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BAIRRO DO BOM RETIRO SEGUNDO AS CATEGORIAS ETNOGRÁFICAS: Fundamentos teóricos e primeiras observações no campo CHI, JUNG YUN Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). Pós-graduação na Área de Concentração Paisagem e Ambiente. www.usp.br/fau [email protected] RESUMO Este artigo apresenta a metodologia de estudo de paisagem inspirada na disciplina de Antropologia que emprega, do olhar de etnólogo, algumas estratégias para inserção no campo. O uso das categorias etnográficas, instrumentos extraídos das pesquisas do Núcleo de Antropologia Urbana (NAU/FFLCH-USP) desenvolvidas sob a supervisão do Prof. Dr. José Guilherme Cantor Magnani, tem como finalidade entender a forma recíproca com que a rede de relações sociais influencia a estrutura espacial do bairro. Com isso, espera-se descrever a maneira com a qual diferentes comunidades de imigrantes do bairro do Bom Retiro se apropriam dos espaços públicos, dando-lhes expressões multiculturais que denotam valores comunitários, tais como identidades coletivas, interesses territoriais, emblemas e memórias sociais. Palavras-chave: São Paulo; Bom Retiro; multiculturalismo; categorias etnográficas; espaços públicos

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BAIRRO DO BOM RETIRO SEGUNDO AS CATEGORIAS ETNOGRÁFICAS:

Fundamentos teóricos e primeiras observações no campo

CHI, JUNG YUN

Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP).

Pós-graduação na Área de Concentração Paisagem e Ambiente. www.usp.br/fau [email protected]

RESUMO

Este artigo apresenta a metodologia de estudo de paisagem inspirada na disciplina de Antropologia que emprega, do olhar de etnólogo, algumas estratégias para inserção no campo. O uso das categorias etnográficas, instrumentos extraídos das pesquisas do Núcleo de Antropologia Urbana (NAU/FFLCH-USP) desenvolvidas sob a supervisão do Prof. Dr. José Guilherme Cantor Magnani, tem como finalidade entender a forma recíproca com que a rede de relações sociais influencia a estrutura espacial do bairro. Com isso, espera-se descrever a maneira com a qual diferentes comunidades de imigrantes do bairro do Bom Retiro se apropriam dos espaços públicos, dando-lhes expressões multiculturais que denotam valores comunitários, tais como identidades coletivas, interesses territoriais, emblemas e memórias sociais.

Palavras-chave: São Paulo; Bom Retiro; multiculturalismo; categorias etnográficas; espaços públicos

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INTRODUÇÃO

O mestrado em desenvolvimento na Área de Concentração Paisagem e Ambiente da

Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), sob a

orientação do Prof. Dr. Vladimir Bartalini e intitulado Bom Retiro: o multiculturalismo na

paisagem paulistana, tem como objetivo detectar as expressões do multiculturalismo na

paisagem do bairro do Bom Retiro, descrevendo as formas pelas quais os imigrantes

participam da criação e da transformação dos espaços públicos do bairro e a maneira como se

apropriam deles. Através dessa descrição, espera-se apontar os valores multiculturais do

bairro e contribuir para sua preservação, promovendo a integração social através da

valorização e do reconhecimento da diversidade cultural.

Como passos iniciais da pesquisa, foram realizadas observações no campo e os dados

levantados foram organizados segundo as categorias etnográficas, utilizadas nas

pesquisas do Núcleo de Antropologia Urbana (NAU/FFLCH-USP) desenvolvidas sob a

supervisão do Prof. Dr. José Guilherme Cantor Magnani, com a finalidade de entender a forma

recíproca com que a rede de relações sociais influencia a estrutura espacial do bairro. O

trabalho resultante apresenta as etapas dessas análises iniciais: primeiro, mostra alguns

fundamentos teóricos que levaram à escolha desta metodologia de campo e, depois, são

colocadas as observações feitas nas primeiras visitas ao campo, seguidas por reflexões que

apontam as possibilidades de desencadeamento da análise das categorias etnográficas no

estudo da paisagem do bairro multicultural.

