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Expressão musical no Barroco: a Retórica e a Teoria dos AfetosBelo Horizonte2005
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MINAS GERAIS
ANDRÉ LUIZ GOMES
Expressão musical no Barroco: a Retórica e a Teoria dos Afetos
Belo Horizonte 2005
( Direitos reservados ao autor )
2
ANDRÉ LUIZ GOMES
Expressão musical no Barroco: a Retórica e a Teoria dos Afetos
Monografia apresentada à Escola de Música da Universidade Estadual de Minas Gerais para obtenção de título de Graduação em Licenciatura em Música.
Orientador: Prof. Ms. Domingos Sávio Lins Brandão
Belo Horizonte 2005
3
FOLHA DE APROVAÇÃO
André Luiz Gomes Expressão musical no Barroco: a Retórica e a Teoria dos Afetos
Monografia apresentada à Escola de Música da Universidade do Estado de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Graduado em Licenciatura em Música com habilitação em Instrumento.
Orientador: Prof. Ms. Domingos Sávio Lins Brandão Aprovado em: 21 de maio de 2005.
4
AGRADECIMENTOS
Deposito aqui meus agradecimentos a todos aqueles que de alguma forma
contribuíram para a realização desse trabalho.
Agradeço em especial:
A minha querida professora de flauta traverso, Livia Lanfranchi, pessoa encantadora,
intérprete primorosa, uma referência singular no estudo e prática da Música Antiga.
A meu querido e brilhante professor de flauta moderna, Alberto Sampaio, sempre muito
atencioso e paciente, e de uma criatividade inestimável.
A meu professor de História da Música e orientador deste trabalho, Domingos Sávio
Lins Brandão, sensível e apaixonado pela Música Antiga.
A Johann Sebastian Bach, in memoriam, por conhecer-te através de tua arte.
5
“Um músico não pode comover se não estiver ele mesmo
comovido”.
Carl Philipp Emanuel Bach, 1753.
6
RESUMO Durante os séculos XVI, XVII e XVIII, a Retórica imprimiu uma marca singular na vida
cultural, educativa, religiosa, social, e de maneira particular, em toda atividade artística
da Europa. Não somente a literatura, a poesia e o teatro resistiram a sua influência;
também a pintura, a escultura, a arquitetura e sobretudo a música, seduzidas pelo
deslumbrante atrativo de seu poder persuasivo, adotaram os princípios e métodos
desta antiga disciplina. O objetivo do presente trabalho reside em resgatar
possibilidades interpretativas da música barroca a partir dos conceitos antigos sobre a
Retórica e as teorias das paixões da alma, difundidas e sistematizadas por diversos
teóricos em tratados musicais.da época, incutindo novas abordagens do intérprete em
relação ao repertório. Não obstante, propiciar uma aproximação mais documentada
dos pressupostos históricos, culturais, científicos e epistemológicos que rodearam a
atividade musical do Barroco, trazendo também à tona possíveis conexões entre
elementos concernentes ao texto (no caso, enfocando as cantatas de Bach) e sua
aplicação em peças instrumentais ( mais particularmente em sonatas barrocas).
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................................................. 8
1 MÚSICA COMO REPRESENTAÇÃO DA NATUREZA .......................................... 10
1.1 A Teoria dos Afetos.................................................................................... ............... 10
1.2 A Teoria dos Temperamentos................................................................................ 16
1.3 A Teoria das Características dos Tons e Modos...................................... 19
1.4 Teoria da Retórica e da Oratória........................................................................... 30
2 A RETÓRICA NA MÚSICA BARROCA........................................................................... 34
2.1 Relação entre a Retórica e a Música no Barroco.......................................... 34
2.1.1 Estruturas retóricas................................................................................................. 36
2.1.2 Definições e traduções das figuras retórico-musicais........................... 40
2.2 O Simbolismo e a Retórica em J. S. Bach......................................................... 46
2.3 O instrumental da época............................................................................................. 58
2.4 A abordagem de sonatas barrocas ...................................................................... 60
2.5 Perspectivas didáticas ................................................................................................ 62
CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................................... 64
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................................... 65
8
INTRODUÇÃO
Existem basicamente duas definições distintas, mas relacionadas entre si, de Música
Antiga. A primeira é baseada em um período histórico, ou seja, é a música da Idade
Média (e pré-Idade Média), Renascimento e Barroco. Mesmo sendo uma definição
aparentemente simples, as coisas não são tão claras assim. Por exemplo, qualquer
tentativa de fixar datas para o Barroco é essencialmente arbitrária. Muitas pessoas
preferem "definir" seu fim em 1750, com a morte de J.S. Bach, data que rejeitaria, no
entanto, as várias mudanças estilísticas que se efetuavam naquele tempo; por exemplo,
a emergência dos estilos galante e pré-clássico em proximidade com o florescimento
final do Barroco. Para acrescentar ainda mais a confusão, enquanto muitas peças
podem ser relacionadas estilisticamente a um certo pensamento estético, isso também
não é claramente definido. Talvez o fator significativo para definir tais épocas como
"Música Antiga" é que elas não tiveram uma tradição contínua de performance. Em
outras palavras, tal música parou de ser executada depois de sua época e precisou ser
revivida em nossa própria era. Até meados do século XIX, tanto público, como
músicos, raramente se interessavam por outra música que não fosse aquela produzida
naqueles dias. Assim, após alguns anos de execução, a maioria das obras
normalmente caía no esquecimento. Em 1829 o compositor Mendelssohn resgatou,
para surpresa do grande público, a "Paixão Segundo São Mateus", de Bach. Após 100
anos, aquela era a segunda audição de uma obra-prima que só fora executada em sua
estréia. A partir de então, o repertório barroco passou a ser freqüentemente adaptado
às grandes orquestras românticas.
A segunda grande definição de "Música Antiga" remete à performance sustentada no
estudo de manuscritos originais, fac-símiles e tratados estilísticos da época a fim de
extrair da melhor maneira possível o que cada obra tem a oferecer. Essa abordagem
remete sobretudo ao respeito às peculiaridades de cada linguagem específica no que
concerne a sua agógica. Muitas vezes inclui a execução em instrumentos originais ou
cópias, englobando também novas perspectivas tímbricas na apreciação da peça pelo
ouvinte. Aliado a isso, inclui a contextualização de elementos, essenciais a meu ver,
9
envolvidos na relação entre músico e ouvinte, guiada pela chamado afeto retórico da
obra. A chamada “Música Histórica” , muito mais do que propor a autenticidade do
estilo, objetiva um sentido musical mais profundo à medida em que apresenta as obras
com os meios que lhes são correspondentes.
10
1 MÚSICA COMO REPRESENTAÇÃO DA NATUREZA
Aristóteles, em suas obras Ars Retorica e Ars Poetica, ressalta não apenas o caráter
eticamente bom, como um caráter sensualmente belo, associado á qualidade em
transmitir por si só determinadas impressões 1. O entendimento do termo “música” no
séc.XVIII acompanha diretamente pontos de vista éticos e morais entendidos como
imitação da natureza, representando as paixões e emoções humanas. Sob esse
prisma, reforçada pelas teorias neoplatônicas do séc.XVI, baseia-se em quatro
vertentes básicas: a Teoria dos Afetos ou Paixões, A Teoria dos Temperamentos
Humanos, a Teoria das Características dos Tons e Modos e a Teoria da Retórica.
1.1 A Teoria dos Afetos
A Teoria (ou Doutrina) dos Afetos, foi difundida primeiramente no final da Renascença,
quando um grupo de acadêmicos florentinos tentou restaurar o que percebia ser a pura
relação entre palavra e música advogada pelos filósofos gregos clássicos, como Platão.
Ressurgiu nos séculos XVII e XVIII como pressuposição de que o gérmen motivístico de
uma composição, a sua inventio, era mais que representação, mas uma encarnação
tangível do Affekt, um estado emocional de ser. Acreditava-se, por exemplo, que um
baixo “lamento” era a expressão palpável de tristeza, enquanto uma seqüência
ascendente rápida de terças representava o oposto (euforia).
O enfoque dos mecanismos presentes nos afetos perpetuou-se com a crença proposta
por Aristóteles em seu livro Ars Retorica de que existem diversos estados conhecidos
como amor, ódio, alegria, ira, temor, citando alguns dos mais comuns. Sustentava que
a música influenciava os afetos ou emoções do ouvinte segundo um conjunto de regras
1 ARISTÓTELES Apud BARTEL (1998).
11
que relacionavam determinados recursos musicais (ritmos, motivos, intervalos, etc.) a
estados emocionais específicos 2. Desde as últimas décadas do séc.XVI a incitação dos
afetos foi considerada o principal objetivo da poesia e da música, prolongando-se ao
longo dos sécs. XVII e XVIII. O valor dos afetos barrocos foi estereotipado em um
número infinito de figuras, e a sistematização das mesmas foi a principal contribuição
do Barroco para a Doutrina dos Afetos., sendo o assunto de especial atrativo aos
teóricos alemães.
O compositor barroco creditava um poderoso e imanente efeito à sua música, vendo
nela a capacidade de criar, aumentar e acalmar as emoções do ouvinte. Para tanto, o
discurso musical deve ser perfeito em suas regras de retórica e oratória. A idéia de
expor as paixões humanas fundamentava-se em vários tratados como os do italiano
Zarlino, que em seu Instituitioni Harmoniche (1558), associava a teoria das paixões a
intervalos específicos. Os intervalos de 3ª maior, 6ª maior ou 13ª maior representavam
a paixão Alegria, já os de 3ª menor, 6ª menor e 13ª menor, Mágoa ou Aflição. Escalas
maiores eram usadas para denotar alegria, júbilo; escalas menores para a tristeza, e
escalas cromáticas, carregavam em si certa fraqueza 3. Com a chamada “Seconda
Pratica” , tratados de retórica como o de Henry Peacham (1576-1643), já continham
conceitos estabelecendo semelhanças da retórica com a música..
A música deve atrair por sua própria força, dependendo diretamente do público. Ela
deve convencer, agitar, enfim, mover, e como dizia Quantz, “(co) mover a alma” 4.
E movendo, dominar em certo grau a emoção do ouvinte. O compositor e o intérprete
trabalham com duas paixões principais: a Alegria e a Tristeza. Busca-se tensão e
relaxamento, tentando-se calcular antecipadamente as reações emocionais de seu
ouvinte. Misturando teoria dos afetos e temperamentos, características dos tons e um
perfeito discurso, mais uma dose de inspiração pessoal, almeja mover a alma do
ouvinte. Então, sem necessariamente refletir ou conjecturar de forma intelectual sobre o
evento musical, o ouvinte se entrega às suas paixões. Segundo René Descartes (1596-
2 ARISTÓTELES Apud BARTEL (1998). 3 ZARLINO Apud BARTEL (1998). 4 Conforme Quantz, 1752.
12
1650), a maioria das percepções causadas pelo corpo partem de objetos exteriores, se
transmitem pelos nervos até o cérebro e são percebidas pela alma, sendo reforçadas
pelos espíritos animais ( cuja sede reside na glândula pineal ). Enquanto não cessar a
emoção, tais espíritos sustentarão o afeto, seja ele o medo, a tristeza, a dor, ou a
angústia 5. No famoso tratado de flauta de 1752, escrito por Johann Joachim Quantz
(1697-1773), especificamente no capítulo sobre a boa execução em geral ao tocar e
cantar, o autor expõe:
A execução musical deve ser comparada à entrega de um orador. [...]Ambos querem tocar o coração, excitar ou apaziguar as emoções da alma e levar o ouvinte de uma paixão a outra... [...]A boa execução deve ser variada. Luz e sombra devem ser usadas constantemente.[...] Deve ser expressiva e apropriada a cada paixão que encontre.[...] Já que na maioria das peças uma paixão constantemente se alterna com outra, o executante deve saber como julgar a natureza da paixão que cada uma contém.[...] Somente desta maneira fará justiça às intenções do compositor e às idéias que teve em mente quando compôs a peça.
