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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Programa de Pós-Graduação stricto sensu em História Rodrigo Pereira Chagas FLORESTAN FERNANDES: A AUTOCRACIA BURGUESA COMO ESTRUTURA HISTÓRICA E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA CONTRA-REVOLUÇÃO NO BRASIL MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL São Paulo 2011

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

Programa de Pós-Graduação stricto sensu em História

Rodrigo Pereira Chagas

FLORESTAN FERNANDES: A AUTOCRACIA BURGUESA COMO ESTRUTURA HISTÓRICA E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA CONTRA -REVOLUÇÃO NO BRASIL

MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL

São Paulo

2011

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

Programa de Pós-Graduação stricto sensu em História

Rodrigo Pereira Chagas

FLORESTAN FERNANDES: A AUTOCRACIA BURGUESA COMO ESTRUTURA HISTÓRICA E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA CONTRA -REVOLUÇÃO NO BRASIL

MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL

Dissertação apresentada à Banca

Examinadora da Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo, como exigência

parcial para obtenção do título de

MESTRE em História Social, sob a

orientação do Prof. Doutor Antonio

Rago Filho.

São Paulo

2011

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AGRADECIMENTOS

Como cabe a todo trabalho autoral, assumo os prováveis erros da pesquisa e tentarei

destacar sempre que possível, no corpo do texto, as contribuições teóricas e técnicas que

recebi para os eventuais acertos. Além disso, cito abaixo alguns nomes de pessoas das quais

recebi, direta ou indiretamente, importantes contribuições neste processo de mestrado.

Para realizar esta pesquisa recebi apoios múltiplos em níveis e dimensões variados.

Infelizmente corro o risco de cometer injustiças ao arrolar nomes, no entanto, injustiça maior

seria deixar de fazê-lo, uma vez que, sem estes diversificados apoios – e um punhado de sorte

– jamais teria conseguido realizar um trabalho dentro da estrutura acadêmica que impera no

país.

De saída, devo agradecer ao apoio financeiro do Conselho Nacional do

Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), fundos públicos, que me garantiu as

condições mínimas para reproduzir minha vida com alguma dignidade durante o processo

todo.

Ao meu orientador e amigo, o Prof. Dr. Antonio Rago Filho, deixo expressa aqui a

gratidão por sua honestidade de grande intelectual, sua distinção humana, estímulo e apoio

incondicionais.

À Prof. Dra. Vera Lucia Vieira, agradeço pela participação em minhas bancas de

qualificação e defesa, bem como, pelo incansável incentivo e apoio a todos os alunos da Pós-

Graduação em história da PUC/SP que enfrentam as mais diversas dificuldades para pesquisar

a violência que estrutura, tragicamente, a sociedade brasileira e latino-americana.

Com a Prof. Dra. Lívia Cotrim minha dívida é imensurável. Aqui, limito-me a

agradecer pela paciência de ter me orientado durante a graduação e de ter aceitado participar

como professora convidada de minhas bancas de qualificação e defesa.

Em grande medida só pude realizar este trabalho por ter feito minha graduação no

Curso de Ciências Sociais da Fundação Santo André, curso que vem resistindo bravamente à

mercantilização da educação e mantendo firme um compromisso com os problemas humanos

e o posicionamento crítico radical. Assim, agradeço aos alunos e professores deste curso, em

especial, à Prof. Dra. Terezinha Ferrari e ao Prof. Dr. Ivan Cotrim.

Deixo um abraço aos colegas de disciplinas, mestrandos e doutorandos, pelas

contribuições recebidas na PUC-SP: Danilo, Jussaramara, Patrícia, Fernando e,

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especialmente, Vitor Lacerda, por nossos debates incansáveis e pela honesta amizade firmada

em tão pouco tempo.

Para além das instituições formais, dois grupos de grande liberdade de pensamento

foram importantíssimos em minha trajetória nestes dois anos: a Escola Livre de Ciências

Humanas e Artes e o Grupo de Leitura do Sumaré.

No primeiro contei com o companheirismo de toda uma rapaziada: Fabão, Lídia,

Michel, Bruna, Digo e, destacadamente, João Paulo Alves Craveiro (Joãozinho), um alegre

companheiro para todos os momentos. Ainda vinculado à Escola Livre tive um

enriquecimento intelectual maravilhoso junto ao Grupo de Estudos de Estética e Ontologia,

com amigos tão expressivos como Leandro Candido, Vladimir Luis da Silva e Fábio Roberto

Ribeiro. Deixo aqui também minha sincera gratidão e amizade a um personagem marcante da

Escola Livre: o grande pintor brasileiro Gontran Guanaes Netto que, desde seu exílio

institucionalizado, nos deu exemplos vivos das profundas feridas que a ditadura militar

deixou em nossa cultura.

No segundo, o Grupo de Leitura do Sumaré, recebi contribuições estimulantes e

agradeço a todos que por lá passaram, mas principalmente ao pessoal que permaneceu: Tadeu,

Renata, Frida, Rodolfo e um “arô” especial ao economista Carlos Alberto Cordovano Vieira,

que criou o grupo e gentilmente me convidou para participar das reuniões.

É bom lembrar que ao se objetivar uma formação intelectual que fuja da mera

afirmação do que o mundo é e vem sendo, faz-se necessária toda uma rede social que permita

ao indivíduo manter algum grau coerência e respaldo humano. Neste ponto não só os amigos

que compartilham diretamente do trabalho e dos grupos de pesquisas são essenciais;

principalmente porque estes não se limitam apenas à esfera “acadêmica”.

Sinto-me, assim, agraciado, já que conto com tantos amigos e colegas que são

verdadeiros críticos da realidade social vigente, cada um à sua maneira. Um grande abraço a:

Beto, Tati, Diogo, Talita, Alexandre de Paula, Luciano Dutra, Roberto Candido e Leandro de

Morais Silva. Danilo Amorim merece menção especial pelas discussões infindas – nos grupos

de estudos ou por telefone – e pelos livros que já nem sabe mais estarem comigo.

A família é longa e importantíssima. Como bom provinciano, deixo-lhes aqui um

aceno a: Alberto Chagas (meu pai), Dona Bibiu e Seu Waldemir (meus avós), tia Mora. Aos

meus irmãos: Luquinhas, Aru, Van, Emer. Aos amigos de infância e aos amigos de sempre, já

verdadeiros irmãos: Cesar (a quem devo a impressão do trabalho) e Giba (a quem devo o

abstract); Marcel e Alan. Registro aqui muitas saudades e agradeço a contribuição

inconsciente de Naná, minha irmãzinha que faleceu no primeiro ano deste trabalho, e de

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Norberto, meu padrasto. Um abraço especial a Sonia Maria Moretti, minha querida mãe, que

ouviu sem querer, ou poder fugir, meus delírios cafeínicos sobre temas que tanto domina e

preza em sua vida cotidiana, como Florestan Fernandes, política e economia brasileira.

À pessoa que conhece todos os personagens dessa história, que me deu apoio técnico

incondicional e que compartilhou todas minhas inseguranças e tormentos, bem como todos os

momentos de esperança e êxtase, deixo meu último agradecimento – e lhe dedico este

trabalho – com amor e admiração por seu companheirismo e grandeza intelectual: Aline de

Vasconcelos Silva.

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RESUMO

Nossa pesquisa buscou resgatar, através do ideário do sociólogo Florestan Fernandes

(1920-1995), sua compreensão sobre o processo comumente denominado “transição” ou

“abertura democrática” no Brasil (1974-1988) – processo que participou como agente

privilegiado, partindo de uma análise altamente elaborada sobre as estruturas sociais

brasileiras e atuando diretamente como intelectual orgânico “dos de baixo” em atividades

como: professor, publicista e deputado federal.

No conjunto deste ideário, visualizamos uma atividade intensa e esperançosa, mas de

grandes desilusões; que amargam a institucionalização da ditadura militar (contra-revolução)

no Brasil e a manutenção de estruturas arcaicas através de “modernizações conservadoras”,

conjugadas à repressão e afastamento sistemáticos da participação popular no “destino da

Nação”.

O trabalho dá destaque a dois momentos que compõem o ideário florestaniano: por um

lado, resgata alguns aspectos teóricos estruturais, principalmente, sua concepção de autocracia

burguesa; e, por outro, apresenta sua face teórico-prática, que corresponde à “história

dinâmica” da luta de classes.

Palavras-Chave: Florestan Fernandes; autocracia; democratização.

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ABSTRACT

The object of this study is to examine, within the framework of the ideology upheld by

the Sociologist Florestan Fernandes (1920-1995), his understanding of the process commonly

known as “transition” or “political opening” in Brazil (1974-1988) – where he participated as

a privileged agent, setting forth a highly elaborated analysis of Brazilian social structures and

functioning as an organic intellectual “dos de baixo” in activities such as: professor, publicist

and deputy.

Within this framework, we visualize an intense and promising activity but often

leading to deep disappointment that discourage the institutionalization of the military

dictatorship (counter-revolution) in Brazil and the preservation of archaic structures through

“conservative modernization”, combined with the systematic repression and refrain from

popular participation in the “nation’s destiny”.

This study emphasizes two aspects that reflect Florestan Fernandes´ ideas: it examines

some structural theoretical concepts, particularly, his conception of bourgeois autocracy on

the one hand; and introduces his theoretical-practical facet that corresponds with the

“dynamic history” of the struggle of classes.

Keywords: Florestan Fernandes; autocracy; democratization.

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SUMÁRIO

LISTA DE FIGURAS.............................................................................................................................10

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................12

PARTE I: REPOSICIONAMENTO TEÓRICO-PRÁTICO ..........................................................................17

1. A CORREÇÃO SOCIALISTA DA SOCIOLOGIA ...............................................................................19

1.1 NOS QUADROS DA RUPTURA ...................................................................................................22

1.2 DUPLA CONDIÇÃO ....................................................................................................................31

1.3 A ANÁLISE ESTRUTURAL-HISTÓRICA E A HISTÓRIA EM PROCESSO ...........................................48

2. AUTOCRACIA: ESTRUTURA DE PODER E DOMINAÇÃO..............................................................63

2.1 A “REVOLUÇÃO BURGUESA” E A TRANSFORMAÇÃO CAPITALISTA NO BRASIL..........................64

2.2 PROBLEMATIZAÇÃO DA CATEGORIA AUTOCRACIA...................................................................85

2.3 BASES SOCIAIS E SIGNIFICADO DA DITADURA MILITAR: A CONTRA-REVOLUÇÃO PREVENTIVA107

PARTE II: A HISTÓRIA EM PROCESSO ..............................................................................................123

3. DISTENÇÃO: LENTA, GRADUAL E SEGURA...............................................................................124

3.1 IMOBILIDADE E DINAMIZAÇÃO DO CONFLITO DE CLASSES.....................................................131

3.2 DESOBEDIÊNCIA CIVIL.............................................................................................................141

3.3 AS GREVES NO ABC.................................................................................................................145

3.4 UM DEBATE DA ESQUERDA ....................................................................................................150

3.5 OS NOVOS PARTIDOS .............................................................................................................156

3.6 CLASSE E PARTIDO..................................................................................................................164

3.7 A DITADURA E OS PARTIDOS ..................................................................................................168

3.8 REVOLUÇÃO DEMOCRÁTICA E PARTIDOS OPERÁRIOS............................................................173

3.9 AS DIRETAS-JÁ!.......................................................................................................................186

3.10 A TRANSIÇÃO TRANSADA......................................................................................................197

4. A REFORMA DA REVOLUÇÃO E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA LUTA........................................208

4.1 A ADESÃO AO PT ....................................................................................................................208

4.2 A CAMPANHA PARA O PLEITO DE 1986 ..................................................................................216

4.3 PIVÔS POLÍTICO-IDEOLÓGICOS...............................................................................................232

4.4 OS TRABALHOS DA CONSTITUINTE .........................................................................................238

4.5 NOTÍCIAS E ESTRATÉGIAS DA CONSTITUINTE .........................................................................250

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS .........................................................................................................260

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.......................................................................................................271

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Manuscrito em pedaço solto de papel....................................................................18

Figura 2 – Carta a Antonio Candido........................................................................................31

Figura 3 – Fichamento: A domesticação dos intelectuais........................................................38

Figura 4 – Fichamento: The Social Costs of Development......................................................66

Figura 5 – Fichamento: A dominação externa no Brasil.........................................................77

Figura 6 – Glosas marginais em Teoria do Estado..................................................................86

Figura 7 – Fichamento: Classes sociais no Brasil....................................................................91

Figura 8 – Glosas marginais em 18 Brumário.........................................................................94

Figura 9 – Fichamento: O “modelo de desenvolvimento” brasileiro....................................128

Figura 10 – Recorte de jornal: Florestan é proibido de falar.................................................128

Figura 11– Fichamento: Conjuntura nacional........................................................................151

Figura 12 – Recorte de jornal: Homenagem..........................................................................179

Figura 13 – Fotografia: Revista Ensaio.................................................................................179

Figura 14 – Fichamento: O significado das eleições.............................................................182

Figura 15 – Material de Campanhas: Convite.......................................................................220

Figura 16 – Fotografia: Lançamento da Campanha de 1986.................................................221

Figura 17 – Material de Campanhas: Folheto........................................................................225

Figura 18 – Material de Campanhas: Charge – Pelo socialismo...........................................226

Figura 19 – Material de Campanhas: Charge – Constituinte.................................................227

Figura 20 – Fotografia: Luis Carlos Prestes e Florestan Fernandes......................................230

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Nada de revolução democrática de conteúdo proletário e de base popular. Se o controle burguês do Estado

colide com a revolução democrática, pior para a democracia... Pois a ditadura militar não é a única via de preservação ou reciclagem da autocracia burguesa.

(Florestan Fernandes, Equivalentes políticos, 1984)

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INTRODUÇÃO

O objetivo inicial deste trabalho visava à análise da “abertura democrática”, tendo

como baliza temporal o período de 1984 a 1994 e, como objeto específico, os discursos de

Florestan Fernandes. Particularmente, visávamos resgatar as problematizações feitas pelo

sociólogo paulista sobre a “transição transada”, a “nova República” e o caráter conciliatório e

antidemocrático da “abertura”, em sua fase final. Tais objetivos foram delineados a partir da

pesquisa de iniciação científica, realizada durante o processo de graduação em Ciências

Sociais.1

No entanto, com o desenrolar da pesquisa de mestrado, percebemos a necessidade de

aprofundarmos mais um recorte semelhante ao trabalhado em nossa iniciação científica,

devido, por um lado, à amplitude e complexidade do ideário florestaniano e, por outro, à

própria importância histórica do período. Foi possível, desta forma, corrigir uma série de

equívocos e desdobrar vários elementos centrais para a temática proposta e, assim,

compreendermos melhor o cerne da “transição” criticada por Florestan.

Outro elemento importante, que nos levou a manter o recorte cronológico anterior, foi

o fato de resgatarmos um amplo conjunto de documentos, dentre eles gravações e manuscritos

inéditos, bem como, artigos e entrevistas de difícil acesso, que permitiram ampliar a discussão

do período. Na verdade, fizemos o resgate e sistematização de uma documentação bastante

significativa de um período maior, que vai até 1995 (quando o autor morre), mas não tivemos

fôlego o suficiente para incorporar ao trabalho todo este material – deixaremos apenas

algumas indicações sobre o tema ao longo do trabalho e em nossas considerações finais. De

qualquer forma, ter resgatado todo o processo, nos deu uma compreensão imprescindível para

a composição da análise exposta neste trabalho. Destarte, o material que apresentamos no

corpo do texto dá mostra da rica documentação que, em grande medida, aguarda por

pesquisadores no ótimo acervo da Biblioteca Municipal da Universidade Federal de São

Carlos.2

1 Iniciação científica realizada no CUFSA sob o título: A “abertura democrática” no ideário de Florestan Fernandes: 1974-1989; com orientação da Prof.ª Dra. Lívia Cotrim e contando com bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP. 2 Parte dos manuscritos a que nos referiremos no corpo do texto só nos foi possível o acesso devido à ótima recepção que tivemos no Acervo Especial Florestan Fernandes (Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes) pela coordenadora do acervo Vera Lucia Cóscia e pela pesquisadora Lívia Maria Gonçalves Cabrera. Muitos destes documentos não haviam sido, até então, tombados e oficialmente digitalizados, por isso não constará ainda a identificação completa dos documentos no padrão do acervo.

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Saindo desta esfera do trabalho técnico, em grande medida “braçal”, é importante

ressaltar que partimos, como é próprio da academia, de alguns “referenciais metodológicos” e

sobre eles gostaríamos de esclarecer alguns pontos gerais, que poderão ajudar o leitor a

melhor compreender nossa posição.

Podemos dizer que nossa “metodologia” de trabalho compartilha com Florestan

Fernandes do referencial do marxismo; mas, apesar disso, possuímos também algumas

diferenças específicas que valem a pena serem apontadas – uma “questão de método” que só

tem importância de ser aventada pelo fato de que a proximidade de nossos referenciais

poderia criar ambigüidades e imputações que são sempre indevidas nesse tipo de trabalho e,

sinceramente, indesejáveis de nossa parte. Obviamente que, ao fazer isso, não tratamos de nos

comparar a Florestan Fernandes – autor muitíssimo superior, com sólida formação intelectual

e incrível erudição –, buscamos apenas esclarecer nossa posição.

Ao desenvolver suas análises, Florestan resgata uma “imaginação sociológica” e a

aplicação de um vastíssimo e rigoroso repertório técnico-metodológico próprio da sociologia,

compondo o que Gabriel Cohn chamou de “ecletismo bem temperado”.3 Procedimento

metodológico que não será encontrado em nossa pesquisa. Não queremos, com isso, dizer,

como se poderia supor, que partimos de outro recorte epistemológico como, por exemplo, o

da ciência da história; mas apenas que buscamos não partir, como tais recortes acadêmicos

geralmente impõem, de um posicionamento gnosiológico a priori.

Nossa referência “metodológica” é pautada pelo resgate do caráter ontológico da obra

de Karl Marx realizado por Georg Lukács e desdobrado pelo filosofo brasileiro José Chasin –

que extraiu da obra de Marx a teoria das abstrações, posicionando as categorias marxianas

em um estatuto ontológico.4 De forma simplificada, podemos dizer que buscamos pesquisar a

lógica específica do objeto específico, evitando imputar à pesquisa elementos cognitivos –

para o arrepio dos hermeneutas tão em voga.

3 “Neste livro [A revolução burguesa no Brasil] a sua modalidade própria de ecletismo, temperado (ele próprio, em outro momento, fala de “ecletismo balanceado”), não está na construção deste ou daquele conceito: está no modo como ele incorpora as diversas vertentes metodológicas e teóricas na própria análise”. COHN, Gabriel. Ecletismo bem temperado. In: D’INCAO, Maria Angela. (org.) O saber militante. São Paulo: Unesp / Rio de Janeiro: Paz e terra, 1987, p. 51. 4 “As abstrações razoáveis, relações gerais ou mais simples das categorias – ponto de partida da autêntica démarche científica – ‘são determinantes’ ou, em outras palavras, ‘sem elas não se poderia conceber nenhuma’ formação concreta; todavia, elas não determinam nenhum objeto real, isto é, ‘não explicam nenhum grau histórico efetivo’ de existência. Mesmo assim, ‘o curso do pensamento abstrato se eleva do mais simples ao complexo’, ou seja, as determinações abstratas conduzem à reprodução do concreto por meio do pensamento’, e nesse itinerário é que se realiza ‘o método que consiste em se elevar do abstrato ao concreto’. Relação metodológica que subtende, pois, uma complexa metamorfose das abstrações razoáveis, pela qual, mantendo a condição de pensamento, isto é, de abstrações, deixam de prevalecer como momentos abstratos, para se converter em momentos concretos da apreensão ou reprodução dos graus históricos efetivos dos objetos concretamente existentes. Um dos aspectos fundamentais dessa transformação compreende a intensificação da razoabilidade dessas categorias simples, ou seja, a atualização das virtudes de sua natureza ontológica enquanto forma de apropriação ideal dos objetos reais”. CHASIN, José. Marx – Estatuto ontológico e resolução metodológica. São Paulo: Boitempo, 2009, p. 129. Grifos do autor.

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Neste sentido, não foi nosso objetivo trabalhar através de tipificações e modelos que

possibilitem análises sincrônicas ou aplicar a dialética para dar conta de elementos

diacrônicos, dos quais deduziríamos contradições e sínteses; menos ainda, partiremos de um

referencial estrutural funcionalista ou de demais recursos habitualmente utilizados pelos

sociólogos.

Dentro de nosso marco referencial, poderíamos apontar, de forma um pouco mais

precisa, que nossa pesquisa buscou realizar uma análise imanente ou genética dos discursos

de Florestan Fernandes, articulada, na medida do possível, a sua gênese e funções sociais. Na

medida do possível, porque o ponto essencial de uma análise com esta é o resgate dos

elementos internos ao próprio discurso analisado como fio condutor dos dois outros

momentos analíticos; o resgate da gênese e das funções sociais serão sempre limitados, de

forma mais intensa, por uma série de contingências, que vão desde a conjuntura da realização

do trabalho e a capacidade do pesquisador, até o nível de avanço das pesquisas sobre a

variedade de temas que compõem tais elementos.

Esta forma específica de proceder, como já pontuamos, é estranha à concepção de

método de Florestan, que, apesar de ampliar continuamente sua ligação com o marxismo,

sempre tomou como referência o recorte epistemológico da sociologia. O que deve ficar claro

é que este fato não impediu que Florestan tenha feito um trabalho de fundamental

importância, mesmo em seu momento mais profundamente “academicista”, apenas sugerimos

que tal procedimento pode ter levado a possíveis distorções, que, em muitos casos, ele mesmo

indicou – como veremos na pesquisa.

Em contrapartida, se, por um lado, Florestan parte de um tratamento metodológico

apriorístico para questionar seu objeto de análise, no geral, não deixa de realizar o caminho

contrário, questionando a validade do método através da observação do objeto analisado.

Posiciona-se como artesão de uma sociologia própria – crítica, antes mesmo de ser “militante”

– que não se limita meramente a aplicar métodos variados, mas também a confeccioná-los e a

extrair deles os instrumentos que atendam às necessidades particulares da realidade social que

analisa. Tampouco o sociólogo foi contaminado pela ojeriza, já mais que expressiva em sua

época, da “verdade” como finalidade científica.

Assim, no geral, Florestan manteve um esforço enorme em colocar o corpo teórico que

desenvolveu ao longo de uma vida – umbilicalmente ligada à pesquisa e à docência nas

ciências sociais em função da realidade social – à serviço da busca dos nexos essenciais desta

realidade. Não é à-toa que um dos maiores especialistas em ontologia do país, José Paulo

Netto, afirma que o pensamento de Florestan é ontológico, antes mesmo de sua radicalização

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– momento que trataremos no primeiro capítulo da pesquisa –, justamente porque “o tipo de

trabalho que ele realizou e estimulou [...] debruçou-se sistematicamente sobre os processos

sociais ocorrentes na sociedade brasileira. E foi com referência a esta pesquisa do real que

Florestan dedicou-se a apurar o instrumento analítico sociológico”.5

Que não haja lugar à dúvida: consideramos as contribuições teóricas de Florestan

Fernandes, no período em que analisamos, como uma das melhores que o pensamento de

esquerda produziu no Brasil – em grande medida, podemos afirmar que, neste trabalho, não

fazemos mais do que dissertar sobre esta contribuição.

No que diz respeito à organização do trabalho, ele está dividido em duas partes. A

primeira é resultado de nosso esforço para entender os conceitos chaves e o reposicionamento

de Florestan Fernandes em relação a suas atividades teórico-práticas. Para atingir este

objetivo, buscamos comparar e problematizar as ideias de Florestan em relação às de alguns

de seus intérpretes e com outros pensadores que abordaram problemas teóricos próximos aos

trabalhados pelo sociólogo – ao esbater posições teóricas diversas, não tínhamos outra

intenção senão a de demarcar melhor a especificidade do pensamento do próprio Florestan

Fernandes.

Obviamente, não esgotamos os vários aspectos presentes na obra florestaniana; nosso

interesse foi resgatar apenas os conceitos que nos pareceram mais importantes à devida

compreensão de seu ideário relacionado ao tema de nossa pesquisa: assim, no primeiro

capítulo, problematizamos a chamada “ruptura” ou radicalização, realizada pelo autor, como

ponto de partida para uma re-interpretação do Brasil e que gerou uma renovação de seu

posicionamento teórico. Já, no segundo capítulo, resgatamos o entendimento do autor sobre a

modernização da autocracia no Brasil – a autocracia burguesa –, principal característica de

dominação de classe que perpetua as estrutura históricas arcaicas no país.

Na segunda parte, acompanhamos o desenvolvimento das concepções teóricas de

Florestan em sua aplicação a problemas concretos – procedimentos que acabam constituindo

seu ideário sobre a “abertura política”, ou melhor, sobre a institucionalização da contra-

revolução. Neste segundo caso, também lançamos mãos de outros pensadores, mas agora

cumprindo, principalmente, a função de contextualização dos momentos históricos. E aqui,

vale uma ressalva, ao aproximarmos ou complementarmos a interpretação de Florestan com a

de outros autores – como, por exemplo, José Chasin, René Dreifuss, entre outros – não

5 NETTO, José Paulo. A recuperação marxista da categoria de revolução. IN: D’INCAO, Maria Angela. (org.) Op. Cit., p. 294. Grifos do autor.

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estamos igualando ou pareando as contribuições, mas simplesmente mostrando possíveis

nexos e complementações entre elas e, mesmo assim, sempre que nos pareceu necessário,

tentamos particularizar a posição de Florestan. Por outro lado, chegamos a receber críticas de

amigos apontando, nesta segunda parte, que não aparece claramente qual é a nossa posição

em relação à posição de Florestan Fernandes; fato que tentamos reparar na medida do

possível, mas a partir do qual devemos lembrar que, em grande medida, estamos construindo

“uma posição” justamente neste processo e vários dos elementos que trazemos através da

análise de Florestan ou nos pareceram, de fato, a resposta mais adequada às questões

abordadas, ou simplesmente não tivemos condições para criticá-los. Repito, como objetivo

principal, tentamos demonstrar a posição de Florestan; este é o primeiro passo de qualquer

crítica positiva e o passo que nos coube de forma bastante limítrofe nesta pesquisa.

Em linhas gerais, dentro desta segunda parte, o terceiro capítulo descreverá o processo

de nascimento, crescimento, desarticulação e recondução de uma ruptura efetiva com a

contra-revolução (ditadura militar), enquanto o quarto capítulo demonstra como se dá o re-

arranjo institucional para a “democracia dos mais iguais”, é dizer, a “modernização

conservadora” da contra-revolução e a manutenção da autocracia burguesa como forma

específica de dominação no Brasil – país estruturalmente subordinado e que, por isso,

concentra absurda e tragicamente “não só” riqueza e prestígio na mão de poucos, mas também

o poder equivalente à necessidade de manter o tempo histórico da Nação atrelado às vontades

particularistas de seus “sócios maiores”: o grande capital dos países centrais.

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PARTE I: REPOSICIONAMENTO TEÓRICO-PRÁTICO

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1. A CORREÇÃO SOCIALISTA DA SOCIOLOGIA

Absolutamente. Continuo marxista. Continuo a defender minhas posições de extrema esquerda. Serei sempre um radical, mas sei que a gente não chega à lua sem mais nem menos. (Florestan Fernandes, Revista Tempo Social, 1995)

A socióloga Amélia Cohn, ao finalizar sua apresentação de sua organização de textos

de Florestan Fernandes que vão de 1968 a 1995, demonstra que o autor perseguia sistemática

e metodologicamente as possibilidades históricas de geração de uma cidadania universal – ou

seja, de uma cidadania que chegasse “aos de baixo” – e conclui seu escrito reforçando que o

sociólogo buscava este objetivo: “sempre, claro, da perspectiva democrática, e, de

preferência, socialista”.1

Se observarmos o desenvolvimento da obra de Florestan dos anos 70 até sua morte,

veremos que seria conveniente, para sermos mais fiéis ao seu discurso, uma pequena

alteração: sua perspectiva, neste período, foi a do socialismo como principal (senão única)

possibilidade de o Brasil (e a América Latina) efetivamente iniciar uma rota democrática.2

A democracia em Florestan Fernandes não é um valor em si ou uma palavra de ordem

que deva ser defendida a todo custo; não é uma ideia ou formalismo anistórico; mas sim uma

condição concreta, “forma política de organização do poder, que pode assumir realidades

históricas variáveis”3 e que nasce e é sustentada por relações estrutural-históricas complexas.

Este posicionamento leva o autor a uma recorrente adjetivação da democracia, que aparece

como: burguesa, socialista, restrita, ampliada, real, popular, etc. Isto para fugir de uma falsa

dicotomia entre o formalismo democrático e a prática democrática efetiva, que se realiza ou

não historicamente (em sua particularidade) e estruturalmente (em sua universalidade).

1 COHN, Amélia (org.). Encontros: Florestan Fernandes. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008, p. 13. 2 “É que a América Latina tem uma alternativa histórica, essa alternativa não está no capitalismo, ela não é aberta pela democracia burguesa, não é aberta pelo imperialismo, não é aberta pela internacionalização da economia capitalista, ela é aberta exatamente pelo socialismo”. FERNANDES, Florestan. Florestan Fernandes, história e histórias (1981). In: COHN, Amélia (org.). Op. Cit., p. 136. “Muitos falavam na necessidade de restaurar a democracia, uma bandeira com a qual eu não convivia bem, porque, para mim, nunca houve democracia no país”. Ib., Uma trajetória de militância (1991). In: COHN, Amélia (org.). Op. Cit., p. 189. “A ideologia serve para esconder, e assim vai se passando de uma fantasia a outra: da democracia à eleição livre, ao voto secreto, etc.”. Ib., Revista Tempo Social (1995). In: COHN, Amélia (org.). Op. Cit., p. 222. “Eu [Florestan Fernandes] sou socialista, portanto acredito que nós vamos construir uma sociedade socialista, que deverá começar com uma democracia da maioria, atingir a igualdade com liberdade e desenvolver todos os elementos fundamentais da personalidade humana. Trata-se de um socialismo que defende um humanismo – uma síntese, uma superação de todas as outras formas de humanismo anteriores”. Ib., Uma trajetória de militância (1991). In: COHN, Amélia (org.). Op. Cit., p. 172. 3 Ib., Pensamento e ação: o PT e os rumos do socialismo. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 70.

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Em suas formulações dos anos 50, ao tratar do tema,4 Florestan já relacionava o

desenvolvimento democrático às condições históricas, socioculturais e econômicas. Já

denuncia, então, a existência de uma tradição nacional que deveria ser superada – e que

acreditava estar sendo superada –, pois se esgotava em seu caráter formal e restrito, como fica

claro em um pronunciamento de 1954 no Ministério da Educação.

Restringindo-nos ao essencial, poderíamos dizer que o Brasil se constituiu em Nação, econômica, cultural e socialmente, em condições altamente desfavoráveis à difusão de ideais democráticos de vida política. [...] Graças a essa composição estrutural, a maior parte da população, brasileira adulta não tinha participação direta na vida política, ou nela tinha acesso para exercer atividades subordinadas aos interesses das camadas dominantes. Formaram-se, em conseqüência, duas orientações de comportamento, que eram sancionadas pela tradição e reforçadas por uma longa prática. De um lado, nas camadas populares, a do alheamento e de desinteresse pela vida política. De outro, nas camadas dominantes, a de que o exercício do poder político fazia parte dos privilégios inalienáveis dos setores “esclarecidos” ou “responsáveis” da Nação. Uns não identificavam em nenhum ponto os seus interesses sociais como os destinos do Estado; outros identificavam-nos demais...5

No entanto, há pelo menos dois momentos da trajetória de Florestan nos quais a

democracia aparece no discurso do autor como exigência “número um”: em 1962, no II

Congresso Brasileiro de Sociologia,6 e em um discurso de paraninfo da turma do ano de

1964, da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da USP, onde diz: “nossa débil ‘revolução

burguesa’ constitui, por enquanto, o único processo dinâmico e irreversível que abre algumas

alternativas históricas”,7 sustentando “que o único elemento realmente positivo de nossa

história recente diz respeito aos pequenos progressos que alcançamos na esfera da

democratização do poder”.8

Vale lembrar, contudo, que no primeiro caso (1962), afirma a democracia como

principal preocupação que cabia a sociedade menos de um ano após a tentativa de golpe

contra a entrada legal de João Goulart, como vice-presidente ao governo;9 e, no segundo caso,

4 Sobre democracia em Florestan Fernandes nas décadas de 50 e 60 ver: SOUZA, Patrícia Olsen. Os dilemas da democracia no Brasil: um estudo sobre o pensamento de Florestan Fernandes. Araraquara: Unesp, em mimeo, 2005. 5 FERNANDES, Florestan. Existe uma crise da democracia no Brasil? (1954). In: Mudanças sociais no Brasil. São Paulo: Difel, 1979, pp. 99-100. Grifos nossoss. 6 “A expansão da ordem social democrática constitui o requisito sine qua non de qualquer alteração estrutural ou organizatória da sociedade brasileira [...] em conseqüência, lutar pela democracia vem a ser muito mais importante que aumentar o excedente econômico e aplicá-lo produtivamente.” Ib., A “revolução brasileira” e os intelectuais (1964). In: Ib., Sociedade de classe e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1968, p. 195. 7 Ibid., p. 192. 8 Ibid., p. 194. 9 Em 1961, após a renúncia do presidente Jânio Quadros cria-se uma tentativa de golpe para impedir que o vice-presidente João Goulart, que no momento estava em viagem oficial na China, tomasse posse da presidência. O país chega a entrar em clima de guerra, principalmente, pelos esforços do então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, que chegou a distribuir armas à população, criar os Comitês de resistência democrática – que chegaram em 12 dias a recrutar mais de 100

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já temos como pano de fundo o golpe militar definitivo no governo Jango. Para além do clima

golpista que predominou em solo brasileiro desde o início do século XX, naquele momento, o

autor via a possibilidade do Brasil consolidar e aprofundar sua “revolução burguesa”,

iniciada, segundo sua análise, por volta de 1880 e ainda naquele momento inacabada. Para

Florestan, o Brasil transitava no sentido de se tornar um país capitalista autônomo,

democrático-burguês. Neste contexto não deixa lugar à dúvida:

Isso significa, em outras palavras, que os intelectuais brasileiros devem ser paladinos convictos e intransigentes da causa da democracia. A instauração da democracia deve não só ser compreendida como o requisito número um da “revolução burguesa”. Ela será o único freio possível a esta revolução. Sem que ela se dê, corremos o risco de ver o capitalismo industrial gerar no Brasil formas de espoliação e iniqüidades sociais chocantes, desumanas e degradantes como outras que se elaboraram em nosso passado agrário.10

Esta posição de Florestan é perfeitamente fundamentada em suas previsões dos anos

50 e meados dos anos 60, quando acreditava que “a importância de elementos autocráticos”

na organização política do país tendiam “a diminuir gradativamente na constituição do Estado

brasileiro”.11

Duas décadas depois, suas conclusões serão bem diferentes; passará a diagnosticar que

o Brasil possui dificuldades congênitas para o desenvolvimento de uma democracia nos

moldes burgueses. Mas, o que haveria mudado? Seu “conceito” de democracia?

O ponto de inflexão desta reflexão sobre a possibilidade de democracia no Brasil é a

publicação de seu ensaio sociológico A revolução burguesa no Brasil, em 1975, em que

examina “dialeticamente as artimanhas de uma classe dominante, que fez da condição

burguesa e do ‘espírito capitalista’ meios de autoprivilegiamento exclusivo e fatores de

articulação entre o ‘arcaico’, o ‘moderno’ e o ‘ultramoderno’”.12

Todavia, para que Florestan chegue à formulação de A revolução burguesa com

conclusões tão opostas a sua compreensão dos anos 50 – passando da previsão de uma

democracia como tendência para a impossibilidade do capitalismo brasileiro ser efetivamente

democrático burguês – há um processo de ruptura em seu posicionamento intelectual que

mil voluntários para lutar a favor da posse de Goulart – e transformar o palácio do Governo em um verdadeiro Quartel General. Apesar disso, Goulart, sem ter dimensão da situação no Brasil e demonstrando seu caráter conciliatório, acaba realizando um acordo através de Tancredo Neves e aceita um “parlamentarismo híbrido” que entra em vigor em setembro de 1961. No final de 1962, transita-se para o presidencialismo através de um plebiscito. Ver: LABAKI, Amir. 1961 a crise da renúncia e a solução parlamentar. São Paulo: Brasiliense, 1986. 10 FERNANDES, Florestan. A “revolução brasileira” e os intelectuais (1964). In: Ib., Sociedade de classe e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1968, p. 195. 11 Ib., Existe uma crise da democracia no Brasil? (1954). In: Mudanças sociais no Brasil. São Paulo: Difel, 1979, p. 96. 12 Ib., Dilemas do nordeste (1990). In: Ib., Parlamentarismo: contexto e perspectivas. Brasília: Centro de Documentação e Informação Coordenação de Publicações, 1992, p. 57.

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nasce entre os anos 60 e 70, justamente quando a “análise histórico-sociológica atinge seu

apogeu, no Brasil, e nos quais sofreu uma perseguição sem quartel”.13

Este processo de ruptura reflete o que o autor chamou de uma “crise da civilização” e

uma “crise da ciência”. Ao final desta ruptura, Florestan continuará partindo da sociologia

como plataforma de análise e intervenção da realidade social, porém, longe das amarras que a

academia passou a representar sob o capital monopolista, pois: “às vezes, se o que entra em

conta é uma denúncia (expressa ou velada), ele [o sociólogo] é limitado por sua profissão ou

por suas vinculações acadêmicas dentro do mundo da universidade”.14

Abre-se, então, um novo horizonte intelectual que radicaliza sua “sociologia crítica”15

ao se aproximá-la continuamente do pensamento marxista.

1.1 Nos quadros da ruptura

Descrever a ruptura que ocorre na obra de Florestan entre os anos 60 e 70 é apontar

uma nova atitude de “natureza psicológica e política” que rompe com a posição dos períodos

anteriores, nos quais o sociólogo assumia suas “responsabilidades profissionais em um nível

puramente profissional”. Seu posicionamento anterior se devia ao entendimento de que a

sociedade brasileira evoluía para uma “revolução burguesa segundo o ‘modelo’ francês,16 sob

a aceleração de renda, do prestígio social e do poder”:

Tratava-se de uma “utopia” e, o pior, de uma utopia que se achava redondamente errada.

Tal utopia pode ser facilmente compreendida se se toma em conta sua origem acadêmica (transferência de ideias de trabalho por parte dos professores de origem europeia e treinados para trabalhar nas universidades europeias) e a falta de concomitância entre papéis profissionais e oportunidades de participação dos sociólogos no movimento político-social.17

Nos anos 60, desenvolve-se uma polarização política e ideológica dos papéis sociais

do sociólogo, “tendo como patamar uma situação de crise nacional e internacional das

13 FERNANDES, Florestan. Mudanças Sociais no Brasil. São Paulo: Difel, 1979, p. 20. 14 Ib., Circuito Fechado: quatro ensaios sobre o "poder institucional". São Paulo: Hucitec, 1977, p. 99. 15 “Florestan Fernandes é o fundador da sociologia crítica no Brasil. Toda a sua produção intelectual está impregnada de um estilo de reflexão que questiona a realidade social e o pensamento”. IANNI, Octavio. Sociologia da sociologia: o pensamento sociológico brasileiro. São Paulo: Ática, 1989. Ver também: Ib., (org.). Florestan Fernandes: Sociologia. São Paulo: Ática, 1986. Outro autor que busca explorar esta dimensão crítica do pensamento de Florestan Fernandes é Mariosa, mas, no geral, não achamos um bom ângulo de análise, pois tende a destacar um aspecto subjetivo do sujeito. MARIOSA, Duarte. Florestan Fernandes e a sociologia como crítica dos processos sociais. Campinas: Unicamp, em mimeo, 2007. 16 “Sob as condições do absolutismo real, as classes superiores proprietárias da França adaptaram-se à intrusão gradual do capitalismo, fazendo maior pressão sobre os camponeses [...] a modernização da sociedade francesa teve lugar através da coroa. Como parte desse processo, desenvolveu-se uma fusão entre a nobreza e a burguesia”. MOORE JUNIOR, Barrington. As origens sociais ditadura e da democracia: senhores camponeses na construção do mundo moderno. Lisboa: Cosmo, 1975, p.138. 17 FERNANDES, Florestan. Mudanças Sociais no Brasil. São Paulo: Difel, 1979, p. 21.

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estruturas internas de dominação de classes”. O golpe mais duro deste processo ocorre com o

AI-5 (1968), que será determinante na imposição de sua aposentadoria e de sua proscrição de

três anos de exílio. No Canadá, exilado, realizou análises comparadas entre vários países da

América Latina, que lhe evidenciaram “em que sentido o que acontecia no Brasil era típico de

um ‘estágio de incorporação’” do país ao capital monopolista. Segundo o autor, esta

compreensão foi o golpe final que liquidou “as últimas hesitações e todas as esperanças” de

uma saída de amplitude efetivamente democrática – “sob a pressão de outras classes (como o

proletariado, o campesinato ou certos setores insatisfeitos das classes médias)” – no caso

brasileiro;18 ou seja, a partir dali, vê que “dentro do capitalismo só existem saídas, na América

Latina, para as minorias ricas, para as multinacionais, para as nações capitalistas hegemônicas

e a sua superpotência”.19

Neste momento, fica claro que a burguesia nacional e internacional não toleraria uma

democratização – ainda que incipiente, como a que se iniciava no Brasil pré-64 – já que, se

assim o fosse, tal democratização poderia interferir em sua concentração de privilégios e

poder. Ao mesmo tempo, se explicitava a Florestan como a burguesia nacional cumpria a

função de cooperação com o capital internacional na luta contra o possível avanço do

socialismo no Brasil.

Assim, as classes dominantes sofreavam abertamente, através de um duplo golpe dos

militares – em 1964 e 1968 –, o desenrolar histórico, deflagrando uma inflexão histórica que

possibilitará que o sociólogo paulista questione suas práticas e funções sociais, reproduzindo

assim o que Lukács afirmou em relação ao pensamento francês do início do século XX:

As inflexões na história provocam, portanto, necessariamente, crises na filosofia. Concepções que, durante muito tempo, pareciam indiscutivelmente evidentes, tornam-se de repente problemáticas. O pensamento, então, entrega-se tumultuosamente, por toda parte, à procura de justificações novas, de possibilidades de modificação, de perspectivas inéditas.20

Parafraseando o filósofo húngaro, mas no sentido inverso, como se deu no caso de que

tratamos, podemos dizer que seria espantoso que o desmoronamento da luta em termos

democráticos do pré-64, promovido pelos golpes da burguesia, não tivesse provocado

mudanças no pensamento brasileiro que exibissem todos os caracteres de uma crise. Em

Florestan, esta crise se expressa à esquerda, na busca de “superar a circularidade de uma

18 FERNANDES, Florestan. A sociologia no Brasil: contribuição para o estudo de sua formação e desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 202. 19 Ibid., p. 204. 20 LUKÁCS, Georg. Existencialismo ou marxismo? São Paulo: Senzala, 1967, pp. 101-102.

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investigação sociológica condicionada pelo passado e repor o raciocínio sociológico no

circuito da história em processo, que se abre para o futuro”.21

Florestan passa a estudar a revolução socialista da Rússia, da China e de Cuba – entre

as quais, lhe chamou a atenção as peculiaridades da revolução de 1905, na Rússia –22 e o que

se evidencia, neste contexto conturbado, são os limites da própria ciência sob o capitalismo

monopolista, que é entendido como uma época de crise da civilização na qual estão em xeque

as próprias funções sociais da sociologia.

Até agora a Sociologia (e com ela os sociólogos) nunca passou de uma “serva do poder”. Mas isso não se deu porque a Sociologia esteja condenada a ser e a manter-se uma “ciência burguesa”. [...] A Sociologia sofreu, portanto, uma dupla deformação, que nos compete corrigir e retificar, para chegarmos a explicações adequadas a mudanças que não podem ser concebidas e efetuadas sem conhecimento científico prévio da realidade. 23

O enfrentamento desta crise exigirá um reposicionamento do autor, que se expressará

como ruptura de suas perspectivas e modus faciendi do período anterior. Os elementos desta

ruptura já aparecem de forma bastante clara em 1969, em sua coletânea de escritos publicada

no exílio: The Latin American in residence lectures.24

Este momento de ruptura vivido por Florestan já foi bastante abordado dentro das

análises realizadas sobre o autor. Na verdade, ele se tornou um ponto central para definir o

caráter do pensamento de Florestan antes e depois de sua saída da USP, um ponto de apoio

para separar o “joio do trigo”. Surgem assim recortes para “depurar” o autor e possibilitar o

resgate apenas do “Florestan que nos convém”.

Para o objetivo desta pesquisa trata-se de um momento incontornável, primeiro,

porque em grande medida determina o rumo que sua obra tomará; depois, porque a forma

como este momento vem sendo analisado tende a rebaixar o caráter científico da obra de

Florestan após sua saída da USP e, assim, reduzir a legitimidade das análises feitas pelo autor

nos últimos 26 anos de sua carreira, período no qual nossa pesquisa está inserida.

Bárbara Freitag será uma das primeiras a tocar no tema de uma diferenciação entre o

ideário de Florestan antes e depois dos anos 70, em sua fala na Jornada de Estudos de

Florestan Fernandes na Unesp/Marília, em 198625 onde apresentará a ideia de que Florestan

passa da posição de um “acadêmico-reformista” para a de um “político-revolucionário”. O

21 FERNANDES, Florestan. A Sociologia no Brasil: contribuição para o estudo de sua formação e desenvolvimento. Petrópolis: Cortez, 1977, p. 102. 22 Ibid., p. 204. 23 Ib., Sociologia, modernização autônoma e revolução social (1970). In: Ib., Capitalismo Dependente e Classes Sociais na América Latina. Rio de Janeiro: Zahar, 1973, pp. 126-127. 24 Ib., The latin american in residence lectures. Toronto: University of Toronto, 1969. 25 FREITAG, Bárbara. Democratização, Universidade, revolução. In: D’INCAO, Maria Angela. (org.) Op. Cit.

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tema também será abordado por Eliana Vera Soares em sua dissertação de mestrado orientada

por Freitag.26 Nesta, a autora demonstrará uma “conciliação” que amenizava o corte de

Freitag entre o político e o acadêmico, chegando mesmo à conclusão de que esta é uma

questão secundária à luz das superações pessoais do autor.

Outra leitura corrente é a de que, com o fim de sua carreira como professor da USP, ao

ser aposentado compulsoriamente em 1969, Florestan deixa de desenvolver um pensamento

de caráter científico – ainda que mantenha viva sempre sua “vocação científica”27 – e “sua

noção mesma de ciência, antes concebida a partir da articulação de certos procedimentos,

preocupada com o rigor, capaz de combinar várias orientações metodológicas, enfim, dotada

de universalidade, esfuma-se”;28 neste sentido, o sociólogo se adstringiria cada vez mais à

figura de publicista. Dentro desta leitura da professora Maria Arminda do Nascimento Arruda,

a crise pela qual Florestan passa tem sua preponderância na esfera psicológica do autor e se

exprimirá “na conciliação entre pensamento científico e revolução e no desencanto nos papéis

profissionais do sociólogo, dado que haviam lhe arrancado o centro dos seus investimentos

pessoais”.29

O próprio Florestan apresenta esta face psicológica da crise e, de fato, motivos para

esta crise psicológica não lhe faltaram, basta retomarmos o próprio argumento de Arruda, na

medida em que “o percurso formativo do autor, inclusive no âmbito da constituição de si

mesmo e de sua identidade social, é indissociável da formação da própria

institucionalização de sua disciplina” e, desta forma, “a saída desse nicho

institucional terá significação equivalente, no que se refira à reconstituição de si mesmo, ao

estabelecimento de uma nova relação com a disciplina e de uma nova equação do sentido

social e político de sua própria atividade”.30

Trata-se do desmoronamento de um projeto de desenvolvimento de “sociologia

moderna” que vinha sendo arquitetado há anos e ao qual o autor dedicou-se incessantemente.

Mas nos parece que, da forma em que a questão é formulada por Arruda, sua “crise

psicológica” e a adoção aberta de uma postura política maculam sua capacidade de fazer

ciência, apesar de sua “vocação”. Teremos que refletir se realmente isso ocorre, se realmente

Florestan deixa de “combinar várias orientações metodológicas” – e se este é um bom critério

26 SOARES, Eliane Veras. Florestan Fernandes: o militante solitário. São Paulo: Cortez, 1997. 27 “Independente do significado atribuído ao desempenho profissional do sociólogo e, mesmo, à disciplina, Florestan sempre foi um personalidade vocacionada [no sentido weberiano]”. ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. A sociologia no Brasil: Florestan Fernandes e a “escola paulista”. In: MICELI, Sergio. (org.) História das Ciências Sociais no Brasil, tomo II, 1995, p. 166. 28 Ibid., p. 165. 29 Ibid., p. 164. 30 Ibid., p. 43

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para fundarmos o caráter científico de uma análise –, se a crise psicológica está apenas ligada

a questões de “investimentos pessoais” ou se não se trata também da percepção de que esta

carreira e investimentos pessoais estavam pautados em “uma utopia que se achava

redondamente errada”.31

Será Lidiane Soares Rodrigues quem recentemente desenvolveu o principal trabalho

sobre o tema, a partir da não concordância da autora com a cisão consagrada por Freitag, entre

o Florestan Fernandes “acadêmico-reformista” e o “político-universitário”. Seu objetivo foi

debruçar-se “sobre a fração da obra do próprio Florestan Fernandes que pensa” e, além do

mais “vislumbrar a historicidade dos diversos perfis a ele atribuídos”. Para isso, teve em vista

o eixo institucional, que serve como linha divisória da trajetória do autor; por outro lado,

como potencial heurístico para sua análise, a autora parte da problemática da memória e do

esquecimento.32

A análise da autora buscou corretamente superar a excessiva simplificação apresentada

na palestra de Freitag, mas, a nosso ver, acaba tendendo a coadunar com uma posição que

reforça a ideia de “trauma psicológico” que macula a objetividade científica de Florestan.

Fato que pode ser visto, na medida em que tende a subestimar Florestan quanto ao trato que

este dá ao pensamento marxista e em especial ao de Lenin.

Em sua leitura, o resgate da obra e prática leniniana feita por Florestan Fernandes

quase se limita a uma “transferência”, nos termos psicanalíticos, a um utilitarismo, na medida

em que o sociólogo, frustrado com a academia, precisaria encontrar outro ponto de ancoragem

para toda sua bagagem de sociologia aplicada e projeto de vida em suspenso.33 Tende-se

assim a reduzir a análise ao aspecto da personalidade e resoluções de conflitos imediatos do

cientista, na qual Florestan parece ser afetado por uma doença que sempre visou combater, o

esquerdismo-infantil.

O foco no aspecto subjetivo ressaltado por Rodrigues é compreensível na medida em

que um de seus interesses principais em analisar Florestan é buscar como se dá a

recomposição do perfil intelectual do autor. No entanto, para delinear o desdobramento de

31 FERNANDES, Florestan. Mudanças Sociais no Brasil. São Paulo: Difel, 1979, p. 21. 32 RODRIGUES, Lidiane Soares. Entre a academia e o partido: a obra de Florestan Fernandes (1969/1983). São Paulo: USP, em mimeo, 2006, p. 12. 33 “Contudo, estabelece-se um qüiproquó na teorização da teoria, quando se pretende atribuir a racionalidade elaborada a posteriori a um dos agentes coevos aos acontecimentos e erigi-lo em exemplar de previsibilidade sociológica. E, ao que parece exatamente esse é o propósito de Florestan Fernandes. Daí oscilações inevitáveis, intransponíveis ao texto do intérprete, senão ao custo de deselegantes transcrições, que tributam o sucesso da revolução socialista por vezes à mobilização da massa, por vezes à vanguarda profissional, mas, sobretudo ao suposto “modelo de ciência” de Lênin. Daí também que, ao estabelecer uma relação causal entre precisão da análise e o sucesso da revolução, o autor pareça projetar sua ambição irrealizada na vertente da Sociologia Aplicada. Com efeito, tendo em vista que se trata de uma trajetória bem sucedida no que tange à intervenção, tudo se passa como ela desse vida àquela que era a pretensão do próprio autor”. RODRIGUES, Lidiane Soares. Op. Cit., pp. 57-58.

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perfis – dos anos 60 em diante –, acaba estabelecendo quadros que reduzem aspectos muito

importantes: diminui-se o vínculo anterior com o pensamento marxista; aponta um

distanciamento muito grande entre A revolução burguesa e suas obras anteriores, inclusive a

obra do exílio.

O que parece servir de pressuposto para a análise de Rodrigues e que tem sua principal

formuladora, em relação à obra de Florestan, na socióloga Maria Arminda, é a dissociação

entre a dimensão científica e a dimensão política. Concepção amplamente adotada na

academia e que tem sua base na ideia de neutralidade cientifica, de clara inspiração

weberiana.34 Em última análise, com esta posição nada neutra, acaba-se em grande medida

rejeitando apenas parcialmente a posição inicial de Freitag, já que parece que há uma

manutenção subliminar da dicotomia ciência/política.

Este posicionamento, que distingue o político do acadêmico, acaba por ganhar uma

dimensão muito importante porque é tomado por Arruda e outros autores que analisam os

intelectuais brasileiros – como, por exemplo, Daniel Pecault – para diferenciar a postura

intelectual não só de Florestan Fernandes, mas de toda a chamada “Escola Paulista de

sociologia”, por ele conduzida, e que instaura o “estilo paulista” como verdadeiro paládio da

ciência, entre os anos 50 e 60. Escola esta que se contrapunha ao pensamento isebiano que

dava base ao “nacional-populismo”, vinculado ao partido comunista e ao governo “populista”

de João Goulart. 35

Ora, Florestan, ao romper com a “neutralidade científica”, rompe com a “escola” que

ele mesmo doutrinou, deixa de ser um cientista e avança no sentido da política, o que poderia

resultar, se radicalizarmos este raciocínio, em um rebaixamento da precisão do seu

pensamento a partir de então. O interessante é que esta ruptura e retomada crítica que

Florestan realiza, em relação ao seu projeto anterior, “rebaixa” a própria “escola paulista de

sociologia”; escola esta que fornece subsídio teórico para boa parte destes analistas que

citamos acima.

34 “Weber se dispõe a construir um instrumento neutro de analise e acaba por produzir uma arma ideológica que – longe de ser ‘neutra’ – torna-o capaz de descartar-se do adversário ideológico sem mesmo lhe dar ouvidos, e num terreno da própria escolha de Weber. [...] não pode haver nenhuma metateoria – nem mesmo aquela dos alegados ‘tipos ideais’ – que não esteja profundamente arraigada em um conjunto de proposições teóricas inseparavelmente ligadas a determinados valores sociais”. MÉSZÁROS, István. Filosofia, ideologia e ciência social: ensaio de negação e afirmação.São Paulo: Ensaio, 1993, p. 34. 35 “A elite intelectual paulista não sentia entusiasmo em associar-se à criação ideológica dos isebianos ou à pregação da vulgata marxista, e menos ainda em lançar-se na aventura da ‘marcha para o povo’”, ou, ainda: “embora seja verdade que o estilo teórico universitário de reflexão esteja presente mais em São Paulo do que no Rio [...]”. PÉCAULT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil: entre o povo e a nação. São Paulo: Ática, 1990, p. 173 e p. 205.

