame e Franois Lissarrague pelas aulas que contribuiram enormemente para a pesquisa.

    Aos funcionrios da biblioteca do Centre Gernet-Glotz que me possibilitaram livre acesso a obras fundamentais para a realizao desse trabalho.

    Ao Antonio Celestino que sempre resolve nossos problemas.

    Ao Fabio pela cumplicidade desde nossa entrada no doutorado.

    Manu, sem sua ajuda em casa teria sido impossvel.

    minha me que sempre me apoiou, sua ajuda durante todo o processo final de escrita foi fundamental.

    Lu que me iniciou no mundo da leitura e me ensinou a aprender sempre coisas novas.

    Esther e ao Fernando por todo apoio e ajuda.

    Ao Fernando e Sofia, por estarem sempre ao meu lado.

    Capes pelo financiamento da pesquisa durante esses quatro anos e pela bolsa de doutorado-sanduche.

  • RESUMO

    Esta tese tem como objetivo pensar, a partir do caminho seguido pelo helenista Karl Kernyi (1897-1973), a possibilidade da experincia grega do sagrado ser entendida como religio. Para tanto, a anlise partiu do questionamento a respeito dos conceitos de mito e de religio. O mito grego aparece aqui, atravs da perspectiva de Kernyi, como fala verdadeira, sistema de pensamento e de vida, fundamento para a existncia. O conceito de religio foi pensado segundo a origem etimolgica proposta por Ccero: relegere. A partir dessa anlise, buscou-se identificar a experincia grega do sagrado no cotidiano, no qual o estabelecimento da relao entre homens e deuses se traduz em uma prtica, um constante agir. Por fim, o culto a Dioniso aparece como revelador do aspecto trgico dessa relao prxima e, ao mesmo tempo, distante entre homens e deuses.

    Palavras-chave: religio, mito grego, Karl Kernyi

  • RSUM

    Le but de cette thse est de penser la possibilit de comprendre lexprience grecque du sacr comme une religion. Pour ce faire, la pense de lheleniste Karl Kernyi (1897-1973) a t suivie et les concepts de mythe et de religion ont t analyss. Le mythe grec apparat alors, sous la perspective de Kernyi, comme une vraie voix, une faon de penser et de vivre, fondement pour lexistence. Le concept de religion a t pens selon lorigine tymologique propose par Cicron : relegere. partir de cette analyse, on a cherch identifier lexprience grecque du sacr dans le quotidien, dans lequel ltablissement du rapport entre les hommes et les dieux se montre travers une pratique, un faire. Finalement, le culte Dionysos apparat comme rvlateur de laspect tragique de ce rapport proche et, simultanment, lointain, entre les dieux et les hommes.

    Mots-cl: religion, mythe grec, Karl Kernyi

  • SUMRIO

    Introduo...................................................................................................................... 1

    Captulo 1 O mito como questo................................................................................. 11

    1.1. O mythos e a tradio.............................................................................................. 11 1.2. Quando o mito vira cincia...................................................................................... 28 1.3. Mythos: uma tentativa de compreenso................................................................... 44

    Captulo 2 A religio como questo............................................................................. 58 2.1. O legado de Ccero.................................................................................................. 58 2.2. A experincia grega do sagrado............................................................................... 67 2.3. A experincia grega do sagrado e religio romana.................................................... 85

    Captulo 3 Experimentando o sagrado.......................................................................... 100 3.1. A atmosfera sagrada do cotidiano grego.................................................................. 100 3.2. Convite aos deuses: o momento da festa.................................................................. 102 3.3. Um espetculo para os deuses................................................................................... 108 3.3. Um sacrifcio para a celebrao final........................................................................ 115

    Captulo 4 A dimenso trgica da religio grega........................................................... 127 4.1. O estilo religioso grego: a dimenso trgica.............................................................. 127 4.2. A bela morte herica.................................................................................................. 137 4.3. Dioniso: o deus trgico.............................................................................................. 151

    Concluso.......................................................................................................................... 170

    Bibliografia........................................................................................................................ 177

  • INTRODUO

    Com esta tese de doutorado pretendemos pensar a experincia mtica grega como religio a partir do pensamento de um dos mais importantes helenistas do sculo XX: Karl Kernyi (1897-1973). Portanto, com essa proposta, colocamos, de uma s vez, no centro da questo, dois conceitos talvez inapreensveis: mythos e religio.

    Comecemos pelo mythos.

    A palavra, o enunciado, o discurso, a narrativa, enfim, uma multiplicidade de termos, de sentidos, de contextos dizem respeito ao que o grego chamou mythos e que ns, simplesmente, chamamos mito. E com essa traduo, primeira vista, inocente e evidente, parece que introduzimos um terceiro conceito na nossa pesquisa. Pois, aquilo que os gregos chamaram mythos se mostra com o mesmo vigor quando dizemos mito? Os gregos diziam mythos para designar algo que igualmente poderia ser nomeado por logos. No mais um conceito que aparece. Trata-se do mesmo, mythos e logos.

    Contudo, parece-nos que, quando falamos mito, exclumos o logos. Entre mythos e logos imperava uma relao de identidade, um podia ser tomado pelo outro; entre mito e logos, a relao excludente, um no pode estar no mesmo lugar que o outro. Para o pensamento moderno a questo da verdade que intervm. Verdade como adequao realidade. O logos da ordem do verdadeiro, do lgico, enquanto o mito diz respeito a uma fabulao.

    Podemos apontar ainda outra diferena importante entre mythos e mito. Quando o grego antigo dizia mythos referia-se, na maioria das vezes, s histrias da origem que eram transmitidas oralmente, recitadas para um auditrio. Quando dizemos mito, nos referimos tambm s mesmas narrativas, todavia conhecidas por ns de maneira diferente, no mais pela dinmica da oralidade, mas pela rigidez da escrita.

    Contudo, Kernyi insiste na relao entre mito e logos a partir do vocbulo mito-logos. A insistncia no termo parece querer marcar seu posicionamento em fazer falar o

    logos de dentro do mito. Assim, para Kernyi, mito e logos no constituem duas formas de pensamento distintas, no se opera uma passagem do mito ao logos, mas uma modificao do prprio logos, valorizado posteriormente pela filosofia.

    O mito, na perspectiva de Kernyi, continua sendo a enunciao de uma fala verdadeira, forma primeira do homem responder e entender a realidade que o cerca.

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    Segundo o helenista, os acontecimentos narrados pelo mito so fundamento da existncia, so as archai.

    Portanto, diante de um conceito to vasto e passeando por vrios de seus significados, implicaes, crticas, aqui tambm insistimos, tal como Kernyi, no mito como forma de pensamento, forma de tratar aquilo que se apresenta, forma tambm de dizer o inexplicvel, o indizvel, o inefvel.

    Passemos ao termo religio. Normalmente, quando pensamos em religio temos em mente a relao que se

    estabelece entre homens e deuses conforme se d nas religies do Livro, dos dogmas. Naturalmente pensamos na aliana, na ligao com a divindade e todo sentimento de piedade e amor do fiel, na f nos deuses. Desse modo torna-se difcil identificar essas caractersticas se pensarmos na experincia grega: sem livro sagrado, sem doutrina, sem revelao, sem algum de desempenhe a funo de lder espiritual.

    Talvez seja at mesmo incorreto assim nomear qualquer experincia grega. Pois trata-se de um conceito posterior. Para pensar em religio na Grcia talvez tenhamos que descontextualizar esse termo, retirar-lhe, de certo modo, sua historicidade para a sim encontr-lo em um povo que jamais o pensou. Talvez estejamos assim impondo um conceito que nos pertence, mas no aos gregos antigos.

    Na tentativa de fugir dessa imposio, para que no forcemos uma categoria no seio de uma sociedade que no a pensou, vamos tentar primeiro olhar para a experincia grega para depois nos questionarmos sobre a possibilidade de vermos a a religio, mas, ao mesmo tempo, questionando o que a religio.

    Somente ao colocar em questo o prprio conceito de religio poderemos avanar na anlise. Assim sendo, pretendemos pensar a religio numa perspectiva diferente da que se costuma seguir, colocando sua pr-compreenso tambm em questo. No queremos partir daquilo que mais ou menos intuitivamente sabemos sobre a religio para encontr-la entre os gregos.

    Aquele conceito que ns temos, tambm de maneira natural, seno evidente, levado em considerao, nos remete ao que foi proposto no incio do Cristianismo, com a religio significando os laos de piedade atravs dos quais estamos ligados ao verdadeiro e nico deus. Trata-se da religio entendida a partir da origem etimolgica proposta por Lactncio e Tertuliano: religare.

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    No entanto, apesar de, podemos dizer, historicamente vitoriosa, essa no a nica etimologia possvel. A antiga religio romana Ccero dizia originar de relegere. Conseqentemente, a religio aqui designava um outro tipo de experincia com o sagrado. Foi observando a devoo dos antigos romanos ao honrar seus deuses atravs dos cultos que Ccero percebeu uma prtica religiosa. A religio dos romanos estava baseada nessa prtica, o fazer era responsvel por estabelecer a relao entre homens e deuses; o fazer era a prpria religio, era a forma de, ao mesmo tempo, venerar e de estabelecer contato. Assim, a religio entendida a partir de relegere indica uma relao de cuidado, de zelo com os deuses que se expressa atravs da repetio dos ritos.

    Essa outra possvel origem etimolgica , na maioria das vezes, posta de lado, esquecida. Assim ocorreu no incio da histria do Cristianismo, momento em que essa nova e verdadeira religio que surgia no poderia ser confundida com aquela prtica pag de honrar vrios deuses.

    a partir da origem etimolgica proposta por Ccero que Kernyi pensa a experincia grega com o sagrado. Dessa maneira comeamos a vislumbrar que o mito pode ser pensado dentro do campo religioso desde que o prprio termo religio seja repensado. Evidentemente que o helenista no espera encontrar na Grcia uma palavra equivalente religio romana, contudo, talvez uma prtica seja possvel de ser identificada.

    Mythos e religio encontram-se no cotidiano grego, na vivncia do sagrado. no cotidiano que um encontro ainda mais importante se d: homens e deuses convivem. A festa, que, como nos diz Kernyi, a caracterstica maior das religies antigas, traz para a presena aquilo que deve se manter presente. Para os gregos, a festa o momento de convidar os deuses a tomarem parte dos jogos, do sacrifcio, da refeio em comum. momento de celebrao da prpria vida que se mostra sagrada a partir desse contato to prximo com os deuses.

    So os passos que Kernyi trilhou para chegar a essa aproximao entre mythos e religio que nos orientam aqui. No entanto, no se pretendeu destrinchar sua vida e obra como comum em trabalhos que tratam do pensamento de um determinado autor. Esse nunca foi nosso objetivo, por isso ficam de fora vrias obras e sua longa correspondncia com Thomas Mann. Por outro lado, o helenista no est sozinho nesse caminho. Vrios outros autores dialogam com ele para precisar ou complementar determinadas anlises, para concordar ou discordar, como tambm para levantar caractersticas que lhe escaparam.