BOM RETIRO, O BAIRRO DOS IMIGRANTES

Ao pensarmos no bairro do Bom Retiro, as primeiras imagens que surgirão nas nossas

mentes serão, provavelmente, os imigrantes e as coloridas lojas de roupas da Rua José

Paulino. A ferrovia e a Estação da Luz também são marcos importantes do bairro que lhe

atribuíram a função de “porta de entrada da cidade” e que configuram o seu limite com o

Centro. Até os meados do século passado, os trens traziam à Estação os imigrantes que

desembarcavam no Porto de Santos e muitos se fixaram ali mesmo, ainda que a maioria

estivesse só de passagem e partisse buscando lugares para morar em outros bairros logo em

seguida. Mais tarde, os imigrantes deixaram de chegar em barcos e a ferrovia perdeu a

conexão de passageiros com o porto, mas sua reputação de bairro de estrangeiros

permanece até os dias de hoje e o Bom Retiro continua abrigando os imigrantes vindos de

diferentes as partes do mundo. Todas as manhãs, podemos encontrar, nas ruas adjacentes

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do Terminal Princesa Isabel, grupos de passageiros que acabaram de desembarcar dos

ônibus vindos de vários países vizinhos – Paraguai, Peru e Bolívia, na sua grande maioria.

Outras características do bairro são a presença de instituições, equipamentos públicos e

monumentos, a intensa atividade comercial e a proximidade com o Centro que formam um

conjunto de fatores que lhe proporciona o status de bairro central. Segundo Feldman (2011):

As singularidades do Bom Retiro como bairro central e como bairro de

estrangeiros resultam da combinação entre presença da ferrovia,

proximidade do centro e sucessão de diferentes grupos de estrangeiros.

A proximidade ao centro repercute tanto na atuação de

empreendedores privados, como em estratégias do poder público de

destinar ao bairro tudo que exige acessibilidade, mas que é indesejado

ao centro (Feldman, 2011: p. 42).

Essa condição de bairro de estrangeiros e bairro central caracteriza o Bom Retiro desde os

primórdios da sua urbanização, que é decorrente da expansão urbana de São Paulo atrelada

à instalação da ferrovia, aos negócios cafeeiros e à industrialização incipiente. E foi no

entorno das pequenas instalações industriais e do comércio de confecção que, no início do

século XX, as comunidades de imigrantes começaram a estabelecer-se no bairro. Até hoje, o

bairro é fortemente caracterizado pela presença de indústria têxtil e das comunidades de

estrangeiros que participam dessa indústria, constituindo uma economia de base étnica:

A organização da base material compreendendo todos os elementos da

cadeia de produção e vendas, num território delimitado e fortemente

concentrado em um grupo de estrangeiros – uma economia de base

étnica – é o que lhe (ao bairro) confere uma identidade (Feldman, 2011:

p. 46).

Sobre essa economia de base étnica que se instalou no Bom Retiro, Truzzi (2011) aponta

suas forças e debilidades:

De um lado, o capital social de solidariedade, que produz sustentação

mútua entre os integrantes da rede (da mesma base étnica), pode ser

alto, mas, em muitos casos, conspícuo. De outro, o capital social de

reciprocidade, derivado das relações tecidas externamente à rede, com

outros grupos, e muitas vezes crucial à mobilidade social, é débil

(Truzzi, 2011: p. 31).

A falta de mobilidade social típica da economia de base étnica reforça a estratificação da

estrutura social do bairro, dividida entre grupos culturais que coincidem com os grupos de

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classes econômicas, distanciando ainda mais o convívio social entre as comunidades. Tendo

em vista esse multiculturalismo e a estrutura econômica que organizam a vida social do bairro

em grupos culturais, veremos quais são seus efeitos na convivência e na vida nos espaços

públicos.

IMPLICAÇÕES MULTICULTURAIS NA CIDADE CONTEMPORÂNEA

O multiculturalismo é um dado inerente às sociedades da era contemporânea: as distâncias

se encurtaram, o isolamento geográfico foi vencido pela alta capacidade de comunicação que

a tecnologia viabilizou e as pessoas oriundas de diversas terras trouxeram consigo, às

cidades, costumes e tradições de suas origens. Num mundo que se diz globalizado, já nem

sabemos afirmar se ainda existem “sociedades” na forma plural, que se sustentariam umas

independentemente das outras. No entanto, a impressão que se tem é de que estamos ainda

distantes do ideário descrito como noosfera por Teilhard Chardin, no qual a humanidade seria

transformada numa unidade integrada, fundida num fluxo único de ideias, desfrutando do bem

estar advindo de uma sociedade igualitária e livre de conflitos. Segundo Budyko (1986), a sua

formação é um processo considerado ainda em andamento, longe de ser completado.

