BA&D Estado e Pol Soc v17 n4 - Web

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Revista temática que teve seu primeiro exemplar publicado em 1991. Com uma média de quatro lançamentos anuais, a publicação aborda temas atuais, de forma contextualizada, retratando a realidade do estado. Através de artigos e entrevistas, elaborados por colaboradores externos e especialistas da SEI, a revista proporciona uma reflexão sobre questões de interesse da sociedade.

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  • ISSN 0103 8117

    BAHIA ANLISE & DADOSSalvador SEI v. 17 n. 4 p. 1115-1201 jan./mar. 2008

  • Governo do Estado da BahiaJaques Wagner

    Secretaria do Planejamento SeplanRonald de Arantes Lobato

    Superintendncia de Estudos Econmicose Sociais da Bahia SEI

    Jos Geraldo dos Reis Santos

    Diretoria de Pesquisas DipeqJos Ribeiro Soares Guimares

    Coordenao de Pesquisas Sociais CopesLaumar Neves de Souza

    BAHIA ANLISE & DADOS uma publicao trimestral da SEI, autarquia vinculada Secre-taria do Planejamento. Divulga a produo regular dos tcnicos da SEI e de colaboradores externos. Disponvel para consultas e download no site http://www.sei.ba.gov.br.As opinies emitidas nos textos assinados so de total responsabilidade dos autores.Esta publicao est indexada no Ulrichs International Periodicals Directory e na Library of Congress.

    Conselho EditorialAndr Garcez Ghirardi, ngela Borges, ngela Franco, Antnio Wilson Ferreira Menezes, Ardemirio de Barros Silva, Asher Kiperstok, Carlos

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    Moreira de Carvalho, Jair Sampaio Soares Junior, Jos Eli da Veiga, Jos Geraldo dos Reis Santos, Jos Ribeiro Soares Guimares, Lino Mosquera Navarro, Luiz Antnio Pinto de Oliveira, Luiz Filgueiras, Luiz Mrio Ribeiro Vieira, Moema Jos de Carvalho Augusto, Mnica de Moura Pires, Ndia

    Hage Fialho, Nadya Arajo Guimares, Oswaldo Guerra, Renata Prosrpio, Renato Leone Miranda Lda, Ricardo Abramovay, Rita Pimentel, Tereza

    Lcia Muricy de Abreu, Vitor de Athayde Couto.

    Conselho Editorial Especial TemticoAccia Batista Dias, Ana Cristina Vieira, Andr Borges de Carvalho, Anete

    Brito Leal Ivo, Claudia Mazzei Nogueira, Denise Cristina Vitale Ramos Mendes, Jairnilson Silva Paim, Ktia Siqueira de Freitas, Laumar Neves

    de Souza, Mrcia dos Santos Macdo.

    Coordenao Editorialngela Borges UCSal

    Laumar Neves de Souza Copes/SEI

    Reviso de LinguagemChristiane Eide June (ing.), Luis Fernando Sarno (port.)

    Coordenao de Documentao e Biblioteca CobiAna Paula Sampaio

    NormalizaoEliana Marta G. Silva Souza / Raimundo Pereira Santos

    Coordenao de Disseminao de Informaes CodinMrcia Santos

    Editoria de Arte e de EstiloElisabete Cristina Teixeira Barretto

    Produo ExecutivaAnna Luiza Sapucaia

    CapaNando Cordeiro

    EditoraoAutor Visual Design Grfico

    FotosAgecom, Joka Madruga/FLICKR, Sedes, Stock.XCHNG

    Bahia Anlise & Dados, v. 1 (1991- ) Salvador: Superintendncia de Estudos Econmicos eSociais da Bahia, 2007. v.17 n. 2 Trimestral ISSN 0103 8117

    CDU 338 (813.8)

    Impresso: EGBATiragem: 1.000 exemplares

    Av. Luiz Viana Filho, 4 Av., n 435, 2 andar CABCEP: 41.745-002 Salvador Bahia

    Tel.: (71) 3115-4822 / Fax: (71) [email protected]

  • Apresentao 1119

    Polticas sociais, pobreza e trabalho: dilemas do bem-estar em pases de capitalismo perifrico

    Anete Ivo

    1121

    Modelo de desenvolvimento de pacto socialElsa Sousa Kraychete

    1135

    Democracia e participao na gesto de polticas pblicas: teoria e prtica

    Denise Vitale

    1147

    Polticas sociais e diversidade: o desafio de transversalizar gnero e raa

    Mrcia dos Santos Macdo

    1155

    Tendncias sociodemogrficas na Bahia e os novos desafios das polticas sociais

    Jos Ribeiro S. Guimares

    1167

    A integrao social no MercosulBouzid Izerrougene

    1181

    Sistemas de indicadores ou indicadores sintticos: do que precisam os gestores de

    programas sociais?Wadih Joo Scandar NetoPaulo de Martino Jannuzzi

    Pedro Luis do Nascimento Silva

    1191

    SUMRIO

  • APRESENTAO

    A persistncia de grandes contingentes populacionais em situao de pobreza extrema e os nveis extremos de desigualdade socioeconmica mesmo em fases de expanso econmica fizeram com que a temtica da proteo social estivesse sempre presente no debate sobre o desenvolvimento brasileiro. Nos ltimos anos, aps quase duas dcadas de ajustes

    estruturais na economia, de reforma da seguridade social e de introduo de novos tipos de poltica

    que se distanciam dos modelos de proteo social construdos no ps-guerra, o debate sobre o

    tema vem sendo renovado com anlises que buscam dar conta das conseqncias das mudan-

    as macroeconmicas sobre as condies de reproduo dos segmentos mais pauperizados da

    populao, do perfil desses segmentos, mais complexo do que no passado, do carter das novas

    polticas sociais e que buscam avaliar em medida elas tm conseguido alterar, significativamente,

    o quadro de marginalizao econmica e social vivenciado por extensa parcela da populao.

    Esse nmero da Revista Bahia Anlise & Dados busca contribuir para este debate com a pu-

    blicao de artigos que trazem aportes de carter terico, conceitual e histrico indispensveis

    ao seu aprofundamento e maior qualificao. Nessa medida, o leitor poder debruar-se sobre

    os textos de autoria de alguns especialistas nos quais so abordados elementos fundamentais

    para a discusso sobre a universalizao x focalizao das polticas sociais e a forma como estes

    traos se concretizam no caso brasileiro, em especial nas polticas de transferncia de renda; o

    debate sobre os modelos de desenvolvimento e os pactos sociais, indispensvel para a discusso

    contempornea sobre o papel do Estado na construo e implementao de polticas sociais e

    sobre as novas institucionalidades; a relevante discusso sobre a participao dos cidados na

    formulao, implementao e fiscalizao das polticas sociais; e tambm a importncia da incor-

    porao das dimenses de gnero e raa e suas intersees na formatao das polticas sociais.

    Para complementar esse conjunto de questes, investe-se tambm na reflexo de alguns outros

    pontos que tratam de temas igualmente relevantes para a discusso em tela: as implicaes das

    mudanas scio-demograficas para polticas sociais; a possibilidade de garantir direitos sociais

    fundamentais populao do Mercosul; e a utilidade e limites dos indicadores sintticos para

    subsidiar a implementao e a avaliao de tais polticas.

    Agradecemos a colaborao dos autores e esperamos que, no atual contexto de crise global

    do capitalismo cujas seqelas sociais podem vir a assumir dimenso e contornos extremamente

    graves, esta revista contribua para uma reflexo crtica sobre as manifestaes da questo social no

    Brasil contemporneo e sobre as alternativas para o seu enfrentamento as quais, certamente, iro

    adquirir centralidade crescente nos mbitos acadmico, tcnico e poltico e na opinio pblica.

  • AnEtE Ivo

    BAHIA AnlISE & DADoS, Salvador, v.17, n.4, p.1121-1133, jan./mar. 2008 1121

    Polticas sociais, pobreza e trabalho: dilemas do bem-estar em pases de

    capitalismo perifrico1Anete Ivo*

    BAHIAAnlISE & DADoS

    Resumo

    Este texto analisa a transio da questo social no Brasil con-temporneo, condicionado por polticas de transferncia de renda e suas implicaes sobre o padro de redistribuio da renda. Que efeitos a implementao desses programas tm sobre o padro de desigualdades sociais e a matriz do desenvolvimento? O artigo qualifica teoricamente a questo social e sua especificidade no Brasil; analisa as implicaes de alguns indicadores recentes de desconcentrao da renda, no Brasil, num contexto declinante da renda funcional do trabalho; especifica os processos de heteroge-neidade, segmentao e um conflito redistributivo mais restrito base e conclui, reafirmando a necessidade do Brasil ultrapassar o estgio de reproduo das necessidades, tpico das polticas de tutela de carter assistencial, importantes como alvio do oramento familiar, mas insuficientes, quando distantes de capa-cidades que possibilitem modificar o padro de desenvolvimento em padres de bem-estar social.

    Palavras-chave: Questo social. Polticas sociais. Desigual-dades. Desenvolvimento.

    Abstract

    This text analyses transition of the social question in contem-porary Brazil, conditioned by income transfer policies and their implications on the income redistribution standard. What effects do the implementation of these programmes have on the social in-equality standard and development source? The article theoretically qualifies the social question and its specificity in Brazil; analyses

    the implications of some recent income deconcentration indicators in Brazil in a declining context of functional labour income; specifies

    the heterogenity and segmentation processes and a more restric-tive redistributive conflict to the basis and concludes reaffirming

    the need for Brazil to go beyond the needs reproduction stage, typical of protection policies of an assistential nature. These are important as relief for the family budget but insufficient when distant

    from the capacities that make modifications to the development

    standard for social well-being standards possible.

    Keywords: Social question. Social policies. Inequalities. De-velopment.

    INTRODUO

    A reproduo da pobreza e das desigualdades econmico-sociais nas sociedades capitalistas mo-dernas sempre constituiu-se num dilema para os ideais democrticos de igualdade. No encaminha-mento deste dilema, e em meio ao embate entre socialistas e liberais, o pensamento moderno de-

    lineou um conjunto de princpios e de mecanismos institucionais (polticas e direitos sociais) para afrontar a crescente diversificao socioeconmica das so-ciedades urbano-industriais, a qual chamamos de questo social.

