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5 A renovação da civilização pelos Carolíngios A existencia de um grande espaço político com cerca de um milhão e duzentos mil quilómetro qua- drados povoados talvez por quinze milhões de habitantes sob a autoridade de Carlos Magno e de Luís o Piedoso só podia favorecer o estabelecimento de uma civilização comum. A sua quase total coin- cidência com o mundo cristão romano incitou a Igreja a propor um programa de Renovatio regni Francorum. Trata-se de criar uma nova entidade política por meio do baptismo dos pagãos. Este baptismo ou esta cristianização faz com que possa falar-se de um segundo nascimento do mundo bár- baro, ou, mais precisamente, de um re-nascimento tanto a nível político através das inovações de Carlos Magno, como a nível religioso pelas reformas de Luís o Piedoso, e ainda a nível social e eco- nómico através da introdução da vassalidade nas estruturas do «Estado» e da criação de uma moeda única. Assim se explica a importância da Renovação ou do Renascimento carolíngio. 1. A noção de «Estado» O Estado e o direito Mal se aborda o problema da unidade política e da organização comum que administra os indivíduos, isto é, o «Estado», deparam-se-nos desde logo duas concepções. Relativamente aos Francos que dirigem o reino, o poder é exercido em conjunto pela nobreza dos homens livres e pelo rei. Estes dois elementos formam o Estado, espé- cie de comunidade de pessoas sem domicílio fixo, que se autopromove submetendo a si outros povos. Este «Estado» é reforçado pela prestação do juramento de fidelidade e pela guerra de conquista. Por várias vezes, Carlos Magno submete a tal juramento todos os homens com a idade de doze anos; embora a sua significação se viesse precisando melhor com o tempo, estes juramentos são em geral mal compreendidos pelos súbditos, aos olhos dos quais o sobe- rano os exigia porque tinha necessidade de ser apoiado, e isso é interpretado como uma confissão de fraqueza. Em contrapartida, a guerra era necessária pois impedia que a nobreza, ocupada em bater-se, se arrogasse local- mente demasiados poderes. Era, portanto, uma concep- ção concreta, a deste «Estado» que apenas resiste pela vitória. Os clérigos tentam então fazer reaparecer a noção romana de Estado com a expressão, desta vez abstracta, de respublica, «a coisa pública», o bem comum. «Renovam» 80

Balard, Michel. a Renovação Da Civilização Pelos Carolíngios.-1

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  • 5 A renovao

    da civilizao pelos Carolngios

    A existencia de um grande espao poltico com cerca de um milho e duzentos mil quilmetro qua-drados povoados talvez por quinze milhes de habitantes sob a autoridade de Carlos Magno e de Lus o Piedoso s podia favorecer o estabelecimento de uma civilizao comum. A sua quase total coin-cidncia com o mundo cristo romano incitou a Igreja a propor um programa de Renovatio regni Francorum. Trata-se de criar uma nova entidade poltica por meio do baptismo dos pagos. Este baptismo ou esta cristianizao faz com que possa falar-se de um segundo nascimento do mundo br-baro, ou, mais precisamente, de um re-nascimento tanto a nvel poltico atravs das inovaes de Carlos Magno, como a nvel religioso pelas reformas de Lus o Piedoso, e ainda a nvel social e eco-nmico atravs da introduo da vassalidade nas estruturas do Estado e da criao de uma moeda nica. Assim se explica a importncia da Renovao ou do Renascimento carolngio.

    1. A noo de Estado

    O Estado e o direito

    Mal se aborda o problema da un idade poltica e da organizao comum que administra os indivduos, isto , o Estado, deparam-se-nos desde logo duas concepes. Relativamente aos Francos que dirigem o reino, o poder exercido em conjunto pela nobreza dos homens livres e pelo rei. Estes dois elementos fo rmam o Estado, esp-cie de comunidade de pessoas sem domiclio fixo, que se autopromove submetendo a si outros povos. Este Estado reforado pela prestao do j u r amen to de fidelidade e pela guerra de conquista. Por vrias vezes, Carlos Magno submete a tal j u r amen to todos os homens com a idade de doze anos; embora a sua significao se viesse precisando melhor com o tempo, estes j u ramen tos so em geral mal compreendidos pelos sbditos, aos olhos dos quais o sobe-rano os exigia porque tinha necessidade de ser apoiado, e isso in te rpre tado como u m a confisso de fraqueza. Em contrapartida, a guerra era necessria pois impedia que a nobreza, ocupada em bater-se, se arrogasse local-mente demasiados poderes. Era, por tanto, uma concep-o concreta, a deste Estado que apenas resiste pela vitria. Os clrigos tentam ento fazer reaparecer a noo romana de Estado com a expresso, desta vez abstracta, de respublica, a coisa pblica, o bem comum. Renovam

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    esta expresso juntando-lhe a palavra Christiana. A Respublica Christiana, sob Lus o Piedoso, constantemente afirmada. O imperador , como o diz uma capitular de 823-825, zela pela Igreja, man tm a paz e a justia, mas o seu cargo est, na verdade, de tal fo rma dividido que saiba cada um de vs onde quer que habite e seja qual for a cate-goria social em que se insere, que tem uma parte do nosso fardo; por isso devo ser o vosso admonitor , de todos vs, e vs deveis ser os meus auxiliares. Esta concepo era ainda demasiado elevada para ser compreendida por todos, mas jamais iria desaparecer.

    A unidade do Estado devia ser completada pela uni-dade da legislao. Carlos Magno, antes da par t ida de cada expedio militar, utiliza a assembleia de todos os homens livres reunidos no Campo de Maio - o chamado plaid geral - , para obter o acordo dos Grandes, leigos e eclesiscos, para as suas decises. Estas eram ento procla-madas e postas por escrito, captulo por captulo (capitula), o que vale o n o m e de capitulares a estes documentos ou ordenanas oficiais. Automaticamente, elas passam a ser exequveis, em consequncia da proclamao verbal do soberano e do seu direito de banum, o direito de coac-o e de punio. Carlos Magno inova q u a n d o manda redigi-las, para reforar ou mesmo suprimir a o rdem oral. As capitulares resolveram um nmero muitssimo maior de questes de o rdem regulamentar do que legislativa. Com efeito, no interior do Imprio cada povo conservara a sua lei; os Romanos mant inham a sua, o mesmo suce-dendo com os Lombardos, os Hispano-Visigodos da Septi-mnia, os Bvaros, os Burgndios, os Francos, etc. Carlos Magno manda redigir a lei dos Frsios e a lei dos Saxes. A personalidade das leis persistia, por conseguinte, impe-dindo a unidade do Imprio. Out ro entrave a essa mesma un idade gerou-o a criao dos sub-reinos - Aquitnia, Itlia, Baviera - , mas vimos j quais os motivos que leva-ram os imperadores carolngios a proceder desta forma. A diversidade tnica e regional do Imprio foi a causa principal do colapso da unidade.