Não podemos negar o fato de que o intercâmbio de culturas sempre existiu, mas nunca com a

intensidade e a velocidade do mundo atual. Todas as culturas se misturam ou estão

suscetíveis a misturar-se, a perder seus limites no território e na sociedade através da

estrutura de comunicação que atingiu a escala global. E as tensões causadas por

estranhamento e discordância no encontro das diferentes culturas frequentemente se

manifestam na forma de conflitos sociais que, muitas vezes, são camufladas sob os discursos

da ética e da boa convivência. É como se nos encontrássemos na fase de transição em

direção à utópica noosfera, na qual a capacidade tecnológica de comunicar-se estivesse um

passo adiante da capacidade mental e afetiva das pessoas de integrar-se.

As grandes cidades americanas do início do século XX, onde o mundo viu a rápida formação

de sociedades multiculturais de tamanho e densidades jamais vistas antes, foram objetos de

interesse dos antropólogos da Escola de Chicago, em especial Robert E. Park e Louis Wirth.

Segundo Bógus (2008), o conceito da segregação espacial começa a aparecer na Escola de

Chicago, que considerava esta ser o produto de escolhas individuais, cada um escolhendo

formar grupos segundo afinidades étnicas e raciais e posição social com a finalidade de

proteger-se dos efeitos fragmentadores da individualização trazida pela vida urbana. Essa

visão sobre a estrutura social das cidades deriva do seguinte pensamento de Simmel (1967):

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A primeira fase das formações sociais encontradas nas estruturas

sociais históricas bem como contemporâneas é a seguinte: um círculo

relativamente pequeno firmemente fechado contra os círculos vizinhos,

estranhos ou sob qualquer forma antagônicos (SIMMEL, 1967: p.18).

Esses pequenos círculos sociais organizados de acordo com o modelo das comunidades

antigas, baseadas na relação de solidariedade, seriam a solução encontrada para a mediação

dos conflitos culturais com outros círculos e, ao mesmo tempo, para a preservação da

individualidade, das heranças culturais e da tradição. A relação entre esses grupos culturais,

portanto, seria marcada por tolerância, mínimo de comunicação, e indiferença. A atitude blasé

que Simmel define como sendo característica da vida mental dos metropolitanos é o que

prevalece na vida social para fora dos pequenos círculos e carrega o potencial para conflitos

quando na proximidade física.

Essa atitude mental dos metropolitanos para com o outro, podemos

chamar, a partir de um ponto de vista formal, de reserva. (...) o aspecto

interior dessa reserva exterior é não apenas a indiferença, mas, mais

frequentemente do que nos damos conta, é uma leve aversão, uma

estranheza e repulsão mútuas, que redundarão em ódio e luta no

momento de um contato mais próximo, ainda que este tenha sido

provocado (SIMMEL, 1967: p.17).

Em cidades densamente povoadas, a proximidade física inevitável força os grupos a

adotarem a relação de simbiose e acomodação entre si, e os problemas serão resolvidos por

regras e leis e não no trato individual e íntimo. Segundo Wirth (1956):

Nesses casos, os grupos humanos conseguem viver lado a lado, como

se fossem plantas e animais na situação conhecida como simbiose.

Essa organização entre plantas e animais persiste sem envolvimento de

consciência. Porém, a consciência e sentimentos surgirão no caso dos

seres humanos e cada um dos grupos poderão ocupar um espaço dado

sem perder identidades separadas porque para cada lado é permitido

viver sua vida interna e cada um, de alguma maneira, temerá ou

idealizará a vida do outro. Essa relação é apropriadamente descrita

como acomodação, para distingui-la da assimilação (WIRTH, 1956: p.

282).1

1 WIRTH, 1956 – p. 282. Tradução nossa.

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Para a finalidade do estudo proposto, com enfoque nos espaços públicos do bairro do Bom

Retiro, essas peculiaridades de convivência urbana entre os grupos culturais têm relevância

porque ditam as regras da vida pública. Sendo assim, o que se espera é a manifestação do

contraste de relações sociais entre a vida comunitária e a vida pública. A partir desse

pressuposto, vamos observar como esse contraste adota expressões concretas na paisagem,

por atores que participam do processo de criação, transformação e apropriação dos espaços

públicos.