[...]Existem vários graus de vivacidade e melancolia. Quando prevalece uma emoção furiosa, a execução deve ter mais fogo que em peças jocosas, ainda que ambas devem ser vivas, e o mesmo decorre em situações opostas. O agregado de ornamentos a fim de adornar e realçar determinada ária, ou uma simples melodia, deve ser feito adequadamente. Tais adornos, ainda que sejam essenciais ou improvisados, nunca devem contradizer os sentimentos predominantes da melodia principal. [...]Passagens delicadas de um Adágio não devem ser atacadas rudemente com um golpe de língua ou arco, assim como idéias alegres e distintas de um Allegro não devem ser arrastadas, ligadas ou atacadas muito suavemente.
Geralmente o modo maior é mais usado para exprimir o que é mais alegre, ousado, sublime, e o modo menor para a expressão do patético, melancólico e terno. A melancolia e a ternura são expressas por intervalos cerrados e ligados, e a audácia por notas breves articuladas, ou aquelas formando saltos distantes, ou com notas nas quais os pontos aparecem após a 2ª nota.[...] As indicações encontradas no começo de cada peça (como Allegro ma non tanto, Presto, Mesto, por ex.) demandam distintamente uma expressão particular. Além disso, cada peça pode também ter uma mescla de idéias; patética, carinhosa, alegre, majestosa ou jocosa (Quantz, 1752, p.11-27).
5 DESCARTES Apud BARTEL (1998).
13
Tais considerações de Quantz reforçam ainda mais a estreita relação entre a agógica
de uma peça e sua implicação afetiva.
Alguns movimentos intelectuais tentaram organizar as paixões de maneira sistemática,
guiados em sua maioria pelo Racionalismo de Descartes, pensador de maior influência
no pensamento barroco. O homem comum da era barroca vai sendo invadido por um
forte dualismo: de um lado o mundo Divino, com a Igreja e os Dogmas, e do outro o
mundo Físico, com a Ciência e a explicação do fenômeno natural. A Escola Estóica,
analisando a dualidade das emoções, defendia as emoções do prazer, do desagrado, e
do desejo. Baruch Spinoza (1632-1677) escreve na 3ª parte de sua Ethica Ordine
Geometrica Demonstrata, sobre a origem e natureza das afeições. Christian Wolff
(1679-1754) relata duas paixões básicas: Voluptas (desejo) e Tedium (indiferença),
ambas marcadas pelo caráter da Alegria ou Tristeza, e de onde as demais paixões se
originam. Especifica uma paixão principal composta de muitas emoções 6. Esta paixão
principal, ou a idéia da grande e extensa paixão, é decisiva na música barroca.
Descartes abriu para o mundo as portas da especulação científica baseada no
método. Seu livro Discurso Sobre o Método procura guiar o leitor ao bom uso da
Razão, tornando-o apto a alcançar a Verdade na investigação das Ciências. O projeto
filosófico de Descartes teve ligações com músicos, recebendo influências de Marin
Mersenne (1588-1648), matemático, filósofo e teórico francês, autor de Harmonie
Universelle, e Constantinj Huygens (1596-1687), poeta, diplomata, músico e cientista
holandês. Em sua obra Discurso Sobre o Método, o autor enfatiza a verificação do
progresso das ciências, principalmente a matemática, onde é possível obter a certeza.
Além disso, Descartes era integrante de ordens iniciáticas e sociedades secretas
envolvendo também a Rosacruz e o estudo da Cabala. Seu método é sustentado em
quatro diretrizes: a Regra da evidência, ou seja, evitar conclusões precipitadas e pré-
concepções, não incluindo julgamentos que não se apresentem claros de maneira a
serem irrefutáveis; a Regra da análise, segmentando as dificuldades a fim de saná-las;
a Regra da síntese, ascendendo os pensamentos dos mais simples aos mais
complexos; e a Regra da enumeração, revisões gradativas a fim de certificar-se de
6 WOLFF Apud BARTEL (1998).
14
não ter esquecido nenhum ponto. Seu método envolvia implicações metafísicas, onde
por meio da comprovação matemática e da concatenação de idéias claras e distintas,
chegava-se à veracidade do próprio Deus. Suas idéias revelaram posteriormente forte
influência na obra de Rameau e de Bach, além de filósofos como Spinoza, Leibniz e
Wolff. Sua obra Compendium Musicae (1618) tenta introjetar a música sob o enfoque
da Razão através da mensuração matemática da afinação e dos modos. Já seu último
trabalho, o Tratado das Paixões da Alma (1649) dividia-se em três partes: as paixões
em geral, o número e ordem das paixões, e as paixões específicas. Dentre as
inúmeras paixões descritas pelo autor, destacam-se seis paixões primitivas, as quais as
demais são submetidas: a Admiração, o Amor, o Ódio, o Desejo, a Alegria e a Tristeza.
Athanasius Kircher (1601-1680), polímata, teólogo e teórico de música alemão, em
obras como o Misurgia universalis (1650), sugeriu que os variados afetos poderiam ser
categorizados em três grupos (alegria, piedade e tristeza) em torno do qual todos os
demais afetos se originariam. Menciona oito afetos básicos: Amor (amor), Luctus seu
Planctus (luto ou lamentação; também chamado Dolor : tristeza ou pesar), Laetitia et
Exultatio (alegria e exultação), Furor et indignatio (raiva e indignação), Commiseratio et
Lacryma (piedade e fraqueza), Timor et Afflictio (medo e dor), Praesumptio et Audacia
(presunção e audácia) and Admiratio (admiração e estupefação) 7 . Vários outros
autores também resumiram os diferentes afetos em duas ou três categorias. Apesar de
existirem diferentes classificações, muitos deles foram amplamente relatados e
considerados dentro de um consenso. Teórico, compositor, cantor, e organista alemão,
Johann Mattheson (1681-1764) foi uma das figuras mais representativas na
sistematização dos afetos retóricos, expostos em sua obra Der Vollkommene
Capellmeister (1739). O texto é dividido em três partes, sendo a 1ª e a 3ª expondo
fundamentos históricos e composicionais (do contraponto), e a 2ª parte focando a
composição da melodia em seu aspecto agógico, retórico e afetivo. Também menciona
os afetos e características de cada compasso, como descrito na tabela a seguir.
7 KIRCHER Apud BARTEL (1998).
15
2/4 : popular, coisas cantadas, árias. 3/4 : coisas engraçadas, minuetos.
4/4 : árias, allemandas, bourrées (lento). 3/8 : coisas engraçadas, ou sérias e
tristes (passepied, canarie).
6/4 : coisas sérias, lentas (loure). 9/8 : para coisas bizarras.
6/8 : bonito, fluente e melodioso (gigas). 9/16 : bizarro e nervoso.
12/16 : veemente, impaciente, paixões,
histérico.
3/2 : árias tristes (sarabandes., adágios).
Nas danças barrocas, Mattheson especifica afetos específicos : o minueto expressa um
moderado deleite, a gavotte evoca uma alegria jubilante, e a borrée um grande
contentamento 8.
De forma geral, afetos dolorosos eram expressos com intervalos e harmonias ásperas e
rangentes, e ritmos sincopados, sendo o uníssono e a oitava associados à imagem da
perfeição, de Deus. A dissonância de um semitom era considerada útil ao retratar afetos
mais tristes, não só devido a sua proporção imperfeita, mas também por refletir pouca
liberdade de ação. Tal dissonância, quando movida lentamente, causava fraqueza,
porém em tempos rápidos provocaria o afeto da raiva. Afetos alegres estavam em
sintonia com intervalos perfeitos e mais consonantes, encontrados em tons maiores. A
tríade maior, com a proporção numérica 4:5:6, era mais próxima do ideal de proporção
divina do que a tríade menor, com proporção 10:12:15. A razão de composições num
tom menor terminarem com uma tríade maior ou quinta justa remete ao desejo e a
busca pela perfeição. Tempos ternários, representando a Trindade., eram comumente
usados, especialmente em danças com movimentos mais rápidos. Os afetos de
piedade e fraqueza utilizavam tempos mais lentos, intervalos mais curtos e ligados
(especialmente de 2ª menor) ; os de raiva e indignação tempos rápidos, saltos maiores,
8 Conforme Mattheson, 1739.
16
ritmos e harmonias mais dissonantes. Medo e dor eram expressos em tempos
moderados.
No período Barroco, a representação musical dos afetos estava diretamente ligada à
expressão do texto, sendo seu componente máximo a Ária. Erdmann Neumeister, autor
de numerosos libretos de cantatas de Bach, referia-se a ária como “a alma de uma
obra” 9. O cantor de uma ária encarna os sentimentos e emoções do texto,
sintetizando todos os momentos expressivos expostos até então. Em certas situações,
uma seção B de uma ária Da Capo refletiria um distinto afeto presente na seção A;
como em numerosas árias de cantatas de Bach, contrastando por ex., uma perspectiva
humana com outra celestial. Tais relações serão mais amplamente analisadas
posteriormente, nos capítulos sobre Retórica e Oratória.
1.2 A Teoria dos Temperamentos
Os relatos sobre temperamentos humanos advindos da teoria médica grega,
formulados por Empedocles, Hippocrates e Galea, permaneceram vigentes na era
Barroca. De acordo com essa teoria antiga, desenvolvida posteriormente por Descartes
em seu Les Passions de l’áme, são quatro os diferentes temperamentos humanos:
sanguíneo, melancólico, fleumático e colérico. Cada temperamento era associado aos
elementos da Terra: ar, terra, água e fogo. Um temperamento determinava-se de uma
combinação de dois a quatro atributos primários: quente e frio, úmido e seco. Cada
temperamento era também ligado com um certo fluido corporal, produzido por seus
órgãos internos.
9 NEUMEISTER Apud SCHWEITZER (1954).
17
Temperamentos SANGUÍNEO COLÉRICO MELANCÓLICO FLEUMÁTICO
Humor
Órgão
Sangue
Coração
Bile amarela
Figado
Bile negra
Baço
Fleuma
Cérebro
Elementos
Planeta
Ar
Mercúrio
Fogo
Marte
Terra
Saturno
Água
Netuno
Atributos Quente/ Ùmido Quente/ Seco Frio/ Seco
Frio/ Úmido
Estação
Fase do dia
Idade
Primavera
Manhã
Juventude
Verão
Tarde
Adolescência
Outono
Crepúsculo
Adulta
Inverno
Noite
Velhice
Afeto Amor, Alegria Raiva, Fúria Aflição Quietude moderada
Alegria, Tristeza.