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Rodrigues avançará neste sentido, buscando demonstrar que não só o autor passa a

atuar de forma política, mas também realiza uma leitura do passado viciada por sua nova

postura política; é o que vemos em sua análise de A geração perdida:36

Deslocando o referencial especificamente científico na origem dos posicionamentos pretéritos, para a apreensão de seu significado especificamente político, que passa a interessá-lo no presente, considera suas relações políticas nos anos cinqüenta e sessenta.37

O resultado prático destas colocações é assumir que Florestan verga os fatos concretos

através do mecanismo de constituição de sua própria autobiografia, pois “é evidente que uma

das dimensões da memória consiste em construir o passado no presente, através, entre outros

recursos, da reconstituição autobiográfica”.38

Obviamente concordamos que pode haver distorções nas ideias que as pessoas fazem

de si próprias – seja no tempo presente, ou no tempo passado. Constatação inclusive feita por

Marx:

Do mesmo modo que não se julga o indivíduo pela ideia que de si mesmo faz, tampouco se pode julgar uma tal época de transformações pela consciência que ela tem de si mesma. É preciso, ao contrário, explicar essa consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito que existe entre as forças produtivas sociais e as relações de produção.39

Mas temos que atinar para a possibilidade de que o indivíduo possa estar fazendo um

julgamento condizente com a realidade na qual está ou esteve inserido. Para refutar o “mito da

ruptura” Rodrigues nega que o ano de 1969 seja um divisor de águas efetivo na vida de

Florestan Fernandes, apesar do autor “insistentemente”, como ela própria afirma, pontuar este

ano. E adverte: “Portanto, os cuidados do intérprete devem ser redobrados – as balizas em sua

trajetória devem ser matizadas, tanto mais suas elaborações autobiográficas sedimentem a

marca da aposentadoria compulsória”.40

Pelo que já foi apresentado em relação ao golpe que o autor recebe em vários planos

de sua vida, ao ter sido aposentado compulsoriamente e ver um projeto de vida desmoronar, e

a constatação prática de que realmente houve mudanças substanciais a partir deste período em

sua produção, nos parece importante levar a sério este marco pontuado por Florestan. Não

como uma divisão unilateral – como veremos, haverá muitas continuidades de um momento

para o outro –, mas como um reposicionamento geral; e, ao se reposicionar, nada mais normal

36 O texto compõe o livro: FERNANDES, Florestan. A sociologia no Brasil: contribuição para o estudo de sua formação e desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1977. 37 Em: RODRIGUES, Lidiane Soares. Op. Cit., p. 102. 38 Ibid., p. 91. 39 MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 46. 40 RODRIGUES, Lidiane Soares. Op. Cit., p. 91.

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que refletir criticamente sobre sua posição anterior, o que não implica necessariamente em

distorções.

Um exemplo disso, que, apesar de transcender ao nosso objetivo, parece conveniente,

é que algumas ideias apresentadas por Florestan sobre as ambições políticas da “geração

perdida” ressoam em uma carta que só pode ser considerada insuspeita de distorções

autobiográficas, pois se trata da primeira carta do autor para Antonio Candido em 1942,

quando Florestan acabara de entrar na USP. Nada modesto este rapaz de 22 anos escreve:

Meu caro Antonio Candido:

Perdoe-me a intrometida intimidade, pois penso não nos conhecermos pessoalmente. Entretanto, ela se justifica por dois motivos: primeiro, porque representamos a nova geração. Estamos no mesmo plano, dentro do tempo, apesar de você, neste caso, ser uma espécie de irmão mais velho. Representamos o novo espírito de trabalho, encaramos tudo sob novos aspectos, mais objetiva e humanamente. Segundo, porque encarna um processo admirável e justo de crítica, que eu defendo e lamentava já não existir entre nós. [...] Era uma condição social e política. Contudo a passagem está se processando. [...]

De uma coisa tenho certeza: nós derrubaremos o espírito dominante, de convencionalismo e pseudo-fecundidade, com menos tempo que todos os figurões do passado e do presente, precisaram para erigir esta monumental estupidez do espírito que é o bizantinismo consciente.

Frente a projetos tão ambiciosos de juventude e sabendo como Florestan desenvolve

sua carreira de forma tão colossal,41 não nos parecem estranhas as lamentações que realiza ao

perceber que todo o esforço de uma vida estava pautado em uma “visão errada”.42 O que o

autor verifica, frente ao golpe militar, é que todo o esforço que sua geração teve para cumprir

a derrubada do “espírito dominante”, dos figurões do passado e do presente, não foi realizado:

Depois de abafar e reprimir por mais de quatro séculos qualquer florescimento da inteligência crítica e criadora, o pensamento conservador lograra varrer o terreno e impor, não sabemos por quanto tempo, o seu padrão mortiço de entreguismo intelectual e de covardia moral. Uma vitória às avessas, que reabria o país às correntes avassaladoras e sempre revigoradas do colonialismo cultural.43

41 Tendo, como ponto auge, a implantação de um projeto de modernização da sociologia – que é um projeto de modernização da cultura e, em última análise, do país. 42 “Parecia que estávamos mergulhados em um forte processo espontâneo de crescimento institucional da ciência, que nos levaria gradualmente a passos maiores. Ora isso não sucedeu; nem poderia suceder. A minha visão estava errada! [...] É preciso liberar o elemento crítico em planos mais profundos, que afetam a arte, a filosofia e a ciência importadas; e, principalmente, que diz respeito ao engate da produção cultural com a luta de classes, com a transformação revolucionária do mundo”. FERNANDES, Florestan. A domesticação dos intelectuais (roteiro para exposição na PUC, RJ), datilografado e corrigido, 18 mar. 1981. Acervo Especial Florestan Fernandes. Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes. 43 FERNANDES, Florestan. A geração perdida (1976). In: Ib., A sociologia no Brasil: contribuição para o estudo de sua formação e desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 215.

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Obviamente que Florestan, ao resgatar todo o desenvolvimento desta geração,

diferencia que uma “geração perdida” não significa uma geração derrotada e o fato de que não

se tratou de um esforço inútil:

Não diria que a nossa presença tenha sido inútil: ela não foi e por isto se justifica este ensaio. No entanto, a nossa presença transcendeu às possibilidades da história, na medida em que a sociedade brasileira precisava de nós, contudo, ao mesmo tempo, não tinha como livrar-se de estruturas de poder obsoletas, que entraram em conflito frontal com as nossas tentativas de um audacioso “salto para a frente”.44

Não nos cabe desdobrar aqui uma análise deste tipo, apenas queremos deixar

registrado que é possível, e bastante provável, que Florestan não esteja simplesmente

remodelando o passado de acordo com o presente, mas olhando o passado de uma posição que

só pode ser possível naquele momento. Provavelmente pode haver imputações e distorções

próprias da “memória”, o que não, necessariamente, reduz a validade desta releitura de

Florestan. Há, de fato, um paradoxo em seu arrependimento de não ter sido mais radical e a

compreensão amarga de que não lhe era possível sê-lo, mas não uma incoerência. Parece que

ao retomar todas estas questões, após ter dado um “salto no escuro” ao voltar ao Brasil, em

1972, Florestan tenta iluminar, com os “erros” do passado, o caminho adequado ao futuro,

dentro de sua situação histórica concreta de então.

44 Ibid., p. 213.

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Figura 2 – Primeira página da carta enviada para Antonio Candido. São Paulo, 04 fev.1942. Acervo Especial

Florestan Fernandes. Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes.

1.2 Dupla condição

Apesar das discussões já existentes sobre o caráter e a amplitude desta ruptura, nos

parece que a principal e mais importante explicação sobre o tema ainda cabe ao próprio

Florestan Fernandes. O autor, ao buscar responder à crise social de sua época, se questiona: “o

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que significa para nós, essa debilidade congênita, que converte o sociólogo, automaticamente

e inevitavelmente, em ‘intelectuais orgânicos da ordem’?”.45

Pergunta e resposta que nascem “através de uma combinação das atividades práticas

com o trabalho acadêmico”, pelo qual consegue “eliminar o impacto da condição burguesa e

do radicalismo democrático” de sua “própria reflexão sociológica”.46 Desta forma, amplia

suas perspectivas analíticas na medida em que se desvincula dos limites de sua posição

anterior, operando a passagem de um radicalismo intelectual (ou “radicalismo puramente

subjetivo”)47 para um intelectualismo radical. Em que o primeiro, pautado pela conciliação do

“espírito crítico” com as “vantagens da posição de classe”, no melhor dos casos

[...] cindia o intelectual crítico em dois – qualquer que fosse a sua identificação com e a sua participação nos movimentos radical-democráticos ou socialistas – e sofreava nele a compulsão propriamente revolucionária de desligar-se da ordem existente, para romper definitivamente com ela e para lutar contra ela, como e enquanto intelectual. Ele ficava condenado a um inconformismo contido e alimentado pela ordem existente, além do mais concentrado no plano específico da imaginação criadora e do pensamento inventivo.48

A resolução deste conflito se dá pela adoção radical de uma dupla condição,49 que

balizará o percurso deste intelectualismo radical; ou seja, a condição de sociólogo e a

condição de socialista. Posicionamento que ultrapassa assim uma preocupação acadêmica,

que acredita poder se aproximar de um posicionamento neutro, realizando uma dicotomia e

oposição entre ciência e ideologia; é desta forma que, para Florestan Fernandes, “a sociologia

passa, pois, de autoconsciência crítica à condição de arma de combate”.50

45 FERNANDES, Florestan. A geração perdida (1976). In: Ib., A sociologia no Brasil: contribuição para o estudo de sua formação e desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 204. 46 Ibid., p. 202. 47 “Os mais íntegros protegeram-se através de radicalismo puramente subjetivo (isto é, sem suporte institucional, já que não se poderia apoiar na estrutura e no funcionamento da universidade brasileira; e sem suporte de massa, já que não existia qualquer movimento político-social suficientemente forte para servir de contrapeso à pressão conservadora)”. Ib., Mudanças Sociais no Brasil. São Paulo: Difel, 1979, p. 22. 48 Ib., A geração perdida (1976). In: Ib., A sociologia no Brasil: contribuição para o estudo de sua formação e desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 241. 49 Apesar de Florestan afirmar que esta dupla condição já estava presente em seu ideário desde 59 só teremos a concretização desta posição de maneira radical (ou completa) no final dos anos 70: “Este livro reúne ensaios que refletem o espírito da época em que foram escritos: entre 1959 e 1962 [...] O Autor, naquela época, como nos dias que correm, vinculava à sua dupla condição de sociólogo e de socialista uma ampla visão dos problemas teóricos, empíricos e práticos da sociologia como ciência, pois, na verdade, a sociologia não valeria uma missa se não fosse possível associar a pesquisa sociológica à revolução democrática na sociedade brasileira”. Ib., Prefácio à segunda edição (1976). In: Ib., A sociologia numa era de revolução social. Rio de Janeiro: Zahar, 1976, p. 9. Outros autores afirmam a radicalidade do pensamento de Florestan Fernandes bem antes, já no período dos anos 50 como Carlos Guilherme Mota: “A radicalização de Florestan Fernandes se processa, de fato, na década de 50, sobre tudo nos últimos anos, quando passa a realizar estudos não mais de acentuada orientação funcionalista”. MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da Cultura Brasileira (1933-1974). São Paulo: 34, 2008, p. 220. 50 Ib., A natureza sociológica da sociologia. São Paulo: Ática, 1980, p.17.

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Foi pela própria incoerência que observava entre os fatos concretos que ocorriam no

Brasil e na América Latina e a produção científica das ciências sociais de então, que Florestan

conclui que incorporar à sociologia sua ideologia socialista não lhe limitaria cientificamente,

mas, ao contrário, lhe ampliava a capacidade de apreensão da realidade.

Não diria que a infiltração ideológica e utópica inerente ao socialismo produza um saldo negativo ou uma reação bloqueadora na interpretação sociológica do capitalismo dependente e de suas vinculações com o imperialismo. Isso só ocorre quando essa infiltração empobrece o horizonte intelectual ou enrijece a perspectiva de observação do sociólogo, graças aos influxos de um dogmatismo especulativo a que o sociólogo não tem direito, especialmente se for um sociólogo socialista. Tudo isso fica muito claro quando se considera que não são os socialistas que querem calar ou deturpar as verdades que a sociologia crítica pode descobrir. Os socialistas distinguem o “momento intelectual” do “momento político” no que se refere ao conhecimento científico. Embora estejam empenhados em passar de um a outro e de estabelecer uma relação dialética entre ambos, para eles o conhecimento sociológico só possui valor se for obtido dentro dos cânones da ciência e puder ser submetido ao teste da prática, pelo qual se determina seu grau de verdade, de capacidade de “transformar o mundo”, ou o grau da revisão que se faz necessária. O que pressupõe um vínculo recíproco entre ciência, ideologia e utopia, que não aparece nem pode existir onde a imaginação sociológica não seja intrinsecamente revolucionária. 51

Este intelectualismo radical busca vincular o rigor científico e elementos positivos da

sociologia à utopia e à ideologia do socialismo52 que não ficassem circunscrito ao universo

burguês da defesa da ordem, é dizer: realiza “uma correção socialista do pensamento

sociológico”.53

51 FERNANDES, Florestan. A sociologia no Brasil: contribuição para o estudo de sua formação e desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 205. 52 Uma leitura interessante sobre ideologia e utopia retirada a partir do texto do próprio Florestan é a de Gabriel Cohn ao expressar: “Nesse ponto, é preciso ler diretamente a brilhante análise que Florestan faz do significado do liberalismo na construção da sociedade nacional no século XIX, ao oferecer aos estamentos senhoriais as referências utópicas que lhes permitem projetar aspirações e visões da sociedade no futuro, em contraste com as referências ideológicas que ela também oferece, e que alimentam a conservação no plano econômico”. COHN, Gabriel. Florestan Fernandes – A revolução burguesa no Brasil. In: MOTA, Lourenço Dantas. (org.) Introdução ao Brasil – um banquete nos trópicos. São Paulo: SENAC, 1999, pp. 400-401. Mas podemos ler também que Florestan manterá sua compreensão de utopia e ideologia de acordo com a compreensão de Mannheim, ou seja: “ideologia é o conjunto das concepções, ou legitimações, ou reprodução, da ordem estabelecida. São todas aquelas doutrinas que têm um certo caráter conservador no sentido amplo da palavra, isto é, consciente ou inconscientemente, voluntária ou involuntariamente, servem à manutenção da ordem estabelecida. Utopias, ao contrário, são aquelas ideias, representações e teorias que aspiram uma outra realidade, uma realidade ainda inexistente. Têm, portanto, uma dimensão crítica ou de negação da ordem social existente e se orienta para sua ruptura”. LÖWY, Michel. Ideologias e ciência social: elementos para uma análise marxista. São Paulo: Cortez, 1991, p. 13. 53 FERNANDES, Florestan. Da guerrilha ao socialismo: a revolução cubana. São Paulo: Expressão popular, 2007, p. 113. Lemos em outro texto: “Impunha-se unificar os vários componentes da atitude política inerente ao radicalismo intelectual – o puritanismo intelectual, o inconformismo, a vocação para uma ação intelectual crítica, a identificação com a revolução democrática e a valorização das massas populares como ‘fator histórico’ convertendo-a, portanto, no substrato estrutural e dinâmico de um intelectualismo de negação da ordem burguesa e, por conseguinte, em um intelectualismo radical”. Ib., A sociologia no Brasil: contribuição para o estudo de sua formação e desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 243.

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Um exemplo do contraste entre o radicalismo intelectual e seu intelectualismo radical

se expressa claramente através de sua crítica ao conceito autoritarismo, na medida em que

explicita a diferença entre os horizontes intelectuais dos cientistas da ordem e dos que se

pautam pela superação da ordem.

Assim, segundo Florestan, o conceito de autoritarismo foi abusivamente utilizado na

sociologia e nas ciências políticas, representando uma perplexidade ideológica pela qual os

cientistas sociais realizam “muitas manipulações repressivas da ‘autoridade’ (aparentemente

‘legítimas’ ou claramente ‘ilegítimas’)” com o objetivo

de confundir os regimes de transição socialista com o fascismo; e uma tendência generalizada de estabelecer confusões sistemáticas, pelas quais: a) “regime autoritário” seria equivalente de “democracia forte” e o “regime soviético” (e todas as variantes) podiam ser postos no mesmo saco do totalitarismo. [...] O que permite aplicar o termo autoritarismo em conexão com qualquer regime, em substituição ao conceito mais preciso de ditadura.54

Com este tipo de análise, o cientista burguês mantém-se em seu horizonte intelectual

de defesa da ordem, afirmando idealmente a sociedade democrática como perfeita; mais

precisamente, “trata-se de uma definição formal ‘perfeita’ e, ao mesmo tempo, exemplar e

apologética” que acarreta “não só à crítica como o repúdio da ‘democracia popular’”. Para

estes intelectuais:

A massa neutraliza a ação criadora das elites [...] põe o estômago em primeiro plano (como afirma Rickert) e desloca a razão, destruindo-a. [...] Trata-se de condenar a democracia popular, de demonstrar que ela é intrinsecamente aberrante e corrompida [...] Portanto, a ciência política fecha-se dentro do universo burguês e introduz o elemento autoritário na substância mesma do “raciocínio científico”.55

Florestan desmascara assim o quanto as ciências que se pretendem neutras se valem de

perversões lógicas para a defesa, no plano ideológico, da afirmação da ordem, ao afirmarem a

democracia burguesa como única possibilidade efetivamente democrática.

Se acompanharmos a trajetória de Florestan desde os anos 50, quando conclui sua

formação e assume na prática a cadeira de Sociologia I,56 veremos que o autor já vinha,

54 FERNANDES, Florestan. Apontamentos sobre a “teoria do autoritarismo”. São Paulo: Hucitec, 1979, pp. 5-6. 55 Ibid., pp. 10-11. 56 Florestan assume na prática a cadeira de Sociologia I com a ida de Roger Bastide para França em 1954, porém formalmente alcançará o patamar de catedrático apenas em 1964. “Quanto ao marco final do que considero o ‘período de formação’, localizo-o no ano de 1953, entendido como o momento em que Florestan atinge a maturidade profissional ou institucional e a maturidade intelectual. De fato, em 1953, ele defende sua tese de livre-docência, alcançando-se aos níveis superiores da hierarquia da carreira acadêmica. Em seguida, passa a dirigir um programa de pesquisa no âmbito da cadeira de sociologia I. Entre de 1953 e 1954, portanto, Florestan chega à maturidade enquanto sociólogo academicamente consagrado, atuando como diretor de pesquisa, chefe de equipe e formador de discípulos”. GARCIA, Sylvia Gemignani Garcia. Destino Ímpar: sobre a formação de Florestan Fernandes. São Paulo: 34, 2002, p.13

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paulatinamente, radicando uma posição de intervenção social e, principalmente, passa a

pensar o processo de revolução burguesa no Brasil que nascia no âmago de um projeto de

modernização para a sociologia. A crise psicológica de “longa duração” pela qual o autor

passou desde o início dos anos 70, nos parece, em grande parte, reflexo da convulsão social

que o faz refletir sobre suas posições e atividades, pondo em cheque suas articulações e laços

sociais, bem como, em grande parte, sua compreensão ligada a tais laços e articulações

sociais.

Nos limites do que aqui cabe ao nosso tema, essa reflexão recai também sobre a

possibilidade de Brasil moderno e, portanto, sobre sua análise científica desenvolvida até

então junto às instituições que lhe deram suporte, se estendendo à própria sociologia que é

colocada em questão.

A crise surgiu entre 1969 e 1972, em Toronto (onde, aliás, ela não deveria ter lugar: para mim a oportunidade era daquelas que são vistas como o coroamento de uma carreira de ‘nível internacional’ – mas foi exatamente essa oportunidade que funcionou como o equivalente do poço em que ficou o jovem José; saí de lá transformado e dentro de uma crise de longa duração, da qual ainda não emergi). Para ficarmos no essencial: a sociologia perdeu o seu encanto, para mim.57

Como sabemos, sua resposta a convulsão social é condensada em A revolução

burguesa no Brasil, um ensaio que revela mais que um “caráter inacabado e pouco

sistemático de exposição. A advertência sobre os limites da obra evoca também, com um

travo amargo, as circunstâncias de sua composição, que impuseram a ela o seu formato

fragmentado, de projeto interrompido mas não abandonado; assim como haviam feito com o

próprio ofício do autor”.58 A obra corporifica não só a expulsão de Florestan da USP, como a

recusa à “consagração” acadêmica no exterior, ao decidir abandonar a Universidade de

Toronto e voltar sem perspectivas acadêmicas para o Brasil. Sua única perspectiva no

momento era: “por mim não passará!”

Todo esse período de crise fermentativa levou-me a frustrações demasiado profundas e a decepções que não podem ser corrigidas ou superadas. Quando alguém se lança à frente e descobre que não tem cobertura, a verdade sobre as instituições e os seus tipos humanos, os movimentos políticos e sua consciência sobem à tona. O Brasil se revelou melhor para mim nesse longo período de amargura sem pessimismo e de luta por teimosia (como um limite puro da vontade de proclamar aos quatro ventos: por mim a ditadura não passará!).59

57FERNANDES, Florestan. A natureza sociológica da sociologia. São Paulo: Ática, 1980, p. 13. 58 COHN, Gabriel. Florestan Fernandes - A revolução burguesa no Brasil. In: MOTA, Lourenço Dantas. Op. Cit., p. 395. 59 FERNANDES, Florestan. A natureza sociológica da sociologia. São Paulo: Ática, 1980, p. 14.

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“Teimosia” e “vontade” que revelam certa dose de “romantismo”, na medida em que

se atira contra a ditadura por uma teimosia no “limite puro da vontade”. Ora, esta posição

receberá rapidamente uma correção amarga da realidade, que se configurará pelo vácuo

institucional e político, vácuo que parece enterrar qualquer romantismo que possa trazer de

seu momento anterior, de radicalismo intelectual;60 as ilusões foram perdidas, pois

o sociólogo profissional converteu-se numa pessoa que luta mais para sobreviver e ganhar a vida – enfim, para preservar e reforçar sua condiçãozinha de classe média – do que pela verdade inerente à natureza científica e, portanto, revolucionária da explicação sociológica [...] os controles externos e a repressão da imaginação criadora corroem tanto a sociologia como ciência, quanto os papéis intelectuais construtivos do sociólogo. 61

Assim, veremos a consolidação de uma nova posição do autor, que terá como ponto

alto deste novo posicionamento os textos de preparação para aulas no período no qual o

sociólogo passa a ser professor do Sedes e depois da PUC/SP, onde apresentará questões

fundamentais e de forma mais ampla e articulada do que nos escritos e entrevistas casuais da

pequena imprensa a que teve acesso na época (1976-1982). Desta forma, em um conjunto de

quatro livros,62 surgiu a consolidação de questões nevrálgicas para sua atuação posterior, tais

como: a superação do momento anterior, uma análise importante sobre o momento chave em

que vive, as perspectiva para superação daquela quadra histórica e um referencial para o

futuro a partir do socialismo.

Neste passo, sua melhor contextualização do esgotamento da sociologia profissional se

dá em A Natureza sociológica da sociologia. Obra fundamental na qual sistematiza a situação

histórica da sociologia e do sociólogo, demonstrando que sua nova posição não decorria

“apenas” de uma crise psicológica ou, como ele próprio tentava deixar claro, não se tratava de

“invocar-se a questão de ressentimento, que a crítica conservadora lançou contra mim”.63 O

que temos é a fundamentação histórica da dificuldade (que beira a impossibilidade por

momentos) das ciências sociais autônomas sob o capital monopolista. Trata-se de um esforço

que vai à esteira de Paul Baran e Paul Sweezy, quando questionam as ciências sociais norte-

americana nos anos 60: “Como podemos explicar o paradoxo de que cientistas sociais mais

60 “Os esforços despendidos foram bem empregados e as ilusões que eles envolviam, ‘realistas’ (algumas) ou ‘românticas’ outras, são inevitáveis, quando se quer fazer algo partindo-se do ponto zero”. Ib., A sociologia numa era de revolução social. Rio de Janeiro: Zahar, 1976, p. 9. 61Ib., A natureza sociológica da sociologia. São Paulo: Ática, 1980, p. 13. Grifos do autor. 62 São eles: Apontamentos sobre a “teoria do autoritarismo”; Da guerrilha ao socialismo: a revolução cubana; A natureza sociológica da sociologia; e, A ditadura em questão. 63 FERNANDES, Florestan. A sociologia no Brasil: contribuição para o estudo de sua formação e desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 142. É interessante que mesmo o DOPS atribuía uma questão psicológica para explicar a posição “subversiva” do autor. Em um relatório do DOPS sobre Florestan, lê-se: “Dotado de ambição sem limites, desleal, despatriado, amoral e revoltado com sua humilde origem (filho de lavadeira)”. Ver: CERQUEIRA, Laurez. Florestan Fernandes: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 104.

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numerosos e mais bem treinados tenham falhado cada vez mais ostensivamente na explicação

da realidade social?”.64 Contudo, ao mesmo tempo, Florestan se colocará também em uma

posição que vai de encontro ao procedimento de Ernest Mandel65 em seu Tratado de

Economia Marxista,66 na medida em que retoma a tradição das ciências sociais, não

necessariamente marxistas, para constituir uma visão marxista do objeto analisado. Ou seja,

trata-se de um processo de negar as ciências sociais contemporâneas, por um lado, e, por

outro, reafirmar as contribuições positivas das ciências sociais em geral, ainda que de forma

tensa, ou melhor, “polarizada”.67

Assim, como os autores citados acima (e os citando), a resposta de Florestan não nasce

apenas da crítica do horizonte liberal, mas também passa pela crítica de certas posições

marxistas. É dizer, esta superação do horizonte liberal, predominante nas ciências sociais,

exigirá que o autor desenvolva uma nova posição como intelectual-socialista não dogmático e

invulgar.

Nos quadros deste intelectualismo radical, o que vemos é que Florestan Fernandes se

articulou através de um esforço teórico-prático no qual, por um lado, tratava de realizar uma

profunda reflexão teórica no sentido de resgatar os elementos estruturais e históricos da

realidade social e, por outro, tais reflexões estrutural-históricas dialogavam constantemente

com as análises cotidianas conjunturais, se alimentando delas e orientando suas proposições

políticas – gerando, assim, uma atuação sobre o que chamou de história in flux, que se

explicita principalmente nos textos de jornal e na atividade parlamentar no final dos anos 80 e

nos anos 90.

Na verdade, estes dois enfoques básicos são organicamente integrados, sendo, na

prática, pólos distintos de um mesmo processo. São resultados e resultam na radicalização que

64 BARAN, Paul; SWEEZY, Paul. Capitalismo monopolista: ensaio sobre a ordem econômica e social americana. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, p. 12. 65 É interessante que em uma anotação marginal no exemplar de Florestan de Capitalismo monopolista, o autor rebate a crítica de Baran e Sweezy de que os pensadores marxistas não teriam feito mais que repetir Marx apontando como exemplo o nome de Ernest Mandel. 66 “O leitor que busque aqui numerosas citações de Marx e Engels ou seus principais discípulos fechará este livro decepcionado [...] Pelo contrário, citamos abundantemente aos principais economistas, historiadores econômicos, etnólogos, antropólogos, sociólogos e psicólogos de nossa época [...]. Tentamos demonstrar que partindo dos dados empíricos das ciências contemporâneas, se pode reconstruir o conjunto do sistema econômico de Karl Marx. [...] A grande superioridade do método marxista, comparando com os outros sistemas econômicos, reside efetivamente nesta síntese dinâmica entre a história e a teoria econômica, que só ele permite efetuar.” MANDEL, Ernest. Tratado de economia marxista. México: Ediciones Era, 1977, p. 16. Tradução nossa. 67 Gabriel Cohn destaca a importância da utilização de Florestan Fernandes do conceito de polarização em A revolução burguesa e aqui o utilizamos (ainda que para um caso individual e não de grupo social) segundo sua reflexão : “Isso sugere que quando fala de polarizações está em jogo uma dinâmica tensa entre sentidos opostos presentes no mesmo objeto de referência, que oriente a atuação de grupos sociais [...] Mas é importante não perder de vista que a polarização só ocorre efetivamente quando tem suporte social: são os homens e grupos de homens que “puxam” para direções diferentes no interior dos grandes agrupamentos da sociedade , e nas relações entre eles”. COHN, Gabriel. Florestan Fernandes - A revolução burguesa no Brasil. In: MOTA, Lourenço Dantas. Op. Cit., p. 402.

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buscava superar os limites da sociologia como serva do poder, através da intensificação do

marxismo no corpo da sociologia. Trata-se de uma nova trajetória que em vários sentidos

coincide com sua interpretação da atividade teórico-prática de Marx e Engels.68 Como

podemos observar no documento abaixo:

Figura 3 – Trecho final de apresentação do documento intitulado: A domesticação dos intelectuais (roteiro para exposição na PUC, RJ), datilografado e corrigido, 18 mar. 1981. Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes.

(na correção final, a caneta, lemos: “para a envergadura da ciência e da consciência;”).

Não podemos esquecer que Florestan Fernandes defende a inclusão de Marx na

sociologia desde 1946, quando realiza a tradução e introdução de Contribuição à crítica da

economia política;69 uma “encomenda” do grupo trotskista do qual participava, mas que a

executa dentro do debate sociológico como uma das formas de resolver a dificuldade da

sociologia articular a pesquisa empírica e teórica. Uma primeira aproximação sobre a qual

muitos anos depois declara: “Descobri o marxismo com a tradução da Crítica... Para mim, foi

uma revelação. Ao escrever a introdução da Crítica..., eu não tinha competência para fazer um

estudo profundo. Era muito mais uma homenagem, uma defesa de Marx”.70

68 É importante ressaltar que para Florestan o trabalho de Marx e Engels eram em grande medida complementares, com a diferença de que em um determinado momento Marx continuará a se aprofundar em seus estudos e Engels não poderá acompanhá-lo pois estará dedicado aos negócios que de certa forma ajudará a sustentar Marx. Em um de seus textos chega mesmo a declarar: “Não é possível fazer separações claras e definitivas [...] Prefiro, pois, omitir-me a respeito do que é de quem e imprimir ao balanço o mesmo sentido globalizador”. FERNANDES, Florestan. A natureza sociológica da sociologia. São Paulo: Ática, 1980, p. 117. 69 Publicado em 1946 pela editora Flama, mas que possui uma edição recente: MARX, Karl. Contribuição à crítica da Economia política. São Paulo: Expressão Popular, 2007. 70 FERNANDES, Florestan. Uma trajetória de militância (1991). In: COHN, Amélia. (org.) Op.Cit., p.180.

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Marx também esteve presente em outros trabalhos de cunho metodológico dentro da

sociologia – notadamente em Fundamentos empíricos da explicação sociológica (1967) e

Elementos de sociologia teórica (1970), livros que manterá sempre como referência de seus

estudos sobre Marx.71

Estes mesmo escritos, que desenvolve no seio de um projeto de modernização da

sociologia, continuaram como referência em seus estudos posteriores, nos quais retoma o

tema, ou seja, ao escrever A natureza sociológica da sociologia (escrito em 1978) e organizar

e fazer a introdução (o equivalente a um pequeno livro) de Marx e Engels: história (1983);

com a diferença que estes últimos dois livros coadunam com uma nova postura global como

já vimos, e que tende ao que Caio Navarro de Toledo descreve como marxismo clássico, pois:

A rigor o marxismo clássico não se preocupou apenas com a questão teórica da revolução; ele foi também um pensamento profundamente comprometido com a realidade da revolução socialista. Distinguindo-se do chamado marxismo ocidental (ou “marxismo teórico”, freqüentemente produzido nos meios acadêmicos), a produção do marxismo clássico nunca se distanciou das lutas concretas da classe operária. A trajetória pessoal desses autores testemunhou, de forma eloqüente, o engajamento deles com a sorte e o destino dos trabalhadores, espoliados material e espiritualmente pela ordem burguesa capitalista.72

O que importa retermos neste momento é que há, para Florestan, uma ligação orgânica

entre a atividade intelectual e o movimento social “dos de baixo”, que não é meramente

arbitrária. É dizer, o autor, ao buscar vincular-se com o “destino dos de baixo”, acaba por

radicalizar sua posição, sem com isso encerrar grandes contradições pessoais – já que declara:

“Por felicidade, minha origem social e minha identidade ideológica e utópica coincidem. Não

preciso virar-me pelo avesso para entender os oprimidos e bater-me por sua emancipação

coletiva, atrelando-me aos seus movimentos sociais e a seus protestos políticos”.73 Mas isso

porque compreende como essencial à dinâmica dos movimentos sociais para existência

mesma de um “pensamento negador” e como elemento sine qua non para a compreensão do

mundo:

[...] a revolução que [Marx e Engels] se tornaram porta voz e militantes não brotou das formas intelectuais da consciência – ela emergiu do próprio curso da história. Se o radicalismo de ambos lhes permitia compreender essa revolução no seu íntimo e incorporá-la a seu modo profundo de ser, de pensar e de agir, eles

71 Sobre esta inclusão que o autor faz do marxismo no corpo da sociologia, Fernando Henrique Cardoso dá a seguinte declaração: “Florestan Fernandes, atormentado pela obsessão de desenvolver uma sociologia que não fosse constatação positiva da ordem predominante, abrira uma possibilidade de justificação da dialética como um dos três métodos fundamentais: o funcionalismo, o weberiano e o dialético”. CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997, p. 12. 72 TOLEDO, Caio Navarro. Hegemonia e poder político. In: D’INCAO, Maria Angela. Op. Cit., p. 275. 73 FERNANDES, Florestan. A transição prolongada: o período pós-constitucional. São Paulo: Cortez, 1990, p. 7.

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não a inventaram nem a criaram. Como eles testemunharam de maneira eloqüente, serviram-na. [...] eles refletiam no plano intelectual, político e ideológico, o que ocorria na sociedade real. Só que eles refletiam sem deformações, de forma direta, consciente e livre. [...] De fato, uma situação histórica revolucionária engendrou formas de consciência de classe revolucionária.74

Esta relação de Marx com a dinâmica da realidade social será na verdade um dos eixos

que possibilitam seu pensamento no plano “metódico”, na medida em que não interessa para

Marx uma verdade lógico-formal, que não passaria de uma escolástica, mas sim de uma

comprovação concreta na realidade, ou seja:

De um lado, trata-se de um método que procura apanhar a “unidade no diverso”, ou seja, a dialética do concreto exige do investigador que compreenda, simultaneamente, a totalidade com expressão de “determinações” particulares e gerais [...] De outro, trata-se de uma teoria que não se esgota como “pura explicação” e que não apela para uma “verificação racional”. Ela exige a combinação dialética do momento teórico com o momento prático (em sentido estrito: um “elemento político”), pois a práxis vem a ser o critério experimental de verificação da “verdade objetiva”.75

Significa dizer que nem a revolução social, nem o desenvolvimento teórico dependem

unicamente do analista, este se mantém umbilicalmente ligado a sociedade e suas proposições

devem partir da e retornar à realidade social. Esta compreensão é incontornável para

percebermos as propostas e análises que Florestan desenvolve em sua nova trajetória.

Não é à-toa, como nos chama atenção Toledo, que o autor declara ter tomado o

caminho “exclusivo” da ciência nos anos 40 e 50 por não encontrar respaldo para

desenvolver-se intelectualmente através dos partidos ou movimentos sociais de sua época:

Com muita franqueza e rara honestidade intelectual, mas também com certa amargura, Florestan dizia-se insatisfeito pelo fato de não conseguir superpor o trabalho científico ao de militante socialista. [...] assim, reconhece que a fragilidade do movimento socialista nos anos 40/50 não foi suficiente para dar outra direção à sua pesquisa acadêmica e teórica. 76

A mesma impossibilidade é relatada pelo próprio Florestan na medida em que relata

limitações semelhantes em uma época posterior, década de 60, para se expressar através de

movimentos sociais e políticos:

É que as circunstâncias eram aquelas e não me era dado escolher as condições em que tentava sair à liça. Isso me impunha uma severa limitação. Todavia, qual foi o partido, organização radical ou movimento político que me convidou para outro tipo de discussão?

74 FERNANDES, Florestan. (org.) Marx/Engels: história. São Paulo: Ática, 1983, pp. 18-19. 75 Ib., A natureza sociológica da sociologia. São Paulo: Ática, 1980, p. 123. Grifos do autor. 76 TOLEDO, Caio Navarro. Utopia e socialismo em Florestan Fernandes. In: MARTINEZ, Paulo Henrique. (org.) Florestan ou o sentido das coisas. São Paulo: Boitempo, 1998, p. 63.

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Só foi dado discutir francamente como “sociólogo engajado”: um debate que podia ser crítico, militante, e contundente, mas ficando sempre dentro da sociologia (pela natureza dos argumentos, os fins da exposição ou as expectativas do público).77

Contudo, vale ainda uma problematização sobre a relação entre marxismo e sociologia

em Florestan: esta será sempre, a nosso ver, complexa e paradoxal – ainda que o próprio

Florestan não o veja desta forma.78

Sociologia e marxismo em Florestan Fernandes

Para Florestan, sociologia e marxismo são universos separados, mas que se cruzam:

Se, de fato, a sociologia fosse inconciliável com o socialismo científico, o que seria do marxismo diante das outras doutrinas socialistas, que se revelaram incapazes de converter a crítica da sociedade capitalista em uma teoria da revolução contra a ordem? Porém, se o marxismo fosse tão-somente uma ciência social e, de maneira específica, uma sociologia, o que seria do próprio socialismo científico e das revoluções históricas que ele alimentou. Também não existe a necessidade de agradar gregos e troianos. Como se faria numa “linha eclética”: uma pequena infusão de sociologia no marxismo e pronto, aí está o socialismo científico; e uma ou duas pitadas de marxismo na sociologia e pronto, aí está a sociologia “verdadeiramente” científica!79

Não temos dúvida da ampliação do resgate marxista que o sociólogo faz para suas

análises; porém, vale questionarmos: ao levar o marxismo para a sociologia, em que medida o

autor não leva a sociologia para o marxismo? Ora, o próprio autor abre espaço para tal

questão, a saber: “Se lidei com textos de K. Marx e F. Engels desde o início da minha

carreira, nem por isso escapei à especialização dominante. É como sociólogo, portanto, que

me lanço a esta tarefa” 80 de apontar a contribuição de Marx e Engels para a ciência da

história.

Por momentos, o marxismo de Florestan aparenta funcionar no mesmo sentido em que

propõe Mandel – autor que passa a ser muito citado por ele –, como método que permite a

análise da totalidade e que subordina e organiza os demais métodos, técnicas e resultados

positivos das diversas contribuições. No entanto, por vezes, a sociologia parece ser o marco

referencial de cientificidade colocando-se em patamar superior ao marxismo.

77 FERNANDES, Florestan. Nota explicativa (1975). In: Ib., Circuito Fechado: quatro ensaios sobre o "poder institucional". São Paulo: Hucitec, 1977, p. 102. 78 “De qualquer modo, em nenhum momento senti-me em contradição com as ideias que cheguei a defender no campo da sociologia ou com as esperanças de todos os socialistas, de que as relações entre ciência e sociedade serão profundamente alteradas no futuro”. Ib., (org.) Marx/Engels: história. São Paulo: Ática, 1983, p. 10. 79 Ib., A natureza sociológica da sociologia. São Paulo: Ática, 1980, p. 111. 80 FERNANDES, Florestan. (org.) Marx/Engels: história. São Paulo: Ática, 1983, pp. 9-10. Grifos do autor.

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Ao percorrermos o último período da obra de Florestan, verificamos que é como a

híbrida figura de sociólogo-marxista que se lança a suas tarefas, ou seja, a ruptura que efetua

com sua posição anterior, como vimos, não o leva a abandonar a perspectiva sociológica e

nem mesmo a maior parte de suas concepções teóricas anteriores, mas estas passam a ser

incorporadas como instrumental disponibilizado ao militante socialista.

Neste sentido, concordamos com a crítica que Arruda faz em relação à tentativa de

Aguedo Nagel Paiva dissociar a contribuição historiográfica de Florestan de sua dimensão de

“sociólogo acadêmico”.81

O modo como Florestan procede ao incorporar elementos do marxismo ao seu fazer

sociológico o possibilita transcender definitivamente a tendência da “sociologia acadêmica”

de ser uma ciência fragmentária e que abre mão, em grande medida, dos elementos que

integram estruturalmente a economia aos demais processos sociais em uma totalidade

histórica. No entanto, para o autor, “o caminho não será o de esvaziar a investigação

sociológica: de esterilizar o sociólogo, o ensino da sociologia e a própria explicação

sociológica”.82

Não vim aqui para defender a sociologia. Alguns sociólogos estão dispostos a empreender essa militância: o que ela representa? Também, não vim fazer ataques infantis à sociologia. Como forma de conhecimento, a sociologia está sujeita a ambigüidades circulares, e mesmo os expoentes da chamada sociologia crítica acabaram cedendo terreno ao rolo compressor do cerco capitalista à revolução socialista mundial (o exemplo claro, trágico e simbólico: o recuo de Adorno, a reviravolta de Habermas e, pior que isso, as metamorfoses por que passaram os representantes do “radicalismo da década de 60”, nos Estados Unidos e na Europa).83

Florestan buscará demonstrar que não invalida a sociologia como ciência, mas tenta

apontar os limites que essa ciência sofreu pela “contaminação burguesa”. É dizer, a sociologia

não é simplesmente uma ciência burguesa que deva ser descartada, o que deve ser descartado

são os seus limites que lhe foram impostos pela própria condição burguesa. Além disso, o

autor ressaltará, de acordo com as fases de “desenvolvimento” do capitalismo, o quanto a

burguesia pode sociologicamente cumprir um papel construtivo de compreensão e intervenção

da realidade. Por este caminho busca superar o posicionamento marxista que faz uma crítica

81 Carlos Aguedo Nagel Paiva faz, em sua dissertação de mestrado, um resgate do Florestan marxista em A revolução bruguesa no Brasil, rejeitando o que chama de “sociologia acadêmica” e resgatando a obra em uma dimensão historiográfica. Maria Arminda, em suas duas obras principais, sobre Florestan faz uma crítica adequada a este posicionamento de Paiva: “Em síntese, a tendência em acentuar, na terceira parte do livro, as contribuições do marxismo não faz da obra um modelo de análise materialista histórica”. ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. Metrópole e cultura: São Paulo no meio do século XX. São Paulo: Edusc, 2001, p. 293. 82 FERNANDES, Florestan. A sociologia numa era de revolução social. Rio de Janeiro: Zahar, 1976, p. 11. 83 FERNANDES, Florestan. A natureza sociológica da sociologia. São Paulo: Ática, 1980, p. 14.

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“indiscriminada” ou exagerada a sociologia. Como podemos observar na crítica que faz ao

que compreende como conceito, o “assalto a razão”, vinculado a Georg Lukács.

Para Lukács, a sociologia em seu nascimento como disciplina independente se dá, na

Inglaterra e na França, com a dissolução da economia política clássica e do socialismo

utópico, que eram “cada uma ao seu modo, doutrinas que abarcam a vida social e que se

ocupavam, por tanto, de todos os problemas essenciais da sociedade, em relação com as

questões econômicas condicionantes”.84 Como disciplina autônoma, a sociologia, se afrontou

com os problemas sociais, prescindindo de sua base econômica como ponto de partida

metodológico. Tal procedimento está ligado à profunda crise da economia burguesa – e à

dissolução da análise ricardiana, na medida em que se começa extrair a teoria do valor-

trabalho das análises socialistas – e à dissolução do socialismo utópico, na medida em que se

passa a buscar o caminho para a construção concreta do socialismo.85

No entanto, houve tentativas de fundar a sociologia como ciência universal em sua

origem, com Comte e Spencer, que foram buscar suas referências nas ciências naturais para,

assim, conseguir eliminar da ciência o caráter contraditório do ser social: “é dizer, a crítica a

fundo do sistema capitalista”. Contraditoriamente, a vinculação da sociologia ao progresso

social desenvolvida por estes autores levou a ciência ao abandono de uma explicação

universal, na medida em que “a fundamentação científico-natural, e, sobretudo, a biológica,

não tardou em ser trocada, em consonância com a trajetória geral político-econômica da

burguesia, por uma ideologia e uma metodologia inimigas do progresso e, em muitos

aspectos, francamente reacionárias”.86 Estas contradições fomentaram a constituição da

sociologia como ciência especializada, que apenas “roça nos grandes problemas da estrutura e

no desenvolvimento da sociedade”.87

No conjunto das obras de Florestan poucas vezes encontramos citações do autor a obra

de Lukács, mas é sabido que o considerava um dos grandes marxistas contemporâneos. No

geral se refere ao livro História e Consciência de Classe e tratando especificamente da

84 LUKÁCS, Georg. El asalto a la razón: la trayectoria del irracionalismo desde Schelling hasta Hitler. México D. F.: Grijalbo, 1972, p. 471. 85 “Estas duas crises, e sobre tudo a solução de ambas mediante a aparição do materialismo histórico e da economia política marxista, vieram por fim à economia burguesa, concebida no sentido dos clássicos, como a ciência fundamental para o conhecimento da sociedade. E, assim, surge em um dos pólos a economia burguesa vulgar e, mais tarde, a chamada economia subjetiva, disciplina profissional de estreita especialização e temática muito limitada, que renuncia de antemão a explicação dos fenômenos sociais e se propõe como sua missão essencial fazer desaparecer do campo da economia o problema da mais-valia, e em outro pólo nasce como ciência do espírito a margem da economia, a sociologia”. Ibidem. 86 LUKÁCS, Georg. El asalto a la razón: la trayectoria del irracionalismo desde Schelling hasta Hitler. México D. F.: Grijalbo, 1972, p. 472. 87 “A deseconomização da sociologia entranha, ao mesmo tempo, sua deshistorização: deste modo, os critérios determinantes da sociedade capitalista – expostos baixo uma deformação apologética – podem apresentar-se como categorias ‘eternas’ de toda sociedade em geral. E não cremos que vale a pena parar para demonstrar que semelhante metodologia não persegue outro fim que o de fazer ver, direta ou indiretamente, a impossibilidade do socialismo e de toda revolução”. Ibid., p. 25.

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superação do limite ideológico burguês.88 Ou seja, a única indicação que temos de que

Florestan se oponha a concepção que Lukács desenvolve sobre a sociologia está presente em

sua crítica a ideia de “assalto a razão” a partir da qual constrói sua última visão mais

esquematizada sobre a sociologia.

Florestan busca demonstrar que a sociologia foi “fraturada” na mesma medida em que

a sociedade foi fraturada em classes e que, além disso, em seu período “clássico”,89 mesmo o

“pólo burguês” da sociologia teve condições de desenvolver contribuições importantes: já que

“o aparecimento da sociologia coincide com a consolidação da burguesia como classe

dominante” e que “uma classe dominante ‘em consolidação’ necessita de uma teoria da

sociedade dotada de um mínimo de racionalidade e de historicidade”.90 Assim, o autor

utilizará do pensamento lukacsiano para criticar as correntes marxistas que entendem a

sociologia “clássica” como “ciência burguesa” e, por isso, inapropriada para uma análise

social da perspectiva marxista.

É interessante que, sem se aprofundar, Florestan aponta como conceito o termo

“assalto a razão” e, no entanto, não coloca o livro El Asalto a la razón em suas referências

bibliográficas (mas sim História e Consciência de Classe) e tampouco problematiza a posição

central que Lukács desenvolve em relação ao pensamento alemão.91 A “imagem” de “assalto

a razão”, bem como de um ciência “burguesa” ou “proletária” seriam frutos do antagonismo

existente no seio da sociedade, mas inadequados para uma análise sociológica da sociologia.

Obviamente, não nos cabe aqui desenvolver uma acareação profunda da posição de

Lukács e Florestan; o importante é nos valer de Lukács para problematizamos – e assim

melhor compreendermos – o pensamento de Florestan.

Na verdade, o problema central que tratamos aqui é que o posicionamento de Lukács é

diferente do de Florestan Fernandes, o filósofo húngaro parte do processo de decadência

88 “Acho que uma das melhores reflexões marxistas a respeito de como a ideologia pode ser limitativa é a análise que Lukács faz da limitação da consciência burguesa e, mesmo, do conhecimento científico infiltrado por ideologias burguesas”. FERNANDES, Florestan. A condição de sociólogo. São Paulo: Hucitec, 1978, p. 117. 89 “Note-se, não suponho que exista uma sociologia ‘clássica’; tampouco me proponho dar um balanço global nas várias tendências que, à distância, poderíamos designar como clássicas, na sociologia. [...] Podemos distinguir, na contribuição dos autores que podem ser entendidos como ‘clássicos’, o delineamento (e por vezes o desenvolvimento lúcido) da problematização teórica e prática da sociologia e dos seus campos fundamentais”. Ib., A natureza sociológica da sociologia. São Paulo: Ática, 1980, p. 19. 90 Ibid., p. 20. 91 Constatamos na biblioteca de Florestan Fernandes – que foi conservada como o autor a deixou em sua morte no Acervo Especial Florestan Fernandes na Biblioteca comunitária da UFScar – que existe um exemplar de El Asalto a la razón. No entanto não encontramos no livro suas, muito comuns, anotações de leitura; o que obviamente não significa que o autor não tenha lido o livro, sendo apenas um indício de que se o fez provavelmente não foi de forma sistemática. Mas é importante lembrar que Florestan coordenou uma organização de textos sobre Lukács feita por José Paulo Neto e publicada em 1981(A natureza sociológica foi concebida em 1978) que possui como um de seus capítulos “A crítica marxista da sociologia” que traz, entre outros, um trecho de El Asalto a la razón (traduzido ali como A destruição da razão).

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burguesa, que o próprio Marx já havia indicado,92 e, principalmente, em El Asalto a la razón,

da ciência burguesa como expressão ideológica ligada visceralmente à particularidade

histórica alemã em que se desenvolveu e a fase imperialista do capitalismo, demonstrando a

determinação social do pensamento – como Marx faz em diversos escritos como: A Ideologia

Alemã, em relação a impotência revolucionária da burguesia alemã plasmada no pensamento

idealista dos neo-hegelianos, e A Miséria da Filosofia, em relação ao caráter pequeno-burguês

do pensamento de Proudhon, etc. Assim, destaca justamente a decadência do pensamento

burguês que se expressa na sociologia como necessidade social de classe “resposta aos

problemas colocados pelo desenvolvimento social do capitalismo”.93

Florestan busca desenvolver reflexão por momentos semelhante, já que “não visa a

negar ou pôr em dúvida tal conexão da sociologia” com a sociedade, ressaltando que “se

existe uma conexão, ela precisa ser vista como totalidade: a sociedade capitalista é uma

sociedade antagônica, tanto estrutural quanto historicamente”.94 No entanto, o ponto central de

afastamento entre os dois autores é que Florestan compreende que não se deve “ceder” a uma

linguagem cômoda que separe uma “‘ciência burguesa’ e por derivação [uma] ‘sociologia

burguesa’” de uma ciência e uma sociologia proletária. Deve-se tratar da ciência como uma

esfera polarizada, ou seja, “temos duas polaridades extremas (observe-se: não uma dicotomia,

pois não se pode enfiar no mesmo saco os vários representantes dessas polaridades)”.95 E

assim, tratar a ciência sociologia de outra forma seria, para o autor, descartar os problemas

reais.

A sociologia, enquanto ciência, seria uma totalidade polarizada; um pólo desta

sociologia seria a dimensão burguesa, “todavia, ao tomarmos essa perspectiva, não podemos

ignorar que a essa dimensão corresponde outra, que não é simétrica – mas antagônica, em

diversas direções e segundo vários níveis de profundidade”,96 que é a dimensão “anti-

burguesa” de várias graduações que, por exemplo, passam por “Rousseau, Saint-Simon ou

Fourier, Proudhon, Marx e Engels na evolução do pensamento sociológico clássico que

oscilou na direção da crítica da ordem ou se identificou com a sua rejeição”.97

92 “Significou o dobrar de sinos pela ciência econômica burguesa. Agora não se trata mais de saber se este ou aquele teorema é verdadeiro, mas sim se é útil ou prejudicial ao capital, cômodo ou incômodo, contrário ou não aos regulamentos da polícia. Em lugar de pesquisa desinteressada, temos a atividade de espadachins assalariados; em lugar de uma análise científica despida de preconceitos, a má consciência e a meditação apologética”. Karl MARX apud Georg LUKACS. In: NETTO, José Paulo. (org.) Lukács: sociologia. São Paulo: Ática, 1981, p. 110. 93 NETTO, José Paulo. (org.) Lukács: sociologia. São Paulo: Ática, 1981, p. 120. 94 FERNANDES, Florestan. A natureza sociológica da sociologia. São Paulo: Ática, 1980, p. 19. 95 Ibid., p. 20. 96 FERNANDES, Florestan. A natureza sociológica da sociologia. São Paulo: Ática, 1980, p. 20. 97 Ibidem.

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Ou seja, por um lado Lukács parte da especificidade da sociologia como solução

burguesa a problemas históricos, por outro, Florestan parte da sociologia como esfera própria,

que incorpora tanto as respostas específicas da burguesia – no caso “clássico”, com a

autoconsciência da burguesia em formação que exige algum grau de racionalidade e

historicidade – como as respostas específicas do pensamento anti-burguês. A sociologia

enquanto ciência torna-se assim uma “ciência base” da totalidade do pensamento sobre a

sociedade, que se encontra fragmentada e polarizada:

Quando se tomam, em conjunto, autores que vão de Comte a Marx, Le Play, Durkheim, Mauss, Tönnies, Weber e Mannheim, por exemplo, tem-se um desdobramento das várias problematizações possíveis, essenciais para cada campo da sociologia, os recursos de investigação, de descrição, análise e interpretação dos fenômenos, os diversos modelos de explicação logicamente necessários e as possibilidades (ou as dificuldades) de uma unificação teórica (que não pode ser proposta apenas como um problema epistemológico, já que o estilhaçamento da sociologia só pode ser superado após a desagregação da ordem social antagônica existente).98

É dizer, enquanto corte epistemológico, não tem o poder de fusão, apenas de

aglutinação, pois, a fusão caberia à realidade social; é dizer, na medida em que a sociedade

superasse a divisão das classes sociais estaria dada a condição para eliminar a polarização da

ciência, mas antes disso seria impossível realizar esta unificação através do esforço teórico-

metodológico.

Eis o fato capital: antes da crise do capitalismo e de sua civilização, as contradições do capital industrial, do regime de classes e do Estado capitalista cindiram irremediavelmente a sociologia tanto metodológica, quanto lógica e ontologicamente. Ao mesmo tempo, tornaram impraticável o aproveitamento ‘unificador’ das vantagens que advieram da rapidez com que, por via da filosofia e da crítica do modelo naturalista de explicação científica (às vezes meramente implícita nas soluções adotadas), a sociologia alcança uma notável maturidade lógica e epistemológica.99

Mas, algumas vezes, a forma que a questão é colocada por Florestan, parece dar a

possibilitar que o corte epistemológico escape da determinação social. Parece-nos que, em

alguma medida, a posição adotada por Florestan desencarna a sociologia de seus autores

específicos e das ligações particulares que estes possuem com o mundo e, com isso, do caráter

específico que a totalidade destes pensamentos ganham na luta de classes. A luta de classe

passa para o âmbito da disputa ideológica e utópica dos dois pólos que tentaram se apropriar

98Ibid., p. 28. Grifos do autor. 99 FERNANDES, Florestan. A natureza sociológica da sociologia. São Paulo: Ática, 1980, p. 28.