BOM RETIRO SEGUNDO AS CATEGORIAS ETNOGRÁFICAS

A proposta de iniciar a análise sobre a maneira como as comunidades se apropriam dos

espaços públicos a partir do olhar de etnólogo tem como objetivo entender a forma recíproca

com que a rede de relações sociais influencia a estrutura espacial do bairro. A família das

categorias etnográficas do Prof. Magnani – pedaços, trajetos, circuitos e manchas – é o

instrumento que permite contextualizar, na cidade, as relações de sociabilidade e a dinâmica

cultural, evidenciando a sua organização espacial e simbólica, pois, “em vez da anomia,

isolamento ou fragmentação, o que se vê são regularidades, arranjos coletivos, oportunidades

e espaços de trocas e encontros” (MAGNANI, 2012: p. 251).

O primeiro elemento da família das categorias etnográficas, o pedaço, é o termo que “designa

aquele espaço intermediário entre o privado (a casa) e o público, onde se desenvolve uma

sociabilidade básica, mais ampla que a fundada nos laços familiares, porém mais densa,

significativa e estável que as relações formais e individualizadas impostas pela sociedade

(MAGNANI, 1998 apud MAGNANI, 2012: p. 88)”. Em outras palavras, o pedaço é lugar de

encontro de membros pertencentes ao mesmo círculo social, que se conhecem e/ou se

reconhecem, e é onde se praticam as atividades coletivas. O caráter espacial do pedaço é

transitório, pois o plano simbólico se sobressai na formação do mesmo: as pessoas se

reconhecem ao serem portadores dos mesmos símbolos culturais que remetem à etnia, à

tradição, aos hábitos, à crença, etc.

O restante das categorias etnográficas é decorrente da existência dos pedaços e da sua

distribuição espacial: as manchas são “áreas contíguas do espaço urbano dotados de

equipamentos que marcam seus limites e viabilizam (...) uma atividade ou prática

predominante (MAGNANI, 2012: p. 94)” sendo aglutinações no entorno de um ou mais

estabelecimentos; o trajeto “aplica-se a fluxos recorrente s no espaço mais abrangentes da

cidade e no interior das manchas urbanas (MAGNANI, 2012: p. 95)” e é constituído por

caminhos não aleatórios que interligam os pedaços, manchas, estabelecimentos,

equipamentos, etc.; e o circuito “descreve o exercício de uma prática ou a oferta de

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determinado serviço em estabelecimentos, equipamentos e espaços que não mantêm entre si

uma relação de contiguidade espacial, sendo reconhecido em seu conjunto pelos usuários

habituais (MAGNANI, 2012: p. 97)”, ou seja, ele é composto por espaços de prática cultural do

mesmo grupo, porém espalhado pela cidade ou para além dela. Sendo assim, a observação

das categorias etnográficas realizada no recorte dos limites do bairro do Bom Retiro mostrará

o entrelaçamento de redes sociais de diversas origens culturais e seu arranjo espacial dentro

do bairro, com distintos pedaços situados em manchas sobrepostas, onde há uma clara

confluência de circuitos de sociabilidade das comunidades multiculturais.

Ainda mais, o estudo das categorias etnográficas existentes no bairro poderá revelar a

qualidade de seus espaços públicos, não somente atrelada às configurações físicas, mas aos

usos, aos fluxos, às relações sociais neles promovidos e, principalmente, à afetividade que os

espaços evocam em seus frequentadores. Essa qualidade afetiva dos espaços públicos seria

o resultado da verdadeira apropriação, do sentir-se responsável por aquele lugar. A

existência das categorias pedaços, circuitos e trajetos é sinal de apropriação dos espaços e,

quando detectada no âmbito público, mostraria, além da relação das pessoas com o espaço, o

grau de aceitação dos valores culturais de um grupo pela sociedade. Segundo Magnani

(2009):

Os graus de uso, a formas de mobilidade, a multiplicidade de pontos de

encontro, as oportunidades de trabalho, estudo, etc. oferecidas pelas

diversas escalas urbanas é que vão determinar um maior ou menor

campo de trocas, permitindo construir, fortalecer e exibir marcas de

identidades que se legitimam na medida em que são assumidas pelos

“de dentro” e exibidas para “os de fora”. É preciso, pois, identificar os

pedaços, os circuitos, os trajetos que constituem diversas

modulações ou gradações do espaço público onde se pode

perceber a construção de múltiplas identidades – em contraste

com o confinamento do espaço privado, que dificilmente

consegue fazer a passagem do estigma, negativo, para a marca de

pertencimento, positiva (MAGNANI, 2009: p. 148).