    Plaid: reunio bi-anual dos ho-mens livres por ordem do rei germnico, a fim de serem a tomadas decises ou preparar-l e a partida de expedies mi-litares.

    O governo central e os seus agentes

    Os governos de Carlos Magno e de Lus o Piedoso so portanto uma tentativa pe rmanen te de se desenvencilha-rem da herana primitiva e faz-la evoluir para uma con-cepo mais romana de esprito, e tambm mais eficaz. O palcio comea a fixar-se no domnio de Aix-la-Chapelle em 794, onde Carlos Magno passa a residir regularmente a partir de 807. A sua volta, os oficiais-mores ajudam-no no seu cargo com a confuso caracterstica da poca entre

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  • Senescal: de siniskalk. o mais velho dos criados. Oficial da corte encar regado de apre-sentar os pratos.

    Capela: esta designao de-corre do facto de ali estar con-tida a relquia mais insigne do reino dos Francos, a capa ou chape (da, chapella) de So Martinho.

    Pagus: este coincide com o condado na poca merovngia e torna-se, muitas vezes, uma subdiviso do condado na po-ca carolngia.

    Honra: ver p. 105.

    Hoste: exrcito. A palavra de-riva do latim hostis, o inimigo. Mali: tribunal rgio, presidi-do pelo conde.

    tarefas pblicas e tarefas privadas. O senescal e o escano ocupam-se dos criados (valets) e da proviso da mesa em alimentos e vinhos. Tm como principal funo a gesto dos domnios imperiais ou fisci, cujos intendentes ou domes-tici supervisionam. O camareiro-mor, alm dos aposentos do rei, zela pela boa ordem do tesouro e administra-o por intermdio de exactores. O condestvel, com os seus dois ferradores, assegura a remonta dos cavalos, os transpor-tes de reabastecimento do exrcito, etc. O conde do pal-cio substitui o soberano nos processos em recurso que este no pode decidir durante as suas ausncias da corte. O organismo que mais se assemelharia a um incio de administrao central a Capela (Chapelle), que no se limita a assegurar o servio religioso da corte, porquanto , dirigida por u m capelo-mor de dignidade episcopal, inte-gra todo um pessoal de clrigos, ento os nicos letra-dos, que devem assegurar a legislao eclesistica, o des-pacho da correspondncia oficial e a promulgao dos diplomas rgios. Entre todos estes escrives e notrios, aparece, no final do re inado de Carlos Magno, u m pro-tonotrio que recebe tambm o n o m e de chanceler, po rque normalmente pe rmanece de p na Capela j u n t o do chancel (cancelo, a vedao em pedra insculpida que separa o santurio do resto da baslica). Ocupa-se dos arquivos do palcio, r ecen temente criados, onde se con-servam todos os documentos enviados ao rei e as cpias dos que este expediu.

    A ordem intimada do palcio era executada a nvel do condado. H cerca de trezentos condados n o Imprio, divididos em pagi ou em gau. O condado dirigido por um conde, o pagus por u m vigrio e o gau por u m cente-nier (administrador da centaine, diviso territorial f ranca) . Escolhido pelo rei, o conde pode ser por este transferido ou exonerado; r emunerado com o usufruto de rendi-mentos de bens fundirios imperiais ao qual se d o nome de honor ou comitatus. Responsvel por numerosas fun-es, este executa as ordens reais e convoca os homens livres para a expedio anual (a hoste); assegura a presi-dncia do tribunal rgio, o mall pblico, razo de trs sesses por ano no mnimo, em cada subdiviso do con-dado para as causas maiores. Com ele deviam trabalhar entre dez a doze pessoas, o que perfaz um total de trs mil servidores encar regados de adminis t rar o Impr io carolngio, um pessoal tanto mais reduzido quanto se sabe que o Imprio Romano, s na cidade de Trves, manti-nha dois mil funcionrios! Por aqui se compreende como seria difcil para Carlos Magno controlar todos os seus ter-ritrios com to escasso enquadramento . O Imprio est, de facto, subadministrado. Em alguns casos, Carlos Magno recorre ao margraviado, agrupando condados que confia

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    a um duque ou a u m markgraf. Situados nas fronteiras, estes territorios vivem n u m estado de guerra permanente , tornando-se indispensvel a presena de um chefe dotado de todos os poderes. As marcas mais importantes eram as de Espanha, da Bretanha e as que estavam estabelecidas face aos Dinamarqueses, aos Vendes e aos Avaros.

    Para impedir que tais agentes, em nmero to redu-zido, viessem a converter-se em dspotas locais, Carlos Magno refora a instituio dos missi dominici. Estes envia-dos rgios, circulando em nmero de dois ou de trs, na maior parte dos casos u m conde e u m bispo, aparecem por volta de 779, tendo como tarefa investigar sobre even-tuais abusos, propor sanes, presidir ao tribunal, etc. So eles que asseguram u m mnimo de coeso ao Imprio, e quando no conseguem pr cobro aos excessos de poder dos condes, Carlos Magno pode ento utilizar um outro meio, a imunidade, que o imperador en tende reforar com a criao dos avous leigos; a estes cabe assegurar a defesa dos bens do imunizado, bem como adminis-trar o seu pessoal. Desta forma, o conde j no pode exer-cer a sua arbitrariedade. Por ltimo, e ainda animado pelo mesmo desejo de reforar a solidez do seu imprio, Carlos Magno introduz a vassalidade no Estado, ao sistematizar a unio do benefcio com o vnculo pessoal. O monarca exorta todos os homens livres a ent rarem na obedincia de um senhor atravs da cerimnia da recomendao. Em troca do servio militar desse homem recomendado, o senhor obrigado a oferecer-lhe o usufruir vitalcio de um dos seus prprios bens fundirios. O servio do vas-salo o mbil do benefcio. Criava-se, deste modo, toda uma hierarquia de subordinaes, que atingia o prprio Carlos Magno, o qual tem ligados a si os vassi dominici, a quem concede chasement nas suas terras. Por outro lado, obriga bispos e abades a entrarem, tambm eles, no sistema da recomendao. Com esta rede de fidelidades entre-cruzando-se e culminando na sua pessoa, contava o impe-rador levar o edifcio poltico a assentar no respeito da palavra dada, na f j u rada sobre os Evangelhos ou sobre relquias, e, sobretudo, nas obrigaes mtuas entre senhor e vassalo.

    Markgraf (margrave, mar-qus): isto , o conde de uma marca. Marca: zona fronteiria inde-cisa, estabelecida contra os pa-gos ou os Sarracenos com ex-cepo da da Bretanha.

    Imunidade: ver p. 59. Avou: ver p. 106.

    Recomendao: ver pp. 59 e 91.

    Vassi dominici: vassalos parti-culares do rei. Chasement: chaser: instalar al-gum, em regime de domic-lio, nas suas terras (casatos).