Segundo Descartes, cada ser humano é governado por um certo temperamento
fisiológico característico determinado, em parte astrologicamente, mediante sua data de
nascimento. Uma personalidade refletirá certos afetos associados com o temperamento
mais proeminente em relação aos demais. O desequilíbrio dos “humores” resulta numa
condição patogênica instável, onde são associados vários afetos. Por outro lado,
estímulos externos influenciarão indivíduos de única inclinação afetiva mais fortemente
do que indivíduos governados por temperamentos diversos.
Os elementos agógicos de uma peça (o ritmo, a métrica e o tempo) são também
examinados e explicados de acordo com suas propriedades afetivas. Enquanto
pessoas com o temperamento sanguíneo ou colérico geralmente tendiam a preferir
tempos mais rápidos, uma composição séria ou grave encontraria ressonância em
indivíduos com temperamento melancólico ou fleumático.
18
Um indivíduo é guiado a certos afetos a partir de um processo envolvendo uma
mudança de equilíbrio dos quatro humores do corpo. Quando recebe um estímulo
específico, o órgão humano afetado produz um humor correspondente, enquanto o
sangue passa a correr no estado gasoso. Os vapores daquele humor são então
combinados com o spiritus animalis. Descartes considera estas minúsculas partículas
no sangue um tipo de éter. Tais partículas, conseqüentemente, adentram os nervos,
descritos como tecidos tubulares ocos. Daí viajam através do corpo e do cérebro,
afetando suas funções. Tais vapores também influenciam a alma, que pensava-se
situar-se na glândula pineal, situada no hipotálamo. Todo o processo resulta, portanto,
na afloração do afeto correspondente 10.
A proporção numérica facilitava a percepção áurea da realidade presente em todos os
fenômenos naturais. O fenômeno da proporção áurea, amplamente estudado pelos
antigos, defendia a ligação da simetria presente no Universo também sob a perspectiva
musical. Tais proporções, refletidas em intervalos musicais, entravam no corpo via
ouvido, correspondendo a uma certa função fisiológica do processo, e resultando na
afetação apropriada. Os princípios do Trivium (gramática, retórica e lógica) e do
Quadrivium (geometria, aritmética, astrologia e música) precisavam cooperar. Quando
um compositor era capaz de compreender a inter-relação entre tais princípios, seria
capaz de desenvolver o sentido do afeto em sua obra, tornando-o o mais claro possível
para o intérprete.
As diferentes reações de ouvintes distintos à mesma música também eram
racionalmente explicadas. Os variados temperamentos de diferentes indivíduos
predispunha-os a reações mais fortes a afetos diferentes. Por exemplo, uma pessoa
melancólica reagiria mais veementemente a uma música melancólica do que uma
pessoa de caráter colérico. Isso levava teóricos como Werckmeister a afirmar que
pessoas melancólicas ou apaixonadas apreciarão muito mais o correto uso da
dissonância numa obra da mesma natureza do que o contrário. Não só diversos
homens reagirão diferentemente aos variados afetos, mas eles se atrairão à música
10 DESCARTES Apud BARTEL (1998).
19
correspondente à suas distintas predisposições temperamentais 11 . Tais variantes
repercutem diretamente na chamada “teoria dos afetos”, e torna-se particularmente
evidente na discussão sobre características dos modos e tons. Um modo que poderia
sugerir uma certa afetação a um autor (compositor ou ouvinte) não evocaria,
necessariamente, o mesmo afeto em outro.
1.3 A Teoria das Características dos Tons e Modos
Teóricos e compositores da Renascença e do Barroco freqüentemente enfatizavam
como uma das considerações primárias das expressões musicais do afeto a escolha de
um modo ou tonalidade em uma composição musical. Através da Idade Média e da
Renascença, os vários modos eclesiásticos asseguraram características análogas aos
modos Gregos. Como na Renascença os conceitos harmônicos foram
progressivamente revisados, sendo o modelo de tonalidade substituindo o conceito de
modalidade, as características expressivas dos modos e tonalidades também se
redefiniram, e muitos compositores e teóricos passaram a se questionar mais sobre a
validade da associação entre afetos específicos e os modos e tonalidades, atribuindo
maior importância a tal ligação.
A partir do séc. XVI, os oito modos medievais eclesiásticos foram expandidos para doze
com a adição de Glareanus dos modos Eólico e Jônico (acrescidos de seus plagais),
tornando-se os protótipos das escalas maiores e menores, determinadas por uma terça
maior ou menor. Os modos gerados com uma terça maior eram usados para expressar
sentimentos jubilosos, enquanto os providos de terça menor sentimentos tristes,
pesarosos. Zarlino é um dos primeiros a promover tal diferenciação, propagada mais
tarde por Calvisius em seu Exercitatio Musica tertia (1611). Mas coube a Johann
Lippius (Synopsis musicae nova, Straussburg, 1612) apresentar uma teoria
compreensiva sobre a polaridade maior-menor a partir da qualidade da tríade, e a
11 WERCKMEISTER Apud BARTEL (1998).
20
Andreas Herbst um dos primeiros a mencionar três qualidades básicas de diferenciação
dos modos (Alegre, Triste ainda que gentil, e Áspero).
Ainda no séc. XVI, Kircher apontava três afetos fundamentais: Alegria, Devoção
submissa e Tristeza. Johann Kuhnau, predecessor de Bach em Leipzig, manteve a
assertiva sobre a clara percepção entre o modo com a terça maior (contente) e menor
(triste, melancólico). Tais teorias foram ganhando mais corpo nos sécs. XVII e XVIII,
tornando-se correntes na Inglaterra, Itália, França e Alemanha. Podem ser traduzidas
numa carta escrita pelo pintor Nicolas Poussin, cuja tradução relata:
Os nobres gregos, inventores de tudo o que é belo, descobriram vários modos por meio dos quais produziam efeitos admiráveis... e por essa razão os filósofos antigos atribuíram a cada um dos modos certas qualidades especiais. O dórico era sábio, grave e severo; o frígio, selvagem, veemente e belicoso, o lídio era melancólico; o hipolídio, doce e alegre, apropriado para temas celestiais, de glória. O jônio era para
danças, banquetes e bacanais. ( Poussin, 24 de novembro de 1647) 12 .
Os títulos dos modos estavam associados a certas tonalidades e compassos (embora
guardassem pouca ou nenhuma semelhança com os modos usados pela igreja mais
remotamente) e considerava-se que as peças escritas em qualquer um deles deveriam
ser executadas de acordo com cada caráter. Já na 2ª metade do séc.XVII , adentrando
o séc.XVIII, três compositores e teóricos sistematizaram as peculiaridades de cada
modo em especial (explicitadas detalhadamente a seguir): o francês Marc-Antoine
Charpentier (1645-1704), em seu livro Régles de Composition 13, e os alemães
Johannes Mattheson (1681-1764), em seu Das Neu-Eröffnete Orchestre14, e
C.F.D.Schubart (1739-1791), em seu estudo sobre Estética Musical 15.
12 POUSSIN Apud CHASIN (2004 ). 13 Conforme CHARPENTIER, 1667. 14 Conforme MATTHESON, 1713. 15 Conforme SCHUBART, 1801.
21
Dó maior
Charpentier:
Alegre e guerreiro.
Mattheson:
Tem uma qualidade bastante rude e atrevida (impertinente ), mas presta-se muito bem
às situações de regozijo, nas quais a alegria flui naturalmente; no entanto, um
compositor hábil, se escolher bem os instrumentos que acompanham, pode
transformá-la em uma tonalidade charmosa, e até usá-la em casos que expressa
ternura. Kircher atribui-lhe, entre outras: ” vagum, que quer dizer cheio de rodeios. O
modo Jônico antigamente era dedicado às coisas do amor, e por isso era considerado
exuberante ou voluntarioso; hoje em dia serve para estimular um exército (com
trombetas, tímpanos, oboés, etc.) de maneira que nos leva a desconfiar que o que hoje
chamamos de Jônico pode ter sido antes o modo Frígio, e vice-versa”.
Schubart:
Inocente.
Dó menor
Charpentier:
Obscuro e triste.
Mattheson:
É uma tonalidade extremamente suave, mas ao mesmo tempo triste. No entanto,
como a primeira destas qualidades tem a tendência a prevalecer, e também muita
doçura pode se tornar fastidiosa, faz-se bem em tentar avivar este tom com um
movimento mais alegre, para que a suavidade não provoque sonolência. Se porém a
peça for uma canção de ninar, escrita especialmente para fazer dormir, então é melhor
desconsiderar esta sugestão, e assim atingir mais naturalmente a sua meta.
22
Schubart:
Declaração de amor, queixa amorosa.
Dó #menor:
Schubart:
Lamentação penitencial, desapontamento na amizade e mentira no amor, encontro
triste com Deus.
Ré maior
Charpentier:
Jovial e muito guerreiro.
Mattheson:
É por natureza um pouco áspero e voluntarioso; é o mais confortável para as coisas
alegres, guerreiras, estimulantes; mas também ninguém há de negar que se em lugar
da trombeta se usar a flauta, ou em lugar do tímpano se usar um violino, este tom tão
duro poderá dar comportadas e estranhas indicações para se fazer coisas muito
delicadas
Schubart:
Triunfo, alegria, júbilo após a vitória.
Ré bMaior
Schubart: Vesgo, não pode rir; só sorrir; nem chorar, só fazer careta.
23
Ré menor
Charpentier:
Grave e devoto.
Mattheson:
Algo devoto, tranqüilo , mas também é grande , agradável e contente; por isto este
tom tem a capacidade de estimular a devoção em peças eclesiásticas, e a tranqüilidade
de espírito na vida diária. Tudo isto não impede porém que se tenha sucesso
escrevendo neste tom algo que seja divertido, e não muito saltitante, porém fluente.
Para poemas heróicos ou épicos este tom é o mais confortável porque, ao lado de uma
certa leveza (ligeireza), ele tem muita gravidade e estabilidade. Aristóteles o qualifica
de grave e estável. Atheneus diz: "A harmonia Dórica é viril, magnífica e majestosa” .
Schubart:
Feminilidade pesada, sinistro.
Mi maior
Charpentier:
Separação.
Mattheson:
Expressa incomparavelmente bem a tristeza desesperada e mortal; é o tom mais
confortável para expressar as coisas extremamente apaixonadas, desamparadas e
desesperadas, e em alguns momentos tem qualidades que exprimem ruptura,
separação, sofrimento e penetração, e só pode ser comparada à separação fatal de
corpo e alma.
Schubart:
Júbilo forte, alegria risonha, felicidade quase perfeita.
24
Mi bemol maior
Charpentier:
Cruel e duro.
Mattheson:
Muito de patético em si; só quer saber de coisas sérias e lamentosas; é também
inimigo mortal de toda suntuosidade.
Schubart:
Tom do amor, da profundidade, da comunicação com Deus (os três bemóis
representam a trindade).
Mi menor
Charpentier:
Afeminado, amoroso e lamentoso.
Mattheson:
Por mais esforço que se faça, dificilmente pode ser considerado alegre, porque é
muito pensativo, profundo, emocionado e triste, mas de maneira tal, que se pode
perceber uma esperança de consolo. Pode haver uma certa movimentação, mas isto
não faz com que logo fique alegre
Schubart:
Declaração de amor feminino, inocente, suspiro, poucas lágrimas, comparado a uma
donzela de branco com uma rosa vermelha no peito.