Assim, a passagem do estigma para o pertencimento aconteceria na medida em que o grupo

se sente acolhido pela sociedade na sua diferença e resultaria no fortalecimento da vida social

nos espaços públicos. Vale ressaltar que esse acolhimento não significa a anulação da

identidade diferenciadora, mas a sua preservação e aceitação.

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LEVANTAMENTO DE CAMPO – ASPECTOS GERAIS

As visitas ao bairro do Bom Retiro realizadas entre os dias 18 a 22 de julho de 2014, no horário

entre as 9:00 e as 18:00, tiveram como objetivo mapear os estabelecimentos de comércio

e de serviço e equipamentos voltados para as comunidades étnicas e culturais do

bairro com a intenção de caracterizar as categorias etnográficas – pedaços, trajetos, circuitos

e manchas – compostas por distintos círculos de sociabilidade baseados nessas

comunidades. Para isso, em vez de adotar o limite administrativo do bairro para o

levantamento, foi traçado um novo limite, considerando a contiguidade espacial a partir da

centralidade formada no eixo das estações Luz e Tiradentes (ver Figura 1). Assim, os limites

estabelecidos para o levantamento inicial foram: Av. Rudge, Rua Sérgio Tomas, Av. do

Estado, Av. Tiradentes e a ferrovia. Esses limites, por serem vias de circulação de âmbito

municipal/regional, representam corte no tecido urbano e o recorte resultante é, de fato, o que

é o bairro do Bom Retiro na acepção geral.

Figura 1 – Limite do levantamento e as centralidades do bairro.

Uma vez definido o limite do levantamento, todas as ruas nele existentes foram percorridas a

pé e os dados levantados são resultados de observações feitas a partir das calçadas. Com

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isso, foi elaborada a tabela de endereços dos estabelecimentos de comércio e de serviço e

equipamentos voltados para as comunidades específicas que, mais tarde, serviu de base para

a elaboração do mapa síntese (ver Figura 2). Partindo do pressuposto de que esses

estabelecimentos promovem a socialização e a comunhão entre os membros pertencentes às

comunidades, esse mapa síntese representaria a distribuição espacial dos pedaços

existentes no bairro. Houve atenção contínua para detectar a formação de pedaços nos

espaços públicos, nas ruas e praças, mas nada foi identificado como tal nesse primeiro

levantamento.

Antes de tudo, é importante citar algumas características espaciais do bairro que foram

observadas durante o levantamento de campo. São elas:

1. O bairro se divide em três setores de acordo com o uso (ver Figura 1). O primeiro deles se

desenvolve a partir do eixo formado pela Rua José Paulino e é dedicado ao comércio de

roupas e de outros artigos ligados à confecção, tais como máquinas de costura e corte,

tecidos, aviamentos, etc.; o segundo é de comércios e serviços relacionados à vida

cotidiana do bairro e das comunidades, concentrado na Rua Prates; e o terceiro, de

ocupação menos densa, é composto por armazéns, galpões industriais, antigas vilas

operárias e residências.

2. A centralidade do bairro está nas áreas adjacentes das Estações Tiradentes e Luz (ver

Figura 1).

3. O Jardim da Luz é um importante lugar de passagem de pedestres que conecta o Bom

Retiro à Luz e ao Centro da cidade.

4. A constatação de que os setores comerciais causam vazios urbanos fora do horário

comercial é geral em toda a área central da cidade de São Paulo. O Bom Retiro não é

uma exceção. Essa característica exige mais uma série de observações de campo a

serem realizadas fora desse horário, em que poderão ser detectados padrões distintos de

apropriação dos espaços públicos em relação aos padrões constatados neste

levantamento.

5. O uso residencial é difundido no bairro todo, menos no setor do comércio de roupas. São

raros os edifícios exclusivamente residenciais, ou seja, a tipologia residencial

predominante é de uso misto.

6. Edifícios de grande porte (instituições e indústrias) provocam grandes extensões de

superfícies muradas junto às calçadas e diminuem a densidade de ocupação, o que faz

decair a qualidade das ruas do bairro.