    Os meios de governao

    Concepo e organizao polticas eram sustentadas por poderosos meios de aco. O exrcito era entre estes o principal, na medida em que a guerra u m a institui-o pblica, a mais importante de todas. Teoricamente, todos os homens livres esto obrigados ao servio militar, a expensas suas, e so convocados no Campo de Maio para

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  • Broigne: tnica de couro co-berta de placas de ferro cosi-das.

    Villa: verp. 49.

    Freda: a tera parte das coi-mas judiciais que vai para o rei.

    chevinage, chevin: (almo-taaria, almotac) do scabinat carolngio. Corpo de magis-trados municipais que julgam em nome do senhor, e em se-guida dirigem a administrao das comunas.

    Ordlio: ver p. 59.

    Faida: vingana obrigatria do parente de uma vtima sobre a famlia do assassino.

    expedies que duram, no raro, trs meses ou mais. Na prtica, porm, acabam por ser convocados s os vassalos e os homens livres que habitam perto da regio onde vai ter lugar a refrega; os casos de desero so punidos com a morte. Em geral, a infantaria desempenhava u m fraco papel; f r equen temente , a cavalaria pesada que dita a deciso, graas ao seu equipamento. Com efeito, o cava-leiro usava em combate uma broigne, u m a espada com-prida e uma lana. Mas como todo este a rmamento ficava aproximadamente pelo preo (elevadssimo) de duas deze-nas de vacas, o nmero destes cavaleiros era escasso. Em 811, quatro exrcitos operavam n o Elba, n o Danbio, no Ebro e na Bretanha. Cada exrcito integrava de seis a dez mil pees e entre 2500 e 3000 cavaleiros, 800 dos quais couraados. O facto de contar, na maior parte das vezes, com tropas to fracas numer icamente explica que Carlos Magno tenha recorrido ao massacre e ao terror para garan-tir a vitria.

    Outro meio de aco de Carlos Magno era a sua riqueza, e muito par t icularmente a sua riqueza fundir ia . E com um zelo cioso que ele gere os seus domnios (fiscos), como o demonst ra a sua capitular De villis. Se esbanjava este capital a conceder terras aos seus vassalos, recupe-rava-as con tudo em seguida, pela mor te destes ltimos. Mas sob Lus, o Piedoso, o engrandec imento desse capi-tal viria a parar com o fim das guerras e, demais, o impe-rador faz concesses de terras em regime de p lena pro-priedade e no a ttulo de usufruto vitalcio, o que precipita o seu decrsc imo. Os ou t ros r e n d i m e n t o s consis t iam sobretudo em coimas judiciais (freda), coimas por recusa de ingresso n o exrcito (heriban), impostos indirectos, nomeadamen te portagens, o imposto do terrdigo, etc. O imposto directo romano , to rnado consuetudinrio, mantido sob formas e vocbulos mas elucidados. Recursos, em suma, mais ligados com a guerra exterior do que com a paz interna.

    Para alcanar essa paz, era necessria uma justia eficaz. E neste domnio que se revela mais forte a influncia de Carlos Magno. As suas capitulares comportam prescries numerosas dest inadas a melhorar a justia do t r ibunal condal. Cria, em particular, juzes profissionais, os che-vins - almotacs - , sete por cada tribunal condal. Esfora--se por desenvolver a prova por tes temunho ou por ave-riguao a fim de pr cobro a u m processo oral cujos principais meios de aco continuavam a ser os co-jurado-res ou o ordlio. Organiza o recurso ao tribunal do pal-cio no caso de falsos julgamentos. Todavia, apesar de todos estes esforos e a despeito da inf luncia da Igreja que intervinha com frequncia para humanizar as sentenas, a crueza das penas, a perpetuao da faida, a corrupo

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    dos juzes persistiram. Nada mais" dramtico nem to revelador como este m u n d o de violncia em constante choque com os esforos cont nuos de paz e de ordem dos imperadores carolngios.

    2. A Igreja

    Face ao Estado

    A fraqueza desta governao que no consegue domi-nar este aglomerado de reinos e de povos to diversos na sua totalidade explica o recurso cont nuo Igreja, a nica fora moral e material expandida por todo o Imprio a ponto de confundir-se com este ltimo. Ela o cimento de uma unidade constantemente pretendida, mas jamais alcanada. Melhor do que o servio militar ou o juramento exigido a cada h o m e m livre, melhor do que os condes, os missi ou os vassalos, o sermo do padre da parquia pode transmitir a vontade rgia e robustec-la pela obe-dincia que todo o cristo deve ao rei, at aos pontos mais recuados do Imprio. Ela , por tanto, o principal auxiliar do Estado, que se esfora por renovar do mesmo modo que renovou a ideia real ou a ideia imperial. Vimos a que ponto Carlos Magno, ao contrrio de Lus o Piedoso, sem-pre quis t-la totalmente na mo. A deciso do impera-dor indispensvel para a ent rada no clericato; o impe-rador nomeia todos os bispos e por vezes at os abades, ou ento nomeia, a par dos abades regulares, abades lei-gos; incita o clero a entrar na vassalidade, obriga os grandes dignitrios a participar nos plaids gerais, a dirigir o seu contingente de homens livres na guerra, a vigiar os condes, nomeando-os missi dominici, etc. As suas capitulares legis-lam sobre a Igreja e esto pejadas de consideraes de moral crist. Preside, em suma, aos conclios.

    Esta confuso do espiritual com o temporal teve como principal resultado ajudar a Igreja a acelerar a sua reforma, empreendida no sculo Viu. Duas geraes de grandes bis-pos representam este duplo renascimento da Igreja, o pri-meiro sob Carlos Magno com Angilramno, bispo de Metz, Teodulfo, bispo de Orlees, o segundo sob Lus, o Piedoso, com Jonas, bispo de Orlees e Agobardo, bispo de Lyon, etc. A primeira gerao reorganiza, ao passo que a segunda se esfora para aplicar um programa. De igual modo, no plano intelectual, a primeira situa-se ao nvel da apren-dizagem das letras, enquan to a segunda vai elaborar um pensamento que conduz ao renascimento da Filosofia.

    Abade leigo: espcie de vassalo do prncipe que presta o ser-vio militar em troca da frui-o de uma parte das terras monsticas.

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  • esta, em particular, qu pensa a estrutura social divi-dindo-a em trs ordens: a o rdem dos clrigos, a ordem dos monges e a ordem dos leigos.

    Corepscoco: bispo itinerante nomeado por um bispo titu-lar na sua prpria diocese pa-ra o a judar a administrar o campo. Prebenda: parte da renda da mensa reservada a um cnego para cobrir a sua alimentao e manuteno. Dzimo: dcima parte da co-lheita que verte para o clero no quadro da parquia.