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da esfera científica e, assim, ideologia e utopia tornam-se mecanismos de controle sobre o

pensamento de cada pensador em seu pólo.

Ou seja, Florestan parte em muitos casos da “tradição positivista” – o que não

significa dizer que Florestan fosse um positivista – que terá a sociologia como “ciência base”

ou “ciência dos homens”, ao contrário do que ele mesmo reconhece no pensamento de Marx e

Engels, que estariam na tradição dialética:

Essa definição comprova que, no pólo revolucionário da sociedade de classes, a história aparece como ciência inclusiva e se configura como a ciência dos homens. Embora se possa encarar o marxismo como uma sociologia (como assinalam K. Korsh e outros autores), para Marx e Engels o ponto de vista central, unificador e totalizador é o da história. Contudo, é preciso tomar em consideração que, para eles, o histórico é intrinsecamente sociológico, pois deve explicar o lado social do humano e, reciprocamente, o lado humano do social. Isso desloca e inverte a tradição positivista, já que o “método” seria, implicitamente, a sociologia (e não a história) e a “ciência básica” seria, implicitamente, a história (e não a sociologia).100

Em grande medida, a reflexão de Florestan que arrolamos na problemática acima

pauta-se na relação entre sociologia e marxismo no momento do “capitalismo competitivo”,

que é também um dos momentos que Lukács aborda em sua argumentação. Como já

apontamos, sob o capital monopolista as possibilidades da sociologia enquanto ciência que

vincule conquistas sociais significativas fica mais restrita, na medida em que o capital

monopolista passa a requisitá-la enquanto técnica para seus fins imediatos, ou, dito de forma

mais abrangente, “na relação entre ciência e sociedade, sob o capitalismo monopolista, aquela

é completamente submetida aos ‘interesses da ordem’, o que a converte em uma força cultural

revolucionária, mas domesticada e poluída”.101

Como a burguesia do capitalismo competitivo, a burguesia do capi-talismo monopolista coloca-se diante da história como se a história fosse uma história natural. Ou a “democracia” – com a decência, a civilização e os valores do homem; ou o “comunismo” – com a degradação, a barbárie e o despotismo total. A diferença marcante está em que, sob o capitalismo competitivo, mesmo os sociólogos conservadores viam a ordem como um “fato histórico”. Os soció-logos “liberais” ou “conservadores” de hoje só concebem a mu-dança como uma reprodução reforçada da ordem e a desintegração da ordem como o desastre final da humanidade.102

De qualquer forma, o ponto basilar que temos que reter, acima de qualquer celeuma

teórica, é que, apesar desta tensão, não bastará para Florestan “roçar” nos elementos

100 Ib., (org.) Marx/Engels: história. São Paulo: Ática, 1983, p. 31. Grifos do autor. 101 Ibid., p. 53. Grifos do autor. 102 FERNANDES, Florestan. (org.) Marx/Engels: história. São Paulo: Ática, 1983, p. 72. Grifos do autor.

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estruturais da sociedade, mas desvendá-los e, para isso, buscar suas conexões íntimas com os

elementos históricos que visem à superação da sociedade capitalista, através de processos

históricos revolucionários. Isto significa que Florestan terá que integrar à suas análises

sociológicas uma dimensão histórica que acaba por alargar o métier sociológico, mas que fica,

nesta composição que apresentamos acima, dentro da sociologia ciência base do pensamento

social, mesmo porque dentro de tal compreensão a própria história parece ser incorporada

como esfera da sociologia. De qualquer forma, temos que tentar entender como funciona esta

incorporação da história – ou, se se preferir, do “materialismo histórico” – em sua elaboração

teórica.

1.3 A análise estrutural-histórica e a história em processo

Se tomarmos a concepção florestaniana de revolução burguesa temos uma ideia de

como o autor compreende o que denomina conceitos estruturais; uma vez que, para Florestan,

“o conceito de revolução burguesa não é um conceito particular, ele é um conceito estrutural

(ou, como se diria em sentido marxista: uma categoria histórica), que tem de ser aplicado de

forma mais ou menos generalizada”.103 Ou seja, um conceito estrutural é uma categoria

histórica nos moldes marxistas, como o modo de produção capitalista, segundo o próprio

Florestan exemplifica. Tais conceitos estão intrinsecamente relacionados com o desenrolar

histórico, mas, analiticamente, história e estrutura são consideradas de forma diversa como

fica claro ao acompanharmos sua análise do caso cubano.

Para nosso corte interpretativo, o que se impõe em primeiro plano é a peculiaridade de Cuba (uma peculiaridade que tem duas faces, uma histórica e outra estrutural; a histórica “não se repete” fora de Cuba, mas a outra é universal entre os países da América Latina que permaneceram na situação neocolonial até meados do século 20, dotados ou não de um Estado Nacional).104

Da mesma forma, em suas análises sobre o Brasil, o sociólogo paulista pauta-se pela

articulação entre estas duas faces da realidade social: a face particular (ou histórica) e a face

universal (ou estrutural). Para ele as faces possuem “dinâmicas”105 distintas, mas

correlacionadas: na face histórica se concentram principalmente os fatores “mais dinâmicos”

103 Ibid., p. 99. Grifos do autor. 104 FERNANDES, Florestan. Da guerrilha ao socialismo: a revolução cubana. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 40. Grifos nossoss. 105 Para Gabriel Cohn: “A referência à dinâmica (que também é imensamente importante por si mesma, e aparece ao longo da obra [A Revolução Burguesa no Brasil] em contraste com a dimensão ‘estrutural’) pode ser entendida como designando a presença, ou o desencadeamento, de uma força; o que, em termos sociológicos, se traduz por uma conduta social compartilhada, dotada de intenção e objetivo próprio segundo a percepção mais ou menos inteligente que seus agentes (vale dizer, figuras capazes de definir opções) têm da sua situação e dos seus objetivos”. COHN, Gabriel. Florestan Fernandes – A revolução burguesa no Brasil. In: MOTA, Lourenço Dantas (Org.) Op. Cit., p. 401.

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– sendo da essência destes fatores serem mais flexíveis que os fatores de estrutura. O que não

significa que, para Florestan, a face estrutural não seja também histórica, ela é

necessariamente um produto histórico:

Sem dúvida, as alterações estruturais também são história (história em profundidade e de longa duração); e as transformações históricas, quando afetam o comportamento coletivo e o “destino” de uma sociedade nacional, também são estruturais (as estruturas em emergência e em formação, que, no caso cubano, revelam uma guinada por causa da “revolução na revolução”: o salto do capitalismo ao socialismo). 106

Junto a estas caracterizações de história e estrutura, observamos também a utilização

da expressão “longa duração” e, muitas vezes, como no caso acima, relacionando-a a ideia de

profundidade histórica e a elementos estruturais. Esta forma de utilização aparenta-se, em um

primeiro momento, a concepção muito conhecida do historiador francês Fernand Braudel,107

que se vale em sua teoria da história tanto do conceito de estrutura como o de longa duração

e de história em profundidade.108

No entanto, na concepção de Florestan é, justamente por ser histórica, que a face

estrutural é passível de mudanças que são influenciadas pelas “tormentas” que se dão em

nível histórico, se adaptando “ao presente e ao futuro (isto é, se atualizam em sentido geral, e

se historicizam, em sentido particular)”. Em contrapartida, os elementos estruturais podem

determinar, com menor ou maior influência, a face mais dinâmica do processo histórico

global:

Se certos condicionamentos estruturais se repetem no plano dinâmico, isso significa que as mesmas forças sociais, empenhadas na “conservação da ordem”, também controlam os processos de funcionamento, que implicam mudança social gradual, e os

106 FERNANDES, Florestan. Da guerrilha ao socialismo: a revolução cubana. São Paulo: Expressão Popular, 2007, pp. 97-98. 107 Fernand Braudel é um dos mais importantes historiadores da Escola do Annales e que nos anos 30 colabora na organização da Universidade de São Paulo. Florestan, em 1964, chega a citar uma influência de Braudel, mas de forma muito genérica em uma carta para Bárbara Freitag onde escreve: “A respeito das influências intelectuais, é preciso não esquecer que em São Paulo houve uma tríplice influência nas ciências sociais (pelos professores que lecionavam aqui): Roger Bastide, Levi Strauss, Arbousse Bastide, Monbeig, Braudel, Gurvitch, Hugon, Maugué, e tantos outros, acentuaram a influência francesa na sociologia, na política, na economia e na filosofia”. FREITAG, Bárbara. Florestan por ele mesmo. Estudos Avançados - IEA-USP, São Paulo, n. 26, 1996, p. 137. 108 Para Braudel esta longa duração trata-se de uma “articulação, arquitetura, porém mais ainda uma realidade que o tempo utiliza mal e veicula mui longamente”. Estas estruturas são também sustentáculos e obstáculos para os indivíduos e suas experiências. Como, por exemplo, a coerção geográfica ou “quadros mentais” que persistente por um longo período histórico: “certas estruturas, por viverem muito tempo, tornam-se elementos estáveis de uma infinidade de gerações: atravancam a história, incomodam-na, portanto, comandam-lhe o escoamento. Outras estão mais prontas à se esfarelar”. Ou ainda: “É em relação a essas extensões de histórica lenta que a totalidade da história pode se pensar, como a partir de uma infra-estrutura. Todas as faixas, todos os milhares de estouros do tempo da história se compreendem a partir dessa profundidade, dessa semi-imobilidade; tudo gravita em torno dela”. BRAUDEL, Fernand. Escritos sobre história. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 49 e p. 53.

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processos de inovação, diferenciação e estratificação, que implicam mudança social evolutiva.109

Ou seja, a interpretação de Florestan mantém apenas uma relação semântica com a

concepção de Braudel – principalmente na imagem de “longa duração” – já que apesar de

utilizar termos iguais aos do historiador, não toma vários outros elementos centrais de sua

teoria histórica e mesmo no que diz respeito aos termos equivalentes, como a “longa duração”

e “história em profundidade”, não há um tratamento idêntico em ambos os autores.110

As estruturas de longa duração, em Braudel, atravessam vários séculos – e mesmo

milênios –, enquanto que Florestan chega a afirmar que “ao contrário do primeiro mundo, na

periferia (no terceiro e quarto mundos), os processos envolvidos são de longa duração,

seculares ou semiseculares”.111 Mas este não é o ponto que mais afasta a posição dos dois

autores. O historiador francês engessa a atividade humana; em sua teoria, “o homem perdeu

todo o domínio sobre a sua própria historicidade”112 e, neste sentido, lutar por uma revolução,

por exemplo, torna-se uma atividade de “delinqüência assassina”. Para ele, os processos

revolucionários vividos historicamente abalaram apenas a superfície histórica, enquanto a

sociedade e o poder permaneceram intactos.113

De fato, a concentração de poder na concepção de Florestan também atravessa as

várias eras históricas do Brasil com uma estrutura profunda de longa duração; mas em

momento algum, esta estrutura torna-se um elemento intransponível pela atividade humana,

pelo contrário, é acessível à luta que se desenvolve de forma mais epidêmica na história em

processo. Florestan compartilha menos ainda da ideia de que “as sociedades só são válidas

quando são dirigidas por uma elite”,114 posição impensável em qualquer momento da obra

florestaniana.

Em alguns momentos Florestan contrapõe a história de longa duração a uma história

de conjuntura ou de superfície; mas estas duas dimensões mantêm, em seu pensamento, um

diálogo constante, em que os elementos estruturais refletem e reproduzem a ordem

estabelecida – o que os torna, de fato, menos maleáveis, adquirindo uma rigidez que por vezes

109 FERNANDES, Florestan. Classes sociais na América Latina (1971). In: Ib., Capitalismo dependente e classes sociais na América latina. Rio de Janeiro: Zahar, 1973, pp. 76-77. 110 Vale lembrarmos que Braudel desenvolveu sua teoria histórica meio a um debate com a sociologia, que ganhava, pós Segunda Guerra, grande expressividade e ao mesmo tempo ofuscava a história. A duração braudeliana visava “recuperar a globalidade dos fenômenos humanos” condicionando todas as ciências sociais e conferindo um papel central à história. DOSSE, François. História em migalhas: dos Annales à Nova história. Bauru: Edusc, 2003, p. 166. 111 FERNANDES, Florestan. Missão Impossível (1990). In: Ib., Brasil: em compasso de espera. São Paulo: Hucitec, 1980, p. 64. 112 “‘o que eu faço, é contra a liberdade humana’, afirma Fernand Braudel. O homem nada pode contra as forças seculares que o condicionam e contra os ciclos econômicos da longa duração”. DOSSE, François. Op. Cit., p. 176. 113 Ibid., pp. 180-181. 114 BRAUDEL, Fernand apud DOSSE, François. Op. Cit., p. 179.

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nos lembra o posicionamento de Braudel –, enquanto os elementos históricos refletem a luta

de classes in flux:

É doloroso – mas é sabido – que as personagens guindadas a certos papéis históricos, tenham ou não imaginação para desempenhá-los e sejam ou não personalidades históricas, não desfrutam da liberdade de realizar o que querem. A História de longa duração não consulta a sua vontade. A História de conjuntura e de superfície só nas aparências parece levar em conta os seus alvos e objetivos. Por isso, é tão difícil ser um Cesar, um Napoleão, um Bismarck, um Lincoln ou um Getúlio Vargas, estadistas que entendem as limitações do seu espaço e buscam o esteio de grupos de personagens, de grandes massas humanas e de processos históricos que conferem realidade às políticas que precisam ser postas em prática. Eles fazem menos História do que gostariam, mas não a atrapalham e, por sua intuição, capacidade imaginativa e vontade de poder, por vezes a ajudam e se tornam instrumentais para as transformações que mudam a face e a organização das nações ou do mundo.115

Mas, apesar desta rigidez das estruturas, há uma constatação recorrente de que o

resultado da luta de classes, em fluxo, tanto influencia a reorganização estrutural, como, por

sua vez, a organização estrutural influencia a própria luta, fazendo com que nesta dinâmica da

luta de classes estejam presentes tanto elementos estruturais, quanto elementos históricos, o

que torna as classes e a luta de classes um importante referencial analítico em sua concepção.

A classe não é um pé-de-chumbo; ela é o elemento central, que condiciona e regula o vigor do movimento e do partido. É por isso que as pessoas que partem da reflexão localizando-se no partido não possuem um ponto de referência correto. Porque elas perdem o elemento estrutural e histórico, que serve de baliza para que se entenda não só o presente mas o fluir desse presente na direção do futuro. Os processos se abrem para a frente, não para trás. Para trás está alguma coisa que nós pretendemos morta, que nós queremos destruída.116

Para além de um referencial analítico, a luta de classes surge como ponto fundamental

para o analista que visa não apenas resgatar elementos estruturais e históricos que expliquem

a realidade social, ela também traz a consciência de como intervir no processo de mudança

social. Assim, junto às estruturas, com seus fluxos mais lentos, corre a história em processo

que é passível de intervenção por ser

a história dos homens, o modo como eles produzem socialmente a sua vida, ligando-se ou opondo-se uns aos outros, de acordo com sua posição nas relações de produção, na sociedade e no Estado, e gerando, assim, os eventos e processos históricos que evidenciam

115 FERNANDES, Florestan. Nem ditador nem Kerensky (1987). In: Ib., A constituição Inacabada: Vias Históricas e Significado Político. São Paulo: Estação Liberdade, 1989, p. 37. 116 FERNANDES, Florestan. Movimento socialista e partidos políticos. São Paulo: Hucitec, 1980, p. 11.

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como a produção, a sociedade e o Estado se preservam ou se alteram ao longo do tempo.117

Florestan distingue também dois momentos dentro do que passou a chamar de história

em processo. Por um lado, temos a história em processo em um momento distante, da qual se

resgatam acontecimentos de um momento já passado; e, por outro, temos a história do

presente in flux (ou história em processo aberto para o futuro). Ambas são passíveis de

análise e interpretação e é justamente a segunda que deve coordenar o direcionamento

analítico do pesquisador, já que o resgate histórico dentro do marxismo visa à transformação

da organização social. Destarte, o papel do pesquisador permite compreender melhor tais

processos históricos em suas oscilações no plano das estruturas, instituições, funções sociais e

dinamismos, porém, “o sociólogo fica preso ao fluxo do presente e não encontra na sociologia

uma fonte de engajamento nas práticas diretas das classes prejudicadas”:

Aí, cabe ao militante socialista e comunista ir mais longe. Recorrer à ótica proletária, mesmo que ela ainda esteja adaptando-se a uma abertura de foco máxima, e olhar a partir dela as exigências do presente. Compreender (e ajudar os operários a compreender) que luta de classes é violência recíproca e que as classes trabalhadoras só podem liberar-se, em qualquer sentido e em qualquer direção, através do emprego maduro de sua capacidade política de usar construtivamente a violência revolucionária.118

Em suma, cabe ao pesquisador, em sua dupla condição, compreender a história in flux,

através de uma leitura que fuja de uma “visão mecanicista da ‘evolução do socialismo’ e das

‘lutas sociais’”, já que “o condicionamento estrutural e os ritmos históricos exigem que se

abra o quadro, para apanhar o concreto como ‘síntese de muitas determinações, isto é,

unidade do diverso’”.119

É no nível do processo histórico – ou seja, particular – que o pesquisador e o militante

devem identificar as saídas para uma perspectiva de superação da sociedade de classes, que

cumpram funções próximas as que a guerrilha cumpriu em Cuba: que levou “a história ao

plano das estruturas e, inversamente, elevou as estruturas ao plano da história (ou seja,

acelerou a desagregação da velha ordem social e permitiu a rápida acumulação de condições

favoráveis a construção da nova ordem social)”.120

Parece-nos aqui conveniente apontarmos algumas possíveis influências do conceito de

estrutura em Florestan, isto devido à própria ambigüidade que o termo ganha em várias

vertentes e mesmo na polarização do pensamento florestaniano.

117 Ib., (org.) Marx/Engels: história. São Paulo: Ática, 1983, p. 47. Grifos do autor. 118 Ib., A ditadura em questão. São Paulo: T. A. Queiroz, 1982, p. 162. 119 FERNANDES, Florestan. Apontamentos sobre a “teoria do autoritarismo”. São Paulo: Hucitec, 1979, p. 72. Grifos do autor. 120 Ib., Da guerrilha ao socialismo: a revolução cubana. São Paulo: Expressão popular, 2007, p.115.

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A primeira nos é apresentada por Antonio Candido dentro de uma concepção global de

método em Florestan. Segundo o autor de Os Parceiros do Rio Bonito a questão da estrutura

em Florestan está ligada a procedimentos de cunho funcionalista. Assim pontua Candido:

Primeiro, a clarividência e a coragem com que Florestan define a sua posição metodológica, mostrando a diferença de requisitos entre a análise sincrônica e a análise diacrônica, para desta forma demonstrar a legitimidade dos procedimentos de cunho funcionalista, desde que associados ao senso dinâmico da estrutura (conceito cuja descoberta, através de Radcliffe-Brown, foi um dos impactos em nossa geração). Ao mesmo tempo, mostra o papel e os limites do método dialético, que se recusa a encarar como panacéia ou pé-de-cabra.121

Esta análise de Candido prefacia uma longa entrevista de 1978 onde Florestan

apresenta, entre outras, as análises que realizou em seu período de formação – ou seja, de seu

mestrado (A Organização Social dos Tupinambá; defendida em 1947) e doutorado (A Função

Social da Guerra na sociedade Tupinambá de 1952) – e na qual responde a uma questão que

lhe foi feita sobre a relação entre a análise funcionalista e a análise dialética.

Como vemos na entrevista, Florestan compatibiliza ambos os métodos, lançando

mãos, para tanto, de uma diferenciação do foco de cada análise: especificando se o que está

em análise envolve relações diacrônicas ou sincrônicas.

[...] hoje se condena de maneira preconceituosa e dogmática toda espécie de análise funcional. Todavia, eu duvido que alguém possa tratar as relações sincrônicas de uma perspectiva dialética. Ou falsifica a dialética, ou falsifica as relações sincrônicas. Não há talento que resista a essa prova. Ou, então, a análise dialética não é uma tentativa de explicar a transformação da sociedade; é uma tentativa de mistificar.122

O interesse de Florestan ao tratar dos Tupinambá, por exemplo, não era o de analisar

as transformações da sociedade, mas sim “tentava descobrir como a sociedade tupi recuperava

o passado de maneira incessante” realizando uma reprodução estática da ordem:

A história projeta o homem em um passado que se faz presente ou um presente que recupera o passado – não existe a negação do passado pelo futuro mediante um presente que coloca o homem em tensão com a sua época. Em conseqüência, a tradição fornece, objetivamente, o padrão pelo qual se avalia a inovação.123

Segundo o sociólogo, as análises desenvolvidas em seu mestrado e doutorado tiveram

uma importância principalmente para a sua formação e apenas como produto do acaso para a

sociologia no Brasil, pois se tornaram “um marco nas investigações das sociedades primitivas

121 CANDIDO, Antonio apud FERNANDES, Florestan. A condição de sociólogo. São Paulo: Hucitec, 1978, p. XII. 122 FERNANDES, Florestan. A condição de sociólogo. São Paulo: Hucitec, 1978, p. 87. 123 Ibid., p. 88.

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no Brasil”, justamente “no momento em que Radcliffe-Brown condenava a reconstrução

histórica como técnica de observação, análise e interpretação, e no qual pretendíamos

construir uma antropologia social rigorosa”.124 Por tanto, Radcliffe-Brown acabava por se

opor aos trabalhos realizados por Florestan que recuperava historicamente a sociedade

Tupinambá:

Penso que mostrei que se pode explorar a reconstrução histórica com o mesmo rigor que a pesquisa de campo e que demonstrei que éramos capazes de estudar as sociedades tribais, por nossa conta e com os nossos meios, segundo os requisitos descritivos e interpretativos da ciência moderna. [...] Contudo, nem a investigação nem os seus resultados, como eles aparecem nos dois livros [mestrado e doutorado], devem ficar sujeitos às oscilações da moda, às implicações da substituição da análise estrutural-funcional por não sei que tipo de “estruturalismo”.125

Florestan diferencia sua análise estrutural-funcional em relação ao funcionalismo da

sociologia sistemática: “trata-se da análise estrutural-funcional que pode ser – e deve ser –

explorada pela sociologia descritiva, pela sociologia comparada e pela sociologia diferencial”.

É dizer, a análise estrutural-funcional é a análise adequada para estas vertentes da sociologia

descritiva, comparada e diferencial, pois as conexões procuradas neste tipo de análise não são

conexões que exijam a análise dialética:

Ou a gente falsifica a análise dialética, no sentido vulgar da palavra falsificar – para converter a análise dialética em uma espécie de cafiaspirina – ou então a gente procura a especificidade da análise dialética, descobrindo que a análise dialética só é válida para determinados tipos de problemas e, principalmente, para os problemas que aparecem nos povos que têm um determinado tipo de história, a qual nasce da estrutura antagônica do modo de produção e de organização estratificada da sociedade, e se caracteriza pelo fato do presente negar o passado, como um elo com um futuro que não repete as “estruturas existentes”, porque no processo de se objetivarem e se reproduzirem elas se transformam. 126

De forma que a análise dialética é “compatível com os problemas que surgem dentro

do campo da sociologia diferencial ou histórica” e a “a análise funcional aparece mais ao

nível dos problemas com que se defronta o sociólogo na sociologia descritiva e na sociologia

comparada”; na análise diferencial ou histórica o pesquisador, “opera com uniformidades de

seqüência”, buscando explicar “a transformação de estruturas dentro do tempo histórico

contínuo”, enquanto, na análise estrutural-funcional “quando envolve um modelo lógico

completo, opera só com uniformidades de coexistência”:

124 Ibid., pp. 88-89. 125 Ibid., p. 89. 126 FERNANDES, Florestan. A condição de sociólogo. São Paulo: Hucitec, 1978, pp. 90-91.

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Portanto, ela toma correlações em lapsos de tempo muito curtos e, às vezes, até no tempo físico e psicológico de duração dos contatos e das interações entre pessoas ou grupos e do funcionamento das instituições. De outro lado, quando ela é aplicada na sociologia comparada, com freqüência, o que interessa, teoricamente, ao investigador é a persistência das causas; o que se busca saber é se certas estruturas se mantêm e se repetem ou se as mesmas causas se mantêm presentes. Nesse caso, a análise funcional procura descobrir e explicar como se processa a persistência das causas.127

Ao comparar a análise estrutural-funcional que praticou nos trabalhos sobre os

Tupinambá com a análise dialética que, segundo ele, Marx praticou, o autor acaba por

compatibilizá-las – ao ponto de entender que o próprio Marx e outros autores marxistas como

Lenin (em O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia) e Lukács (em História e

consciência de Classe) lançaram mãos da análise estrutural-funcional:

Por exemplo, quando Marx em O Capital, elabora um esquema no qual projeta o tempo de trabalho necessário para a reprodução do trabalhador e o produto produzido, o que está em jogo não é uma análise dialética, porém uma análise estrutural-funcional. A seguir, interpretativamente, ele elabora dialeticamente as descobertas dessa análise, incorporando-as nos dinamismos de uma ordem social fundada no antagonismo das classes. Passa, pois, das “estruturas elementares e gerais”, para os “grandes processos históricos”, o que não seria possível se não tivesse feito a análise estrutural-funcional e utilizado os seus resultados para a compreensão das relações de classe, da dominação de classe, da concentração do capital, da formação de um exército industrial de reserva, da reprodução da forma capitalista de produção e em seu desmoronamento. Todavia, ele emprega a ótica estrutural-funcional como uma técnica de observação e de análise. O que permite falar, em certo sentido, era uma compatibilização”.128

Sua conclusão é que a análise estrutural-funcional é um instrumental analítico “para

assessorar e acompanhar a realização do plano: se, realmente, o plano está ou não alterando as

condições de existência: como a intervenção na realidade está sendo recebida em uma dada

comunidade”, já que neste tipo de análise “se está trabalhando com concomitantes e não com

uniformidades de seqüência”. Podendo ser utilizada, por exemplo, “onde o socialismo de

Estado está criando condições novas de passagem para uma sociedade comunista” e, assim,

possibilitando a reflexão sobre “os aspectos das condições do planejamento nessa situação

histórica-limite”.129

127 Ibid., p. 102. 128 FERNANDES, Florestan. A condição de sociólogo. São Paulo: Hucitec, 1978, p. 104. 129 Ibid., p. 107.

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Encontramos assim os conceitos de estrutura-histórica e a história em processo no

interior da análise dialética, pois se voltam aos elementos diacrônicos; enquanto a análise

estrutural-funcional ganha um caráter instrumental para lidar com elementos sincrônicos:

A análise dialética é importante para o planejamento quando se trata da estratégia dos planos. Mas, quando se trata da tática dos planos, aí a análise estrutural-funcional é que vem a ser importante, porque todo o assessoramento e toda a verificação dos resultados e a própria alteração dia a dia dos planos de intervenção, com a adequação deles seja às transformações ocorridas, seja às tentativas de superação das transformações frustradas, tudo vem a depender de análises que são feitas na base das relações de concomitância.130

Florestan Fernandes afirma trabalhar “simultaneamente com as duas perspectivas de

análise, completando-as e corrigindo-as”, legitimando, ao mesmo tempo, o funcionalismo

como prática, mesmo dentro da tradição marxista. Isto significa dizer que a influência do

“senso dinâmico da estrutura”,131em Florestan Fernandes, poderia ter nascido tanto do próprio

Marx – o que nos parece improvável – como do funcionalismo estrutural de Radcliffe-Brown

ou do próprio funcionalismo de Durkheim, já que a própria construção de Brown e outros

antropólogos ingleses partem das teorias durkheminianas.132 Obvio que, provavelmente,

Antonio Candido esteja certo ao apontar Radcliffe-Brown como influência principal em

relação ao “senso dinâmico da estrutura”, pois vivenciou o processo de absorção destes

conceitos, por parte de Florestan, na medida em que este se desenrolou cronologicamente.

Apenas polemizamos acima como um elemento, bastante exterior ao pensamento marxista

clássico, acaba sendo resgatado por uma leitura que parte de preocupações sociológicas.

130 Ibidem. 131 Estrutura é um termo que recebeu diversas conceituações na sociologia e antropologia, o primeiro a utilizar o termo foi Spencer ao tratar da evolução da sociedade comparando-a com organismos vivos; no caso do historiador Braudel, que tratávamos a pouco, o termo teve influência (ao se contrapor) do método estruturalista de Levi-Strauss, que buscava na lingüística suas bases conceituais. No caso de Radcliffe-Brown, “a continuidade da estrutura social não é estática, mas dinâmica, pois as relações reais de pessoas e grupos se alteram: a vida social renova constantemente a estrutura social. Enquanto a estrutura real se modifica, a forma estrutural geral permanece relativamente estável durante determinado período de tempo; ela muda gradativamente e, em certas circunstâncias, com relativa rapidez, como ocorre nas revoluções e guerras. Na opinião de Radcliffe-Brown, mesmo as transformações revolucionárias permitem a manutenção de alguma continuidade, pois todo o sistema social se caracteriza pela unidade funcional, com as diversas partes relativamente bem integradas. Assim, a unidade funcional é um ‘estado de equilíbrio’ para o qual tendem os sistemas sociais. As perturbações internas (revoluções) e as externas (guerras) dão origem a reações que contribuirão para o estabelecimento do equilíbrio”. LAKATOS, Eva Maria. Sociologia Geral. São Paulo: Atlas, 1985, p. 161. 132 As premissas teóricas da antropologia britânica recorria a definição de função de Durkheim vinculada a definição de estrutura social “concepto éste que a su vez puede demostrarse que se inspira principalmente en la insistencia de Durkheim en la solidaridad social”: “La combinación de ‘función’ con ‘estructura social’ ha dado origen a la denominación, fea pero descriptiva, de ‘funcionalismo estructural’. Radcliffe-Brown puso el mayor interés en distinguir las funciones estructurales de aquellas otras funciones que Bronislaw Malinowski, y otros con él, asociaban a las necesidades biopsicológicas de los individuos. Para Radcliffe-Brown la única definición aceptable de función era la ‘contribución’ que una institución hace al mantenimiento de la estructura social”. HARRIS, Marvin. El desarrollo de la teoria antropologica. Historia de las teorias de la cultura. Espanha: Siglo XXI, 1996, p. 445.

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Outra possível influência é a apontada por Arruda, que verifica a utilização por parte

de Florestan Fernandes do estrutural funcionalismo de origem parsoniana; vejamos por suas

próprias palavras:

Nessa linha de pensamento, outras identificações são pertinentes, conferindo originalidade à análise realizada pelo autor, qual seja, a da forte presença do estrutural funcionalismo. Ou seja, a compreensão da sociedade capitalista dependente é feita levando-se em conta certos modos especiais de estruturação das posições sociais no sistema. Nesse passo, o constructo parsoniano emerge com contundência, através do privilegiamento dos status-papéis, que engendram inovações, conferindo novos significados à conduta, ou então, assimilam orientações de outros posicionamentos.133

Em um texto mais recente, a autora faz uma aproximação entre Florestan e Parsons de

maneira mais genérica, conclui que a utilização que Florestan faz do estrutural-funcionalismo

é um constructo próprio, não tendo um único referencial específico. Mas não deixa de pontuar

a influência do estrutural funcionalismo, com o qual: “Realiza-se a compreensão da sociedade

capitalista dependente, levando-se em conta certos modos especiais de estruturação das

posições sociais no sistema que engendram inovações, conferindo novos significados à

conduta, ou então assimilando orientações de outros posicionamentos”.134

De qualquer forma, é importante ressaltar que Florestan negou utilizar o estrutural-

funcionalismo do tipo parsoniano:

Muitas das críticas, que se fazem ao uso da análise estrutural-funcional, estão ligadas à formalização, à construção de conceitos e, principalmente, à análise axiomática no campo da sociologia sistemática. O que se critica são autores como Parsons e outros – que, realmente lidam com o sistema social concebido no plano a-histórico. É um tipo de construção possível e eu nunca trabalhei nesta área.135

O que não significa que o autor negue Parsons por inteiro, muito menos a sociologia

norte-americana. De maneira que nos parece bastante interessante Arruda demonstrar que,

devido à trajetória pessoal de Florestan Fernandes, ele desenvolverá uma tendência de

constituir uma sociologia ao estilo de trabalho da sociologia norte-americana que encontra

bastante ressonância na Escola Livre de Sociologia e Política onde fez seu mestrado sob

orientação de Donald Pierson.

Neste sentido, há uma problemática de fundo muito maior e que pode ser resgatada a

partir de Wright Mills, em seu livro-manifesto A imaginação sociológica; no qual, como

133 ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. A sociologia no Brasil: Florestan Fernandes e a “escola paulista”. In: MICELI, Sergio. (org.) Op. Cit., p. 183. 134 ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. Metrópole e cultura: São Paulo no meio do século XX. São Paulo: Edusc, 2001, p. 291. 135 FERNANDES, Florestan. A condição de sociólogo. São Paulo: Hucitec, 1978, p. 103.

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primeiro passo, faz uma crítica contundente a Parsons.136 Crítica que se desdobra para grande

parte da sociologia norte-americana dos anos 50 e, em última análise, ao próprio caminho que

as ciências sociais estavam tomando de forma geral – já que os EUA, no final dos anos 50,

eram um centro de referência para sociologia em nível mundial e especialmente para a

sociologia latino-americana.

Neste livro, Mills apela para a recuperação, por parte dos sociólogos, dos “grandes

problemas” e da dimensão da história em suas análises, ou seja, o resgate do que é estrutural e

histórico nas análises sobre a sociedade. Trata-se de um apelo para que se resgate entre os

cientistas sociais uma “imaginação sociológica”, uma postura que estava presente em todos os

clássicos da sociologia e que vinha dando lugar de forma crescente e acelerada a uma

sociologia pautada em empirismos abstratos,137 praticalismos liberais138 e em tendências

burocráticas/tecnocráticas.139

Para Florestan, Mills “erra a mão” em suas críticas à sociologia norte-americana;

vejamos o que fala no caso específico de Parsons:

Ele [Wright Mills] foi injusto com a “grande teoria” (leia-se Parsons), pois deixou de ressaltar o que ela representa em relação a herança da sociologia alemã: 1º) o nível de discussão dos requisitos estruturais e funcionais da vida em sociedade (e também da existência, funcionamento e transformação do sistema social); 2º) os avanços realizados na incorporação das contribuições da psicanálise, da psicologia experimental e de outras correntes da psicologia moderna às categorias abstratas da sociologia; 3.°) a natureza do “equilíbrio social” e sua postulação reversível, estático-dinâmica.140

Este reconhecimento de que Parsons resgata uma determinada herança e que trouxe

contribuições para a sociologia não é contraditório com a citação em que Florestan afirma

nunca ter trabalhado com o estrutural-funcionalismo do tipo parsoniano e tampouco coloca

136 “Comecei este capítulo com uma pergunta: é a grande teoria, tal como representada em The Social System, simples verborragia, ou é também profunda? Minha resposta é: tem apenas 50% de verborragia; 40% é Sociologia de manual didático. Os outros 10%, como Parsons poderia dizer, deixo aberto à investigação dos próprios leitores. Minha investigação sugere que os 10% restantes são de possível uso ideológico – embora bastante vago”. MILLS, Charles Wright. A imaginação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1965, p. 58. 137 “Não obstante, devido ao dogma epistemológico, os empiristas abstratos são sistematicamente a-históricos e não-comparativos. Tratam de áreas de pequena escala e inclinam-se ao psicologismo. Nem na definição de seus problemas, nem na explicação de seus próprios achados microscópios, utilizam-se realmente da ideia básica da estrutura social histórica”. Ibid., 1965, p. 78. 138 “O praticalismo liberal tende a ser apolítico, ou aspirar uma espécie de oportunismo democrático. [...] é congênito às pessoas que, em virtude de suas posições sociais, se ocupam, habitualmente com grau de autoridade, de uma série de casos individuais. [...] Sua visão tende a limitar-se aos padrões existentes, e seu trabalho profissional tende a prepará-los para uma incapacidade ocupacional de elevar-se acima de uma série de ‘casos’. [...] O praticalismo liberal é uma Sociologia moralizante dos ambientes”. Ibid., p. 99. 139 “Adotar a posição tecnocrática, e tentar agir dentro dela como cientista social, é agir como se fossemos realmente um engenho humano. É dentro dessa perspectiva burocrática que o papel público do cientista social é hoje frequentemente colocado. [...] falar de ‘previsão e controle’ sem enfrentar as questões que tais situações provocam é abandonar a autonomia moral e política de possamos dispor”. Ibid., p. 128. 140 FERNANDES, Florestan. A natureza sociológica da sociologia. São Paulo: Ática, 1980, p. 65.

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abaixo toda a crítica que Mills desenvolve; vai mais no sentido de que este último

desconsidere determinadas dimensões positivas em sua crítica. O próprio Florestan

desenvolverá uma crítica ao pensamento parsoniano no mesmo texto, chegando a afirmar que

Parsons e outros sociólogos realizam uma “ablação total do ‘tempo sociológico’ em suas

projeções comparativas verdadeiramente metafísico-monásticas”.141

O fundamental é que a posição geral de Mills, em A imaginação sociológica, lembrará

muito, em muito, o pensamento de Florestan a partir dos anos 70; poderíamos muito bem, por

exemplo, atribuir o excerto abaixo ao sociólogo paulista:

Se quisermos compreender as transformações dinâmicas de uma estrutura social contemporânea, teremos de distinguir sua evolução a longo prazo, e em termos desta indagar: qual a mecânica da ocorrência dessas tendências, que transformam a estrutura da sociedade? É com essas indagações que nossa preocupação chega ao auge, relacionando-se este com a transição histórica de uma época para outra, e com o que podemos chamar de estrutura de uma época.142

De fato, constatamos neste excerto vários dos elementos que viemos problematizando

até agora, inclusive um equivalente da “longa duração”, ou seja, o “longo prazo” que é sem

dúvida mais próximo à utilização feita por Florestan, ou seja, próximo a lógica de aproximar a

sociologia da história, como constatamos nas próprias palavras de Florestan: “essas reflexões

revelam que não fiquei parado. De um lado, continuei a procurar um melhor entendimento

entre sociologia e história. [...] Se me volto, de modo tão incisivo, para os processos de longa

duração, faço isso porque esse é o traço lógico sine qua non da sociologia diferencial (ou

histórica), de Marx aos nossos dias”.143

Mas, por outro lado, a crítica de Mills toca no próprio caminho de cariz americanizado

que Florestan e a chamada “escola paulista” desenvolveram entre os anos 50 e 60.

Florestan tece elogios a Mills, entendendo que – apesar de ele não partir da referência

mais geral do capital monopolista como chave explicativa e estar preso ainda a uma esfera do

“radicalismo abstrato” – o polêmico autor norte-americano acaba tocando nos pontos

principais que se desdobram da fase monopolista do modo de produção capitalista sobre a

sociologia norte-americana. Em síntese compreende com ele que:

Portanto, a nova sociologia, constituída sob o impacto direto ou indireto da polaridade dominação, sob o capitalismo monopolista maduro, repele todo historicismo, extirpa a historicidade na

141 Ibid., p. 69. 142 MILLS, Charles Wright. Op. Cit., p. 165. 143 FERNANDES, Florestan. Prefácio à segunda edição de A revolução burguesa no Brasil. São Paulo: Zahar, 1976, p. 9. Observação: Infelizmente a recente edição de A revolução burguesa no Brasil não inclui este prefácio, o que faz com que seja relativamente difícil encontrá-lo.

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interpretação do concreto e ignora as relações recíprocas entre estrutura e história. Trata-se de um expurgo empírico, teórico e prático.144

No entanto, a relação de Florestan com Mills foi sempre crítica. Já no Seminário

Internacional sobre “resistências à mudanças”, em 1959, no Rio de Janeiro, fica explicito seu

posicionamento crítico em relação ao sociólogo americano, como nos relata sua filha Heloisa

Fernandes:

O comunicado lido por Mills – “Observações sobre o problema do desenvolvimento industrial” – recebeu duras críticas de Octavio Ianni, Enrique Arboleye, Pablo Casanova, Pascoal Leme e Florestan Fernandes quanto à sua tese da necessidade de a América Latina buscar um “terceiro caminho” e criar um “terceiro tipo de homem” diferentes do americano e do soviético, o que implicava negar, também, qualquer peso político ao proletariado na transformação histórica.145

No caso de A imaginação sociológica, o ponto principal de seu desacordo com a

posição de Mills é muito parecido com sua discordância em relação à ideia de “irracionalismo

burguês”, pois, segundo Florestan, Wright Mills perde de vista que “a sociologia profissional

contém uma imaginação sociológica própria, específica, sem a qual o pensamento sociológico

seria uma excrescência, uma inutilidade”:

O que temos como contraposição à ausência de uma imaginação sociológica orientada pela ciência é uma imaginação sociológica regulada pela profissão (o especialista usa o pensamento sociológico a partir de sua formação científica e segundo critérios científicos de investigação, mas guiado por papéis, alvos e funções profissionais). O “cientista” existe dentro do sociólogo como con-dição para que ele se realize como técnico e como funcionário da ordem (o que entrosa democracia, burocracia e a chamada “societal guidance” ou “active sociology”). Redefinindo o âmbito e o alcance da imaginação sociológica, desembocamos na especialização sociológica profissional, que coloca o sociólogo e o pensamento sociológico no circuito das necessidades que ambos precisam satis-fazer na sociedade de classes do capitalismo monopolista e no seu sistema mundial de poder.146

Ou seja, Florestan não concorda com a concepção de Mills que compreende

“imaginação sociológica” como uma dada postura do investigador que deveria,

necessariamente, incluir aspectos estruturais e históricos:

Pois essa imaginação é a capacidade de passar de uma perspectiva a outra [...] É a capacidade de ir das mais impessoais e remotas transformações para as características íntimas do ser humano – e ver as relações entre as duas. Sua utilização se fundamenta sempre

144 Ib., A natureza sociológica da sociologia. São Paulo: Ática, 1980, p. 69. 145 FERNANDES, Heloisa. (org.) Wright Mills: sociologia. São Paulo: Ática, 1985, p. 14. 146 FERNANDES, Florestan. A natureza sociológica da sociologia. São Paulo: Ática, 1980, p. 60.

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na necessidade de conhecer o sentido social e histórico do indivíduo, na sociedade e no período no qual sua qualidade e seu ser se manifesta.147

Para Florestan a imaginação sociológica é a capacidade criativa do sociólogo, não

importando qual é o sentido geral sobre o qual se desenvolve esta criatividade; desde que esta

lógica esteja no campo da sociologia estaremos diante de uma dada imaginação sociológica.

Devemos reter desta problematização seu ponto central: Florestan rompe com uma

dada postura intelectual que foi manietada, segundo o autor, pela fase monopolista do capital

e que tendia a retirar das pesquisas sociológicas seu caráter histórico e da totalidade, para

torná-la um instrumental do próprio capital monopolista, voltando-se para formação de

quadros “profissionais” com uma “lógica sociológica”.

Como já vimos anteriormente, com Lukács, esta tendência está mesmo na origem da

sociologia como ciência, mas que seja por influências de autores fora da sociologia como

Marx, por exemplo, seja por sociólogos localizados em situações históricas específicas e

representando exceções: tenta-se incorporar ao corpo da sociologia aspectos de uma análise

que leve em conta a totalidade e a historicidade – tanto Florestan como Mills fariam parte

desta exceção. Ou, partindo de um referencial florestaniano, poderíamos dizer que ao se

polarizar tendências explicativas sobre a sociedade compondo uma “totalidade sociológica”,

os cientistas sociais “podem”, de acordo com sua posição na realidade social e suas

necessidades específicas, resgatar elementos de ambas as polaridades para suas análises

sociais.

Por mais que Florestan tenha tido uma influência norte-americana em sua atividade em

geral e utilizasse o estrutural funcionalismo (tenha influencia parsoniana ou não), desde muito

cedo, certamente já em A integração do Negro de 1964, vemos que o autor não deixa de estar

preocupado com a incorporação da totalidade e da dimensão histórica em suas obras, que são

elementos do “pólo revolucionário”.

A partir dos anos 70, vai se configurando, como vimos, um repertório com elementos

típicos da sociologia como a definição de dinâmica – que já está no discurso sociológico

desde Comte; de função – que a partir de Durkheim é amplamente utilizada; de estrutura –

que é incorporada na sociologia por Spencer e que também terá uma ampla utilização na

tradição marxista; principalmente após a falsa polêmica entre estrutura e superestrutura na

obra de Marx; e outros. A forma que arranja estes elementos também não fugiria, em alguns

traços importantes, à forma como Max Weber entendia tais elementos:

147 MILLS, Charles Wright. Op. Cit., pp. 13-14.

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Como argumenta Lukács, a tipificação é “a tarefa fundamental da sociologia”, já que a sociologia trata do típico e do geral, e a história, do concreto e do individual. A sociologia (tal como concebida em Economia & Sociedade) constrói tipos de formas culturais recorrentes e padrões de ação. Sua função principal, além de explicar comportamentos típicos e recorrentes, é fornecer tipos conceituais ao historiador. A sociologia é essencialmente uma forma de procurar meios metodológicos para o sociólogo e o historiador.148

Porém, estes elementos de seu repertório serão considerados dentro de uma

aproximação progressiva do pensamento marxista, sem desconsiderar a sociologia; pelo

contrário, passa a constituir uma “sociologia marxista” própria, que é uma tentativa que não

nasce com Florestan e que aqui buscamos apenas nos aproximar da particularidade do uso que

o autor faz de tais categorias: demonstrando, ao mesmo tempo, que cada um destes conceitos

está pautado por uma ampla reflexão do autor que nunca será banalizada, nunca perderá seu

caráter de representar uma verdadeira ciência, como alguns autores possam sugerir.

148 HIRST, Paul. Evolução social e categorias sociológicas. Rio de Janeiro: Zahar, 1977, p. 73.

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2. AUTOCRACIA: ESTRUTURA DE PODER E DOMINAÇÃO

Os “interesses verdadeiramente fortes” e os “interesses predominantes” deparam, enfim, com o seu meio político ideal, podendo impor-se à vontade, “de cima para baixo”, e florescer sem restrições. Se já houve, alguma vez, um “paraíso burguês” este existe no Brasil, pelo menos depois de 1968. (Florestan Fernandes, A Revolução Burguesa no Brasil, 1975)

A autocracia é o conceito central da análise realizada por Florestan Fernandes sobre a

estrutura política do capitalismo dependente. Podemos dizer que, se a extração dual de mais-

valia é o conceito central da face econômica, a autocracia o é da face política de seu modelo

de capitalismo dependente.

Em resumo, através da extração dual, o capitalismo dependente “alimenta” as classes

dominantes internas e externas, em contraposição à extração “simples” que se daria apenas

internamente no modelo clássico (autônomo). Neste modelo clássico, a dinâmica econômica

se auto-regularia e sua forma de desenvolvimento histórico ajustaria as relações de poder e

dominação entre as classes proprietárias e não proprietárias, gerando, como resultado no

âmbito político, a democracia burguesa. Obviamente, cabe questionarmos se este modelo

clássico existiu factualmente (e por quanto tempo) ou se é apenas um “constructo teórico”, um

tipo-ideal, que se tem do capitalismo como sociedade equilibrada pela concorrência no livre

mercado, etc. De qualquer forma, o que está em questão é que o Brasil não corresponderá a

esta tipologia-ideal, e nem ao modelo histórico clássico do capitalismo, isto porque, para

Florestan seu desenvolvimento histórico “natural” foi interrompido por fatores extra-

econômicos que “aceleraram a história” – e, entenda-se aqui, esta história natural como mera

metáfora.

No caso brasileiro, que se torna em grande medida paradigmático para a América

Latina, foi necessário um excedente de poder, uma forma de organização societária que

fizesse a manutenção da concentração de poder, prestígio e riqueza que existe desde o período

colonial e que atrelar o “destino da Nação” aos interesses de um pequeno grupo ligado a

esfera do capital internacional. Ou seja, foi necessário romper com a tendência a

autonomização do país que se daria pela conquista de uma democracia tipicamente burguesa

como última fase da retardatária revolução burguesa iniciada timidamente no Brasil no século

XIX.

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2.1 A “revolução burguesa” e a transformação capitalista no Brasil

O que Florestan Fernandes realiza em seu livro A revolução burguesa no Brasil é sua

análise mais completa da transformação do capitalismo no Brasil; é dizer, como o Brasil vai

da colônia até a industrialização, resgatando seus aspectos estruturais e a história em seus

elementos econômicos, sociais, ideológicos e utópicos; destacando os elementos históricos e

funcionais e tendo como foco principal as classes dominantes. Configurando, assim, uma

síntese de seu pensamento “sobre o aparecimento e as transformações do capitalismo no

Brasil, do passado remoto ao presente”.

Sua forma de tratar o tema se contrapôs a muitos sociólogos que “não concordam com

a ideia de que a revolução burguesa se dê sob o contexto da dominação imperialista”, entre

eles, “inclusive um dos maiores especialistas, que é Barrington Moore, Jr., [que] sustenta que

a última revolução burguesa foi a norte-americana”. Para Florestan:

O problema central está na transformação capitalista. É o problema de saber se uma sociedade nacional autônoma ou não, mais ou menos dependente, é ou não capaz de absorver os diferentes modelos de desenvolvimento capitalista. O problema é o de verificar se ela chega ou não à fase da industrialização maciça. Se se realizar a hipótese de que ela chega à fase da industrialização maciça, em termos de associação com o capital externo e com a tecnologia externa, a condição pró-imperialista da burguesia nacional dependente não exclui a revolução burguesa como uma transformação estrutural. Ela significa que esta transformação final se processa em condições especiais. De qualquer modo, a revolução burguesa surge como o requisito global do processo e o alvo que lhe dá sentido. Ou há uma burguesia interna – embora sua “condição nacional” seja heteronômica – que controla o processo ou não há nada. Porque se não houver uma burguesia interna que controle o processo, qual é a alternativa? Em um extremo, a persistência da situação colonial. Em outro extremo, poderia ser uma regressão à situação colonial. Haveria uma terceira hipótese: a transição direta para o socialismo. Aí, porém, não se estaria lidando com as nações capitalistas dependentes da periferia”. 149

Além de ser tido por muitos autores como sua maior obra,150 este livro é um dos

exemplos mais ilustrativos da afirmação de que a relação entre sociologia e marxismo em

Florestan é paradoxal, provavelmente por estar posicionado no vértice sob a qual se realiza a

ruptura, há pouco comentada. Trata-se de um Ensaio de interpretação sociológica – que teve

149 FERNANDES, Florestan. A condição de sociólogo. São Paulo: Hucitec, 1978, pp. 97-87. 150 “Florestan não havia produzido uma síntese de interpretação da história da formação da sociedade brasileira com o vigor da A revolução burguesa. Todas as suas obras são, de alguma maneira, uma preparação para A revolução burguesa, mas acho que é com esse livro que ele logra, finalmente, entrar no panteão dos demiurgos do Brasil. De novo aí observa-se radicalidade. Talvez o livro mais radical dessa coleção de obras-primas seja A revolução burguesa, ao apontar os limites e os problemas da democracia numa específica periferia capitalista”. OLIVEIRA, Francisco. Pensar com radicalidade e com especificidade. In: Revista Lua Nova, n.º 54, São Paulo: Cedec, 2001, p. 91.

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seu início em 1966 e sua finalização em 1974;151 trabalho que se alinha totalmente a resposta

intelectual que Florestan dava à crise social e científica de sua época e que traz à tona seu

novo posicionamento em processo de consolidação. Nele, o autor busca dar conta de um

problema da história in flux: uma “resposta intelectual mais completa ao drama brasileiro”.

Por outro lado, é sem dúvida uma análise sociológica, mas, uma análise que vai na contramão

das ciências sociais desenvolvida na academia como ele mesmo denuncia:

O que havia ocorrido é que os “círculos acadêmicos” abandonaram o uso do conceito de dominação burguesa, a teoria de classes e, especialmente, a aplicação da noção de revolução burguesa à etapa da transição para o capital industrial nas nações capitalistas da periferia. Passou-se a falar, indiscriminadamente, em “elites” e em “modernização”, algumas vezes também em “transferência de tecnologia e de capital”, ignorando-se que esses processos requerem certos mecanismos supranacionais, certos requisitos econômicos, sociais e políticos, os quais só podem aparecer no contexto de uma sociedade de classes e no clímax de uma industrialização maciça, que por sua vez exigem o monopólio do conflito de classes pela burguesia (associada ou não a outras categorias sociais).152

Em síntese, Florestan, evidenciando aquilo que diz ser sua maneira de ver as coisas,

tratará no texto de: “1.°) a emergência da ‘Revolução Burguesa’; 2.°) seus caracteres

estruturais e dinâmicos; 3.°) os limites, a curto e a longo prazo, que parecem confiná-la e

reduzir sua eficácia como processo histórico-social construtivo”.153 Como resultado, A

revolução burguesa no Brasil, fixa um modelo interpretativo do capitalismo dependente,

através da incorporação analítica do desenvolvimento do capitalismo brasileiro em seu sentido

estrutural-histórico, ao mesmo tempo em que responde criticamente à posição de “círculos

acadêmicos”.

É importante que destaquemos que a referência teórica para a composição da obra foi

de principalmente três fontes, ao menos esta era sua intenção inicial:

[...] o primeiro trabalho no qual realizo uma exploração mais intensa de conceitos e procedimentos interpretativos de M. Weber (não por motivos conservadores, ao contrário) e acredito que

151 “Retomei, no Guarujá e em Itanhaém, o trabalho sobre revolução burguesa no Brasil. Redigira um largo capítulo, em 1966 (o qual então passei a máquina); e tinha uma parte de outro capítulo sobre a emergência da ordem social competitiva. Todavia, o assunto não me atrai tanto, em nossos dias. Bati à máquina o que escrevera sobre o elemento competitivo na antiga ordem escravocrata e senhorial – mas não vou terminar o capítulo. Vou deixar como está, largando às urtigas a análise de como a ordem social competitiva emergiu historicamente. Quem precisa saber isso, em nossos pobres dias? Em compensação, vou escrever um capítulo novo, sobre as características da hegemonia burguesa no período da intensificação da industrialização. Junto os três capítulos, publicando o livro desse jeito (e não de acordo com o plano inicial, que era mais extenso e complexo. Penso que é o bastante, pois a revolução burguesa ‘já foi’...”. FERNANDES, Florestan. Carta para Barbara Freitag, S. Paulo, 8 mar. 1973. In: FREITAG, Bárbara. Florestan por ele mesmo. Estudos Avançados - IEA-USP, São Paulo, n. 26, 1996, p. 158. 152 Ib., Um ensaio de interpretação sociológica (1977). In: Ib., Brasil: em compasso de espera. São Paulo: Hucitec, 1980, p. 78. 153 Ib., A revolução burguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 1975, pp. 13-14.