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7. As avenidas e a ferrovia, que configuram o limite da área de levantamento anteriormente

descrita, são as rupturas do tecido urbano e as áreas adjacentes sofrem a situação de

borda, com ruas sem saída e praças abandonadas.

PRIMEIRAS IMPRESSÕES

Da observação dos estabelecimentos, da sua quantificação e da distribuição espacial,

puderam ser destacas três grupos culturais: coreano, judaico e hispano-americano, na ordem

decrescente do número de estabelecimentos encontrados. Desses três, apenas o grupo dos

coreanos é de base estritamente étnica, sendo que outros dois são compostos por diversas

etnias, porém unidos por outros fatores culturais: no caso da comunidade judaica, a força da

união vem das tradições e costumes religiosos enquanto a comunidade hispano-americana

compartilha a mesma língua. O destaque dessas três comunidades era esperado pela leitura

de artigos e publicações relacionados à história do bairro e foi atestado, sem dificuldades, no

primeiro levantamento.

Figura 2 – Mapa dos estabelecimentos de comércio e de serviço e equipamentos voltados para as comunidades étnicas e culturais.

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Em número, a comunidade coreana tem a maior representatividade no bairro, sendo que

existem trechos de ruas com uma sucessão de lojas com letreiros em coreano, causando a

sensação de se estar num bairro da Coreia. Como podemos observar na Figura 2, os

estabelecimentos e equipamentos da comunidade coreana se concentram nas quadras

movimentadas entre a R. José Paulino e a Estação Tiradentes do Metrô, principalmente na

esquina da R. Silva Pinto com a R. Guarani, na Rua Prates no trecho entre a R. Ribeiro de

Lima e a R. dos Bandeirantes e na R. Três Rios. Esses estabelecimentos suprem diversas

necessidades da vida cotidiana – são templos religiosos (igrejas evangélicas na sua grande

maioria), restaurantes, bares, karaokês, cabeleireiros, escolas, mercearias, etc. – e atendem

não só os moradores coreanos como os que trabalham no bairro e residem em outros locais

ou aqueles que não têm relação direta com o bairro, mas que desfrutam, de alguma forma, a

vida comunitária, vêm em busca da vida social com outros coreanos, da culinária típica ou da

vida religiosa.

Já a comunidade judaica, a mais antiga das três, marca a presença discretamente. De acordo

com o Prof. Dr. Carlos Alberto Póvoa2, a comunidade judaica já teve vínculo mais forte com o

bairro, mas foi perdendo a ligação com a indústria têxtil e avançou em direção aos bairros

Santa Cecília, Higienópolis, Jardins, Morumbi, Itaim Bibi, Vila Mariana e Moema, na ordem

cronológica. Mesmo assim, os estabelecimentos e equipamentos ligados à vida religiosa e os

costumes persistem, tais como as sinagogas, mercados de alimentos kasher, algumas

escolas e instituições beneficentes.

2 Das anotações da visita educacional do bairro do Bom Retiro realizada no dia 5 de abril de 2014 e organizada

pelo Centro da Cultura Judaica de São Paulo.

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Figura 3 – Discrição da confeitaria kasher na R. João Kopke e a fachada fortificada da sinagoga Khal Adas Yereim na R. Talmud Thorá.

O aspecto desses estabelecimentos, muitas vezes, é mais discreto do que a vestimenta dos

judeus ortodoxos que as frequentam. Se não estão escondidas atrás das fachadas fortificadas

com muros altos, portões de ferro e guaritas blindadas de vidro reflexivo, mantêm um disfarce

ou fachadas discretas sem letreiros e anúncios de maneira que um transeunte desinteressado

não perceba sua finalidade (Figura 3). O levantamento dos estabelecimentos judaicos com o

auxílio dos classificados disponíveis pela internet3 teve um resultado revelador, porque elas

eram invisíveis para quem não fazia parte daquele círculo social. Se os letreiros em coreano

desencorajam o acesso daqueles que não entendem a língua, a invisibilidade é outra

estratégia para afastar os não pertencentes à comunidade. Assim, cada círculo social protege

seus pedaços contra os estranhos, os indesejados e até a violência da vida urbana.