    Os clrigos

    A primeira ordem compreende os bispos, os procos e os cnegos. A re forma episcopal fica mais ou menos concluda por volta de 814 com o estabelecimento dos arcebispados em substituio das metrpoles extintas. Ao bispo .cabem ento mltiplas tarefas, nomeadamen te visi-tar todos os anos as parquias rurais e as igrejas privadas per tencentes aos grandes proprietrios que as constru-ram nos seus domnios, criar escolas de chantres e de lei-tores, zelar pelos mosteiros, nomear os corepscocos no caso do seu bispado ser demasiado grande, pregar e defen-der a f, ocupar-se, em suma, do servio da catedral com os cnegos. Estes ltimos, desde a poca de Crodegango, bispo de Metz em meados do sculo viu, esto sujeitos a u m a regra comum (generalizada no Conclio de Aix de 816). Os cnegos p o d e m possuir alguns bens prprios, mas esto adstritos ao refeitrio e dormitrio comuns. As rendas dos bispos so divididas em duas partes: a mensa (ou mesa) episcopal, e a mensa capitular (ou mesa dos cnegos). Esta segunda mensa dividida em tantas pre-bendas quanto o n m e r o de cnegos; a p rebenda cobre as necessidades do cnego. Finalmente, surgiria uma legis-lao episcopal, os estatutos sinodais, que vem regula-mentar a situao dos diconos e sacerdotes. Esta ocupa--se em particular da sua instruo, ao mesmo tempo que refora a prtica do celibato. Ao nvel dos meios materiais do clero paroquial, o problema da confiscao das terras da Igreja pelo soberano solucionado por meio de uma compensao imposta em 779 no mbito de uma capitular: doravante, toda a terra, as terras reais includas, era deve-dora do dzimo s igrejas rurais. Um quarto do dzimo deveria ir para o bispado.

    Os monges

    Se o bispo carolngio teve u m papel bri lhante e figu-rou em muitos casos nas primeiras filas da aco poltica, j o abade tem um perfil mais modesto. Parece, primeira vista, que Carlos Magno alimentava uma certa desconfi-ana em relao aos mosteiros onde se abrigavam homens livres, o que contribua, inevitavelmente, para diminuir o seu potencial militar. A eleio livre do abade pelos seus monges no agradava ao monarca , de f o r m a que este nomeia , em muitos casos, alm do abade regular , u m

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    abade leigo, o qual, em troca da fruio das terras abadais, lhe prestava o servio militar. Carlos Magno utilizou os monges como missionrios, essencialmente na Saxnia e na Carntia, mis turando pregao e terror, instalao da hierarquia , criao de mosteiros e bapt ismos forados. Nunca encorajou, no entanto , misses para o exterior do Imprio, como o faria mais tarde seu filho. Lus, o Piedoso, teve, com efeito, u m a ati tude comple tamente d i ferente para corii os monges , por quem nutr ia particular venera-o. So Bento de Aniana impeliu-o a pr em prtica u m a re fo rma geral do m u n d o monstico. A capitular de 10 de J u l h o de 817 reaf i rmava a obr igao da Regra de So Bento de Nrs ia e m todos os conventos, mascul inos e femininos, n u m desgnio de conferir ao culto e orao u m pr imado absoluto em det r imento das funes de evan-gelizao e cultura. O trabalho manual torna-se de novo obrigatrio, a escola monst ica fica reservada aos oblatos, a clausura das religiosas severamente observada. Pouco a pouco, esta r e fo rma acabou por se consolidar, no total-mente isenta de alguma resistncia, j que os leigos t inham u m a certa repugnnc ia em aceitar a l iberdade de eleio do abade. Em todo o caso, os mosteiros tornaram-se centros de mlt iplas funes : agrcola, espiri tual e intelectual .

    Oblatos: jovens oferecidos (oblati) pelos seus pais ao cui-dado dos monges para que es-tes se encarregassem da sua educao.

    A cultura

    Se os mosteiros, atravs das suas duas escolas, in terna e externa, a sua biblioteca e o seu scriptorium estiveram na base do Renascimento carolngio, no foram, contudo, os seus iniciadores. A obra de Carlos Magno foi, neste aspecto, capital. E ele quem ordena , na clebre capitular Admonitio Generalis de 789, que, em cada bispado, em cada mos-teiro, se administre o ensino dos salmos, das notas, do canto, do cmputo , da gramtica, e que se t enham livros cuidadosamente corrigidos. Nos ltimos vinte anos do sculo viu, u m imenso esforo levado a cabo. Era neces-srio, em pr imeiro lugar e u m a vez feita a r e fo rma ecle-sial, passar re fo rma da liturgia. Carlos Magno pede ao papa, em 774, u m a coleco inteira dos textos conciliares e decretos pontificais a fim de unificar a legislao ecle-sistica n u m texto de base. Em 786, ob tm Paulo I u m sacramentr io g regor i ano que lhe pe rmi te e l iminar as liturgias locais, galicana, visigtica ou irlandesa. Da par-tiria toda u m a revoluo musical com a inveno da poli-fonia, por meio do neuma , sinal que permite marcar a altura de u m som n u m a part i tura, e do t ropo, slaba de um texto colocada sob u m neuma, bem como conservar uma composio musical. Assim se lanavam as bases do cont raponto meldico que du rou at ao Traite d'harmonie de Rameau em 1750.

    Scriptorium: ver p. 53.

    Cmputo: clculo dos dias e dos meses para as festas m-veis de natureza religiosa.

    Sacramentrio: livro litrgico contendo as frmulas para a administrao dos sacramen-tos.

    Tropo: justaposio de uma slaba de um texto com uma nota da melodia. Contraponto: tcnica musical em que se justapem neumas e tropos em duas ou trs melo-dias, ou ento sobre dois ritmos diferentes, sem possibilidade de suprimir as dissonncias.

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  • Epopeia: poema composto em torno de um acontecimento militar, ap rend ido de cor, transmitido por via oral, am-plificado pela imaginao cria-dora dos contadores ao longo dessa mesma transmisso.

    Artes liberais: ver p. 52.

    O aperfeioamento dbs manuscritos traduziu-se nou-tros tantos progressos. Alguns escribas da abadia de Crbia introduziram em 770, a partir de uma minscula anglo--saxnica, u m a letra minscula redonda que hoje designa-mos por minscula carolina, e que ainda actualmente, sob o n o m e de romano, o carcter de base de todos os tipgrafos. Graas a esta caligrafia mais clara e mais ntida, possvel recopiar-se inmeros manuscritos. Com o incre-mento do nmero de escolas, sobretudo depois do Conclio de Mogncia de 813 que o rdenou a criao de escolas rurais para a formao de jovens prelados, cresceu a neces-sidade de bblias em abundncia. Alcuno, por exemplo, m a n d a introduzir u m a delas, e Teodulfo publica igual-mente uma Bblia crtica com as diferentes variantes dos manuscritos. Os autores pagos no so deixados de lado. As bibliotecas mansticas do Ociden te recheiam-se na poca de textos latinos clssicos e de autores da Patrstica, mas pouco eu em menor nmero dos gregos. Muitas das edies actuais de obras antigas apoiam-se em manuscri-tos carolngios do sculo ix.