25
Mibmenor:
Schubart:
Medo dentro da alma, desespero, melancolia negra, fantasma, falta de respiração.
Fá Maior
Charpentier:
Furioso.
Mattheson:
Tem a capacidade de exprimir os sentimentos mais belos do mundo, sejam eles
generosidade, fidelidade, amor, ou tudo o mais que estiver em primeiro lugar no
registro das virtudes; e tudo isto de maneira tão natural, e com tanta facilidade, que
não é necessário fazer qualquer esforço. A elegância e habilidade deste tom ficam
bem descritas, se o compararmos a uma pessoa bonita que, tudo o que faz, por menor
que seja, o faz com perfeição.
Schubart:
Tranqüilidade, beleza.
Fá menor
Charpentier:
Obscuro e lamentoso.
Mattheson:
Parece representar um temor suave e sereno, mas ao mesmo tempo profundo e
pesado, cheio de angústia misturada com um pouco de desespero, e é
26
enormemente movimentado. Ele expressa lindamente uma melancolia negra e
desamparada, e às vezes quer provocar no ouvinte um pouco de medo ou um arrepio
Schubart:
Melancolia profunda, enterro, vontade de morrer.
Fá menor
Mattheson:
Apesar de levar a uma grande aflição, esta é mais langorosa do que letal. Este tom
tem em si uma característica de abandono, solidão e misantropia.
Schubart:
Arrasta a paixão como um cão mordendo alguém, ressentimento e descontentamento.
Sol Maior
Charpentier:
Docemente jovial.
Mattheson:
Tem muito de insinuante e eloqüente em si; com isto, ele brilha muito, e é bem
adequado às coisas sérias, tanto quanto às alegres. Kircher o qualifica como
“amorosum et voluptuosum: enamorado e sensual.” Em outro trecho também:
“Honestum & temperantiae custodem: um honesto guardião da temperança”, o que são
qualidades bem opostas. Corvinus diz: “é simpático aos assuntos alegres e amorosos.”
(Parece até que antes alegre e amoroso eram sinônimos, e que para os antigos o amor
sempre resultava em brincadeira; sabe-se, no entanto, que hoje em dia estar realmente
enamorado é uma coisa muito séria, e que não se está especialmente alegre quando se
tenta expressar a delicadeza da alma.).
27
Schubart
Idílico, campestre, tranqüilo, satisfeito. Fácil, porém profundo.
Sol bMaior
Schubart:
Triunfo e alívio após a dificuldade.
Sol menor
Charpentier:
Sério e magnífico.
Mattheson:
Talvez a mais bonita das tonalidades. Não só ela une a gravidade com uma alegre
graciosidade, mas mistura encanto e amabilidade extraordinários, com os quais
nos leva de maneira confortável e flexível tanto à suavidade, quanto ao
contentamento, tanto à ansiedade, quanto ao divertimento, ao lamento moderado
ou à alegria temperada. Kircher diz a respeito: "Modestam & religiosam lætitiam præ
se fert, hilaris & gravi tripudio plenus". Isto é: "Ele tem em si uma alegria modesta e
devota, e contem movimentos animados, mas cheios de seriedade".
Schubart:
Descontente, rabugento.
Sol #menor
Schubart:
Alma oprimida até sufocar, lamento, luta difícil.
28
Lá Maior
Charpentier:
Jovial e campestre.
Mattheson:
É muito emocionante. No entanto, apesar de ser brilhante, presta-se melhor aos
afetos lamentosos e tristes do que aos divertidos. É especialmente adequada ao
repertório de violino.
Schubart:
Amor inocente, contente, esperança de reencontro, confiança em Deus.
Lá bMaior
Schubart:
Cemitério, fúnebre, órfãos, último juízo.
Lá menor
Charpentier:
Terno e lamentoso.
Mattheson:
Lá menor tem a natureza um tanto lamentosa, honesta e serena. É um pouco
sonolenta, embora isto não seja desagradável, de maneira alguma. Em geral, presta-se
excepcionalmente bem às composições para teclado, e instrumentais. Hábil em
despertar a compaixão. Segundo Kircher, este tom tem um afeto suntuoso e sério, de
maneira que o faz tender para o lisonjeiro. Sim, a natureza desta tonalidade é
bastante comedida, e pode ser usada para um grande número de emoções . É suave
e extremamente doce
29
Schubart:
Doçura de caráter.
Si Maior
Charpentier:
Duro.
Schubart:
Cor forte, anuncia emoções selvagens; ira, raiva, ciúmes, desespero.
Mattheson:
Tem uma qualidade antipática, dura, e até desagradável, também parece um pouco
desesperada.
Si bemol Maior
Charpentier:
Magnífico e jovial
Mattheson:
É uma tonalidade muito divertida e faustosa, mas mantém ainda alguma modéstia, e
pode ser considerada ao mesmo tempo magnífica e delicada. Entre outras
qualidades que Kircher atribui a ela, há uma que não pode ser desprezada: Ad arduam
animam elevans. "Eleva a alma às tarefas mais árduas".
Schubart:
Amor alegre, consciência limpa, esperança, mundo melhor.
30
Si menor
Charpentier:
Solitário e melancólico
Mattheson:
É bizarro, mal-humorado e melancólico. Por isso aparece raramente, e talvez seja
esta a razão pela qual foi banido pelos mestres antigos, para que não ficasse sequer
em sua recordação.
Schubart:
Paciência, tonalidade para esperar o destino, resignação doce.
*****
Mattheson:
O efeito que tem os outros tons é ainda muito pouco conhecido, e precisa ser deixado
à posteridade, mesmo porque hoje em dia são muito pouco usados para a composição
de uma peça.
Schubart:
A inocência e a simplicidade devem ser representadas por poucos bemóis e sustenidos.
Quanto mais sustenidos, mais selvagens e emocionais são as tonalidades.
1.4 Teoria da Retórica e da Oratória
Definida por Aristóteles no seu livro intitulado Retorica como a capacidade de descobrir
todas as maneiras de persuasão e eloqüência disponíveis, a Retórica nasceu na Grécia
antiga, posteriormente levada para Roma e daí para a Europa medieval.
31
A tradição indica que a Retórica foi introduzida na Grécia por volta do ano 485 A.C. Os
tiranos sicilianos Gelon e Hieron haviam decretado uma abusiva expropriação de terras
distribuídas entre os mercenários. Algum tempo depois, um movimento democrático, a
fim de tentar restituir os bens a quem lhe era de direito, instaurou uma espécie de júri,
onde cada interessado teria a possibilidade de solicitar a devolução de sua terra. Não
apresentariam documentos nem testemunhos oficiais, apoiando-se unicamente em sua
palavra para convencerem as autoridades sobre a legitimidade de sua reclamação.
O descobrimento do poder da palavra e da importância de saber-se valer dela com
soltura e precisão constituíram uma deslumbrante revelação. Surgiram assim oradores
profissionais que, cobrando somas exorbitantes, dedicaram-se a ensinar os mistérios da
arte. Empedocles de Agrigento, junto com seu discípulo Georgias, o famoso sofista
questionado e combatido por Sócrates, além de Tisias, foram alguns dos primeiros
mestres da antiga disciplina. A este primeiro período de formação da retórica, sucede-
se outro de caráter mais teorizante e sistematizador, onde se estabeleceram os
princípios teóricos fundamentais retomados vez por outra em cada estágio da evolução
histórica da retórica. São estes os principais autores e suas obras:
Aristóteles (384-322 a.C.)
*Ars Poetica *Ars Retorica
Anônimo (contemporâneo de Cícero)
*Rhetorica ad Herennium
Cícero (106-43 a.C.)
*De Inventione *De Oratore *De Optimo Gener * Oratiuna * Partitiones oratoria *Orador *Topica
Quintiliano (aprox.100 d.C.)
*Institutio Oratoria
Se Aristóteles foi considerado o grande teorizador da retórica, Cícero, ao contrário, era
um grande orador, e Quintiliano um grande pedagogo. Seu livro se converteu no texto
por excelência da retórica. Para Aristóteles a retórica era “a arte de extrair de todo
tema o grau de persuasão que o mesmo encerra” , ou “ a faculdade de descobrir
32
especulativamente o que em cada caso pode ser próprio para persuadir” 16 . Para
Cícero, o discurso tem como fim o convencimento e a persuasão do ouvinte, e o bom
orador é aquele provido da habilidade de mover os afetos de quem escuta. Um bom
discurso, segundo Cícero, deve ser agradável, instrutivo e deve mover a mente 17. Para
Quintiliano, a retórica é “a arte do bom dizer”, considerando que não há bom dizer sem
bom pensar, nem bom pensar sem retidão 18.
Os sistematizadores da retórica dedicaram grande espaço ao estudo da origem e do
funcionamento dos afetos. Despertar, mover e controlar as paixões era uma tarefa
fundamental no labor persuasivo do orador. Retórica e retóricos converteram-se em
ferramenta inseparável dos políticos.
A retórica, como doutrina que acompanhou e serviu a gregos e romanos em suas
expansões territoriais, viu por sua vez o momento de expandir seu domínio restrito. De
ser até o momento uma disciplina aplicada exclusivamente ao discurso falado, a
retórica irrompe no terreno da palavra escrita. Falar bem torna-se sinônimo de escrever
bem. O elemento persuasivo do orador transforma-se em recurso poético para o
escritor. Com Horácio (65-8 a.C.), Ovídio (43 a.c.-17 d.C.) e Plutarco (50?-125?), a
retórica se converte em artifício, parte do processo criativo da literatura. A fusão da
retórica com a poética foi inevitável, tornando-se parte essencial da criação literária, e
por extensão, das demais artes.
O Cristianismo também não desaprovou o poder da retórica. Santo Agostinho (354-
430), inicia uma releitura cristã de Platão, Aristóteles e Cícero. Mais adiante, São
Gregório de Naciazo (330-390), Casiodoro (480?-575?) e Beda, o Venerável (673-735),
continuam com a cristianização da retórica. Ao reinterpretar as escrituras descobrem
que a Bíblia está repleta de figuras retóricas. A retórica se converteu em instrumento
capital para futuras evangelizações ao mesmo tempo em que ampliava seu campo de
atuação na análise e interpretação dos textos já existentes.
16 ARISTÓTELES Apud LÓPEZ CANO (2000). 17 CÍCERO Apud LÓPEZ CANO (2000). 18 QUINTILIANO Apud LÓPEZ CANO (2000).
33
Na Idade Média, a retórica experimentou uma razoável mudança. Ao surgir uma nova
instituição, a Universidade, o saber retórico se fez público. A disciplina foi colocada ao
lado da gramática e da dialética, formando o Trivium que, junto do Quadrivium,
constituíram a base acadêmica da educação universitária por cerca de dez séculos.
Ambos, o Quadrivium e o Trivium, formavam parte das chamadas Septem Artes
Liberalis (Sete Artes Liberais). A música feita para a igreja, como o cantochão, e mais
tarde, a polifonia, restringiram o uso do pathos, apesar de alguns esforços em se
desenvolver uma teoria das paixões musicais. Na época, encorajava-se somente o uso
de um pathos sacro, pois a expressão de sentimentos humanos dentro do templo de
Deus era vista como frívola e totalmente pagã. Encontramos o termo Imitação; segundo
Platão, ”a arte imitando as coisas do mundo como são apresentadas a nós” 19. Ele
próprio relacionou seu uso aplicado ao seu conceito ético-moral em sua idéia de um
Estado Ideal, sugerindo relações entre os modos e características ou estados da alma.