Os estabelecimentos e equipamentos para a comunidade hispano-americana, antes de tudo,

são de caráter de conveniência: são diversas modalidades de comércios e serviços – lan

house, cabeleireiros, venda de pães e salteñas, transferência internacional de dinheiro e

venda de cartões telefônicos para chamadas internacionais – que compartilham o mesmo

espaço nas pequenas lojas (Figura 4). Muitas vezes, não é necessário um ponto comercial

para isso, bastando sinalizar com pequenos anúncios em balões e adesivos nas portas de

residências. Podemos expor duas constatações sobre o cotidiano dos hispano-americanos a

partir dessa observação: 1) esses pequenos comércios espalhados pelo bairro, porém, longe

daquela parte central ocupada pelos estabelecimentos coreanos e judaicos e misturando-se

com as vilas operárias, oficinas de costura e fábricas, denunciam a significativa presença de

moradores hispano-americanos que demandam a existência desses estabelecimentos de

conveniência na proximidade de suas casas; 2) a ausência dos espaços de lazer que

promovem a vida social, salvo o caso do campo de futebol da Rua Afonso Pena onde são

realizados jogos dominicais entre times bolivianos e paraguaios entre outros. O lazer e a troca

de informações sobre os negócios provavelmente acontecem na famosa feira boliviana da

Praça Kantuta, que acontece todos os domingos na praça localizada na divisa entre os bairros

Bom Retiro e Pari, e que concentra os bolivianos de toda a região, do circuito que se estende

para Pari, Brás e Zona Leste adentro.

3 www.koshermap.com.br, acesso no dia 20 de julho de 2014.

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Figura 4 – Lojas latino-americanas na R. Joaquim Murtinho, ao lado da sinagoga Machzika Hadás.

PRÓXIMOS PASSOS: MAPEANDO PEDAÇOS, TRAJETOS E

CIRCUITOS

Uma vez elaborados os mapas mostrando a distribuição de diferentes pedaços que existem

no bairro para ver a estrutura espacial dos circuitos de sociabilidade, foi detectada a

necessidade de aprofundar o levantamento de forma que maior ênfase fosse dado aos

espaços públicos e às formas de apropriação desses espaços. Para isso, podemos atentar

para as seguintes situações:

1. Pedaços formados nos espaços públicos: os pedaços indicam apropriação pontual de

um espaço por um grupo. A constatação da não existência dos pedaços em espaços

públicos pode denunciar o abandono e a deficiência da vida social pública do bairro.

2. Trajetos e as ruas: os trajetos na escala de bairro indicam o fluxo de pedestres nas

ruas que traz a vivacidade e a sensação de segurança. Quanto mais frequentes e

sobrepostos, melhor é a qualidade da vida nas calçadas.

3. Pedaços e manchas sobrepostos: quando os pedaços e manchas compartilham os

mesmos espaços públicos, a convivência pode se manifestar de forma negativa

potencializando as tensões sociais e disputas territoriais ou acontecer positivamente

abrindo possibilidade de expandir as relações sociais para além dos limites dos pequenos

grupos. Muito provavelmente, os espaços serão ocupados com a alternância de horários

para evitar o contato indesejado com os outros e manter a invisibilidade pública e a

discrição, como forma de negociação pacífica entre os grupos (MAGNANI, 2012: p. 91).

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Segundo Magnani (2012), é necessário ampliar o nosso olhar “para além da nostalgia pela

‘velha rua moderna’ de Berman ou do ‘balé das calçadas’ de Jane Jacobs” (MAGNANI 2012:

p. 254), pois a vida pública contemporânea teria outros espaços. Porém, para o estudo da

paisagem, é importante que o foco permaneça nos espaços públicos, resistindo à tentação de

seguir o circuito e adentrar a vida privada. Se a ausência das categorias etnográficas nos

espaços públicos indica a “deterioração dos espaços e equipamentos públicos com a

consequente privatização da vida coletiva, segregação, evitação de contatos, confinamento

em ambientes e redes sociais restritos, situações de preconceito e discriminação” (MAGNANI,

2012: p. 254), essa constatação já seria uma válida experiência de campo e traria reflexões

igualmente ricas para se pensar no âmbito da paisagem.