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    Entre os vrios escritos do helenista encontramos um questionamento quanto possibilidade de nomear a experincia do sagrado, que os gregos expressaram atravs de seus mitos e cultos, como religio. Enfim, podemos dizer que os fundamentos dessa pesquisa foram construdos com o slido pensamento de Kernyi. Portanto, a compreenso final sobre o que o mito, como elemento fundador, como causa primeira, de onde podemos perceber conseqncias e implicaes para a existncia o prprio entendimento de Kernyi a respeito do mito, ou melhor, como ele prefere nomear, da mitologia. Assim tambm como oriundo de seu entendimento todo o caminho percorrido para tentar identificar a experincia grega como religio, seja atravs do estudo de alguns termos gregos seja pela comparao com a religio romana antiga seja ainda pela nfase nos momentos festivos. E ao tratar da relao que se estabelece entre homens e deuses, sobretudo nesses momentos festivos, relao prxima e, ao mesmo tempo, distante, o helenista aponta para a tragicidade da religio grega, destacada no ltimo captulo.

    A pouca repercusso de sua obra no Brasil foi outro fator importante que nos levou a trazer seu pensamento para o centro dessa pesquisa. Por conta justamente desse pouco conhecimento de sua obra entre ns, optamos aqui por fazer um breve levantamento de seu percurso intelectual.

    Kernyi nasceu em 1897, na Hungria, seu primeiro livro publicado em 1927, Die griechisch-orientalische Romanlinteratur in religionsgeschichtlicher Beleuchtung, dedica-se a pensar a origem do romance focando-se na constante estrutura narrativa da separao, peripcia e o reencontro final de dois amantes. Essa estrutura, segundo o autor, tem como modelo genrico o acontecimento ritual da cpia divina constituda pelas divindades egpcias Isis e Osris.

    Fillogo por formao, no percurso intelectual de Kernyi primeiramente encontra-se a influncia daquele que na poca era considerado o fillogo de maior prestgio: Ulrich von Wilamowitz-Mllendorff (1848-1931). Em 1926, Kernyi adere escola estica do fillogo aps se opor poltica do governo nacionalista que tendia a favorecer as disciplinas relacionadas com a lngua e a cultura em detrimento da cultura clssica ou estrangeira.

    Contudo, rapidamente ele se afasta de Wilamowitz e passa a empregar uma nova metodologia filolgica que consiste em utilizar o resultado da histria da religio e da etnologia para interpretar os elementos mais marcadamente mitolgicos e culturais presentes no texto clssico. Essa experincia foi importante para Kernyi pois permitiu-lhe

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    sair do mbito exclusivo da filologia marcada pelo trabalho de Wilamowitz para encontrar seu prprio caminho.

    Em 1929, em uma viagem Grcia, Kernyi encontra aquele que se tornaria a referncia mais importante para sua pesquisa, Walter Friedrich Otto (1874-1958). Nesse momento, Otto convida Kernyi para integrar o crculo de pesquisadores que se reunia em torno de Leo Frobenius. No crculo frobeniano, forma-se como historiador das religies.

    O etnlogo alemo Leo Frobenius (1873-1938) foi responsvel por uma contribuio fundamental para a etnologia contempornea: atravs dos paralelos etnogrficos explicava o fato de um certo elemento cultural estar presente em diferentes populaes apesar da enorme distncia entre elas. Para o seu pensamento, dois conceitos so de extrema importncia: Paideuma e Ergriffenheit. Entre o princpio cultural que anima um povo e suas expresses histricas, religiosas, polticas e literrias existe algo indizvel. essa estrutura ambgua, ao mesmo tempo transcendente e imanente, no acessvel a uma conscincia cientfica, mas apenas ao sentimento e experincia viva que Frobenius denomina Paideuma. J Ergriffenheit designa a paixo-comoo que se experimenta quando uma realidade estranha nos apanha irresistivelmente com seu fascnio e torna-se em ns fora estimuladora. Esse algo indizvel que pode ser sentido pela experincia e o fascnio despertado pelo sagrado sero desenvolvidos por Kernyi em sua investigao sobre o mito grego.

    Outro pensador que fez parte do percurso de Kernyi foi Carl Gustav Jung (1875-1961). Nos anos 40, Kernyi se viu obrigado a fixar residncia na Sua aps ser acusado de fascista. Na mesma dcada naturaliza-se cidado suo. Foi por conta de sua permanncia na Sua que estabelece uma relao mais prxima com Jung, passando a ser seu colaborador em alguns trabalhos. Em 1949, escrevem juntos Essays on the science of mythology. Obra dedicada a pensar o arqutipo da criana divina. Alis, atravs do conceito de arqutipo que percebemos mais claramente a influncia de Jung na obra de Kernyi. Cinco de seus livros tm no subttulo o termo imagem arquetpica; entre eles o que ser de fundamental importncia para essa pesquisa, Dioniso: a imagem arquetpica da vida indestrutvel.

    Contudo, em Dioniso, no com Jung que Kernyi dialoga, mas com Walter Otto, com quem teve uma relao muito prxima, por mais de 30 anos, de amizade e admirao. Dialoga no necessariamente concordando integralmente com o amigo. Pois, se em A

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    religio antiga, Krenyi est prximo do pensamento de Otto, em Dioniso, faz vrias crticas em relao sua concepo do dionisismo.

    Buscando estabelecer um dilogo com o discurso mtico, Otto trabalha no sentido de decifrar a caracterstica religiosa do mito e sua relao com o divino. Para ele, o divino , antes de tudo, aquilo que est nossa volta, e dentro desse mbito divino que vivemos e respiramos1. O divino no ser o totalmente outro, mas aquilo com o qual convivemos cotidianamente e que exigir por parte do homem a grandeza da ao e a dignidade do comportamento. O autor faz da fenomenologia da experincia religiosa e da relao com o ser as bases para uma aproximao original ao esprito do mundo antigo2, na tentativa de elucidar nossa relao com o mundo grego.

    Para Burkert, Os Deuses da Grcia, de Otto, publicado em 1929, constituiu uma tentativa, depois de tantas crticas e deturpaes, de tomar com seriedade os deuses homricos, fazendo frente a uma crtica de 2500 anos3. Como o prprio Otto anuncia, ns devemos reaprender a ver os deuses gregos com os olhos daqueles que os honraram4. O surgimento de Os Deuses da Grcia, segundo Ordep Serra, ia contra a correnteza das linhas de pensamento que prevaleciam nos estudos clssicos, pois surgiu ainda em uma poca predominantemente positivista e racionalista5. Otto critica duramente as anlises que identificaram no mito algo primitivo, como um pensamento ainda no digno de ser levado em considerao.

    As crticas das leituras anteriores feitas sobre o mito e as novas interpretaes desenvolvidas por Otto iro exercer uma forte influncia no pensamento de Karl Kernyi.

    Apesar de jamais ter feito uma formulao terica precisa de seu prprio mtodo de pesquisa6, Kernyi, que na sua pesquisa fenomenolgica da religio grega, integra a filologia moderna mitologia, no foi mero repetidor de pensadores importantes. Ao contrrio, sua obra tem vigor prprio. Ao tratar o mito como religio sua inteno era deixar as narrativas mticas entoarem sua prpria melodia enquanto ns apenas emprestamos nossos ouvidos para tentar entender melhor essa religio e no fazermos com que elas nos digam aquilo que nossos ouvidos desejam escutar.

    1 W.F.OTTO. L'esprit de la Religion Grecque Ancienne - Theophania, p.68.

    2 A.MAGRIS. Carlo Kernyi e la ricerca fenomenologica della religione, p.49.

    3 W.BURKERT. A religio grega na poca clssica e arcaica, p.28-9.

    4 W.F.OTTO. L'esprit de la Religion Grecque Ancienne - Theophania, p.73.

    5 O.SERRA. luz dos deuses: o olhar transfigurado de Walter Friedrich Otto in: Os Deuses da Grcia, p.viii.

    6 A.MAGRIS. Carlo Kernyi e la ricerca fenomenologica della religione, p.71.

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    Como todo grande pensador, tambm despertou diversas crticas sobretudo as relacionadas com uma viso excessivamente romntica do mito que nos permite identificar, por vezes, uma certa idealizao do grego como o homem que soube estabelecer uma verdadeira relao com os deuses. Outro motivo de crtica o fato de que sua anlise se mostraria, em determinados momentos, influenciada por uma viso crist da religio como poderia deixar ler sua anlise de Dioniso. Contudo, como veremos, as possveis crticas no desmerecem o vigor do pensamento de Kernyi e as intuies e percepes que teve a respeito da relao grega com o sagrado.

    Percepo que o fez considerar Homero e Hesodo como a Bblia dos gregos antigos. Obviamente no no sentido que o Livro sagrado ter, por exemplo, para um cristo, mas como reveladores da relao entre homens e deuses. Essa perspectiva de Kernyi, adotada aqui, esclarece porque outros testemunhos to importantes da cultura grega, como os autores das tragdias, foram preteridos. Pois os exemplos aqui dados, na sua maioria, partem das obras dos dois grandes poetas da Antigidade.

    Uma ltima ressalva se faz necessria: talvez pudssemos pensar que nosso estudo objeto para a antropologia, sociologia ou histria, mas no para a filosofia. No entanto, o que se revela com o estudo que a filosofia da religio parece ser o lcus privilegiado para tratar da experincia mtica grega como religio. Algumas vezes, no decorrer desse trabalho, dialogamos com Plato e Aristteles. Atravs deles fala a filosofia, mas fala tambm uma tradio. At que ponto seriam incompatveis? Os conceitos aqui trabalhados envolvendo a experincia mtica parecem-nos revelar certo parentesco com a reflexo filosfica. No

    queremos adiantar aqui algo que talvez s se revele com a leitura da tese. Finalmente, queremos apresentar, resumidamente, o percurso apresentado nos

    quatro captulos que compem esta tese:

    No primeiro captulo, primeiramente tentamos pensar o que o termo mythos

    significa. Aqui se falou de algumas palavras que poderiam ser tomadas com o mesmo significado: mythos, epos e logos. A relao entre mythos e logos teve maior destaque. Inicialmente utilizados como sinnimos, os termos passam por um longo processo de modificaes que os leva para campos opostos. Quando a diferena se instala, o mito passa a ser objeto de duras crticas. Retomamos algumas delas feitas principalmente por Pndaro, Xenfanes, Herdoto e Tucdides. Porm, os mitos tambm tiveram seus defensores, que

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    atravs da teoria da alegoria tentaram explicar os elementos, que causavam horror, presentes nas narrativas dos poetas da Antigidade.