    No Brasil, essa idia de progresso esteve atrelada, primeiramente, superao das relaes escravistas e aos ideais republicanos do final do sculo XIX. E, mais tarde, no contexto do governo Vargas, atrelada formao de um mercado de trabalho urbano-industrial com base na relao de trabalho salarial. Mas o projeto de modernizao nacional se conso-lidou no Brasil no perodo de construo do projeto

    * Doutora em Sociologia, professora do Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais da UFBA, pesquisadora snior do CRH/UFBA e pesquisadora associada ao Centre de Recherche et Documentation sur lAmrique latine Credal/CNRS-Frana, desde 1996. Foi titular da Ctedra Simon Bolivar da Universidade de Paris III (2000) e Professora Convidada da Universidade de Paris XII (2006). Autora do livro Metamorfoses da Questo Democrtica: governabilidade e Pobreza (Buenos Aires: CLACSO), 2001. [email protected]

    1 Agradeo as contribuies de Jos Ricardo Ramalho, por ocasio de minha tese, e aos comentrios de ngela Borges a este texto.

  • Polticas sociais, Pobreza e trabalho: dilemas do bem-estar em Pases de caPitalismo Perifrico

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    nacional-desenvolvimentista dos anos 1950/1960. No entanto, o ideal de igualdade como princpio do desenvolvimento econmico esteve ausente do paradigma histrico brasileiro. Imensos contingen-tes de trabalhadores ficaram fora das relaes de trabalho assalariadas, despro-tegidos das leis trabalhistas, constituindo um imenso contin-gente do exrcito industrial de reserva1, formado por famlias de trabalhadores pobres que integravam o chamado setor informal urbano e a economia agrcola de subsistncia2.

    Assim, a reproduo da pobreza e das desigual-dades sociais no Brasil, como eixo da questo so-cial nacional, resulta de uma herana patrimonial autoritria3; da insero precria de trabalhadores no mercado de trabalho urbano-industrial; da seleti-vidade de acesso s polticas de proteo em situ-aes de atividade e inatividade; e da insuficincia de renda, mesmo para os trabalhadores da ativa. Esses fatores juntos constituram um imenso setor da economia brasileira vinculado reproduo social do autoconsumo e de subsistncia; e reproduziram imensas desigualdades sociais de renda, e relaes de precarizao e vulnerabilidade social constantes, que, especialmente na dcada de 1990, se agrava quando a reestruturao produtiva atinge o ncleo protegido do mercado de trabalho.

    No encaminhamento de um projeto indito de construo da cidadania no Brasil, na dcada de 1980, o movimento de trabalhadores, articulado a inmeros movimentos sociais, conseguiu reco-nhecer, estender e ampliar os direitos sociais para segmentos de trabalhadores no-contributivos, como a previdncia rural, orientados por uma perspectiva de universalidade. Do ponto de vista das polticas so-ciais, a Constituio Brasileira de 1988 foi inovadora, antecipando-se a um conjunto de polticas de renda bsica, que apenas comeavam a ser discutidas e formuladas na Europa, diante das mudanas do mun-do do trabalho, com o desemprego de longa durao. No entanto, essa perspectiva de universalidade,

    1 Segundo a literatura crtica dos anos 1970/1980. Ver Oliveira (1973) e Souza e Farias (1980), entre outros autores.

    2 Conforme Delgado e Theodoro (2005) analisam e quantificam, em seus artigos, esse processo.

    3 Que no reconhecia cidadania aos homens sem propriedade.

    que marcou as mudanas das polticas sociais na Constituio de 1988, perde gradativamente priori-dade, passando a ao social a orientar-se segundo uma concepo focalizada sobre os mais pobres, especialmente no final dos anos 1990 e incio dos

    anos 2000. Esse deslocamento do

    desenho e da concepo das polticas sociais ocorre num contexto internacional que enfatiza o combate po-

    breza, como condio compensatria aos efeitos perversos dos ajustes da dcada anterior, mas con-verge, ao mesmo tempo, para a demanda histrica da cidadania, no Brasil, na direo da superao das condies de reproduo de inmeras famlias submetidas a nveis de extrema pobreza. Assim, ao final da dcada de 1990, as novas polticas sociais (voltadas para o combate focalizado sobre os mais pobres) se reorientam para a formulao e imple-mentao de programas de transferncia de renda. E esta ao, a partir de 20044, com o governo Lula, ganha eficcia institucional de cobertura nos limites da populao-alvo definida pela Lei Orgnica de Assistncia Social (LOAS).Desde ento se combinam polticas de transferncia de renda de natureza e alcances distintos, expressan-do contextos histricos e foras sociais diferentes na sua construo: aquelas polticas assistenciais que se constituem em direitos sociais bsicos constitucionais, como o Benefcio de Prestao Continuada; e os pro-gramas de transferncia de renda focalizados, como o Bolsa Famlia, de carter compensatrio, mas de alcance massivo. Que efeitos a implementao des-ses programas tm sobre as condies de pobreza, as desigualdades e o padro de desenvolvimento?

    Este texto analisa a transio da questo social no Brasil contemporneo, condicionado por polticas de transferncia de renda de carter multidirecional, e suas implicaes sobre o padro de redistribuio da renda. Que efeitos a implementao desses pro-gramas tm sobre o padro de desigualdades sociais e a matriz do desenvolvimento? Para esta anlise, consideramos a redistribuio como elemento central

    4 O Bolsa Famlia inicia-se como Bolsa Escola em 2001 (Governo FHC) e transforma-se em Bolsa Famlia em 2003 (Governo Lula), cobrindo quase que 100% do universo previsto pela LOAS (famlias com renda familiar per capita de a salrio mnimo).

    O ideal de igualdade como princpio do desenvolvimento econmico esteve ausente do paradigma histrico brasileiro

  • AnEtE Ivo

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    do encaminhamento da questo social, pela qual se efetiva a propriedade da transferncia5 do Estado social frente a duas dimenses crticas do desen-volvimento brasileiro: as desigualdades sociais e a vulnerabilidade das relaes de trabalho, no Brasil.

    A primeira parte deste texto qualifica teoricamente a ques-to social e sua especificida-de no Brasil, distinguindo-a da experincia europia, princi-palmente pelas profundas de-sigualdades socioeconmicas e o carter restrito das polticas de proteo social, que impactam sobre o alcance das polticas sociais de transferncia de renda implementadas hoje no Brasil. A segunda parte analisa o impacto das po-lticas de transferncia de renda na superao das condies de pobreza e sobre a desconcentrao de renda, no Brasil. Caracteriza as modalidades de transferncia de renda do Benefcio de Prestao Continuada e o Programa Bolsa Famlia, observando sua relao com indicadores recentes de descon-centrao da renda trabalho, no Brasil, num contexto de declnio da renda funcional do trabalho no mbito da riqueza nacional. Especifica a heterogeneidade e a segmentao de programas previdencirios entre trabalhadores rurais e urbanos e entre segmentos de trabalhadores da ativa e os no-economicamente ativos, homens e mulheres, como reflexo dessas diferentes polticas. Ademais, avalia o impacto des-sas polticas sobre a reproduo familiar e sobre parmetros redistributivos mais amplos (matriz da propriedade de transferncia do Estado social). Na concluso, exploramos algumas conseqncias dessas mudanas sobre o padro redistributivo e a vulnerabilidade social do trabalho, considerando os objetivos mais amplos do bem-estar e o princpio da justia social. O acesso renda a partir da aplicao dos programas focalizados possibilita uma insero mercantil da pobreza ao nvel da auto-reproduo, mas essa insero se faz dissociada da integrao pelo trabalho e distante de capacidades que possi-bilitem a esses indivduos ultrapassar o estgio das necessidades.

    5 Essa propriedade de transferncia analisada em Castel (1995), como elemento central natureza da propriedade do Estado social.

    A NATUREZA DA QUESTO SOCIAL E OS DILEMAS DA MODERNIZAO BRASILEIRA

    Princpios gerais de construo da questo social

    A questo social, enquanto questo pblica, emerge da crtica marxista aos princpios da democracia liberal (liberda-de e igualdades), que, diante do empobrecimento da classe trabalhadora, indagava: ser

    que o indivduo que no come e no dispe de meios para ganhar a vida verdadeiramente livre? A essa questo, posta pelo marxismo, os liberais europeus responderam com a institucionalizao do direito de obter do Estado, por leis sociais, recursos mnimos que tornem possvel uma vida decente, no nvel tolervel da riqueza coletiva (SCHNAPPER, 2002). Segundo Aron (1969), esses direitos sociais no se opem ao direito-liberdade, mas so condies para o exerccio desse direito, ou seja, eles condicionam a liberdade poltica.

    O social, assim, constitui-se uma inveno h-brida, uma mediao instituda na interseo do civil, do poltico (liberdades polticas e igualdade social) conforme Donzelot (1984), no seu livro Linvention du social. Essai sur le declin des passions politiques , associada preocupao de neutralizar as contradies e desigualdades sociais existentes no mbito da sociedade civil e mercantil, produzidas nas sociedades capitalistas industriais e que se opem ou questionam o imaginrio poltico moderno da democracia. Ou seja, as condies de exerccio da democracia, quando confrontadas crescente pauperizao dos trabalhadores, ao final do scu-lo XIX, deram lugar a um conjunto de instituies sociais modernas (polticas sociais e direitos so-ciais), estruturadas na idia de uma solidariedade nacional, que s poderia ser vivida num regime de liberdade, e que se institucionalizou, quela poca, na construo do Estado Providncia, influenciando, mais tarde, a formao do Estado do Bem-estar social, em diversos pases do mundo. As noes de solidariedade ampliada, de direitos sociais e de responsabilidade coletiva estruturaram, ento, o papel social do Estado.

    O acesso renda a partir da aplicao dos programas

    focalizados possibilita uma insero mercantil da pobreza ao

    nvel da auto-reproduo

  • Polticas sociais, Pobreza e trabalho: dilemas do bem-estar em Pases de caPitalismo Perifrico

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    O direito social (com base no clculo do segu-ro) buscava dar garantias aos indivduos contra os prejuzos e riscos advindos da nova diviso social do trabalho no regime capitalista. Esta formulao, segundo Donzelot (1984) avanou de uma idia de direitos civis para uma idia do nosso direito, o direito social.

    Por outro lado, a noo de responsabilidade tambm se altera, passando de uma res-ponsabilidade individual para uma responsabilidade coletiva, a partir de uma socializao dos processos aleatrios de riscos da vida, chamando os indivduos a se implicarem co-letivamente. Essas mediaes acabaram por definir a estruturao do Estado de Bem-estar social em torno de quatro campos principais (SANTOS, 1999): a socializao da economia, pelos direitos da cidada-nia, que reconhece que o capitalismo no apenas constitudo por fatores de produo e pelo mercado, mas por sujeitos sociais com necessidades bsicas; a politizao do Estado, que atribui aos Estados na-cionais o marco normativo e institucional pelo qual se regula o conflito entre economia e sociedade, capital e trabalho6; a segurana civil dos cidados contra a violncia e a garantia da vida; e uma identidade nacio-nal, de modo a sustentar uma legitimidade ampliada.