A retórica deixou de ser uma disciplina hermética reservada somente para alguns
estudiosos, tornando-se um elemento fundamental da cultura geral. Com a chegada do
Humanismo na Renascença (final do século XIV), as fortes mudanças intelectuais
fizeram com que a conexão entre a música e a retórica fosse inevitável. A música
tornou-se mais humana, ligada a princípios de comunicação próprios da oratória como:
o inventio (invenção), dispositio (disposição, organização), e decoratio (ornamentação).
Neste período, a matemática da música transformou-se na retórica da música. O
redescobrimento em 1416 da obra Institutio Oratoria , de Quintiliano, proporcionou uma
das fontes primárias sobre a qual sustentou-se a união entre a música e a oratória.
Com a reforma e a contra-reforma, o Cristianismo revitalizou a retórica, surgindo como
defesa contra o Luteranismo como alternativa para a grande massa contra a pressão
material e psíquica da Igreja e da Aristocracia. O Barroco foi então um dos meios mais
eficazes de persuasão da Igreja para reconverter a massa sem fé, sendo os jesuítas os
encarregados em difundi-lo.
19 PLATÃO Apud LÓPEZ CANO (2000).
34
2 A RETÓRICA NA MÚSICA BARROCA
2.1 Relação entre a Retórica e a Música no Barroco
O Período Barroco, compreendido (aproximadamente) entre 1600 e 1750, é delimitado
por dois eixos concernentes à música: a primeira ópera publicada e a morte de J.S.
Bach. É caracterizado basicamente pela abundância (exagerada em certos termos) de
elementos decorativos, a exploração dos contrastes, a imitação da natureza, bem como
a propensão ao transcendental, ao solene e ao magnífico.
O corpo teórico da retórica musical do Barroco conserva-se em numerosos tratados
musicais escritos entre 1535 e 1792. Estes tratados foram denominados por seus
próprios autores com o nome genérico de Musica Poetica, em referência direta à
poética literária. A musicologia do século XX, paulatinamente, tem desenvolvido e
estudado a variedade de preceitos e conhecimentos teóricos contidos nesses tratados,
utilizando-se do estudo de obras desse período. Nikolaus Harnoncourt, em sua obra
“O discurso dos sons”, estabelece quatro orientações utilizadas ao se utilizar a música
para reproduzir idéias extramusicais, a saber: a imitação acústica (como de ruídos de
animais, utilizada desde o séc. XIII), a representação musical de imagens (por meio de
fórmulas associativas), a representação musical de pensamentos ou sentimentos
(suscitar um afeto ou sentimento geral) e a linguagem dos sons. Acrescenta em seu
livro que é na música programática, nas pinturas musicais de batalhas e nas
representações da natureza, que se encontra pela primeira vez verdadeiras
associações de sentido ou de ação a se constituírem marca definitiva da música
instrumental “falante” 20 .
Nikolaus Listenius foi o primeiro teórico musical a introduzir o conceito de Musica
Poetica em seu tratado Musica (1537). A partir do séc. XVII, vários teóricos
freqüentemente fizeram analogias entre os procedimentos da retórica e da música,
20 Conforme Harnoncourt, 1984.
35
culminando no séc. XVIII em tentativas de transformar conceitos retóricos específicos
em seus equivalentes musicais. Isso foi tentado pela primeira vez por Burmeister
(1606), ao analisar a estrutura retórica e o uso de figuras musicais em um moteto de
Lassus; a idéia tomou corpo na Alemanha através de teóricos posteriores. A
investigação das Figuras de Retórica envolve uma revisão da literatura escrita por
estudiosos dos séculos XVII e XVIII como Bernhard, Burmeister, Mattheson, Kircher,
Heinichen, Quantz, Scheibe, entre outros, que analisaram o uso da retórica na música.
No período Barroco, a retórica era usada com a intenção de exaltar apaixonadamente o
espírito humano. As primeiras obras instrumentais onde a música tentou expressar algo
determinado são provavelmente os funerals ingleses e os tombeaux franceses dos
sécs. XVII e XVIII. Tais peças, constituídas a partir de orações fúnebres dedicadas a
personalidades da época, possuem um discurso reconhecível, com um
desenvolvimento bem uniforme, segundo as regras da retórica:
Introdução (este homem está morto) -- Sentimento pessoal (luto) – Progressão até o
desespero – Consolo (o morto vive na beatitude) – Conclusão (semelhante à Introdução).
Todo instrumentista da época era consciente do uso da eloqüência no discurso musical.
A retórica era uma disciplina ensinada nas escolas, sendo parte integrante da cultura
geral. Motivos supostamente conhecidos de obras da época eram integrados a obras
instrumentais como citação simbólica. Determinadas palavras ou conteúdos
expressivos nos textos eram utilizados no discurso instrumental, levando o ouvinte a
associá-los ao conteúdo original das palavras. O compositor barroco buscava o controle
dos sentimentos através do uso de técnicas como a harmonia, a construção das frases,
o tempo e através do uso de um arsenal das chamadas figuras de retórica musical.
O “Século das Luzes” questiona severamente os valores retóricos, tanto culturalmente
quanto socialmente. O ruidoso discurso da Revolução Francesa não toleraria nenhum
tipo de eloqüência ou retórica barrocas. Num mundo sem Deus, onde cada indivíduo
construía sua própria norma, não havia lugar para expressões desviantes. A igualdade
reina entre as frases como entre os homens. Revolução e Ciência, eixos decisivos da
36
cultura do século XIX na extinção da retórica. A retórica foi confinada a manuais
acadêmicos nos colégios.
O século XX significou para a retórica a possibilidade de sua revalorização. Sob o
prisma da moderna lingüística, formalistas, estruturalistas e semiólogos retornaram ao
estudo da velha doutrina. Trabalhos como os de Roman Jakobson e o círculo de Praga,
de Barthes, Génette, Todorov, Greimas, Van Dijk, Benveniste, Hjelmslev, Schmidt,
Segre e Varga, podem, ao certo, devolver à retórica seu antigo valor. Decerto não
lograram em eliminar por completo o sentido pejorativo dado por nossa cultura. Sem
dúvida, alguns desses estudos podem ser indícios de um possível ressurgimento de
uma nova era sob a perspectiva mais atuante da retórica pelos músicos, especialmente
ligados á prática de execução da Música Antiga.
2.1.1 Estruturas retóricas
Em 1563, em um manuscrito intitulado Praecepta musicae peticae, Gallus Dresler se
referia a uma organização formal da música que adotaria as divisões de um discurso
em exordium (introdução, abertura), medium e finis. Um plano similar aparece no
tratado de Burmeister de 1606. Em ambos escritos, a terminologia retórica é levada a
ponto de definir a estrutura de uma composição, enfoque que permaneceria válido até
meados do séc.XVIII. O conteúdo destes estudos fornece uma diversidade de analogias
musicais das figuras retóricas de linguagem. Como por exemplo, Quintiliano (Institutio
IX iii.54) que menciona o significado da figura gradatio como “…também chamada de
climax, …[gradatio] repete algo que já foi dito e, antes de proceder com outra coisa,
aborda aquilo que precedeu” 21 . Fazendo uma analogia musical, Scheibe (Critischer
Musicus, 1732, p.167) estipula que “a ascensão (gradatio) ocorre quando se progride
21 QUINTILIANO Apud BARTEL (1998).
37
gradativamente a partir de uma passagem fraca a outras mais fortes aumentando a
importância e ênfase da expressão musical" 22 .
Bartel no seu livro intitulado Musica Poetica (Bartel, 1998, p.108) afirma que “com
Kircher a expressão musical dos sentimentos ficou mais ligada a estruturas e
dispositivos retóricos”. Foi Kircher quem introduziu a formulação retórica do inventio,
dispositio, e elocutio na teoria da composição musical. Existem então dois pontos de
análise retórica, um micro-estrutural composto pelas figuras de retórica exposto no
ponto anterior, e outro macro-estrutural composto por “o que dizer?”,“como organizar ?”,
e “como dizer?” , ou Inventio, Dispositio e Elocutio, respectivamente, seguido do
Memoria, e do Actio / Pronunciatio. A Dispositio, na organização clássica, era dividida
em: exordium, narratio, propositio, confirmatio, confutatio, e peroratio.
Em retórica existe o chamado decorum que é um princípio retórico que relaciona o
comportamento com a situação e o público, patrocinando a existência de condições
ótimas para a realização da atividade (no nosso caso, a música). Por exemplo, o
decorum da primeira divisão formal do dispositio chamada de exordium (prólogo) é
regido pelos princípios de ethos (ética) e logos (lógica) evitando o pathos (relacionado à
emoção humana). Em outras palavras, o exordium devia ser dirigido a estabelecer a
confiança da audiência usando somente a ética e a lógica, sem apelar para a emoção
humana.
A vitalidade de tais conceitos é evidente através de todo o período barroco e também
mais tarde. Como um orador tem que encontrar inicialmente uma idéia ( inventio ) antes
de desenvolver seu discurso, o compositor barroco precisa inventar uma idéia musical
bem sustentada para desenvolvê-la posteriormente. Sem dúvida a retórica
proporcionava ao compositor os meios para desenvolver o ars inveniendi, ou os
recursos criativos do mesmo. Em seu Der General-Bass in der Composition (1728),
Heinichen ampliou a analogia com a retórica ao incluir os loci topici, os recursos
disponíveis para ajudar o orador a descobrir tópicos (idéias aptas à invenção ) para um
discurso formal. Quintiliano o havia descrito como “sedes argumentorum” , ou sedes ou
22 Conforme Scheibe, 1732.
38
fontes de argumentos. Três perguntas básicas deveriam ser formuladas nessa ocasião:
se uma coisa existe (na sit), o que é (quid sit) e de que maneira é (quale sit). Heinichen
empregou os loci circumtantiarum como fontes de idéias musicais para os textos de
uma ária. Em Der Vollkommene Cappelmeiter Mattheson o criticou por limitar-se
somente ao circumtantiarum, abolindo o uso dos loci comumente usados pelos
retóricos, como os loci descriptionis, loci notationis e loci causae materialis.
Apesar de existirem pequenas variações quanto ao número ou apresentação das
estruturas retóricas, elas podem ser resumidas na seguinte estrutura, elaborada por
Mattheson em seu Vookommene Capellmeister (1739):
a) Inventio
b) Dispositio 1-exordium
2-narratio
3-propositio (divisio)
4-confirmatio
5-confutatio (refutatio)
6-peroratio (conclusio)
c) Elocuto (Decoratio)
1-puritas, latinitas
2-perspicuitas
3-ornatus
4-aptum, decorum
d) Memoria
e) Actio, Pronunciatio
a) Inventio
Segundo Kircher, o compositor escolhe inicialmente o tópico ou sujeito cujo material se
tornará a base e fundação do afeto evocado. Em seguida, o tom da composição, em
sintonia com o afeto. Na seqüência, detém-se no ritmo e na métrica apropriados,
levando o texto (caso a obra disponha) em relevância. Inventio requer fogo e gênio,
39
inspiração e razão condicionadas pelo talento. Pela razão é ordenada a fantasia do
compositor, e prevenida sua extravagante expansão. Uma reflexão intelectual se faz
necessária a fim de evitar a pobreza da fantasia devido a figuras estereotipadas.