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consegui estabelecer uma ponte harmoniosa entre Weber, Mannheim e Marx, na explicação de processos histórico-sociais seculares.154

A revolução burguesa começa a ser escrita em 1966 e acaba sendo engavetada naquele

ano, somente sendo resgatada em 1972, quando volta do exílio, e concluída em 1974. Entre

1966 e 1969, encontramos outros escritos do autor nos quais já desenvolvia este “hibridismo”,

utilizando Marx e Weber como referência teórica para a análise do subdesenvolvimento.

Temos uma exposição bastante clara de como o autor compreende as especificidades das duas

contribuições na primeira parte do livro Sociedade de Classe e Subdesenvolvimento.155 No

período do exílio, o autor realiza, como já vimos, uma ampliação de seus estudos sobre

revoluções em países periféricos e os escritos de Lenin. Já podemos acompanhar nos escritos

de então o delineamento de vários elementos que comporão a parte final de A revolução

burguesa, como podemos verificar no livro Capitalismo dependente e classes sociais na

América Latina e no opúsculo publicado em Toronto, The Latin American in residence

lectures.156

Figura 4 – Fichamento para palestra datada de 12 de março de 1971, intitulada: The Social Costs of

Development, escrito para exposição no The Latin American Committee and Department of Sociology, Harvard University. Escrita no período do exílio em Toronto. Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes.

154 FERNANDES, Florestan. Carta para Barbara Freitag, S. Paulo, 6 abr. 1967. In: FREITAG, Bárbara. Florestan por ele mesmo. Estudos Avançados - IEA-USP, São Paulo, n. 26, 1996, p. 158. 155 Ver principalmente o subitem 2 onde Florestan destaca, entre outras coisas, as contribuições de Weber, Marx e Durkheim para a análise do subdesenvolvimento: A explicação macrossociológica do subdesenvolvimento econômico. In: Ib., Sociedade de classe e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro, Zahar, 1981. 156 Ib., The latin american in residence lectures. Toronto: University of Toronto, 1969.

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O desdobramento destas reflexões “híbridas”, principalmente as do final dos anos 60,

terá em A revolução burguesa seu desaguadouro, ainda que incompleto. Trata-se de uma obra

fundamental para suas análises posteriores; porém discordamos dos analistas que acreditam

que Florestan constrói, a partir dela, uma espécie de camisa de força conceitual à qual ficará

preso até o final de sua vida.

Esta ideia de paralisia na análise de Florestan pode ser vista em Carlos Nelson

Coutinho, no seu artigo Marxismo e a “imagem do Brasil” em Florestan Fernandes.157 Para

ele, Florestan não leva em consideração as mudanças que ocorreram na realidade entre o fim

dos anos 70 e o começo dos 90; o que teria acarretado grandes equívocos na sua leitura de

sobre a democratização do país. Coutinho trata em seu texto de pontos relevantes para uma

problematização sobre nossa temática central, sendo um dos primeiros a fazê-lo, diga-se de

passagem. Tomaremos, portanto, sua análise como uma primeira problematização do tema,

para, na seqüência, nos aproximarmos da análise desenvolvida por Florestan.

Segundo Coutinho, a “imagem de Brasil” que Florestan desenvolve em A revolução

burguesa busca se opor à imagem de Brasil formulada pelo PCB, que se pautava em um

etapismo, no qual o país deveria transitar de um suposto feudalismo para o capitalismo –

compondo, assim, uma via clássica de transição, como no caso da Inglaterra. Porém,

Coutinho afirma que, para Florestan, a “via” de desenvolvimento capitalista no Brasil não se

deu de forma clássica, aproximando-se nisso de Lenin e Gramsci, que trataram de analisar

vias distintas para a consolidação do capitalismo em países como a Alemanha e a Itália.

Todavia, mesmo dando mostra de haver tido um amplo contato com categorias e conceitos

destes marxistas – como o de “via prussiana” de Lenin e de “revolução pacífica” de Gramsci

–, o sociólogo paulista, em suas análises, não os utiliza ou “parece não ter apreendido

corretamente o sentido dessa noção gramsciana”.158 Da mesma forma, “os termos

‘hegemonia’ e ‘sociedade civil’, nunca os emprega no sentido específico com que os mesmos

são utilizados na obra de Gramsci”159 – categorias estas fundamentais para estruturar

adequadamente a análise de uma via não clássica do desenvolvimento capitalista. No entanto,

mesmo sem partir deste repertório analítico, Florestan acertaria ao apontar que a origem do

Brasil não foi capitalista, uma vez que o capitalismo brasileiro nasce de uma sociedade que

denominou como patrimonialista.

157 COUTINHO, Carlos Nelson. Cultura e sociedade no Brasil: ensaios sobre ideias e formas. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. 158 Ibid., p. 250. 159 Ibidem.

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O ponto principal da não-classicidade do caso brasileiro, em Florestan, “residiria

sobretudo nesse caráter dependente e subalterno de nossa formação social” – que gera o traço

perverso de uma autocracia burguesa –, mas também do caráter tardio do capitalismo nacional

– levando as classes dominantes a buscar apoio nos militares e não nas classes subalternas.

Estes dois elementos centrais no pensamento de Florestan, são questionados pelo sociólogo

baiano. Isto porque, a Alemanha e o Japão, por exemplo, também possuem um capitalismo

tardio “e isso não impediu que Alemanha e Japão se tornassem [...] países imperialistas”, além

do que:

para Lenin (e, de certo modo, também para Gramsci), o fato decisivo na geração de uma via “não clássica” para o capitalismo é um fator interno, residindo sobretudo no modo pelo qual o capitalismo resolve a “questão agrária”: a via clássica implica uma solução revolucionária [...] enquanto o caminho “não clássico” tem lugar quando a grande propriedade e a velha classe fundiária se conservam, introduzindo progressivamente e “pelo alto” novas relações capitalistas.160

Ou seja, Florestan erraria ao não ressaltar o elemento interno da questão agrária para

desenvolver sua ideia de “via não-clássica”, colocando em seu lugar a ideia de dependência

externa. Assim, ao articular intimamente este caráter tardio com a dependência econômica ao

mercado internacional, sua posição se aproxima de outros autores marxistas brasileiros

que, embora por caminhos nem sempre semelhantes aos de Florestan, também insistem em definir nossa “não-classicidade” na transição para o capitalismo recorrendo prioritariamente a tais determinações provenientes da dependência do Brasil ao mercado internacional. É o caso, por exemplo, de J. Chasin [...], de Ricardo Antunes [...] e de Antonio Carlos Mazzeo, que se referem a uma “via colonial” ou “colonial-prussiana” para definir a modalidade de nossa “revolução burguesa”.161

Ao desenvolver esta análise sobre a obra de Florestan, é compreensível que Coutinho

discorde da posição do autor, na medida em que discorda do que seria a particularidade do

desenvolvimento do Brasil e suas conseqüências em nível estrutural.

Dentre os autores citados pelo próprio Coutinho, vale que retomemos a análise de José

Chasin, que desenvolverá uma ampla reflexão, em O Integralismo de Plínio Salgado, sobre o

que denomina de “via colonial”, pois, através de sua análise, supera algumas das

argumentações de Coutinho e se aproxima de Florestan Fernandes.

Para Chasin, diferente da Alemanha, que teve um desenvolvimento capitalista tardio,

o Brasil se desenvolve de forma hiper-tardia, ou seja, historicamente ainda mais tarde que

160 COUTINHO, Carlos Nelson. Op. Cit., p. 256. 161 Ibidem.

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Alemanha e Itália. Por outro lado, a diferença dos elementos que antecedem a consolidação

do capitalismo industrial entre Brasil e Alemanha é fundamental na constituição de suas

burguesias, que apresentarão disposições distintas para a efetivação do capitalismo. Enquanto

a Alemanha rumará ao capitalismo pelo que Lenin denominou de via prussiana –

desenvolvendo uma conciliação entre burguesia e feudalismo e se pautando em elementos

internos para isso – o Brasil realizará uma conciliação entre burguesia e latifundiários, o que o

mantém subordinado ao capital externo; pois, enquanto o feudalismo alemão já havia criado

um mercado nacional, os latifúndios brasileiros estavam atrelados ao mercado internacional.

Assim, a via colonial, da mesma forma que a via prussiana de Lenin, efetua uma conciliação

do historicamente velho com o historicamente novo; no entanto, devido à estrutura econômica

brasileira estar, desde sua origem, subordinada à dinâmica externa do capital, sua burguesia

não terá condições de impulsionar internamente a ruptura com os países imperialistas e levar a

cabo a constituição de um capitalismo autônomo.

Apesar de haver diferenças entre Chasin e Florestan, ao recuperarmos alguns

elementos próximos, a via não-clássica de Florestan não parece mais ser tão problemática

como Coutinho nos apresenta; isto porque, ambos os autores não partem, como Coutinho

sugere, de uma superposição categorial: não é porque Lenin e Gramsci apontam,

corretamente, que no caso da Alemanha e Itália a via não-clássica se deu internamente, que

todas as vias não-clássicas, necessariamente, terão que repetir o caminho prussiano.

A análise de Chasin, apesar de corretamente cumprir a função de superar a posição de

Coutinho, não deve ser imputada à análise de Florestan, pois seria enviesar a compreensão do

ideário florestaniano. Isso fica claro, por exemplo, ao tratarmos de uma “via não-clássica” em

Florestan, substituindo ou dissolvendo o caráter modelar da revolução burguesa, como faz

Coutinho. Ao procedermos desta forma, sem mediações, estamos retirando a especificidade

da análise de Florestan que não parte e articula seu conceito de “revolução burguesa” através

da ideia de via (que teria um caráter diacrônico), mas sim de modelo (que possui um caráter

sincrônico), mais apropriado à realização de uma análise comparada.

Há, em Florestan, a particularização do capitalismo em um modelo, cujo caso clássico

é o Brasil, mas que serve como referencial analítico também para a América Latina em geral;

trata-se do modelo do capitalismo dependente, que se diferencia do modelo clássico ou

normal que, segundo Florestan, Marx identifica no capitalismo inglês. Florestan busca, desta

forma, resgatar um modelo adequado para explicação do caso brasileiro – travando assim uma

aproximação entre história e sociologia – o que “significa, apenas, que se precisa usar

conceitos, categorias analíticas e interpretações clássicas tendo em vista uma situação

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histórica peculiar, na qual a realidade se apresenta de outra maneira (e exige uma redefinição

do modelo que alimenta as suposições axiomáticas da descrição sociológica)”.162

Por isso, quando Florestan expõe o porquê de não caracterizar o modelo de

capitalismo brasileiro como colonial ou neocolonial,163 podemos entender que sua

preocupação é a de enfatizar a revolução burguesa no Brasil como uma preocupação de

caracterização sociológica; o que, partindo deste prisma, está correto: não faria sentido falar

em capitalismo colonial ou neocolonial, uma vez que já não é a estrutura colonial a que opera

no país. O que ele faz é, prioritariamente, criar uma ferramenta para a análise sociológica;

ainda que, no intuito de superar as posições conservadoras, resgate também as estruturas

históricas que geraram e atravessaram tal modelo:

O primitivo capitalismo mercantilista, que impregnou as atividades econômicas no período colonial e na transição neocolonial, não se evapora: ele continua entranhado no espírito dos agentes econômicos externos e internos, todos orientados por uma mentalidade especulativa predatória. [...] A descolonização nunca pode ser completa, porque o complexo colonial sempre é necessário à modernização e sempre alimenta formas de acumulação de capital que seriam impraticáveis de outra maneira. Contudo, quando a revolução burguesa se torna estruturalmente irreversível, ela sedimenta um mundo capitalista inconfundível, que possui duas faces igualmente essenciais para a existência e a sobrevivência do capitalismo na América Latina.164

O problema é que, partindo desta perspectiva “modelar” e não de via de

desenvolvimento, Florestan não ressalta o processo de transição capitalista em sua forma

histórica mais ampla, e sim “deixa transparecer uma supervalorização do conteúdo

essencialmente revolucionário da transição capitalista em detrimento da forma histórica

especificamente contra-revolucionária que este movimento tende a assumir em todas as

transições retardatárias”.165 Ou seja, ao fixar elementos da estrutura capitalista em um modelo,

este acaba ficando desarticulado com o desdobramento do capitalismo em nível mundial e

acaba ressaltando uma revolução ou modernização no Brasil. Florestan acaba mediando este

problema ao integrar este modelo às estruturas históricas de longa duração, mesmo assim, de

162 FERNANDES, Florestan. Capitalismo dependente e classes sociais na America Latina. Rio de Janeiro: Zahar, 1973, p. 35. 163 “Tem-se discutido se o capitalismo dependente é ‘colonial’ ou ‘neocolonial’ [...] Existem vários tipos de colonialismo e de neocolonialismo. Não seria difícil, portanto, descobrir similaridades significativas entre o antigo sistema colonial, a transição neocolonial e o capitalismo dependente propriamente dito. O conhecimento resultante de semelhantes comparações apenas apanharia certas determinações estruturais de significado geral, fora e acima dos contextos histórico-sociais através dos quais seria possível apreender sua importância específica, para a formação e o desenvolvimento do mercado, do sistema de produção e da sociedade global, nas três fases apontadas. Seria, em suma, um conhecimento sociológico pouco útil à compreensão e à transformação da realidade”. Ibid., pp. 45-46. 164 Ibid., pp. 51-52. 165 PAIVA, Aguedo Nagel. Capitalismo dependente e (contra) revolução burguesa no Brasil: um estudo sobre a obra de Florestan Fernandes. Campinas: Unicamp, em mimeo, 1991, p. 140.

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um posicionamento marxista – tendo como referência a utilização do termo revolução e contra

revolução em Marx e também em Lenin –, trata-se de uma utilização problemática do termo.

Ora, esta revolução burguesa no Brasil é mais atrasada e contra-revolucionária do que

no caso prussiano, do qual Marx já tratava nos seguintes termos:

bem longe de ser uma revolução europeia, era apenas o retardo eco débil de uma revolução europeia num país atrasado. Ao invés de estar à frente de seu século, atrasara-se mais de meio século em relação a ele. Era desde o princípio secundária, mas é sabido que as doenças secundárias são mais difíceis de curar e ao mesmo tempo exaurem mais o corpo do que as moléstias primárias. Não se tratava de uma nova sociedade, mas do renascimento berlinense da sociedade morta em Paris.”166

Assim, com razão, Paiva, pontua tal paradoxo em Florestan Fernandes, ao resgatar

suas contribuições para uma particularização do desenvolvimento histórico do capitalismo

brasileiro e comparar a categoria revolução burguesa em Florestan com a utilização da

categoria em Lenin e Marx, demonstrando à impropriedade do modelo “revolução burguesa”

para o caso brasileiro dentro da tradição marxista. Porém, não coadunamos com sua

interpretação quando deduz que Florestan, ao manipular em sua obra, a categoria “revolução

burguesa” de forma contraditória dando, por momentos, o sentido modelar e, em outros,

resgatando o sentido de forma histórica “contra-revolucionário”, desenvolva uma função de

polêmica. Esta função de polêmica pode ter sido adotada (ou imputada) a posteriori, mas não

ajuda a explicar a utilização da categoria e nem o desenvolvimento da construção do

referencial teórico do autor. Mesmo porque, Florestan desenvolverá posteriormente a

categoria contra-revolução, como veremos, para identificar os processos iniciados em 1964 e

a ideia de revolução burguesa já aparece em escritos do autor a partir do início dos anos 60.

Não podemos esquecer que Florestan já estava pensando na categoria “revolução burguesa”

em sua grande obra A integração do negro na sociedade de classes, que foi publicada em

1964:

O essencial, quanto aos resultados desta parte da análise, é que ela permite considerar a posição do negro e do mulato na emergência do regime de trabalho livre e da ordem social competitiva em termos da organização da produção agrícola, o que vale a dizer, através de elementos e fatores que configuram a estrutura e a dinâmica do mundo rural paulista na época do desencadeamento da nossa Revolução Burguesa.

[...] ela [a economia de subsistência] se convertia num obstáculo verdadeiramente fatal à absorção do negro e do mulato ao mundo econômico, social e cultural da cidade – e de uma cidade em

166 MARX, Karl. A burguesia e a contra-revolução. São Paulo: Ensaio, 1987, p. 56.

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expansão urbana acelerada, com base na substituição populacional e em plena “revolução burguesa”, como São Paulo.167

Em um texto, também de 1964, utilizado como discurso de paraninfo, Florestan faz

uma problematização sobre a “revolução brasileira” e deixa claro como o conceito de

revolução burguesa já estava elaborado naquele momento. Já citamos este texto no início, pois

se trata do texto onde veremos a maior defesa do Florestan da democracia; não era para

menos, já que, sob a recente ditadura, declara: “A normalidade ainda não se restabeleceu

plenamente. Pairam sobre eminentes mestres punições inconcebíveis e inaceitáveis”.168

É possível que neste texto haja, de fato, uma polêmica na utilização do termo

“revolução brasileira”, que será associado com a “revolução burguesa” no Brasil, mas, neste

contexto histórico, esta polêmica ia no sentido de se contrapor aos militares, que haviam

intitulado o golpe militar de “revolução”. Ou seja, o que Florestan faz no texto é, na verdade,

já expressar sua compreensão de que um golpe, naquele contexto, objetivava ser um

mecanismo “contra-revolucionário”. No entanto, somente anos depois Florestan chamará o

golpe militar de “contra revolução preventiva”, naquele momento, ainda não acreditava que a

ditadura conseguiria cumprir este papel, simplesmente porque não tinha a dimensão do que

esta se tornaria, em 1968, o que fica claro em sua fala:

Os acontecimentos que vivemos, além de epidérmicos, brotam de crises inevitáveis e normais, quando se atenta para a forma e as condições em que a revolução burguesa se está realizando no Brasil. A natureza histórica desta revolução social não se alterou nem se poderia alterar. Portanto continuamos engolfados no mesmo processo histórico-social, que produziu ou tende a produzir a universalização do trabalho livre, a diferenciação das classes sociais, a implantação do regime republicano, a expansão do capitalismo industrial e a difusão dos ideais democráticos do mundo moderno.169

Aqui não se trata apenas de um “pensamento positivo” frente a uma situação adversa.

De fato Florestan ainda vê o processo de revolução burguesa como um processo irreversível,

porque, dentro dos modelos teóricos que está aplicando, a “sociedade competitiva” instaura

todos estes elementos que arrola na citação acima; assim, o que seria diferente no caso do

desenvolvimento da “sociedade competitiva” é que apesar da “natureza histórica desta

revolução social” não ser afetada, seu “ritmo, regularidade e homogeneidade [...] se tornou

demasiado lento, descontínuo e só nas áreas de industrialização intensa ele chegou a atingir

167 FERNANDES, Florestan. A Integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Ática, volume 1, 1978, p. 39 e p. 193. Grifos do autor. 168 Ib., A “revolução brasileira” e os intelectuais (1964). In: Ib., Sociedade de classe e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro, Zahar, 1981, p. 185. 169 Ibid., p.198.

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quase todas as esferas da vida social organizada”.170 Mas, para Florestan, estava claro e não se

tratava de uma polêmica que:

Tais constatações, porém, não devem obscurecer outros dados da realidade. Nossa débil “revolução burguesa” constitui, por enquanto, o único processo dinâmico e irreversível que abre algumas alternativas históricas. Não só representa a única saída que encontramos para a modernização sociocultural. Contém em si novas dimensões de organização da economia, do Estado e da sociedade, que poderão engendrar a diferenciação das estruturas sociais, a difusão e o fortalecimento das técnicas democráticas da organização do poder e da vida social, novas bases da integração da sociedade nacional, etc.171

Sendo assim, a ideia de “revolução burguesa”, nitidamente entendida como processo

de modernização – neste caso, do Brasil –, nasce sob o influxo da vertente paulista da

“sociologia da modernização”, que será questionada de forma mais abrangente por Florestan

apenas após 1968; se ela ganha outras significações e se entra em conflito aberto com a

definição de revolução da tradição marxista, isto não é de se estranhar, já que ela não é fruto

desta tradição, mas de uma leitura sociológica, que tem apenas como uma de suas linhas

analíticas a tradição marxista.

Mantermos uma mediação sobre uma categoria tão central quanto a de revolução

burguesa para Florestan, pautada em uma possível polêmica, parece apagar o caráter, que há

na obra de certa tensão entre dois momentos distintos (mas com continuidades). Retomando

as palavras de Gabriel Cohn, sobre A revolução burguesa no Brasil,

[...] a referência ao ensaio [no subtítulo da obra] revela mais do que o caráter inacabado e pouco sistemático da exposição. A advertência sobre os limites da obra evoca também, com um travo amargo, as circunstâncias da sua composição, que impuseram a ela o seu formato fragmentado, de projeto interrompido mas não abandonado; assim como haviam feito com o próprio ofício do autor.172

Ao relevar estas circunstâncias, fazendo mediações indevidas, acabaríamos por

amenizar o paradoxo que atravessa boa parte do pensamento de Florestan Fernandes, que é a

relação do corte epistemológico da sociologia em diálogo com a análise marxista. Esta será

uma tensão que permanecerá em sua obra, pós-ruptura, e se não a levarmos em conta, não

compreendemos suas várias nuances e posicionamentos ao longo do processo que

pretendemos analisar como objeto central desta pesquisa. Devemos colocar as coisas no lugar:

170 FERNANDES, Florestan. A “revolução brasileira” e os intelectuais (1964). In: Ib., Sociedade de classe e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro, Zahar, 1981, p.190. 171 Ibid., p.192. 172 COHN, Gabriel. Florestan Fernandes – A revolução burguesa no Brasil. In: MOTA, Lourenço Dantas. (org.) Op. Cit., p. 395.

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a análise florestaniana parte da crítica à sociologia como sociologia crítica que, para isso,

incorpora em grande medida o debate marxista. Neste sentido achamos adequada a crítica que

Arruda realiza em relação à análise de Paiva, que desconsidera a sociologia acadêmica que

atravessa a obra de Florestan, tratando-a como uma espécie de entulho teórico. Obviamente,

este aspecto não apaga as várias contribuições da obra de Paiva.

As eras históricas do Brasil

Ao analisar a obra florestaniana Paiva enfatiza que Florestan divide a história do

Brasil em três grandes momentos, configurando assim três diferentes “era”: a Era Colonial,

que se inicia com a colonização e se estende até a vinda da corte para o Brasil, em 1808; a Era

Neocolonial, que vai de 1808 até aproximadamente 1880; e a que nos toca diretamente, a Era

Capitalista dependente ou Era Burguesa, que se inaugura, então, em meados de 1880, que

tem como momento diferencial o ano de 1930, e que se subdivide em Era burguesa

competitiva e Era burguesa monopolista. De fato, encontramos amplamente estes termos nos

escritos de Florestan; mas é interessante incluirmos, nesta parte da análise, a interpretação de

Florestan que encontramos num manuscrito intitulado A dominação Externa no Brasil.

Infelizmente, Florestan não faz menção no manuscrito à sua finalidade e data, o que era seu

costume; mas pelo volume de escritos, um dos maiores que analisamos, com 18 fichas, e pela

forma que trata a temática, supomos que seja do período em que deu aulas na Sedes Sapiens

ou na PUC – ou seja, um período que vai de 1976 a 1982, aproximadamente, e em que está

consolidando os vários elementos que aparecem em A revolução burguesa.

Vale ressaltar de saída, que as “Eras” que Paiva destaca, buscando “apresentar as

principais contribuições historiográficas de Florestan Fernandes em torno do desenvolvimento

do capitalismo brasileiro”,173 são substituídas nos manuscritos de Florestan pela ideia de

“formas típicas”. Haverá também outras pequenas alterações terminológicas que, no geral,

não parecem entrar em contradição com o exposto no trabalho de Paiva.

No entanto, uma das preocupações de Paiva de grande relevância para análise da

história nacional, é saber como Florestan equaciona os critérios teóricos de análise, se de

forma endógena ou exógena:

Ora, esta proposta de periodização nos cola – antes de mais nada – frente à questão dos critérios teóricos e históricos efetivos (“endógenos” ou “exógenos”?) que a presidem. Sem dúvida alguma,

173 PAIVA, Carlos Aguedo Nagel. Op. Cit., p. 244.

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esta é uma questão tão complexa quanto fundamental se se pretende ter uma adequada compreensão da leitura histórica deste autor. Contrariamente, porém, Florestan não nos oferece uma discussão sistemática em torno dos fundamentos teóricos e metodológicos de seu projeto de periodização e do papel que cumpriria, em seu interior, a categoria de “modo de produção escravista”174

Como vemos, acentua-se já no título do manuscrito, acima referido, a ideia de que as

“eras” ou “formas típicas”, que marcam a cadência histórica do Brasil e da América Latina,

são determinadas, em grande medida, por elementos exógenos, é dizer: externos.

Para Florestan, “a América Latina é o único continente no qual é possível observar

toda a seqüência da formação e desenvolvimento das formas de dominação externa associadas

à chamada ‘expansão da civilização moderna’”,175 o que já define o sentido de seu

“desenvolvimento”:

Do período da descoberta até o momento atual é possível distinguir-se 4 formas típicas de dominação externa (excluindo-se as modalidades de adaptações transitórias à hegemonia inicial das populações nativas, entre as quais as mais importantes são as feitorias [...] militarizadas de ocupação e conquista) = colonial, neo-colonial e sob o capitalismo dependente, o imperialismo restrito e imperialismo total. Basicamente, a evolução das formas de dominação prende-se às transformações do capitalismo no exterior. Este é que contém os dinamismos que dirigem e condicionam a incorporação das estruturas sociais, econômicas e políticas das sociedades latino americanas do espaço econômico, sócio-cultural e político do mundo capitalista avançado. Tais dinamismos é que definem o sentido e os limites dentro dos quais se dão as transições de uma fase a outra, bem como o padrão característico do desenvolvimento de cada fase.176

Florestan não deixa, nesta passagem, lugar para dúvida de onde se encontra a dinâmica

propulsora das várias fases de “desenvolvimento” dos países latino-americanos. No entanto,

faz a importante ressalva de que há efetivamente um condicionamento interno deste processo,

mas que está apoiado sobre o dinamismo externo:

Não obstante, cada transição exige certas condições demográficas, geográficas (de controle do espaço físico e ecológico), econômicas, sócio-culturais e políticos que não podem ser criadas a partir de fora; o que significa que cada uma das fases, cria seu padrão respectivo de desenvolvimento, contém por sua vez um padrão próprio de crescimento interno, que dão viabilidade às diferentes transições e à potencialização interna das dinâmicas econômicas e sócio-culturais, absorvidas do exterior. Por isso, a incorporação possui uma lógica de duas faces, a qual revela e põe em jogo, simultaneamente dinamismos externos e internos. Nesse jogo, a

174 PAIVA, Carlos Aguedo Nagel. Op. Cit., p. 247. 175 FERNANDES, Florestan. A dominação externa no Brasil, sem data. Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes. 176 Ibidem.

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história emergente = da heteronomia que se reorganiza mas não desaparece (incorporação dependente à civilização ocid. moderna e a seus fluxos de transformação).177

Assim, Florestan não trata nenhuma das “eras” ou “formas típicas” como um processo

que tem sua propulsão internamente nos países latino-americanos; mas esta propulsão é

delimitada pelas condições internas destes países, o que faz com que surjam as várias

diferenciações no grau de “absorção” e resposta destes países à dinâmica exterior.

Não temos, no manuscrito, um debate sobre o “modo de produção escravista”, o que o

autor fará em outro lugar, em seu livro Circuito Fechado, no qual não só esclarece seu

“pensamento sobre a natureza, a estrutura e a evolução do modo de produção escravista, como

[completa] a análise desenvolvida nesta obra sobre a maneira pela qual o modo de produção

escravista funcionou como base material da ordem escravocrata senhorial”.178

No texto em que destacamos aqui, Florestan está dando ênfase à lógica geral de

estratificação da sociedade nos vários períodos históricos nacionais e, por isso, foca sua

análise na “dominação” como centro de sua problemática.

A legitimidade do “sistema colonial”, sobre o qual vale que resgatemos alguns pontos

em sua análise, possuía “um duplo fundamento legal e político”, o que não impedia que seu

“fundamento material” fosse de “ordem econômica”:

a colônia existia, em toda a parte, para a prosperidade da metrópole. Os colonizadores eram vassalos, submetendo-se como tais à vontade da Coroa, à qual deviam obediência e lealdade. A identificação de interesses entre a Coroa e os vassalos enfrentara várias contradições e conflito. Não obstante, a convergência de interesses recíprocos, complementares ou mutuamente instrumentais criava uma sólida acomodação, pela qual a Coroa endossava pelo menos os interesses centrais dos colonizadores e estes, por sua vez, asseguravam os interesses fundamentais da Coroa (sem isso = todo o antigo sistema colonial seria impossível = por causa das dimensões de espaço [...] e cond. materiais do sistema colonial).179

O que há neste “antigo sistema colonial” é uma mescla de fatores, na qual temos, por

um lado, a “transplantação dos padrões iberos de estratificação social” que se ajunta à

“escravidão ou o trabalho forçado (nas plantações e nas minas)”, gerando uma

177 FERNANDES, Florestan. A dominação externa no Brasil, sem data. Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes. 178 Ib., Prefácio à segunda edição (1976). In: Ib., A revolução burguesa no Brasil. São Paulo: Zahar, 1976. 179 Ibidem.

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Figura 5 – Ficha 1, sem data, do manuscrito intitulado: A dominação externa no Brasil. Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes.

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Combinação de estamento e casta � produzindo como real sociedade colonial, na qual só os colonizadores podiam participar das estruturas de poder e transmitir posições sociais de acordo com linhagens “Européias”. Grande flexibilidade de estratificações resultante = absorção e controle de acessos de nativos, africanos ou povos miscigenados (classificados nas categorias de castas ou mantidos fora das estruturas estamentais, como estratos de pendentes. Nessas condições = dominação colonial = exploração sem limites, em todos os níveis da existência humana (em benefício da Coroa e dos colonizadores).180

Em sua análise, realiza uma diferenciação entre casta e estamento como realidades

societárias que coexistem na “era colonial”. Trata-se de categorias de extração

conhecidamente weberianas: enquanto os estamentos, também traduzidos como grupos de

status, possuem uma diferenciação através do prestígio social (ou honra social), “a ‘casta’ é,

na verdade, a forma normal em que geralmente convivem comunidades étnicas de modo

socializado”.181 São formações societais voltadas em grande medida para uma unidade que se

dá pelo sentido mágico e religioso e em qual a “ação social” é em suas várias dimensões

adscrita “o que, simplesmente, retira dos sujeitos da ação qualquer tipo de liberdade de

opção”.182 Entre seus aspectos mais relevantes para tentar explicar esta combinação que

Florestan realizou, podemos, a partir de Weber, destacar outras características que diz respeito

às “castas”:

Tal situação de casta é parte do fenômeno de grupos ‘párias’ e é encontrada em todo o mundo. [...] a estrutura de casta produz uma subordinação e reconhecimento social da ‘mais honra’ em favor da casta e grupos de status privilegiados. Isso se deve ao fato de na estrutura de castas as distinções étnicas, como tais, tornam-se distinções ‘funcionais’ no interior da societalização política.183

O marco de passagem da primeira para a segunda “era” é a vinda da coroa portuguesa

para o Brasil, iniciando todo um processo de mudança econômica da colônia, cujo ponto

principal é a abertura dos portos. A Era Neocolonial, cumprirá, segundo o autor, um papel de

acumulação primitiva, a partir dos recursos que passam a ficar no país e que serão essenciais

para a transformação seguinte que gerará a Era do capitalismo dependente. Como vimos,

estas eras são modelos aplicáveis a outros países da América Latina, ainda que não sejam

simultâneas; como no caso de Cuba, que, na análise do autor, estava na Era Neocolonial no

180 FERNANDES, Florestan. A dominação externa no Brasil, sem data. Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes. 181 WEBER, Max. Classe, “Status”, Partido. In: VELHO, Gilberto; et all. Estrutura de classes e estratificação social. Rio de Janeiro: Zahar, 1974, p. 74. 182 HIRANO, Sedi. Castas, estamento e classes sociais: introdução ao pensamento de Marx e Weber. São Paulo: Alfa-omega, 1975, p. 28. 183 WEBER, Max. Classe, “Status”, Partido. In: VELHO, Gilberto; et all. Op. Cit., pp. 74-75.

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momento em que realiza a revolução cubana (1959) e, desta forma, toma outro caminho: ao

invés de seguir para a Era Burguesa, transita para o socialismo.

No Brasil, um aspecto importante a ser destacado é que, por mais que houvesse

reconfigurações gerais das estruturas de uma Era para outra, havia também continuidades de

elementos estruturais; em cada mudança ocorrida, constituía-se uma reestruturação de

elementos econômicos e mesmo ideológicos e utópicos, mas que não eram suficientes para

romper com a concentração de poder das camadas dominadoras. A transição entre a Era

Neocolonial e a Era Burguesa – essencialmente mercantil e urbana – será um exemplo de

recomposição conciliadora que manterá a concentração de privilégios e poder no topo.

O que muitos autores chamam, com extrema impropriedade, de crise do poder oligárquico não é propriamente um “colapso”, mas o início de uma transição que inaugurava, ainda sob a hegemonia da oligarquia, uma recomposição das estruturas do poder, pela qual se configurariam, historicamente, o poder burguês e a dominação burguesa. Essa recomposição marca o início da modernidade, no Brasil, e praticamente separa (com um quarto de século de atraso, quanto às datas de referência que os historiadores gostam de empregar – a Abolição, a Proclamação da República e as inquietações da década de 20), a “era senhorial” (ou o antigo regime) da “era burguesa” (ou a sociedade de classes).184

A oligarquia mantinha a dominação tradicional no momento anterior à implantação da

hegemonia burguesa e, no geral, estava vinculada ao campo – no caso de São Paulo, ao

plantio do café – tendo no escravo o meio de produção por excelência. Seria a classe que

teoricamente estaria em oposição direta à burguesia, pois representava o atraso, o

conservadorismo, mas que, ao tomar o capitalismo financeiro como casulo, desdobrar-se-á

como uma burguesia “apática”.

Assim, “graças ao café e à associação direta com o capital financeiro mundial, os

homens de negócios transformaram a oligarquia paulista em uma complicada floração do

capitalismo competitivo dependente”, de tal forma que os setores arcaicos da oligarquia eram

tão burgueses quanto os setores mais liberais, uma vez que

havia uma convergência de interesses econômicos, sociais e políticos, a qual se desencadeava a partir de fora, pelos mecanismos financeiros e de modernização comercial-industrial impostos pela dominação imperialista, e a partir de dentro, graças aos riscos comuns diante dos efeitos da crise de 1929 ou das vias de recuperação econômica oferecidas por novas oportunidades comerciais e industriais; diante das ameaças reais ou potenciais do movimento operário, em uma fase política de “crise nacional” das estruturas de poder; e, em articular, diante do fenômeno mais grave

184 FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1975, pp. 203-204.

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para as classes burguesas de São Paulo, o fortalecimento de setores oligárquicos tradicionais e modernos de outros Estados, que impunha à “locomotiva” que puxava o Brasil controles externos que reduziam a autonomia das elites econômicas de São Paulo e as colocavam na iminência de fazerem composições políticas e barganhas econômicas desvantajosas com antigos aliados ou velhos inimigos. 185

Esta “revolução liberal” levou a uma nacionalização da participação das classes

burguesas na dominação econômica e política que desarticulou a hegemonia dos interesses

“agrocomerciais montada na monopolização do poder pelos homens de negócios saídos da

produção e da comercialização do café ou de suas irradiações sobre a economia importadora e

exportadora, os interesses bancários ou a industrialização”.186

A forma conciliatória de maturação da classe dominante imposta pelas mãos do capital

financeiro internacional processou um caminho ou via totalmente diferente das chamadas

Revoluções burguesas clássicas – que foram operadas como luta entre uma classe burguesa,

que nasce em oposição à antiga classe oligárquica feudal. Ora, como destaca Paiva,

As conseqüências históricas daí advindas se expressarão, antes de mais nada, na abertura de um sólido canal de conciliação entre “novos” e “velhos” segmentos sociais proprietários que se refletirá na forma contra-revolucionária da transição para a sociedade burguesa. E esta “forma” terá importantes derivações ao nível do conteúdo mesmo desta transição. Antes de mais nada, envolverá a consolidação de um padrão de ordem social competitiva marcadamente excludente e restritivo, único adequado aos horizontes históricos dos segmentos senhoriais em processo de “modernização”.187

A modernização nacional pagará altos tributos ao senhoriato, não trazendo consigo

todo o desenvolvimento político e social que trouxe a outros países. Haja vista a abolição da

escravatura, que, a despeito dos movimentos sociais que cresceram ao logo dos anos 1880,

acabou resultando de um ato parlamentar, em que os escravos passam à condição de homens

livres sem terem garantidas reformas que lhes possibilitassem uma inserção adequada na

nascente sociedade moderna.

Com o fim do escravismo, há uma ruptura histórica envolvendo transformações

econômicas, sociais e políticas ligadas à própria emergência do imperialismo. Esta nova

situação histórica de capitalismo competitivo emergia com um duplo aspecto. Por um lado,

trazia “um fator multiplicativo do poder de ação do agente econômico privilegiado”, e, por

outro, “um fator destrutivo para o equilíbrio econômico global da sociedade”. De forma que

185 FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1975, p. 221. 186 Ibid., p. 223. 187 PAIVA, Carlos Aguedo Nagel. Op. Cit., p. 397.

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A coletividade arcava com os riscos e suportava, por mecanismos diretos e indiretos, a posição privilegiada do agente econômico. Isso indica que a competição não se inseria nas vias socialmente construtivas que relacionaram, nas sociedades capitalistas avançadas, propriedade privada, livre iniciativa e redistribuição da renda e do poder. Ela foi rapidamente redefinida, tanto economicamente, quanto social e politicamente, como um fator de distribuição estamental – e portanto fortemente desigual da renda e do poder. Por essa razão, nos mecanismos apontados ela não engendra transferências estruturais de renda e poder. A sua função latente não era essa. Ela se converterá no que deveria ser no contexto de uma economia colonial exportadora, de fundamento escravista, e numa economia capitalista dependente em formação: o meio pelo qual a sociedade protegia, através da posição de seu agente econômico privilegiado, a sua única fonte básica de produção e incremento da riqueza.188

Em uma palavra, a marca da transição foi a “capacidade da emergente burguesia em

estruturar – a partir de arranjo político peculiar com os velhos segmentos oligárquicos – as

condições para o desenvolvimento de sua própria hegemonia”.189

As fases da era do capitalismo dependente no Brasil

Ao resgatar o processo particular do desdobramento do capitalismo brasileiro para dar

forma a seu modelo explicativo, Florestan expõe a dinâmica dos agentes históricos que

impulsionam ou sofreiam determinados elementos econômicos, políticos ou sociais.

Apresenta também o principal elemento econômica que dá forma à dependência: a extração

dual do excedente econômico; ressaltando que o imperialismo dos países centrais não age

diretamente sobre o Brasil, mas mediado pela burguesia nacional, que se coloca como sócia

neste processo. Para que este mecanismo funcione, esta burguesia terá que manter. não apenas

uma hegemonia do poder político – como ocorre nos países capitalistas centrais –, mas

necessitará de uma super-acumulação de poder político, através do Estado, de forma a atrelar

o destino da nação ao seu próprio destino; de outra forma, não poderia conciliar o

desenvolvimento nacional às necessidades do seu sócio, o capital externo. A esta super-

concentração de poder político, Florestan nomeia de autocracia.

A era do capitalismo dependente no Brasil se inicia, para Florestan, por volta de 1880

e, até seus últimos escritos de 1995, o autor considera que o país continuava envolto por esta

estrutura. No entanto, há mudanças estruturais, dentro do próprio capitalismo dependente que

influenciarão toda a movimentação no plano da história. Dividindo-o em fases, o primeiro

188 FERNANDES, Florestan apud PAIVA, Carlos Aguedo Nagel. Op. Cit., p. 398. 189 PAIVA, Carlos Aguedo Nagel. Op. Cit., p. 401.

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período da Era capitalista dependente é o que o autor chamou de capitalismo competitivo,

que iria desde 1880 até 1964, momento que levará a uma aceleração industrial, através de

governos que Florestan denomina de demagógicos populistas, sobre esta categorização é

importante destacarmos a posição de Florestan:

Desde 1960, quando tomei o assunto pela primeira vez, sempre fui desfavorável a uma compreensão elástica do populismo. Os cientistas políticos e os historiadores norte-americanos introduziram um conceito lato de populismo, talvez levados pelo élan de certos movimentos políticos populistas que grassaram em regiões rurais dos Estados Unidos. No Brasil, o único movimento social autenticamente populista, que conhecemos, foi o suscitado pelo protesto negro, entre as décadas de 20 e 40. Ele se alimentou de uma liderança própria e buscou uma transformação dentro da ordem que tinha um sentido revolucionário no plano das acomodações raciais. [...] O que surge, em outro plano, de manipulação “trabalhistas” das massas, seria descrito com maior precisão com o termo demagogia. O demagogo, fiel aos seus interesses de classes e preso na rede da dominação mandonista das classes possuidoras – ultra privilegiada em todos os níveis – foi impotente tanto para ativar um populismo orgânico e autônomo, quanto para libertar-se da tutela de suas próprias classes ou fração de classe. Quando o tentou, as massas populares não eram bastante fortes para dar-lhe cobertura [...]190

Florestan entenderá como demagógico-populistas os governantes abastados que

buscam uma identificação com as massas populares; mas que estão intrinsecamente

vinculados às necessidades de sua classe de origem. Para o autor, “o demagogo pode ser

revolucionário e às vezes a preferência da massa popular pelo demagogo significa que a

melhor alternativa de luta política para a massa popular é o demagogo”, o que, segundo ele,

nunca aconteceu no Brasil:

No caso brasileiro infortunadamente [...] todos os demagogos que traíram a sua classe acabaram mal: Getúlio Vargas se suicidou, Janio Quadros renunciou e Jango Goulart fugiu, ele disse que não correria a responsabilidade de levar o Brasil à guerra civil – é o que ele deveria ter feito. Deveria ter feito dois anos antes de sair do país, porque dois anos antes havia informação de que os militares e os estratos mais reacionários da burguesia estavam conspirando inclusive dentro do próprio palácio, mais ele era um homem rico um homem com mais de vinte estâncias e, portanto, ele não iria arcar com a responsabilidade de desencadear uma guerra civil. A guerra civil seria também contra ele.191

Apesar dos sucessivos governos que mantiveram as classes trabalhadoras manietadas,

através do “ardil populista”, o autor compreende que houve, no período, um desenvolvimento

190 FERNANDES, Florestan. Prefácio (1978). In: MOISÉS, José Álvaro. Greve de Massa e crise política (Estudo da greve dos 300 mil em São Paulo - 1953-54). São Paulo: Livraria Editora Polis, 1978, p. 13. 191 FERNANDES, Florestan. Palestra de Lançamento da Campanha de 1986 na Fundação Santo André.

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industrial suficiente para que, nos anos sessenta tivéssemos “a emergência e difusão de

movimentos de massa antiburgueses, nas cidades e até em algumas áreas do campo”. Tais

movimentos, mesmo sem representar perigo imediato, “acabaram repercutindo e fermentando,

de modo quase incontrolável, no próprio radicalismo burguês: ‘contaminaram’ estudantes,

intelectuais, sacerdotes, militares, vários setores da pequena-burguesia etc.” e, desta forma,

“infiltraram influências especificamente antiburguesas e revolucionárias nas massas

populares” – ainda que “refreadas pela ‘demagogia populista’, o que estabelecia um perigoso

elo entre miséria e pobreza, ‘pressão dentro da ordem’ e convulsão social”.192

A ditadura militar de 1964 representará a barreira de contenção desta pressão dentro

da ordem. Segundo Florestan, a ditadura será o elo forte da transição do capitalismo

competitivo para o capitalismo monopolista no Brasil; ela foi a saída necessária para a

burguesia, uma vez que a dinâmica do capitalismo competitivo, fomentado o desenvolvimento

econômico, acabou, “dialeticamente”, impondo uma necessidade de ampliação da

participação política, de uma revolução dentro da ordem, que gerasse uma democracia

ampliada pela qual, através da atuação efetiva das massas, romper-se-ia com o caráter

autocrático e dependente do Estado nacional – algo impensável para a chamada “elite

autocrática nacional”. A solução de tal “elite” foi o golpe militar, como forma de contra-

revolução preventiva. É importante salientar que Florestan, ao afirmar uma contra-revolução

preventiva, não está dizendo que havia uma revolução socialista ou um golpe da esquerda a

caminho, como alguns autores tentam justificar o golpe “preventivo” dos militares.193 A

possível revolução a que Florestan está se referindo é a que romperia com as estruturas

arcaicas, no sentido de uma democratização burguesa, uma revolução dentro da ordem como

desdobramento mais provável do governo do conciliador presidente João Goulart.

Sem a presença dos militares, “a correlação entre superposição de tempos históricos e

deslocamento do poder político não ocorreria tão facilmente”. Contribuição decisiva para

garantir “a concentração quase imediata do poder político ao nível estatal, que se tornava

necessária para a nova ‘transição modernizadora’”.194

192 Ib., A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1975, p. 324. 193 Uma ótima crítica a esta postura pode ser encontrada em: TOLEDO, Caio Navarro. 1964: golpismo e democracia. As falácias do revisionismo. Revista Crítica Marxista nº 19. In: http://www.unicamp.br/cemarx/criticamarxista/critica19-A-toledo.pdf 194 “Por isso, e em conseqüência houve um segundo (e quase invisível) deslocamento sucessivo do poder: o militar, que aparece inicialmente como simples garante do novo regime, estabelece-se dentro dele como o principal grupo de controle do recém-formado bloco hegemônico de classe. Essa segunda transformação política estava dentro da lógica da situação, pois o Estado resultante dessa transição modernizadora precisa preencher funções nitidamente autocráticas, em várias direções (da vida social, econômica e política) e, pelo menos, por algum tempo. Se se pode reconhecer como válida semelhante descrição, ela sugere novas perspectivas para a localização atual das classes médias (e dos militares como parte das classes médias) nas estruturas de poder da sociedade brasileira. Parece claro que entramos numa nova fase histórico-social da pior forma

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Desta forma, a implantação da ditadura militar visou a incorporação do país “às

economias e ao sistema de poder dos países capitalistas centrais e de sua superpotência”

pressupondo assim, “uma nova forma de exploração da periferia, mais cruel e completa que as

anteriores, nascidas da dominação colonial direta e do indirect rule” .195

As classes dominantes (com um pólo nacional e outro internacional), valendo-se dos

militares, realizam o equivalente (invertido) da proeza dos guerrilheiros de Sierra Maestra ao

intervirem no momento em que estrutura e história se entrecruzaram; mas, ao invés de

realizarem uma revolução nacional – que, no caso de Cuba, evoluiu para uma revolução

contra o neo-colonialismo –, as classes dominantes brasileiras deslocaram o país do

capitalismo competitivo para o monopolista, realizando a manutenção da dependência. Trata-

se de uma “modernização conservadora a partir de fora”:

Os nossos burgueses entregaram-se à “modernização controlada à distância” em um estado de êxtase do extremismo infantil, uma doença corrosiva e cujos resultados já experimentamos nestes 24 anos de ditadura militar direta e indireta. Todos os setores da grande burguesia pressionam os constituintes a endossar o avesso do que é necessário à Nação como um todo. Por isso, não podem ser modernos em um sentido positivo e construtivo, de fortalecer a democracia, de abater os privilégios e de acabar com o desenvolvimento desigual, a base histórica e a fonte de financiamento da aventura de uma modernização conservadora e controlada a partir de fora.196

Nesse sentido, Florestan ressaltará que, em 1964, houve uma contenção contra-

revolucionária, “para garantir a ‘modernização’, a incorporação e a industrialização maciça”,

produzindo um Estado autocrático que “é também um Estado heterogêneo”, que possui três

faces salientes: a primeira seria a aparência democrática sustentada por um formalismo

institucional, mas na qual “os oponentes reais estão desqualificados ou neutralizados; a

maioria, mesmo eleitoral, não tem influência concreta”; a segunda seria “uma política

econômica de linha dura”; e, por fim, seu caráter fascista, que terá como principal função “a

fragmentação do movimento operário e sindical bem como a neutralização de qualquer

potencialidade de protesto popular”.197

Ou seja, a “modernização” realizada pelos militares deve ser, na perspectiva de

Florestan, sempre tratada entre aspas; é uma modernização da relação de dependência e não

uma modernização do país que passaria por sua autonomia, seja ela conquistada por uma

possível. Isso não significa, porém, que a própria história terminou.” FERNANDES, Florestan. Entrevista com Adalberto de Paula Paranhos (1973). In: Ib., Brasil: em compasso de espera. São Paulo: Hucitec, 1980, p. 210. 195 Ib., Crise ou continuidade da ditadura? (1981). In: Ib., A ditadura em questão. São Paulo: T. A. Queiroz, 1982, p. 25. 196. Ib., O segundo turno (1988). In: Ib., A constituição inacabada: vias históricas e significado político. São Paulo: Estação Liberdade, 1989, pp. 279-280. 197 FERNANDES, Florestan. Apontamentos sobre a “teoria do autoritarismo”. São Paulo: Hucitec, 1979, pp. 43-44.

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revolução dentro da ordem, é dizer pela finalização da “revolução burguesa”, seja ela

instaurada por modelo socialista: a revolução contra a ordem.

2.2 Problematização da categoria autocracia

Se recorrermos aos dicionários e enciclopédias jurídicos e políticos, teremos como

definição de autocracia “o sistema de governo no qual a vontade de um só homem é a lei

suprema. Representa, pois, a fórmula de governo diametralmente oposta à democracia”.198

Sendo, por alguns teóricos, diferenciada inclusive do governo absolutista do tipo europeu, na

medida em que estes “não tiveram poderes onímodos, pois estavam limitados por outras

instituições”,199 tornando assim o conceito de autocracia ligado historicamente a formas de

governos orientais, nos quais o poder dimana do próprio soberano, que não está submetido a

qualquer tipo de instituição que o controle.

Todavia, encontramos uma segunda acepção do termo: “em um sentido genérico,

autocracia expressa a antítese de democracia; em um sentido específico significa uma forma

política concreta que tem seu marco de vigência histórica na Ásia”.200 Dentro desta

perspectiva mais geral encontramos a definição de Hermann Heller, bastante adequada para

compreensão do conceito em Florestan Fernandes:201 “A maneira como se distribui o Estado

determina a forma do mesmo. Isto é aplicável, em primeiro lugar, a duas formas fundamentais

de Estado. A democracia é uma estrutura de poder construída de baixo para cima; autocracia

organiza o Estado de cima para baixo”.202

198 AUTOCRACIA. In: ENCICLOPEDIA jurídica Omeba. Tomo I. Buenos Aires: Editorial bibliográfica Argentina, s/d, p. 957. 199 Ibid., pp. 957-958. 200 AUTOCRACIA. In: Nueva ENCICLOPEDIA jurídica. Tomo III, Barcelona: Francisco Seix, 1951, p. 129. 201 Florestan utiliza o autor em alguns textos, mas não especificamente para tratar do conceito de autocracia. De qualquer forma, a definição de Hermann Heller é bastante próxima com a forma mais ampla como Florestan trata a questão sob o capitalismo dependente: autocracia como governo organizado de cima para baixo e que não está ligado apenas a um indivíduo, mas a um grupo ou extrato de classe. Um fato interessante é que Florestan tinha um exemplar do livro Teoria do Estado, de Heller, em seu escritório de deputado federal em Brasília, além do exemplar que estava em sua biblioteca com as anotações que apresentamos abaixo. 202 “Na autocracia [...] todo o poder estatal provém do autocrata; a ele incumbe adotar todas as decisões politicamente relevantes. [...] Na prática, o monarca absoluto e, com maior razão, o moderno ditador têm que repartir amplamente o seu poder antes de tudo, com a sua burocracia e os demais órgãos de dominação, com grupos de poder religiosos, econômicos e de outra espécie, tanto nacionais e internacionais, mas, em primeiro lugar, com a classe privilegiada e, na ditadura, por conseguinte, com a camarilha do partido ditatorial que constitui a base sustentadora do seu poder”. HELLER, Hermann Teoria do Estado. São Paulo: Mestre Jou, 1968, pp. 292-294.

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Figura 6 – Anotações de Florestan Fernandes em uma de suas edições do livro “Teoria do Estado” de Hermann

Heller. Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes.

É importante ressaltarmos que o conceito de autocracia, dentro das ciências sociais, foi

apropriado e funcionalizado – assim como o conceito de autoritarismo e totalitarismo – por

uma análise liberal, que busca vincular o socialismo e o comunismo ao nazifascismo (um

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fenômeno capitalista, diga-se de passagem), afirmando que estes são modelos típicos de

autocracia moderna – assim, lemos que: como “o Führerprinzip (princípio do chefe)

formulado na Alemanha nacional-socialista. Também os governos comunistas sempre tiveram

essas mesmas características autocráticas”.203 De qualquer forma – para além do uso

ideológico liberal do conceito, que visa apagar as particularidades históricas e contrapô-las a

um tipo ideal de democracia que inexiste fora da cabeça destas pessoas –, estes autores

mantêm sempre uma definição próxima das que já mencionamos acima.204

No que tange à análise de Florestan, já em 1954, encontramos registros do autor

caracterizando a forma política brasileira de autocrática, em um texto no qual utiliza esta

denominação a partir de um debate jurídico. Naquele momento, buscava fundamentar que a

organização política brasileira tendia para uma democracia – ainda que dentro de uma

composição mista (não exclusiva), que misturava democracia com autocracia:

A ordem legal tende, na sociedade brasileira, para um padrão organizatório democrático. Seria possível apoiar essa caracterização na moderna tipologia jurídica, para a qual a definição de “democracia” e de “autocracia” se fundam na forma de combinação dos componentes democráticos e autocráticos do Estado, abandonando-se a antiga presunção de que tais componentes deveriam ser considerados como exclusivos ou absolutos. 205

Há uma diferença clara entre como a autocracia aparece neste texto e sua definição

posterior do conceito. Nele relativiza-se o significado de oposição à democracia; tratava-se

mais de um elemento herdado da organização societária anterior, predominantemente

estamental, que naquele momento coabitava com a democracia, mas que tenderia a

desaparecer com o desenvolvimento do capitalismo, dando lugar à democracia como modelo

político próprio do modo de produção capitalista que se implantava.

Em texto do início dos anos 60, o conceito autocracia reaparece como um determinado

traço da concentração do poder que caracteriza o Brasil; mas já não é tão clara neste texto a

tendência constatada no momento anterior, na qual a autocracia seria um elemento que se

dissiparia com o desenvolvimento do capitalismo nacional. Assim, por mais que o país

ostentasse uma organização formal de república federativa, a partir de um sistema de governo

autodenominado democrático, Florestan destacava, agora, a forte característica autocrática

203 AUTOCRACIA. In: DICIONÁRIO de Política. São Paulo: T. A. Queiroz, 1998, p. 49. 204 “Uma autocracia é qualquer sistema político em que os dirigentes são insuficientemente – ou nada – submetidos a regulamentos antecedentes e obrigatórios impostos por outra autoridade que participam no governo e tem poder suficiente para compelir os dirigentes infratores a se submeterem à lei”. FRIEDRICH, Carl; BREZEZENSKI, Zbigniew. Totalitarismo e autocracia. Rio de Janeiro: GRD, 1965, p. 14. 205 FERNANDES, Florestan. Existe uma crise da democracia brasileira? (1954). In: Ib., Mudanças sociais no Brasil. São Paulo: Difel, 1979, p. 96.