    Esse regime de solidariedade nacional, pelo qual se encaminhou a questo social, isto , a propriedade da redistribuio do Estado, passa, ento, a ser o fundamento do Estado nacional compatvel com sua definio democrtica.

    Dilemas da questo social brasileira: mercado de trabalho excludente e desigualdades sociais

    Diferenciando-se desses pilares clssicos que organizaram as diferentes concepes dos Estados sociais na Europa, a modernidade brasileira, nucleada na noo de desenvolvimento e no projeto urbano-industrial dos anos 1950 e 1960, esteve marcada pela reproduo de desigualdades socioeconmicas, gera-das, inclusive, por formas institucionais excludentes. A proteo social criada na Era Vargas foi seletiva e

    6 Ver a respeito: Polanyi (2000); Rosanvallon (1995); Santos (1999).

    cobriu apenas parcialmente os trabalhadores regidos por relaes de trabalho assalariadas. O resultado foi uma modernizao conservadora7, que obteve enormes avanos do ponto de vista do progresso tcnico, sem alterao qualitativa das relaes sociais

    e sem distribuio de poder, bens e capacidades.

    O pensamento social bra-sileiro e mesmo latino-ameri-cano foi particularmente frtil na construo de uma teoria crtica ao desenvolvimento do capitalismo perifrico, das dcadas de 1960 e 1970, en-caminhando a questo do de-senvolvimento socioeconmico

    no mbito de uma perspectiva nacional e de incluso social via acesso ao mercado do trabalho.

    De uma utopia capaz de aglutinar aes de dife-rentes atores nacionais e mesmo agncias internacio-nais, esse iderio teve, no plano das prticas, grande efeito sobre a orientao de polticas de planejamento regional e de desenvolvimento urbano-industrial, de modernizao agrria, de desenvolvimento tecnolgi-co, bem como no avano de aes e polticas voltadas para a cidadania e a incluso social, como eixos centrais para a construo de ideais de bem-estar social, mesmo incompletos. Em que pese o carter inconcluso desse projeto, expresso na reproduo ampliada de um mercado de trabalho informal e da persistncia de uma agricultura de subsistncia, o desenvolvimento econmico at os anos 1970 pos-sibilitou a incorporao crescente de trabalhadores no mercado de trabalho formal, mas a crise dos anos 1980 e a reestruturao produtiva afetaram esta di-nmica, particularmente a mobilidade de segmentos jovens no mercado de trabalho.

    O desencantamento: dilemas da integrao diante da dessocializao do trabalho

    O esgotamento dessas possibilidades num quadro de acumulao globalizada e flexvel e de reestruturao produtiva, seguido por mudanas

    7 Expresso especialmente utilizada na literatura das cincias sociais, das dcadas de 1970 e 1980, para caracterizar a modernizao do campo brasileiro, assentado num progresso tcnico, na implantao de modernos complexos agroindustriais, mas sem alterao da estrutura fundiria, caracterizada por elevado nvel de concentrao da propriedade.

    A noo de responsabilidade tambm se altera, passando de

    uma responsabilidade individual para uma responsabilidade

    coletiva, a partir de uma socializao dos processos aleatrios de riscos da vida,

    chamando os indivduos a se implicarem coletivamente

  • AnEtE Ivo

    BAHIA AnlISE & DADoS, Salvador, v.17, n.4, p.1121-1133, jan./mar. 2008 1125

    sobre os papis sociais do Estado, de reorientao liberal, configurou particularmente nos anos 1990, entre outros fatores, uma dessocializao social, caracterizada pelos elevados ndices de desempre-go, especialmente dos trabalhadores mais jovens; pela precarizao dos empregos; e pela expanso dos indicadores de anomia e violncia, que marcam as metrpoles brasileiras contemporneas.

    Esping-Andersen (2003), examinando as refor-mas da Previdncia na Amrica Latina, por exemplo, levanta algumas diferenas entre as experincias europias e a dos pases dessa regio. Segundo ele, quando examinamos o processo de reforma latino-americano atravs da tica do processo eu-ropeu de formatao de polticas, tanto pelo elo comum quanto pelas variaes, as questes [da reforma] parecem extremamente complicadas... Embora os problemas sejam os mesmos, as razes so bastante diferentes. E ele segue apontando as diferenas:

    Na Europa [de um modo geral], o objetivo da efi-cincia econmica dos planos previdencirios est subordinado ao princpio de justia e Bem-estar. Na Amrica Latina, as reformas (da dcada de 1990) parecem ter sido implantadas segundo critrios de eficincia, marcados especialmente pelas questes dos gastos pblicos, com pouca considerao com a maximizao do bem-estar.

    Na Europa, a questo resulta de um perfil dos padres demogrficos, enquanto na Amrica Latina se refere a poucos contribuintes, ou seja, diz respei-to mais a mercados de trabalho problemticos que a aposentados ou pensionistas problemticos.

    Um dos problemas do desgaste dos sistemas de repartio de renda, na Europa, o cres-cimento sustentado do salrio real por longo prazo. Na Amrica Latina, o emprego informal prevalece, e a distribuio de renda extrema-mente desigual (ESPING-ANDERSEN, 2003), com tendncia, acrescento, de rebaixamento do valor do salrio real.

    Essa anlise tanto especifica as singularidades comparativas no encaminhamento da questo social e das reformas em curso, entre pases da Amrica Latina e a realidade europia, quanto revela que as opes de poltica e os sentidos da reforma esto diretamente subordinados ao

    quadro de foras sociais e ao contexto econmico que orientam interna e externamente a implemen-tao de polticas.

    No plano interno, alm de fatores relativos cultura poltica e ao volume da pobreza, o carter restrito da proteo social, especialmente at final da dcada de 19808, limitada massa de trabalhadores assalariados e a persistncia de amplos contingentes de trabalhadores precari-zados ou vinculados economia de subsistncia e de autoconsumo, excludos do seguro e de di-reitos sociais, tambm se constitui fator decisivo de iniqidade. No plano externo, a integrao do Brasil dinmica da competio internacional globalizada, especialmente na dcada de 1990, pressiona ainda mais para reduo do custo trabalho e para modelos redutores de reforma da previdncia, como meio de reduo do deficit fiscal (DRAIBE, 2003). Assim, na conjuntura dos anos 1990, um conjunto de fatores atua sobre as condies de reproduo da pobreza e das desi-gualdades: a expanso da precarizao no merca-do de trabalho; os indicadores do desemprego; a reduo dos valores de remunerao do trabalho, especialmente para segmentos que ganham acima do salrio mnimo; e a reorientao do desenho das polticas sociais de assistncia em termos de programas compensatrios de transferncia de renda. a partir, portanto, desses fatores que se pode analisar o alcance e os limites das polticas de transferncia de renda sobre os mais pobres, especialmente a partir de 2004.

    A seguir analisa-se o impacto relativo dos programas de transferncia de renda (PTR) na reduo da pobreza e da indigncia a partir da caracterizao de dois programas de transferncia de renda o Benefcio de Prestao Continuada (BPC) e o Programa Bolsa Famlia (PBF). Con-frontamos essas polticas a algumas tendncias atuais sobre os indicadores de desigualdades e formao da renda, no Brasil, analisando suas repercusses sobre o padro de bem-estar social das camadas mais pobres.

    8 A partir da Constituio Brasileira de 1988 uma nova institucionalidade relativa Seguridade Social amplia a cobertura dos Direitos Sociais Bsicos, favorecendo particularmente os trabalhadores rurais, antes desprotegidos, as mulheres e os idosos, num piso de acesso renda do salrio mnimo.

  • Polticas sociais, Pobreza e trabalho: dilemas do bem-estar em Pases de caPitalismo Perifrico

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    O DESLOCAMENTO DA PERSPECTIVA DA UNIVERSALIDADE DA ASSISTNCIA PARA A FOCALIZAO DA ASSISTNCIA

    A concepo da focalizao dos programas sociais

    Conforme apresento no artigo A reconverso da questo social: dilemas da redistribuio no tratamento focalizado (IVO, 2004), a reorientao da poltica so-cial, nos anos 1990, do ponto de vista da agenda libe-ral, se organiza fora do campo da proteo social com o objetivo de reduzir os efeitos perversos dos ajusta-mentos estruturais e da reestruturao produtiva, pre-servando-se o mercado. Esta mudana se faz pela via da focalizao da poltica social sobre os mais pobres.

    A focalizao da poltica social um conceito que se situa antes de tudo ao nvel de uma instn-cia instrumental e operativa, vinculada idia das despesas sociais. Focalizar estabelecer meca-nismos e critrios para delimitar quem tem direito aos benefcios institudos como subsdio pblico9. Trata-se de uma poltica destinada a domnios que no questionam a reforma estrutural. No seu desenho eles esto deslocados da dimenso institucional do seguro social. Sua operacionalizao se faz a partir da diferenciao do acesso; do incentivo ao consumo dos pobres, atravs da monetarizao e da descen-tralizao das aes e controle social dos programas ao nvel local. O modelo da poltica social focalizada contm, portanto, trs paradigmas: o primeiro se re-fere eficcia do gasto social, priorizando a ateno aos mais pobres. Esta interveno estratgica e fle-xvel (por princpio) permite reorientar as prioridades governamentais, quando necessrio. O segundo implica uma racionalidade econmica, pela insero dos pobres no mercado, atravs das transferncias monetrias diretas. O terceiro, de natureza social e poltica, define-se por uma concepo partilhada de responsabilidades entre Estado, municipalidades e sociedade quanto ao encaminhamento da questo da pobreza atravs de modalidades de local governance, do empowerment e da participao cidad.

    Subjacente a essa poltica de transferncia de renda existe uma idia de que o mercado de trabalho

    9 Cf. CANDIA, J. M. Exclusion y pobreza. La focalizacion de las politicas sociales. Nueva Sociedad. Caracas, n. 156, p. 116-126, jul./ago. 1998.

    cada vez mais excludente. Desta forma a moneta-rizao da assistncia intervm em benefcio de uma insero no mercado, encaminhando a crise de con-sumo dos mais pobres, ao mesmo tempo em que am-plia a dinamizao de uma economia de base popular.

    Incremento financeiro dos programas de transferncia de renda no Brasil sobre a superao da pobreza

    Observando a evoluo dos programas de trans-ferncia de renda no Brasil, distinguimos trs pro-gramas (e etapas) da ao social que expressam formatos e/ou conjunturas distintas quanto a sua institucionalidade e aos valores relativos seguridade econmica10: (i) o Benefcio de Prestao Continuada, que se constitui em direito social bsico, de carter constitucional; (ii) um conjunto de programas sociais de transferncia de renda de carter focalizado, im-plantados ao final do segundo mandato do Presidente Fernando Henrique Cardoso, mais especificamente em 2002 (Auxlio-gs, Bolsa Escola, Carto- alimenta-o, PETI, etc.); e (iii) a integrao de alguns desses programas no Programa Bolsa Famlia, que passa a uma cobertura quase total da populao desenhada pela Lei Orgnica de Assistncia Social (LOAS).