Paralelamente, uma exposição intelectual da paixão será carente em fogo para excitar
o ouvinte. A invenção, apesar de ensinável, tem como condição única o talento, pois
parte do equilíbrio entre a razão e a paixão, ambas insufladas por sua variedade e
complexidade.
b) Dispositio
Distribuição dos argumentos ou idéias musicais nos lugares mais adequados do
discurso, distinguindo a função de cada momento para o exercício da persuasão e da
afetividade do discurso. É a nítida ordenação de todas os detalhes de uma melodia
prescritas por um orador, sendo delineada em seis partes: narração, discurso,
corroboração, confutação e conclusão (Exordium, Narratio, Propositio, Confirmatio,
Confutatio e Peroratio). Requer sobretudo ordem e medida. È determinante em formas
como a Fuga.
Exordium é a introdução da melodia a qual todo o propósito da peça deve ser revelado,
preparando e estimulando o ouvinte para a audição. Pode ser representado por um
prelúdio, ou a abertura de um concerto ou preparação para uma ária.
Narratio é como proferir um relato (informação) através do qual é revelado o sentido e o
caráter do conteúdo expressivo. Ocorre com a entrada da parte vocal ou concertante
mais significativa, conectando-se ao Exordium precedente.
O Propositio , ou discurso, apresenta resumidamente o conteúdo da oratória musical.
Confirmatio é uma corroboração ou confirmação do discurso, onde a melodia é citada
através de sucessivas idéias variadas ou ornamentadas.
40
O Confutatio é estabelecido quando há uma citação, combinação ou refutação de idéias
estranhas. Utiliza-se de suspensões, cromatismos e passagens contrastantes.
Peroratio é o término do discurso musical, devendo apresentar uma impressão ainda
mais enfática do que nas partes precedentes
O Dispositio requer sobretudo calma, prudência, paciência e circunspecção. Mattheson
afirma que se na elaboração o compositor for acometido por languidez,
constrangimento e indolência, tal impacto recairá sobre o ouvinte.
c) Decoratio
Remete ao bom uso da ornamentação em afinidade com a retórica da peça em
questão, dependendo mais do julgamento e da habilidade do intérprete que da real
prescrição do compositor, tendo o gosto e o bom senso como mediadores principais.
d) Memoria
Mecanismos e processos para memorizar o discurso, e por extensão, o modo operante
de cada uma das fases da retórica.
e) Actio, Pronunciatio
É a execução do discurso perante o público, incluindo considerações sobre a
gesticulação, o manejo vocal, e o modo de se “dizer” a música.
2.1.2 Definições e traduções das figuras retórico-musicais
A expressão de sentimentos era acompanhada do emprego de inúmeras figuras
imaginárias (figuras Hypotyposis), divididas em duas categorias; a primeira imita
realisticamente o objeto ou som (como trovão, por ex.), a seguinte denota uma espécie
41
de pintura musical, expressando nossos sentimentos pessoais em relação a estímulos
externos. Tais figuras, denominadas por Forkel de onomatopoeia, tiveram papel
decisivo para a estética subseqüente do Iluminismo (o Romantismo emergente),
focando muito mais a expressão natural de sentimentos individuais do que os conceitos
barrocos mais objetivos do afeto.
-Definições e Traduções:
(Obs: os exemplos mencionados entre parênteses podem ser vistos no item seguinte.)
ABRUPTIO: uma acidental ou inesperada respiração numa composição musical.
ACCENTUS, SUPERJECTIO: ocorre num tempo mais longo, diminuindo o valor da
nota seguinte, sendo aplicado em síncopes.
ACCIACATURA: uma nota adicional, dissonante, acrescentada ao acorde, realizada
imediatamente após a execução.
ANABASIS, ASCENSUS: passagem musical ascendente representando uma imagem
exaltada de um afeto.
ANADIPLOSIS: ocorre quando o último trecho ou passagem aparece no início da
passagem seguinte.
ANALEPSIS: repetição simultânea de um trecho de caráter consonante.
ANAPHORA, REPETITIO: ocorre quando uma mesma frase inicial é repetida em
numerosas partes. (Ex. ground bass).
ANAPLOCE: repetição de uma idéia em vozes distintas. ( Ex. 16).
ANTICIPATIO, PRAESUMPTIO: antecipação do motivo que inicia a frase criando uma
dissonância quando do encontro das vozes.
ANTISTAECHON: a sobreposição de uma melodia na mesma altura com outra com
mudanças harmônicas.
ANTITHESIS, ANTITHETON, CONTRAPOSITUM: uma expressão musical com
oposição de afetos, harmonias e material temático.
APOCOPE: a omissão ou corte da nota final em uma das vozes da composição.
APOSIOPESIS: refere-se a um intencional e expressivo uso do silêncio na composição.
( Ex. 13).
42
APOTOMIA: uma reescrita enarmônica do semitom.
ASSIMILATIO, HOMOIOSIS: a representação musical de uma imagem do texto.
( Ex. 03).
AUXESIS, INCREMENTUM: sucessivas repetições de uma passagem musical em
alturas diferentes.ou na mesma altura. ( Ex. 16).
BOMBUS, BOMBI, BOMBILANS: quatro notas idênticas numa rápida sucessão.
( Ex. 08, parte do contínuo).
CADENTIA DURIUSCULA: uma dissonância na antepenúltima harmonia da cadência.
CATABASIS, DESCENSUS: uma passagem musical descendente procurando evocar
imagens negativas. ( Ex. 09).
CIRCULATIO, CIRCULO, KYKLOSIS: uma série formada usualmente por oito notas em
desenho circular. ( Ex. A).
CLIMAX, GRADATIO: uma seqüência de notas (ascendente ou descendente) de uma
voz repetida num registro mais alto ou mais baixo movendo-se paralelamente numa
gradual ascensão sonora.
COMPLEXIO, COMPLEXUS, SYMPLOCE: passagem musical que se repete na
abertura da frase e em sua conclusão.
CONGERIES, SYNATHROISMUS: uma acumulação alternando consonâncias perfeitas
e imperfeitas, causando instabilidade harmônica. ( Ex. 12).
CONSONANTIAE, IMPROPRIAE: falsas consonâncias, como quartas justas, quintas
aumentadas e diminutas, segundas aumentadas e sétimas diminutas.
CORTA: uma figura de 3 notas com duração equivalente à soma de outras duas.
DIMINUTIO, MEIOSIS: subdivisão do material temático em notas com valores
proporcionalmente curtos.
DISTRIBUTIO: processo retórico-musical em que os motivos ou frases individuais de
um tema ou seção da composição são desenvolvidos antes de proceder-se ao material
seguinte.
DIBITATIO: um ritmo ou progressão harmônico intencionalmente ambíguo. (Ex.14).
ELLIPSIS, SYNECDOCHE: a omissão de uma consonância esperada, ou abrupta
interrupção da música.
EMPHASIS: passagem musical enfatizando o significado do texto. (Exs. 04-A e 04-B).
43
EPANADIPLOSIS, REDUPLICATIO: ocorre quando a idéia musical exposta no início da
peça reaparece no final da mesma peça.
EPANALEPSIS, RESUMPTIO: a ênfase por meio da repetição frequente de uma
expressão. Outro significado assemelha-se ao da EPANADIPLOSIS.
EPANODOS, REGRESSIO, REDITUS: repetição retrógrada da frase.
EPIPHORA, EPISTROPHE: ocorre quando numerosas passagens subseqüentes
concluem-se com a mesma expressão ou palavra.
EPIZEUXIS: uma imediata e enfática repetição de uma palavra, nota, motivo ou frase.
( Exs. 06 e 07).
EXCLAMATIO, ECPHONESIS: uma exclamação musical, freqüentemente associada a
uma exclamação num texto. ( Ex. 03).
EXTENSIO: o prolongamento de uma dissonância.
FAUX BOURDON, CATACHRESIS, SIMUL PROCEDENTIA: uma passagem musical
caracterizada por sucessivas progressões de sextas em movimento paralelo.
FUGA: forma composicional onde uma voz principal é imitada por vozes subseqüentes.
GROPPO: motivo de quatro notas formado em arco , mantendo em comum as 1ª e 3ª
notas. ( Ex. 05 ).
HETEROLEPSIS: a inclusão de uma voz dentro da extensão de outra.
HOMOIOPTOTON, HOMOIOTELEUTON: pausa geral em todas vozes, interrompendo
ou antecipando uma cadência. Assemelha-se a EPIPHORA.
HYPALLAGE: a inversão de um tema numa fuga.
HYPERBATON: transferência de notas ou frases de seu registro normal para diferentes
registros.
HYPERBOLE, LICENTIA: ocorre quando há um excesso na extensão normal da
melodia, representando um afeto monstruoso ou abominável. ( Ex. 03).
HYPOTYPOSIS: uma representação viva de imagens encontradas no texto. (Ex. 07).
INCHOATIO IMPERFECTA: a omissão de uma consonância perfeita no início na
melodia, sendo a mesma realizada pelo baixo contínuo.
INTERROGATIO: figura usada para inquirir ou enfatizar o texto ou expressão musical,
podendo ser concatenada por pausas, ou por meio de uma cadência imperfeita.
LONGINQUA DISTANTIA: distância entre 2 vozes vizinhas excedendo uma 12ª .
44
MESSANZA: uma série de quatro notas de curta duração movendo-se passo a passo
usada de maneira ornamental. ( Ex. 04-A).
METABASIS, TRANSGRESSIO: cruzamento de duas vozes.
METALEPSIS, TRANSUMPTIO: forma fugal para duas ou mais vozes, com um sujeito
em duas partes.
MIMESIS, ETHOPHONIA, IMITATIO: repetição de um tema em diferentes alturas,
podendo ou não ser estrita. ( Ex. 14).
MORA: a resolução ascendente de uma suspensão quando um movimento
descendente é esperado.
MULTIPLICATIO: a subdivisão de uma nota dissonante longa em duas ou mais notas.
( Ex. 14).
MUTATIO TONE: alteração irregular de um modo ligada à expressão afetiva do texto.
NOEMA: passagem homofônica consonante com textura contrapontística.
PALILOGIA: repetição de um tema em alturas e vozes iguais ou distintas.
PARAGOGE, MANUBRIUM, SUPPLEMENTUM: uma cadência ou coda acompanhada
de um pedal no fim de uma composição.
PAREMBOLE, INTERJECTIO: ocorre quando outra voz é acrescentada a duas ou mais
vozes de uma fuga no início de uma composição, mudando a natureza da fuga, mas
inserindo consonâncias no espaço entre as vozes.
PARENTHESIS: representação musical de um parênteses no texto.
PARONOMASIA: repetição de uma passagem musical com adições ou alterações a fim
de enfatizar o conteúdo da mesma. ( Ex. 11 ).
PARRHESIA, LICENTIA: inserção de sétimas ou outros intervalos dissonantes
livremente misturadas na textura harmônica. ( Ex. 12).
PASSUS DURIUSCULUS: alteração cromática presente numa linha melódica
ascendente ou descendente.
PATHOPOEIA: a veemente representação de um afeto intenso por meio de semitons.