    Nascimento das lnguas europeias. O mais espantoso que esta redescoberta do latim clssico se opera justa-mente quando as pessoas cessavam de falar essa lngua. O Conclio de Tours em 813 ordenou que todos os padres passassem de fu turo a pregar em lngua romana rstica ou germnica. O antigo francs ou o alto-alemo esto, por conseguinte, largamente difundidos nesta poca. Na mesma ocasio em que aparecem os primeiros textos em lngua germnica, o catalo comea a diferenciar-se do fu tu ro castelhano. Na prpr ia Glia, um fraccionamento lingustico tem lugar entre a lngua ao Norte do Loire, a que se chamaria mais tarde l ngua de oil (langue d'oil) e outra, mais prxima do latim, que vai chamar-se occitano ou lngua de oc (langue d'oc). Assim, as lnguas europeias aparecem ni t idamente constitudas no momen to em que o latim ganha o seu impulso como lngua mor ta univer-sal. Nestas diferentes lnguas nasceria uma outra cultura. Carlos Magno manda, nomeadamente , pr por escrito os poemas picos germnicos, dos quais, infelizmente, nada substitui. Epopeias em lngua romnica eram transmiti-das ora lmente de gerao em gerao, como a clebre Chanson de Roland. Provavelmente, teria existido toda uma cultura popular de iletrados, se bem que quase nada tenha restado.

    A primeira gerao de letrados. Em concluso, os cl-rigos tm prat icamente o monopl io da cultura letrada e erudita. Os grandes escritores carolngios que, finalizada a aprendizagem do saltrio e dos dois ciclos das artes libe-rais, fo rmam a melhor pena da poca, per tencem quase todos Igreja. As obras pedaggicas de Alcuno, a Histria

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  • A renovao da civilizao pelos Carolngios

    dos Lombardos de Paulo Dicono, os poemas de Teodulfo, os Anuales escritos nos mosteiros so obras de clrigos. O nico leigo da sua gerao a escrever, e mesmo assim tardiamente, Eginardo, deixou uma biografia clssica de Carlos Magno a tu lhada de expresses inspi radas em Suetnio, mas de enorme valor histrico. Na segunda gera-o, os f ru tos deste renasc imento intelectual so mais importantes. As obras de reflexo poltica de Jonas, de Agobardo, o de Adalhardo, a poesia religiosa de Walafrid Strabon ou de Sedulius Scott, as cartas de Lupo, abade de Ferrires, revelam uma maior matur idade e uma mais manifesta originalidade. A Histria dos filhos de Lus o Piedoso, da autoria de Nitardo, uma obra histrica de um leigo preocupado com a autenticidade e a exactido: a ele se deve a conservao do texto dos juramentos de Estras-burgo de 842, os mais antigos tes temunhos das lnguas francesa e germnica. Os progressos foram tais que a des-truio das bibliotecas pelos Escandinavos no compro-meteram em nada semelhante renascimento.

    Juramentos de Estrasburgo: ver p. 98.

    I A arte carolngia

    Este renasc imento viria a traduzir-se igualmente no plano arquitectnico e pictrico. O culto das relquias, a adopo de uma nova liturgia exigiam novos tipos de igre-jas ou de mosteiros. As criptas, espcie de construes abobadadas semi-enterradas nas extremidades ocidental e oriental das naves, desenvolveram-se bastante. Acrescen-tam-se mausolus cabeceira, santurios-tribunas no pri-meiro piso das torres de fachada. O mais belo edifcio, e de longe o mais completo , evidentemente, a Capela de Aix, lembrando, pela sua planta e o seu simbolismo, os palcios bizantinos, o Santo Sepulcro de Jerusalm e o baptistrio de So Joo de Latro em Roma. Esta arte caro-lngia que se p re tende antiga faz alternar os mrmores matizados, a pedra talhada em cubo com o tijolo alon-gado, como se v na por ta triunfal de Lorsch. O interior das igrejas era sumptuosamente ornamentado com mosai-cos de fundo dourado como a que subsistiu em Germigny--des-Prs, ou com frescos cobrindo as paredes de alto a baixo como em Saint-Germain-d'Auxerre ou em Saint--Jean-de-Mustar. A escultura reaparece , em relevo ate-nuado, nos cancelos. O trabalho do marfim e dos metais preciosos permite a criao de clices, relicrios e mol-duras dotadas de uma sumptuosidade destinada a criar uma impresso de pujana fora do comum. As miniatu-ras dos manuscritos, onde convergem influncias bizan-tinas, irlandesas ou antigas, revelam temperamentos arts-ticos novos, penadas de uma delizadeza extraordinria de sugesto, como no caso do autor do Saltrio de Utreque,

    A abadia carolngia de Saint-Riquier

    Reconstituio segundo Effmann.

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  • ou atmosferas atormentadas de uma imensa intensidade como no iluminista do Evangelirio de Ebbon. Todas as bases da arte ocidental esto aqui lanadas: sentido da l inha e do volume, jogo das cores, recusa da arte pela arte, afirmao de uma grandeza h u m a n a e divina.

    3. Os leigos

    A aristocracia

    Face ao poder io da Igreja, a terceira ordem, a dos lei-gos, est em ntida posio de inferioridade. E a partir da poca carolngia que a identificao entre leigo e iletrado se instala. No seio dos Grandes, os homens cultivados so rarssimos, o que no obsta a que as famlias nobres domi-n e m o m u n d o laico e evoluam graas ex tenso do Imprio e aos favores imperiais no sentido de u m verda-deiro cosmopolit ismo. Atravs das suas alianas com a famlia real ou com as nobrezas locais, por meio das nomea-es dos condados, elas implantam-se rap idamente um pouco por todo o lado, absorvendo antigas famlias sena-toriais ou antigos chefes de tribos germnicas. Para con-des, Carlos Magno escolhia quase exclusivamente Francos da Austrsia, Hispano-Visigodos, Lombardos ou Bvaros, a fim de moderar a tendncia desta aristocracia a implan-tar-se nas regies administradas. neste contexto que o Austrasiano Gui lherme n o m e a d o conde de Toulouse em 790. Este heri de cano de gesta, vitorioso contra os Sarracenos, retira-se para u m convento que funda ra em 804. Um pouco mais tarde, porm, vamos encontrar seu filho Bernardo, marqus da Septimnia e em seguida camareiro de Lus, o Piedoso. Conspirador arrojado e sem escrpulos, acabaria por ser acusado de lesa-majestade por Carlos, o Calvo, e executado em 844. O seu filho mais velho, Gui lhe rme , comete traio e execu tado em Barcelona em 850. O fi lho mais novo, Bernardo, faz o mesmo mas consegue a indulgncia do soberano e torna--se marqus da Septimnia e conde de Auvergne. Final-mente , o seu neto Guilherme consolida em definitivo a independncia do ducado da Aquitnia e f u n d a o mos-teiro de Cluny em 909. Os bens desta famlia germnica importada para o Midi francs estendiam-se na altura da Austrsia regio de Toulouse, passando por Autun, Mcon e Auvergne. Bastaram duas geraes para deitar a pe rder toda a poltica de Carlos Magno. No obstante, pode dizer-se que at sensivelmente 840 esta aristocracia se manteve fiel aos imperadores e aos reis.