    O Benefcio de Prestao Continuada, criado por essa Lei, de 1993, destina-se a deficientes e idosos (a partir de 65 anos) de famlias com renda per capita inferior a um quarto de salrio mnimo, com um valor do benefcio no patamar do salrio mnimo, ou seja, R$ 415,00, e previso de gasto mensal, em 2008, de 13, 9 bilhes de reais, o segundo maior gasto social, excluindo-se aqueles da previdncia, segundo dados do Ministrio do Desenvolvimento Social. O Programa Bolsa Famlia atende, em 2008, a um total de onze milhes e cem mil famlias com a alocao de benefcios que variam de R$ 18,00 a R$ 172,00 por famlia cadastrada com filhos at 17 anos e renda mensal at R$120,00 por pessoa, condicionando as famlias vacinao e freqncia escolar das crian-as. Estima-se um gasto mensal de 10,4 bilhes de reais para o Bolsa Famlia, colocando-o em terceiro lugar na hierarquia do gasto social11. 10 Distinguir esses trs modelos e programas adverte contra algumas confuses, como

    a de tomar por referncia um tipo de interveno e argumentar a partir da outra, como se seus objetivos e formatos fossem os mesmos. Refiro-me, por exemplo, confuso entre programas focalizados e programas de renda mnima de cidadania, que se constituem em direitos bsicos universais.

    11 Cf. dados da Folha de So Paulo (GOVERNO..., 2008).

  • AnEtE Ivo

    BAHIA AnlISE & DADoS, Salvador, v.17, n.4, p.1121-1133, jan./mar. 2008 1127

    Como j anunciado anteriormente, esses progra-mas de assistncia tm natureza distinta: o BPC um programa orientado para segmentos extrema-mente pobres e incapacitados para o trabalho (por velhice ou doena) e visa a garantir renda aos indi-vduos que no podem partici-par do mercado de trabalho e no so detentores de outros recursos para garantir-lhes a sobrevivncia. Garante uma renda de solidariedade nacio-nal no valor do salrio mnimo e um direito social bsico de carter constitucional. A sua concepo acompanhou a perspectiva univer-salista da assistncia de ampliao de direitos secu-ritrios a segmentos de pessoas no-contributivas. Neste sentido, o Brasil foi inovador e antecipou-se a implementaes de programas de renda bsica.

    O PBF um programa social focalizado sobre famlias ativas em condies de extrema pobreza ou pobreza, constituindo-se em alvio do oramento domstico. A sua sustentabilidade e implementao no tm garantia constitucional, estando condiciona-das a decises de governos. Neste sentido, no se constitui em direito constitucional. O carter massivo de atendimento s famlias, no entanto, o legitima politicamente como um direito moral, pressionando efetivamente o executivo no sentido de sua manu-teno e aperfeioamento. Portanto, observadas conjuntamente, cada uma dessas linhas de aes de assistncia conforma nveis de seguridade econmi-ca, desenho institucional e impactos distintos.

    Analisando-se o impacto do Bolsa Famlia so-bre os beneficirios, ao nvel dos territrios, a sua apropriao distinta, segundo a configurao da economia e a conseqente dinmica dos mercados de trabalho territorializados. Enquanto nas regies metropolitanas, onde prevalece o trabalho assala-riado e protegido, o Bolsa Famlia tem carter com-plementar, nas regies rurais ele tem se constitudo um mecanismo significativo de acesso renda. A Secretria Nacional de Cidadania do Ministrio de Desenvolvimento Social, Rosani Cunha, por exem-plo, afirma que Na regio rural, as pessoas usam o dinheiro para plantar ou criar animais. Nas grandes cidades, o seu uso mais comercial. Ela considera, no entanto, que o maior uso dos recursos destinado

    alimentao, vesturio e material escolar (DEPEN-DNCIA..., 2008).

    Vistos em conjunto, a melhoria da renda resultante da evoluo positiva do valor do salrio mnimo (SM) e as transferncias de renda dos programas sociais

    do Estado permitiram que um nmero importante de famlias escapasse da condio da mi-sria (indigncia) e da pobreza nos ltimos anos. Entre 2003 e 2005, observa-se uma queda contnua do nmero de pobres

    e indigentes12. Em 2003, segundo dados da Pesquisa Nacional de Amostra de Domiclios (PNAD), o Brasil tinha 27,4 milhes de indigentes, o que equivalia a 16,1% da populao brasileira, e 64 milhes de pobres, ou seja, 37,2%. Estes percentuais caem para 11,3% e 30,1%, respectivamente, em 2005, observando-se uma queda de 7,1 pontos percentuais dos pobres. Souza (2006) estima que o incremento financeiro do PBF, em agosto de 2006, significou que 4,8% das famlias atendidas ultrapassaram a linha da pobreza e 31,1% das famlias ultrapassaram a extrema pobreza.

    O estudo da FGV, coordenado por Marcelo Neri, Misria, desigualdade e poltica, tambm com base nos dados da PNAD/IBGE, mostra tendncia seme-lhante, embora com valores diferentes, dadas as diferenas no clculo da linha de pobreza13: a pro-poro de brasileiros situados abaixo desta linha caiu de 35% para 19%, de 1993 a 2006, uma reduo de cerca de 50% do percentual de pobres num perodo de 14 anos. Entre 2003 e 2005 a misria, segundo o conceito desse estudo, cai 6,4 pontos percentuais, isto , passa de 28,17% em 2003 para 22,77% em 2005. Os nmeros de 2006 representam uma marca histrica desses resultados: a proporo de pessoas abaixo da linha de pobreza era 22,77%, em 2005, e cai para 19,31% em 2006.

    Conquanto os dados de reduo da pobreza e crescimento da renda em geral sejam exitosos, es-pecialmente no ltimo ano (2006), eles no so su-ficientes para os objetivos mais amplos das polticas

    12 Para efeito de poltica pblica considera-se como indivduo em situao de indigncia e pobreza extrema aquele cuja renda domiciliar per capita inferior a do salrio mnimo (renda considerada insuficiente para a garantida do acesso dirio a uma alimentao adequada); e os pobres aqueles cuja renda domiciliar situa-se abaixo do patamar de salrio mnimo (renda reconhecida como insuficiente para cobrir necessidades bsicas tais como moradia, transporte, sade e educao).

    13 O estudo considera como abaixo da linha da pobreza aqueles indivduos que viviam com menos de R$125,00/ms a preos da Grande So Paulo, em outubro de 2006.

    Os dados de reduo da pobreza e crescimento da renda em geral (...) no so suficientes para os

    objetivos mais amplos das polticas sociais e do desenvolvimento

  • Polticas sociais, Pobreza e trabalho: dilemas do bem-estar em Pases de caPitalismo Perifrico

    1128 BAHIA AnlISE & DADoS, Salvador, v.17, n.4,p.1121-1133, jan./mar. 2008

    sociais e do desenvolvimento. Para estes a dimenso da vulnerabilidade no trabalho, entendida como ris-co permanente de cair em estado de necessidade na ocorrncia de riscos sociais como desemprego, doena ou velhice, tambm um fator importante. Em artigo anterior (IVO, 2004), mostro como a es-tratificao e a segmentao da assistncia deixa de fora um conjunto de pessoas que demandam assistncia, mas no integram os programas previ-dencirios nem os de transferncia de renda. So os informais, excludos da proteo e da assistncia os no mans land de Lautier (1999). Apesar do crescimento econmico e do emprego com carteira assinada, a taxa de vulnerabilidade14 dos trabalhado-res no Brasil permanece ainda bastante elevada, da ordem de 57,21%, em 2006, afetando 51 milhes da populao economicamente ativa (PEA), ainda que apresente uma reduo de 4,64 pontos percentuais em relao ao ano de 1999, quando representava 61,85% da PEA15.

    Uma outra dimenso do mercado de trabalho, decisiva para os objetivos das polticas sociais, refere-se ao nvel de remunerao da fora de trabalho. A avaliao desta varivel permite observar a dimenso da segurana alimentar e econmica dos cidados, considerando o patamar das necessidades bsicas definido com base no salrio mnimo. No Brasil, em 2005, 101,7 milhes de pessoas detinham renda domiciliar per capita inferior a um salrio mnimo, e somente 76 milhes de pessoas tinham renda acima deste limite. A melhoria de renda dos mais pobres, resultante do aumento no valor de compra do salrio mnimo, constitui-se, portanto, varivel importante, de carter mais universal, repercutindo favoravelmente sobre as taxas histricas de desigualdades. No en-tanto, importante considerar o montante de famlias que sobrevivem no patamar dos mnimos sociais, em condies de pobreza extrema e autoconsumo. Esta condio unifica na condio genrica de pobres categorias de sujeitos em distintas posies de ocu-pao (de ativos, inativos, formais e informais, rurais e urbanos). Segundo dados do MDS (SOUZA, 2006), a maioria dos chefes de famlia beneficiados pelo

    14 Trabalhadores que integram a populao economicamente ativa (PEA) sem carteira assinada e que se encontram fora dos direitos sociais do trabalho, mais os trabalha-dores domsticos.

    15 Dados de uma pesquisa que realizei sobre Quem a populao vulnervel no Brasil? PIBIC/UFBA/CNPq, 2006-2007 (IVO, 2007).

    PBF era predominantemente de trabalhadores por conta prpria (27,1%); empregados assalariados (19,4%); desempregados (17,4%), dona de casa (14,4%) e mesmo de aposentados (8,1%), o que nos leva s seguintes concluses: (i) a maioria dos brasileiros permanece num patamar de reproduo ainda extremamente baixo para fazer frente ao custo de vida, nivelando, por necessidade e carncia, tra-balhadores da ativa, inativos e mesmo beneficirios da previdncia social, ao considerar-se a renda mdia familiar per capita; (ii) o PBF contribui para o alvio do oramento domstico, mas no chega a garantir segurana alimentar. O estudo do Instituto Brasileiro de Anlises Sociais e Econmicas (2008, p. 8/9), desenvolvido em 2007, revela que apenas 16,9% dos beneficirios do Bolsa Famlia encontram-se em situao de segurana alimentar. Do total, mais de 54,8 % dos beneficirios apresentavam situao de insuficincia alimentar grave (20,7%) ou moderada (34,1%), o que equivale a um total de 29 milhes e 800 mil pessoas; (iii) mesmo em situaes em que os beneficiados tm acesso a benefcios previdencirios, no patamar do salrio mnimo, a solidariedade interna das famlias no suficiente para garantir segurana econmica a todos os membros das famlias.