    No sculo XIX, o mito vira cincia e as velhas crticas parecem agora

    pretensamente respaldadas pelo saber do homem moderno, sobretudo atravs das pesquisas desenvolvidas pela Escola Antropolgica e pela Mitologia Comparada. O mito , definitivamente, aberrao, horror, histria absurda. Contudo, tivemos tambm no sculo XIX, e at mesmo no sculo anterior, filsofos que se dedicaram ao estudo do mito de forma diferente, entre eles: Christian Gottlob Heyne, Giambattista Vico e Friedrich W. Schelling. A perspectiva desenvolvida por esses autores influenciou diversos pesquisadores do sculo seguinte, entre os quais o nosso autor.

    Kernyi, como vemos na ltima parte do captulo, tambm se prope a desenvolver uma cincia da mitologia, todavia, sob uma nova tica. A mitologia agora entendida como uma forma de viver e atuar, um modo de expresso, de pensamento e de vida dos gregos antigos. Atravs dessa outra forma de entender a experincia dos gregos antigos, o mito torna-se fundamento, a existncia torna-se sagrada.

    No captulo II, nos questionamos a respeito da possibilidade de chamar a experincia grega do sagrado de religio. Para tanto, foi preciso pensarmos no prprio termo religio e, seguindo o mtodo de Kernyi, voltarmos etimologia na palavra. Assim encontramos, de um lado, a religio tendo como origem o termo relegere, presente nos textos de Ccero, que designava a religio dos antigos romanos, por outro, temos religare, origem proposta por Lactncio e Tertuliano para poder falar da verdadeira religio crist.

    Para tentar uma aproximao entre a religio romana e a experincia grega do sagrado, faz-se necessrio decidirmos por uma nica etimologia. Nesse caso, Kernyi afirma que a verdadeira etimologia da palavra est em Ccero, na repetio escrupulosa do culto, no zelo com o sagrado, na preocupao em manter presente aquilo que deve permanecer presente que a religio romana antiga se revela. Ser a religio entendida como relegere que nosso autor tenta identificar na experincia sagrada grega. Sabemos que os gregos antigos no tinham nenhuma palavra para designar religio tal como religio o faz com a experincia romana, por isso, Kernyi busca no vocabulrio do cotidiano dos cultos, os termos que poderiam traduzir essa experincia. Apesar de dialogarmos com vrios autores, os termos aqui tratados so aqueles que o helenista identifica como os mais reveladores dessa experincia, portanto, isso explica a ausncia de outros possveis termos

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    relacionados com o culto. atravs de eulabeia, nmos, hsios, hiers, hgios, hagns, ags, dike, sebas, aidos e theors que a experincia grega do sagrado revela-se. Contudo, para Kernyi, dois desses termos so capazes de exprimir aquilo que a religio romana designa, a saber: sebas e aidos. Para resumir, diremos a venerao pelos deuses e a vergonha, que implicam toda a concepo da religio grega desenvolvida por Kernyi. Pois, trata-se de uma experincia em que o contemplar tem papel fundamental, j que tanto sebas quanto aidos implicam uma viso. Se, no primeiro caso, o homem sujeito da ao ao contemplar as figuras divinas de maneira a honr-las; no segundo, o homem torna-se objeto dessa viso. Logo, revela-se a primeira grande caracterstica da experincia grega. A contemplao dos deuses permite aos homens ter acesso a um saber. A segunda permitir a aproximao com a religio romana: a festa. O momento festivo correspondia, tal como para a religio romana, a ocasio mais importante no estabelecimento de relao com o sagrado. Assim, os deuses tornam-se seres-sabidos atravs do saber contemplativo do homem festivo.

    Depois da anlise etimolgica dos termos e da identificao dos dois aspectos fundamentais para a experincia grega do sagrado faz-se necessrio percebermos como essa religio pois, agora, na perspectiva de Kernyi, j podemos nomear a experincia grega dessa maneira se manifesta no cotidiano dos gregos. Portanto, o captulo III destinou-se a analisar esse momento maior e mais significativo para a religio que a festa. Aqui

    podemos identificar todos os termos tratados no captulo anterior implicados na experincia festiva.

    Dentro dos vrios elementos que compem a festa, como procisses, msica, dana, competies, preces, libaes e sacrifcios, destacamos dois deles na tentativa de explicitar melhor essa relao com o sagrado. Assim, atravs do jogo, destaca-se de maneira evidente a importncia da contemplao. Momento em que os homens sabem que esto sendo vistos no s pelas demais pessoas, mas tambm pelos prprios deuses. Portanto, preciso se mostrar forte, corajoso, bravo e bonito para atrair a admirao de todos, mortais e imortais. J no sacrifcio, a relao se inverte, o homem passa de objeto de contemplao a sujeito desse ato. Ao sacrificar, os homens chamam os deuses a tomar parte daquilo que lhes pertence. Os deuses so convidados a participar fraternalmente do banquete festivo que se segue ao sacrifcio. Os imortais se fazem presentes, momento dos homens contemplarem, de terem acesso a um saber especial.

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    Contudo, essa relao to prxima aos deuses deixa transparecer tambm a diferena. Atravs do saber contemplativo do homem festivo, o grego experimenta o sagrado, torna-se, de uma certa maneira, tambm sagrado. Todavia, por mais que essa experincia aproxime, no faz abolir definitivamente as fronteiras que separam homens e deuses. a dimenso trgica da religio grega que agora se apresenta.

    Finalmente, o ltimo captulo dessa tese destinado a pensar essa relao to prxima e, ao mesmo tempo, to distante. Aqui, essa diferena se mostra claramente atravs de um elemento que, segundo Kernyi, caracterstico do fenmeno religioso: o riso de Zeus. O riso entre os deuses acontece nos momentos de tenso e vem destruir os elementos titnicos que podem, temporariamente, estar presentes entre os imortais, como luta, tenso, desentendimentos. Contudo, o titnico o elemento caracterstico do homem. Portanto, entre os homens, esse riso vem demonstrar a diferena entre homens e deuses.

    Todavia, o heri grego, justamente atravs do que nele se mostra como o mais titnico, o mpeto para o enfrentamento na guerra, tenta tocar o divino, tenta tornar-se homem-deus. A bela morte herica permite ao heri sua imortalizao. enfrentando a morte e deixando a vida de maneira gloriosa que o heri torna-se um imortal medida humana. Pois suas glrias so eternizadas pelo canto do aedo, seu nome e renome passam a fazer parte da memria de seu povo. Assim, torna-se homem-deus atravs da morte gloriosa. Paradoxalidade que refora a tragicidade da religio grega.

    O trgico grego apresenta ainda todo seu vigor atravs do nico homem-deus entre os deuses: Dioniso. O deus que morre e ressuscita o deus da vida indestrutvel, da zo. O deus da tragdia e da mscara, do delrio e da embriaguez vem para dissolver as fronteiras entre homem e deus, vem para mostrar que a vida do homem, bos, tambm faz parte da zo divina.

    Para Kernyi, o sagrado tal como era experimentado pelos gregos, no era o totalmente outro, no faz sentido falar do sagrado como algo existente fora do eu. O que parece que o autor no via essa distino de dentro e fora to claramente definida na cultura mtica grega. No que o sagrado esteja dentro, ou dentro e fora, simplesmente essa distino parece no existir. O sagrado perpassa todos os mbitos da existncia, no uma outra realidade, e sim a realidade.

    Enfim, queremos chamar a ateno para o que parece ser uma outra forma de experimentar o mundo que Kernyi elucida atravs de sua anlise.

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    CAPTULO 1: O MITO COMO QUESTO

    Para comearmos a tratar do mito faz-se necessrio tentarmos nos aproximar do significado que ele assumiu para os gregos antigos. Nessa tentativa, relacionamos o mythos com dois outros termos com significados semnticos semelhantes. Abordamos aqui a oposio que se estabeleceu entre mythos e logos. Tratamos tambm das primeiras crticas que as narrativas sofreram e da defesa de Homero feita atravs da teoria da alegoria.

    No sculo XIX, o estudo do mito ganha o estatuto de cincia e as anlises passam a condenar as antigas narrativas pela criao fantasiosa, pelas histrias absurdas e selvagens. Contudo, se no sculo anterior j tnhamos as pesquisas de Giambattista Vico e Christian Gottlob Heyne que valorizaram o pensamento mtico, no sculo XIX temos a fundamental anlise de Friedrich W. Schelling, responsvel por um outro tipo de enfoque do mito que influenciou diversas interpretaes no sculo seguinte, inclusive a de Karl Kernyi.

    Finalmente, tratamos da perspectiva de Karl Kernyi destacando elementos fundamentais para essa outra interpretao do mito proposta pelo autor como a importncia da memria e a funo do poeta, que ao ser inspirado pelas Musas, contribui para a manuteno da tradio; a questo da verdade j presente entre os gregos antigos e o mito como fundamento para a existncia.

    1.1. O mythos e a tradio

    Ao trabalharmos com uma cultura oral que j deixou de existir, temos necessariamente que nos colocarmos a questo da possibilidade de falar de um de seus elementos caracterizadores. Talvez no seja possvel afirmar o que o mythos significava

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    para os gregos antigos. Talvez tudo que se possa dizer sejam pressuposies a partir de alguns testemunhos que conseguiram sobreviver ao tempo. No entanto, sempre se falou e pesquisou, e continua-se investigando o mito. Diversas so as abordagens e os mtodos de pesquisa empregados para se decifrar uma cultura que ainda hoje nos interpela de forma enigmtica. Estruturalismo, comparatismo, evolucionismo, simbolismo, muitas so as linhas de pesquisa que querem dar uma resposta a essa interpelao.

    Contudo, os obstculos no param a. Pelo fato de trabalharmos quase sempre com a traduo do grego antigo, podemos nos questionar tambm se as palavras utilizadas como correspondentes aos termos gregos conseguem dar conta de todo campo semntico do termo original. A questo coloca-se como uma tentativa de no aceitar como evidente ou natural os sinnimos utilizados em diversas lnguas para palavras que fazem parte de um outro momento histrico, de uma outra cultura.

    Nesse sentido, podemos nos perguntar se a palavra moderna mito capaz de abranger e expressar tudo aquilo que para os antigos gregos mythos significava. Um dos caminhos para desenvolvermos nossa investigao recorrer ao estudo etimolgico: pensar o que o prprio termo grego pode nos fazer ouvir.

    Tanto Karl Kernyi7 quanto Walter F. Otto8 afirmam que o termo obscuro e no nos revela muito. No entanto, alguns testemunhos do uso da palavra chegaram at ns atravs dos textos de poetas, historiadores e filsofos e talvez possam nos ajudar na busca por uma melhor compreenso do mythos.