    Cano de gesta: epopeia ver p. 88.

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  • A renovao da civilizao pelos Carolngios

    Unio da vassalidade' e do beneficio

    Como foi possvel que Carlos Magno tivesse visto o perigo do crescimento do poder dos nobres e nada fizesse para o travar? E, na realidade, o seu filho quem vai rom-per o equilbrio ent re os bens fundir ios do fisco e os bens fundirios concedidos nobreza em regime de usu-fruto. A partir do seu reinado, os primeiros d iminuem regularmente m proveito dos segundos. Alm disso, um simples conde pode ter sob a sua direco trs espcies de bens: as suas propriedades pessoais ou familiares, adqui-ridas por compra ou recebidas em dote ou testamento, depois de seus honores, bens recebidos a ttulo tempor-rio pelo seu servio de conde, e por ltimo os seus bene-fcios recebidos a ttulo vitalcio aps o j u r amen to de recomendao. Ultima fonte de poderio deste nobre: os vassalos que eventualmente reuniu sua volta. Alis, o prprio Carlos Magno encorajou esta evoluo para u m a sociedade vasslica englobando todos os homens livres, atravs da cerimnia da recomendao, a qual era igual-mente praticada ao nvel dos simples vassalos. Aps o ritual da postura das mos nas do senhor e prestado o juramento de recomendao, seguia-se a investidura do benefcio, com a ajuda de um smbolo - u m torro de terra ou u m ramo guarnecido de folhas - que era suposto representar a fruio da terra concedida (e no a sua propr iedade) . Assim, por meio de uma cadeia de juramentos , formava--se como que uma pirmide desde o rei aos vassalos ordi-nrios, passando pelos vassalos rgios. Carlos Magno pre-cisou bem que os contratos concludos nestes termos eram indissolveis, salvo em caso de crime ou de injustia do senhor para com o vassalo. Isto era igualmente vlido para os vassalos eclesisticos. O imperador esperava por este meio reforar o Estado, mas o certo que seu filho Lus, : Piedoso, deixou desenvolver-se o poder io da aristocracia. As partilhas do seu reinado obrigaram os nobres que muda-vam de rei a novas prestaes de juramentos , enfraque-:endo com isso a fora do vnculo pessoal em proveito do vnculo material.

    Precisemos contudo que estas instituies vasslicas se aropagam sobretudo em pas germnico, e muito parti-cularmente entre o Reno e o Loire. Nas regies meridio-nais da Frana e na Lombardia, apesar do encora jamento que merecem da parte dos reis carolngios, elas perma-necem embrionrias. Existe to-somente o j u r amen to de delidade, mas sem nunca se lhe ligar o benefcio, ressal-vado o caso, evidentemente, dos agentes rgios francos. O mesmo se aplica s outras categorias sociais laicas, as 3o m u n d o rural onde escravos, colonos e homens livres tn t ram, pouco a pouco, no quadro do senhor io rural .

    Honores: ver pp. 82 e 105.

    Recomendao: como a de Tassilon em 757 que se recomenda em vassalagem pelas mos. Este prestou mltiplos e inmeros juramentos, colocando as mos sobre as relquias dos Santos. E prometeu fidelidade ao rei Pepino e a seus filhos sobreditos, os senhores Carlos e Carlomano, do mesmo modo que por direito um vassalo deue faz-lo com um esprito Uai e uma firme devoo, que assim manda que o seja um vassalo com o seu senhor.

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  • B Escravo e servo

    Villas: ver pp. 84 e 49.

    Mali: ver p. 82.

    A maior par te da populao est ligada, nesta poca, ao trabalho nos campos, nas grandes propr iedades fun-dirias aristocrticas que eram as villae. O escravo do tipo ant igo s subsiste ve rdade i ramen te no Midi, ou en to passa a p e r t e n c e r ao pessoal da casa pa ra os servios domsticos. Alojado (casatos) algumas vezes n u m mansus qu"e ele prpr io cultiva, imperceptivelmente a sua con-dio econmica difere cada vez mais da sua condio jurdica. O trfico de escravos, depois de ter conhecido u m a recrudescncia impor tante sob o re inado de Carlos Magno, diminui com a cessao das guerras. Como dora-vante proibido reduzir u m cristo escravatura, a nica alternativa uma verdadeira caa ao homem ent re os Eslavos pagos. Uma vez que a Igreja reconhece a vali-dade do casamento dos escravos, o rdena padres os escra-vos libertos e encoraja a l iberdade em geral, a persona-lidade jur d ica do escravo emerge . Como, em suma, mais fcil exigir do escravo ou do colono a prestao de corveias uns quantos dias por ano nas terras do d o n o do que vigiar d iar iamente ao pon to de se fund i r com o regime do colonato. Os colonos, com efeito, incapazes de responder s convocaes no mal condal ou impedi-dos pelo seu patro, caem n a sujeio do seu pode r de coaco. A sua condio ju r d ica deteriora-se at u m a semi-liberdade anloga dos escravos. Demais as terras que ocupam so designadas da mesma fo rma que os seus usufrutur ios: manses livres, ao passo que s terras dos escravos se chamava servis. Desde o re inado de Carlos Magno, vo-se encon t ra r escravos n u m mansus livre, e vice-versa. Nesta confuso de estatutos, a passagem da escravatura e do colonato a u m novo estado chamado servido faz-se de um modo imperceptvel, sem grande abalo social. O servo que se esboa n o sculo ix, um dependente total do senhor, um no-livre. Daqui para diante, para distinguir o campons livre do servo, apenas existe, dada a ident idade de condio econmica e a mis-tura dos estatutos jurdicos, u m nico critrio: o nasci-mento . E-se livre ou no-livre por nascimento. Quan to aos pequenos proprietrios livres cujas terras comeam a designar-se pelo te rmo de aldios, a nossa documen-tao rarssima no deve no entanto levar-nos a concluir que fossem em p e q u e n o nmero . Eles existem, mas no os conhecemos.