    O efeito das polticas sociais e da seguridade Social sobre a renda familiar

    Alguns estudos tm analisado o efeito das trans-ferncias da Seguridade Social e dos PTR sobre a composio da renda familiar no Brasil, especialmente sobre os estratos de renda mais baixos (DELGADO, 2005; NERI, 2007). Segundo Delgado, o perodo de 1991 a 2003 expressa um declnio na participao da renda trabalho no total da renda familiar dos bra-sileiros, que passa de 85,3%, em 1991, para 78% em 2000, chegando, em 2003, a 73,8%, enquanto cresce proporcionalmente a participao da renda originada de transferncias resultantes da Seguri-dade Social e dos PTF. Esta, no mesmo perodo, mais que duplica sua participao na composio da renda familiar do brasileiro, passando de 10,2%, em 1991, para 22,4%, em 200316. O estudo da CPS/FGV (NERI, 2007), com base em microdados da

    16 A partir deste perodo o programa de Bolsa Famlia expandiu a sua cobertura, pas-sando de 3 milhes de famlias (2003) para 11,1 milhes famlias (2006). Tambm aumenta o nmero de beneficirios do BPC a partir de 2005. Ademais, no perodo mais recente, houve uma grande recuperao do valor do salrio mnimo.

  • AnEtE Ivo

    BAHIA AnlISE & DADoS, Salvador, v.17, n.4, p.1121-1133, jan./mar. 2008 1129

    PNAD de 2006, mostra efeitos da recuperao do mercado de trabalho sobre a renda familiar, quando a renda proveniente do trabalho passa a representar 75,8%, em 2006, 2 pontos percentuais acima de 2003, enquanto a renda proveniente da Seguridade e dos programas sociais reduz-se apenas 0,7 pontos percentuais, caindo para 21,7%17. Quando se mede a participao relati-va dos programas sociais na renda das famlias dos 50% mais pobres, o percentual da renda originada de programas sociais e da Seguridade aumenta sua participao para 23%, mantendo-se a participao da renda trabalho em 75,5%, um patamar prximo do valor geral de participao do trabalho na renda das famlias brasileiras (75,8%).

    Essa evoluo demarca o efeito de duas polticas sociais distintas: (i) de um lado, a ampliao dos direitos sociais bsicos de carter constitucional18, a partir da Constituio Brasileira de 1988, como efeito da expanso de direitos a segmentos sociais no-contributivos, garantidos no patamar do salrio mnimo, num contexto de alta mobilizao e fora do movimento sindical dos trabalhadores; (ii) em seguida, a nfase em programas de transferncia de renda de carter compensatrio, a partir de 2004, como o Bolsa Famlia, cujo desenho focalizado acompanha a priori-dade da agenda internacional de luta contra a pobreza e, ao mesmo tempo, demandas internas de superao da fome e das desigualdades sociais no Pas; e (iii) a recuperao e papel do mercado de trabalho na formao da renda das famlias mais pobres em 2006.

    A aplicao sistemtica da poltica de direitos bsicos na Seguridade Social, a Previdncia Rural, desde 1992, e, em menor escala, da Lei Orgnica de Assistncia Social (LOAS), a partir de 2005, com a introduo do Benefcio de Prestao Continuada, protegidos por regras constitucionais no limite do salrio mnimo, mostram, segundo Delgado (2005), que depois que se aplicaram esses dispositivos da Seguridade Social houve significativa mudana para melhor no ndice de desigualdade, o que corrobora a tese de que a poltica social de carter universal

    17 Conforme tabela sobre composio da renda (NERI, 2007, p. 23).18 O estabelecimento da Previdncia Rural (1992-1995); a aplicao da LOAS (Lei

    Orgnica de Assistncia Social, 1995-1998); e o Estatuto do Idoso (2003-2004) (DELGADO, 2005).

    desconcentradora de renda. Os dispositivos institucio-nais da seguridade e da assistncia ao nvel do mni-mo vital (salrio mnimo) tm carter de entitlement, podendo ser exercidos por iniciativa do cidado, com base em legislao vigente com garantia constitu-

    cional, gozando de vinculaes oramentrias permanentes.

    Esse mesmo autor adverte tambm sobre a heterogenei-dade desse impacto segundo se considerem os segmentos

    de trabalhadores rurais e urbanos e os setores de ati-vos e no- economicamente ativos dos trabalhadores. Poderamos levantar a hiptese de que essa mudana expressa, de um lado, uma ruptura na relao entre proteo e trabalho, demonstrando a eficcia de direi-tos sociais sobre trabalhadores no-contributivos19, e, de outro, acentua uma segmentao entre trabalhado-res rurais e urbanos, atingindo desfavoravelmente o contingente ativo dos trabalhadores urbanos informais menos qualificados e desprotegidos para os quais ne-nhum programa de proteo foi pensado. Decompondo o ndice de Gini, com base nos Censos Demogrficos 1991 e 2000, na dcada de 1990, para segmentos de trabalhadores ativos e inativos, rural e urbano, homens e mulheres, Delgado e Theodoro (2005, p. 424) reve-lam que houve significativa melhoria da distribuio de renda rural e, em especial, de inativos e mulheres, em razo da extenso da Seguridade Especial Rural. Segundo os autores, os dados comparativos do ndice de Gini [...] permitem concluir que houve melhoria na desconcentrao da renda rural total (de 0,545 para 0,529) e que esta melhoria se deveu mudana sig-nificativa do ndice dos no-economicamente ativos (0,426 e 0,302), especialmente das mulheres (0,351 e 0,235). Esses mesmos dados revelam, contraria-mente, que no houve desconcentrao no total da renda familiar urbana, a qual se manteve inalterada (0,608 e 0,605) e em nveis bastante elevados, mesmo considerando-se a desconcentrao favorvel dos no-economicamente ativos urbanos (0,644 e 0,591), particularmente influenciada pela renda das mulheres em geral (0,584 e 0,575) e pelas no-economicamente ativas (0,613 e 0,562), em particular. Assim, o gasto social tem carter redistributivo e seletivo, mas no

    19 O que pode evoluir positivamente para polticas de redes de proteo de renda bsica.

    O gasto social tem carter redistributivo e seletivo, mas no altera a distribuio funcional da

    renda entre trabalho e capital

  • Polticas sociais, Pobreza e trabalho: dilemas do bem-estar em Pases de caPitalismo Perifrico

    1130 BAHIA AnlISE & DADoS, Salvador, v.17, n.4,p.1121-1133, jan./mar. 2008

    altera a distribuio funcional da renda entre trabalho e capital. A renda do trabalho inverte sua posio em relao aos ativos e ao PIB nacional, conforme ser explicitado mais adiante.

    O movimento inverso, de expanso dos direitos sociais constitucionais num ambiente de dessociali-zao no trabalho (desemprego, precarizao), espe-cialmente na dcada de 1990 e incio dos anos 2000, provoca uma ruptura no pilar central de formao do Estado social incompleto, construdo com base numa articulao entre trabalho, proteo e solidariedade nacional. A tendncia da proteo como a assistncia aos mais pobres segue desconectada da dinmica do mercado de trabalho, ainda que os direitos sociais as-sociados ao trabalho e ao salrio mnimo continuem a representar, ainda hoje, a maioria dos gastos sociais de transferncia de renda. Por exemplo, os gastos sociais com a seguridade e o seguro-desemprego ocupam o primeiro e o segundo lugar na estrutura das despesas sociais, segundo dados do Ministrio do Desenvolvimento Social publicados na Folha de So Paulo (GOVERNO..., 2008). A reorientao da assistncia via o Programa Bolsa Famlia expressa esse deslocamento, na linha de um alvio aos mais pobres entre os pobres, portanto, fora da concepo de solidariedade nacional que caracterizou a pro-priedade da transferncia do Estado de bem-estar social em torno do trabalho.

    DESCONCENTRAO DA RENDA E PROGRAMAS DE TRANSFERNCIA DE RENDA

    A desconcentrao da renda trabalho

    Um dos elementos centrais no encaminhamento da questo social a distribuio da renda. Ela ex-pressa como a produo da riqueza nacional est repartida entre o trabalho e o capital. As polticas sociais so, portanto, mediadoras dessa transferncia de renda, com o objetivo de garantir segurana eco-nmica e alimentar para as famlias de trabalhadores. Um dos instrumentos metodolgicos para avaliar a desconcentrao da renda o ndice de Gini20, que mede o intervalo entre a mdia dos 10% mais pobres e a mdia dos 10% mais ricos.

    20 ndice que mede a concentrao de renda. Ele varia de 0 a 1, sendo que quanto mais perto de 1, maior a desigualdade. Ao contrrio, quanto mais perto de 0, menor as desigualdades.

    Dados de desempenho da economia brasileira de perodo mais recente tm mostrado declnio desse ndice no Brasil. Estudo do Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada (IPEA), recentemente divulgado na imprensa21, constata que a desigualdade entre os rendimentos dos trabalhadores brasileiros ocupados caiu quase 7% entre o quarto trimestre de 2002 e o primeiro de 2008. Nesse perodo o ndice de Gini na renda trabalho caiu de 0,543 para 0,505. O que se destaca, nesta informao, o crescimento mais generalizado da renda, particularmente nos setores mais pobres, e no uma tendncia nova do ndice de Gini. Uma anlise deste indicador numa srie de mais longo prazo mostra uma queda constante dele, especialmente desde 2001.

    A distribuio de renda pode ser analisada, por-tanto, segundo duas perspectivas que se comple-mentam, mas que, considerado o ponto de partida e a base distinta dos dados, no so necessariamente convergentes. Ou seja, pode-se observar uma me-lhora na distribuio pessoal da renda, principal-mente com base nos dados relativos ao trabalho e s transferncias de renda de programas sociais (sobre a qual a PNAD constri os indicadores de desigualdades), e, ao mesmo tempo, uma piora ou estabilidade na distribuio dos ativos (tomando por base as Contas Nacionais do IBGE). Este o panorama mostrado na anlise das desigualda-des no Brasil: h uma desconcentrao da renda trabalho dos indivduos, mas esta tendncia no se mantm ao considerarmos a queda da parti-cipao do trabalho em relao aos rendimentos de propriedade no produto interno bruto nacional. Conforme afirmou Pochmann em entrevista recente, a participao dos salrios no PIB tem se mantido estvel desde 2004, revertendo uma tendncia de queda verificada at ento (de 40,3%, em 1995, para 35,8%, em 2002).