( Ex. A).
PAUSA: figura musical de silêncio podendo representar, como expressão musical,
recurso de articulação técnica, facilitando a clareza e diferenciação da estrutura e/ou
denotando imagens ou pensamentos presentes no texto.( Ex. 06 ).
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PLEONASMUS: prolongamento de passagens dissonantes através de suspensões
(síncopes), inserindo modificações no texto a fim de enfatizar o afeto.
POLYPTOTON: a repetição de uma passagem melódica em registros diversos.
POLYSYNDETON: repetição sucessiva de um acento na mesma voz.
PROLONGATIO: uma dissonância ou síncope de duração maior que sua consonância
precedente.
REPERCUSSIO: modificação de um intervalo na resposta de uma fuga.
RETARDATIO: uma síncope prolongada cuja dissonância é resolvida
ascendentemente.
RIBATTUTA: aceleração de um ritmo a fim de embelezar uma tenuta (nota sustentada),
gerando um trilo.
SALTI COMPOSTI: figuração de quatro notas consistindo em três sucessivos saltos
consonantes.
SALTO SEMPLICE: um salto de intervalo consonante.
SALTUS DURIUSCULUS: um salto de intervalo dissonante.
SCHEMATOIDES: ocorre quando passagens melodicamente idênticas são
representadas com figurações rítmicas distintas, mudando unicamente os valores,
sendo eles proporcionalmente encurtados ou aumentados. ( Ex. 17).
SUBSUMPTIO, QUAESITIO NOTAE: ocorre quando entre duas notas regulares
ascendentes ou descendentes separadas por terças, uma outra é inserida e
gentilmente executada na performance.
SUSPENSIO: um atraso no surgimento do principal material temático de uma
composição.
SUSPIRATIO, STENASMUS: expressão afetiva de um suspiro representado por meio
de pausas. ( Ex. 13 ).
SYNAERESIS: a substituição de duas notas por uma silaba ou de duas silabas por
uma nota. Também era entendida como sincope ou suspensão.
SYNCOPATIO, LIGATURA: uma suspensão com ou sem uma dissonância resultante.
( Ex. 11 ).
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SYNONYMIA: alteração de uma idéia musical enfatizando o conteúdo expressivo, seja
por meio de mudança de valores nas notas, inversões, repetições, ou progressões
canônicas.
TIRATA: passagem escalar rápida de notas de mesma duração. ( Ex. 08 ).
TMESIS: interrupção acidental de uma melodia em fragmentos.
TRANSITUS, CELERITAS, COMMISSURA, DEMINUTIO, SYMBLEMA: uma
dissonância ou nota de passagem entre duas outras consonâncias. ( Ex. 12 ).
TREMOLO, TRILLO: rápida alternância ornamental de duas notas adjacentes.
VARIATIO, COLORATURA, DIMUNUTIO, PASSAGGIO: uma passagem melódica
provida de uma variedade de embelezamentos. ( Ex. 15).
2.2 O Simbolismo e a Retórica em J. S. Bach
Enquanto o Barroco – cuja etimologia significa “estranho”, “bizarro”, ”extraordinário” –
caminha para o ornamental, a polifonia de Bach vai, no decorrer de sua obra,
assumindo um aspecto cada vez mais abstrato e universal. Por sua música passam
todos os tempos históricos. Em resposta ao dominante pensamento racionalista e
causal de Descartes, Bach afirma sua visão de mundo pessoal, centrada na tradição
medieval, na teologia cristã e no princípio aristotélico integrador de idéia e forma. Sua
música descreve um universo uno, orgânico e espiritual; a produção humana não
sobressai pela divisão entre self (ego) e não-self (mundo) ; a forma jamais aprisiona a
substância. Daí sua permanente atualidade e sua total independência da estética
mecanicista, apesar do aparente racionalismo e cerebralismo. A geometria
composicional de J.S.Bach, ao mesmo tempo em que dispõe de uma precisão
matemática, mobiliza fluência e expressividade emocional poucas vezes traduzidas na
música ocidental de maneira tão convincente – seja em obras mais simples e didáticas,
como as Invenções a duas e três vozes, seja em obras polifônicas complexas, como
A Arte da Fuga, Oferenda Musical, A Paixão segundo São Mateus e a Paixão segundo
São João. Sua rede polifônica reproduz retrações e expansões de sentido emocional e,
mesmo ligada filosófica e esteticamente à Teoria dos Afetos, transcende os modelos da
época.
47
A exploração dos afetos foi uma preocupação constante e natural na produção musical
de Bach, talvez mais do que em qualquer outro compositor barroco. As regras de
retórica vem de encontro com a própria noção de simetria na obra do compositor. Os
motivos temáticos na obra de Bach compõem a forma musical não como blocos ou
unidades elementares que se encadeiam, mas como estruturas múltiplas, cujas partes e
padrões característicos são, em qualquer escala, do micro ao macro, semelhantes ao
todo. Em razão disso, a forma musical em Bach não pode ser analisada
seqüencialmente, mas pelos graus de interconexão e contextualização do próprio
discurso sonoro. Dentre os compositores barrocos, Bach foi o que mais representou de
forma pictórica a emoção através de imagens simbólicas. As quase duzentas cantatas
de Bach exprimem em música tudo o que é possível expressar do mundo; e o fazem
com uma sensibilidade até então inexplorada, grande inventividade musical, coerência
arquitetônica e disciplina, contundência retórica, perspicácia analítica e emoção no
tratamento dado ao texto. Além das relações numéricas presentes em toda sua obra
(em sintonia com sua essência simétrica), as regras da retórica, bem como a
representação gráfica e os contornos sonoros aludindo a sentimentos específicos,
introjetam em sua música intensa expressividade e peculiar profundidade.
As obras sacras, com o elemento textual, aludem ainda mais diretamente a significados
específicos de natureza retórica. Por ter rompido as premissas históricas e religiosas, a
produção vocal de Bach que chegou até nós, como as duas paixões, o Oratório de
Natal, os motetos e o manancial de cantatas, traduz diretamente a filosofia musical
barroca. A linguagem barroca é expressiva, mas também empolada, sobrecarregada
de ornamentos, o que a torna muitas vezes incompreensível para nós. Usa e abusa de
emblemas, alegorias, símbolos e imagens lingüísticas de forte sensualidade, ás vezes
até grosseiras; no entanto, estimula o senso artístico do compositor, constituindo-lhe
uma base favorável. Sem eufemismos ou rodeios, os textos das cantatas tratam de
temas muitas vezes reprimidos pela sociedade burguesa da época, como a morte, o
medo, a dor, humildade, ira e excitação. A partir deles, Bach criou imagens sonoras,
símbolos, metáforas e paródias musicais. Por meio das criações contrapontísticas, a
crueza das palavras ramificou-se e desenvolveu-se. Os critérios de Bach para a escolha
dos textos eram os sentimentos, a linguagem figurada, o simbolismo e a retórica, tudo a
48
fim de levar o ouvinte a contemplação. Em Bach, a interpretação musical dos textos vai
da prédica retórica, que se constituía em movimentos completos, à pintura específica de
palavras isoladas; mas também engloba toda a linguagem simbólica daquela época,
como símbolos musicais, caso uma imagem pictórica precisasse ser evocada por meio
de uma frase musical. Dessa maneira, suas obras manifestam uma diversidade pura e
inimaginável.
Retoricamente podemos observar a representação pictórica direta da mensagem do
texto, onde os contornos sonoros evidenciam isso mais nitidamente, como também uma
evocação mais indireta, através de uma sugestão sustentada no vocabulário
convencionado na época.
Exemplos:
* Paixão segundo São Mateus
No recitativo n.28, 1ª parte, enquanto o baixo diz: “O Salvador cai diante de seu Pai,
elevando-nos por cima de nossas quedas para recuperarmos a graça de Deus”, as
cordas desenvolvem o seguinte motivo descendente, representando a queda, enquanto
ao ser dito “elevando-nos todos”, a linha do baixo também se eleva.
49
No recitativo n.60, já na 2ª parte, enquanto o contralto recita: “Piedade Senhor! Eis aqui
o Salvador atado. Oh! Açoites, golpes, feridas!” , o texto é representado musicalmente
por meio de notas pontuadas nas cordas, representando golpes de chicote.
No recitativo n.73a, o evangelista anuncia: “Eis que o véu do templo se partiu em dois,
a terra tremeu, agitaram-se as rochas e abriram-se os sepulcros”, momento
representado musicalmente por grande carga de tensão dramática.
50
* Cantata BWV 56
No 1º recitativo o baixo ressalta que “minha permanência no mundo é como uma
travessia marina; a tristeza, o sofrimento e a dor são as ondas que me conduzem á
morte, e me aconchegam dia a dia.” O desenho das ondas é assim representado pelo
violoncelo (através de desenhos retóricos da figura Circulatio):
Tal acompanhamento é subitamente interrompido quando o viajante cansado abandona
o navio e chega ao céu (“navegarei com meu barco até o reino celestial, aonde
chegarei junto aos justos”).
51
*Motivos denotando a ação do demônio.
Cantata BWV 40
No texto da ária, o baixo canta: “serpente infernal, não te aflinges, aquele que, vitorioso,
nasceu, pisou na tua cabeça”. As cordas traduzem a imagem por meio de inúmeros
contornos melódicos.
*Motivos representando ânsia
Cantata BWV 61
No recitativo abaixo, o barítono diz: “Eis que estou à porta e bato” , ação representada
pelos pizzicatos nas cordas.
52
Cantata BWV 95
Na ária seguinte , o tenor expressa sua expectativa ao dizer que conta as horas que lhe
faltam para alcançar a eternidade. O tic-tac do relógio é desenhado nos pizzicatos das
cordas.
*Representação de fúria
Cantata BWV 81
“As espumantes ondas das torrentes de Belial (Satanás) redobram sua fúria. Um cristão
há de resistir como uma rocha os ventos da turbulência”. O texto dessa ária para tenor
é assim representado:
53
*Motivos ligados à tristeza
Cada afeto específico também exigia uma tonalidade especifica, bem como certos
desenhos melódicos ou harmônicos. Os motivos de dor (no texto remetendo á lágrimas,
cruz sendo carregada, suspiros, soluços, hesitação, queda, pecado) eram
freqüentemente representados por cromatismos, ou trechos com muitos acidentes,
progressões cromáticas, apogiaturas descendentes, harmonias dissonantes, pausas
em contratempo, suspensões e tonalidades e instrumentação mais escuras,
cruzamentos de vozes, ou grandes intervalos descendentes.
Cantata BWV 21
“Lamentos, lágrimas, tristeza, miséria, temor e morte corroem meu coração oprimido;
sinto desolação e dor.” A ária para soprano é representada por intensas alterações
acidentais.
Cantata BWV 136
No texto cantado pelo tenor, “sentimos as marcas do pecado que Adão fez cair sobre
nós” , é metaforizado pelos intervalos descendente das colcheias em tercina, feito
pelas cordas.
54
*Representações de angústia
Cantata BWV 105
O coro inicial dessa cantata, um adágio em sol menor, cujos cromatismos, síncopes , e
apogiaturas, somadas a um poderoso baixo, transmitem um quadro de angústia e
culpa.