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que prevalecia na prática. Tais características estavam estruturalmente vinculadas aos valores

das classes dominantes brasileiras, de origem estamental, que refletia a concentração

econômica e de poder.

Atrás dessas noções, temos uma opção pela mudança social que pretende submeter as forças que alteram a estrutura e a organização da sociedade brasileira aos interesses e aos valores sociais de camadas tradicionalmente acostumadas à estabilidade social e ao que ela sempre ocultou no Brasil: extrema iniqüidade na distribuição da terra, da renda e das garantias sociais; operação automática de controles sociais que regulavam ou dissimulavam as tensões sociais, por meio da dominação autocrática dos poderosos e da acomodação passiva dos subordinados; identificação das fontes de lealdade através de relações pessoais e diretas, objetiváveis no âmbito da família, da parentela ou de grupos locais e regionais.206

Mas será no momento em que Florestan se depara com o “golpe dentro do golpe”, em

1968, e ao concluir sua resposta teórica a este, que este traço autocrático será apresentado

como elemento estrutural inerente a composição do capitalismo dependente. Não se trata mais

de um resquício indesejado de organização societária anterior, que tendia a se retrair na

medida em que a racionalidade capitalista impusesse seus padrões democráticos. No caso dos

países dependentes, a autocracia é o garante da sobrevivência do próprio capitalismo

dependente, fazendo parte de sua estrutura elementar.

Temos que ter em mente que para ressaltar este aspecto autocrático na composição do

“modelo brasileiro”, Florestan lançou mãos, em grande medida, do pensamento weberiano.

Como havíamos afirmado, o sociólogo paulista já destacava a importância de Weber para

análise do subdesenvolvimento, pelo menos, desde os anos 60. Considerava “sua

caracterização formal de ‘situação de classe’” como “um verdadeiro marco na história da

Sociologia”:

Além disso, entre todos os sociólogos clássicos, Weber é o que oferece a explicação mais límpida e simples da ordem social inerente ao capitalismo e à estratificação em classes, como uma ordem social de “possuidores” e “não possuidores”, fundada em interesses univocamente econômicos. [...]

A parte mais importante da contribuição conceptual e teórica de Weber, para o estudo das sociedades capitalistas subdesenvolvidas, está em suas análises e explicações do poder e das formas de dominação.207

206 FERNANDES, Florestan. Reflexões sobre a mudança social no Brasil (1962). In: Ib., A sociologia numa era de revolução social. Rio de Janeiro Zahar, 1976, p. 215. Grifos nossoss. 207 FERNADES, Florestan. Sociedade de Classe e subdesenvolvimento (1967); In: Ib., Sociedade de classe e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro, Zahar, 1981, pp. 40-41.

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Apesar da afirmação acima haver sido feita em 1967, não nos parece que a avaliação

do autor tenha mudado até o momento da publicação de A revolução burguesa, obra em que

trata de forma mais abrangente o conceito de autocracia. Antes da publicação do livro,

Florestan escreve um artigo que serve como uma “introdução à terceira parte de um livro, em

fase final de preparação, sobre a revolução burguesa no Brasil”, no qual lemos de início:

Na acepção em que tomamos o conceito, revolução burguesa denota o conjunto de transformações econômicas, sociais, psico-culturais e políticas que só se realizam quando o desenvolvimento capitalista atinge o clímax de sua revolução industrial. Há, porém, um ponto de partida e um ponto de chegada, e é extremamente difícil localizar-se o momento em que essa revolução alcança um patamar histórico irreversível, de plena maturidade e, ao mesmo tempo, de consolidação do poder burguês e da dominação burguesa.208

Lembremos que o tipo ideal weberiano de poder seria a probabilidade de imposição da

vontade mesmo contra a resistência alheia, enquanto a dominação seria a probabilidade de

encontrar obediência. Esta compreensão, no entanto, pode acarretar conseqüências

problemáticas do ponto de vista marxista, como argumenta Hirst, “longe de propiciar uma

classificação rigorosa por meio de análise das formas do domínio estatal e político, os tipos

weberianos mistificam a ‘dominação’”, na medida em que desloca as relações concretas

relacionadas da estrutura do Estado e de suas condições sociais para uma relação

intersubjetiva onde “a legitimidade torna-se o problema fundamental nessa teoria política

porque o poder depende do consentimento – a dominação baseada na força não poderia

sobreviver por muito tempo”.209

Na utilização de Florestan, vemos que o autor, no geral, não foge das relações

concretas e tampouco usa a legitimação como um paliativo ou relativismo; mas sim tenta

compreendê-la como uma necessidade concreta da classe burguesa, no intuito da auto-

conservação. Assim, resgata, como de costume, os elementos que lhe parecem positivos para

a composição de seus esquemas teóricos:

Ao contrário de outras burguesias, que forjaram instituições próprias de poder especificamente social e só usaram o Estado para arranjos mais complicados e específicos, a nossa burguesia converge para o Estado e faz a unificação no plano político, antes de converter a dominação sócio-econômica no que Weber entendia como “poder político indireto”. As próprias “associações de classe”, acima dos interesses imediatos das categorias econômicas envolvidas, visavam a exercer a pressão e influência sobre o Estado

208 Ib., Revolução burguesa e capitalismo dependente (1973). In: Revista Debate & Crítica, nº 1. São Paulo: Hucitec, 1973, p. 48. Grifos do autor. 209 HIRST, PAUL. Op. Cit., pp. 51-52.

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e, de modo mais concreto, orientar e controlar a aplicação do poder político estatal, de acordo com seus fins particulares.210

Para Luis Werneck Vianna, Florestan está entre aqueles autores que, através de uma

leitura weberiana, “identificam os elementos quase asiáticos que teriam presidido a formação

do Estado nacional, em razão do transplante do patrimonialismo de Estado português, como a

raiz dos nossos males”;211 uma vez que trata “o Estado [...] como a única entidade que podia

ser manipulável desde o início [...] com vistas à sua progressiva adaptação à filosofia política

do liberalismo”.212 Vianna refaz a argumentação de Florestan do desdobramento capitalista no

Brasil, pontuando sua “chave weberiana” e apontando, por exemplo, como se dá, em

Florestan, a transição da ordem senhorial para a ordem competitiva, tendo como referencial

heurístico os “tipos de dominação e das modalidades expressivas de ação que cada um deles

comporta, implicando um processo progressivo de realização do moderno em que, por meio

da diferenciação societal”.213

De fato, em grande medida, veremos que Florestan tem como referência o conceito

weberiano, o qual considera ter “uma evidente influência de Marx”, sem que com isso Marx

tenha limitado “nem a originalidade nem a fecundidade do uso que lhe deu Max Weber”214e o

momento mais fecunda da análise de Weber seria a definição da “situação de classe”,

Que podemos expressar sucintamente como a oportunidade típica de uma oferta de bens, de condição de vida exteriores e experiências pessoais de vida, e na medida em que essa oportunidade é determinada pelo volume e tipo de poder, ou pela falta deles de dispor de bens ou habilidades em benefício de renda de uma determinada ordem econômica. A palavra classe se refere a qualquer grupo de pessoas que se encontrem na mesma situação de classe.215

Como veremos mais à frente, esta influência weberiana na forma que Florestan

desenvolve sua concepção de estratificação social terá importantes papeis na teorização da

revolução burguesa no Brasil, conseqüentemente, na conceituação de autocracia.

210 FERNADES, Florestan. Revolução burguesa e capitalismo dependente (1973). In: Revista Debate & Crítica, nº 1. São Paulo: Hucitec, 1973, p. 49. 211 VIANNA, Luis Werneck. Weber e a interpretação do Brasil, 1999, p7. In: http://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=85 212 Florestan FERNANDES apud VIANNA, Luis Werneck. Ibidem. 213 Ibidem. 214 FERNANDES, Florestan. Sociedade de Classe e subdesenvolvimento (1967); In: Ib., Sociedade de classe e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro, Zahar, 1981, p. 40. (nota 16) 215 Max WEBER apud Sedi HIRANO. Op. Cit., pp.67-68.

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Figura 7 – Ficha de 31 ago. 74, com o título: Classes Sociais no Brasil.

Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes.

Na ficha acima lemos:

1) O que é uma sociedade de classes: produção capitalista X estratificação social X dominação de classe (Estado e Nação X controle burguês do Estado). Base material = relações capitalistas X modo capitalista de produção: mais valia (absoluta e relativa); reprodução do trabalho, da força do trabalho e de todo o sistema.216

Apesar de bastante esquemático, este item demonstra a fusão que o autor faz de

elementos weberianos e marxistas para compor a “sociedade de classe”, definindo a base

material a partir de elementos marxistas, mas incorporando dois elementos weberianos:

estratificação social e dominação de classe. Neste sentido a socióloga Maria Arminda do

Nascimento Arruda parece ser bastante correta ao escrever:

No seu entendimento, a noção adquire um hibridismo do ponto de vista teórico ao combinar a tradição weberiana e marxista [...]. Vale dizer, a situação de mercado entrecruza-se com critérios forjados no

216 FERNANDES, Florestan. Classes Sociais no Brasil. 31 ago. 1974. Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes.

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âmbito da produção. Numa análise marxista clássica, o mercado é a aparência de momentos anteriores e, nesse sentido, é determinada pelos mecanismos de produção. É no interior da ordem social competitiva que as classificações positivas e negativas ocorrem, análise inspirada em Max Weber. [...] Por isso, a ordem social competitiva, em sociedades capitalistas como a brasileira, é fluída, do ponto de vista das diferenças e solidariedades de classes, além de diversificar aspirações e valores sociais.217

Por outro lado, em um sentido mais específico, Marx e, principalmente, Lenin

parecem ter influenciado também no desenvolvimento do conceito autocracia.

Na verdade, parece-nos pouco provável que Florestan parta de Marx para resgatar o

termo autocracia, já que, em Marx, o termo não chega a ganhar uma dimensão conceitual.

Suas poucas utilizações que temos notícia estão ligadas a ideia de despotismo e absolutismo,

como, por exemplo, encontramos em suas analises da “miséria alemã” – isto é, da Alemanha

ainda aristocrata e feudal, em seus artigos da Nova Gazeta Renana, como vemos nas

passagens abaixo:

Nós queremos a unidade alemã, mas somente com o estilhaçamento da grande monarquia alemã os elementos para esta unidade poderão ser isolados. Somente na tempestade da guerra e da revolução poderão ser amalgamados. Mas o constitucionalismo desaparece por si mesmo assim que a palavra dos acontecimentos disser: autocracia ou república. 218

Marx utiliza autocracia, nesta argumentação, vinculada à aristocracia feudal e em

oposição à república; portanto, muito próximo às definições que apresentamos no âmbito

jurídico e político contemporâneo. No entanto, em O Capital, o autor também faz uso do

termo, mas agora para outra situação que talvez permita que o conceito ganhe o que nos

parece seu sentido mais preciso, pois demonstra como “esse poder dos reis asiáticos egípcios

ou dos teocratas etruscos etc. transferiu-se na sociedade moderna para o capitalista, atue ele

isolado ou como capitalista coletivo em associações como a sociedade anônima”:219

Através do código da fábrica, o capital formula, legislando particular e arbitrariamente, sua autocracia sobre os trabalhadores, pondo de lado a divisão dos poderes tão proclamada pela burguesia e o mais proclamado ainda regime representativo [...] O capital, aberta e tendenciosamente, proclama-a [a máquina] o poder inimigo do trabalhador, manejando-a em função desse atributo. Ela se torna a arma mais poderosa para reprimir as revoltas periódicas e as greves dos trabalhadores contra a autocracia do capital.220

217 ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. Metrópole e cultura: São Paulo no meio do século XX. São Paulo: Edusc, 2001, pp. 290-291. 218 MARX, Karl. Ameaça da Gazeta de Gervinus. Nova Gazeta Renana nº 25, 25 jun. 1848. In: Ib., Nova Gazeta Renana. São Paulo: Educ, 2010, p. 119. Grifos do autor. 219 Ib., O Capital: critica da economia política, livro I. São Paulo: Difel, 1984, p. 383. 220 MARX, Karl. O Capital: critica da economia política, livro I. São Paulo: Difel, 1984, p. 485 e p. 499.

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Neste outro sentido, o próprio capital aparece como poder autocrático, despótico,

dentro da relação capital/trabalho; mesmo que este esteja imerso em um regime representativo

nos moldes clássicos da democracia burguesa. Assim, o pensamento liberal, ao criticar as

sociedades não “democráticas”, autoritárias e autoritaristas, não fazem mais que temer que a

sociedade como um todo se torne uma empresa capitalista.

Outro autor dentro da tradição marxista que faz uso do termo autoritarismo, mas que

parece haver influenciado mais diretamente a adoção deste como aspecto estrutural na análise

florestaniana, é Lenin, como nos indica Coutinho:

Indagado sobre as razões do uso desse termo por Florestan, o amigo Octavio Ianni me deu uma explicação convincente: o autor de RBB [A Revolução Burguesa no Brasil] teria se valido de uma expressão cunhada por Lenin para caracterizar a autocracia czarista em sua última fase, quando – sem deixar de ser autocrático (o czar se dizia mesmo “autocrata de todas as Rússias”) – o czarismo já atuava essencialmente como um Estado burguês. Insisto, porém, em que a “licença poética” a que Florestan recorreu não anula de nenhum modo a sua correta caracterização conteudística do poder ditatorial resultante do golpe de 1964.221

Como vemos, Coutinho entende a utilização do termo autocracia por Florestan como

uma licença poética, devido ao fato do autor incorporar em sua caracterização da política

brasileira um termo específico da situação histórica de Lenin.222 Mas cumpre questionarmos:

Florestan era dado a licenças poéticas ao tratar de uma conceituação teórica tão amplamente

utilizada em seu repertório?

Além disso, ao que tudo indica, Florestan não “importa” termos que ele considere de

relevância apenas a uma particularidade histórica, como é o caso do termo bonapartismo.

Florestan não utiliza este termo por acreditar que a utilização que Marx faz da expressão está

ligada a particularidade francesa – se opondo, desta forma, a Engels e a Lenin que o utilizam

em outras situações:

Tenho a segura convicção de que Marx formulara o seu pensamento com vistas à forma concorrencial ou competitiva de capitalismo e que ele, pela tendência a pesar as palavras que emprega, não endossaria a transformação subseqüente de um conceito histórico em um conceito abstrato e de validade geral. A ditadura militar, em qualquer circunstância, sempre terá algumas (ou várias) semelhanças estruturais e funcionais com o tipo de ditadura militar

221 COUTINHO, Carlos Nelson. Op. Cit., p. 258. 222 Outro autor que questiona a utilização da autocracia é Marcos Del Roio que afirma que “etimologicamente, autocracia é expressão adequada ao poder absoluto de um indivíduo e não se presta tão bem para definir o poder de uma classe social”. DEL ROIO, Marco. A teoria da revolução burguesa – tentativa de particularização de uma revolução burguesa em processo. In: DEL ROIO, Marcos; MORAES, João Quartim (org.). História do marxismo no Brasil: visões do Brasil, vol. 4. Campinas: Unicamp, 2007, p. 120.

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que se configurou na França graças a uma crise histórica evolutiva da democracia burguesa.223

Figura 8 – Na Imagem vemos o comentário marginal no prefácio da segunda edição do “18 Brumário” de Karl

Marx. Lê-se: “Cesarismo x Bonapartismo � não sugere, porém, a generalização do último termo � o que é obvio = cesarismo não é adequado; no caso = bonapartismo”. Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes.

O rigor com que Florestan tende a tratar seu repertório conceitual aponta para que não

consideremos a autocracia como mera “licença poética”, que remeta romanticamente a uma

particularidade histórica, mas como um conceito universal, de validade mais ampla.

223 FERNANDES, Florestan. (org.) Marx/Engels: história. São Paulo: Ática, 1983, p. 67.

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Em Lenin, constatamos que o termo foi constantemente usado, como afirmou

Coutinho, na identificação do czarismo em sua fase final224 e para além de associar a

autocracia com o historicamente velho, com o que deveria necessariamente ser superado –

seja por uma revolução burguesa ou por uma revolução proletária –, em seus textos, Lenin

passa a denunciar que há uma tentativa de travestir a autocracia de elementos formais da

burguesia, através da Duma (uma espécie de parlamento Russo), servindo como ardil para

escamotear o caráter autocrático do governo czarista.225

A autocracia continua a ter o mesmo sentido de concentração de poder próprio de um

sistema czarista, mas, dada a situação histórica, escamoteia sua face absolutista através de

mecanismos formais próprios da burguesia; a tal ponto que é necessário o desmascaramento,

por parte de Lenin, de que a sobrevivência da Duma está diretamente relacionada à

sobrevivência da autocracia; ou seja, a Duma encarnava a própria autocracia e “a queda da

autocracia implica necessariamente a eliminação (e uma eliminação revolucionária) da

terceira Duma”.226 Ao que parece, a autocracia travestida de aspectos burgueses seria o ardil

do poder para a consolidação de uma democracia de fachada, realizando um processo que

levaria a uma reciclagem da velha forma de dominação em decadência para uma nova forma,

mais adequada às pressões daquele momento histórico.

Esta utilização do termo por Lenin parece ser um dos principais elementos nos quais

Florestan apóia a significação geral do seu conceito de autocracia e que não dista da posição

de Heller, na qual autocracia aparece como governo constituído de cima para baixo.

Tampouco parece incompatível com uma leitura, de cariz weberiano, de que esta autocracia

seja resultado de uma dada estratificação social que, limitada em suas bases econômicas,

distorcem as utopias e ideologias liberais, no sentido mannheimiano.

224 “A revolução burguesa é precisamente, uma revolução que elimina, da maneira mais decidida, os vestígios do passado, os vestígios da feudalidade (que compreendem não só a autocracia, mas também a monarquia) e assegura, tão bem quanto possível, o desenvolvimento mais amplo, mais livre e mais rápido do capitalismo”. LENIN, Ilich. A revolução burguesa e os dois tipos de democracia. In: FERNANDES, Florestan. Lenin: política. São Paulo: Ática, 1978, p. 72. É dizer: “A ditadura revolucionária democrática de proletariado e do campesinato tem, como tudo no mundo, o seu passado e o seu futuro. O seu passado é a autocracia, o regime de servidão, a monarquia, os privilégios”. LENIN, Ilich. Duas táticas da social-democracia na revolução democrática. In: Ib., Obras escolhidas. Tomo I. Lisboa: Avante, 1981, p. 432. 225 “A autocracia continua a ser como antes o principal inimigo do proletariado e de toda a democracia. Mas seria um erro pensar que ela continua a mesma. [...] a originalidade do momento actual consiste que a autocracia teve de criar uma instituição representativa para determinadas camadas da burguesia, teve de fazer equilibrismo entre elas e os senhores feudais, teve de organizar na Duma uma aliança sobre o espírito patriarcal do mujinque e procurar um apoio contra as massas do campo entre os ricaços que arruínam a comunidade. [...] A autocracia encobre-se com instituições pretensamente constitucionais, mas ao mesmo tempo desmascara-se na verdade como nunca antes a sua essência de classe [...] A autocracia procura tomar a seu cargo a solução das tarefas objetivamente necessárias da revolução burguesa – a criação de uma representação popular, que administre realmente os assuntos da sociedade burguesa, e a liquidação das relações agrárias medievais, emaranhadas e caducas no campo; mas o resultado prático dos novos passos da autocracia é até agora precisamente igual a zero”. Ib., No caminho. In: Ib., Obras escolhidas. Tomo I. Lisboa: Avante, 1981, p. 481. 226 Ib., Reflexões sobre o período atual. FERNANDES, Florestan. Lenin: política. São Paulo: Ática, 1978, p. 117.

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Florestan consolidará o conceito autocracia ao escrever A revolução burguesa no

Brasil e, apesar de ter tido possivelmente a influência de Lenin e de todos estes outros

autores, sua utilização do conceito ganha uma nova dimensão. Assim, se quisermos

compreender efetivamente o conceito de autocracia em Florestan, temos que tentar

compreendê-lo resgatando a imanência de seus textos.

A construção teórica da autocracia na obra florestaniana

Como vimos, Florestan questiona as análises que utilizam o conceito de revolução

burguesa unicamente como “manifestações que se aproximassem tipicamente dos ‘casos

clássicos’, nas quais houvesse o máximo de fluidez e de liquidez nas relações recíprocas da

transformação capitalista com a dominação burguesa”, para o autor esta é uma “posição

interpretativa unilateral” que leva a perda do “significado empírico, teórico e histórico dos

‘casos comuns’” e não dá conta de casos atípicos.227

Considera que haveria, nesse tipo de leitura, uma presunção bastante generalizada em

relação a um esquema de revolução burguesa, em que a dependência e o subdesenvolvimento

“seriam estádios passageiros, destinados a desaparecer graças ao caráter fatal da

autonomização progressiva do desenvolvimento capitalista”. Tal leitura ignoraria, desta

forma, que a expansão do capitalismo dependente “estava fadada a ser permanentemente

remodelada por dinamismos das economias capitalistas centrais e do mercado capitalista

mundial”.228

Neste sentido, a parte dependente deve absorver “traços estruturais e dinâmicos

essenciais, [...] como uma economia mercantil, a mais-valia relativa etc. e a emergência de

uma economia competitiva diferenciada ou de uma economia monopolista articulada etc.”. Ou

seja, deve incorporar os elementos que garantam um mínimo de uniformidade entre periferia e

centro, para que se mantenha a acumulação das economias periféricas com as economias

centrais.

227 Neste item, praticamente todas as citações foram retiradas da terceira parte de A revolução burguesa no Brasil. No geral, as citações apareceram na seqüência em que foram ordenadas no livro. Faremos as indicações das páginas, principalmente, nas citações maiores, em destaque. Evitaremos as referências nas citações que compõem, “organicamente”, o corpo do texto para diminuir, um pouco, a “poluição” de elementos que já será bastante elevada nesta parte. Estes vários fragmentos de textos poderão ser encontrados na mesma página da citação seguinte. 228 “deixou-se de considerar que a autonomização do desenvolvimento capitalista exige, como um pré-requisito, a ruptura da dominação externa (colonial, neocolonial ou imperialista). Desde que esta se mantenha, o que tem lugar é um desenvolvimento capitalista dependente e, qualquer que seja o padrão para o qual ele tenda, incapaz de saturar todas as funções econômicas, socioculturais e políticas que ele deveria preencher no estádio correspondente do capitalismo”. FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1975, p. 290.

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Superpõem-se a estas uniformidades entre periferia e centro, diferenças fundamentais

que explicam “a variação essencial e diferencial, isto é, o que é típico da transformação

capitalista e da dominação burguesa sob o capitalismo dependente”. Dentre tais variações, a

autocracia aparece como estrutura histórica fundamental, pois se desenvolve um novo

processo de combinação da transformação capitalista com a dominação burguesa, em que:

A noção de “democracia burguesa” sofre uma redefinição, que é dissimulada no plano dos mores, mas se impõe como uma realidade prática inexorável, pela qual ela se restringe aos membros das classes possuidoras que se qualifiquem, econômica, social e politicamente, para o exercício da dominação burguesa.229

Com a estruturação econômica da dependência através da “apropriação dual do

excedente econômico – a partir de dentro, pela burguesia nacional, e, a partir de fora, pelas

burguesias das nações capitalistas hegemônicas e por sua superpotência”, cria-se “uma

hipertrofia acentuada dos fatores sociais e políticos da dominação burguesa”. Assim:

A extrema concentração social da riqueza, a drenagem para fora de grande parte do excedente econômico nacional, a conseqüente, persistência de formas pré ou subcapitalistas de trabalho e a depressão medular do valor do trabalho assalariado, em contraste com altos níveis de aspiração ou com pressões compensadoras à democratização da participação econômica, sociocultural e política produzem, isoladamente e em conjunto, conseqüências que sobrecarregam e ingurgitam as funções especificamente políticas da dominação burguesa (quer em sentido autodefensivo, quer numa direção puramente repressiva).230

A transformação capitalista destas nações dependentes e subdesenvolvidas será

bastante diferente do que ocorre no capitalismo dos países centrais, “mesmo onde a

associação de fascismo com expansão do capitalismo evoca o mesmo modelo geral

autocrático-burguês”, como no caso da Alemanha e Itália; isto porque, para Florestan, “o

capitalismo dependente e subdesenvolvido é um capitalismo selvagem e difícil, cuja

viabilidade se decide, com freqüência, por meios políticos e no terreno político”.231

Dentro desta estrutura, não há interesse dos países centrais em diminuir esta ação

política enfraquecendo a burguesia local dos países subdesenvolvidos, pois “se fizessem isso,

estariam fomentando a formação de burguesias de espírito nacionalista revolucionário”. O

incentivo externo é justamente o contrário; os países capitalistas centrais e hegemônicos

necessitam de parceiros sólidos, principalmente após a Segunda Guerra Mundial, quando o

capital entra em conflito com o socialismo e as burguesias locais dos países subdesenvolvidos

229 FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1975, p. 292. 230 Ibid., p. 293. 231 Ibidem.

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passam a exercer um papel de fronteiras internas e vanguardas políticas do capitalismo. Neste

quadro, o elemento político será fundamental, uma vez que:

Já não só a possibilidade, mas também a persistência da transformação capitalista e da dominação burguesa vão passar por um eixo especificamente político. Se as burguesias nacionais da periferia falharem nessa missão política, não haverá nem capita-lismo, nem regime de classes, nem hegemonia burguesa sobre o Estado. O que sugere que a Revolução Burguesa na periferia é, por excelência, um fenômeno essencialmente político, de criação, consolidação e preservação de estruturas de poder predominante-mente políticas, submetidas ao controle da burguesia ou por ela controláveis em quaisquer circunstâncias.232

As burguesias centrais e periféricas transformam-se em extremamente conservadoras;

seus objetivos comuns são: “manter a ordem, salvar e fortalecer o capitalismo, impedir que a

dominação burguesa e o controle burguês sobre o Estado nacional se deteriorem”. Tais

interesses fazem com que convivam duas faces políticas interdependentes. Na primeira, a

burguesia dependente é fortalecida pela dinâmica do capitalismo mundial e leva “de modo

quase sistemático e universal, a ações políticas de classe profundamente reacionárias, pelas

quais se revela a essência autocrática da dominação burguesa e sua propensão a salvar-se

mediante a aceitação de formas abertas e sistemáticas de ditadura de classe”.233 Na segunda,

o caráter retardatário das revoluções periféricas tornou sua burguesia – de modo direto ou

indireto – vazia historicamente dos papéis econômicos, sociais e políticos.234

Desta forma, cria-se uma situação paradoxal, na qual as burguesias sob o capitalismo

dependente não são “meras ‘burguesias compradoras’ (típicas de situações coloniais e

neocoloniais, em sentido específico)”, mas detentoras de “um forte poder econômico, social e

político, de base e de alcance nacionais; possuem o controle da maquinaria do Estado

nacional”. Todavia, não são capazes de promover uma superação da dependência estrutural a

qual estão submetidas; não possuem autonomia e, no lugar desta, “contam com suporte

externo para modernizar as formas de socialização, de cooptação, de opressão ou de repressão

inerentes à dominação burguesa”.235 Esta instrumentalização externa cria um cenário político

interno muito favorável à classe burguesa, sendo “muito difícil deslocá-las politicamente,

através de pressões e conflitos mantidos ‘dentro da ordem’; e é quase impraticável usar o

232 FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1975, p. 294. 233 Ibid., p. 295. (Grifos nossos). 234 “Estas ficaram sem base material para concretizar tais papéis, graças aos efeitos convergentes e multiplicativos da drenagem do excedente econômico nacional, da incorporação ao espaço econômico, cultural e político das nações capitalistas hegemônicas e da dominação imperialista. Aí está o busílis da questão, desse ângulo: o porquê do caráter retardatário das Revoluções Burguesas na periferia dependente e subdesenvolvida do mundo capitalista”. Ibidem. 235 FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1975, p. 296.

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espaço político, assegurado pela ordem legal, para fazer explodir as contradições de classe,

agravadas sob as referidas circunstâncias”. A classe burguesa pode, a um só tempo, lutar para

consolidar vantagens ou privilégios de classe “por sua sobrevivência e pela sobrevivência do

capitalismo” em geral.

Estes elementos põem em marcha um “poder burguês em sua manifestação histórica

mais extrema, brutal e reveladora, a qual se tornou possível e necessária graças ao seu estado

de paroxismo político”, que transforma “o Estado nacional e democrático em instrumento

puro e simples de uma ditadura de classe preventiva”.

Na medida em que se consolida o capitalismo competitivo e se aprofunda o

capitalismo monopolista no Brasil, ampliam-se as conexões da dominação burguesa a estas

transformações, pois há “a emergência da industrialização como um processo econômico,

social e cultural básico, que modifica a organização, os dinamismos e a posição da economia

urbana dentro do sistema econômico brasileiro”, mas, apesar de gerar uma “hegemonia do

complexo industrial-financeiro”, não promove “a desagregação propriamente dita do caráter

duplamente articulado da economia capitalista dependente”.236

Trata-se de mudanças estruturais e dinâmicas que transcorrem em um longo período

de tempo, de forma que seus impactos ficam mais visíveis morfologicamente, em sua

superfície, “graças à concentração de massas humanas, de riquezas e de tecnologias modernas

em um número reduzido de metrópoles-chaves”.237

Desenvolve-se, desta forma, uma conexão da dominação burguesa com a

transformação capitalista, “sob o capitalismo dependente e subdesenvolvido na fase mais

adiantada da eclosão industrial”, que mantém o caráter “duplamente articulado da economia

brasileira e com a intensificação da dominação imperialista externa”.

A dupla articulação não cria, apenas, o seu modelo de trans-formação capitalista. Ela também engendra uma forma típica de dominação burguesa, adaptada estrutural, funcional e histori-camente, a um tempo, tanto às condições e aos efeitos do desen-volvimento desigual interno, quanto às condições e aos efeitos da dominação imperialista externa.238

É preciso que ressaltemos que, para Florestan, nada impedia que a burguesia tomasse

outro caminho histórico como, por exemplo, o de implantação de uma democracia burguesa,

236 Ibid., p. 297. 237 “De fato, somente São Paulo capitalizou as transformações essenciais, de longa duração; e a mudança fundamental do ce-nário reflete-se, de modo geral, mais no tope do sistema de classes, pois só os grupos com posições estratégicas (centrais ou mediadoras e intermediárias) no ciclo econômico da industrialização intensiva tiveram um aumento real (na verdade desproporcional) do poder sócio-econômico e político”. Ibid., p. 298. 238 FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1975, p. 300.

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“a não ser a polarização conservadora da consciência burguesa, exclusivistamente isolada

dentro de seus interesses de classes e de dominação de classe”. No final das contas, o que

houve foi uma “atitude política ‘realista’ e ‘pragmática’”, que demonstrou “sua racionalidade

burguesa” no momento da transição e que os levaram a optar por uma transformação

capitalista acelerada, ainda que dependente e subdesenvolvida. É dizer, dentro de sua

“situação de classe”, a burguesia nacional tinha como possibilidade caminhar para uma

democracia burguesa; mas o que ela acaba por expressar é que sua “racionalidade” já não era

moldada a partir de utopias e ideologias liberais clássicas; os ideais capitalistas da periferia

são outros:

Isso significa, como querem alguns, que não há, propriamente, qualquer revolução nacional ou, então, que aquelas classes pura e simplesmente “traíram” a revolução nacional? Podem-se sustentar tais avaliações, desde que se estabeleçam certos requisitos ideais da transformação capitalista, que não ocorrem nem podem ocorrer na periferia.239

O caráter de dupla articulação necessita da revolução nacional para manter o eixo de

articulação política: “a questão é que não se deve perder de vista de que revolução nacional se

está falando”. Tal revolução nacional deve garantir o desenvolvimento e fortalecer “o poder

burguês através do fortalecimento das estruturas e funções nacionais de sua dominação de

classe”. Assim, a revolução nacional se estabelece dentro de um circuito fechado (ex.:

Primeira República, Getúlio, Kubitschek e 1964), que deve garantir “a integração nacional de

uma economia capitalista em diferenciação e em crescimento, sob as condições e os efeitos

inerentes à dupla articulação (isto é, ao desenvolvimento desigual interno e à dominação

imperialista externa)”. Esta revolução nacional viciada engendra uma variedade especial de

dominação burguesa:

Configura-se, assim, um despotismo burguês e uma clara separação entre sociedade civil e Nação. Daí resulta, por sua vez, que as classes burguesas tendem a identificar a dominação burguesa com um direito natural “revolucionário” de mando absoluto, que deve beneficiar a parte “ativa” e “esclarecida” da sociedade civil (todos os que se classificam em e participam da ordem social competitiva); e, simetricamente, que elas tendem a reduzir a Nação a um ente abstrato (ou a uma ficção legal útil), ao qual só atribuem realidade em situações nas quais ela encarne a vontade política da referida minoria “ativa” e “esclarecida”.240

Florestan não deixa dúvidas que este despotismo – ou seja, esta forma autocrática da

burguesia nacional – é:

239 Ibid., p. 301. 240 FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1975, p. 302.

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Mero reflexo das relações materiais de produção, ela se insere, como estrutura de dominação, no âmago mesmo dessas relações, inibindo, suprimindo ou reorientando, espontânea e institucionalmente, os processos econômicos, sociais e políticos por meio dos quais as demais classes ou quase-classes se defrontam com a dominação burguesa. Isso explica, sociologicamente, como e por que a dominação burguesa se erige no alfa e no ômega não só da continuidade do modelo imperante de transformação capitalista, como, ainda, da preservação ou da alteração da ordem social correspondente. Ela se impõe como o ponto de partida e de chegada de qualquer mudança social relevante; e se ergue como uma barreira diante da qual se destroçam (pelo menos por enquanto) todas as tentativas de oposição às concepções burguesas vigentes do que deve ser a “ordem legal” de uma sociedade competitiva, a “segurança nacional”, a “democracia”, a “educação democrática”, o “salário mínimo”, as “relações de classes”, a “liberdade sindical”, o “desenvolvimento econômico”, a “civilização” etc. Desse ângulo, dela provém a opção interna das classes burguesas por um tipo de capitalismo que imola a sociedade brasileira às iniqüidades do desenvolvimento desigual interno e da dominação imperialista externa.241

Esta relação é a chave para a explicação da “existência e o aperfeiçoamento da versão

que nos coube do capitalismo, o capitalismo selvagem”. Trata-se do capitalismo possível

dentro da partilha do mundo entre os países hegemônicos e as empresas multinacionais: “um

capitalismo que associa luxo, poder e riqueza, de um lado, à extrema miséria, opróbrio e

opressão, do outro”.

Dentro desta partilha do mundo encontramos funções derivadas para essa forma de

dominação burguesa: ela cumpre o papel de aglutinação mecânica, como solidariedade de

classe, entre o capital nacional e o capital estrangeiro; e, assim, leva a cabo uma filtragem de

interesses divergentes na base realizando concessões mútuas e ajustamentos recíprocos. Com

isso, a burguesia nacional, “converte-se, estruturalmente, numa burguesia pró-imperialista,

incapaz de passar de mecanismos autoprotetivos indiretos ou passivos para ações frontalmente

antiimperialistas, quer no plano dos negócios, quer no plano propriamente político e

diplomático”.242

Mas, por outro, tal relação inibe a “diferenciação, intensificação e autonomização

progressiva do desenvolvimento capitalista interno”. E, assim, há a manutenção

indefinidamente de “focos de desenvolvimento econômico pré ou sub-capitalistas”, é dizer,

“estruturas sócio-econômicas e políticas arcaicas ou semi-arcaicas operando como impe-

dimento à reforma agrária, à valorização do trabalho, à proletarização do trabalhador, à

expansão do mercado interno etc.”:

241 Ibid., p. 303. 242 Ibid., p. 305.

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Ela também faz com que a especulação se desenrole num contexto que é antes quase colonial que puramente capitalista, em todas as esferas da vida econômica (embora com predomínio do setor industrial e financeiro; e do capitalismo urbano-industrial sobre o capitalismo agrário). Ela impede, também, que as estruturas econômicas efetivamente modernas ou modernizadas fiquem ex-postas a controle societário eficiente, permitindo que a eclosão industrial continue largamente submetida ao velho modelo dos ciclos econômicos, tão destrutivo para o desenvolvimento orgânico de uma economia capitalista integrada em escala nacional. A ausência desse controle societário eficiente confere, ainda, uma liberdade quase total à ‘grande empresa’, nacional ou estrangeira, em todos os ramos de negócios, e à devastadora penetração im-perialista em todos os meandros da vida econômica brasileira.243

Outra função, desta dominação, é suprir a falta de um capitalismo acabado, que sirva

como bússola firme para a revolução nacional e que coloque este capitalismo dependente

dentro do ritmo do capitalismo externo. Para isso, o Estado passa a ocupar o centro da

evolução do capitalismo; “só ele, de fato, pode abrir às classes burguesas o áspero caminho de

uma revolução nacional, tolhida e prolongada pelas contradições do capitalismo dependente e

do subdesenvolvimento”.244 No caso específico do Brasil, alguns aspectos corroboram para

esta atuação estatal, que são: “a natureza autoritária do presidencialismo e a forte lealdade dos

militares à dominação burguesa”.

Sobre a ditadura militar, Florestan ressaltava que a militarização do Estado brasileiro

não elimina a vulnerabilidade da ordem burguesa sob o capitalismo dependente e

subdesenvolvido, mas apenas aumentava a eficácia da dominação de classes. Chegando a uma

conclusão que acena para sua compreensão de como poderia, naquele momento (1974),

desenrolar-se a democratização do país: “a largo prazo, a alternativa é óbvia. Ou a dominação

burguesa se refunde, ajustando-se às pressões de baixo para cima e ao ‘diálogo entre as

classes’, ou ela se condena a desaparecer ainda mais depressa”.245

A coalescência estrutural da burguesia

O período de maturação histórica da burguesia brasileira, para Florestan, corresponde

ao período que vai de 1918 a 1958; não se trata do período de formação da burguesia, que é,

para o autor, bem anterior, nem corresponde à época da crise oligárquica. Trata-se de

243 FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1975, p. 306. 244 Ibid., p. 307. 245 Ibid., p. 309.

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um fenômeno muito mais amplo e (embora não pareça) mais dra-mático: a coalescência estrutural dos vários estratos sociais e das várias categorias econômicas que formavam as “classes possuido-ras”, crescentemente identificadas com uma concepção burguesa do mundo e com um estilo burguês de vida, graças a rápida e contínua aceleração da revolução urbano-comercial e, em seguida, à industrialização.246

Apesar da imersão e desaparecimento dos estamentos sob o capitalismo competitivo,

as oligarquias pouco são afetadas “e a crise de reabsorção pela qual elas passam, não possui o

mesmo significado histórico que o aparecimento da burguesia como uma categoria histórico-

social e uma comunidade política”.247

O fato histórico que o autor destaca é “um amplo e profundo processo de socialização

do poder econômico, social e político, pelo qual as classes sociais burguesas se unificam”.

Trata-se do processo pelo qual uma burguesia, que se iniciou como um resíduo social,

constituindo-se mais tarde em “um estrato pulverizado e disperso na sociedade brasileira, que

se perdia nos estamentos intermediários”, ganhará sua fisionomia típica, constituindo a cúpula

“da sociedade de classes e sua grande força sócio-econômica, cultural e política”:

Aí estava uma revolução demasiado complicada e difícil, não por causa do elemento oligárquico, em si mesmo, mas porque era preciso extrair o ethos burguês do cosmos patrimonialista em que ele fora inserido, graças a quase quatro séculos de tradição escravista e de um tosco capitalismo comercial. Doutro lado, a fragmentação das classes e estratos de classe burgueses favorecia muito mais o seu isolamento local ou regional e a sua pulverização, que a unificação horizontal, em escala nacional, de interesses e de valores percebidos confusamente e de maneira predominantemente provinciana ou paroquialista. 248

Havia, então, uma série de elementos socioeconômicos e políticos “para incentivar as

classes burguesas a uma falsa consciência burguesa”, que criava uma ilusão em relação às

ideologias e utopias europeias e americanas. A racionalidade burguesa, necessária para o

capitalismo dependente, se deu “por etapas e por três vias diversas, todas frustradoras”.

Primeiro, foi necessário realizar uma revisão histórica, isto é, tomar consciência de que as

expectativas burguesas de então estavam erradas; segundo, caminhar “através de entrechoques

alimentados por antagonismos intraclasses”, nos quais, “em diferentes momentos, setores

civis ou militares e civis-militares, da alta e da média burguesia, lançaram-se a aventuras tidas

como ‘nacionalistas’, ‘democráticas’ e ‘revolucionárias’”.

246 FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1975, p. 311. Grifos nossoss. 247 Ibidem. 248 Ibid., p. 312.

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Todavia, as classes burguesas que lutavam por causas tão amplas não tinham coragem de romper com a dominação imperialista e com os liames que as prendiam às várias formas de subdesenvolvimento interno. Em conseqüência, patronizavam uma variedade especial de “populismo”, a demagogia populista, agravando os conflitos de classe sem aumentar, com isso, o espaço político democrático, reformista e nacionalista da ordem burguesa existente. Estas foram, no entanto, as experiências que acordaram a burguesia brasileira para a sua verdadeira condição, ensinando-a a não procurar vantagens relativas para estratos burgueses isolados, à custa de sua própria segurança coletiva e da estabilidade da dominação burguesa.249

E por fim, aponta o papel da “exposição de elites das classes burguesas a influências

socializadoras externas e de manipulações diletas de problemas internos por meio de

controles desencadeados e/ou orientados a partir de fora” que se impunham de formas

variadas, deslocando pessoas de fora e através de mecanismos de comunicação de massa.

Portanto, é visível que a internacionalização das estruturas materiais das relações de mercado e de produção também se estende às superestruturas das relações do poder burguês. As burguesias da periferia sofrem, desse modo, uma oscilação ideológica e utópica, condicionada e orientada a partir de fora. De classes patronizadoras da revolução democrático-burguesa nacional passam a conceber-se como pilares da ordem mundial do capitalismo, da “democracia” e da “civilização cristã”.250

Há, segundo o autor, uma reviravolta no processo de internalização da ideologia e

utopias importadas, pois “aumenta o grau de alienação filosófica, histórica e política da

burguesia perante os problemas nacionais e sua solução”: “no fundo, a referida reviravolta

confere novos fundamentos psicológicos, morais e políticos ao enrijecimento da dominação

burguesa e à sua transfiguração numa força social especificamente autoritária e totalitária”.

É aqui, e não numa suposta deterioração do liberalismo nem numa presumível exacerbação do mandonismo tradicionalista, que se devem procurar as raízes psicossociais e históricas da mudança do horizonte cultural das classes e estratos de classe burgueses. Essa mudança levou, gradualmente, nas últimas quatro décadas, a uma nova filosofia política e a ações de classes que puseram em primeiro plano o privilegiamento da situação de interesses da burguesia como um todo. Ela serviu, pois, de fundamento para uma solidariedade de classes que deixou de ser “democrática” ou, mesmo, “autoritária”, para tornar-se abertamente “totalitária” e contra-revolucionária, em suma, o fermento de uma ditadura de classe preventiva.251

249 FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1975, p. 314. 250 Ibid., pp. 315-316. 251 FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1975, pp. 316-317.

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O que ocorre nos países dependentes é uma modernização dirigida, que tende ao

deslocamento da lealdade à Nação e às polarizações ideológicas e utópicas da revolução

nacional, para uma solidariedade às “nações democráticas” e a defesa da civilização cristã

ocidental. Neste sentido, a “internacionalização das estruturas materiais das relações de

mercado e de produção também se estende às superestruturas das relações do poder burguês”,

gerando uma oscilação ideológica e utópicas das burguesias periféricas que são condicionadas

e orientadas a partir de fora, terminando por “aumenta o grau de alienação filosófica, histórica

e política da burguesia perante os problemas nacionais e sua solução”.

Para Florestan, graças a estas mudanças do horizonte cultural, “os estratos de classe

burgueses deram um verdadeiro salto histórico, realizando sua integração horizontal, em

escala nacional, diretamente no plano de dominação de classe”, conseguindo extrair, de outro

lado, “vantagens estratégicas seja dos conflitos que minavam intestinamente a solidariedade

burguesa, seja dos conflitos com as classes operárias é destituídas”.

Ao realizar sua integração horizontal, a classe dominante impõe as outras classes seus

próprios interesses, através dos quais a desagregação da ordem burguesa passa a equivaler a

derrocada da nação. Da mesma forma, a burguesia passa a explorar “em proveito próprio

tanto os conflitos sociais intestinos quanto os conflitos com o proletariado, as classes

trabalhadoras em geral e as classes marginalizadas ou excluídas”. Estes conflitos são

colocados automaticamente como fora da ordem; viram caso de polícia e são violentamente

sufocados, perdendo sua conexão com a revolução nacional democrático-burguesa e sendo

capitalizados, pela própria burguesia em proveito próprio: deixando “de servir de base para a

dinamização das propaladas ‘reformas de estrutura’, a aceleração e o aprofundamento da

revolução nacional ou de possíveis ‘aberturas’ à democratização da riqueza e do poder”:

Ao “defender a estabilidade da ordem”, portanto, as classes e os estratos de classe burgueses aproveitaram aqueles conflitos para legitimar a transformação da dominação burguesa em uma ditadura de classes preventiva e para privilegiar o seu poder real, nascido dessa mesma dominação de classe, como se ele fosse uma encarnação da ordem “legitimamente estabelecida”.252

No intuito de fugir de análises mecanicistas, Florestan opõe “a busca das conexões

específicas da dominação burguesa com a transformação capitalista onde o desenvolvimento

desigual interno e a dominação imperialista externa constituem realidades intrínsecas

permanentes, apesar de todas as mudanças quantitativas e qualitativas do capitalismo”.253

252 FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1975, p. 317. 253 Ibid., p. 318.

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A burguesia ignorou sua real situação enquanto não teve que “se defrontar com os pro-

blemas suscitados pela industrialização intensiva, mantidos o subdesenvolvimento interno e a

dominação imperialista externa” . Mas, na medida em que estes problemas ameaçam sua

existência, “a burguesia brasileira teve de realizar uma revolução copernicana, tanto em seu

horizonte cultural quanto em seu circuito político”. Ao tomar consciência da situação, ela

“tenta desfazer-se, na esfera da ação econômica, social e política, das ilusões utópicas refe-

rentes à democracia burguesa e ao nacionalismo burguês”.

As transformações externas dos ritmos e estruturas do capitalismo mundial e do imperialismo agravaram ainda mais as dificuldades inexoráveis dessa burguesia, forçando-a a entender que ela não podia preservar a transformação capitalista rompendo com a dupla articulação, mas fazendo exatamente o inverso entrelaçando ainda com mais vigor os momentos internos da acumulação capitalista com o desenvolvimento desigual da economia brasileira e com os avassaladores dinamismos das “empresas multinacionais”, das nações capitalistas hegemônicas e do capitalismo mundial.254

Historicamente, se torna um grande desafio político conseguir que “a dominação bur-

guesa de qualquer conexão real, que fosse substantivamente e operativamente democrático-

burguesa e nacionalista-burguesa”. Por trás da crise que a burguesia brasileira enfrentava,

havia a necessidade histórico-social de adaptar a burguesia nacional ao industrialismo

intensivo, “sob uma evolução que agravava o desenvolvimento desigual interno e

intensificava a dominação imperialista externa”.

O êxito histórico relativo da burguesia só alcança eficácia prática a curto prazo, na

medida em que se trata de um processo no nível histórico (ou seja, não estrutural), mas ele dá

condições para que as classes burguesas possam formular e aplicar um conjunto de políticas

globais “que produzirá efeitos estruturais e dinâmicos de médio e largo prazos”.

Desta forma, a ditadura de classe que se instaurara em 1964 não teria “vindo para

ficar”, tratava-se sim de uma paz-armada

que durará enquanto o atual padrão compósito e articulado de dominação burguesa puder fazer face às contrapressões do radicalismo burguês, das massas populares e do proletariado, as quais tenderão à reconstituir-se, a crescer e a se fortalecer, graças às novas condições histórico-sociais, geradas pela industrialização intensiva e pelo capitalismo monopolista.255

Destarte, havia dois elementos fortes: um para a manutenção e outro para a segregação

da ditadura. O primeiro era o fato de que a ditadura contava com a força, não apenas das

254 Ibid., pp. 318-319. 255 FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1975, p. 320.

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classes burguesas nacionais, mas também com o apoio externo, que tendia a ampliar sua

continuidade; mas, ao mesmo tempo, existia a própria dinâmica da sociedade de classe,

“sujeita a fenômenos constantes de autodesagregação” devido ao próprio desenvolvimento

desigual interno.

2.3 Bases sociais e significado da ditadura militar: a contra-revolução preventiva

Como vimos, a autocracia como estrutura histórica do capitalismo dependente é

resultado da forma como se incorporam, especificamente, o “poder” e a “dominação” da

classe burguesa periférica. Um processo que ocorre como desdobramento de uma sociedade

patrimonialista, cuja estrutura econômica é orientada para fora, que terá sua identificação

como classe já em um período muito avançado do capitalismo em nível mundial e sob uma

luta de vida e morte com o comunismo. A autocracia e sua manutenção seriam o resultado de

uma dada mentalidade que visa preservar a concentração de poder, riqueza e privilégios, por

“entender” que os destinos particulares destes burgueses representam o próprio destino da

Nação.

No plano prático, a estrutura autocrática é fundamental para funcionalizar a

dependência, dando uma carga excessivamente política à classe burguesa, de forma que esta

possa atrelar o país às necessidades de seus aliados externos, ainda que fique como “sócia

menor” de todo o processo.

Assim, só é possível entendermos a ditadura militar em Florestan Fernandes tendo em

vista este quadro geral. Os militares não podem ser compreendidos como os paladinos da

democracia que, temendo um golpe da esquerda frente às vacilações de um “governo débil”,

se levantam para instaurar a ordem e garantir o progresso. O golpe militar foi a resposta de

uma burguesia em pânico; foi mecanismo de defesa e modernização da estrutura autocrática

que impera no Brasil desde sua colonização e, através dela, se consolida a particularidade

histórica da “autocracia-burguesa”. Assim, a ditadura acumulou não só a função de preservar

tal estrutura, mas de modernizá-la de forma segura para as classes dominantes.

A ditadura, para Florestan, é uma expressão da estrutura autocrática arcaica, cuja

principal função foi a de frear um movimento que tendia à superação desta mesma estrutura;

sofrear uma promessa de movimento que tendia a “completar” a revolução burguesa no

Brasil. Por isso o golpe militar é entendido pelo autor como uma contra-revolução preventiva.

A estrutura política da autocracia burguesa

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Ainda de acordo com a análise contida em A revolução burguesa, pode-se dizer que

nunca se chegou, no pré-64, a uma situação pré-revolucionária; “a situação existente era

potencialmente pré-revolucionária”, na medida em que havia uma desarticulação e

desorientação da dominação burguesa.

A adaptação da dominação burguesa às condições históricas emergentes, impostas pela industrialização intensiva, pela metropolização dos grandes centros humanos e pela eclosão do capitalismo monopolista, processou-se mediante a multiplicação e a exacerbação de conflitos e de antagonismos sociais, que desgas-tavam, enfraqueciam cronicamente ou punham em risco o poder burguês.256

Os conflitos no seio da própria burguesia “rasgavam as fendas pelas quais a

instabilidade política se instaurava no âmago dos conflitos de classes”; ainda que não

colocasse em risco a dominação burguesa, enfraquecia e inibia o poder burguês, além de, em

parte, propiciava que “os conflitos tolerados e contidos ‘dentro da ordem’” se agravassem

continuamente.

Cria-se, assim, “várias órbitas em permanente atrito, em torno das quais gravitavam os

projetos de revolução nacional”, sem que a classe burguesa chegasse a uma conciliação em

torno dos interesses de toda a burguesia. Será a própria expansão da economia capitalista que

suscitará “pressões políticas suficientemente fortes para despertar e fomentar a solidariedade

de classes burguesas”.

As esferas democráticas e nacionalistas, ligadas ao radicalismo burguês e

especificamente à demagogia populista, acabaram por ultrapassam os limites pró-burgueses;

transcenderam o reformismo e o nacionalismo democrático-burguês que compatibilizava um

débil ponto de equilíbrio da sociedade de classes brasileira – dependente e subdesenvolvida.

A extrema concentração social da riqueza e do poder não conferia à burguesia nativa espaço político dentro do qual pudesse movimentar-se e articular-se com os interesses sociais mais ou menos divergentes. Ela só podia, mesmo, mostrar-se “democrática”, “reformista” e “nacionalista” desde que as “pressões dentro da ordem” fossem meros símbolos de identificação moral e política, esvaziando-se de efetividade prática no vir a ser histórico.257

Tornava-se impossível, naquele momento, que estratos de classe burgueses pudessem

se servir do radicalismo burguês para buscar apoio das massas populares “sem arriscar os

256 FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1975, p. 322. 257 FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1975, p. 324.

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fundamentos materiais e políticos da ordem social competitiva sob o capitalismo dependente e

subdesenvolvido”.

Ao mesmo tempo, ocorria a “emergência e a difusão de movimentos de massa

antiburgueses, nas cidades e até em algumas áreas do campo”, que, ainda que não

apresentassem um perigo imediato, intimidavam o poder burguês; além do que contaminavam

a pequena burguesia formada por estudantes, sacerdotes, militares entre outros elementos, que

somados à miséria e à pobreza generalizadas, criavam uma situação de possível convulsão

social.

O papel do Estado nacional tem grande relevância neste contexto, pois sendo

[...] irrefreavelmente intervencionista, por efeito da extrema diferenciação e do crescimento congestionado de suas funções econômicas diretas e de suas múltiplas funções culturais, converteu-se numa formidável ordem administrativa (por causa de seu corpo de funcionários e de técnicos) e numa considerável força sócio-econômica (por causa da massa das empresas estatais e das inúmeras áreas em que incidiam, coativamente, os “programas especiais do Governo”).258

O poder da burguesia dependia, em grande parte, deste Estado, com o

“transbordamento do radicalismo burguês na direção do poder estatal”, devido os governos de

“base populista”, surge um novo temor da perda do controle burguês sobre o Estado:

As recentes origens patrimonialistas da burguesa brasileira, com seu agressivo particularismo e seu arrogante mandonismo conserva-dor, impediam uma compreensão mais ampla ou flexível do pro-blema [...] A simples autonomização institucional das funções básicas do Estado e a mera ameaça de que isso iria acarretar uma verdadeira nacionalização de suas estruturas administrativas ou políticas e servir de fundamento a um processo de centralização independente do poder, apareciam como uma clara e temível “revolução dentro da ordem” antiburguesa. 259

Temor não infundado, segundo Florestan, pois caso ocorresse uma transformação

política, a burguesia perderia o controle do Estado e “o poder burguês se esvaziaria se

perdesse o monopólio do poder estatal”, já que não era fundado em bases econômicas e

sociais sólidas.