    Na Ilada, mythos aparece em oposio ergon, ou seja, a habilidade na oratria se ope destreza da ao9. Ao se referir a Polidamas e a Heitor, Homero nos diz: eles nasceram na mesma noite; mas foi um por suas palavras (mythoisin) e o outro por sua lana (enche), que eles triunfaram10. Portanto, talvez possamos afirmar que entre os cidados, encontramos aqueles que se distinguem pela capacidade de ao, pela habilidade nos conflitos e outros que se destacam pela arte de falar. Mas no sabemos ainda se esta arte est relacionada com ditos verdadeiros, capacidade de reflexo, de discernimento ou com uma certa habilidade para encantar aquele que ouve. Se levarmos em considerao o prprio Polidamas, Homero nos diz, na mesma passagem citada acima, que ele era o nico entre 7 K.KERNYI. La religion antigua, p.26.

    8 W.F.OTTO. Essais sur le mythe, p.25.

    9 K.KERNYI. La religion antigua, p.26.

    10 HOMERO. Ilada, canto XVIII, v.251 e ss. Aqui, segundo Kernyi, a lana representa a destreza da ao

    (ergon).

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    todos os outros que via para frente e para trs do presente. Todavia, no podemos dar exatido ao termo atravs da pessoa a quem ele qualifica. No raro encontrarmos o mesmo termo grego empregado em vrios sentidos.

    Fala, narrativa, palavra so vocbulos diretamente relacionados com o valor semntico de mythos. Segundo Calame, na obra de Homero, a narrativa designada tanto por mythos quanto por epos:

    Quando Telmaco pede a Nestor, depois a Menelau de lhe fazer a narrativa da suposta morte de seu pai, ele espera tanto a narrao de um testemunho ocular quanto um testemunho fundando-se na transmisso oral (aural, para ser mais preciso) dos acontecimentos. A narrativa desses acontecimentos chamada mythos. Em compensao, quando o mesmo Telmaco se informa com Nestor da sorte reservada a Agammnon e a Menelau, ele pede ao velho rei de Pilos um epos; igualmente as narrativas do aedo as quais Eumeu compara a narrao que lhe fez Ulisses de suas aventuras so designadas por esse termo, utilizado no plural (epea)11.

    Portanto, os dois termos so utilizados nos exemplos acima como sinnimos, como narrativa, mas narrativa no necessariamente digna de crena. Os termos poderiam se referir tanto s histrias consideradas verdadeiras como aos ditos enganosos. Para fazer essa diferenciao, nos textos homricos encontramos os vocbulos empregados com uma qualificao12. Contudo, o prprio Calame que nos chama a ateno para o fato de que os termos possuem significados mais vastos e so empregados por vezes em sentidos opostos: epos designa mais a palavra substancial, suscetvel de assumir vrias formas, diferentes contedos, reenviaria a toda espcie de palavra, da interveno discursiva durante o combate at as profecias de Tirsias, passando pela ordem proferida pela divindade; j mythos designa o contedo da palavra, a opinio ou a inteno, o discurso que exprime um pensamento, uma opinio13. Nesse sentido, Otto v em epos o sinnimo da prpria voz, da palavra enquanto divulgao vocal14.

    11

    C.CALAME. Mythe et rite en Grce : des catgories indignes ? in: Revue Kernos, p.182. 12

    idem, ibidem, p.185. 13

    idem, ibidem, p.182 e 186. 14

    W.F.OTTO. Essais sur le mythe, p.27.

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    Segundo Chantraine, quando utilizado no plural, epea significa a poesia pica em oposio poesia lrica15. Mas, nesse caso, j teria se operado uma mudana no significado do termo no sentido de transform-lo em algo mais especfico. Segundo Calame, Herdoto foi o responsvel por essa transformao. O historiador antigo faz dois usos diferentes do termo: um designando palavra e o outro, justamente, quando empregado no plural, referindo-se poesia pica16. Ainda para Calame17, ser justamente essa definio mais especfica do termo que dar espao para que logos ocupe as funes antes designadas por epos: enunciado, discurso, discusso, e tambm profecia.

    Atravs do testemunho fornecido pelos textos antigos, parece-nos que ser sobretudo com o termo logos que mythos estar diretamente relacionado na Antigidade grega. Vernant18 quem nos afirma que, ao menos at o sculo VIII a.C., mythos estava diretamente associado ao logos, termos de valores semnticos semelhantes, relacionando-se com o que dito. Nesse mesmo sentido, Calame19 afirma que mythos significa o discurso argumentado, o discurso eficaz, a palavra de autoridade, a narrativa argumentada; o termo logos seria empregado em sentido anlogo, mesmo se seu uso refere-se mais ao contedo do discurso do que ao seu efeito, como parece transparecer em mythos. Assim, podemos afirmar que mythos e logos apresentavam significados intercambiveis. A prova dessa troca mtua est nos prprios textos da Antigidade, como podemos ver na obra de Herdoto ou Plato: Herdoto emprega com toda tranqilidade logos, onde Protgoras e Scrates disseram mythos. Mesmo Plato considerava a ambos como a mesma parte da arte das musas20.

    Todavia, Walter F. Otto chama a ateno para o fato de que mesmo se os termos paream estar, por vezes, estreitamente ligados, mythos e logos teriam sentido bem diferentes.

    A partir de um dado momento, o termo logos, sem abandonar o que seria seu significado original, teria delimitado melhor seu campo semntico. A palavra ganha qualificao e, na verdade, transforma-se, passando a exercer uma hegemonia em relao ao

    15

    P.CHANTRAINE. Dictionnaire tymologique de la langue grecque, p.362. 16

    C.CALAME. Mythe et rite en Grce : des catgories indignes ? in: Revue Kernos, p.186-7. 17

    idem, ibidem, p.187. 18

    J.P.VERNANT. Razes do mito in: J.P.VERNANT. Mito e sociedade na Grcia Antiga, p.172. 19

    C.CALAME. Du muthos des anciens grecs au mythe des anthropologues in : Revue Europe, p.11. 20

    K.KERNYI. La religion antigua, p.26.

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    mythos. Trata-se agora da palavra verdadeira, lgica, racional enquanto mythos, aos poucos, passou a significar algo fabuloso.

    Otto prope praticamente a inverso dessa contraposio. Para o pesquisador alemo, o sentido original de logos o de triagem, e por conseqncia da ateno, da precauo; somente depois que se passa ao sentido secundrio de juntar e de recolher21. Assim sendo, o pensador afirma que, em Homero, logos a palavra maduramente refletida, j que visa a convencer. o discurso justo, e, por isso, vlido em um determinado contexto e a partir de determinadas pressuposies. Portanto, opondo-se verdade que vale em si e por si s, independente de pressuposies e contextos22. J mythos seria o real, a palavra que ensina sobre a realidade ou que constata algo que, uma vez proferido, s pode tornar-se real. Palavra verdadeira, discurso que vale absolutamente, o discurso do que , so significados que fazem de mythos o termo adequado para falar de coisas divinas, que no tm necessidade de provas, mas so imediatamente dadas ou reveladas23.

    Na Odissia, a deusa Atenas, ao falar de Calipso, afirma que ela o [Ulisses] encanta com doces e agradveis palavras, a fim que ele perca a lembrana de taca24. Homero emprega o termo logos como expresso do discurso enganoso de Calipso. Essa passagem homrica foi apontada por Calame25 como paradoxal, nico exemplo em que o termo logos aparece justamente significando aquilo que depois estaria mais prximo do sentido de mythos. No entanto, se levarmos em considerao a compreenso de Otto, ela nada tem de paradoxal. Trata-se da palavra refletida, pensada, que serve para convencer, que usada por Calipso. Portanto, trata-se do logos.

    Somente entre os sculos oitavo e quarto, segundo Vernant, iniciou-se um longo processo de modificao dos significados dos dois termos. Para Vernant, uma srie de distanciamentos foi produzida para que o universo mental grego passasse a encarar como natural a separao entre os dois termos antes confundidos26. Todavia, se considerarmos o pensamento de Otto, como vimos, os termos j estavam em campos opostos desde Homero. Os novos sentidos que mythos e logos assumem, segundo Otto, so decorrentes de seus sentidos originais. Ser justamente porque logos a palavra pensada, refletida, usada para

    21

    W.F.OTTO. Essais sur le mythe, p.26-7. 22

    idem, ibidem, p.26 e 66. 23

    idem, ibidem, p.66. 24

    HOMERO. Odissia, canto I, v.56 e ss. 25

    C.CALAME. Mythe et rite en Grce : des catgories indignes ? in: Revue Kernos, p.185. 26

    J.P.VERNANT. Razes do mito in: J.P.VERNANT. Mito e sociedade na Grcia Antiga, p.172.

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    convencer que ela ter seu lugar garantido na histria do pensamento grego, referindo-se ao lgico. Enquanto mythos, que limitava-se a contar as histrias originais, ter o seu sentido totalmente invertido na medida em que as verdades divinas so postas em questo.

    No s novos significados eram consolidados, mas tambm novas formas de registro. Com a fixao dos mitos pela escrita comea-se a operar uma profunda modificao no modo de entender as narrativas antigas. A atividade hermenutica desenvolvida pelos primeiros pensadores, seja para criticar ou defender a tradio, foi possibilitada, sem dvida, por essa nova forma de ter acesso s narrativas que a escrita proporcionou. Essa nova forma de registro coloca em xeque a prpria dinmica oral. O ato de fixao dos mitos em um suporte escrito acarreta a imediata eliminao de elementos fundamentais para o mito como a recitao e o auditrio. O mito escrito se transforma em um ato solitrio de leitura, acabando tambm com a dimenso social que o escutar um aedo proporcionava.

    A primeira pergunta que surge diante da escrita dos mitos se essa tradio, cuja dinmica fundamental se dava atravs da oralidade o que inclua todas as possveis variaes e transformaes das narrativas , continua sendo a mesma aps seu congelamento em um nico suporte: h na proximidade do mito com a escrita como que uma violncia inevitvel cuja vtima ser uma palavra original, sagrada por natureza e condenada fixao por uma ordem profana27.

    No mesmo sentido, Vernant se pergunta se temos o direito de classificar numa nica e mesma categoria as narrativas orais e os textos escritos dessas narrativas: a redao em prosa no constitui somente, em relao tradio oral e s criaes poticas, um outro modo de expresso, e sim uma nova forma de pensamento28. Ou seja, aquelas narrativas mticas que eram transmitidas pela cultura oral, ganham o rigor da escrita. O falar forado a adequar-se escrita:

    dessas coletneas de narrativas, justapostas, ou mais ou menos coordenadas diligncia dos mitgrafos, preciso diferenciar o que, no caso grego, constitui no mais mitos e sim uma mitologia, isto , um conjunto narrativo unificado que representa, pela extenso de seu campo e por sua coerncia interna, um sistema

    27

    M.DETIENNE. Dictionnaire des Mythologies et des religions des socits traditionnelles et du monde antique, p.141. 28

    J.P.VERNANT. Razes do mito in: J.P.VERNANT. Mito e sociedade na Grcia Antiga, p.172.