    Os nmeros divulgados pelo IPEA (DESIGUAL-DADE... 2008) mostram que a diferena se reduziu porque os ganhos de renda dos mais pobres foram quase cinco vezes maior que a recuperao da renda dos mais ricos. O estudo do IPEA divide a populao das regies metropolitanas em dez grupos de renda e mostra variaes nas mdias salariais dos ocupados para cada decil. No acumulado do perodo de 2003 a 2007, os trs primeiros decis (com mdias salariais de 21 De acordo com a entrevista de Pochmann na Agncia BBC Brasil (DESIGUAL-

    DADE..., 2008).

  • AnEtE Ivo

    BAHIA AnlISE & DADoS, Salvador, v.17, n.4, p.1121-1133, jan./mar. 2008 1131

    R$ 206,00, R$ 378,00 e R$ 422,00) tiveram aumen-tos salariais, respectivamente, de 21,96%, 29,91% e 15,79%, enquanto os trs decis dos mais ricos (com mdias salariais de R$ 1.159,00; R$ 1.797,00 e R$ 4.853,00) acumularam ganhos apenas de 2,3%, 2,1% e 2,6%, respectivamente22.

    A distribuio de renda e padro de desenvolvimento: algumas dimenses estruturais

    A questo das desigual-dades, central no encaminha-mento da questo social, no se restringe melhoria na distribuio pessoal da renda, em termos de renda trabalho, mas supe uma anlise estrutural de de-senvolvimento, que implica em observar-se a pro-priedade de transferncia do Estado, considerando a participao entre ativos e o trabalho. Ou seja, diz respeito, entre outras polticas, ao desempe-nho tributrio. Efetivamente, no desenho do Estado social, quem estava em questo era o mercado. A formatao dos novos programas de focalizao dis-sociados da dinmica do trabalho significa um alvio de renda e uma insero no mercado de consumo, que podem dinamizar a economia popular, mas ope-ram fora das reas crticas da proteo social e no necessariamente potencializam novos caminhos de integrao social.

    Muitos autores, no Brasil, preocupados com al-ternativas ao desenvolvimento, reconhecem poten-cialidades nessas transferncias, como mecanismo de dinamizao de um crculo virtuoso da microeco-nomia, que pode impactar sobre a economia mais ampla, como Dowbor (2008). Ele considera que fa-zendo o dinheiro chegar aos do andar de baixo ele se transforma em demanda de bens simples e teis, o que estimula o mercado interno, gerando, por sua vez, pequenos negcios e intensificando os grandes ao promover emprego e gerar mais demanda.

    Asseburg e Gaiger (2007) tambm reconhecem o potencial das microeconomias em diversos pases no estmulo s pequenas unidades produtivas, as quais propiciam em mdio prazo a formao de uma base

    22 Informaes da Agncia BBC Brasil, com base em entrevista de Mrcio Pochmann (DESIGUALDADE..., 2008). Os dados apresentam queda da desigualdade entre os rendimentos dos ocupados nas seis principais regies metropolitanas do pas, at o primeiro trimestre de 2008, produzidos pelo IPEA.

    produtiva dinmica, geradora de postos de traba-lhos. Mas advertem, igualmente, que a erradicao da pobreza no se d pela via unilateral das aes governamentais, como os programas de transfern-cia, e depende de chances nas quais os indivduos

    afetados possam escolher e atuar como agentes sociais.

    Esse potencial criativo su-bordina-se, ento, percepo crtica do tipo de relao que se estabelece entre esses agen-tes no circuito da produo e a criao de uma cobertura de

    rede de proteo que integre programas distributivos e reinsero social a sistemas de previdncia social, como sugere Cohn (2003, p. 74).

    Ou seja, as polticas sociais operam diferentes marcos institucionais que refletem contextos e em-bate de foras sociais distintas. Observando-se os resultados desses efeitos mais recentes, pode-se afirmar que o modelo de Estado social adotado no Brasil vem corroborando para um padro declinante da renda funcional do trabalho com ganhos de renda dos estratos mais baixos e menores sobre trabalhadores com estratos de rendas mdias e mais elevadas. Isto corrobora uma distribuio da renda trabalho menos desigual entre os de renda mais baixa, num contexto de concentrao geral do capital, o que significa que o conflito redistributivo se d, sobretudo, entre pobres e quase pobres (trabalhadores assalariados), distinto do perodo anterior de maior desigualdade da renda entre trabalhadores, num contexto geral de maior par-ticipao da renda do trabalho na riqueza nacional.

    CONSIDERAES FINAIS

    Os elementos analticos trazidos neste artigo in-dicam algumas tendncias paradoxais no contexto contemporneo:

    O Brasil tem apresentado taxas inditas de 1. queda das desigualdades sociais, medidas pelo ndice de Gini, num contexto de recuperao da economia e gerao de postos de trabalho protegidos. Esta recuperao aumenta a parti-cipao do trabalho na formao da renda das famlias, em 2006, que no chega a se equi-parar ao patamar de 85% de 1991. Ademais,

    A erradicao da pobreza no se d pela via unilateral das aes governamentais (...) depende de chances nas quais os indivduos afetados possam escolher e atuar

    como agentes sociais

  • Polticas sociais, Pobreza e trabalho: dilemas do bem-estar em Pases de caPitalismo Perifrico

    1132 BAHIA AnlISE & DADoS, Salvador, v.17, n.4,p.1121-1133, jan./mar. 2008

    os programas governamentais, especialmen-te os programas de transferncias de renda (constitucionais e de programas focalizados), continuam representando um peso significativo e crescente para aqueles 50% mais pobres. Isto significa que apesar da recuperao geral da economia, o nvel de reproduo dessas famlias ainda depende significativamente das polticas pblicas sociais. Dentre elas, o peso da seguridade Social decisivo.

    Mas a questo social no diz respeito apenas 2. renda dos mais pobres. Ela condicionada tambm pela vulnerabilidade, que sinaliza para riscos advindos da desproteo, da preca-rizao e do desemprego. Neste particular, ainda so bastante elevadas a taxa de vulne-rabilidade da PEA no Pas, da ordem de 57%, e as taxas de desemprego. O aumento dos gastos sociais com o seguro-desemprego este ano (em decorrncia dos valores do salrio mnimo) tem levado o governo a rediscutir esses valores, em funo das prioridades de investimentos sociais.

    O padro da distribuio no linear, segundo 3. se observe o tipo de programa social a que esto vinculados e o ambiente econmico em que so aplicados, com diferenas de im-pacto por regies, condicionadas ao padro de estruturao do mercado de trabalho e crescimento econmico. O resultado uma segmentao dos benefcios com prejuzo dos estratos de trabalhadores urbanos que no so suficientemente pobres para se constiturem beneficirios do Bolsa Famlia e nem so co-bertos pelos benefcios previdencirios. So os trabalhadores informais urbanos ativos, com renda familiar per capita abaixo de um salrio mnimo, que no so cobertos nem pela Se-guridade social nem pelos programas sociais.

    A melhoria no perfil da renda que interferiu 4. sobre as taxas mais recentes de desigualda-des de renda, com base nos dados da PNAD, entre 2002 e 2006, afeta particularmente os estratos de renda mais baixos, que sofreram o impacto positivo da melhoria do salrio m-nimo e dos programas de transferncia de

    renda. A combinao entre as garantias da poltica monetria para o capital e a nfase na focalizao das polticas sociais sobre os mais pobres, importante do ponto de vista do alvio no oramento familiar, mas segmentada e limitada quanto aos objetivos de seguridade alimentar, acaba por constranger a amplitude da redistribuio, afetando mais aos setores mdios. Desta forma, o conflito redistributivo fica mais restrito base, sustentado pelos se-tores mdios assalariados, expressando uma redistribuio entre assalariados protegidos, os extremamente pobres e os pobres benefi-ciados mais recentemente pelas polticas de transferncia de renda.

    Se os programas de transferncia de renda 5. representam alvio nas condies de repro-duo das famlias de indigentes e pobres, eles, no entanto, so limitados quanto aos objetivos mais amplos do desenvolvimento com eqidade. Sem dvida essas transfe-rncias representam melhoria de condies de vida (especialmente daqueles na linha da indigncia) e dinamizam a economia popu-lar dos pequenos municpios, mas no so potentes para alterar as relaes sociais de enormes desigualdades, reproduzindo uma massa de trabalhadores tutelados pelo Es-tado e mantidos na esfera do autoconsumo e da necessidade, nas formas autnomas da economia familiar urbana e rural e pelas transferncias de renda dos programas sociais (DELGADO; THEODORO, 2005).

    Esses exemplos reafirmam a necessidade do Brasil superar o estgio da necessidade e da au-toreproduo dos trabalhadores e os bloqueios de sua insero produtiva e qualificada no trabalho. Mas preciso considerar que o imperativo de insero no trabalho no significa aceitar formas degradan-tes de emprego. A defesa do valor do trabalho e da proteo essencial como suporte de identidade da pessoa e como direitos que possibilitem a liberdade e o acesso a recursos econmicos e cidadania, desde que condicionados a valores de dignidade desse trabalhador23.

    23 Esta ressalva quer alertar contra alternativas de workfare ou imperativos compulsrios de quaisquer tipos de trabalho.

  • AnEtE Ivo

    BAHIA AnlISE & DADoS, Salvador, v.17, n.4, p.1121-1133, jan./mar. 2008 1133

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  • ElSA SouSA KrAycHEtE

    BAHIA AnlISE & DADoS, Salvador, v.17, n.4, p.1135-1145, jan./mar. 2008 1135

    Modelo de desenvolvimento de pacto social1

    Elsa Sousa Kraychete*

    BAHIAAnlISE & DADoS

    Resumo

    Este artigo tem como argumento central a idia de que a cada modelo de desenvolvimento corresponde um pacto social de sustentao, e em todo pacto social, o Estado desempenha papel relevante, mesmo quando de afirma a primazia do mercado como regulador das relaes econmicas e sociais. Num primeiro momento trata do pacto social que sustentou as polticas que visaram ao desenvolvimento entre o ps-Segunda Guerra e o final dos anos 1970 e, em seguida, apresenta as proposies advindas de organizaes da cooperao internacional no decorrer dos anos 1990, que colocam o consenso como condio para o estabelecimento de um novo pacto para o desenvolvimento.

    Palavras-chave: Desenvolvimento. Pacto social. Estado. Cooperao internacional. Capitalismo.

    Abstract

    The central argument of this article is the idea that each devel-opment model corresponds to a social sustainability pact and the State performs a relevant role in all of these, even when affirming

    market primacy as an economic and social relations regulator. The paper begins by dealing with the social pact that sustained

    development related policies between the post-Second World War

    period and end of the 1970s. It continues by presenting propos-als, which resulted from international cooperation organizations

    in the course of the 1990s, placing consensus as a condition for establishing a new pact for development.