Soma-se, como elemento crucial neste contexto, o papel da industrialização intensiva e

a eclosão do capitalismo monopolista. Tais fatos, nascidos da dinâmica do capitalismo em

nível mundial, ampliavam “de maneira explosiva, as influencias externas sobre o

desenvolvimento capitalista interno, exigindo das classes e estratos de classe burgueses novos

258 Ibidem. 259 Ibid., p. 325.

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esquemas de ajustamento e de controle daquelas influências”. Cabia à burguesia nacional

enfrentar seus efeitos políticos, “pois se a irradiação do capitalismo competitivo, de fora para

dentro, não atingia diretamente as estruturas de poder político da sociedade brasileira, o

mesmo não sucedia com a irradiação do capitalismo monopolista”.260

A burguesia nacional não poderia se indispor com seu aliado principal; era necessário

ampliar a associação aos capitais externos e, ao mesmo tempo, impor um limite de

interdependência que garantisse seu status “em parte mediador e em parte livre de ‘burguesia

nacional’”; este status era, para a classe burguesa, mais importante que o próprio

desenvolvimento capitalista e a diferenciava de uma burguesia-tampão, típica de países

coloniais e neocoloniais:

Deste ângulo, percebe-se claramente o quanto o referido status é importante para uma burguesia dependente. Ele constitui a base material de autoproteção, autodefesa e auto-afirmação dessa burguesia, no plano das relações internacionais do sistema capitalista mundial. Privadas desse status, as burguesias nativas da periferia não contariam com suporte e funções políticas, que o monopólio do poder estatal lhes confere, para existir e sobreviver como comunidade econômica. Daí a perturbadora evolução política do desafio externo, para uma burguesia tão empenhada em atingir o ápice da transformação capitalista através da “colaboração externa” e da “associação com os capitais estrangeiros”.261

Não podemos deixar de lembrar aqui, mais uma vez, a influência weberiana. Se

apontamos no capítulo anterior a importância da “situação de classe” na análise florestaniana,

não podemos deixar de lembrar, com a passagem acima, a ideia de “situação de status”. No

entanto, a situação de status está vinculada à “honra social” (ou prestígio), que nas palavras de

Weber, “em contraste com a ‘situação de classe’, determinada de forma puramente

econômica, queremos designar como ‘situação de classe’ todo componente típico do destino

dos homens determinados por uma estimativa social específica, positiva ou negativa, de

honra”.262 Mas a situação de status ocorreria dentro dos “grupos de status” ou, como

Florestan utiliza, dentro dos “estamentos” e não de sociedades competitivas:

Para todos os efeitos, a estratificação por status caminha de mãos dadas com uma monopolização de bens ou oportunidades materiais e ideais, de uma forma que aprendemos a considerar como típica. Além da honra de status específica, que sempre repousa sobre a distância e a exclusividade, encontramos toda sorte de monopólios.263

260 FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1975, p. 326. 261 Ibid., pp. 326-327. 262 WEBER, Max. Classe, “Status”, Partido. In: VELHO, Gilberto; et all. Op. Cit., pp. 70-71. 263 Ibid., p. 76.

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Ou seja, Florestan cria um meio termo ou uma nova tipificação de caráter weberiano

para dar conta da particularidade do modelo brasileiro no qual:

[...] a dimensão estamental é incorporada pela classe burguesa como traço estrutural na forja do processo histórico da sociedade. Isto tem conseqüências profundas na atuação dessa classe em todos os campos, especialmente nas áreas que mais importam, que são a econômica e a política. A mais importante delas é a orientação particularista, voltada para o privado e portanto mais consentânea com posições estamentais do que com posições de classe historicamente revolucionárias.264

Mas, retomando o raciocínio anterior, dentro deste contexto geral, a burguesia

necessitava usar seu poder de classe para travar uma batalha que já não mais podia ser adiada

e, assim, espantar todos os “fantasmas” reais e imaginários que perturbavam seu

autoprivilegiamento que parecia ameaçado.

Nos países de modelo democrático-burguês, prevaleceu “uma ampla correlação entre

radicalismo burguês, reformismo e ‘pressões dentro da ordem’ de origem extra burguesa

(procedentes do proletariado urbano e rural ou das ‘massas populares’)”, já que as bases

materiais de poder da burguesia deste modelo de capitalismo comportavam esta correlação,

permitindo a manifestação das classes assalariadas, que se objetivava socialmente através do

movimento sindical, dos partidos operários, etc.265 O radicalismo burguês poderia absorver as

pressões dos trabalhadores enquanto estas fossem compatíveis com a “revolução dentro da

ordem”, dando certa elasticidade para a adaptação da ordem competitiva:

raramente as classes burguesas se viram na contingência de ter de empregar as “pressões dentro da ordem” e as “pressões contra a ordem” da classe operária (ou das massas destituídas) como um expediente normal de auto-privilegiamento em face de outros setores burgueses ou como técnica sistemática na obtenção de vantagens esporádicas.266

Desta forma, “o grau de diferenciação vertical e de integração horizontal” das classes

burguesas garantia o poder burguês em bases materiais e políticas firmes, elásticas e estáveis,

permitindo que o padrão de reação às pressões contra a ordem pudessem ser, “normalmente,

mais tolerante, flexível e democrático”.

264 COHN, Gabriel. Florestan Fernandes - A revolução burguesa no Brasil. In: MOTA, Lourenço Dantas. (org.) Op. Cit., p. 399. 265 “Em conseqüência, o radicalismo burguês acabou refletindo, ao nível estrutural-funcional tanto quanto ao nível ideológico, pressões que tinham uma origem operária, proletária ou sindical, as quais, com freqüência, transcendiam e colidiam com os interesses de classe especificamente burgueses. Isso tornou, muitas vezes, ambíguas as relações do radicalismo burguês com o socialismo reformista (e chegou a fomentar, mesmo, o que Lênin caracterizou como uma ‘infecção burguesa’ do marxismo)”. FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1975, p. 328. 266 FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1975, p. 328.

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No caso de países dependentes e subdesenvolvidos, a situação é o contrário da

descrita, pois “o grau de diferenciação vertical e de integração horizontal das classes e estratos

de classe burgueses não era suficientemente alto e complexo para engendrar qualquer

modalidade de consenso burguês, médio de tipo democrático”.267 Nestes casos, a burguesia

não tem condições de “articular e absorver interesses antagônicos ou semidivergentes das

demais classes”, uma vez que a massa que compõe as classes burguesas é tão pequena que

não pode fazer da condição burguesa uma estabilidade econômica, política e social:

Isso acirra o temor de classe e torna a inquietação social algo temível. Por conseguinte, a reação societária às pressões dentro da ordem obedeceu à natureza de uma mentalidade política burguesa especial, inflexível e intolerante mesmo às manifestações simbólicas e compensatórias do radicalismo burguês, e disposta a impedir ou bloquear o seu avanço, em particular, o impacto que elas poderiam ter sobre a aceleração da revolução nacional.268

Este temor de classe se funda, não em um obscurantismo intelectual e político, mas na

compreensão de que a pressão dentro da ordem pode tirar a “revolução brasileira” de seu

“ponto morto”; mas este padrão de reação acaba indo longe demais e, por assimilar as

“pressões dentro da ordem” como “pressões contra a ordem” e o próprio radicalismo burguês

“esclarecido” se confundir com a subversão e com o comunismo, já as pressões “contra a

ordem” tornam-se ilegais e imorais.269

Esta versão da sociedade de classe impede que se estabeleçam articulações flexíveis

com as pressões das classes dominadas dentro da ordem e absorção de suas pressões contra a

ordem. Desta forma:

A dominação burguesa e o poder burguês ficam, em conseqüência, estreitamente confinados aos interesses e aos meios de ação das classes burguesas. E o consenso burguês não pode alargar-se em função do suporte direto ou indireto das demais classes, que não são articuladas à burguesia, quer mediante impulsões igualitárias de integração nacional, quer através dos dinamismos materiais de participação econômica ou dos dinamismos sociais de participação cultural e política. Ao se fecharem sobre si mesmas, as classes e os estratos de classe burgueses comprimem seu campo de atuação histórica e o seu espaço político criador, propriamente reformista ou revolucionário.270

267 Ibid., p. 329. 268 Ibid., p. 330. 269 “Não se tratava, porém, de um imobilismo histórico ou de uma defesa obstinada do estancamento. Ao contrário, os vários estratos da burguesia se abriam tanto para as alterações da ordem, a partir de dentro, quanto para a ‘modernização dirigida de fora’, desde que as condições e os efeitos de tais processos estivessem sob controle conservador”. Ibid., p. 330. 270 FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1975, p. 331.

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Cria-se uma sociedade competitiva que só está aberta para os que “se classificam

positivamente, para as classes possuidoras, ou seja, para os ricos e poderosos” e que só se dá,

no plano histórico, com a neutralização ou a exclusão das demais classes. “Não obstante, esse

encadeamento liga entre si o senhor e o escravo, fazendo com que o destino daquele se realize

através deste”. Para ganhar maior espaço político, as classes burguesas procuram pontos de

apoios materiais e políticos nas classes operárias e excluídas e “esse não é, apenas, o

fundamento da ‘demagogia populista’. Nele se acham a essência do regime republicano, com

seu presidencialismo autoritário, e o fulcro do ‘equilíbrio da ordem’ durante toda a evolução

da sociedade de classes”.

Apesar de toda a riqueza, segurança e estabilidade, “o centro de equilíbrio do mundo

burguês desloca-se para o núcleo infernal de uma sociedade de classes extremamente injusta e

desumana, cujo despertar surge como a derrocada final” – o que acaba por empobrecer e

limitar o consenso burguês que se fecha sobre si próprio frente a qualquer desafio histórico.

A crise que se viveu no Brasil não advinha de qualquer movimentação das classes

burguesas no sentido de uma consolidação da democracia burguesa no país, mas das pressões

sociais que, dado o quadro acima, não poderiam ser representadas pelas classes burguesas

como um problema de democratização, mas sim a necessidade de salvar as bases daquela

ordem estabelecida.

O que entrava em questão era, portanto, o problema da autocracia (embora dissimulado sob a aparência ambígua da “democracia forte”). Só assim ela podia deter os processos incipientes ou adiantados de desagregação da ordem, passando de uma ordem burguesa “frouxa” para uma ordem burguesa “firme”. Aí, o ele-mento político desenhava-se como fundamento do econômico e do social, pois a solução do dilema implicava, inevitavelmente, transformações políticas que transcendiam (e se opunham) aos padrões estabelecidos institucionalmente de organização da eco-nomia, da sociedade e do Estado. As “aparências da ordem” teriam de ruir, para que se iniciasse outro processo, pelo qual a dominação burguesa e o poder burguês assumiriam sua verdadeira identidade, consagrando-se em nome do controle absoluto das relações de produção, das superestruturas correspondentes e do aparato ideológico.271

A impotência burguesa de resolver as pressões dentro da ordem faz com que ela

possua saídas históricas limitadas; não podendo resolver as mudanças essenciais para

desenvolver-se como uma sociedade de classes independente, resta-lhe apenas o

enrijecimento que sobrepunha a classe à Nação. A dificuldade de tal enrijecimento está

271 FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1975, p. 333. Grifos do autor.

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justamente na capacidade coletiva das classes, pois “o grau de diferenciação vertical e de

integração horizontal dessas classes estava aquém das ‘exigências históricas’”, de forma que a

unificação da burguesia se dá a partir do elemento que possuíam em comum, que é o seu

status enquanto classe possuidora. Por outro lado, o padrão de articulação burguês advinha

dos dinamismos econômicos, sociais e políticos que ampliavam as contradições da burguesia,

levando a que prevalecesse “a ‘regra de ouro’ de que aquilo que é bom para o agente

individual também é bom para a burguesia como um todo, com o seu corolário prático: é

melhor arcar com os efeitos negativos das tendências centrífugas, que assim se fortalecem,

que lutar contra elas e submetê-las a controle deliberado, mas de implicações limitativas”.272

Erguia-se, assim, uma barreira que impedia qualquer transformação política da própria

burguesia, o que não era novo para a burguesia brasileira; ela não é

[...] nem a primeira nem a última que tem de enfrentar esse ‘dilema de juventude’. Todavia, as classes e estratos de classe burgueses se viram diante do dilema, no Brasil, em uma época de crise estrutural e histórica do poder burguês. Não tinham tempo para esperar que os processos naturais de diferenciação vertical, de integração ho-rizontal e de articulação das classes burguesas promovessem, em um quarto de século [...], a maturação da ordem social competitiva e produzissem, assim, um padrão mais complexo e plástico de solidariedade de classe”.273

Desenvolve-se, assim, uma aglutinação mecânica que compõe uma hegemonia

agregada; “impotentes para compor e superar suas divergências, eles deslocam o foco da

unidade de ação, transferindo-o das grandes opções históricas para o da autodefesa coletiva

dos interesses materiais comuns, que compartilhavam como e enquanto classes

possuidoras”.274

As classes burguesas acabam por realizar, desta forma, uma aceleração burguesa da

história, “sem modificar substancialmente a si próprios, à Nação e ao seu relacionamento

material com as demais classes”, uma vez que descobrem um equivalente estrutural e

dinâmico que não estava historicamente ao seu alcance, pois sem alcançar patamares de

diferenciação, integração e articulação conseguem por

via política, uma unificação que permitiria atingir os mesmos fins, pelo menos durante o período de desgaste imprevisível e de risco supostamente mortal do poder burguês. Por elementar e tosca que seja, essa forma de hegemonia burguesa transferiu para as mãos da burguesia o controle do tempo, do espaço e da sociedade, fixando os ritmos internos do impacto da industrialização intensiva e da

272 Ibid., pp. 334-335. 273 Ibid., p. 335. 274 Ibidem.

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eclosão do capitalismo monopolista sobre a ordem social compe-titiva existente.275

Destarte, a burguesia contorna diversos problemas, pelo menos de forma transitória,

superando sua impotência histórica e promovendo uma mudança qualitativa das forças

econômicas sociais e políticas, que se concentram em suas mãos, para abrir uma nova

oportunidade histórica.

A concentração de poder real se dava tanto no nível das relações diretas de classe

como na dominação de classe mediada pelo Estado nacional, prevalecendo no processo os

interesses materiais comuns inerentes à condição da classe possuidora: “ela ficava livre para

imprimir à auto-afirmação burguesa o caráter de uma contra-revolução, que devia associar a

explosão modernizadora com a regeneração dos costumes e da estabilidade da ordem”.

Para Florestan, a unificação da classe burguesa, para serem politicamente uteis deveria

transcender seus limites dos interesses de classe, “indo além das fronteiras físicas da

dominação burguesa”

Isto é, os estratos dominantes das classes burguesas careciam de um excedente de poder, através do qual pudessem: l.°) desbaratar as pressões inconformistas pró-burguesas e as pressões antiburguesas; 2.°) garantir-se um máximo de autonomia histórica no controle de classe das sucessivas transformações subseqüentes da ordem.276

A natureza do movimento burguês era de uma posição agressiva e não apenas de auto-

proteção, criando uma relação entre as classes em que “as classes e os estratos de classe

burgueses defendiam o monopólio da cidadania válida, com os dividendos políticos re-

sultantes: ou seja, o controle burguês da sociedade civil e do próprio Estado nacional”. Sua

estruturação, como contra-revolução, remonta desde 1945 e mobilizou todos os recursos

materiais, ideológicos, políticos e armados ao alcance da burguesia.

A “paralisação” e a “sabotagem” burguesas da ordem significavam, literalmente, uma “paralisação” e uma “sabotagem” da ordem existente como tal. [...] Somando-se as evidencias esclarecedoras essenciais, parece claro que os processos de unificação e de centralização do poder burguês descansavam sobre uma base estrutural bastante ampla; que essa base foi mobilizada em extensão e em profundidade; e que esses são os elementos centrais que explicam a súbita emergência e o êxito, ao mesmo tempo, do processo contra-revolucionário propriamente dito.277

275 FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1975, p. 336. 276 Ibid., P. 338. 277 FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1975, p. 339.

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Perspectivas de 1974: persistência ou colapso da autocracia burguesa?

Com uma saturação proposital, nosso intuito ao realizar este resumo da terceira parte

de A revolução burguesa foi o de resgatar, o mais próximo que pudemos do pensamento de

Florestan, a trajetória por ele sugerida de como se estabelece a dominação e o poder burguês

no Brasil. Como vimos, este processo passa pela modernização da autocracia como forma de

incorporar o país ao capitalismo monopolista, colocando-o em sincronia com as exigências

dos países hegemônicos e mantendo sua subordinação estrutural externa.

A ditadura militar foi a forma extra-econômica que pode ajustar os tempos históricos e

cumprir uma série de tarefas de “limpeza de terreno” para garantir o sucesso desta operação

que se liga, a um só tempo, com a necessidade imperialista de bloquear o comunismo

internacionalmente.

Com isso, se pode dizer que o “padrão compósito e articulado de hegemonia burguesa

possui uma precária base de sustentação estrutural e histórica”, mas criou um excedente de

poder, que possibilitou:

1.°) de desencadearem as formas abertas de luta de classes, que se impunham em conseqüência da passagem do capitalismo competitivo para o capitalismo monopolista e da transição inerente para a industrialização intensiva; 2.°) de criar o Estado capitalista autocrático-burguês, que cortava as amarras com o passado e estabelecia, por fim, como um novo ponto de partida histórico, uma base estrutural e dinâmica para converter a unidade exterior das classes burguesas num elemento de socialização política comum, em escala nacional.278

O Estado autocrático-burguês, por sua natureza, bem como a necessidade de manter o

processo de contra-revolução permanente “indicam o tipo de circularidade histórica com que

se defrontam as classes burguesas”, mantendo-se submetida à dominação imperialista

externa, ao capitalismo dependente e ao desenvolvimento desigual interno. Por outro lado,

Florestan compreende que

as classes burguesas continuam tão presas dentro de seus casulos, isoladas da realidade política de uma sociedade de classes e submetidas a partir de fora, como estavam há vinte ou há quarenta anos. Depois de tudo e apesar de tudo, elas se alienam das demais classes, da Nação e da “revolução brasileira” pelo mesmo particularismo de classe cego, o qual as leva a perceber as classes operárias e as classes destituídas em função de uma alternativa estreita: ou meros tutelados; ou inimigos irreconciliáveis.279

278 Ibid., p. 353. 279 FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1975, p. 354.

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Estas classes “não contam com uma base material de poder para se auto-afirmarem e

se auto-privilegiarem, de modo pleno”, fazendo com que suas funções auto-protetivas sejam

passivas e não ativas.

Para o autor, “o calcanhar-de-aquiles do poder burguês” é a possibilidade paradoxal de

“uma fulminante reação burguesa a uma situação de aparente ou real ‘ameaça histórica’”.

Pois, apesar da solidariedade de classe e de hegemonia burguesa possibilitarem uma

unificação e centralização “com fundamento em interesses de classe comuns, restringiu o

alcance dos alvos coletivos e limitou ao econômico as impulsões ‘revolucionárias’ das classes

burguesas”. Os meios e fins díspares foram mesclados e convertidos artificialmente, por meio

de conciliações sucessivas, em unidades coletivas de ação política de classe.

A partir do momento em que o dilema político burguês passou a ser, crucialmente, a segurança e a “salvação da ordem”, o enquadramento nacional dos interesses das classes burguesas perdeu sua significação histórica específica, naturalmente muito variável de classe para classe ou de estrato de classe para estrato, de classe. [...] Quando toda essa diversidade de interesses e de valores foi aplastada pelo medo de classe, a reação comum deslocou a fronteira histórica para um centro ultraconservador de acomodação, que deixava de refletir a relação das classes dominantes com a transformação da sociedade nacional e passava a uma relação nova, que era uma pura expressão do que todas as classes em conjunto esperavam, como e enquanto classes possuidoras, da preservação do status quo.280

Este aplastamento empobreceu a ação fermentativa que ocorre com choque que

naturalmente ocorre entre estruturas nacionais de poder; por outro lado, a contra-revolução

realizou um duplo movimento de precipitar e tolher em seguida, “em um mesmo movimento

histórico muito rápido”, efeitos mais dinâmicos a longo prazo “dos processos de unificação e

de concentração dos interesses e do poder das classes burguesas”.

O consenso burguês, logo que se erigiu na base política das tomadas de decisão de um

regime, mudou de significado político e a sociedade civil se tornou o “verdadeiro” eixo

político da Nação.

No entanto, ela não operava, somente, como a “fonte de legitimidade da ordem”; ela era, simultaneamente, o seu “núcleo revolucionário”, o ponto de partida e de chegada de todos os processos políticos que traduzissem, na prática, a “vontade revolucionária” das classes burguesas dominantes, de suas elites e dos Governos institucionais que as representavam. Aparentemente,

280 Ibid., pp. 355-356.

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estamos diante de uma transformação sutil, uma espécie de simples alteração da semântica política.281

Trata-se de um passo central, pois encarna o “sentido coletivo da regeneração

burguesa da própria ordem social competitiva preexistente”. A contra-revolução política

interrompeu “os dinamismos políticos do poder burguês a largo prazo”, mas “substituiu-os

por outros, que deveriam crescer e funcionar no contexto político imediato, criado pela

instauração de uma ordem social competitiva ‘regenerada’ e submetida aos controles

‘revolucionários’ e ‘institucionais’, operantes nessa nova ordem”. O que permitiu que o

consenso burguês ganhasse seu “espaço político ‘revolucionário” se identificando com a

ordem legal e política.

As classes e estratos de classe burguesas saíam, por esse meio, do imobilismo político relativo, a que se viam condenados por seu padrão de solidariedade de classe e de hegemonia de classe, pois ao sobreporem a sociedade civil à Nação equipararam, de fato, sua própria democracia restrita a uma oligarquia das classes burguesas dominantes. Interesses e valores variáveis e em conflito voltaram a circular e a se articularem entre si ou uns contra os outros. Contudo, agora, o seu eixo de gravitação era ‘fechado’ e confinava-se às fronteiras da sociedade civil, onde se localizava e se constituía o consenso burguês, como força social e política. Como outros Estados capitalistas, democráticos ou não, o Estado autocrático-burguês teria de conter e de articular entre si todas as tensões e contradições que são inerentes à estratificação de uma sociedade de classes, mesmo quando a minoria burguesa dominante se fecha sobre si mesma. Apenas, por causa dessa situação, ele só iria receber e absorver essas tensões e contradições através do con-senso burguês, que passaria a exprimir; 1.°) diretamente, o seu ‘inferno interior’; 2.°) indiretamente, o que vai pelas outras classes e pela Nação como uni todo.282

As classes burguesas realizam agora uma política de classe que poderia se expandir

para uma ordem legal e política aberta: “mas solapada pela sobreposição da sociedade civil à

Nação (ou da democracia restrita à oligarquia de classe)”. Ou seja, há uma articulação política

entre os mais iguais, que assume a forma de uma cooptação sistemática e generalizada que

implicará sempre na mesma coisa: “a corrupção intrínseca e inevitável do sistema do poder

resultante”.

Com todas as suas limitações e inconsistências, o padrão compósito e articulado da hegemonia burguesa pode demonstrar, então, toda a sua utilidade como uma “ponte” entre classes e estratos de classe burgueses nacionais e estrangeiros, um elo flexível, que facilita a distribuição de todos no espaço político “revolucionário” e a frui-

281 FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1975, p. 357. 282 FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1975, p. 358.

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ção desigual do poder ou de suas vantagens entre, os mais iguais. Graças a ele, os estratos médios ganham no rateio e se privilegiam muito acima do seu próprio prestígio social, movendo as alavancas do aparato estatal que estão nas mãos da burguesia burocrática, tecnocrática e militar. Ao mesmo tempo, também graças a ele, os “interesses verdadeiramente fortes” e os “interesses predominantes” deparam, enfim, com o seu meio político ideal, podendo impor-se à vontade, “de cima para baixo”, e florescer sem restrições. Se já houve, alguma vez, um “paraíso burguês” este existe no Brasil, pelo menos depois de 1968.283

Ora, trata-se da ditadura total e absoluta, controlada pela classe burguesa com vistas à

continuidade do capitalismo e do Estado capitalista, mas com a especificidade deste ser um

“capitalismo dependente na era do imperialismo total, num momento de crise mundial da

periferia do sistema capitalista e como parte de uma luta de vida e morte pela sobrevivência

da dominação burguesa”. Opera-se aí uma confusão por parte desta burguesia dependente que

“luta por sua sobrevivência e pela sobrevivência do capitalismo dependente, confundindo as

duas coisas com a sobrevivência da ‘civilização ocidental cristã’”.

As previsões de Florestan (de 1974), porém, é a de que, pelas várias características do

Brasil não é possível que “semelhante correlação estática entre aceleração do

desenvolvimento econômico e salvação do status quo” se estabeleça para sempre:

Tal possibilidade poderia ser estabelecida (e mantida indefinidamente), se as classes burguesas pudessem acelerar, livremente, o desenvolvimento econômico e conseguissem, ao mesmo tempo, manter acesa a contra-revolução preventiva. Ao que parece, porém, o Brasil não se apresenta como um campo propício para uma solução desse tipo, que requer uma “associação estática” entre os dois processos.284

Isto porque era visível uma forte relação contraditória entre o desenvolvimento e a

contra-revolução preventiva, que tenderia a convulsionar o sistema a médio e longo prazo. A

contra-revolução preventiva não constituía “um processo estrutural e dotado de

potencialidades sociodinâmicas comparáveis”, mas era um processo histórico em período de

esvaziamento, devido à dinâmica da eclosão do capitalismo monopolista e da incapacidade de

unir, neste novo cenário, as classes burguesas – pois “a contra-revolução não só se dilui: ela

perde sua base material nas relações de classes burguesas”.

O que não significa, obviamente, que a ditadura de classe se contraia ou se dilua:

Com a “situação sob controle”, a defesa a quente da ordem pode ser feita sem que “os organismos de segurança” necessitem do suporte tático de um clima de guerra civil, embora este se mantenha,

283 Ibid., p. 359. 284 FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1975, p. 360.

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através da repressão policial-militar e da “compressão política”. Em conseqüência, a contra-revolução preventiva, que se dissipa ao nível histórico das formas diretas de luta de classes, reaparece de maneira concentrada e institucionalizada, como um processo social e político especializado, incorporado ao aparato estatal.285

Há, na verdade, um esforço de distensão política que foi fomentado pelas classes

burguesas desde 1969, dentro dos marcos da “defesa da revolução”, e que, no novo contexto

de “avanço democrático”, busca “criar os vínculos orgânicos que deverão entrelaçar os

mecanismos da democracia de cooptação com a organização e o funcionamento do Estado

autocrático.”

Pode-se concluir, pois, que está em curso uma dupla “abertura”. Ela não leva à democracia burguesa, mas à consolidação da autocracia burguesa: 1.°) por pretender ampliar e consolidar a democracia de cooptação, abrindo-a “para baixo” e para a dissidência esterilizada ou esterilizável; 2.°) por querer definir o alcance do poder legítimo excedente, que deve ser conferido constitucional e legalmente ao Estado autocrático.286

Longe de criar uma democracia autêntica, as classes burguesas buscavam criar a

“condição normal” para o crescimento e funcionamento pacífico que, “em seus fundamentos

ideais, e revitalizada, em seus fundamentos econômicos, sociais e políticos, pelo

desenvolvimento econômico acelerado e pela contra-revolução preventiva”. Isto porque as

classes burguesas não podem (e nem querem) abrir mão de suas vantagens e privilégios, já

que estes estão na raiz de tudo; é dizer, se o fizessem, perderia “qualquer possibilidade de

manter o capitalismo e preservar a íntima associação existente entre dominação burguesa e

monopolização do poder estatal pelos estratos hegemônicos da burguesia.” Assim, na medida

em que a contra-revolução preventiva vai murchando, a hegemonia burguesa precisa se

articular, suplementando “os mecanismos rotineiros de dominação de classe direta ou

mediada, por novos controles de classe formais e, especialmente, por controles coercitivos de

caráter estatal”.

Por outro lado, a democracia de cooptação acaba por suscitar problemas de controle da

ordem na medida em que “os mecanismos de mobilidade social vertical e de corrupção

permitem estender as fronteiras da ‘consciência burguesa’ e da condição burguesa dentro das

classes operárias e das classes destituídas”, mas, numa sociedade de classes em convulsão,

torna-se impossível impedir que “as migrações humanas, o desenraizamento social e cultural,

a miséria e a desorganização social etc. operem, simetricamente, como focos de inquietação e

de frustração sociais em larga escala”.

285 Ibid., p. 362. 286 Ibid., p. 363.

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Dentro da lógica dessas constatações, cabe perfeitamente admitir que as classes burguesas, apesar de tudo, levaram água demais ao moinho e que acabarão submergindo no processo político que desencadearam, ao associar a aceleração do desenvolvimento capitalista com a autocratização da ordem social competitiva. No contexto histórico de relações e conflitos de classes que está emergindo, tanto o Estado autocrático poderá servir de pião para o advento de um autêntico capitalismo de Estado, stricto sensu, quanto o represamento sistemático das pressões e das tensões antiburguesas poderá precipitar a desagregação revolucionária da ordem e a eclosão do socialismo. Em um caso, como no outro, o modelo autocrático-burguês de transformação capitalista estará condenado a uma duração relativamente curta. Sintoma e efeito de uma crise muito mais ampla e profunda, ele não poderá sobrepor-se a ela e sobreviver à sua solução.287

Compreendemos que fica evidente, no até aqui exposto, a compulsão de Florestan em

articular as grandes linhas de como se consolida o poder e dominação da “classe proprietária”

em uma sociedade competitiva “autocratizada”. Grosseiramente resumindo, a história da

chamada “abertura democrática” no Brasil seria um processo de modernização constante desta

autocracia, de forma a fixá-la em todos os poros da Nação, formal e informalmente, da polícia

militar à Constituinte, das favelas do Rio às mansões de São Paulo.

Sob esta análise de Florestan Fernandes da autocracia, funda-se a base conceitual

sobre a qual o autor desenvolverá seus trabalhos posteriores e, desta forma, continuaremos a

ver muitos dos elementos apresentados aqui até suas elaborações dos anos 90. Veremos surgir

também, alguns outros elementos e abordagens de aspectos que não estiveram aqui presentes

e que aparecerão de acordo com o desdobramento do processo histórico que tratamos; mas as

bases estruturais de como trata a autocracia, bem como as funções sociais que ela cumpre

foram aqui delineadas.

287 FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1975, p. 366.

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PARTE II: A HISTÓRIA EM PROCESSO

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3. DISTENÇÃO: LENTA, GRADUAL E SEGURA

Lenta – para que os interesses dos privilegiados pudessem se acomodar com as condições emergentes; gradual – para permitir que esses mesmos interesses pudessem redefinir suas relações com o sistema de poder em transformação e segura – segura para as classes possuidoras, para o capital nacional e estrangeiro, para a grande burguesia nacional e internacional. (Florestan Fernandes, Palestra de Lançamento da Campanha de 1986, na Fundação Santo André)

Em 1974, o general Ernesto Geisel assume a presidência da república;

coincidentemente, no mesmo ano, Florestan Fernandes completa A revolução burguesa no

Brasil.

Geisel é uma das figuras mais controvertidas entre os militares que ocuparam a

presidência durante a ditadura. Considerado por seus opositores, um “verdadeiro estadista”,

assume o governo no momento em que o “milagre econômico” entra em crise e tenta

equacionar os problemas econômicos com a estratégia de impulsionar as indústrias de base, alentados por empréstimos estrangeiros, articulando-se com ambiciosos projetos como o Programa Nacional de Álcool, a intensificação dos investimentos na Petrobrás, os famosos contratos de risco, que possibilitavam a prospecção às empresas estrangeiras.288

Será também sob seu governo que ocorrerá uma nova onda de atrocidades – uma das

maiores – contra a movimentação da esquerda e a “distensão” do governo militar. Podemos

dizer que será o governo Geisel que dará o tom, o compasso e a orquestração da

institucionalização da contra-revolução.

Suas metas de governo não fugiam, no geral, ao que o professor Antonio Rago Filho

denominou de ideologia 64, dando assim continuidade ao “projeto revolucionário” dos

militares: o “desenvolvimento com segurança”, a “integração nacional” através da integração

econômica, social e moral. Destacando-se em seu discurso a ideia de desenvolvimento

integrado e a restauração da democracia. Um desenvolvimento e democracia inspirados, ao

menos em parte, no pensamento de Oliveira Vianna, que visava trilhar um caminho de

desenvolvimento propriamente brasileiro.289

288 RAGO FILHO, Antonio. A ideologia 1964: os gestores do capital atrófico. São Paulo: PUC-SP, 1998, p. 218. 289 Para Geisel: “as soluções liberal e totalitária devem ser inteiramente rejeitadas, porque não se ajustam à nossa índole nacional. Só com um desenvolvimento integrado é possível nossa verdadeira coesão nacional. A industrialização garante a territorialização e a homogeneização das desigualdades regionais. O ‘nosso modelo’ de democracia não tem parentesco com os ‘modelos estrangeiros’”. Ibid., p. 222.

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Inicia-se, com Geisel, um período de “distensão” do governo militar, que possibilitará

uma reconfiguração das condições institucionais e políticas para a saída de cena da ditadura

militar (de forma segura e adequada para os “donos do poder”). O general-presidente tinha

clareza de sua missão: “a nossa revolução é democrática. A minha intenção é preparar, sem

precipitação, sem queimar etapas, o caminho que nos leve ao aperfeiçoamento democrático,

no contexto de um processo lento, gradual e seguro”.290

A novidade deste período, como nos aponta David Maciel, é a “dinamização da

representação política” por parte do governo Geisel, que seria o caráter da “distensão”, como

parte de sua abertura “lenta, gradual e segura”. Esta “dinamização”, no entanto, é determinada

pela “crise que se instalou no bloco de poder”, gerando fissuras neste bloco, devido ao

“acirramento das contradições do padrão de acumulação de capital” provocado pelo fim do

milagre econômico.291

Esta “vontade de democracia”, que a ditadura militar passa a apresentar através do

governo Geisel, deve ser contextualizada no quadro econômico do período: em 1974

inaugura-se um momento novo para economia brasileira, muito diverso do período

imediatamente anterior, cabendo a Geisel gerir um quadro no qual o “milagre econômico”

passa do êxtase para a agonia:

Entre 1968 e 1973, o endividamento externo já havia triplicado. Quando Geisel assumiu, a dívida era de 12,6 bilhões de dólares. No final de seu governo, a dívida estava na faixa de 43,5 bilhões, sendo que boa parte das reservas internacionais tinha sido “devorada” para o pagamento dos serviços da dívida. O processo inflacionário voou para a casa de 34,5%, em 1974; no ano seguinte, recuou para 29, 4%; em 1976, já orbitava a faixa de 46,38%, e em 1977, cerca de 38,7%.292

O “milagre econômico” teve sua fase de pujança de 1968 a 1973, sendo neste período

o grande legitimador do governo ditatorial, ao ponto da grande maioria da oposição não

conseguir realizar uma crítica que suplantasse uma “reforma política”, limitando-se no geral a

repetir o jargão: “a economia vai bem, mas o povo vai mal”.293 Apesar disso, o “milagre

econômico” encerrava os principais elementos de contradição entre o desenvolvimento

nacional e a subordinação internacional; sua decadência não ocorrerá por questões políticas

nacionais – como reflexo da luta de classes, por exemplo, que apontasse sua impropriedade e

tivesse formas efetivas de intervenção no processo –, ou pela mera vontade política de Geisel,

290 Ernest GEISEL apud RAGO FILHO, Antonio. Op. Cit., p. 217. 291 MACIEL, David. A argamassa da ordem: da ditadura militar à Nova república (1974-1985). São Paulo: Xamã, 2004, p. 85. 292 RAGO FILHO, Antonio. Op. Cit., p. 219. 293 Ver: CHASIN, José. A “politicização” da totalidade. In: A miséria brasileira – 1964-1994: do golpe à crise social. Santo André: Ad hominem, 2000, p. 11.

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– que teria “optado” pela democratização, como sugerem algumas interpretações –, mas, em

grande medida, pela própria debilidade congênita do “milagre”.

A grande vitória que a ditadura consegue impor, de saída, é a estratégia de desvincular

os elementos políticos dos econômicos, mantendo toda a oposição em voltas com a abertura

política, com a “democratização” do sistema político, sem que tocassem em sua base de

sustentação – a reorganização da produção. É dizer, o governo militar conduz a oposição ao

campo de atuação estéril do politicismo.294

Assim, desde o princípio, o “político” estava aberto para o aprimoramento, sendo prerrogativa situacionista a determinação da hora de seu advento. Jamais o econômico gozou de privilégio semelhante. Muito se falou em institucionalizar, em abrir e fechar os respiradouros políticos, e na sua modelagem. Nada igual ocorreu com a problemática básica da questão nacional. Discutiu-se, mais ou menos, dependendo do momento, o “político”, e com isto a questão econômica ficou resguardada, inatingível e preservada no perfil em que o poder lhe conferiu. Foi a vitória maior, compreensivelmente a mais acarinhada do situacionismo. Foi a derrota maior da oposição, sintomaticamente a que menos a sensibilizou.295

O modelo econômico implantado pela ditadura, pautado na ampliação das empresas

estatais em áreas estratégicas, financiadas pelo capital externo, e na produção de bens de

consumo duráveis para exportação com mão-de-obra nacional super-explorada, gerou uma

concentração de renda veloz e profunda. Trata-se do mais curto “milagre” dos vários

produzidos no país,296 que acabou por ser “duas vezes um fracasso e uma vez um efetivo

sucesso”.297 Um fracasso geral, pois desde sua implantação não atende a necessidade de um

projeto econômico para o Brasil, já que para o “milagre” se realizar “tem de gerar a miséria de

amplas camadas populares”; um fracasso, pela segunda vez, mas agora como fracasso

específico, “quando considerado como esgotamento de uma fase de acumulação”.

No que foi, então, o “milagre” um sucesso? Precisamente em ter propiciado, ainda que por um curto prazo, uma fase, um período de acumulação. Atendeu às demandas naturais de acumulação do capital. Sob a atrofia e sacrifício de tudo o mais, é verdade, mas

294 “O politicismo arma uma política avessa, ou incapaz de levar em consideração os imperativos sociais e as determinantes econômicas. Expulsa a economia da política ou, no mínimo, torna o processo econômico meramente paralelo ou derivado do andamento político, sem nunca considerá-los em seus contínuos e indissolúveis entrelaçamentos reais, e jamais admitindo o caráter ontologicamente fundante e matrizador do econômico em relação ao político. / Trata-se, está claro, de um passo ideológico de raiz liberal: a economia pertence à intangível esfera do privado [...], enquanto a política vai formalmente estufada, para o terreno da ‘coisa’ pública”. CHASIN, José. “Hasta Quando?”: a propósito da eleição de novembro. In: Ib., Op. Cit., p. 124. 295 CHASIN, José. A “politicização” da totalidade. In: Ibid., p. 11. 296 “Sucessivamente tivemos o ‘milagre’ da cana-de-açúcar, o ‘milagre’ da mineração, o ‘milagre’ do café, e finalmente, dentro do ‘milagre’ da industrialização subordinada ao imperialismo, o menor e mais curto de todos, o ‘milagre’ de 1968-1973”. CHASIN, José. Conquistar a democracia pelas bases. In: Ibid., pp. 69-60. 297 Ibid., p. 62.

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realizou uma fase de acumulação. Aproveitando uma disponibilidade financeira exterior e achatando violentamente os salários das massas trabalhadoras, sob o pretexto, aliás real, porém isento de novidade, de ter de levar ao mercado externo produtos e preços competitivos, cujo significado concreto é vender barato e comprar caro, que é a marca estrutural dos países economicamente subordinados.

O “milagre”, pois, é um milagre sobretudo para o capital financeiro internacional [...].298

Para Florestan Fernandes, o “milagre econômico” foi na verdade o processo de

incorporação do “Brasil à economia do capitalismo monopolista, às nações hegemônicas e sua

superpotência, absorvendo um padrão de desenvolvimento diverso daqueles que tínhamos

antes”; ou seja, faz parte da própria missão “modernizadora” da ditadura militar incorporar o

Brasil na órbita do capital internacional, na qual recebemos tecnologia e capital que geram um

salto de imediato, levando a uma situação eufórica, mas “em seguida o país tem que pagar a

conta”:299

Não havia nenhum “milagre econômico”, mas uma aceleração do desenvolvimento econômico, obtida às custas de imensos sacrifícios dos setores pobres da população. Processada a incorporação do Brasil aos centros imperiais do capitalismo monopolista, ficavam as duras realidades de uma industrialização maciça e de uma modernização agro-industrial que se exprimiam através de uma maior concentração de classe, de uma maior concentração racial, de uma maior concentração regional da riqueza, do prestígio social e do poder. A prolongada estagnoflação atingiu os principais sócios da industrialização maciça e da modernização agro-industrial e iria agravar os efeitos puramente econômicos dessa nova crise do poder burguês, comprometendo as alianças que sustentaram os vínculos criados entre a grande burguesia nacional, as multinacionais e o Estado autocrático burguês.300

Para ampliarmos a compreensão de como Florestan compreendia o “milagre

econômico”, vale que retomemos as anotações que o autor realizou para uma palestra que, na

época, foi proibida pelos militares.301 Palestra que teria como eixo justamente o debate do

“modelo econômico” brasileiro, é dizer, a crítica ao “milagre econômico”. Felizmente, temos

agora acesso aos seus manuscritos, que traz uma sistematização mais completa do autor

relacionando o “milagre econômico” ao seu modelo analítico.

298 CHASIN, José. Conquistar a democracia pelas bases. In: Ib., Op. Cit., p. 70. 299 FERNANDES, Florestan. Entrevista com Renato Moraes e João Marcos Coelho (1977). In: Ib., Brasil: em compasso de espera. São Paulo: Hucitec, 1980, p. 236. 300 Ib., Lançamento da campanha (1986). In: Ib., Pensamento e ação: o PT e os rumos do socialismo. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 106. 301 Os militares pediram providências à diretora da Escola de Sociologia e Política da Fundação José Augusto em Natal em relação à palestra do sociólogo que ocorreria a convite do Centro Acadêmico, pois compreendiam que Florestan era “um inimigo da Revolução”.

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Neste material preparatório, denominado O “modelo econômico” brasileiro,302 o autor

desdobra sua visão sobre a pujança econômica do milagre, retomando toda sua argumentação

sobre a autocracia e o capitalismo dependente e reafirmando que o “milagre econômico” é, na

verdade, um processo de “transição que se dá nas economias capitalistas periféricas e

dependentes”, dentro do qual ocorre a re-incorporação destas economias “ao espaço

ecológico, econômico, sociocultural e político das nações hegemônicas e de sua

superpotência”. O que significa dizer que estas economias periféricas absorvem “estruturas e

dinamismos inerentes àquelas nações”, ou seja, “inerentes ao padrão de desenvolvimento

capitalista típico do capitalismo monopolista e de seu padrão de dominação imperialista na era

atual, de confronto [com] o socialismo em escala mundial”.303

Figura 9 e 10 – Na esquerda, Ficha de 17 jun. 1975, título: O “modelo de desenvolvimento brasileiro”, preparação para palestra que foi proibida pelos militares em Natal. À direita, recorte do Jornal do Brasil,

19 jun. 75, com a notícia de proibição, guardado por Florestan. Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes.

Na visão do autor, teria sido possível outra evolução para o país, caso “a economia

capitalista, a sociedade de classes e o Estado correspondente, tivessem tido condições para

302 FERNANDES, Florestan. O “modelo de desenvolvimento brasileiro”. 17 jun. 1975. Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes. 303 Ibidem.

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eliminar a dupla articulação” – é dizer, “o desenvolvimento desigual interno” atrelado ao

“subdesenvolvimento relativo e dependência crônica”, que levam à dominação externa – “sob

o capitalismo competitivo”. Tal evolução não ocorreu – “apesar de varias condições internas

favoráveis” – “por causa dos ritmos e do tempo da transformação do capitalismo no plano

internacional” e, desta forma, “o clímax da industrialização e do desenvolvimento capitalista

‘moderno’ não se realiza sob um espaço interno relativamente autônomo, mas pela

combinação de recursos materiais e humanos internos e externos”.304

Para o sociólogo, os países periféricos, ao serem incorporados pelos países centrais,

modificam suas relações econômicas e sociais sob influência destas nações hegemônicas. No

caso brasileiro, esta incorporação ocorre no pós-guerra com o governo Kubitschek e com a

reorganização do “regime autocrático que se restaura a partir de 1964”. Com isso, há uma

“quebra de antigo padrão de ocupação segmentar e setorial” e se dá “sua substituição por um

padrão de [desenvolvimento capitalista] deformado, que envolve uma certa forma de

[organização] [econômica] [...] e [uma] dominação de classe bem definida”.305 Processo este

que requer “certo patamar de [desenvolvimento] social prévio e de recursos naturais ou de

potencialidade entre as quais se inclui criação de infra-[estrutura] pelo Estado e ‘estabilidade

econômica’”.306

Tal modelo de “modernização” produz uma “terrível pressão sobre os recursos

materiais e humanos e uma forte comoção interna”, criando uma

necessidade de enrijecer os controles extra [econômicos] ([especialmente] policiais-militares e políticos) [...] como requisito para aprofundar e intensificar as formas pré-existentes de acumulação capitalista e de dominação burguesa ou para substituí-la por outras formas [mais] complexas e eficiente. Por isso, as principais exigências se desdobram da esfera [econômica], [financeira] e tecnológica [...] para a esfera política (um Estado [mais intervencionista] e autocrático, se necessário [...] uma ditadura militar para servir de garante à estabilidade da ordem [...], ou seja, da restauração de um novo padrão de dominação de classe).307

Teremos assim “um salto revolucionário na esfera [econômica] e [tecnológica]”, que

desdobra os “tempos da revolução burguesa”, realizando uma “neutralização do tempo

histórico em conexão [com] a [revolução] nacional” e, por outro lado, uma “intensificação do

304 FERNANDES, Florestan. O “modelo de desenvolvimento brasileiro”. 17 jun. 1975. Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes. 305 No manuscrito no lugar das palavras em colchetes o autor utilizou abreviações. 306 FERNANDES, Florestan. O “modelo de desenvolvimento brasileiro”. 17 jun. 1975. Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes. 307 Ibidem.

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tempo [histórico] em conexão [com] a acumulação [capitalista] e a [transferência]”

econômica.308

Porém, apenas as classes possuidoras aproveitam esta transformação que

redefine, no início da transição e aprofunda (no mesmo período) [...] a concentração de riqueza, do [prestígio social] e de poder. O Estado autocrático serve de protetor contra o aguçamento do conflito de classe nas relações do capital [com] o trabalho e opera como o esteio político da [...] hegemonia de classe (interesses comuns das classes possuidoras X interesses da [burguesia interna]). [...] Doutro lado, a novo patamar de [organização] da [economia], da [industrialização] maciça e de modernização tecnológica não absorve e elimina a dupla articulação [...].309

Na verdade, segundo Florestan, este mesmo processo de “milagre econômico” já havia

sido aplicado no México, e “se nós aprendêssemos com a experiência alheia, nós não

repetiríamos aqui o que aconteceu no México”. No caso específico do Brasil o período de

euforia passou rapidamente e a conta a ser paga, à custa da população, “foi agravada pela

crise mundial prolongada”.310

Será justamente a crise econômica mundial – principalmente a crise do petróleo – o

ardil que os militares utilizarão para explicar a crise do “milagre” em nível nacional; mas esta

crise, na verdade, só colocava a nu, “concretamente, a própria crise da plataforma econômica

da ditadura militar”.311 O “pragmatismo responsável” de Geisel equalizará, em seu discurso

de desenvolvimento e segurança, o máximo de desenvolvimento com o mínimo de segurança

“indispensável”; acenando, desta forma, para “a possibilidade do afrouxamento da repressão

no plano político, uma maior possibilidade de atuação da própria oposição, aprimorando-se as

instituições políticas num ritmo lento e gradual, buscando a harmonização no interior da

própria modernização”.312 O que se traduziu na prática desse processo foi que

O governo Geisel iniciou um projeto de “distensão” ou “abertura política” que combinava a manutenção dos principais mecanismos de repressão e controle com a progressiva institucionalização do regime. Isto é, ao mesmo tempo que continuava usando – fartamente – o AI-5, a lei de Segurança Nacional, o aparelho repressivo, promovia algumas reformas políticas nas instituições do poder como a reordenação do papel do Congresso e dos partidos e a reformulação da legislação autoritária, substituindo

308 FERNANDES, Florestan. O “modelo de desenvolvimento brasileiro”. 17 jun. 1975. Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes. 309 Ibidem. 310 Ib., Palestra de Lançamento da Campanha de 1986 na Fundação Santo André. 311 RAGO FILHO, Antonio. Op. Cit., p. 227. 312 Ibid., p. 233.

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progressivamente os chamados “atos de exceção” por outras leis que mantinham o conteúdo principal da dominação política.313

Aos poucos, vão se criando espaços, a fórceps, pelo movimento da oposição e

principalmente pela clara decadência da ditadura militar, que explicita sua falência e coloca a

necessidade de uma nova saída para as classes dominantes.

3.1 Imobilidade e dinamização do conflito de classes

Neste contexto do início do processo de distensão, é comum, como já vimos no

Capítulo I, que se destaque a dimensão da crise psicológica vivida por Florestan. Isto não é

gratuito; não se trata apenas de um “recurso” analítico que acaba por desviar o foco de outros

elementos. De fato, Florestan faz questão de ressaltar que, naquele momento, ele se encontra

em crise; mas que esta crise é fruto, em grande medida, de uma crise social profunda.

Este processo, que acabamos de narrar, de consolidação da subordinação do país aos

países centrais, foi feito de forma extremamente violenta, em um período muito curto, e

explodiu com os projetos e esperanças de pessoas que, como Florestan, dedicavam boa parte

de suas vidas à construção de um “Brasil moderno”. Parafraseando Mariátegui, poderíamos

dizer que: o pensamento e a vida de Florestan constituíam-se em uma única coisa, o autor

colocava, sem dúvidas, todo seu sangue em suas ideias.314

Florestan Fernandes relata que viveu momentos aflitivos desde sua volta ao país em

1972 – e principalmente após a publicação de A revolução burguesa no Brasil – até o início

dos anos 80. O autor sentia-se isolado, sem interlocução; não raro descrevia estar em uma

cisterna no plano político e intelectual.

É importante lembrarmos que isso se deve, segundo o próprio autor, porque ele

mesmo se atirou nesta “cisterna escura”, ao voltar do Canadá com a convicção (pautada na

vontade) de que teria possibilidade de lutar contra o regime. No entanto, na prática, não

encontrou respaldo consistente no Brasil para realizar esta oposição, ao menos não de

imediato.

313 HABET, Nadine. A decadência de 70: apogeu e crise da ditadura militar brasileira. São Paulo: Ática, 2001, p. 44. 314 “Meu pensamento e minha vida constituem uma só coisa, um único processo. E se algum mérito espero e reclamo que me seja reconhecido é o de [...] pôr todo o meu sangue em minhas ideias”. José Carlos MARIÁTEGUI apud Florestan FERNANDES. Prefácio (1974). In: MARIÁTEGUI, José Carlos. 7 ensaios de interpretação da realidade peruana. 1974, p. XV.

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Um dos poucos interlocutores que o sociólogo encontrará no período é um grupo

ligado à igreja católica, a mesma igreja que havia sido oposição a Florestan na luta pelo

ensino público nos anos 60 e que agora cumpria a função de aliada.

Como nos demonstra Maria Helena Moreira Alves, a igreja católica irá cumprir no

período seguinte, na época e durante as greves, uma posição humanística que deu suporte

contra a violência da ditadura militar.315 O próprio Florestan, anos mais tarde, ao comentar o

livro de Frei Betto (Batismo de Sangue), esboça uma explicação para o fenômeno que fez com

que a igreja se “aproximasse” dos movimentos sociais contra a ditadura militar de então:

A contradição maior transparece na passagem do engajamento para a razão revolucionária firme e tocante. A solidariedade se agiganta, mas é a ditadura, por suas violências sucessivas e gritantes, que torna a solidariedade um equivalente psicológico do revolucionarismo militante e profissional. Há uma saída dentro do cristianismo. Mas, nas condições concretas, ela cruza com a revolução social e, por isso, exige naturalmente uma revolução preliminar na consciência moral e nas posições práticas dos cristãos.316

O marcante da situação é que um dos maiores intelectuais marxistas do país, no auge

de sua produção, encontrará na esquerda da igreja uma interlocução produtiva: “num dado

momento da minha vida, quando voltei ao Brasil pensando que ia encontrar aqui ambiente

para luta política eu me vi isolado, e foi esse setor de esquerda da igreja católica que deu a

oportunidade que eu falasse”.317

A outra face deste processo, resgatando com ressalvas a análise microssociológica de

Eder Sader, é o fato que foi justamente a atuação de intelectuais de uma “esquerda

dispersada” que forneceram, para os militantes da esquerda da igreja católica, o discurso

crítico que dava conta dos problemas específicos da lutas de classe e das condições sociais

geradas pelo capitalismo.318

No geral, a esquerda continuava a ser massacrada física e espiritualmente; a censura se

dá em vários planos e muitas vezes nem é necessário que ela seja explícita, uma vez que, meio

à precariedade e ao medo, surge uma “autocensura” que debilita ainda mais as possibilidades

315 “A forma de atuação da Igreja Católica como ‘voz dos que não têm voz’ em momentos de tensão e repressão ficou demonstrada durante a onda de violência política verificada no Brasil de 1975-1976. [...] Em resposta à onda de repressão a Arquidiocese de São Paulo transformou-se em centro de ajuda humanitária às famílias de pessoas presas ou desaparecidas.” ALVES, Maria Helena Moreira. O Estado e oposição no Brasil: 1964-1984. São Paulo: Edusc, 2005, pp. 245-246. 316 FERNANDES, Florestan. A dor não seca (1984). In: Ib., Que tipo de República? São Paulo: Brasiliense, 1986, pp. 231-232. 317 Ib., Palestra de Lançamento da Campanha de 1986 na Fundação Santo André. 318 SADER, Eder. Quando os novos intelectuais entram em cena: experiências e lutas dos trabalhadores da grande São Paulo 1970-1980. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 178.