    O grande domnio

    O sistema agrrio assenta no grande domnio que parece ter sido criado em toda a sua exemplaridade entre

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  • A renovao da civilizao pelos Carolngios

    o Sena e o Reno, como o comprovam os polpticos, em particular o de Irminon, abade de Saint-Germain-des-Prs, no incio do sculo ix. No centro, encontra-se doravante a reserva (terra indominicata), conjunto de terras arveis, vinhas e pastos, com um centro de explorao chamado curtis ou pao dominial - casas de habitao do proprie-trio, anexos de explorao, o moinho, a prensa, as des-tilarias, etc. Toda esta rea estava sob explorao directa. Mas por quem, se o nmero de escravos vinha diminuindo? Pelos rendeiros (tenanciers) das terras situadas na segunda parte do domnio: os manses. Alm do t rabalho que fazem nas suas tenures (concesses) os rendeiros devem por tanto a judar na cultura da reserva. E uma maneira de pagarem a renda do seu mansus ao proprietrio. Alguns, quando tenham recebido um lote-corveia includo na reserva, devem cultiv-lo por inteiro durante todo o ciclo anual. Outros, so obrigados a de terminado n m e r o de dias de trabalho na reserva, por exemplo, trs dias por semana entre os Bvaros, de fo rma a efec tuarem ali as grandes operaes agrcolas: arar, semear, ceifar, vindimar, malhar o centeio ou a cevada, e assim por diante. Devem, alm disso, efectuar trabalhos de valagens ou fazer car-raas com os seus prprios animais para transportes ou excedentes da reserva, tambm chamada domnio, a u m ou outro local de venda. Acrescentemos por ltimo, como outras modalidades de prestaes, as rendas em gneros ou, mais raramente, em dinheiro. De qualquer maneira, semelhana da poca merovngia, a floresta natural e os espaos incultos eram comuns s varas de porcos do pro-prietrio e do rendeiro. A madeira, o mel, a carne do javali, os frutos e as bagas silvestres constituem sempre um com-plemento indispensvel para os legumes da horta e para o po. A economia recolectora no perde os seus direitos.

    Este modo de produo agrria, a que tambm se cha-mou nos Pases Baixos e na Inglaterra o sistema do manoir ou vianor (domnio feudal) , foi rentvel. Os rendimentos foram certamente superiores a trs para um, sempre que possvel obt-los. As alfaias so insuficientes, o fe r ro escasseia, a ausncia do es t rume ou do adubo total, excepto para as hortas, a rotao trienal das culturas est pouco difundida. Assim se explica, apesar de u m certo incremento populacional no tempo de Carlos Magno, a ameaa constante da subalimentao. Os grandes dom-nios no so mais, por ora, do que ilhotas de cultura, superpovoados po r vezes, n o me io de espaos vazios. Estendem-se at ao Loire. Os desbravamentos so rarssi-mos, excepto nas extremidades do Imprio, na Baviera ou na Septimnia. Quanto aos outros tipos de explora-o, a sua caracterstica principal a separao entre a reserva e as tenures. Na Lombardia , verificava-se a exis-

    Polptico: registo de direitos e de rendas escrito primeira-mente sobre tabuinhas ligadas umas s outras, e depois so-bre um conjunto de folhas de papiro. Manse (mansus): teoricamen-te, o manse suposto alimen-tar uma famlia de campone-ses. A sua rea calculada em funo disso; pode ser lavra-do com um arado e uma jun-ta de dois ou quat ro bois. Aquela superfcie varia gran- ' demente consoante as regies e segundo o estatuto, servil ou livre. De qualquer modo, to-das estas unidades de cultivo pertencem ao proprietrio e constituem uma unidade fis-cal. Ver tambm p. 50.

    Rotao trienal: ver p. 136.

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  • tncia de a r rendamentos temporrios entre proprietrios e camponeses. O grande domnio produzia excedentes que era possvel escoar e comercializar.

    1 libra = 20 soldos = 240 den-rios. 1 soldo = 12 denrios. A nica moeda que circula o chamado denrio. Para per-fazer uma libra so necess-rios 240 denrios. Este sistema da libra, do soldo e do denrio estendeu-se a toda a Europa ocidental. Em Frana, durou at Revoluo, e na Ingla-terra at Fevereiro de 1971. Moeda de conta un idade monetria fictcia que no cor-responde a uma moeda real-mente cunhada, mas que per-mite adicionar e multiplicar a moeda em geral, cunhada ou no.

    Vid: ver p. 50.

    BBWIWWBIW

    Doge: o mais alto magistrado veneziano desde os finais do sculo viu. Eleito a ttulo vi-talcio, primeiro pelo povo in-teiro depois por um colgio restrito de patrcios, ele en-carna a majestade da Rep-blica.

    As trocas

    Com efeito, nem mesmo o grande domnio clssico t inha capacidade para se bastar a si prprio; havia sem-pre necessidade de comprar, ou fosse o ferro para os diver-sos utenslios, ou o sal para a conservao da carne, ou o vinho nas regies no vincolas. Mas, para tanto, era neces-sria uma moeda de fraco poder de compra e acessvel a todos. Foi esta a razo que levou Carlos Magno a adoptar definitivamente a prata como estalo monetrio. Atravs da sua reforma do Inverno de 794, revaloriza o denrio de prata em 25 por cento; da em diante, este passa a pesar 1,70 g, a partir de uma libra de 409 g. O sistema comporta duas moedas de conta, a libra e o soldo, utili-zados nas transaces. O imperador soube, simultanea-mente, suprimir as cunhagens privadas, manter em oficinas existentes em nmero fixo o monopl io rgio. Tratava-se afinal de orientar a economia para o espao nrdico e estimular as trocas locais. Uma capitular de Carlos Martel datada de 744 autorizou a criao de mercados rurais nos vid. Estes multiplicaram-se: aqui se trocavam os produtos de primeira necessidade com u m nico denrio (por dena-rata), expresso que est na origem da palavra francesa denre (gneros, vveres): aquilo que se compra com um denrio.

    A estas modestas trocas regionais, justapunham-se as trocas internacionais. Os grandes mercadores judeus con-tinuavam a importar os artigos orientais, estofos de seda, especiarias, e a vender, no exterior do Imprio, escravos e madeiras utilizando como locais de trnsito de merca-dorias Verdun e Troyes. Os mercadores de abadias impor-tam o sal das salinas ou os vinhos dos vinhedos mais pr-ximos. Os Francos vendem aos Eslavos e aos Normandos armas, couraas e o gado em troca de peles e de escra-vos, a tal ponto que Carlos Magno, em 805, forado, por razes de segurana, a embargar a exportao das espa-das e das broignes. As novas correntes econmicas mani-festam-se pelo aparecimento de novos portos. Na desem-bocadura do Reno, do Mosa e do Escalda, que se convertem em grandes vias comerciais e canalizam trigos germni-cos pa ra os pases do Nor te , desenvolve-se sob re tudo Duurstede. Na embocadura do Canche, Quentovic ganha um impulso notvel graas s suas relaes com a Inglaterra. A grande novidade, porm, o aparecimento de Veneza. Depois do pr imeiro doge eleito, Maurcio (764-787), as

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  • A renovao da civilizao pelos Carolngios

    ilhotas de laguna agrupadas em r'edor do Rialto transfor-mam-se n u m centro importante de comrcio local e inter-nacional no qual se inserem a madeira, os escravos, as especiaras de Alexandria, as sedas de Constantinopla, o peixe e o sal do Adritico. Em 828, dois mercadores vene-zianos conseguem roubar de Alexandria as relquias de S. Marcos, santo que passa a ser o pa t rono da nova potn-cia. Todo este surto de desenvolvimento era p rometedor mas frgil:, pois, de momento , ainda s envolve uns quan-tos privilegiados.