    Keywords: Development. Social pact. State. International cooperation. Capitalism.

    INTRODUO

    O debate em torno do papel do Estado e da sua melhor posio em arranjos institucionais em prol do progresso e do desenvolvimento acompanha a histria do capitalismo. Em cada momento desse trajeto e em cada espao especfico, os arranjos institucionais conformam-se como pactos nos quais sujeitos sociais e polticos posicionam-se a depender da correlao de foras que se estabelea.

    No decorrer dos anos setenta do sculo passado, quando o fim de mais um ciclo econmico e social ascendente j era patente nos pases centrais e co-meava a alcanar os pases da periferia capitalista, assiste-se a uma busca por caminhos alternativos para a retomada do crescimento e, se possvel, do desejado desenvolvimento. Aps curto perodo de

    perplexidade frente incapacidade dos instrumentos regulatrios, que vigoraram por trinta anos consecuti-vos, de debelarem as manifestaes da crise, vai se conformando um debate cuja linha central recai sobre o papel e a ao do Estado. Ao longo do tempo, duas posies foram sendo delineadas. A primeira, mais radicalizada, centrava-se no argumento da perda de funcionalidade da ao do Estado que j no apresentaria nenhuma eficincia no novo contexto. Bem moda da teoria dos mercados eficientes na alocao de recursos, tal argumento deu o tom das diretrizes das organizaes internacionais no decor-rer dos anos 1980. A segunda, j nos anos 1990, postulava a imediata reforma do aparelho estatal e a sua insero num novo arranjo institucional, capaz de implementar aes visando ao desenvolvimento socioeconmico.

    Na argumentao aqui desenvolvida pretende-se afirmar que a cada modelo de desenvolvimento cor-responde um pacto social de sustentao, e em todo

    * Economista, professora do Programa de Ps-Graduao em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Social da Universidade Catlica do Salvador.

    1 Texto preparado para o Seminrio Polticas Sociais e Cidadania, Salvador-BA, 28 e 29 de novembro de 2007.

  • modelo de desenvolvimento de Pacto social

    1136 BAHIA AnlISE & DADoS, Salvador, v.17, n.4, p.1135-1145, jan./mar. 2008

    pacto social o Estado desempenha papel relevante, mesmo quando se afirma a primazia do mercado como regulador econmico. Para desenvolver tal argumento, este texto trata, num primeiro momento, do pacto social que sustentou as polticas que visam ao desenvolvimento, que vigoraram entre a segunda metade dos anos 1940 at os anos 1970. Num se-gundo momento, percorre-se a conjuntura da dcada de 1980, encarada como perodo de transio em que j so amplamente verificados os sinais da crise, sem que ao mesmo tempo fossem implementadas medidas sinalizadoras da retomada do crescimento econmico e enfrentamento da crise social. A tercei-ra parte apresenta as proposies dos anos 1990, quando organizaes da Cooperao Internacional articulam discurso onde anunciam as reformas es-truturais e as polticas de enfrentamento da pobreza como pontos de partida para uma nova trajetria, tendo em vista a retomada do crescimento e do de-senvolvimento. Compe esse discurso a noo de arranjo institucional, no qual o mercado figura como o principal condutor da produo e distribuio de bens, o Estado como articulador da redefinio das regras do jogo e um Terceiro Setor, que em parceria com o mercado e o Estado promovam o bem-estar social. Por fim, so apresentadas algumas conside-raes finais.

    O PACTO SOCIAL PARA O DESENVOLVIMENTO NO PS-SEGUNDA GUERRA

    No perodo entre o final da Segunda Guerra e a dcada de 1970, predominou, no mundo capitalista, um padro de acumulao caracterizado como in-tensivo e centrado no consumo de massa (LIPIETZ, 1988; AGLIETA, 1979). Do lado da produo, esse padro caracterizava-se pela intensificao da pro-duo industrial baseado nos complexos metlico e qumico, que constituam a parte central do dispositivo produtivo, a partir das possibilidades de encadea-mentos para trs e para frente na matriz produtiva. No caso do complexo metlico, os encadeamentos produtivos para trs, forma a base para a produo dos bens de capital e, para frente, com a produo de bens de consumo durveis. No complexo qumico, a irradiao dos seus produtos na matriz produtiva no de menor importncia: avana para a produo

    agrcola impondo um padro de produo baseado nos fertilizantes e defensivos de origem qumica, mas tambm avana para a indstria de alimentos, que passa a ter seu padro produtivo determinado no s pela incorporao de matrias-primas em cuja produo verifica-se a introduo de produtos qumi-cos, como tambm em seus prprios procedimentos produtivos, nos quais comparecem os conservantes e as enzimas aceleradoras de processos.

    Em todos os setores da economia, verifica-se, nesse momento, um aumento espetacular da produ-o, acompanhada por altas taxas de crescimento da produtividade, proporcionado, por um lado, pela mecanizao generalizada e, por outro lado, pela presena de trabalhadores qualificados. O resultado foi o aumento da oferta de bens de consumo dur-veis e no-durveis, que no encontrando nvel de consumo adequado, poderia prolongar a crise de superproduo instaurada nas primeiras dcadas do sculo XX, a qual os governos e os capitalistas h dcadas tentavam resolver. A sada para tentar equi-librar os termos de tal equao foi a adequao do consumo aos nveis de produtividade. Essa adequa-o adaptao do consumo de massa aos ganhos de produtividade no pode ser creditada regulao advinda dos mercados. Para Lipietz (1988, p. 50),

    [...] o regime de acumulao intensiva, centrado no consumo de massa, pde se generalizar justamente porque um novo modo de regula-o, monopolista, havia incorporado a priori na determinao dos salrios e dos lucros nomi-nais, um crescimento do consumo popular em proporo aos ganhos de produtividade.

    Em sntese, diante de um padro tecnolgico que s permite aos investidores taxas de lucro compen-sadoras a partir dos ganhos de escala, a economia via-se frente questo de encontrar mercado para as mercadorias que estava apta a produzir. Para o entendimento do padro de acumulao de capitais desse perodo, preciso sublinhar a indissociabili-dade entre a produo em grande escala e a am-pliao do mercado de consumo para a massa dos trabalhadores. A ampliao dos mercados, nesse momento, s poderia acontecer com a incorpora-o das massas num padro de consumo que, at ento, s era acessvel a um percentual reduzido da populao.

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    BAHIA AnlISE & DADoS, Salvador, v.17, n.4, p.1135-1145, jan./mar. 2008 1137

    O acesso ao mercado de consumo, nesse mo-mento, s foi possvel pela combinao de fatores tais como: queda relativa dos preos dos produtos agrcolas, dada a alta produtividade do setor de-corrente da introduo de mquinas, fertilizantes e defensivos qumicos; repasse de parte dos ganhos de produ-tividade para os trabalhadores; montagem de um sistema de crdito direto ao consumidor. Foi a configurao desse sis-tema de crdito que permitiu prolongar o pagamento de forma que parte do salrio destinada aquisio de bens correspondesse ao valor mdio mensal destes mesmos bens; e aumento da renda do trabalhador com repasse dos ganhos de produtividade para estes, seja na forma de salrios diretos ou indiretos, seja a partir do financiamento pblico que podia se materializar na sustentao de uma medicina e uma educao universalizadas e gratuitas, ou, ainda, no seguro desemprego e em diversas formas de subsdios, que poderiam se es-tender da casa prpria, passando pelo transporte, at ao lazer (GRANOU, 1975).

    A regulao salarial nesse momento, embora no se possa dizer que foi seguida em todos os pases, em graus diferenciados, comportava: acordos coletivos que inibiam a busca dos empregadores por salrios baixos, ao mesmo tempo que exerciam coero ge-neralizada sobre o conjunto dos empregadores de um ramo; determinao de um salrio mnimo pelo Esta-do; e montagem de um sistema de previdncia social financiado por contribuies obrigatrias, garantindo a todos os assalariados uma renda permanente, capaz de fazer frente s adversidades apresentadas pelas doenas e pelo desemprego, alm da aposentadoria (LIPIETZ, 1988, p. 52-53).

    No cabe, no espao deste texto, detalhar cada uma das formas que levou os trabalhadores ao mer-cado de bens de consumo, mas preciso afirmar que tal engenharia no foi obra da mo invisvel do mercado, mas da disputa entre as classes sociais, o que resultou em arranjos institucionais que envol-veram o Estado, as empresas e os sindicatos dos trabalhadores.

    Nesses arranjos, coube ao Estado a conduo do processo baseado, por um lado, num sistema de

    planejamento que orientava os investimentos para os ramos de maior valorizao de capitais e, por outro lado, na regulao do mercado de trabalho com base numa relao salarial. Corresponde a esse momento o compromisso com a universaliza-

    o dos direitos, tanto para os trabalhadores quanto para os que no alcanaram insero no mercado de trabalho.

    A regulao da relao sa-larial envolvia importantes mo-dificaes nas relaes entre

    bancos e empresas, tanto na concesso de crditos de uma maneira geral, como, especificamente, na popularizao do crdito direto ao consumidor. Tudo isso acontecia sob estreita vigilncia estatal.

    Os sindicatos dos trabalhadores, numa conjun-tura de quase pleno emprego nos pases centrais, participavam do pacto a partir da interveno na barganha salarial e ampliao dos direitos trabalhistas e da cidadania.

    Em sntese, a fase de crescimento econmico conhecida como os anos dourados do capitalismo, entre a segunda metade da dcada de 1940 e me-ados dos anos 1970, resulta de exitosa combinao entre um regime de acumulao intensivo e um novo modo de regulao, articulado por arranjo institucional envolvendo o capital e o trabalho sob a vigilncia regulatria do Estado.

    AS MANIFESTAES DA CRISE E A TRANSIO DA DCADA DE 1980

    O ascendente ciclo do capitalismo iniciado na con-juntura do imediato ps-guerra comea a dar sinais de esgotamento, nos pases desenvolvidos, a partir de meados da dcada de 1960. Os ndices que exibem o desempenho econmico das naes comporta-mento do produto interno bruto, investimentos reali-zados, ndice de ocupao da capacidade produtiva instalada e ocupao da mo-de-obra passaram a apresentar, seguidamente, resultados que j indica-vam a reverso da sua fase ascendente. J no eram coincidentes o comportamento da produtividade, o crescimento econmico e a distribuio de rendas, que sustentou a idade de ouro do capitalismo nos pases centrais.