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de atuação. Florestan, relatando sobre seu trabalho de militante na época, deixa este aspecto

de precariedade da esquerda muito claro:

São escritos elaborados no terra a terra do combate socialista, como ele é possível dentro de muitas precariedades intelectuais e políticas. Por que eles são importantes? Como atestado da dificuldade maior: como manter a chama socialista quando a repressão desaba sobre os grupos e instituições, reduzindo a zero (ou quase isso) o espaço político da negação socialista da ordem? Aqui e ali, intelectuais organizam debates que “tiram” veículos de comunicação cultural de massa da quarentena. Esses veículos da cultura não foram apenas silenciados – eles silenciaram; nas origens da irradiação da contra-revolução preventiva, várias das grandes empresas, nessa área, puseram o expurgo em prática antes do golpe militar. A mesma coletânea mostra como um autor, que escrevera tanto, anteriormente, para a imprensa diária, acabaria contido no espaço ocasional da imprensa alternativa...319

Esta espécie de marasmo, que dá o tom de uma débil oposição, se prolongará até 1977,

quando a situação em nível histórico começa a apresentar mudanças mais significativas; ainda

assim, o ambiente predominante naquele momento foi descrito por Florestan com certa

monotonia:

Eu quase não tenho novidades. A mesma vida. As conferências aqui e ali com a vivacidade e o calor humano de sempre. O que é um intelectual de vanguarda? Nós não temos “vanguarda”, de modo que ataco como posso e tento segurar as pontas... Apoio mesmo só de um ralo grupinho de inocentes. Parece que os inocentes irão salvar o mundo, aqui e aí.320

No entanto, anos depois, Florestan resgata a importância histórica do ano de 1977,

colocando-o, reiteradamente, no mesmo patamar de importância que 1964 e 1968.321 Toda a

dinamização que vinha ocorrendo no plano político da ditadura – provocada pela crise do

“milagre” – desaguara no que ficou conhecido como Pacote de Abril. 322 Medida que os

militares se viram premidos a tomar ao correrem o risco de perder as rédeas do processo de

“abertura”:

319 FERNANDES, Florestan. Brasil: em compasso de espera. São Paulo: Hucitec, 1980, p. 3. 320 FERNANDES, Florestan apud FREITAG, Barbara. Florestan por ele mesmo. In: Estudos Avançados IEA/USP, São Paulo, n.26, 1996, p. 163. 321 “O que acontece é que 77 é um marco tão importante quanto 68. Eu vejo que os jornais usam a palavra “pacote” e “pacotinho”; essas duas palavras definem a realidade política de 77. Quando se atingiu o clímax da discussão, que deveria ser a distensão, a partir de dentro, a partir do centro do chamado “Sistema”, ocorre uma neutralização de todas as forças que podiam criar as bases para um salto na direção de um regime democrático, mesmo burguês e conservador”. Ib., Entrevista com José Tadeu Arantes (1977). In: Ib., Brasil: em compasso de espera. São Paulo: Hucitec, 1980, p. 263. 322 “O presidente Ernesto Geisel fechou o Congresso Nacional pela terceira vez desde o golpe de Estado de 1964, valendo-se dos poderes extraordinários concedidos ao Executivo pelo AI-5 para governar por decreto nesse ínterim. [...] no dia 13 de abril, Geisel assinou a Emenda Constitucional nº 7, nada menos que a versão original do pacote de reformas jurídicas há dias rejeitada pelo Congresso. No dia seguinte assinou a Emenda Constitucional nº 8 [...] Estas medidas, que ficariam conhecidas como ‘Pacote de Abril’, fixaram os limites da distensão e as bases para a continuação do processo de institucionalização do Estado”. ALVES, Maria Helena Moreira. Op. Cit., pp. 233-234.

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A perspectiva de que alguma reforma política seria implementada antes das eleições de 1978 já era alimentada logo após as eleições de 1974. Para muitos, os rumos assumidos pela distensão chocavam-se coma possibilidade de o MDB eleger a maioria dos parlamentares do Congresso Nacional e os governadores de estados importantes, além de poder promover alterações na Constituição e de possuir um peso decisivo na composição do colégio eleitoral que indicaria o novo presidente da República.323

Desta forma, o Pacote de Abril será um marco na relação do modelo bipartidário, que

“surgiu como um expediente político, não como produto institucional espontâneo da atividade

de partidos políticos e correntes da opinião pública”.324 Modelo que deveria cumprir a função

de maquiagem e legitimação da contra-revolução, visando dar ares democráticos à situação

ditatorial.325

A intenção inicial da ditadura foi a de ter o MDB como uma “oposição consentida e

consagrada”, ou seja, “uma cômoda válvula de escape e em fator de unificação da ‘maioria’”,

que, na melhor das hipóteses, faria os dois partidos crescerem, “se eles funcionassem dentro

de uma circularidade perfeita”.326 Mas, o que ocorreu na prática, é que “a oposição consentida

converteu-se, rapidamente, em canal de atualização, dinamização e multiplicação do veto da

Nação ao regime esdrúxulo”, de forma que “a ARENA, como o MDB, não passam, para o

regime ditatorial, de meros expedientes. Se não derem dividendos, além de certos limites se

tornam inúteis”. O problema é que, para além da inutilidade, o MDB passa a ganhar

dimensões incomodas que ficaram cada vez mais salientes, a partir das eleições municipais de

1976,327 e que levam ao famoso Pacote de Abril: “Aquelas eleições e o pacote de abril

marcam o momento da queda das máscaras. O biombo partidário – e que luxo: do

bipartidarismo! – foi reduzido a frangalhos pelo Sistema. De lá para cá, a mascarada se faz

sob cartas marcadas. Ninguém ignora mais quem está por trás do quê...”.328

As medidas tomadas em 1977 demonstraram que o Sistema, apesar da crise, não

estava vencido, pelo contrário, o Pacote de Abril, segundo Rago Filho, fixa “os limites da

distensão e as bases para o processo de institucionalização”. Na visão de Florestan seria

323 MACIEL, David. Op. Cit., p. 145. 324 FERNANDES, Florestan. Entrevista ao jornal Última Hora (1978). In: Ib., Brasil: em compasso de espera. São Paulo: Hucitec, 1980, p. 213. 325 “Ou seja, contando com poder real suficiente para impor sua própria vontade ditatorial, o regime existente usou a constituição e a representação fora e acima da ‘normalidade constitucional e representativa’. Ambas se tornaram meios para o exercício do despotismo, o arbítrio e da organização de um Estado autocrático. O que quer dizer que a existência de dois partidos não é suficiente para definir a existência do bipartidarismo”. Ibidem. 326 Ibid., p. 214. 327 “O MDB venceu as eleições para prefeitos e conquistou o controle majoritário de câmaras municipais em 59 das 100 maiores cidades do país, contra apenas 31 em 1972. Das 15 cidades com mais de meio milhão de habitantes, o MDB venceu em 67%”. ALVES, Maria Helena Moreira. Op. Cit., p. 231. 328 FERNANDES, Florestan. Entrevista ao jornal Última Hora (1978). In: Ib., Brasil: em compasso de espera. São Paulo: Hucitec, 1980, p. 214.

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necessária a emergência de uma oposição que fosse para além da mera legitimação do

Sistema e dos limites por ele impostos.

Porém, parte da oposição concentra-se em buscar resoluções formais/institucionais

para superar a ditadura, movimento que tenderia a facilitar a institucionalização legitimada da

contra-revolução dentro de uma lógica liberalizante. É nítido, em algumas entrevistas feitas

com Florestan na época, que já durante o processo de “distensão” há uma insistência

politicista sobre a possibilidade da realização de uma Assembleia Constituinte, ao ponto de

Florestan declarar: “O debate, até agora, girou em torno de quem é contra e de quem é a favor

da convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte, quando, na verdade, deveria girar

em torno da criação de condições que eliminassem a existência do próprio regime

ditatorial”.329

A entrevista mais exemplar neste sentido é a realizada por José Tadeu Arantes, na qual

o tema é extensamente explorado. De qualquer forma, em todos os casos em que foi

questionado a este respeito Florestan, foi incisivo ao apontar que este não seria o caminho

correto para atingir a democracia no Brasil, naquele momento:

Na minha opinião é incompatível convocar uma Assembleia Nacional Constituinte mantendo-se um regime ditatorial com o controle do sistema de poder. As duas coisas não podem andar juntas. Para uma Assembleia Nacional Constituinte ser convocada é necessário que haja um mínimo de liberdade política, para que os movimentos políticos possam mobilizar suas forças e para que a representação possa ter eficácia. Sem a eficácia da representação, a Assembleia Constituinte é uma ficção. De modo que, no Brasil de hoje, não existem condições para a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte. Seria preciso um trabalho político preliminar, de transformação da situação política existente, para que isso se tornasse possível.330

Florestan concebia a possibilidade de pressionar o regime militar em duas frentes: “por

via direta, lutando frontalmente contra ele; de maneira indireta, levantando-se causas que

possam criar um estado de opinião e movimentos políticos bastante fortes para solapar as

bases do poder, derrubar os detentores dos postos administrativos e políticos”.331 No entanto,

até aquele momento (1977), a esquerda não tinha conseguido avançar efetivamente em

nenhuma das frentes, ou seja, não havia conseguido um solapamento efetivo da estrutura de

poder montada pela a ditadura militar; prova disso era a própria capacidade da ditadura de

impor o Pacote de Abril: “Até hoje, a oposição frontal é muito fraca; ela existe, ela é atuante,

329 FERNANDES, Florestan. Entrevista com José Tadeu Arantes (1977). In: Ib., Brasil: em compasso de espera. São Paulo: Hucitec, 1980, p. 255. 330 Ibidem. 331 Ibid., p. 256.

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mas não tem nenhuma expressão ao nível político. A pressão do tipo indireto acabou sendo

condicionada pelo modelo de regime construído pelo próprio sistema”.332

Ou seja, montar uma Assembleia Constituinte em um momento em que a ditadura

militar predominava, equivaleria à aceleração de um processo que só podia interessar aos

militares e às classes por eles representadas, uma vez que este era o objetivo último da

distensão que se operava desde 1974:

O que é a institucionalização para as forças contra-revolucionárias? A linguagem que se usava, que vinha com os cientistas sociais e políticos norte-americanos que têm apoiado o governo e seu sistema de tortura e de repressão, dava saliências às palavras compressão e descompressão. Portanto, a distensão é uma via a partir da qual se pode passar de um Estado de exceção ao chamado “Estado de direito”. Para a contra-revolução, a institucionalização consistia exatamente, em engendrar uma Constituição capaz de “defender a democracia por seus meios próprios”, com base não na eficácia da representação e do consenso, mas nos atos institucionais. A Constituição conteria “os direitos fundamentais do cidadão”; mas, ao mesmo tempo, dispositivos para neutralizá-los e esterilizá-los.333

Ao responder sobre a problemática da Constituinte, Florestan resgata e desdobra sua

compreensão da constituição do Estado nacional, como aparece em A revolução burguesa no

Brasil.

Como vimos, o Estado brasileiro, para o autor, possui três faces contraditórias que se

articulam: a primeira face é a sociedade civil restrita e que goza de privilégios, sobre a qual o

Estado se funda e que, “no caso brasileiro, provavelmente oscila em determinadas regiões do

Brasil, entre 15 ou 20% a 25 ou 30% da população”334; por outro lado, haveria a face

autoritária,335 que se expressa na esfera econômica como “elo entre o imperialismo, a

corporação multinacional e a burguesia Brasileira”; e, por fim, a face fascista frente a qual se

coloca o problema da distensão com vistas à institucionalização. Esta face, ou componente,

especificamente fascista, “ao mesmo tempo em que admite a representação, num sistema

bipartidário, artificial, o funcionamento de um Congresso e a existência do judiciário, impõe

um conglomerado de atos chamados ‘institucionais’, que anulam todas essas forças e a

própria constituição”.336

332 FERNANDES, Florestan. Entrevista com José Tadeu Arantes (1977). In: Ib., Brasil: em compasso de espera. São Paulo: Hucitec, 1980, p. 256. 333 Ibid., p. 258. Grifos nossoss. 334 Ibidem. 335 “Eu não gosto da palavra, porque tem sido usada para esconder o elemento fascista de muitos regimes (inclusive no caso da Espanha e Portugal), como se tratasse de ‘ditaduras técnicas’, funcionais para a defesa da democracia, por combaterem o ‘comunismo’ e impedirem a mobilização; das maiorias, cuja orientação não se sabia qual seria”. Ibid., pp. 258-259. 336 FERNANDES, Florestan. Entrevista com José Tadeu Arantes (1977). In: Ib., Brasil: em compasso de espera. São Paulo: Hucitec, 1980, p. 259.

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Não seria a repressão o elemento que definiria o elemento fascista brasileiro – ou o

fascismo de forma geral –, mas sim, em sua essência, “o regime fascista representa um duplo

bloqueio na esfera política”:

De um lado, o bloqueio da revolução democrática puramente burguesa; ele se situa numa posição antiliberal e se opõe àquilo que se pode chamar de revolução dentro da ordem, revolução controlada pelas forças propriamente burguesas. Ou seja, o regime fascista se opõe ao movimento da revolução democrático-burguesa, porque teme que a democracia burguesa, em si mesma muito fraca, não possa deter o ‘comunismo’ e a ‘rebelião das massas’. De outro lado, o bloqueio ao movimento socialista, à revolução que não se dá dentro da ordem, mas contra a ordem. É obstinadamente contra toda forma de revolução democrática, baseada na igualdade e no poder da maioria.337

Assim, o elemento fascista se concentra na fortificação e permanência da contra-

revolução, seja ela “a quente”, com o recurso da guerra civil e das forças armadas, ou “a frio”,

sem lançar mão de tais instrumentais bélicos. A contra-revolução no Brasil torna-se assim o

“eixo de gravitação política do ‘sistema’” e os atos institucionais – isolado ou em pacotes –

serviram para impedir que a maioria ganhasse espaço político para si própria, destruindo o

regime.

É importante ressaltar que, para Florestan, este caráter extremamente conservador das

forças contra-revolucionárias faz com que elas temam até mesmo a palavra de ordem da

Constituinte, mesmo com tantas vantagens conjunturais a seu favor; mas isto, porque os

militares sabiam que “não é possível iniciar um processo político como esse sem criar certas

garantias fundamentais, sem criar certas aberturas cujos desdobramentos são

imprevisíveis”.338

O único aspecto positivo da palavra de ordem por uma Constituinte, naquele

momento, para o autor, seria o fato de que ela alimenta certas contradições em frações da

classe burguesa, o que seria um fraco ponto de partida, mas que, mesmo assim, significaria o

suficiente para não se boicotar esta palavra de ordem como agitação política. No entanto,

“uma coisa é lutar por uma palavra de ordem, outra coisa é lutar pela implantação de uma

nova realidade”, o ponto central, naquele momento, era “dominar a força do regime, impedir

que o regime [tivesse] iniciativa política, que [fosse] capaz de manter o controle total da

situação”.339 Ora, o que o governo conseguia com a implantação do Pacote era a

337 Ibidem. 338 Ibid., p. 258. 339 FERNANDES, Florestan. Entrevista com José Tadeu Arantes (1977). In: Ib., Brasil: em compasso de espera. São Paulo: Hucitec, 1980, p. 263.

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“neutralização de todas as forças que podiam criar as bases para um salto na direção de um

regime democrático, mesmo burguês e conservador”.340

Neste quadro de paralisia sistêmica, só se poderia avançar para uma abertura política

que mudasse efetivamente a realidade brasileira através de uma oposição que rompesse com o

imobilismo, que recorresse “à desobediência civil às imposições estabelecidas pelo regime”.

Este seria o único elemento que poderia acarretar no desmoronamento do regime e “enquanto

não ocorrer esse desmoronamento, a palavra distensão não tem sentido, e ela só significa

‘institucionalização’”:

Eu sou socialista e não me adapto a essa verbiagem toda, essa confusão de palavras, que nos faz voltar a 1930 ou a 1945, que nos faz esquecer o que foi toda a história política brasileira, mesmo depois da implantação da República. Se nós quisermos usar a palavra de ordem Constituinte apenas para simplificar os problemas das forças contra-revolucionárias, facilitando sua tarefa de montar uma pseudotransição para um suposto Estado de direito ou engendrar um Estado de direito tão fictício, como foram os que já existiram no Brasil, nesse caso a palavra de ordem Constituinte é destituída de qualquer significado político, não adianta nada a colocarmos em nosso vocabulário e lutarmos por ela. Portanto, ao se propor a ideia da palavra de ordem Constituinte, se colocou o Brasil diante de uma encruzilhada. Temos de decidir se vamos lutar pela permanência da contra-revolução ou pela revolução democrática.341

Em resumo, a possibilidade de democratização, para Florestan, dependia em grande

medida das massas populares, já que “nós nunca tivemos uma burguesia liberal” que adotasse

o radicalismo liberal necessário para conduzir uma democratização que passava,

necessariamente, pela ruptura com o imperialismo, pelo contrário ela traiu o “liberalismo para

ser pró-imperialista”.342

Caberia às classes populares a luta por uma democracia popular em termos do

socialismo e que, além disso, poderia ajudar a fomentar o socialismo em âmbito mundial. Ora,

“parecia que a cooperação econômica, técnica e cultural dos países socialistas iria permitir a

consecução rápida de objetivos mais ambiciosos, pelo menos a partir do último qüinqüênio da

década de 70”.343 Naquele momento, portanto, Florestan via que “a hipótese de países

socialistas não é ideal ou suposta, ela é concreta. A ameaça ao capitalismo não é ameaça

340 Ibidem. 341 Ibid., p. 264. 342 Ibidem. 343 FERNANDES, Florestan. O fulgor de cuba socialista (1981). In: Ib., Democracia e desenvolvimento: a transformação da periferia e o capitalismo monopolista da Era Atual. São Paulo: Hucitec, 1994, p. 64.

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teórica; é uma ameaça militar, política e de alternativa de civilização. Em suma, avançou-se

muito.”344

Sob o capitalismo monopolista, impunha-se o socialismo como única saída possível

para realizar a superação da dependência e para atingir uma democratização efetiva, na

medida em que se tornava cada vez mais improvável uma democracia de caráter burguês e

que havia ainda esperanças pautadas na expectativa de um desenvolvimento socialista em

nível mundial:

Portanto, não é a condenação e a queda do stalinismo que conduz ao patamar descrito. Ao contrário, é esse patamar que muda o cenário e prepara a virada que parece “sensacional” e que, no entanto, surgiu tardiamente e está progredindo vagarosamente. Pois foi a consolidação do padrão de desenvolvimento socialista que produziu o “degelo” e continua alimentá-lo e a alastrá-lo, como um processo histórico irreversível (embora sinuoso e controlado). [...]

Dentro em pouco, talvez mais um quarto de século, esses países [socialistas] poderão concentrar seus esforços na formação social que deveria nascer da implantação democrática do socialismo.345

O nó da questão é que as massas populares pareciam não ter condições para

desenvolver uma atividade de protesto tão consistente como a necessária para fazer ruir a

ditadura militar, já que seria necessária uma “eclosão das forças reais da Nação, dessa maioria

que até hoje tem sido sistematicamente oprimida, desqualificada, neutralizada, excluída”.346

Para Florestan não seria possível, provavelmente, uma transição direta ao socialismo,

o primeiro passo seria a tentativa de se instaurar uma democracia de participação ampliada, é

dizer, gerar uma esgarçadura da sociedade civil – que, por si, já corresponderia a uma

revolução dentro da ordem. O que significa que “no caso brasileiro as massas populares

poderão servir de ponto de apoio para que movimentos de classe média e de classe alta se

irradiem e eventualmente busquem uma nova ‘consolidação democrática’ da ordem”347 e a

partir daí, se libertando da “demagogia populista”, elas terão de buscar seus próprios espaços:

É claro que, de uma perspectiva socialista, o ideal seria partir diretamente para a ação revolucionária. Contudo, o lado melancólico da sociedade brasileira, como de outras sociedades da América Latina, é conhecido: as forças da esquerda praticamente sempre procuram atuar, como ocorreu na Europa do século XIX, a reboque da burguesia.348

344 Ib., Movimento socialista e partidos políticos. São Paulo: Hucitec, 1980, p. 14. 345 Ib., A natureza sociológica da sociologia. São Paulo: Ática, 1980, p. 84 e p. 90. 346 Ib., Entrevista com José Tadeu Arantes (1977). In: Ib., Brasil: em compasso de espera. São Paulo: Hucitec, 1980, p. 266. 347 Ibid., p. 267. 348 FERNANDES, Florestan. Entrevista com José Tadeu Arantes (1977). In: Ib., Brasil: em compasso de espera. São Paulo: Hucitec, 1980, p. 269.

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É importante destacar que, mais que uma análise pautada nos partidos políticos,

Florestan tinha como principal problemática a mobilização das massas populares e as classes

trabalhadoras; isto porque no Brasil: “o partido nunca foi instrumental para isso com exceção,

em parte, do PC e do PTB – este manipulado por interesses mais ou menos conservadores –

nunca houve dentro dos partidos brasileiros uma tentativa de se desprender dos interesses das

classes possuidoras”.349 Os partidos serviam mais para legitimação e como mecanismo de

dominação das classes possuidoras do que como instrumento para mobilização popular.

Para realizar a mobilização das massas seria preciso um trabalho político clandestino,

seria necessário “pensar num mecanismo de agitação direta nas fábricas, nos bairros... enfim,

onde vivem estas pessoas”. Não se tratava de pensar apenas em esquemas que são de interesse

apenas da classe média “supondo que é aí que entra a motivação de um homem de pouca

educação política”, mas levar as questões que realmente interessam a “esse homem de pouca

educação política”, ou seja: “vamos falar de carestia, vamos falar de salário”.350

A fala de Florestan vai, neste ponto, de encontro com a pesquisa de Eder Sader (de

1987) que demonstra como o problema da carestia conseguiu mobilizar núcleos não

partidários, funcionando como ponto de partida para a politização de jovens e donas de casas,

que comporão parte do apoio para as movimentações grevistas.351

Tendo naquele momento, provavelmente, pouca consciência destes processos capilares

– ainda que em determinados momentos eles tenham ganhado uma relativa visibilidade –, a

proposta de Florestan voltava-se para a criação de um movimento articulado, que deveria se

expandir e irradiar às classes trabalhadoras do campo e da cidade, um movimento que não

tivesse um caráter elitista, preso à esfera política de privilégio de uma classe média e alta.

Neste sentido, Florestan aponta que o Brasil estava muito atrás de outros países da América

Latina, nunca conseguindo ultrapassar a manipulação das classes trabalhadoras.

Este movimento seria, em sua análise, apenas um ponto de partida, já que a luta efetiva

contra a ditadura deveria ser uma luta revolucionária, e “limitar o objetivo desta luta

revolucionária a tarefas de caráter imediatista é restringir o horizonte político da ação

inconformista”.352

349 Ibid., p. 271. 350 Ibid., p. 272 351 “A partir do momento em que a liderança dos clubes de mães assume o Movimento do Custo de Vida, este torna-se a forma concreta de unificação e politização das atividades de base daquelas organizações”. SADER, Eder. Op. Cit., p. 212. 352 FERNANDES, Florestan. Entrevista com Carlos Moreira (1978). ). In: Ib., Brasil: em compasso de espera. São Paulo: Hucitec, 1980, p. 275

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3.2 Desobediência civil

O que urgia naquele momento para Florestan era “criar espaço político para que as

maiorias [participassem] das estruturas de poder, criar uma cultura cívica em que os

destituídos [tivessem] capacidade de falar, de serem ouvidos, e possibilidade de agir em nome

próprio”,353 em outras palavras, se fazia necessária a “substituição desse regime por uma

democracia com participação ampliada”. O que não se conseguiria, segundo o autor, se a

oposição ficasse nos limites da legalidade, a única saída possível de alcançar uma democracia

efetiva era a desobediência civil:

a questão da democracia começa por ser um desafio à desobediência civil sistemática e generalizada. De fato, não basta “pensar contra”. Impõe-se lutar contra. Não se pode fazer isso sem recorrer-se, de modo maciço e repetido, à desobediência civil sem tréguas. Até hoje, não há exemplo de regimes ditatoriais, amparados em forças minoritárias mas bastante fortes para deter o controle da economia, da sociedade e do Estado, que tenham cedido lugar de forma espontânea e sem luta. Para eliminar as forças da contra-revolução, é preciso desobedecer sistematicamente às suas imposições, não temer a sua violência, não submeter-se em nada em qualquer fim político essencial. E isso deve ser feito ao nível do comportamento do indivíduo e ao nível do comportamento de grupos ou de classes em escala nacional. À contra-revolução autocrática é preciso opor a revolução democrática. Desde que esta comece, ela se espalhará e multiplicará suas forças, gerando no presente a negação da ditadura de minorias poderosas e sua substituição por uma democracia organizada pela e para a maioria, pois não poderá haver democracia em outras condições.354

Não há lugar à dúvida que esta é a postura que atravessará o ideário florestaniano no

que diz respeito à abertura democrática; não há para ele democracia sem participação popular

autêntica e não há participação popular autêntica como dádiva da classe dominante que arresta

autocraticamente tanto poder. Era necessária uma oposição frontal e mássica que se elevasse

acima da ordem e da legalidade imposta pela contra-revolução e rompesse com a estrutura

autocrática-burguesa do capitalismo dependente. Nesse sentido cada um de seus artigos do

período é portador desta mensagem insofismável:

No fundo, cada artigo surgia como se eu estivesse escrevendo cartas aos leitores, largando a pele de sociólogo em troca do papel de publicista, agarrado com tenacidade às causas das classes oprimidas, à ótica socialista da luta de classes e à difusão da desobediência civil como o patamar inicial de uma revolução democrática de cunho proletário e popular.355

353 Ib., Entrevista com José Tadeu Arantes (1977). In: Ib., Brasil: em compasso de espera. São Paulo: Hucitec, 1980, p. 264. 354 Ib., Revolução ou contra-revolução (1977). In: Ib., Brasil: em compasso de espera. São Paulo: Hucitec, 1980, p. 130. 355 FERNANDES, Florestan. Que tipo de República? São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 11.

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A ação radical era fundamental para a ruptura com a situação estabelecida, mas de

uma radicalidade que “não passa pela linguagem dos políticos, mas pela disposição da massa

em ir ao combate”.356 É a favor desta radicalidade que escreverá, em 1978, A concepção

reacionária do radicalismo.

Trata-se de um texto que serviu de base para um pronunciamento a convite da

Associação dos Sociólogos do Distrito Federal e sob o patrocínio da turma de Ciências

Sociais da UNB (entre 1977 e 1978), ou seja, dirigia-se a um público de sociólogos e futuros

sociólogos. Nele, o autor é claro ao afirmar que combater a concepção reacionária do

radicalismo “pressupõe o combate político direto com ânimo de bater o adversário (e não,

simplesmente, de ocupar o espaço político que este se disponha a abrir aos ‘radicais’ e aos

‘setores inconformistas’ da sociedade)”.357

Um dos papéis dos sociólogos naquele momento seria o de desmistificar as

concepções reacionárias amplamente divulgadas, impedindo “que a contra-revolução continue

a definir o que é radicalismo (e, por conseguinte, a boicotá-lo, a excluí-lo da ordem ‘legítima’

e a convertê-lo em caso de polícia)”.358 Tratava-se de, através da crítica científica da

concepção reacionária, dar suporte à luta das classes despossuídas, uma vez que os

conservadores, ao tentarem desvincular o radicalismo da esquerda, buscavam “paralisar o

movimento da luta de classes sob o subterfúgio de que o radicalismo impede qualquer avanço

seguro na direção da democracia”. Ora, “que democracia é essa que tem medo do radicalismo

inerente à participação popular, à objetividade das ciências sociais ou ao civismo típico das

classes trabalhadoras?”:

Silenciar e abafar o radicalismo, em todas as suas formas, vem a ser o mesmo que esmagar a revolução democrática no nascedouro. No entanto, como entender as posições das correntes do socialismo democrático e de vários grupos que se dizem de esquerda (e que possuem, inclusive, uma visibilidade “radical” ou “extremista”) quando sufocam suas próprias reivindicações ideológicas ou políticas fundamentais em nome de uma “contemporização inteligente” e de uma prudência zarolha, segundo a qual a conjuntura histórica (e não a vontade política das massas) determina o espaço político que devemos saturar. Dá-se, assim, à reação e à contra-revolução uma vantagem imbatível. Silencia-se o pólo democrático, deixando-se ao pólo antidemocrático (e por excelência antinacional) o direito de falar por todos e de ditar as regras do jogo.359

356 Ib., O significado do 16 de abril (1984). In: Ib., Que tipo de República? São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 186. 357 Ib., A concepção reacionária do radicalismo (1977). In: Ib., Brasil: em compasso de espera. São Paulo: Hucitec, 1980, p. 131. 358 Ibidem. 359 FERNANDES, Florestan. A concepção reacionária do radicalismo (1977). In: Ib., Brasil: em compasso de espera. São Paulo: Hucitec, 1980, p. 132.

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Coadunar com a posição anti-radicalista seria escolher a “abertura democrática”

tutelada pela ditadura, ao invés da revolução democrática necessária. Surpreendentemente, o

anti-radicalismo foi amplamente cultivado naquele momento (e daí em diante) por um grande

setor que possui, como o próprio Florestan ressalta, “uma visibilidade ‘radical’ ou

‘extremista’”.360

Para Florestan, as classes possuidoras saíram em vantagem: primeiro pela paralisação

que se operou frente ao golpe e depois pela contenção dos conflitos de classe pela violência.

De forma que “os estratos de classe média tiveram, em conseqüência, o seu radicalismo

contido; e os efeitos das pressões das classes trabalhadoras, no campo e nas cidades, foram

sufocados ou drenados” – amputando-se assim os “órgãos de dinamização da mudança

social”.361 A ditadura havia sido muito corajosa ao utilizar da política de opressão e repressão,

pois deixou a classe média temerosa em relação ao enfrentamento da ditadura que ganhou,

desta forma, uma vantagem estratégica podendo impor o conceito de “abertura segura”, “o

qual traduz os marcos da concessão e revela que o regime ditatorial continua tão forte que

pode conduzir o processo ‘de normalização da ordem’ e impor sua linguagem mistificadora ao

adversário (ou, melhor, a seus vários adversários)”. 362

Ao realizar tal crítica à concepção reacionária do radicalismo, Florestan Fernandes

busca superar o que considera uma tradição arraigada no Brasil, na qual as massas são

sistematicamente excluídas dos processos políticos. Seria necessário superar este limite se o

objetivo era de fato a superação da estrutura autocrático-burguesa enquanto estrutura histórica

que matriza a capitalismo nacional, superando o medo burguês, que imobiliza o país e faz

com que as classes dominantes se articulem sempre de forma a manter as decisões longe das

massas, sempre ruminando o famoso: “façamos a revolução antes que o povo a faça” do

político mineiro Antônio Carlos de Andrada.

A república democrática no Brasil nunca teve outro conteúdo de classe além do paternalismo-mandonista burguês, visceralmente despótico, autocrático e antipluralista. Somente o proletariado pode modificar essa realidade histórica, introduzindo na ordem burguesa, através dos mecanismos da luta de classes, as bases econômicas, sociais e políticas de sua existência civil (a mera incorporação morfológica à sociedade civil de nada adianta por si mesma; tampouco adianta a validade formal de uma ordem legal que é totalmente cega ou inoperante para os “menos iguais”). Somente depois que isso acontecer poder-se-á falar de uma república democrática e poderá contar o proletariado com condições político-legais efetivas, a serem “defendidas”. Então, a república

360 Ibidem. 361 Ibid., p. 133. 362 Ibidem.

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democrática será, de fato, um campo de batalha entre as classes dominantes e as classes dominadas, entre a burguesia e o proletariado, ou seja, uma forma política autêntica da democracia burguesa, que organiza o Estado para a hegemonia de classe e o exercício do poder da burguesia (e não para a eliminação do proletariado da arena política).363

É por aí que passa a radicalização proposta por Florestan, pela inclusão das massas

legitimamente no processo político, colocando-se como intelectual a serviço desta massa, não

mais como intelligentsia “elitista” que orientaria a planificação racional do Estado. A

racionalidade deve ser incorporada dentro da lutas de classes e é esta luta que fomentaria uma

democracia ampliada:

O que permite ao sociólogo combinar a investigação rigorosa, com a explicação precisa e a responsabilidade intelectual (a qual, conforme as circunstâncias, vai da atitude participante à militância política “contra a ordem”, não em nome de certos valores, mas como contestação fundada em movimentos revolucionais potenciais ou reais). A partir do elemento burguês da democracia, tem-se feito a defesa militante do liberalismo ou da democracia parlamentar. É igualmente legítimo fazer o inverso: a partir do elemento proletário da democracia, fazer-se a defesa do socialismo e da revolução social. Não mais como K. Mannheim, em busca de uma “terceira via” (“liberdade com planejamento”), mas em busca de um novo padrão para a civilização industrial.364

Esta busca de superação dos limites do liberalismo permite a Florestan, através da

oposição entre uma democracia restrita (ou “dos mais iguais”) e a “democracia ampliada”,

desmistificar a democracia em abstrato, a tipificação ideal de democracia que deixa de ser –

mesmo nas mãos “axiologicamente neutras” dos cientistas sociais – mera ferramenta de

análise e se torna um fim em si. Construção ideológica que visa restringir as tentativas

“radicais” de modificação do Sistema e engessa, a partir de um formalismo procedimental, os

mecanismos de mudanças sociais para além da lógica do capital:

Diante desse quadro global, os socialistas não podem, ao atacar o regime ditatorial vigente e ao defender a democracia, ficar cegos diante da realidade ou paralisados por falsas palavras de ordem burguesas. A abertura democrática não é só uma armadilha do SISTEMA. Ela contém o avanço que o poder burguês pode realizar aqui e agora sem arriscar-se a um sério e irreparável deslocamento político.

De outro lado, não cabe aos socialistas hipostasiar ou reificar mistificadoramente a DEMOCRACIA. Essa é uma tarefa da burguesia. No Brasil a burguesia a realiza tragicamente, simulando a obsessão de patrocinar uma democracia de participação ampliada, enquanto deteriora, de fato, por todos os meios ao seu alcance, a

363 FERNANDES, Florestan. Brasil: em compasso de espera. São Paulo: Hucitec, 1980, p. 30. Grifos do autor. 364 Ib., Apontamentos sobre a “teoria do autoritarismo”. São Paulo: Hucitec, 1979, p. 15. Grifos do autor.

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república democrática, convertida em uma forma política sociopática da democracia restrita.365

Assim, para superar a anomia do regime – que “inibe ou paralisa a luta de classes e a

marginalização política, que fomenta o despotismo burguês” – as massas populares não

deveriam recorrer ao reformismo, mas sim ao recurso do “socialismo e, claramente, do

socialismo revolucionário. É por aqui que a questão da democracia será reposta, em breve,

nos seus verdadeiros termos”:

Não se trata de supor que o socialismo constitua uma solução miraculosa. Ele não é. O que ele puder representar, como fator revolucionário de transformação da ordem, dependerá do que o proletariado e as classes destituídas forem capazes de fazer dele, e com ele, na superação de sua impotência e na acumulação de poder real.366

Mas quais seriam as possibilidades das massas populares se moverem diante do clima

de repressão e apatia que se abatia sobre a esquerda? Como promover a desobediência civil?

3.3 As greves no ABC

As greves que eclodiram, a partir de 1978, reavivaram as expectativas revolucionárias

de Florestan Fernandes. Enquanto o sociólogo reafirmava as proposituras socialistas – a

partir de sua análise teórica, que buscava difundir por todos os meios possíveis, a política

econômica de Geisel pautada no endividamento externo e no arrocho salarial e as demais

contradições que fermentavam no interior das classes sociais – desdobrou um leque de

possibilidades para a atuação.

O arrocho salarial fez com que a classe trabalhadora brasileira, após muitos anos de repressão, fizesse o que qualquer classe trabalhadora do mundo faria: negar sua força de trabalho às empresas. Era a única forma que os operários tinham de recuperar o padrão salarial, ou melhor, entrar no caminho de sua recuperação.367

A movimentação operária, que surge após 14 anos de regime ditatorial, parecia trazer

à tona a “revolução” abortada pela contra-revolução de 1964,368 colocando em primeiro plano

365 FERNANDES, Florestan. Brasil: em compasso de espera. São Paulo: Hucitec, 1980, p. 15. 366Ibid., p. 27. 367 SILVA, Luis Inácio Lula apud ANTUNES, Ricardo. A rebeldia do trabalho (o confronto operário no ABC paulista: as greves de 1978/1980). São Paulo: Ensaio, 1988, p. 27. 368 “as greves metalúrgicas desencadeadas no triênio 1978/80, encontram sua causalidade básica nas luta contra a super exploração do trabalho [...] foi a necessidade de contrapor-se ao arrocho salarial. E, assim, comportando uma pauta de natureza predominantemente econômica, as greves metalúrgicas assumiram, desde seu desencadear, nítida dimensão política, expressa no confronto que efetivaram contra a base material e a superestrutura jurídico política da autocracia burguesa”. FERNANDES, Florestan. Brasil: em compasso de espera. São Paulo: Hucitec, 1980, p. 167. (Grifos do autor)

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a atuação das classes trabalhadoras através da “desobediência civil” que surgiu no discurso

dos dirigentes sindicais:

Bom, a interferência do Ministério é constante, já que estamos subordinados a uma estrutura que nos amarra a ele. Nas greves de maio, houve interferência quando o delegado regional do trabalho em São Paulo enviou o primeiro processo para o Tribunal julgar se elas eram legais ou não. Outras greves também foram consideradas ilegais, mas os trabalhadores continuaram parados porque a greve era justa.369

Florestan Fernandes desabafa: “quando parecia que ‘estávamos órfãos de pai e mãe’, o

movimento operário e sindical nos abriu novos caminhos – e caminhos históricos, que

modificam o nosso presente e, presumivelmente, o nosso futuro”.370

No Brasil, as greves em particular e a movimentação social em geral sempre foram

tidas como “‘caso de polícia’ (desde 1910); o movimento sindical, como uma

‘monstruosidade política’ (desde 1930); O OPERÁRIO COMO INIMIGO DA ORDEM (um

fenômeno da consciência burguesa, não do inconsciente da burguesia – o que faz do patrão o

sucessor e o substituto normal do senhor de escravo!)”. 371 No final dos anos setenta, as greves

continuavam proibidas, “ou seja, não se verificou progresso nenhum na mentalidade

conservadora. E ao mesmo tempo absorvemos a ciência moderna e sua tecnologia, numa total

contradição”.372

Enquanto tática política, Florestan compreende que, apesar dos teóricos do

sindicalismo exagerarem a respeito do papel das greves, estas, sob a forma de greve geral,

permitem “romper as barreiras do economismo, da greve puramente reivindicativa e contida

dentro da ordem, e constitui um terreno fértil de educação do proletariado para os alvos

políticos mais importantes da luta de classes”. Contudo, para que ocorra uma greve geral é

necessária “uma crise de poder relativamente geral e profunda”, mas, uma vez acontecendo,

Ela sempre provoca alterações decisivas, desde as que dizem respeito à disciplina operária, ao emprego maciço de técnicas elaboradas de agitação e de propaganda, de recrutamento e promoção de quadros combativos, etc., até as que dizem respeito à própria superação do sindicalismo pelo transbordamento da atividade grevista, à criação de vínculos de solidariedade dentro da classe trabalhadora como um todo e com outras classes assalariadas, à ativação dos partidos operários e, por fim, à reeducação da burguesia ou, pelo menos, ao redimensionamento

369 SILVA, Luis Inácio Lula. Entrevistas e discursos. São Paulo: O repórter de Guarulhos, 1981, p. 152. 370 FERNANDES, Florestan. A concepção reacionária do radicalismo (1977). In: Ib., Brasil: em compasso de espera. São Paulo: Hucitec, 1980, p. 152. 371 Ib., Brasil: em compasso de espera. São Paulo: Hucitec, 1980, p. 2. 372 Ib., Entrevista com Renato Moraes e João Marcos Coelho (1977) In: Ib., Brasil: em compasso de espera. São Paulo: Hucitec, 1980, p. 243.

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das “atitudes autoritárias” e dos comportamentos egoísticos dos estratos dirigentes das classes dominantes.373

No caso específico do proletariado brasileiro, “de formação tão recente e tão

heterogênea”, foi uma grande vitória o simples fato de haverem colocado “a solidariedade

proletária acima de qualquer outra coisa”.374 Mas, obviamente, as greves de 78/80 foram

muito além de reavivar a solidariedade proletária, uma vez que foi “a partir das classes

trabalhadoras, simultaneamente no ABC e no Recife na greve dos colhedores de cana, que a

ditadura recebeu o primeiro grande golpe que foi fulminante para ela”.375

As greves deste período conseguiram ultrapassar os “patamares que restringiam o

significado social da greve” desde o início de 1900, montados “sob a égide da renovação da

Aliança Liberal e completado sob o Estado Novo” na busca da “paz burguesa”, que

graças ao sindicalismo amarelo ou peleguista e ao uso descarado do Ministério do Trabalho como instrumento de subalternização dos operários, os patrões ainda conseguiram ir além do “atrelamento do sindicato”, pois utilizaram de modo prolongado as reivindicações salariais e o clientelismo sindicalista como um instrumento de manipulação do movimento operário, como cauda política da burguesia (sob forma de “aliança de classe” espúria, através de demagogia populista e do chamado desenvolvimentismo, em suas várias versões).376

Para Florestan, a situação dos anos 70 era outra. Formou-se uma concentração de

população que busca o trabalho industrial mas que “não tem adestramento para o trabalho

industrial, [...] vivendo um processo no qual se tornam simultaneamente urbanitas, quer dizer,

moradores da cidade, e se proletarizam, tornam-se operários”. Essa massa de trabalhadores

“se sobrepõe a um núcleo menor de trabalhadores altamente qualificados”, tendo que se

sujeitar:

esmagado pela empresa de um lado e pelo Estado de outro, o peão é o elemento que se vê diante do trabalho sujo, que ninguém quer fazer, e ao mesmo tempo sofre uma espoliação muito grande; e embora ele tenha uma consciência de classe larvar, que está em latência, desabrochando, se vê numa dificuldade muito grande para garantir a qualificação que ele está em vias de obter e transmitir para os filhos. A mobilidade de uma fábrica para outra é muito grande neste setor. O trabalhador é roubado em suas necessidades de subsistência básica, dele e dos seus filhos, da sua família. Então toda esta constelação de pressões cria na cabeça confusa deste agente humano uma relação com o ambiente que é tumultuosa, mas ao mesmo tempo muito dolorida, tensa e é, por assim dizer, a

373 FERNANDES, Florestan. O que é revolução? São Paulo: Brasiliense, 1981, pp. 61-62. 374 Ibid., p.103. 375 Ib., Palestra de Lançamento da Campanha de 1986 na Fundação Santo André. 376 Ib., Movimentos operários, greves e democracia (1986). In: Ib., A constituição Inacabada: Vias Históricas e Significado Político. São Paulo: Estação Liberdade, 1989, p. 39.

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pólvora, enquanto que o novo líder sindical é a chama que pode atingir a pólvora, sendo o elemento explosivo.377

Neste processo psicossocial, transita-se do conformismo para o inconformismo.

Mesmo sob a repressão policial e a proibição da greve, estes operários “vão se tornar

instrumentais para o aparecimento do chamado novo sindicalismo mais combativo e menos

manipulado por partidos que tinham capacidade de diálogo com a burguesia”.378

Está dada uma base sólida de apoio para a atividade de um movimento socialista.

Como já apontamos no primeiro capítulo, Florestan passou a conferir grande importância para

a ligação orgânica entre intelectuais e base social que compõe a polaridade revolucionária da

ciência. Este pólo, onde se encontra a classe revolucionária, se abre diretamente para a

história, “já que é ao nível da história que ela se inscreve. No entanto, é uma história que

revela o dinamismo das estruturas em ebulição, o que faz com que seja através dela que se

atinja o fundo da realidade”.379

Desta forma, é a classe revolucionária que permite demonstrar a natureza do

capitalismo, pois sua racionalidade pode superar os limites que cerceiam a racionalidade

capitalista: “O ‘limite burguês’ torna-se conhecido, pois, quando visto pelo avesso, mediante

o momento de sua negação, no movimento social que conduz à sua destruição. Nesse ponto

Lukács está certo”.380 Para o autor, há a possibilidade de atrelamento orgânico entre

movimento social e a ciência, neste caso específico, a sociologia:

Poder-se-ia dizer que o laboratório dessa sociologia é a sociedade. Mas, essa seria uma meia verdade. Pois os seus nervos procedem do movimento socialista, pelo qual a revolução é ativada e regulada. Se o movimento socialista é forte, intenso, maduro, os sociólogos que operam em conexão com ele produzem um pensamento sociológico diretamente encadeado à transformação revolucionária do mundo.

No entanto, é importante notarmos que a sociologia é tida como um instrumento que

deve ser manipulado pelo movimento socialista e não seu substituto. Cabe ao movimento

socialista um desenvolvimento e uma “vitalidade suficiente para apossar-se do pensamento

sociológico [...] e utilizá-lo como ‘arma teórica’ e ‘recurso de análise’ para os seus fins, quer

eles se delimitem como uma ‘revolução dentro da ordem’, quer eles avancem até a ‘revolução

contra a ordem’”.381

377 FERNANDES, Florestan. A transição e as tarefas da classe operária (1987). In: Ib., Democracia e desenvolvimento: a transformação da periferia e o capitalismo monopolista da Era Atual. São Paulo: Hucitec, 1994, pp. 141-142. 378 Ibid., p. 141. 379 Ib., A natureza sociológica da sociologia. São Paulo: Ática, 1980, p. 31. 380 Ibid., p. 32. 381 FERNANDES, Florestan. A natureza sociológica da sociologia. São Paulo: Ática, 1980, p. 33.

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O problema é que, para Florestan, um movimento político de esquerda teria que partir

da estaca zero, “ou pior que isso”, visto que a esquerda brasileira e latino-americana acabou

sempre favorecendo a burguesia. Como declara:

Uma vez, em Toronto, queriam saber o que era a esquerda na América Latina. Disse-lhes: embora seja dramático, para mim, a esquerda na América Latina é uma congérie de grupos políticos empenhados em se destruírem reciprocamente e em manter o sistema de poder das burguesias nacionais e do imperialismo. Essa é uma definição dolorosa, mas clara e sem subterfúgios.382

Ainda que nessa passagem o autor fale da América Latina no geral, esta é uma visão

que pode ter como modelo o Brasil. Além desta atuação catastrófica, que tinha, apesar de

tudo, boas intenções, Florestan também denuncia que uma parte da esquerda foi

reiteradamente cooptada, uma vez que “a ‘massa’ da esquerda tem os olhos fitos no desfrute

das vantagens do status de classe média”.383

Desta forma, o ponto de estrangulamento para o desencadeamento de uma verdadeira

democracia, uma revolução democrática, passa a ser então a carência de um movimento

socialista que desse suporte a classe trabalhadora, que se adiantava como vanguarda política

no final dos anos 70. Assim como foi necessário um novo operário que desse suporte ao

surgimento do que o autor considera – e os próprios sindicalistas se autodenominavam – novo

sindicalismo, seria necessário uma “nova esquerda” que superasse os papéis históricos até

então assumidos; é dizer, o papel de uma “congérie de grupos políticos empenhados em se

destruírem reciprocamente e em manter o sistema de poder das burguesias nacionais e do

imperialismo”.

3.4 Um debate da esquerda

Em nossas pesquisas no Acervo Especial Florestan Fernandes, em São Carlos,

resgatamos um manuscrito que nos ajuda a elucidar bem o posicionamento da esquerda e a

posição de Florestan no nascedouro das greves. O texto é de 9 de junho de 1978 e intitulado

Conjuntura Nacional e Análise de Projetos Políticos voltados para a Participação Popular.

Trata-se da preparação de uma fala de encerramento, em um encontro com influentes

representantes políticos da esquerda brasileira.

É importante que tenhamos em mente que a primeira greve dos metalúrgicos do ABC

irrompe em 12 de maio de 1978, ou seja, os encontros são realizados dentro de mais ou menos

382 Ib., Movimento socialista e partidos políticos. São Paulo: Hucitec, 1980, p. 56. 383 Ib., Introdução de Que fazer? (1978). In: Ib., Brasil: em compasso de espera. São Paulo: Hucitec, 1980, pp. 108-109.

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um mês após o início de um processo que terá vitalidade para durar de forma surpreendente

até 1980.

Florestan inicia sua fala declarando grande perplexidade: “se ouvi o meu querido

Darcy Ribeiro assumir sua responsabilidade e dizer-se perplexo – neste momento cabe-me

dizer honestamente que não só estou perplexo, mas muito perplexo”.384 Isto porque

ressalvando sua fala, o consenso geral parecia ser “sempre ‘não fazer o jogo do adversário’,

‘não provoca a repressão’, em suma, facilitar o caminho de retorno, de volta ao “Estado de

Direito’”. Tomava-se a posição de esperar que a ditadura “caísse de madura”; posição esta

que Florestan ataca com ácida ironia: “O que não se soube fazer ou em 1964 ou em 1967-

1968 � faz-se agora com extrema prudência”. A perplexidade de Florestan nasce, pois, do

fato de que a mesma esquerda que se precipitou à guerrilha de forma equivocada, pois não

tinha base social para realizar aquele intento, queria, agora que se instaurava efetivamente

uma base social para o acirramento de uma luta consistente, colocar panos quentes nas greves

que começavam a eclodir: “há uma consciência política esclarecida = que condena o arroubo,

o extremismo, a provocação, de um lado; mas quer a luta de tocaia, de avanços graduais e de

consolidação progressiva do terreno ganho de outro”.385

O segundo tópico de sua fala retrata a coagulação das tendências apresentadas nas

diversas falas do encontro. No primeiro grupo encontram-se aqueles que se caracterizam pela

“análise técnica e madura da situação política e das alternativas que se abrem”, demonstrando

um alto grau de “conhecimento de meios e fins ao nível de funcionamento das instituições e

estruturas políticas”. Este grupo apresenta também “um certo realismo maquiavélico [não

vamos atacar a fraqueza do adversário mas aproveitar a sua força, especular com o que ele

pode oferecer sem pensar-se em risco maiores e enfrentar um novo cataclismo, como em 64

ou 68]”.386 Florestan, ressaltando que há diferenças, coloca uma parte das exposições dos

líderes sindicais, dos quais não cita os nomes e ainda os palestrantes: Airton S. Soares,

Raimundo R. Pereira e Frei Alberto Libânio Christo (Frei Beto).

384 Por tratar-se de um manuscrito buscamos manter o texto o mais próximo possível do original, por isso colocamos partes sublinhadas com um ou dois traços, flechas, chaves e demais símbolos que aparecem nos originais. 385 FERNANDES, Florestan. Conjuntura Nacional e Análise de Projetos Políticos voltados para a Participação Popular. 9 jun 1978. Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes. 386 FERNANDES, Florestan. Conjuntura Nacional e Análise de Projetos Políticos voltados para a Participação Popular. 9 jun 1978. Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes.

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Figura 11 – Ficha nº 16 do manuscrito Conjuntura Nacional e Análise de Projetos Políticos voltados para a

Participação Popular de 09 jun. 78. Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes.

A segunda vertente se concentra toda na figura de Darcy Ribeiro que, “merece uma

ênfase especial por sua penetração Analítica”. Para Florestan, o sociólogo mineiro apresentou

com minúcia “o governo, com seu regime econômico, seu sistema político e sua estrutura de

sustentação social e institucional”, mas acabou exagerando a tendência de enfrentar a ditadura

através de uma dimensão teórica: “além do mais muito repetitiva como tendência e muito

fragmentada ou pulverizada como força cultural e política (o que resulta da anomia política de

oposição = não se organizando, se evidencia pelos que têm a coragem de avançar de peito

aberto e na escala individual ou dos grupúsculos)”.387

Florestan aproveita para pontuar a relação de Darcy Ribeiro com o governo de João

Goulart, no qual foi ministro. Para ele, o discurso de Darcy trazia uma análise original do

governo Goulart e que era proferido “por uma pessoa que ‘está por dentro’ e tem a

responsabilidade das decisões tomadas (e dos erros cometidos)”; mas que não era capaz de

desmascarar o populismo, mas sim de justificá-lo, através da acusação contra as “elites

reacionárias e contra revolucionárias, unidas para defender, perpetuar e reforçar seus

privilégios”. O que não satisfaz Florestan:

387 Ibidem.

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Todavia, o depoimento deixa claro que se trata de dois elitismos. O que oprime as massas; e o que manipula as massas. E este foi poupado, inclusive na pessoa de Jango, um dos piores representantes desse elitismo [podem condenar-me o quanto quiserem = o fato é que não alçamos a situação objetiva na luta de classes que permita ao demagogo trair sua classe = Neumann e Weber; e Jango revelou claramente que não tinha essa disposição revolucionaria mesmo a partir de si mesmo, como um dado psicológico. O que coloca tão abaixo de Getulio e do 1º Perón que nem é bom falar...388

O ponto alto das falas apresentadas foi, segundo o autor, “as ponderações dos líderes

sindicais dos operários que discutiram os problemas das relações entre sindicato, bairro

empresa e desvendaram o seu encurralamento social e institucional (que acompanha e

aprofunda encurralamento econômico e político)”. Na medida em que colocam explicitamente

as condições dos trabalhadores naquele momento, demonstrando “como o oprimido está longe

de desfrutar de espaço histórico para movimentar-se e participar mesmo em sua esfera restrita

de ser e de existência”, assim, Florestan descreve a situação da classe trabalhadora:

Literalmente esmagado e pulverizado = não tem por onde escapar ao atrelamento, à repressão salarial e policial, ao peleguismo e à manipulação direta ou indireta das classes possuidoras. Avança pouco e arrisca muito = logrando mover quase nada a sua oposição de baixo para cima = mesmo na empresa, no comitê de fábrica e no sindicato. Um material sociologicamente construtivo = para os ultra-teóricos, que não acreditam, com Marx, que uma classe pode ter todas as condições materiais de uma classe e não ser uma classe = e o quanto, alguns operários mais conscientes e corajosos e alguns líderes sindicais caminham no sentido de conquistar penosamente essa transformação, organizando nas piores condições imagináveis e com muitos sacrifícios a pressão possível de baixo para cima = longe de uma classe revolucionária, mas claramente como uma rebelião contra a ordem existente e a emasculação dos trabalhadores.389

Florestan retoma, desta forma, a problemática da classe em si e da classe para si. Para

o autor, o que ocorria naquele momento era justamente o processo de constituição da classe

para si, a tomada de consciência de classe.

Apresentada esta crítica geral sobre as falas realizadas, Florestan retoma o que chama

de posição inicial de forma positiva: “A problematização = conjuntura nacional X propostas

políticas X participação popular”.390

388 FERNANDES, Florestan. Conjuntura Nacional e Análise de Projetos Políticos voltados para a Participação Popular. 9 jun 1978. Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes. 389 Ibidem. 390 FERNANDES, Florestan. Conjuntura Nacional e Análise de Projetos Políticos voltados para a Participação Popular. 9 jun 1978. Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes.

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Para ele “a conjuntura é de crise da contra revolução”, não se trataria centralmente de

um problema técnico como pareciam ter apontado algumas falas, mas sim de um problema

político. De forma que “converter a luta contra a ditadura em um processo espontâneo e

técnico = deixa-se a iniciativa do combate a ela própria” e assim ela poderia organizar a

transição e “inclusive = confinar ou isolar a desobediência civil mesmo quando ela se

converte em avalanche”.