    A nvel regional, as trocas tm, portanto, uma influn-cia mnima sobre a evoluo urbana, a no ser nas regies nrdicas onde o comrcio fluvial est na origem do apa-recimento do portus, as mais das vezes uma praia ou u m a margem arenosa na qual os mercadores desembarcam os seus fardos, per to da cerca de uma abadia ou nos limites de um domnio. E o caso de Gand, que se desenvolve em redor das abadias de Saint-Pierre no Mont-Blandin e Saint--Bavon, ou, no esturio do Aa, de Saint-Bertin e Saint-Omer, que se tornam o centro de um aglomerado urbano. Noutros locais, o carcter religioso da cidade pe rmanece domi-nante . Os arrabaldes vo-se desenvolvendo volta das velhas fortificaes, no interior das quais, alis, a intro-duo dos cabidos de cnegos obriga a novas construes e a expulsar para fora dos muros os antigos habitantes. Houve mesmo casos em que as antigas muralhas foram derrubadas. Sob Carlos Magno, so construdos 232 mos-teiros, sete catedrais e 65 palcios. No obstante, esta reno-vao duraria pouco, prevalecendo, no fim de contas, a impresso de uma certa fragilidade. As bases da Idade Mdia so, indubitavelmente, lanadas pelos carolngios a nvel da realeza, da vassalidade, da Igreja, da cultura intelectual e artstica, da servido, da moeda; mas, no con-jun to , isto no mais do que um esboo da Europa. Este projec to viria a ser abalado pelos herde i ros de Carlos Magno.

    Para aprofundar este captulo

    de referir, em primeiro lugar, a bibliografia do cap-tulo II para as questes institucionais, sociais, econmi-cas e intelectuais (em geral, essas obras cobrem toda a Idade Mdia).

    E imprescindvel conhecer-se a obra monumental colec-tiva em quatro volumes, Karl der Grosse, Lebenswerke und Nachleben, Dusseldorf, 1965-1966.

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  • Para as instituies, F. -L. GANSHOF, The Frankish Insti-tutions under Charlemagne, Providence, 1968. Do mesmo autor, Recherches serles Capitulaties, Paris, 1958; J. -M. WALLACE HADRILL, English Kingehip and the Continent, Oxford, 1971.

    Sobre a Igreja, E. Amann, L'poque carolingienne, 1941, t. 7 da col. Fliche et Martin; C . BIHLMAYER e H . TUCHLE, Histoire de l'glise, Mulhouse, t. 2 , 1 9 6 3 ; G . SCHNURER, L'glise et Iq, Civilisation au Moyen Age, Paris, 1 9 3 3 - 1 9 3 8 ; M. AUBRUN, La Paroisse en France des origines au XV sicle, Paris, 1986.

    Para a cultura, J . de GHELLINCK, Littrature latine au Moyen Age, Paris, 1939; M. LAISTNER, Tliought and Letters in Western Europe, A. D. 500-900, 2 . a ed., Londres , 1957. A melhor sntese P. RICH, Ecoles et enseignement dans le haut Moyen Age, Paris, 1989.

    Para as lnguas, Ph. WOLFF, Les Origines linguistiques de VEurope occidentale, 2.~ ed., Toulose, 1983; do mesmo autor, L'Eveil intellectuel de VEurope, Paris, 1971.

    Para as questes artsticas, quatro livros importantes, C . HEITZ, Recherches sur les rapports entre architecture et liturgie l'poque carolingienne, Paris, 1 9 6 3 , e J . HUBERT, J. PORCHER, W . -F. VOLBACH, L'Empire carolingien, Paris, 1 9 6 8 ; C . Heitz, LArchitecture religieuse carolingienne, Paris, 1980 e idem, La France prromane, Paris, 1987.

    Para a sociedade, as instituies vasslicas e o senho-rio rural, ver os livros citados n o captulo II. Acrescentar M. BLOCH, La Socit fodale, Paris, reed. 1968. Do mesmo autor, Les Caracteres originaux de 1'histoire rurale franaise, Paris, 2 vols., 1961-1964 e, sobretudo, G . DUBY, L'Economie rurale et la vie des campagnes dans l'Occident mdival (France--Anglaterre-Empire) TV'-XV sicles, 2 vols., Paris, 1962; Guerriers et paysans, Paris, 1973.

    Para as cidades, F. VERCAUTEREN, Les Civitates de la Belgique seconde, Bruxelas, 1 9 3 4 ; E . ENNEN, Frhgeschichte der euro-pischen Stadt, Bona, 1 9 5 3 ; F. -L . GANSHOP, Etude sur le due-loppement des villes entre Loire et Rhin, Paris, 1 9 4 3 ; A. VERHULST, Um aspecto de continuidade entre Antiguidade e Idade Mdia: a origem das cidades flamengas, Journal of Medieval History, pp. 1 7 5 - 2 0 5 , 1 9 7 7 ; M. ROUCHE (dir.), Histoire de Douai, Lille, 1985.

    Importante vista de conjunto sobre as mentalidades: P. Rich, La Vie quotidienne l'poque carolingienne, Paris, 1 9 7 3 .

    A evoluo da investigao no domnio econmico a propsito das duas grandes teses de H. PIRENNE e de M . LOMBARD pode ser entendida atravs dos seguintes artigos:

    - para o primeiro, o imprio de Carlos Magno um mundo agrrio fechado sobre si mesmo sem qualquer liga-

  • A renovao da civilizao pelos Carolngios

    o com a economia martima. Esta tese da ruptura devida ao Islo foi em grande par te contrar iada por E. SABBE: A importao dos tecidos orientais na Europa ocidental durante a Alta Idade Mdia, sculos ix e x, Revue beige de Philologie et d'Histoire, t. 14, 1935;

    - pa ra o segundo, as necessidades muu lmanas em ferro, madei ra e escravos criaram u m comrcio com o imprio carolngio, pagando o islo em ouro. Esta tese da injeco "de ouro muulmano na Europa foi contestada por Ph. GRIERSON, Carolingian Europe and the Arabs: the myth of the mancus, Revue beige de Philologie et d'Histoire, t. 23, 1954.

    Uma sntese das posies com a respectiva crtica foi feita por E. PERROY, Encore Mahomet et Charlemagne, Revue historique, t. 21, 1954.

    Impor ta te rminar com a sntese de J . DHONDT apre-sentada por M. ROUCHE, Le Haut Moyen Age, VTIP-XP sicle, Paris, 1976 e a consulta das Actes das Semanas de Espo-leto, principalmente o t. 6, La Citt nell'alto Medioevo, 1959; t. 8, Moneta e scambi nell'alto Medioevo, 1961; t. 7, L'Occidente e l'Islam, 1965; t. 13, Agricultura e mondo rurale in Occidente nell'alto Medioevo, 1966; e sobretodo o t. 1, Problemi della civilt carolingia, 1954 e o t. 27, Nascit dell'Europa ed Europa carolingia: un equazione da verificare, 1981.

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