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    de pensamento original, to complexo e rigoroso sua maneira quanto pode ser, num registro diferente, a construo de um filsofo29.

    A transformao do mito em mitologia modifica aquilo que era transmitido oralmente.

    Plato teria sido o primeiro a fazer uso da palavra mitologia, apesar do verbo mitologizar j estar presente em Homero30. Detienne nos lembra que, na Odissia, Ulisses interrompe a narrativa de sua prpria saga para se questionar do porqu de retornar histria de ontem, por que mitologizar. Ou seja, o verbo aqui pode ser traduzido por recontar: um bom aedo no aceita mitologizar. Como se, no vocabulrio dos cantores profissionais, o verbo mythologeein j designasse aquilo que diversas vezes Plato apontar na tradio da boca e do ouvido: seu carter de repetio, desde os antigos at ns31.

    Se antes a mitologia pode ser associada quilo que se repete, tal como se dava com o mito na tradio oral, parece-nos, no entanto, que ela assumir ao menos dois novos significados: reunio de mitos e um falar sobre os mitos.

    Ao longo do sculo V, ns vemos a intensa ao dos loggrafos. Hecateu de Mileto, Acusilau de Argos, Helnico de Lesbos, Fercides de Atenas, entre outros, no s reuniam o que os poetas tinham cantado como tambm confrontavam as diferentes verses das narrativas. Vernant nos lembra o fato de que ao organizarem suas narrativas seguindo uma ordem genealgica, onde cada gerao, com suas aventuras e feitos que lhe so prprios, vem continuar aquela que a precedeu32, em um esforo para mostrar a continuidade de uma tradio de narrativas, os loggrafos acabam dando aos mythoi um novo estatuto. O mythos assim deslocado de seu contexto, no mais obra de um poeta, no mais cantado e transmitido oralmente, dirigindo-se diretamente ao auditrio presente. A distncia criada, atravs da escrita, entre o mito e sua prtica narrativa possibilita o

    29

    idem, ibidem, p.182. 30

    M.DETIENNE. A inveno da mitologia, p.152. 31

    idem, ibidem, p.157. 32

    J.P.VERNANT. Frontires du mythe in : S.GEORGOUDI e J.P.VERNANT (org). Mythes grecs au figur, p.33-4.

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    enfrentamento das vrias histrias. Descontextualizado, o mythos comea a ser interpretado e criticado33.

    Considerado por alguns como fundador de uma nova racionalidade, como o primeiro historiador grego e, por outros, como um simples mitlogo, contador de histrias, Hecateu de Mileto narra escrevendo e escreve narrando34. Sua obra, As Histrias, diz respeito poca mtica e herica e representa, segundo Sad35, a primeira tentativa de seleo e de sistematizao em prosa das tradies mticas com esprito crtico. Hecateu teria decidido escrever aquilo que lhe parecia verdadeiro diante das narrativas absurdas dos antigos. Para Sad, apesar de no excluir o fabuloso de suas narrativas, estaria presente em Hecateu um esforo para racionalizar o mito.

    Contudo, os loggrafos so acusados, eles tambm, de confundir as pessoas; tal como os poetas, suas narrativas serviriam para o prazer do auditrio e no estariam voltadas para o saber e a utilidade das geraes futuras36. A tentativa de contar uma histria, seguindo uma linha genealgica, fez com que os loggrafos misturassem os acontecimentos do passado longnquo com a realidade de seu prprio presente. Todavia, essa confuso pode ser considerada como um reflexo de uma vivncia temporal tpica dos antigos, afinal, como nos diz Vernant,

    entre o tempo mtico dos primeiros reis legendrios de Atenas [...] e o tempo medido, controlado, datado no qual se joga o destino das cidades, no havia para os Antigos essa diferena de plano que faz, para ns, sua incompatibilidade. Trata-se sempre do mesmo tempo. O tempo das origens no pensado como um outro tempo, aquele do mito; ele constitui somente um tempo mais obscuro, cujos contornos so confundidos em um passado distante e que tornou-se impossvel investigar com a preciso e a exatido do olhar histrico37.

    33

    Tendo em vista o sentido que se desenha para o logos, nos parece curioso o fato de que essas pessoas encarregadas de dar um certo sentido tradio sejam chamadas de loggrafos. No entanto, se levarmos em considerao que trata-se talvez do incio de uma mitologia, faz todo sentido nomear aqueles, de uma certa maneira, responsveis por pensar e refletir sobre a tradio, de loggrafos, tendo em vista, evidentemente o sentido de logos trabalhado por Otto. 34

    M.DETIENNE. A inveno da mitologia, p.133. 35

    S.SAD. Approches de la mythologie grecque, p.57-8. 36

    J.P.VERNANT. Frontires du mythe in : S.GEORGOUDI e J.P.VERNANT (org). Mythes grecs au figur, p.32. 37

    idem, ibidem, p.35.

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    No entanto, essa ausncia de ruptura entre o passado e o presente ser considerada como o ponto de separao entre os loggrafos e os historiadores posteriores. O mythos deixa de ser a palavra que narra aquilo que realmente se deu para se transformar em marcas de um passado obscuro, enquanto a histria portadora de regras estritas que delimitam seu campo.

    Nesse processo de consolidao de um novo significado para mythos, os sculos VI e V antes de nossa era testemunharam o surgimento de crticos realmente severos: Pndaro, Xenfanes, Herdoto, Tucdides, para citarmos somente alguns nomes. Tradio ruim, fico, iluso, absurdo so inmeras as palavras de excluso em relao ao mito38.

    Como a narrativa mtica fazia uso do ritmo, da musicalidade, da forma mtrica, dos gestos, enfim, de toda a emoo e dramaticidade que pode assumir o discurso falado, era considerada como uma forma de dizer que encantava os ouvintes. O discurso que o logos assumia, ao contrrio, era de uma demonstrao argumentada, da ordem do inteligvel e que perdia, nesse sentido, a ordem do emocionante e do dramtico39. Uma primeira distino ento se apresentava: enquanto o mythos interessava o pblico pelo encantamento que exercia, o logos queria prender a ateno das pessoas pelo encadeamento de argumentos.

    Pndaro teria sido o primeiro a atribuir um valor negativo a mythos reservando ao logos a expresso da verdade40. O poeta grego distinguia, entre as narrativas presentes na tradio, aquelas que eram importantes, que deveriam permanecer, daquelas que deveriam ser rejeitadas. A diferena residia entre os mythoi, discursos que enganavam os homens graas s artimanhas da arte potica, e os altheis logoi, o discurso verdico41. Para Detienne, Pndaro sobrecarrega os mitos com tudo que , para ele, objeto de escndalo na tradio e na memria dos gregos. O mito designa em Pndaro a narrativa tradicional ruim; a insgna do fictcio, do ilusrio que deve ser afastada, suprimida do conjunto de testemunhos confiveis42.

    No entanto, ao contrrio do que se poderia pensar, ainda no veremos a oposio entre o ficcional e a verdade entendida como adequao realidade. A questo da verdade segue outros critrios. Segundo Calame, o

    38

    M.DETIENNE. A Inveno da Mitologia, p.17. 39

    J.P.VERNANT. Razes do mito in: J.P.VERNANT. Mito e sociedade na Grcia Antiga, p.175. 40

    C.CALAME. Mythe et rite en Grce: des catgories indignes ? in: Revue Kernos, p.189. 41

    idem, ibidem. 42

    M.DETIENNE. A inveno da mitologia, p.97.

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    critrio de distino se apia em uma concepo muito particular de verdade; ela no faz referncia a um inverossmil que se fundaria sobre a confrontao do contedo da narrativa com a realidade e sobre sua adequao com um referente extra-lingustico. O critrio de verossimilhana de ordem tica: verdadeiro o que corresponde a certas regras de comportamento. O estabelecimento da verdade repousa assim sobre o julgamento de ordem moral43.

    Encontramos esse mesmo critrio de excluso do mito pelo seu carter imoral tambm presente em Herdoto. Como nos diz Calame44, para o historiador, no h diferena qualitativa entre os acontecimentos que pertencem, para ns, lenda ou histria. O critrio determinante o da decncia. Com isso, apesar de rejeitar os mythoi, eles no esto totalmente ausentes de suas Histrias. De maneira que seu logos pode corresponder a uma fbula45. Sem dvida, o autor das narrativas sobre a invaso persa na Grcia trabalha com a memria, contudo essas memrias j estavam presentes na sociedade. Por relatar aquilo que viu e ouviu, o historiador parece reafirmar o que j era memorvel, narrativas que j eram contadas. Segundo Calame, Herdoto chega a colocar em dvida a realidade do fato, mas ele no busca restabelecer a verdade:

    a altheia, a verdade, no o apangio do historiador-investigador que no a reivindica. A verdade de fato o domnio reservado aos deuses, os nicos oniscientes; o homem deve se contentar com o verossmil. Mas que a narrativa seja verdadeira, verossmil, ou mentirosa, nos encontramos regularmente com Herdoto no domnio do logos e do lgein46.

    O termo mythos empregado apenas duas vezes nos nove livros de Histrias: no menos do que nos poemas de Pndaro, nas investigaes de Herdoto o mito tambm no objeto; apenas um simples resto, s vezes rumor excitado, palavra de iluso, seduo enganadora, s vezes narrativa incrvel, discurso absurdo, opinio sem fundamento47. Apesar de podermos observar ainda significados intercambiveis dos dois termos em

    43

    C.CALAME. Mythe et rite en Grce : des catgories indignes ? in : Revue Kernos, p.190. 44

    idem, ibidem. 45

    idem, ibidem, p.189. 46

    idem. Mythe et histoire dans lantiquit grecque, p.30. 47

    M.DETIENNE. A inveno da mitologia, p.101-02.

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    relao forma de narrar suas histrias, nas duas passagens em que Herdoto se refere expressamente ao mythos para conden-lo como palavra inverossmil.

    Tambm denunciando o carter imoral das antigas histrias que atribuam aos deuses aes como adultrio, mentira e roubo, Xenfanes veio a ser um grande crtico da tradio. O filsofo pr-socrtico viu as antigas narrativas como algo a ser definitivamente arrancado da cidade para que existisse bom governo, para que o corpo poltico da plis no fosse ameaado48.

    As crticas de Xenfanes no se restringem somente ao questionamento moral, a utilidade teria se tornado, segundo Calame, o ncleo central na condenao dos mythoi. Se os mitos so objeto de uma rejeio, no por razes de inverossimilhana teolgica, mas nesse caso, porque eles so julgados segundo um critrio social de utilidade no quadro da cidade49. Ao centrar-se nas caractersticas morais e utilitrias para condenar as narrativas, tambm no escapa de suas denncias o aspecto antropomrfico do mito: alis, se os bois, os cavalos e os lees tivessem mos, ou fossem capazes de pintar e de executar com as suas prprias mos obras de arte como os homens, os cavalos pintariam imagens de deuses e moldariam esttuas semelhantes a cavalos, e os bois pint-las-iam e mold-las-iam semelhantes a bois50.