Cantata BWV 60
Bach usa, do inicio ao fim do coral final dessa cantata (ilustrada no exemplo seguinte),
ousados saltos melódicos, ásperas dissonâncias, uso abundante de acordes alterados,
tons de passagem, antecipações e retardos a fim de criar uma imagem assustadora das
agruras da existência e de sua ânsia pela libertação da servidão neste mundo. Usa
estranhamente uma escala de tons inteiros nas 4 primeiras notas. Um salto de oitava
ilustra a palavra grosser (grande), remetendo a uma grande mágoa , e um cromatismo
descendente na palavra jammer (mágoa). (2º sistema, 3º compasso).
55
*Motivos representando lágrimas
Cantata BWV 125
A remissão às lágrimas (“com olhos marejados dirijo-me até a morada do Salvador”) é
expressa aqui por meio de apogiaturas descendentes.
56
*Motivos representando culpa, punição
Cantata BWV 54
“ Resistas, pois, ao pecado; não permitas que se engane “ . O texto em questão é
representado com a presença dissonante da sétima no 1º compasso, logo no início da
ária, e a nota intermitente representando a vitória da perseverança resistindo ao
pecado.
Cantata BWV 102
“Ai da alma que não reconheça sua culpa, e pedindo para si o castigo, siga
obstinadamente”. A fim de expressar uma dor muito intensa, o compositor, além dos
cromatismos, notas longas, e andamentos mais lentos, faz uso também de tonalidades
mais bizarras para a época, como fá menor.
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*Motivos denotando a crucificação de Jesus
Bach muitas vezes representava a crucificação utilizando cruzamento entre vozes
distintas, como no coro inicial da Paixão segundo São João, ou através da figura de
retórica Circulatio.
Cantata BWV 4
“Cristo jazia amordaçado, sacrificado por nossos pecados.” O texto ressalta a
crucificação com o desenho Circulatio na palavra Cruz, no 5º movimento da cantata.
Ex. A
*Motivos ligados à alegria e esperança
Expresso a maioria das vezes através de desenhos rápidos em semicolcheias ou em
duas semicolcheias seguidas de colcheia (ou por figuras proporcionais).
Cantata BWV 42
O texto diz que Jesus é um escudo, e que para alguns o sol deve brilhar.
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*Motivos pastorais
São geralmente associados ao uso de tercinas, representando calma, serenidade.
Cantata BWV 104
No coro inicial , o texto diz: “Pastor de Israel, escuta, tu que pastoreia com suas
ovelhas, mostra-te, tu que se senta sobre querubins” . È representado pela figura em
tercinas.
2.3 O instrumental da época
Uma característica fundamental dos instrumentos barrocos é a transparência da
sonoridade. Eles podem obter um efeito robusto, mas nunca estrondoso. A afinação da
época também contribui para tal resultado. A natureza do instrumento normalmente era
preservada no aspecto idiomático; tanto no que concerne á técnica como também na
escolha especifica da tonalidade para cada instrumento. Assim, em instrumentos como
a flauta transversal barroca, tonalidades com muitos acidentes não eram
freqüentemente exploradas, a não ser para se ressaltar mais veementemente o afeto
da obra. Isso se deve à natureza do instrumento. Tonalidades mais distantes de Dó
maior obrigam o flautista a utilizar os chamados dedilhados em forquilha (onde os
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dedos são posicionados de forma incomum), obtendo sonoridades mais escuras em
algumas notas. As sutis diferenças de intervalo eram usadas como recurso de
expressão. A estrutura e composição material de cada instrumento favoreciam também
uma grande exploração de harmônicos e de timbres diferenciados.
Os compositores da época buscavam uma ligação estreita entre o instrumental e o
afeto retórico a ser explorado. Assim, relatos da época, como os de F.Raguenet (1710
ca.), ressaltam:
Os franceses têm os oboés, que, pelos seus timbres, igualmente doces
e penetrantes, apresentam infinitas vantagens sobre os violinos, nas
árias animadas e vivas, e as flautas, que tantos dos nossos grandes
artistas ensinaram a gemer de maneira tão comovente nas nossas árias
plangentes e a suspirar tão amorosamente naquelas que são mais
ternas 23.
Já C. Avison (1752) assinala:
O oboé expressará melhor o cantabile, ou estilo cantante, e pode ser
usado em todos os movimentos que tenham essa denominação, em
especial naqueles que tendam para o alegre e festivo...A flauta alemã ...
expressará melhor o estilo lânguido ou melancólico... Com esses dois
instrumentos, a passagem para tonalidades extremas, o uso do
staccato, ou separação distinta das notas, e todos os saltos irregulares,
intervalos interrompidos ou desiguais devem se evitados.
Como a melhor música instrumental pode ser considerada uma
imitação da vocal, assim também os instrumentos de cordas, com seu
timbre expressivo e as mudanças mais minúsculas de que são capazes
na progressão da melodia, demonstram sua aproximação máxima à
perfeição da voz humana.24.
23 RAGUENET Apud DART (1960). 24 AVISON Apud DART (1960).
60
Combinações instrumentais específicas também eram utilizadas para destacar o afeto
da peça, como o uso da instrumentação peculiar na ária para soprano, flauta traverso e
dois oboés da caccia (Paixão seg. São Matheus, de J.S.Bach) onde a ausência de um
baixo continuo reforça a desesperança e desolação do texto, que diz: “Quero morrer,
meu Salvador”.
Enfim, o instrumental no Barroco desempenhou especial papel na exploração dos
afetos nas obras pelos compositores.
2.4 A abordagem de sonatas barrocas
As representações pictóricas presentes nos textos de obras vocais barrocas podem
servir de elo ao intérprete na abordagem de peças instrumentais. A interpretação de
uma peça musical é mais efetiva e tem mais significado se o intérprete sabe o que a
música exige dele, o que deseja comunicar, qual sua finalidade. As sonatas barrocas,
por mais ligeiras e alegres ou aparentemente frívolas, necessitam possuir coerência,
seja por sua relação harmônica, seu caráter (afeto) dominante, ou sua simples relação
temática. Dentro desta unidade, deve abarcar suficiente variedade e contraste, bem
como sustentar a audição do ouvinte. A música associada a palavras pode emitir forma,
substância e caráter do significado das palavras. A música meramente instrumental, ao
contrário, deve gerar por si mesma suas estruturas e recursos composicionais.
61
O músico, desde o início, deve sentir e comunicar a forma e desenvolvimento da sonata
ao longo de toda sua extensão, num processo de abordagem gestáltico.
Em termos gerais, remetemos inicialmente à natureza dos tons e temperamentos, bem
como às indicações de caráter descritas no início da peça ( como por ex. Spirituoso,
Affettuoso), indicando o sentimento dominante. Em seguida, aos aspectos agógicos
inerentes ao discurso, como:
*Dissonâncias e modulações: produzem uma variedade de diferentes afetos, gerando
propositalmente tensão no discurso.
*Intervalos próximos, ligados, geralmente expressando a melancolia e a ternura;
enquanto os saltos e notas articuladas remetendo a alegria .
*Passagens lentas e cromáticas normalmente aludindo a sentimentos dolorosos.
*Ritmos com conotações afetivas especificas (ex, duas semicolcheias e uma colcheia
aludindo a um caráter guerreiro).
A disciplina da retórica requer ordem e proporção. No séc. XVIII, a simetria e a justa
proporção eram muito cultivadas tanto por arquitetos quanto por compositores. Uma
frase musical completa equivale a uma frase de um discurso, grupos de duas ou três
notas ( = sílabas ) equivalem as palavras que constituem a frase. O realce a sílabas
fortes ou fracas requer coerência no sentido e ritmo das palavras. Cada frase tem um
clímax retórico que se relaciona com sua cadência. A arte do intérprete era combinar a
plena consciência e identificação dos afetos de uma peça com sua formulação em
padrões e estruturas , tudo isso com uma impressão de espontaneidade, como se ele
fosse o próprio autor da peça. Nas danças barrocas, agrupadas nas Suítes, o
conhecimento de seu caráter e coreografia ajuda a compreender seu significado. Os
movimentos lento-rápido-lento-rápido das sonatas de câmara asseguravam efetividade
retórica: um começo sedutor para captar a atenção do público, um allegro mais
comprometido, um adágio contemplativo, e um final feliz para reanimar o espírito. O
intérprete deve levar em consideração os limites expressivos estipulados pela música.
Dentro desses limites o tocar deve ser livre, relaxado e sincero para assim poder deixar
62
fluir os afetos de uma maneira clara e equilibrada. O contrário disto seria o intérprete se
apoderar da peça para mostrar habilidades e afetos alheios à composição. A idéia de
interpretação original está no equilíbrio entre o intérprete e a composição. O intérprete
precisa, para exercer sua função, de um bom controle técnico de seu instrumento,
poder decifrar e controlar afetos, abstrair idéias e inspiradamente comunicá-las à
audiência através do som.
2.5 Perspectivas didáticas
Talvez a Música Antiga nunca tenha despertado tanto interesse como na época atual.
Na era da informação, o acesso a fontes diversas sobre instrumentos antigos,
manuscritos originais, tratados e fac-símiles apresenta-se a cada dia mais irrestrito.
Conseqüentemente, o estudo sobre as práticas de execução também vem se
ampliando; mobilizando professores, intérpretes e estudiosos a se atualizarem e
expandirem seus horizontes em relação a outros paradigmas. A diversidade da
indústria fonográfica, associada aos meios de transmissão via Internet, tem propiciado
um material inestimável de difusão de conhecimentos acerca desse universo. O
interesse se faz ainda mais presente nos núcleos e festivais dedicados ao assunto
realizados pelo país, atendendo uma demanda crescente de interessados. Brasileiros
com formação na Europa procuram retornar ao país de origem trazendo novas
perspectivas , encontrando no Brasil um campo fértil para a difusão de valiosos
conhecimentos. O estudo da chamada Música Colonial Brasileira tem estado cada vez
mais em evidência, redescobrindo a identidade sócio-cultural do Brasil em tempos
remotos.
Tal conjuntura motivou-me a contribuir com mais uma fonte de consulta e pesquisa no
que concerne a um dos principais elementos ligados ao estudo da Música Antiga: o
afeto-retórico. Dado a gama de complexidade envolvendo o elemento expressivo na
música barroca, senti necessária a concatenação e organização do principal material
ligado ao assunto sob a forma de um compêndio, despertando um interesse posterior
do estudioso a fim de aprofundar-se de acordo com sua necessidade. O elemento
63
pictórico presente no texto ( tão bem representado no Barroco através de Bach) poderá
servir de ponte ao instrumentista na abordagem retórico-afetiva das peças. Ressalto
também a importância do material presente ao estudioso ou intérprete do instrumento
moderno interessado em ampliar ou mesmo reavaliar suas concepções estilísticas
sobre o Barroco, incutindo-lhe o prisma do afeto e da retórica.
64
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Finalizando, espero ter contribuído de alguma forma para o despertar do interesse
sobre as implicações retóricas presentes no Barroco, demonstrando a necessidade
proeminente do artista da época em persuadir o ouvinte através do discurso bem
elaborado e coeso, guiado pelo afeto da obra. Espero, de alguma maneira, ajudar a
resgatar conceitos muitas vezes negligenciados no atual estudo teórico e prático da
Música Antiga, oferecendo mais um material de apoio àquele interessado em descobrir
ou se aprofundar nesse universo fascinante.
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