    Os anos dourados do capitalismo resulta de exitosa

    combinao entre um regime de acumulao intensivo e um novo

    modo de regulao

  • modelo de desenvolvimento de Pacto social

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    Diante das manifestaes de crise nos pases centrais, o primeiro movimento dos capitais foi fu-gir no espao em direo periferia, momento em que vai se verificar a intensificao do processo de substituio de importaes de pases como Bra-sil, Mxico, Espanha, Grcia, entre outros. Era a busca por novos espaos de valorizao do capital baseado nos ganhos de produtividade a partir da ampliao da escala de produo em regies de baixos salrios. Esse movimento, na medida em que estabeleceu novas formas de relaes comerciais e produtivas entre o centro e a periferia, permitiu que as manifestaes da crise se generalizassem e que os estrategistas, tanto da regulao internacional, como dos espaos nacionais, retardassem em aceitar o incio de uma outra conjuntura.

    Os estrategistas responsveis por definir os rumos da economia mundial resistem em aceitar que se configurava situao de crise, e buscando a reverso do comportamento da economia, remetem a ajus-tes no sistema de regulao que, satisfatoriamente, cumpriram a misso at aquele momento. A resposta imediata foi o ressurgimento da inflao, que rea-pareceu como ameaa at mesmo s moedas mais estveis, reduo das margens de lucro, desemprego e crise no balano de pagamentos.

    Num primeiro momento, as manifestaes da crise atingiram mais fortemente os pases desenvolvidos, mas a partir da segunda metade dos anos 1970 chegam aos pases da periferia capitalista. Nesses espaos, os indicadores macroeconmicos tambm comearam a retratar o avano da crise, mas foi no setor externo destas economias no fluxo de capi-tais que a insustentabilidade de uma trajetria de crescimento com dficits no balano de pagamentos se tornou patente.

    Ao desempenho macroeconmico, de preocupa-o mais imediata, acrescentam-se as mutaes nos modos de organizao do trabalho e nos mtodos de produo em conseqncia do grande salto tec-nolgico e da concorrncia entre os prprios pases desenvolvidos que tentavam fazer frente hegemonia americana. A introduo de novas tecnologias ques-tiona a produo em srie e anuncia a especializao flexvel, perseguindo novas formas de aumento de

    produtividade e novas sintonias entre a produo e o mercado. A insero da microeletrnica e das tecno-logias da comunicao nas fbricas e nas empresas em geral, d suporte a essas transformaes. As mo-dificaes na estrutura produtiva repercutem no cha-

    mado mundo do trabalho de forma a alterar a composio do assalariamento, manifestas na diminuio do emprego no segmento operrio, ao lado de

    uma ampliao do nmero de assalariados no setor de servios. A precarizao do trabalho se revela no traba-lho temporrio, no trabalho sem carteira assinada e na terceirizao, acompanhada pela reduo dos direitos.

    Configurada a crise que ultrapassa as fronteiras do econmico, observa-se, com Oliveira (1999), que as estratgias do capital esto imbudas da compreen-so de que o perodo crtico demanda esforos que extrapolam os limites do antigo modo de regulao, vicejando no seu decorrer sucessivos intentos de inovao institucional. Os cenrios descartam como possvel a continuidade dos padres estabelecidos no campo organizativo (OLIVEIRA, 1999, p. 136). Assim, visando sadas de longo prazo, o capital envidar esforos na direo de constituir novos arranjos insti-tucionais, que no s sirvam como ferramentas para a administrao da crise, como componham bases material e ideolgica capazes de dificultar questiona-mentos sobre o prprio domnio do capital. nesse contexto que ressurge o pensamento liberal, que ao tempo que denuncia uma crise do pacto que coorde-nou a fase expansiva, anuncia-se atravs de um dis-curso que, em primeiro lugar, procura firmar a imagem do Estado como um ator ineficiente para a conduo de polticas tomadas como capazes de implemen-tar a retomada do equilbrio econmico dinmico.

    O clima ideolgico e intelectual que passa a preva-lecer em ambientes acadmicos e, mais claramente, nas Organizaes da Cooperao Internacional inclui em seus discursos sobre o desenvolvimento a se-guinte questo: saber se o Estado deveria mesmo tentar ser um agente econmico ativo. (EVANS, 1993, p. 108). A resposta a tal questo veio a partir do reaparecimento das teorias que minimizam a ao do Estado como condutora do debate sobre os rumos do desenvolvimento. No decorrer da dcada em foco, prevaleciam as orientaes das Organiza-

    A introduo de novas tecnologias questiona a produo em srie e anuncia a especializao flexvel

  • ElSA SouSA KrAycHEtE

    BAHIA AnlISE & DADoS, Salvador, v.17, n.4, p.1135-1145, jan./mar. 2008 1139

    es da Cooperao Internacional, especialmente as emanadas do Fundo Monetrio Internacional FMI e no desautorizadas pelo Banco Mundial, que visavam o reordenamento da economia a partir das reformas estruturais, guiadas pelo diagnstico de um Estado por demais interventor muito presente na estrutura produtiva a partir das empre-sas estatais e gastador, levando aos crescentes dfi-cits governamentais. Por certo perodo em especial entre meados dos anos 1980 e incio dos 1990 a combinao entre um Estado sem maior interferncia nos rumos da sociedade e um mercado dito mais eficiente na alocao dos recursos passou a dominar no s nos ambientes institucionais das organizaes supra-estatais, como tambm no meio da burocracia estatal nos espaos nacionais.

    No final da dcada, j eram fortes as evidncias que os planos de ajustes no foram capazes de assegurar o crescimento econmico de maneira continuada. E mais: mesmo em economias onde se constatou ndices de desempenho de crescimento positivo, na rea social as estatsticas apontavam para o agravamento das condies de vida da maioria da populao. Em especial, a questo do aumento da pobreza no s questionava o receiturio ortodoxo para lidar com o desenvolvimento, como mostrava ser necessrio empreender esforos que permitissem melhorar as condies de vida das camadas mais pobres da populao.

    Avaliaes como estas no deixam de repercutir nos ambientes responsveis pela conduo das polticas econmicas e sociais de forma a colocar dvidas sobre se o ajuste estrutural em si seria sufi-ciente para assegurar o crescimento com o mnimo de distribuio social. O debate, nesse mbito, caminha na direo de encontrar as teorias institucionalistas como suporte, e passa-se a afirmar que os problemas no decorrem da inadequao das polticas, mas de problemas institucionais. a partir desse momento que se observam inflexes nos discursos da buro-cracia estatal, mas tambm no meio acadmico, que, sem rejeitar as polticas at ento implementadas, passa a sublinhar a ineficincia das instituies o Estado em especial como responsvel pelos re-sultados obtidos (EVANS, 1993).

    J no bastava a avaliao sobre se tal ou qual poltica era correta, o essencial era consolidar uma institucionalidade duradoura, capaz de completar a agenda do ajuste estrutural privatizaes, libera-lizao de mercados, estabilizaes e prosseguir

    em busca de sadas de longo prazo. Novamente, o papel do Estado reconsiderado, no no sentido de retomada do seu desempenho como traado pelo modelo desen-

    volvimentista, mas j tomando alguma distncia do debate travado nos anos 1980. importante observar, no entanto, que nesse movimento os fundamentos tericos da ortodoxia liberal utilitarista se mantm, variando apenas os arranjos institucionais que pas-sam a ser propostos (OLIVEIRA, 2004).

    ANOS 1990: A BUSCA DE UM NOVO MODELO DE DESENVOLVIMENTO

    No incio dos anos 1990 a temtica do desenvol-vimento pautada por Organizaes da Cooperao Internacional como a questo mais importante a ser enfrentada pelos governos e pela sociedade (BANCO MUNDIAL, 1991). Os resultados de mais de uma dcada de implementao de polticas de ajustes no s foram incapazes de promover a retomada do crescimento como no debelaram as incertezas prprias de momentos de crises. No cenrio inter-nacional as dificuldades de reerguer as economias desmembradas do bloco sovitico, a crise fiscal dos Estados dos pases desenvolvidos e a desagregao de Estados em pases da periferia, exigindo aes de emergncias, levam o Banco Mundial a aprofundar a discusso sobre o papel das instituies.

    O discurso que emerge do chamado Consenso de Washington j apresenta nuances anunciadoras de alguma inflexo, na direo de atribuir s instituies papel importante na articulao social com vista ao estabelecimento de consensos capazes de sustentar a emergncia de um modelo de desenvolvimento. A inflexo, contudo, no deixa de ressaltar a importn-cia das polticas liberalizantes para a estabilidade econmica. Nesse discurso, o efeito das polticas de ajustes sobre as economias so remetidos a de-sacertos decorrentes de omisses dos governos e/

    Na rea social as estatsticas apontavam para o agravamento

    das condies de vida da maioria da populao

  • modelo de desenvolvimento de Pacto social

    1140 BAHIA AnlISE & DADoS, Salvador, v.17, n.4, p.1135-1145, jan./mar. 2008

    ou aplicaes inadequadas, prprias de ambientes resistentes a inovaes. A privatizao das empresas estatais, a reduo das barreiras ao comrcio e aos investimentos, o fim dos subsdios, a desregula-mentao com vista maior integrao das econo-mias nacionais aos mercados globalizados so polticas reafirmadas. Tomadas como necessrias, permaneceram entre as condicionalidades para que os pases recebes-sem ajuda financeira do FMI e do Banco Mundial.

    Essa reconsiderao leva o Banco Mundial a propor que os papis desempenhados pelo merca-do e pelo Estado devem ser reavaliados a partir da seguinte premissa,

    Os mercados competitivos constituem o me-lhor meio encontrado at hoje de organizar eficientemente a produo e a distribuio de bens e servios. A competitividade interna e externa proporciona os incentivos que desen-cadeiam o esprito empresarial e o progresso tecnolgico. Mas os mercados no podem funcionar no vcuo necessitam da estrutura jurdica e normativa que somente os governos podem oferecer. E, em muitas outras tarefas, os mercados s vezes resultam inadequados ou fracassam completamente (BANCO MUN-DIAL, 1991, p. 1).

    Os Relatrios sobre o Desenvolvimento Mundial correspondentes a 1997, sob o ttulo O Estado num Mundo em Transformao, e o relativo ao ano de 2001, que desenvolve o tema Instituies para os Mercados, so momentos especiais de reafirmao da necessidade de reformar o Estado e fomentar instituies inovadoras e competitivas para respaldar os mercados.

    Definida a necessidade de reformar o Estado, a estratgia apresentada nessa direo dupla: pri-meiro, ajustar a funo do Estado sua capacidade, segundo, aumentar a capacidade do Estado, revigo-rando as instituies pblicas (BANCO MUNDIAL, 1997, p. 3-4). A orientao para os governos que deveriam ajustar suas funes capacidade, de for-ma a t