    As crticas contundentes de Xenfanes teriam contribudo para que os poetas perdessem o privilgio de serem os transmissores do saber. Para o pensador grego, Homero e Hesodo foram seus principais adversrios j que, mesmo mortos h longo tempo, graas ao dos rapsodos, os poetas ainda no estavam calados51. Segundo Svenbro, o ataque de Xenfanes contra Homero e Hesodo colocava em questo toda a instituio graas qual os poetas ainda cantavam: Xenfanes no considerou os cantos homricos do ponto de vista formal: para ele, a tradio perpetuada pelos rapsodos era, antes de mais nada, um sistema de doutrinamento52, pois os jovens eram educados ouvindo Homero.

    Contudo, Detienne afirma que tambm em Xenfanes no h claramente estabelecida uma distncia entre o seu prprio logos e o que seria mythos. A diferena entre ele e Hecateu, por exemplo, onde tambm encontramos essa mistura, seria que o saber do

    48

    idem, ibidem, p.124. 49

    C.CALAME. Mythe et rite en Grce : des catgories indignes ? in : Revue Kernos, p.188. 50

    XENFANES. Fragmento 15 das Stiras in: Os pr-socrticos, p.64. 51

    J.SVENBRO. La parole et le marbre, p.77. 52

    idem, ibidem, p.82-3.

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    filsofo o autoriza a excomungar a memria dos outros53. Essa afirmao nos parece paradoxal. Por um lado ainda no encontramos totalmente delimitadas as fronteiras entre logos e mythos, mas por outro, somos levados a pensar que existe algo no pensamento filosfico que o diferencia e lhe d maior credibilidade frente s narrativas tradicionais. Esse algo pode ser atribudo a um tipo de discurso, diferente dos mythoi, caracterstico da filosofia? Assim sendo, o discurso filosfico seria identificado como o domnio prprio do novo sentido atribudo ao logos.

    Segundo Vegetti54, a perda da crena no mito e, poderamos acrescentar, a concomitante mudana em seu significado se d pelo embate com o pensamento poltico-filosfico. Nesse sentido, Vegetti, de uma certa maneira, v uma mudana de pensamento. Algo que totalmente descartado por Calame. No prlogo da Teogonia, as Musas dizem ao poeta: ns sabemos dizer mentiras que parecem verdades. Ns sabemos, quando queremos, dizer voz clara as verdades55. A partir de Hesodo, segundo Calame56, toda narrativa pode tornar-se mentira. O poeta inspirado pelas musas e essa inspirao parece atribuir s suas falas um carter de verdade. No entanto, as Musas podem dizer tambm palavras enganosas. Logo, o questionamento em relao verdade no seria mrito da filosofia. Alm disso, como dissemos antes, a verdade colocada em questo, pelos primeiros pensadores, sobretudo por critrios relacionados moral. Portanto, as crticas morais, que, segundo o pensador francs57, j se encontravam presentes desde as primeiras manifestaes poticas na Grcia, no configurariam o incio de um novo pensamento filosfico.

    Finalmente, Tucdides tornou-se um marco na histria do enfretamento entre mythos e logos ao ser o primeiro a colocar de lado a questo moral. O historiador antigo atacar os poetas e tambm os loggrafos no pelo carter imoral, mas pela insuficincia de provas. Nesse sentido, Tucdides teria institudo uma ntida fronteira entre mito e histria58. Segundo Detienne, antes do historiador, existiam trs modos de narrar: a das pessoas que gostam de contar velhas histrias e divulgar novas; os narradores da tradio, ou seja, os loggrafos; e, finalmente, uma maneira de contar que se situa entre a recitao e a escrita,

    53

    M.DETIENNE. A inveno da mitologia, p.142. 54

    M.VEGETTI. Tornar-se homem in: J.P.VERNANT (dir.). O homem grego, p.249. 55

    HESODO. Teogonia, v.29 e ss. 56

    C.CALAME. Mythe et rite en Grce : des catgories indignes ? in : Revue Kernos, p.186. 57

    idem, Du muthos des anciens grecs au mythe des anthropologues in : Revue Europe, p.14-5. 58

    J.P.VERNANT. Frontires du mythe in : S.GEORGOUDI e J.P.VERNANT (org). Mythes grecs au figur, p.31.

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    que seria a forma de Herdoto narrar suas histrias59. J no discurso de Tucdides, encontra-se uma recusa do maravilhoso, da palavra que traz emoo, em favor de uma preocupao com a clareza dos enunciados; da em diante se operava uma ruptura entre logos e mythos que obrigava a escolha por um dos dois termos agora tornados incompatveis: compreender tornou-se uma forma de inteligibilidade que o mythos no comporta, sendo o discurso explicativo o nico a possu-la60. Essa nova forma de inteligibilidade, de discurso explicativo, est relacionada aos indcios e provas. Como o prprio Vernant afirma, a excluso dos mythoi parece se basear, sobretudo, na impossibilidade de abordar o passado, que est extremamente distante, com parmetros histricos vlidos. Logo, os mythoi tornam-se obscuros e escapam do pensamento positivo61. Portanto, os mythoi so excludos porque no so verificveis, diferentemente do discurso inaugurado por Tucdides.

    O historiador tenta determinar, finalmente, as fronteiras do mythos: a se considerar apenas suas [do mythos] ocorrncias, temos o mesmo regime de escassez j verificado nas Histrias. Mas, ao uso acidental e negligente de Herdoto, Tucdides ope, com a mesma economia, uma conceitualizao cuja eficcia, nesse campo, deve-se a seu projeto de nova histria62. O novo mtodo de Tucdides exclui tanto Hecateu de Mileto quanto Herdoto como praticantes da investigao histrica. O historiador acreditava que o trabalho escrito, confrontando indcios e provas, deve substituir o da tradio oral63. Com isso, inaugura-se uma poltica da memria, com a qual a Histria da Guerra do Peloponeso est alm do mito, decretando o fim da atividade da memria relacionada com uma memria antiga64. Afinal, o historiador do final do sculo V deseja a pena mxima, pretende proceder ao cerceamento de todo pensamento suspeito de conluio com o que se chama de mitoso65. E a pena mxima veio para os poetas, ao menos nos registros literrios: Digenes de Larcio contava, em meados do sculo VI, como Pitgoras viu, em uma descida ao inferno, as torturas sofridas por Homero e Hesodo para pagarem as injrias ditas em relao aos deuses: Hiernimos diz que Pitgoras, descido ao Hades, viu a alma de Hesodo ligada,

    59

    M.DETIENNE. A inveno da mitologia, p.110. 60

    J.P.VERNANT. Razes do mito in: J.P.VERNANT. Mito e sociedade na Grcia Antiga, p.177. 61

    idem, Frontires du mythe in : S.GEORGOUDI e J.P.VERNANT (org). Mythes grecs au figur, p.34. 62

    M.DETIENNE. A inveno da mitologia, p.102-3. 63

    C.CALAME. Mythe et histoire dans lantiquit grecque, p.38. 64

    M.DETIENNE. A inveno da mitologia, p.142. 65

    idem, ibidem, p.102.

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    uivante, a uma coluna de bronze, e a de Homero suspensa em uma rvore, com serpentes em torno dela, em punio por aquilo que eles tinham dito dos deuses66.

    No entanto, segundo Sad67, os maiores e mais sistemticos ataques contra a tradio ainda estavam por vir. Plato, na Repblica, condena os mitos em nome da verdade. Tambm no Protgoras encontramos mythos contraposto ao logos, sendo diretamente associado a uma forma simples de narrao, sem disponibilizar provas. Apesar do logos se apresentar tambm como narrao ou discurso, deveria se basear essencialmente no argumentar e no provar68. Portanto, atribui-se a Plato a ruptura definitiva entre, de um lado, o mythos, como algo incerto, contestvel, ficcional e, de outro, o logos como um discurso baseado na argumentao.

    Discordando desse posicionamento, Calame afirma que preciso atenuar essa oposio tradicionalmente atribuda ao filsofo. Pois Plato faz uso freqente dos mitos, mostrando em vrios dilogos a convenincia em substituir os logoi pelos mythoi, j que esses ltimos tm uma eficcia argumentativa e persuasiva maiores que os primeiros69:

    quando no Grgias ou no Timeu, divide-se entre a fico do mythos e a verdade do logos (plastheis mythos/althins logos), para escolher o mito; posto como mito dos Infernos ou mito de Atlntida, a servio da demonstrao filosfica, o mythos torna-se nesse momento logos70!

    Contudo, Detienne justifica o fato de Plato ter recorrido aos seus prprios mythoi devido crise da cidade e de seu sistema de valores, que fez com que o filsofo se visse obrigado a evocar os costumes e os ancestrais71. O filsofo teria ento, de alguma maneira, aceito e repensado os mythoi por conta de uma eficcia persuasiva maior que a do logos.

    Ao que nos parece, para Calame, pouco importa se o uso dos mythoi se justifica ou no. O fato que Plato utiliza-os para expor sua filosofia. Alm do mais, segundo o pensador francs, mesmo denunciando as narrativas como fices escandalosas, Plato no ter a verdade como critrio fundamental de rejeio da tradio mtica:

    66

    DIOGENES DE LAERCIO. Vida e doutrinas dos filsofos ilustres, p.233. 67

    S.SAD. Approches de la mythologie grecque, p.73. 68

    K.KERNYI. La religion antigua, p.26. 69

    C.CALAME. Du muthos des anciens grecs au mythe des anthropologues in : Revue Europe, p.13. 70

    idem, Mythe et histoire dans lantiquit grecque, p.27. 71

    M.DETIENNE. A inveno da mitologia, p.155.

  • 25

    as narrativas so nefastas porque do divindade uma imagem que no correspondem sua essncia: o Bem. [...] Submetendo-os censura: somente suas belas narrativas sero retidas. [...] Existem assim coisas que no so boas para serem narradas e ser o papel dos fundadores da cidade de fazer com que as narrativas susceptveis de conduzir virtude cheguem s orelhas dos jovens72.

    Mais uma vez o carter de utilidade ser considerado para se medir a validade das narrativas tradicionais. Utilidade no sentido de construir a cidade, ajudando na educao dos jovens. Assim, tanto os mythoi inverificveis quanto os logoi argumentados sero utilizados na educao, pouco importa se so verdadeiros ou no73.

    Calame nos lembra mais uma passagem em que a questo do belo e do bom estar relacionada ao mito. No dilogo Hppias Maior, Scrates enumera as coisas que exercem encanto sobre as pessoas, entre elas esto a msica, os discursos (lgoi) e as narrativas ficcionais (mythologiai) : todas essas manifestaes de beleza, tocam nosso olhar ou nossa orelha, provocando uma sensao de doura e de prazer74.