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EXPRESSÕES DO MULTICULTURALISMO NA PAISAGEM

Para finalizar, vamos retomar algumas reflexões sobre o objeto do mestrado, as expressões

do multiculturalismo na paisagem. Para Conan (2009) a paisagem evoca os sentimentos

compartilhados entre membros do mesmo grupo, estabelecendo o emblema que representa a

identidade coletiva:

A paisagem é um símbolo do grupo que se torna coeso ao apropriar-se,

mediante formas de experiência ritualizadas, de um lugar que lhe

assinala uma identidade esquemática, e o valor que lhe é atribuído é um

símbolo dos ideais coletivos do grupo. Por sua materialidade, pelo valor

de representação e pelo sentido que lhe é adicionado, ele constitui um

emblema do grupo.4

De acordo com o autor, esse ato de apropriar é exercer o direito de propriedade sobre um

território através de ritos que produzem sentimentos, símbolos e ideais comuns, partilhados

pelos membros do grupo que os pratica. E cada grupo que exerce uma relação de

propriedade sobre um território é suscetível de fazer do próprio território seu emblema. Sendo

assim, não raramente, os conflitos de interesse entre diferentes grupos sociais manifestam-se

espacialmente e convergem nos espaços públicos e na paisagem.

Ainda mais, Hayden (1996) encontra na origem da formação das identidades as memórias

sociais e coletivas, e explica como elas se transmitem através da paisagem:

Identidades são intimamente ligadas às memórias: tanto às nossas

memórias pessoais (de onde viemos e onde temos vivido) quanto às

memórias sociais e coletivas interconectadas às histórias das nossas

famílias, vizinhança, colegas de trabalho e comunidades étnicas.

Paisagem urbana é o armazém para essas memórias sociais, porque

fatores naturais como colinas e portos, assim como as ruas, edifícios e

padrões de assentamento, enquadram as vidas de muitas pessoas e

perduram várias gerações (HAYDEN, 1996: p. 9).5

Assim, adicionando à paisagem as significações da memória e identidade, evidenciam-se

nela elementos essenciais a serem trabalhados para atingir o pleno reconhecimento do

multiculturalismo, tais como a conciliação de interesses territoriais, a criação de emblemas

coletivos e a preservação das memórias sociais.

4 CONAN, Michel, L`Invention des Identités Perdues, in: BERQUE, Augustin (dir.), Cinq propositions pour une

théorie du paysage. Ed. Champ Vallon, Seyssel, 2009, p. 37. Tradução do Prof. Dr. Vladimir Bartalini.

5 HAYDEN, 1996 – p. 9. Tradução nossa.

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Em suma, as expressões do multiculturalismo na paisagem podem assinalar a existência dos

seguintes fatores:

Unidade de identidade contra a tendência de dissolução da mesma;

Emblema (valor de representação)

Memórias sociais e coletivas

Desejo de apropriar

Acolhimento e pertencimento

Essas expressões do multiculturalismo na paisagem podem se apresentar sob diversos

aspectos: toponímia de logradouros, espaços públicos voltados ao lazer, atividades em

grupos e seus locais, monumentos, jardins e edifícios, entre outros. E as observações no

campo realizadas através do olhar etnográfico e da análise segundo as categorias

etnográficas podem ajudar a detectar a sutil presença dessas expressões e, mais tarde,

auxiliar na sua compreensão e na contextualização.

REFERÊNCIAS

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http://www.observatoriodasmetropoles.ufrj.br/urban_segregation.pdf. Última atualização em

08 de outubro de 2008.

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CONAN, Michel. L`Invention des identités perdues, in: BERQUE, Augustin (dir.), Cinq

propositions pour une théorie du paysage. Ed. Champ Vallon, Seyssel, 2009.

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LANNA, Ana Lúcia D.; PEIXOTO, Fernanda Arêas et al., São Paulo, os estrangeiros e a

construção das cidades, p. 39 - 62. Alameda, São Paulo, 2011.

HAYDEN, Dolores. The power of place: urban landscapes as public history. MIT Press,

Cambridge, 1996.

MAGNANI, J. Guilherme C. Etnografia como prática e experiência, in: Horizontes

antropológicos – vol. 15, n. 32, jul/dez 2009.

MAGNANI, J. Guilherme C. Da periferia ao centro: trajetórias de pesquisa em

Antropologia Urbana. Ed. Terceiro Nome, São Paulo, 2012.

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SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental, in: VELHO, Otávio G. (org.) O fenômeno

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Fernanda Arêas et al., São Paulo, os estrangeiros e a construção das cidades, p. 19 - 38.

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WIRTH, Louis. The Ghetto. The University of Chicago Press, Chicago, 1956.