    O prazer tambm estar relacionado ao mito em Aristteles. Contudo, diferentemente de Plato onde o prazer til se refere ao bom , em Aristteles, a arte trgica da qual o mito faz parte expurga sentimentos perturbadores. Aqui o mito no encanta o ouvinte, e sim mexe com seus sentimentos.

    Na Potica, Aristteles nos fornece uma definio mais precisa do mito. No entanto, essa definio no corresponde e nem mesmo vai ao encontro das demais vistas aqui. O mito se torna narrativa artstica e fabricada: manifesto que a misso do poeta consiste mais em fabricar mitos do que fazer versos, visto que ele poeta pela imitao, e porque imita as aes75. Para Calame, o filsofo nos decepciona ao dar ao termo um emprego to especfico quanto tcnico: o mito aristotlico no nada mais na Potica que histria contada, a intriga de uma narrativa e em particular aquela da narrativa dramtica da tragdia: compor mitos ou mythoi e logoi se revela finalmente o fundamento da atividade

    72

    C.CALAME. Mythe et rite en Grce : des catgories indignes ? in : Revue Kernos, p.192. 73

    Segundo Calame, existe somente uma nica passagem em Plato (Protgoras, 324d) em que a lenda designada como mythos para ser oposta ao logos compreendido como discurso filosfico fundado sobre a argumentao; mas um e outro so colocados a servio da demonstrao sobre a essncia da virtude. Cf. CALAME. Mythe et rite en Grce : des catgories indignes ? in : Revue Kernos, p.193. 74

    C.CALAME. Potique des mythes dans la Grce antique, p.42. 75

    ARISTTELES. Potica, captulo IX, 9.

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    potica76. O que significa que o mythos assume o papel de uma construo organizada e no de uma histria contada: o mito, ento, objeto de inveno, mas sobre um fundo de histrias fornecidas pela tradio das quais os poetas ou registram qualquer uma, ou selecionam as referentes a algumas famlias. Histrias que s se tornam verdadeiros mitos, de acordo com a Potica77, depois de transformadas em tragdias78. Ainda em Aristteles, segundo Calame, o logos s engloba o mythos sem que o fictcio possa servir como critrio de distino. Da intriga da narrativa no faz parte a questo da verdade.

    Assim sendo, temos de Xenfanes a Aristteles uma compreenso do mito que no passa pela questo da verdade como adequao aos fatos, exceo seja feita somente a Tucdides. Diferentemente do que o mito se transformou muito posteriormente, a oposio entre o ficcional, como gnero narrativo, e a verdade no se estabelece claramente. Mesmo se encontramos em alguns autores a condenao do mito em nome da verdade, essa verdade, como vimos, ser estabelecida a partir de outros critrios. Para serem consideradas verdadeiras as narrativas precisavam ser teis na formao e educao dos jovens e fornecer exemplos morais a serem seguidos.

    Sem dvida, a questo da imoralidade presente nas narrativas era um argumento bem sucedido na condenao dos mitos. Como aceitar deuses sujeitos a cimes, traies e vinganas? Para os chamados apologistas de Homero e Hesodo era necessrio dar uma explicao a essas aes indevidas.

    Na tentativa de defender as antigas narrativas, autores como Tegenes de Rgio, Metrodoro de Lampsaco e Evmero propem a interpretao alegrica dos mitos. Assim sendo, o texto no poderia ser entendido pelo seu carter literal, era preciso buscar o verdadeiro significado da sua mensagem por detrs daquelas aes indignas atribudas aos deuses: para entregar sua verdade o mito deveria, portanto, cessar de ser ele mesmo e se revelar, sob seu disfarce fabuloso, conhecimento da natureza, tica, filosofia, saber histrico79.

    76

    C.CALAME. Mythe et histoire dans lantiquit grecque, p.25-6. 77

    Detienne faz a ressalva que essa compreenso do mito est presente sobretudo na Potica, pois encontramos outros significados para os mythoi na obra de Aristteles (cf. A Inveno da mitologia, p. 230). Como, por exemplo, na Metafsica, Aristteles afirma: o amor dos mitos , de alguma maneira, amor da sabedoria, pois o mito uma reunio do maravilhoso (982b 15-20). 78

    M.DETIENNE. A inveno da mitologia, p.229-30. 79

    J.P.VERNANT. Frontires du mythe in : S.GEORGOUDI e J.P.VERNANT (org). Mythes grecs au figur, p.27.

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    Contemporneo de Xenfanes e tentando fazer frente s suas crticas, Tegenes de Rgio considerado um dos primeiros apologistas da Ilada. Fazendo uso da interpretao alegrica, Tegenes afirmava que o que vemos nas narrativas homricas uma maneira de exprimir a oposio entre elementos fundamentais reconhecidos pela filosofia da natureza: entre o seco e o mido, entre o quente e o frio80. Assim Tegenes fundador da primeira forma de alegoria, a fsica.

    Metrodoro de Lampsaco, que foi discpulo de Anaxgoras, tambm recorre interpretao alegrica. O pensador identifica os heris da Ilada a substncias da natureza. Assim, Aquiles representaria o sol e Agammnon, o ter/ar. J os deuses seriam rgos do corpo humano. Demter associada ao fgado, Dioniso ao bao e Apolo blis. Metrodoro transformou a poesia homrica em uma traduo alegrica de suas prprias teorias cientficas81.

    No comeo da poca helenista, Evmero prope o mesmo tipo de explicao alegrica para os mitos. Existiria um significado escondido que deveria ser pesquisado e que tornaria aceitveis aquelas histrias absurdas. Assim, Zeus era um rei poderoso, que derrubou o pai, que governou, gerou filhos e morreu em Creta mostrava-se, afinal, o seu tmulo; Dioniso descobriu o vinho, Demter a agricultura, Hefestos o trabalho dos metais, os seus dons persistem ainda, sem que por isso os doadores tivessem de ser imortais82. Trata-se, no caso de Evmero, da chamada alegoria histrica, quando a verdade apresentada como um conjunto de acontecimentos humanos divinizados.

    Seja qual for o tipo da explicao alegrica, Tegenes foi o primeiro a fazer uso desse recurso que permite a redeno da mitologia tanto do ponto de vista racional quanto moral. O mito torna-se novamente portador de uma verdade. Contudo, agora trata-se de uma verdade oculta, e, na realidade, fora do mito. Para ser aceito, o mito forado a dizer algo diferente daquilo que realmente diz. Quando se fala na defesa feita dos textos homricos, Tegenes referncia unnime, j que a partir dele at o fim da Antigidade, todas as escolas filosficas que pretendiam salvar os mitos, recorreram interpretao alegrica83.

    80

    M.DETIENNE. A inveno da mitologia, p.126. 81

    S.SAD. Approches de la mythologie de la Grce, p.75-6. 82

    W.BURKERT. Mito e mitologia, p. 61. Segundo Burkert, o everismo, apesar de no poder ser levado a srio como teoria da mitologia, conservou certo fascnio. 83

    S.SAD. Approches de la mythologie grecque, p.74.

  • 28

    Vimos que os loggrafos deram incio a um longo trabalho de fixao da tradio no s recolhendo as antigas narrativas como tambm confrontando diferentes verses. Com os loggrafos comea a surgir uma mitologia. E se, em um primeiro momento, essa

    mitologia tem como objetivo a reunio das antigas narrativas, em um momento posterior, desenvolve-se um pensar e um questionar o mito. Nesse caso, a atividade hermenutica se far presente tanto quando o mito acusado de imoral ou intil quanto na interpretao alegrica: os gregos no somente criaram uma mitologia, ou seja, reuniram e organizaram em sistema uma srie de narrativas mticas. Eles tambm inventaram a mitologia no sentido de cincia dos mitos [...]. E os modernos, sem o dizer ou mesmo saber, s fazem retomar suas interpretaes84.

    1.2. Quando o mito vira cincia

    Para definir o estatuto dos mitos antigos, nos sculos XVII e XVIII, segundo Starobinsky85, preciso levar em considerao dois domnios: o da cultura (poesia, teatro, pintura, escultura, etc) onde os motivos mitolgicos so utilizados livremente; e o do conjunto de textos histricos, crticos, especulativos que tentam elaborar um saber sobre os mitos, uma cincia dos mitos. No primeiro caso tratava-se da fbula, no segundo da mitologia. Fbula aqui tomada no sentido de fico, de uma construo feita a partir da herana recebida da Antigidade. Extremamente tributria dessa herana, o sentido de fbula acabou confundindo-se com aquele de mito. Para Neschke, at o sculo XVIII, o conceito de mito ser impregnado pelo pensamento de Aristteles: a partir e graas Potica de Aristteles, o mythos enquanto criao potica d a esse termo a significao de fico que, mesmo quando ela apresenta uma realidade possvel, no , no entanto uma narrativa do real. A partir da se desenvolve a idia de que o mito somente fico e, por

    84

    idem, ibidem, p.70. 85

    J.STAROBINSKY. Dictionnaire des Mythologies et des religions des socits traditionnelles et du monde antique, p.390.

  • 29

    isso, no verdadeiro86. Assim, extrai-se uma concluso do pensamento de Aristteles sem que esse posicionamento seja necessariamente o do filsofo87. O mito ganha o sinnimo de fbula, de algo em que no se pode acreditar, algo que afronta a lgica e a razo.

    O mythos tornou-se enfim um gnero literrio, e fico transformou-se na palavra-chave para conceituar o mythos grego traduzido, pelos pesquisadores modernos, simplesmente por mito.

    Enquanto no sculo XVII a hiptese seria que os deuses pagos so o reflexo pluralizado e degenerado do verdadeiro Deus, no sculo XVIII, o mito parece mudar de sentido, tornando-se uma extravagncia dos antigos88. Entre as obras que exerceram grande influncia sobre os pensadores do sculo esto Murs des sauvages amriquains compares aux murs des premiers temps, do padre jusuta Joseph-Franois Lafitau, publicado em quatro volumes em 1724, e Essai sur l'origine des fables, tambm publicado no mesmo ano, de Bernard le Bouyer de Fontenelle.

    As correntes de pensamento sobre o mito desenvolvidas no sculo XVIII tratam do pensamento primitivo e selvagem presente no incio da humanidade. Forma de pensar que se ope radicalmente quela da razo, do logos. Eis, finalmente, mythos e logos radical e definitivamente opostos e com seus papis invertidos89: continua-se a marcar a distncia que separa as sociedades tradicionais e seu pensamento primitivo de nossas sociedades ocidentais e de nossa racionalidade, o termo mito permanece primeiro um meio de excluir a crena do outro e de condenar tudo o que no obedece s nossas prprias categorias90. Ao que parece uma linha horizontal foi traada e levava do pensamento dos antigos representado pelos seus mythoi ao pensamento evoludo, lgico, racional, do logos; em uma clara tentativa de afirmar a evoluo do pensamento humano. De uma cultura oral civilizao escrita.

    Todavia, o sculo XVIII viu surgir tambm as teorias do filsofo italiano Giambattista Vico e do fillogo alemo Christian Gottlob Heyne.

    86

    A.NESCHKE. Mythe et histoire daprs Aristote in : D.BOUVIER e C.CALAME. Philosophes et historiens anciens face aux mythes, p.116-17. 87

    Neschke afirma que Aristteles no via o mito como algo no verdadeiro (cf. Mythe et histoire daprs Aristote). Nesse mesmo sentido, Calame afirma que o significado de mythos como intriga de uma narrativa independe de sua verdade (cf. Mythe et rite em Grce: des catgories indignes?). 88

    J.STAROBINSKY. Dictionnaire des Mythologies et des religions des socits traditionnelles et du monde antique, p.397. 89

    Se considerarmos o pensamento de W.Otto j exposto neste captulo. 90

    S.SAD. Approches de la mythologie grecque, p.7.

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    Vico, que escreveu Principi di scienza nuova, em 1725, v no mito a primeira sabedoria grega, uma metafsica no racional e abstrata: no incio da civilizao, os primeiros sbios, ingnuos, so poetas no sentido grego do termo, quer dizer, criadores91. Esses poetas foram responsveis, segundo Vico, por transformar as foras da natureza em seres. Assim, o pensador italiano tambm desenvolve uma interpretao alegrica dos mitos.

    Em De causis fabularum seu mythorum veterum physicis, publicado em 1764, Heyne se pergunta pelas causas do mito, entendendo-o como uma tentativa de os homens primitivos explicarem os fenmenos naturais. Heyne, cuja influncia foi bastante vasta, segundo Otto, professava [...] que o mito no era nada mais que a lngua original do povo pr-histrico, que s pde exprimir pelas imagens e alegorias a perturbao que lhe causavam as violentas figuras e formaes do mundo92. Enquanto seus contemporneos tratavam os mitos como fbulas, o fillogo alemo tentava resgatar o sentido original do mito. De acordo com Otto93, atravs de Heyne, pela primeira vez as narrativas mticas ganharam sentido autntico e srio, mesmo considerando-se que ainda se buscava o sentido do mito fora dele, ao trabalhar tambm com uma significao alegrica.

    Em um sculo no qual se acostumou tratar o mito como um erro dos homens das primeiras sociedades, Vico e Heyne propuseram um outro entendimento para o termo. Os dois pensadores, segundo Calame, podem ser considerados os pais fundadores da noo moderna de mito. Enquanto Fontenelle e Lafitau se referiam s antigas narrativas como fbulas, Vico e Heyne as nomearam com a prpria palavra grega, mythos. A ruptura no ficou somente no nvel da nomeao, essas narrativas passaram de histria dos erros do esprito humano para uma primeira maneira de filosofar sobre a natureza das coisas94. Com Vico e Heyne encontramos um esforo para transformar o mito em um modo de pensamento.

    Contudo, essa maneira de entender o mito como um sistema de pensamento pode justamente encaminhar a interpretao para terrenos no imaginados originalmente. Calame nos chama a ateno para o fato de que fazer do mito um modo de pensamento particular reproduzir um dos parmetros que distingue sociedades frias e sociedades quentes

    91

    C.CALAME. Potiques des mythes dans la Grce antique, p.24. 92

    W.F.OTTO. Essais sur le mythe, p.8. 93

    idem, ibidem. 94

    C.CALAME. Potiques des mythes dans la Grce antique, p.24-5.

  • 31

    (somente as segundas conhecem a histria), sociedades primitivas e sociedades desenvolvidas, culturas mais prximas da natureza, culturas mais civilizadas; entre esses parmetros figura a oposio entre o oral e escrito, mas tambm aquela entre o mito e a razo95. Otto j nos alertava para o mesmo perigo quando afirmava que o mito nos prende em uma verdade de maneira bem particular, de modo que seria risvel pensar que se trata do resultado de uma maneira de pensar particular ou de uma lgica suscetvel de ser ultrapassada ou substituda por outra96. Sem dvida, ocorreu uma mudana importante na forma de entender o mito. A perspectiva aberta por Vico e Heyne fez com que fbula e mito no fossem mais entendidos como sinnimos. Todavia, ao considerar o mito como uma forma de pensamento, abriu-se caminho para que a cincia do mito do sculo XIX visse no mito uma primeira etapa da histria do pensamento humano. Etapa considerada primitiva, ilgica, ainda no civilizada que, portanto, deveria ser ultrapassada.

    Na tentativa de esquematizar as grandes correntes de estudo em torno do mito, o filsofo alemo Friedrich W. Schelling repartiu em trs grupos as posies filosficas relativas mitologia: as que recusam todo valor de verdade ao mito, as que concedem uma verdade indireta e exterior e as que acordam uma verdade intrnseca e imediata97. O primeiro grupo v no mito uma tentativa de explicao do mundo: nessa perspectiva, a mitologia se apresentava na origem como uma explicao ingnua e antropomrfica das manifestaes naturais98. A influncia de Fontenelle nesse grupo foi marcante.

    O segundo grupo, tambm surgido no sculo XVII, via a mitologia pag como um plgio caricatural das verdades da Revelao judaica ao afirmar que as formas religiosas que parecem distantes procedem de um mesmo ponto de partida, alterada por uma interpretao insensata: nessa perspectiva, o estado primitivo da religio no seria o politesmo, mas um monotesmo que a humanidade teria recebido em depsito; incapaz de mant-la na sua pureza original, ela teria deixado se deformar, se obliterar e dar lugar proliferao dos deuses99.

    A teoria tradicionalista, terceiro grupo, v um estado de perfeio original progressivamente adulterado, sendo de ordem lingstica a causa dessa deformao: a mitologia teria de fato nascido de uma deficincia da linguagem, cujo erro constante a 95

    idem. Du muthos des anciens grecs au mythe des anthropologues in : Revue Europe, p.22. 96

    W.F.OTTO. Essais sur le mythe, p.21. 97

    J.PPIN. Mythe et allgorie, p.33. 98

    idem, ibidem, p.34. 99

    idem, ibidem, p.37.

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    paronmia, geradora de ambigidade100 . A se encontrariam os estudos de Heyne e Max Mller.

    Enquanto no sculo XVIII no podemos encontrar, de fato, uma cincia do mito e sim compilaes que serviam para conhecer as narrativas e apreciar a arte101 e alguns

    estudos isolados, o sculo XIX viu surgir um falar interpretativo sobre o mito que buscou o estatuto de uma cincia da mitologia, um saber que pretende falar dos mitos em geral.

    Nesse momento, o mito faz sua apario como uma aberrao. As diversas obras surgidas nesse sculo trabalharam sobretudo com o conceito de que o pensamento mtico constitui na histria da humanidade um estgio primitivo, distante das autnticas religies monotestas e da razo cientfica102. O mito passa a ser tratado como um objeto de curiosidade e os estudos desenvolvidos so guiados por uma questo central: por que o homem teve necessidade de inventar histrias to absurdas e selvagens sobre seus deuses? De repente, as narrativas mticas, desde sempre conhecidas, passaram a interessar e, ao mesmo tempo, horrorizar os pesquisadores por suas crueldades:

    para despertar tanta emoo, para que todos declarem a uma s voz que estas narrativas so to chocantes e embaraosas, preciso haver uma razo, um motivo, um pretexto. A razo , aos nossos olhos, to estranha que um desvio em direo cincia do mito na segunda metade do sculo XIX nos parece ser fruto da curiosidade erudita ou testemunho de uma estranha atrao pelo grotesco e pelo obsceno103.

    No decorrer de seu trabalho, Detienne parece chegar ao ponto que tanto incomoda os pensadores do sculo XIX e que d carter de urgncia procura de explicaes para as histrias absurdas dos antigos. Mais especificamente dos antigos gregos. O sculo XIX, caracteriza-se tambm por uma idealizao do grego em todos os aspectos, confirmada notadamente pelos pensadores do Romantismo. As antigas histrias gregas tinham se tornado um escndalo porque o homem grego tornou-se smbolo da civilizao europia:

    100

    idem, ibidem, p.40. 101

    S.SAD. Approches de la mythologie grecque, p.79. 102

    J.P.VERNANT. Frontires du mythe in : S.GEORGOUDI e J.P.VERNANT (org). Mythes grecs au figur, p.26. 103

    M.DETIENNE. A inveno da mitologia, p.17.

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    no incio do sculo XIX, o grego no tem mais direito nem ao erro nem s tolices: nascido da terra onde surge a conscincia de si, onde se forma o universo espiritual que ainda hoje o nosso, o homem grego portador da Razo. Quando se passa a suspeitar que o fiador da nova racionalidade fala, em sua mitologia, a linguagem tpica de um esprito temporariamente tomado pela demncia, explode o escndalo104.

    Vrios pensadores vieram salvar a imagem do homem grego, portador da razo, entre eles Friedrich Max Mller, Andrew Lang, Edward Burnett Tylor, Paul Decharme e Adalbert Kuhn105. Apesar de desenvolverem teorias diferentes, todos eles concordavam em um ponto: entender melhor o absurdo das histrias antigas.

    Duas grandes correntes de pensamento surgiram no sculo XIX: a Escola de Mitologia Comparada, liderada por Max Mller e a Escola Antropolgica, comandada por E.B.Tylor.

    A Escola de Mitologia Comparada recorre explicao lingstica para tentar entender o absurdo das narrativas. Segundo Vernant, o trabalho do mitlogo comparatista consiste ento em reencontrar, atravs do labirinto de etimologias, evolues morfolgicas, interferncias semnticas, os valores primeiros que traduziam nas razes da lngua, antes que seu sentido se obliterasse, o contato com a natureza106.

    Para Mller, contemporneo da descoberta da gramtica comparada, teria existido uma fase mitopoitica na histria da linguagem107 que levou o homem a ser vtima de uma produo da linguagem. Segundo Calame, Mller prolonga a crtica de imoralidade presente j desde os primeiros pensadores gregos: pois, se os mitos, na suas incoerncias, podem estar presentes como perverses lingsticas, eles merecem, contudo nossa ateno erudita; eles requerem interpretao108.

    E a interpretao de Mller, baseada na nova filologia, consistia em afirmar que, no incio de sua histria, o homem foi capaz de nomear os objetos percebidos pelo sentido, contudo, o esprito humano no conservou por muito tempo o privilgio de dar uma expresso articulada s concepes da razo. A partir do momento em que a humanidade

    104

    idem, ibidem, p.27. 105

    F.M.MLLER, Lectures on the Science of Language (1864, 2 vols.); A. LANG, Myth, Ritual and Religion (1887, 2 vols.); E.B.TYLOR, Primitive Culture (1871); P.DECHARME, Mythologie de la Grce antique (1884); A.KUHN, Mythologische Stu