Em sua opinião, mesmo em crise, a contra-revolução tinha um projeto político que era

o projeto de institucionalizar-se e, dentro deste quadro, a proposta de Florestan era:

A nossa atenção devia concentrar-se nesse nó = como acelerar a desestabilização da ditadura impedi-la de ter a iniciativa nas medidas de auto-defesa e de ataque, em suma, encontrar os elementos políticos médios e convergentes da oposição. Tudo isso precisa ser feito sem dar vantagem ao inimigo.391

Acena, desta forma, para o resgate dos pontos comuns da esquerda, articulados pela

retomada da “revolução burguesa”; uma retomada que permitisse a criação e incorporação das

várias tendências em um movimento que fomentasse a luta de classes e a desestabilização da

ditadura militar, de forma a superar o bloco dominante que bloqueava a transição ao criar um

“Estado de direito” que carregava uma lógica toda particular: “Estado de Direito sim, mas

mais ‘Estado’ que ‘Direito’ e especialmente mais “Direito” que LIBERDADE =

especialmente para as massas populares e as classes trabalhadoras)”.392

O texto deixa transparecer claramente a frustração de Florestan ao constatar que os

debates estiveram relacionados à análise conjuntural e à formulação de propostas políticas,

tratadas em um nível técnico que acabou por rebaixar as propostas de ação. Finaliza sua fala

apontando a falta de dois elementos importantes nas exposições:

a) como canalizar todas as forças que se voltam contra a contra-revolução e sua ditadura no plano político (o MDB não fará isso; e espontaneamente, uma sociedade tão elitista tende a sufocar a eclosão dessas forças = controláveis ao nível de classes medias e altas e dos setores pequeno-burgueses das classes trabalhadoras). Fora daí = sabe-se como ela começa e não como ela termina. O que leva mesmo os setores de oposição a serem cuidadosos, maduros e moderados. Querem a reforma natural, nascida das forças organizadas socialmente, não a revolução democrática, que despertaria os oprimidos e os converteria em parceiros válidos do jogo. b) como fugir do circulo vicioso em que estamos: uma estabilização política indesejável por falta de participação popular versus impedimento organizado, institucionalizado e largamente consciente (não só tolerado mas desejado) da participação popular

391 Ibidem. 392 Ibidem.

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[mesmo nas hostes aparentemente mais “autenticas” e “radicais” da oposição].393

Ou seja, o ponto “a” não fora discutido simplesmente por ter sido descartado dentro

das “estratégias políticas” apresentadas; e, o ponto “b”, só seria possível a partir da tomada de

posição proposta por Florestan, de uma busca pela ampliação da participação popular. A este

último ponto ressalta ainda que não se pode fugir da “mobilização de conta gotas” (“comitês

de fábrica, comitês de bairros, comitês de várias coisas, comunidades de base, sindicato”), já

que todos estes elementos se demonstravam de grande valia. De toda forma, o ponto central

que deveria ser explorado pela esquerda era o processo que acabava de se iniciar e que

apontava possibilidades bem mais amplas: “ao nível do crescimento espontâneo e

institucionalizado (muito lento e submetido a controles externos severos no Brasil = reativos e

policial-militares ou patronais) = chegaremos a alguma coisa no limiar do século XXI [o que

coloca a questão = plano legal e plano ilegal = e onde deveríamos fazer essa discussão e com

quem]”.394

O pano de fundo destas posições que levavam Florestan à perplexidade era que,

naquele momento, vários intelectuais da esquerda comunista passavam a ser influenciados por

tendências européias que, dada a crise do socialismo ao verificar o caráter “totalitário” do

stalinismo, passam a adotar a ideia de um socialismo “verdadeiramente democrático”. Entre

estas tendências, talvez uma das mais conhecidas fosse a do eurocomunismo, uma “evolução

que os partidos comunistas da Europa ocidental conheceram depois do VII Congresso do

Kominten e que os conduziram [...] a colocar em prática uma política de colaboração de

classe sempre mais estreita com a ‘honesta’ (em francês prope) burguesia”.395 Tendência que

chegava ao Brasil juntamente com o retorno de alguns intelectuais comunistas que voltavam

do exílio. Uma tendência que fazia coro com o politicismo, que, como vimos, predominou

durante todo o período e que acusava os grevistas de “ignorar a mediação política”, o que

prejudicaria o alargamento da democracia através de um recrudescimento da ditadura.

Estavam em jogo no debate em questão basicamente duas posições:

Num pólo encontram-se aqueles que vêem a greve, na particularidade e contextualidade da luta de classes e do capitalismo no Brasil, como instrumental decisivo para se operar o desgaste e mesmo a ruptura com a dominação autocrática e

393 FERNANDES, Florestan. Conjuntura Nacional e Análise de Projetos Políticos voltados para a Participação Popular. 9 jun 1978. Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes. 394 Ibidem. 395 “Ce que l’on designe par ‘eurocommunismo’ represente em premier lieu une codification de l’evolution qu’ont connue les partis communistes d’Europe occidentale depuis le VIIe Congrès du Komintern et qui les a conduit [...] à mettre en oeuvre une politique de collaboration de classe toujour plus étroite avec leur propre bourgeoisie” MANDEL, Ernest. Critique de l’eurocommunisme. Paris : Librairie François Maspero, 1978, p. 52.

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excludente; em outro pólo encontram-se formulações que minimizam estes eventos de extração operária, pois que no presente político a priorização deveria ter como finalidade a construção de um ordenamento institucional-democrático tecido de maneira pluriclassista.396

É dizer, no momento em que a classe trabalhadora, espontaneamente, toca em um

ponto nevrálgico da estrutura econômica montada pela ditadura – que estava em crescente

decadência – conseguindo, com isso, romper com toda a tendência politicista imperante na

oposição, esta classe, potencialmente revolucionária, não encontra uma esquerda organizada

que dê suporte a uma ação radical, que se dirigisse à estrutura histórica que manietava o

desenvolvimento do país. Esta classe era estimulada por intelectuais “comunistas” a desistir

do acirramento “inconseqüente” de suas lutas e, assim, parte significativa da esquerda

brasileira conseguia ser mais conservadora do que muitos democratas-liberais, que sabem do

papel decisivo que teve a atuação popular para a democratização burguesa do capitalismo

(revolução dentro da ordem); democratização que era, para Florestan, o ponto inicial pelo qual

um movimento socialista deveria direcionar a luta popular.

Na orelha do livro citado acima Florestan expõe claramente a importância que dá ao

movimento grevista que vai de 1978 a 1980:

De um lado, os operários, ao negar a empresa e o capital, negam o governo ditatorial e sua política econômica. É o apogeu da luta contra a ditadura: o momento do Basta! [...] Saíram vitoriosos da repressão da fábrica e da repressão do Estado. Intactos e brilhantes, orgulhosos e fazendo valer o poder operário, o poder real das classes trabalhadoras.397

Para Florestan, dever-se-ia partir desta negação do governo militar avançando na luta

de classes até o ponto de limitar o poder das classes burguesas que davam suporte a

perpetuação da ditadura, é dizer, só haveria democracia se houvesse uma participação de

baixo para cima que tivesse expressão nas tomadas de decisões estruturais que balizaram o

processo de democratização. O militares, todavia, demonstraram ter ainda enorme vitalidade e

perspicácia ao conduzir, mais uma vez, o centro gravitacional da abertura para a esfera

politicista, na qual a atenção da esquerda sempre se concentrou e na qual a participação de

baixo se dissolve.

O ano de 1979, auge das greves no ABC, será também um marco para o processo de

dar continuidade na contra-revolução; não só porque houve, neste ano, a troca de guardas –

com a saída de Geisel e a entrada em cena de Figueiredo –, mas porque se acelerou também o

396 ANTUNES, Ricardo. Op. Cit., pp. 87-88. 397 Florestan FERNANDES na Orelha de: ANTUNES, Ricardo. Op. Cit.

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processo de institucionalização das posições conquistadas durante todo o processo ditatorial.

Nasce finalmente uma transição, porém, pautada na mesma tradição política autocrática, a

partir de uma conciliação feita no “andar de cima” e não como fruto do confronto com as

forças de baixo. A movimentação popular, em especial as greves do ABC, indicou que era

chegada a hora de correr os riscos de se reestruturar a dominação burguesa; mas, obviamente,

a classe dominante não poderia, nem se viu premida, a abrir mão da estrutura autocrática

burguesa que sustentava seus privilégios e a dependência estrutural do país.

Um ponto que será fundamental para esta reestruturação da dominação burguesa de

forma a tornar a transição democrática em uma institucionalização da contra-revolução foi a

reestruturação tutelada do sistema partidário.

3.5 Os novos partidos

As classes subalternas viram-se diante de um tipo de transformação capitalista que as nega como classe e as rejeita como seres humanos, ao mesmo tempo que os donos do poder constroem o seu Behemoth republicano, que se autoproclama constitucional, representativo e democrático. (Florestan Fernandes, A manipulação dos partidos, 1982)

O cenário que se configura para Florestan é o de uma nulidade de referências políticas,

o que tornava necessário não apenas um partido socialista, mas sim o desenvolvimento de um

movimento socialista amplo, que fosse “uma condição para expandir o socialismo. Os vários

partidos socialistas poderão florescer buscando o inimigo real, o inimigo de classe, e não

dando-se uma batalha sem-quartel, como se fez durante tanto tempo na América Latina”.398

Este movimento socialista seria o suporte necessário para o fomento de vários grupos

dispostos a investir contra a ditadura a partir de uma perspectiva da luta de classes; seria a

base para iniciar uma democratização ampliada. Este caminho seria entendido como longo e

difícil, em que o movimento proposto atraísse as classes destituídas, em geral, e o

proletariado, em particular. Movimento necessário para que a questão da democracia – que,

com as greves, ganhavam força – não passasse de “verbiagem burguesa”.399

398 FERNANDES, Florestan. Perspectivas políticas e novos partido (1978). In: Ib., Brasil: em compasso de espera. São Paulo: Hucitec, 1980, p. 235. 399 Assim descreve o que deveria ser este movimento socialista: “Encaro o movimento de uma perspectiva mais ampla, uma confluência de forças anticapitalistas. Dentro de uma sociedade capitalista surgem forças antagônicas ao capitalismo, que buscam acabar com o modo de produção capitalista, o regime de classes, o Estado Nacional, o sistema de poder da burguesia. E esse movimento tanto pode assumir uma forma gradualista como uma forma revolucionária. Então, o movimento é uma confluência das forças, de todas as forças que se voltam contra a ordem existente. Ou para introduzir reformas antiburguesas dentro dessa ordem; ou para alimentar uma revolução contra a ordem e organizar a sociedade, a economia, o sistema de poder

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Se, por um lado, impunha-se um árduo trabalho a longo prazo, por outro, a massa

“criou o risco da chamada explosão social” e demonstrava que a ditadura não tinha como

impedir o movimento grevista mesmo sob

um regime de repressão tão intenso, que essa área, essa região, [discursava no ABC paulista] foi sobrevoada por um comandante de exército que estava dentro de um helicóptero, sobrevoando essa região como se ela fosse uma província inimiga, uma área colonial ocupada. Uma ditadura que chega a esse extremo e não pode impedir os operários de não só irem à greve, mas de saírem vitoriosos da greve, essa ditadura está derrotada e ela foi derrotada então não pelas elites esclarecidas, pelos extratos que se dizem democráticos das classes dominantes, mas pela massa do povo, a massa que disse: “Não! Não toleramos mais essa situação”.400

De fato, para Florestan, as greves saíram definitivamente vitoriosas, golpeando de

forma contundente a ditadura. Mas não se tratava de uma vitória definitiva. O movimento

grevista havia nascido de forma espontânea e não contava como o respaldo de um movimento

socialista e, além disso, o regime militar apresentava surpreendente desenvoltura para lidar

com a situação.

O governo Geisel, que “recebeu vários elogios, aqui e no Exterior, pela ‘moderação’

com que usou esse sal político do regime vigente”, não cedeu terreno às pressões que

tentaram fragmentar o regime e “que pudessem deslocar o SISTEMA do controle do

Executivo e da República”; fez sim “concessões táticas para preservar certa margem de

apoio”, mas sem ceder definitivamente às pressões de origem popular.401

Ao final do mandato de Geisel, entra em cena o general que colocaria a “abertura em

prática”: João Figueiredo. Tal período, de troca de generais, é entendido como “uma fase de

fratura aguda do bloco histórico que comanda a contra-revolução e sustenta a continuidade da

ditadura”. Para Florestan, os militares haviam engendrado e enfrentavam “provavelmente”

uma “instabilidade política que poderia vir à tona de suas profundezas”.402

em novas bases”. FERNANDES, Florestan. Movimento socialista e partidos políticos. São Paulo: Hucitec, 1980, pp. 6-7. Ver também: Ib., Brasil: em compasso de espera. São Paulo: Hucitec, 1980, p. 26. 400 Ib., Palestra de Lançamento da Campanha de 1986 na Fundação Santo André. 401 “Tirou proveito, como lhe foi possível, de ambos os tipos de pressão, com o propósito de alargar o espaço político da contra-revolução. Por paradoxal que pareça, uma contra-revolução em desgaste conseguiu usar o próprio desgaste para intimidar os relutantes e os desertores, liberando certas formas de contestação que evidenciam o quanto o Brasil está condenado a comoções intestinas estruturais. Se a contra-revolução não se recuperou, ela ganhou um novo alento, mais tempo para desdobrar a reciclagem do regime e maior espaço político para adaptar-se às condições atuais, nascidas de um quadro mundial novo e de uma situação interna diferente. Um regime que poderia sucumbir rapidamente ganhou, não obstante, meios de sobreviver, preservando certas estruturas ou certas funções essenciais e conquistando uma potencialidade de manobra que não possuía antes”. FERNANDES, Florestan. O governo Geisel e a contra-revolução (1977). In: Ib., Brasil: em compasso de espera. São Paulo: Hucitec, 1980, pp. 161-162. 402 Ib., A manipulação dos partidos. In: Ib., A ditadura em questão. São Paulo: T. A. Queiroz, 1982, p. 68.

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O que não impede que Figueiredo lance mão de uma “liberalização outorgada” através

de uma reforma de partidos “que deixava um campo restrito e rigidamente demarcado para a

arregimentação e o crescimento da oposição”.403

Figueiredo deveria tratar agora de outras questões, como conseguir maioria no Colégio

Eleitoral, que se abriria para um poder civil, gerando um pacote eleitoral que é comumente

avaliado como uma tentativa de dividir as oposições, e realizar uma anistia “ampla, geral e

irrestrita” – obtida baixo ameaças de recrudescimento caso a oposição não aceitasse a inclusão

da anistia dos militares.

Para Florestan, o “objetivo estratégico da ditadura, ao contrário do que se acredita, não

se voltava para a fragmentação do MDB ou a pulverização da oposição em geral: voltava-se

para a criação de um partido alternativo da situação”, desconcentrando gradualmente o bloco

militar e transferindo tarefas “sujas” para o pólo civil:

Em resumo, a burguesia deveria perder o despotismo do seu “braço militar”, embora este se mantivesse atento, em posições-chave, para moldar a transição e converter a ditadura por outros meios em uma democracia tutelada. De outro lado, introduziu-se um máximo de restrições e inibições que poderiam prejudicar a reorganização do MDB e deviam impedir a livre organização política das classes trabalhadoras. 404

O novo governo, ao dissolver a ARENA e o MDB através da promulgação da Lei

orgânica dos partidos, de 20 de dezembro de 1979, tira de foco as questões econômicas que

finalmente haviam sido levantadas pelo movimento grevista e lança a discussão para os novos

rearranjos políticos. Como forma de institucionalizar e assim, prolongar indefinidamente a

ditadura de classe, o general Figueiredo se apossa “da palavra de ordem da transformação

democrática da sociedade”. Assim, no conjunto do governo Geisel/Figueiredo, Florestan

chega à conclusão que:

Nunca o tão famoso SISTEMA se mostrou mais sofisticado que sob os dois governos e, também, nunca agiu com tamanha desenvoltura! Em um país tão pobre de imaginação política criadora e de verdadeira ousadia política não resta dúvida de que o SISTEMA converteu-se em uma atração exclusiva. Em termos de riscos calculados, de logística militar e de verticalização política, os taticistas e os estrategistas do SISTEMA programaram a “reconversão à normalidade” e chegaram, mesmo, a determinar qual deverá ser a normalidade. De abril de 1977 aos dias que correm sua

403 “Na seqüência do processo de ‘abertura política’ tracejado pelo cronograma militar da ‘transição lenta, gradual e segura’, Figueiredo é premido pelas distensões dos setores do capital que não desejam o ônus da crise econômica e, na outra ponta, pela movimentação democrática dos setores do trabalho. Figueiredo começa por cancelar as eleições municipais prorrogando os mandatos dos prefeitos e vereadores por dois anos”. RAGO FILHO, Antonio. Op. Cit., p. 243. 404 FERNANDES, Florestan. Crise ou continuidade da ditadura? (1981). In: Ib., A ditadura em questão. São Paulo: T. A. Queiroz, 1982, p. 28.

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programação mostrou-se “afiada” e a Nação assiste estarrecida (poderia assistir divertida, se tudo não fosse dolorosamente essencial) às marchas e contramarchas dos donos do poder.405

Para compreender a manobra militar na reorganização da dominação de classe,

Florestan rechaça “a tendência a esgotar o econômico para depois isolar, descrever e

interpretar o assunto investigado (como os partidos)” – prática que compreende como

“ingênua e anticientífica” – reafirmando, portanto, sua posição de resgatar os processos em

sua totalidade.

Além disso, trata-se de um processo histórico particular, caso específico das

“sociedades capitalistas de origem colonial, que não se autonomizaram com referência às

antigas ou novas metrópoles”, o que impõem algumas exigências especiais para a análise,

uma vez que

Há toda uma crosta de aparências acumuladas e persistentes, mais ou menos nítidas e impositivas, que precisa ser removida cuidadosamente antes que se chegue ao universo histórico específico, que interessa à investigação, ou seja, antes que se possam isolar as aparências incisivas, que ocultam ou mistificam o real com que se deve trabalhar descritiva e interpretativamente.406

Faz-se necessário não se perder os elos com o passado, mas, principalmente, “nunca se

deve perder de vista que é no presente que se encontram as determinações essenciais, que

regulam a reprodução das estruturas e a profundidade, a rapidez e a amplitude das

transformações históricas em processo”.407 Ou seja, “o passado não se ‘repete’ pura e

simplesmente”, mesmo assim, recuar no tempo é vital para qualquer análise sobre os partidos

políticos no Brasil.

O sociólogo constata que, no caso brasileiro, devido a particularidade de seu

desdobramento histórico, “prevalecia um contexto psicossocial crônico de dominação política

ultradespótica” que faz com que a presença do partido fosse dispensada como “mediador da

luta pelo poder entre privilegiados e espoliados”:

O que fica claro – e que as elites das classes possuidoras e dominantes procuram salvar do “caos” das mudanças – é que a monopolização do poder (de todas as formas de poder e, no caso, do poder especificamente político) se decide em um patamar pré-político. Os partidos apenas contam como agência de fruição,

405 FERNANDES, Florestan. Brasil: em compasso de espera. São Paulo: Hucitec, 1980, p. 8. 406 Ib., A ditadura em questão. São Paulo: T. A. Queiroz, 1982, p. 42. 407 Ibid., p. 42.

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distribuição e centralização do poder entre facções dos estratos sociais privilegiados e “dirigentes”. 408

A distribuição do poder é realizada, originalmente, de forma autocrática e, apenas com

o desenvolvimento do capitalismo competitivo no país – “associado à expansão do trabalho

livre e ao início da consolidação do regime de classes em alguns centros urbano-industriais” –

veremos os partidos sofrerem um desnivelamento social. Mas, ainda assim, manteve-se

“invulnerável o monopólio do poder das classes altas, na realidade posto fora e acima dos

processos eleitorais e da competição política”.409

Retomando como referência a ideia do pacto populista, Florestan, observa que as

alterações na “órbita da mudança social progressiva, revitalizaram e modernizaram o

clientelismo, ao invés de destruí-lo”, conferindo à patronagem uma maior importância

histórica por conseguir converter a “tutelagem em ingrediente fundamental da manipulação

das classes subalternas pelas elites das classes dominantes”. No entanto, o quadro populista

estabelece uma contradição que abre possibilidades de os partidos passarem a participar “no

rateio do poder fora dos estreitos limites históricos anteriores”.410

No entanto, no período populista, os sindicatos e trabalhadores (urbanos e rurais)

podiam ser “facilmente [absorvidos] como ‘cauda política e eleitoral’ ou submetidas a um

padrão de ‘paz social’ unilateralmente burguês”. Por outro lado, havia a “reação coletiva

predominante dos estratos estratégicos das classes possuidoras e suas elites”, que buscavam

garantir “o monopólio social da dominação de classe e do poder de classe acima de qualquer

ameaça externa”; criando, para isso, “arranjos políticos” em defesa das “estruturas arcaicas da

sociedade civil e o monolitismo camuflado da sociedade política”.411

Apesar dos movimentos sociais aparecerem manietados, serão justamente as massas

populares que possibilitarão o surgimento da “primeira alteração essencial nas relações dos

partidos com a sociedade global”. Não que os movimentos sociais tenham ganhado

representação política significativa por eles próprios, mas devido ao fato de que “alguns

estratos das classes dominantes e das classes médias” tentarem avançar “em direção à busca

408 FERNANDES, Florestan. A ditadura em questão. São Paulo: T. A. Queiroz, 1982, p. 43. Grifos nossoss. 409 Ib., A manipulação dos partidos (1981). In: Ib., A ditadura em questão. São Paulo: TAC, 1982, p. 44. 410 “Não havia como engendrar uma república democrática que pudesse conciliar o monopólio social do poder deste setor da sociedade com os ritmos e dinamismos do regime de classes. Se abrissem mão do monopólio social do poder, as classes dominantes e suas elites perderiam seu controle fechado sobre o Estado, o que é um dos requisitos políticos da forma dependente do desenvolvimento capitalista. Se não abrissem mão desse monopólio, teriam de enfrentar a pressão montante das classes subalternas, especialmente do seu setor urbano e operário, conflitos entre facções divergentes dentro do seu próprio mundo e a pressão externa das nações capitalistas centrais no sentido de uma estabilização política menos primária e insegura. Nesse quadro, os partidos começam a entrar no rateio do poder fora dos estreitos limites históricos anteriores”. Ibidem. 411 FERNANDES, Florestan. A manipulação dos partidos (1981). In: Ib., A ditadura em questão. São Paulo: TAC, 1982, p. 45.

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de apoio nas massas populares e nas classes assalariadas”, o que “como movimento político

[...] transcendia aos limites das bandeiras burguesas anteriores”. Processo que evidencia o

quanto “o cosmos burguês era demasiado tosco para conter e alimentar positivamente o

avanço”. Os movimentos sociais eram débeis demais para sustentar a radicalização do

populismo; ou seja, a traição de classe por parte dos “demagogos” que se viram assim

emparedados:

As massas populares e as classes trabalhadoras não possuíam organizações suficientemente fortes nem meios de luta política próprios para impor ao avanço marcas relativamente profundas ou para criar um espaço político no qual os demagogos da burguesia tivessem respaldo das pressões negativas dos demais estratos burgueses. Por sua vez, as classes burguesas, em média, deram prioridade às posições exclusivas que detinham no controle do poder político e do Estado. O avanço, pois, sofria um desgaste na “face populista”, que não era compensado pela reação predominante na “face conservadora” dos donos do poder.412

Florestan retoma, assim, um fato que já havíamos apontado ao analisar a autocracia:

“não haveria uma saída política burguesa para os dilemas da sociedade brasileira”, já que as

classes burguesas temiam entrar em lutas pelo poder através dos partidos “e, mais ainda, em

alargar o âmbito da competição pelo poder nas relações com as massas populares e classes

trabalhadoras”.413 Em outras palavras: as classes burguesas nacionais não suportaram um

processo de democratização burguesa.

As pressões das massas populares e a instabilidade que se instaurava, fez com que os

partidos fossem “lançados nesse jogo e engolfados pela fogueira que ardia na sociedade

civil”, configurando “uma situação histórica de duas vertentes, uma revolucionária e outra

contra-revolucionária”, e como resultado

Ao invés de uma versão pobre da república democrática burguesa tivemos uma variante forte da república autocrática burguesa (ou república institucional, como ela se proclamou). Em conseqüência, esse breve desabrochar dos partidos da ordem e de suas réplicas moderadas, na oposição popular e operária, sob as manifestações do trabalhismo ou do socialismo, foi aniquilado, perdendo-se como um patamar burguês de “consolidação” do regime de partidos.414

A ditadura se instaura “como uma tentativa de vergar o arco histórico para trás” e, ao

mesmo tempo, como “ pré-requisito político da aceleração do desenvolvimento capitalista e da

incorporação do Brasil ao espaço econômico, cultural e político das nações capitalistas

412 Ibidem. 413 Ibidem. 414 FERNANDES, Florestan. A manipulação dos partidos (1981). In: Ib., A ditadura em questão. São Paulo: TAC, 1982, p. 46.

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centrais e de sua superpotência”. Por isso, é contra-revolucionaria, na medida em que

interrompe a “modernidade que vinha ‘dos de baixo’”, na direção de uma “revolução dentro

da ordem”, e instaura uma “modernização controlada de cima e a partir de fora com mão de

ferro”.

Com este processo, temos “uma perda substancial na socialização política dos

partidos” – socialização que vinha ocorrendo aos poucos e debilmente – assim, retrocede-se:

“os partidos oscilam de novo como meio do rateio nacional do poder”. Ainda que se tenha

tentado simular a competição democrática na ditadura, o que ocorre na prática é “o mais

completo monolitismo de classe no controle pela violência institucionalizada da sociedade

civil e da sociedade política”.415

O elemento fundamental é que, dentro deste quadro, a patronagem redefine sua

função, criando um partido da situação e desenvolvendo uma vinculação entre um “partido

oficial” e os “elementos arcaicos da tradição política”; demonstrando, desta forma, “que o

regime de partidos não foi restabelecido e que, na verdade, ele era apenas mais um simulacro

(entre tantos outros)”; simulacro que, para ser completo, apresenta um “partido da oposição” –

este “se via naturalmente excluído da ativação direta ou indireta do clientelismo, da

patronagem e do circuito ilegítimo de restabelecimento, pela força, da democracia restrita”.416

Apesar do partido de oposição não ter podido avançar em rupturas significativas, ali estavam,

vale apontar, “os germes, ou a semente, da redefinição do regime de partidos fora e acima dos

desígnios da ditadura”:

esta suscitou uma farsa e a farsa não só se voltou contra ela, mas provocou uma evolução que repunha o partido de “oposição consentida” no núcleo das tensões que lavravam na sociedade civil e tendiam, a largo prazo, a produzir uma nova sociedade política. Em outras palavras, o regime de partidos ganhava realidade histórica e forçava a ditadura a aceitar pela porta dos fundos uma entidade proscrita do rateio real do poder.417

Tal paradoxo leva a ditadura a abandonar, no momento de crise, o sonho de ter dois

partidos “castrados” e “aventurar-se à chamada ‘reforma dos partidos’ (com a criação de

novos partidos e de um ‘sistema de partidos’)”. Frise-se: isto, porque ela não foi capaz de

“promover uma transição equilibrada e definitiva da democracia restrita para uma forma

esterilizada e militarizada de democracia de participação ampliada”, pois o desenvolvimento

capitalista desigual, apesar de fornecer vantagens para a condução ditatorial, “também cerceou

415 Ibidem. 416 Ibid., 47 417 FERNANDES, Florestan. A manipulação dos partidos (1981). In: Ib., A ditadura em questão. São Paulo: TAC, 1982, p. 48.

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o terreno que poderia conferir solidez, eficácia e permanência àquelas vantagens, o que fez

com que elas se evaporassem sem alimentar uma transmutação política”. Em resumo, para o

autor, o projeto de institucionalização integral da ditadura não foi atingido e, frente a esta

derrota parcial, são necessários outros meios de prolongamento do sistema. A questão dos

partidos que se coloca então no momento em que Florestan escreve (1980), está

organicamente ligada ao movimento que as classes possuidoras se vêem premidas a realizar,

na tentativa de utilizar a reforma partidária como “área de manobra política” adotada, ainda

que a contragosto, devido ao desgaste crescente da contra-revolução.418

Batida pela história, a ditadura teve que saltar este obstáculo para encetar por seus

próprios meios “o processo de transição, abastardando-o, contendo-o e desviando-o da

natureza e da forma que ele deveria ter se a democracia de participação ampliada se

instaurasse por um movimento espontâneo no seio da sociedade civil”. Na realidade, não se

trata de um movimento da própria ditadura “em si e por si mesma”, mas sim da união entre as

“forças sociais” que impuseram a contra-revolução e a sua “vanguarda militar”, que

comandam o governo ditatorial e “que lutam, em primeiro lugar pela recomposição do bloco

histórico constituído entre 1962-1964 e 1968-1969 e pela continuidade da ditadura por outro

meios (mudança que se impõe para que o monopólio de classe do poder político estatal

permaneça intocado)”.419

O que faz com que a questão dos partidos se torne uma “luta no aqui e no agora”,

buscando fórmulas para ganhar tempo e impondo “soluções casuístas, mas perigosas”, com o

objetivo de divorciar “os partidos emergentes da forma, dos conteúdos e das funções que eles

deveriam adquirir para corresponderem às exigências políticas das classes subalternas e dos

setores dissidentes das classes possuidoras” e, assim, garantindo, ao menos, um “arbítrio

relativo” – “mas ainda assim renitente e intolerante, cego diante da realidade existente e do vir

a ser histórico”.420

Tal recuo tático visava impregnar globalmente os partidos e a sociedade do mesmo

clientelismo e patronagem anterior, restabelecendo “a ligação entre o presente e o passado,

tanto nos setores mais reacionários quanto nos setores tidos como liberais”. Ocorre, portanto,

418 “A primeira coisa a fazer consistia, de fato, em promover a continuidade da ditadura por outros meios, que são, nas sociedades capitalistas do presente, os meios que se apresentam através da consolidação de uma “democracia forte”. O complemento das “salvaguardas do Estado” tinha de ser, necessariamente, um dos pratos da balança; o outro prato era a reformulação dos partidos a partir de cima e sob tutela do poder central (daí o tipo de escolha e a programação militar de uma operação política). Trata-se de um avanço audacioso da ditadura, que ainda pode ousar tudo. Mas inteligente e, diga-se de passagem, fácil de tentar, dada a reação de pânico da burguesia diante do ressuscitar de uma revolução social de tantos fôlegos”. Ibid., p. 49 419 Ibidem. 420 FERNANDES, Florestan. A manipulação dos partidos (1981). In: Ib., A ditadura em questão. São Paulo: TAC, 1982, p. 49.

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naquele momento um duplo movimento “no qual o refluxo da contra-revolução cruza e

conflita, de modo ainda oscilante, com o fluxo da revolução” que se abre no horizonte.

Trata-se de um momento privilegiado no qual o autor destaca três ângulos de

observação, sendo eles: a relação classe e partido; as clivagens e contradições dentro do bloco

histórico da contra-revolução e as novas configurações dos conflitos de classes e os partidos

emergentes.

3.6 Classe e partido

No início da década de 80, segundo Florestan, vivia-se uma situação histórica peculiar,

pois as superestruturas e as instituições-chave da sociedade mantinham uma aparência

formidável, que fora construída numa fase anterior do capitalismo, em que as classes

superiores detinham o comando indivisível da sociedade civil. Mas, para efetivar a vitória do

Estado autocrático burguês, este deveria mostrar-se “capaz de cortar os impasses que

[pesassem] sobre os ritmos e o aprofundamento da descolonização prolongada”; fato que,

apesar da retórica política do governo militar, não poderia ser feito.

O Brasil, uma vez incorporado ao “espaço econômico, cultural e político das nações

capitalistas centrais”, através da ditadura militar, inicia um “novo estilo de modernização

controlada de fora, o novo surto de industrialização maciça” – que politicamente ficou

conhecido como “milagre econômico” –, pondo em marcha uma mudança social que se

concentrava na esfera da economia. Ao mesmo tempo em que, para Florestan, ficava clara a

incapacidade administrativa do governo ditatorial em relação aos aspectos sociais e políticos,

o que se complica no período dos anos 80 quando se torna mais difícil se valer, ampla e

abertamente, da repressão armada.

O grande elemento legitimador do regime era o seu “milagre econômico”, cujo

desmoronamento fez com que os militares não pudessem mais “recorrer à vontade à força

bruta”. O desenvolvimento capitalista e a mudança social ocorridos, “apesar de todas as suas

insuficiências e deficiências”, exigem novas superestruturas e novas instituições que atendam

às mudanças que a modernização conservadora, realizada pela ditadura, fomentara, através da

industrialização maciça [que] fortaleceu o proletariado e projetou politicamente um setor de ponta com potencialidades hegemônicas. A migração rural-urbana e a reintegração do mercado fomentam tensões insuperáveis e formas de comunicação da cultura de massa que tornam as cidades-inchadas e a pobreza produzida pelo

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subdesenvolvimento regional um fermento político crescentemente incontrolável.421

A internacionalização e a aceleração do desenvolvimento capitalista, subordinadas ao

capital externo e conduzidas internamente pela mão armada da ditadura, ampliaram as

contradições, tanto no campo como na cidade, agravando os desequilíbrios regionais crônicos

e, mais ainda, fomentando “nas metrópoles um estado de inconformismo exacerbado, que só

não [era] mais perigoso para a ordem estabelecida porque ainda se [manifestava] de modo

predominantemente espontâneo e anômico”.422

A situação da classe trabalhadora, neste período, expõe o caráter do regime de classe

que se desenvolveu no Brasil: regime “indiferenciado e deprimido nas regiões nas quais a

descolonização não chegou até o fim e até o fundo, excluindo o trabalho da categoria de

mercadoria ou inibindo sua valorização através do mercado” – situação que gera uma imensa

base de trabalhadores semi-livres ultra-espoliados. Verifica-se, assim, uma relação de

desenvolvimento capitalista desigual no qual, em determinado momento, o “‘atraso relativo’

deixa de servir como um fator de equilíbrio estático do conjunto e as ‘forças de ponta’

carregam atrás de si todas as demais, gerando uma situação histórica revolucionária de longa

duração”.423

O movimento social não era ainda, naquele momento, “suficientemente forte para

determinar o curso da história”, mas existia e crescia, ocupando e expandindo um espaço

geográfico e social, ao ponto de poderem realizar o mesmo feito que a burguesia realizou no

pré-64, modificar a “qualidade da história”:

Os de baixo se movimentam e exigem que a tais espaços correspondam certas realidades, cujos padrões, por enquanto, são copiados do estilo de vida e das aspirações das classes burguesas, mas poderão deixar de ser moldados dessa maneira se a ordem burguesa não se abrir à pressão avassaladora, que vem de todos os lados e direções, das classes subalternas. Aí está o busílis da questão. A contra-revolução e a república institucional não podiam modificar a qualidade da história.424

O que ocorre é uma modificação na “morfologia da sociedade civil e o seu

embricamento com a sociedade política”, na medida em que as classes possuidoras, que se

valeram da ditadura militar para garantir o monopólio político, “são obrigadas a compartilhar,

de forma crescente e inexorável, várias garantias sociais e direitos civis ou políticos com todas

as classes”. Inviabilizada a retomada da ditadura nos moldes de 1968 – ainda que não seja

421 FERNANDES, Florestan. A manipulação dos partidos (1981). In: Ib., A ditadura em questão. São Paulo: TAC, 1982, p. 53. 422 Ibidem. 423 Ibidem. 424 FERNANDES, Florestan. A manipulação dos partidos. In: A ditadura em questão. São Paulo: TAC, 1982, p. 54.

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totalmente descartada enquanto saída – a tendência das classes possuidoras seria então a de

“fazer da ditadura uma espécie de pião, para que dela saia um ‘novo regime de partidos’, dócil

ao Estado providencial e poroso a modalidades mais modernas e muito mais corruptas e

destrutivas de clientelismo e de patronagem”.425

Havia uma redução e relativização do poder político das classes dominantes naquele

momento; o que possibilitava uma tendência para a “universalização da cidadania e da justiça

social” – posto que a dominação de classe já não garantia “o bloqueio da mudança social

progressiva na sociedade civil e o monopólio do poder político estatal” – ao mesmo tempo,

emergiam antagonismos de classe com grande vitalidade, paralisados agora, não pelo poder

de coação da ditadura, mas sim pela “falta de meios autônomos organizados de luta política

das classes trabalhadoras que os enfraquece ou os afasta dos alvos decisivos”. Neste contexto

o rateio do poder real deixa de ser, de modo claro, um subproduto puro e simples da capacidade de opressão e de repressão das classes possuidoras, ou de seus estratos mais altos e de suas elites [...] É preciso imprimir maior elasticidade e eficácia à atuação dos partidos, os quais devem dar flexibilidade aos estratos estratégicos das classes possuidoras e adaptar suas funções de liderança ou de dominação a formas intraclassistas de competição pelo poder real e a formas interclassistas de conflito aberto regulado, inclusive, e principalmente, os conflitos nascidos de antagonismos de classe irredutíveis, que dependem de concessões difíceis ou comportam negociações complexas.426

Por sua vez, as classes subalternas – “especialmente o seu setor sindical e operário de

ponta” – lutavam por garantias legais e políticas, não no sentido de uma revolução socialista,

mas, sim, dentro da ordem. Tratavam de buscar autonomia: “deixar de ser cauda eleitoral e

política do movimento burguês, o que no Brasil quer dizer ‘deixar de ser vítima’ do

clientelismo, do partido de patronagem e da ‘proteção do Estado’ que configuravam o modelo

populista”, assim:

A supremacia burguesa perde o seu caráter intocável e o partido se desvenda como a via real da auto-afirmação histórica das classes trabalhadoras, o que, implicitamente, aponta para a conseqüência essencial: o movimento operário desemboca diretamente na sociedade política, ele visa fundamentalmente modificar as posições das classes no controle do Estado e nas instituições-chave da Nação.427

De forma que, “as classes trabalhadoras se movimentam no sentido de ganhar

realidade nacional”, dando “um salto vigoroso em direção à conquista de um meio mais

425 Ibid., p. 55. 426 Ibid., p. 56. 427 FERNANDES, Florestan. A manipulação dos partidos (1981). In: Ib., A ditadura em questão. São Paulo: TAC, 1982, p. 57. Grifos nossoss.

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decisivo de luta”; o que levou as classes burguesas a modificarem suas estratégias, dado que:

“o regime simulado de partidos se desprende do espartilho ditatorial e transfigura-se sob a

pressão direta e indireta da luta de classes, pluralizando-se as possibilidades de

arregimentação e os conteúdos dos programas partidários”.428

Para o sociólogo, ainda estava-se longe de se ver nascer o grande partido

revolucionário e de massas; este não era o ponto de partida da classe trabalhadora. Muito

antes deste estágio, seria preciso que a classe trabalhadora passasse do confronto com a

supremacia burguesa para a luta pela conquista do poder, alargando a ordem burguesa o

bastante para comportar um partido desse tipo, ou seja, um partido efetivamente

revolucionário.

Ainda estava em aberto qual seria a evolução dos partidos nascidos das classes

trabalhadoras nas nações capitalistas neocoloniais ou dependentes da periferia; mas o que

parecia “líquido e certo”, para o autor, é que o amadurecimento do regime de classes trazia à

cena histórica um novo tipo de partido que se tornaria uma instituição-chave na distribuição,

concentração e centralização do poder real.

Tal reorganização do regime partidário levaria a duas estratégias distintas na

constituição dos partidos: no plano burguês, a constituição de partidos ideológicos – buscando

“atrair apoio de massa e de carrear para as classes possuidoras maior margem de participação

no rateio do poder real” – e, no plano proletário, força-se – “em função do grau de associação

entre radicalismo e democracia”–

a constituição de partidos socialistas, formados com o objetivo de unificar as classes trabalhadoras como maioria natural, de elevar a consciência política destas classes sobre suas tarefas nas duas espécies de revolução e de promover a conquista do poder real pelas classes trabalhadoras.429

Sendo assim, tentou-se bloquear, através da ditadura, uma diferenciação no interior do

sistema de partidos; e o fato disso não ter ocorrido seria a prova, segundo Florestan, de que

“não são a natureza e os conteúdos do Estado que determinam a forma e as funções dos

partidos”, mas, sim, o “movimento orgânico da sociedade que diferencia e organiza as forças

políticas socialmente”, determinando a natureza e conteúdo tanto do Estado como dos

partidos. Tal afirmação deve ser considerada principalmente na parte final deste trabalho, que

trata do período em que os partidos já estão formados e em plena disputa eleitoral.

428 Ibidem. 429 FERNANDES, Florestan. A manipulação dos partidos (1981). In: Ib., A ditadura em questão. São Paulo: TAC, 1982, p. 58.

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3.7 A ditadura e os partidos

A adoção do regime artificial de dois partidos tutelados pela ditadura militar visava

atender uma dupla demanda: por um lado, “manter e fortalecer a articulação política das

forças sociais heterogêneas” que haviam preparado e liderado o golpe e, por outro, “forjar

uma ‘visibilidade democrática’ desta república no exterior, especialmente nos Estados

Unidos, nas nações capitalistas avançadas da Europa e no Japão, que precisavam dessa

visibilidade em seus circuitos políticos internos”. Longe de almejarem qualquer projeto

político democrático como finalidade última do regime, o que prevalecia era a visão

“pragmática de que uma ‘ditadura técnica’ constitui, por si mesma, uma ‘defesa da

democracia contra o comunismo’” – a difusão de um suposto ideal de restaurar a democracia

constituía “evidente teor mistificador e propagandístico”.

Complementariamente a este “sistema partidário” implantado, coexistia o que

Florestan chamava de Constituição virtual e “um sistema de três poderes simbólico, pelos

quais se procurava a institucionalização da ditadura, ou seja, a ‘normalidade’ da república

institucional”.

No entanto, por aí a ditadura tentava duas coisas que lhe eram essenciais: 1º) reduzir a distância política de suas bases econômicas e sociais, tão mal soldadas no bloco histórico no poder; 2º) diminuir ou neutralizar os riscos de um isolamento político dentro da Nação. Com isso, lograva articular pontos de apoio às sucessivas políticas dos generais-presidentes, compensando seu desgaste crescente previsível e, o que é deveras mais importante, fixava o “plano parlamentar”, com a anuência tácita da oposição, como área de choque legal e reciprocamente consentida, de enfrentamento político com as forças sociais divergentes.430

Apesar deste arranjo representado pela ARENA e o MDB ter se revelado “à altura da

assessoria técnica de alto nível, prestada por cientistas políticos brasileiros e estrangeiros,

principalmente norte-americanos e europeus”, ele não impediu que as contradições próprias

do desenvolvimento capitalista desigual “fomentassem clivagens e conflitos setoriais dentro

do bloco histórico que sustentava a república institucional”; de qualquer forma, compensou a

extrema concentração do poder estatal que, articulado com a repressão policial-militar,

“facilitou enormemente a busca de acomodações e articulações entre interesses contraditórios,

que precisavam ser atendidos prioritariamente (ou de modo escalonado) pela ditadura”.

O mais importante é que o referido arranjo conferiu à militarização e à tecnocratização das funções do Estado e do governo um “sistema de amortecedores” e de mobilização cooptada, pelo qual o

430 Ibid., p. 60.

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ritual de debate público se associava à crítica matizada. Em suma, “a política continuava”, embora por canais estreitos...431

Para Florestan, não foi este sistema partidário que permitiu uma maior duração da

ditadura de 1964 em relação ao Estado Novo; o que possibilitou esta situação foi o clima

histórico mundial de conflito entre capitalismo e socialismo, que impediu, a saída de um forte

movimento orgânico de repúdio à ditadura das próprias fileiras da burguesia. As classes

possuidoras viram falhar por completo suas “previsões políticas sobre as probabilidades de

consolidação de uma versão moderna da democracia ‘ateniense’ – regulada, vertical, tutelada

– em solo histórico brasileiro”, ao invés disso, tiveram que aceitar e endossar – ainda que “os

calos doessem ou a consciência apertasse” – o “absolutismo do governo ditatorial”.432

A mistificação que se buscou com o sistema bi-partidário sucumbiu – de modo

“fragoroso e relativamente rápido” – devido à “tentativa de combinar repressão e opressão

sistemáticas com ‘consenso’”, pois:

Admitido o “consenso”, entrava no palco um elemento que não podia ser esvaziado, neutralizado ou comprimido à vontade, como a rede de instituições: o parlamento, o judiciário os partidos, etc. Não havia como chegar à opinião e ao voto, às grandes massas da população, enfim, com as manipulações compressoras “institucionalizadas”. 433

Para o autor, tal situação leva a oposição consentida a “ganhar corpo e elasticidade e,

presumivelmente, ultrapassar as regras de um jogo marcado (ou de um jogo sujo)”; o MDB se

redefine no campo eleitoral, fugindo ao “cálculo político inicial da ditadura e adquirindo uma

voz política que soava ao renascimento do confronto”. Esta evolução do MDB se deu primeiro

através da insatisfação popular crescente e atingiu níveis explosivos. Foi justamente o partido

de oposição que amorteceu esta tensão que, caso o contrário, seria mortal à ditadura;

cumprindo assim a função de drenar e contabilizar ressentimentos e frustrações

desencadeados pelas políticas governamentais e os pacotes políticos. O crescimento

quantitativo e “a insatisfação popular converteu-se em fator político atuante e compeliu o

MDB a mudar gradualmente seu posicionamento e seu rendimento políticos”. Por outro lado,

houve “a decepção reiterada das cúpulas políticas do partido da oposição” que buscava

implantar uma disputa de poder efetiva no interior do sistema; de tal forma que esta cúpula se

colocava em contraposição ao fato da ditadura submeter os dois partidos a “uma polarização

431 FERNANDES, Florestan. A manipulação dos partidos. In: A ditadura em questão. São Paulo: TAC, 1982, pp. 60-61. 432 “Isso produziu, pelo que se sabe, um amplo repúdio aos mecanismos de decisão da ditadura e às prioridades que eles estabeleciam, mas sem efeitos políticos concretos: essa reação negativa ficou contida no ‘íntimo da consciência’, no ‘recesso do lar’ (ou da empresa), assumindo um caráter totalmente amorfo, ou se perdeu nos meandros de uma ‘oposição burguesa’ que pretendia antes purificar a república institucional que destruí-la”. Ibid., p. 61. 433 Ibid., p. 62.

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política fixa e inflexível, que não podia corresponder às variações do eleitorado e à luta

interpartidária pelo poder”.434

Se o MDB quisesse enfrentar as conseqüências de seu amadurecimento, “teria de fazê-

lo não pela via da conquista do poder, mas pelo caminho mais áspero de tornar-se uma

oposição real”: o que ocorre através de um posicionamento auto-defensivo do partido –

“entenda-se: de auto-preservação mas, também, de ‘defesa da democracia’”. Por fim, houve

junto desta situação o “crescimento gradual e a desinibição dos radicais e esquerdistas dentro

do MDB”:

Mesmo como minoria, eles conseguiram despertar o partido para a realidade, alargando e aprofundando o combate político eficaz contra a ditadura. O amadurecimento desses setores foi relativamente lento e, individualmente, para os que fossem efetivamente de esquerda, um processo penoso, já que era preciso vencer a circularidade nascida da subestimação da oposição consentida e de sua voz política castrada.435

As forças sociais que engendraram a ditadura se encontram em meio a um impasse

criado por elas mesmas; e, para saírem desta situação, desenvolveram “as manipulações tanto

da ‘democracia relativa’ como da ‘abertura democrática’” – ambas compondo uma estratégia

política mais ampla, na qual, de um golpe, livram-se “da inviabilidade do ‘sistema’ artificial

de dois partidos e do ônus que ele acarretava, em termos de desgaste do próprio regime

ditatorial e de perda de credibilidade de seus governos”.436

Pulveriza-se assim, tanto o partido da oposição como o da situação. O objetivo

imediato não era destruir a oposição: “o que se pretendia, claramente, era remover o regime

ditatorial e seus governos da posição de alvo concentrado e quase imóvel, como se fosse uma

presa fácil, retida dentro de uma armadilha”.437

A ditadura buscou, desta forma, possibilidades menos inibidoras do que a ARENA

para a arregimentação de apoio popular, aproximando-se nitidamente de dois partidos que

naquele momento estavam sob a sigla PP e PDS – contendo o primeiro “a parte mais dócil

dos políticos profissionais” e o segundo concentrando “a maior parte da ‘massa reacionária’

da burguesia”. Para Florestan, “a ARENA perdeu mais do que ganhou”, deixando sua

434 FERNANDES, Florestan. A manipulação dos partidos (1981). In: Ib., A ditadura em questão. São Paulo: TAC, 1982, p. 62. 435 Ibid., p. 63. 436 Ibidem. 437 “Preservando os meios e os fins de um ‘regime de exceção’, o que se fez foi projetar a ditadura dentro de um quadro de luta política mais elástica e dinâmica, na qual a ‘liberdade de movimentos’ da oposição também pudessem render dividendos políticos para os detentores do poder. Há um inegável ‘aumento de riscos’. Ele é, não obstante, inexorável e sob aspectos decisivos compensado por uma ‘transferência de encargos sujos’ a quem de direito. O que indica o germinar de uma lógica política mais rica e complexa, que pode, de fato, ser vista como uma “abertura democrática”, desde que se entenda que se trata de uma abertura de e para a ditadura”. FERNANDES, Florestan. A manipulação dos partidos (1981). In: Ib., A ditadura em questão. São Paulo: TAC, 1982, p. 65.

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condição de partido único para se degradar como “‘partido áulico’, massa de manobra em

escala, que era desnecessária anteriormente”. Porém, esta dupla evolução que metamorfoseia

o partido da situação em PP e PDS

só se tornou possível porque a burguesia, por sua aversão à revolução democrática e à revolução nacional e por seu pró-imperialismo crônico, está imantada em um quadro rígido de opções políticas e não pode lançar-se, com todas as suas forças, a uma verdadeira transição da ditadura para a democracia. Traduzindo-se esta afirmação em outras palavras: a “abertura democrática” é funcional para a ditadura na medida em que é necessária aos estratos estratégicos e dominantes da burguesia.438

Por seu turno, o MDB que vinha gradualmente passando de uma oposição consentida

para uma oposição real, caminhando mesmo para a desobediência civil, teve de ser

fragmentado para que toda a desobediência civil não se concentrasse sob uma única

alternativa de oposição válida. Impondo decisões políticas fundamentais, a ditadura lançou os

“partidos de massa emergentes”, como o PT e PDT, “a uma dura luta pela existência e pela

sobrevivência”; além de deter os “antigos partidos populares e operários, como o PS e o PCB,

fora do ‘quadro partidário legal’”. Em resumo, cria-se um novo quadro partidário

por meio de uma “pluralização de escolhas” condicionada e viciada, pela qual a ditadura destampou a panela e regulou o fogo de acordo com sua própria culinária. De um lado, certas probabilidades de escolha foram desobstruídas; de outro, o movimento sindical e os setores mais dinâmicos das classes trabalhadoras tiveram sua gravitação política natural violentamente cerceada, inclusive mantendo-se a proibição do socialismo e a excomunhão do comunismo.439

Realizou-se, desta forma, um novo esmagamento da vanguarda operária e sindical,

pois as “classes subalternas viram tolhidos os caminhos que permitiriam utilizar suas

entidades de classe ou explorar construtivamente suas ideologias políticas na formação de

partidos próprios, sem constrangimentos de identidade política de classe”.440

Diferente da ARENA, “e dadas as circunstâncias, na mutação em PMDB o MDB

ganhou mais do que perdeu, malgrado as aparências em contrário”.441 Foi o único partido de

oposição real que contou com uma enorme e comprovada máquina em funcionamento.

Tracejado o quadro de mudança do sistema partidário, Florestan nos apresenta a

instigante questão: “Por que a ditadura salgou o terreno antes de alçar seu vôo pelas rotas de

transição que escolheu?”. Para ele, se quisermos responder adequadamente a tal questão,

438 Ibid., p. 66. 439 Ibidem. 440 I FERNANDES, Florestan. A manipulação dos partidos (1981). In: Ib., A ditadura em questão. São Paulo: TAC, 1982, p. 66. 441 Ibidem.

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devemos ir além da tendência simplificadora de “combater e destruir a ditadura”, uma vez que

“a ditadura não se gerou a si própria”. Vivia-se, naquele momento, um refluxo da contra-

revolução e a ditadura já estava fracassada; mas o que não fracassou foi o poder burguês que

gerou a ditadura e este é que deveria ser levado em conta para se avançar:

É contra ele, o poder burguês, que as forças populares e operárias devem medir-se não só por causa do fiasco destes últimos dezesseis anos mas porque essa é a condição sine qua non da revolução democrática (embora o ponto de partida dessa revolução esteja, no aqui e no agora, na destruição da ditadura). O que não se pode perder de vista é que a desagregação da ditadura foi e está sendo contida pelas forças sociais da burguesia – e não só pelos “militares da linha dura” – e que são essas mesmas forças que conferem à ditadura a liberdade de regular a transição, determinando como se constituirão os partidos, os seus limites de identificação e de ação, os requisitos eleitorais “exigidos legalmente”, etc.! 442

Entre o final do governo Geisel e o início do governo Figueiredo, tornou-se patente

uma “fratura aguda do bloco histórico que comanda a contra-revolução e sustenta a

continuidade da ditadura”, patente também era o fato de que através das manipulações dos

“partidos e o ‘regime de partidos’, deu-se um passo mais longo no ‘projeto’ tortuoso de

adulteração estrutural das instituições-chave de qualquer república burguesa, mais ou menos

democrática”; este “bloco histórico” via-se premido entre as “oscilação malucas do fator

militar” e “uma democracia de faz de conta, estacionada nas salvaguardas do Estado e na Lei

de Segurança Nacional, ou seja, uma ‘institucionalização’ pura e simples da abertura

democrática!”.443

A conclusão a que chega Florestan é a de que combater a ditadura não equivale, por si,

lutar pela democracia:

É preciso acertar com o sentido do fluxo do novo movimento ascensional de revolução na sociedade civil, para servir à história onde ela está no momento, nas presentes condições do Brasil e do mundo. Só assim se poderá atacar a cidadela do terrorismo burguês [...] e, simultaneamente, reencetar a construção de uma efetiva democracia de participação ampliada, que possa servir de base e ponto de partida de uma revolução democrática conduzida pela maioria (das classes trabalhadoras, pelas classes trabalhadoras e para as classes trabalhadoras).444

442 Ibid., pp. 67-68. 443 Ibid., p. 68. 444 FERNANDES, Florestan. A manipulação dos partidos. In: A ditadura em questão. São Paulo: TAC, 1982, pp. 68-69.

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3.8 Revolução democrática e partidos operários

Para compreender o a racionalidade burguesa nos países periféricos, é necessário

lembrarmos que “as burguesias nacionais da periferia fabricam o seu destino histórico e o

destino histórico de seus países”; além disso, elementos como a dominação imperialista, o

subdesenvolvimento, o capitalismo desigual, entre outros, “fazem parte do seu estilo de ser

burgueses e da sua arte econômica de converter as fortes desvantagens coletivas em bênçãos

de minorias ultraprivilegiadas”. Assim,

É preciso avançar nessa direção para entender-se uma modalidade específica de cálculo político racional e os comportamentos práticos ou as decisões que ele determina, os quais metamorfoseiam o Estado constitucional e representativo moderno em um cômodo biombo do mais duro despotismo de classe, reduzem a república “democrática” à condição de guarda pretoriana da Nação e, concomitantemente, paralisam a revolução democrática e a revolução nacional aos níveis dos interesses coletivos egoísticos e particularistas dos estratos dominantes das classes possuidoras.445

Esta burguesia nacional tem como característica ser uma burguesia predatória – em

oposição à chamada burguesia conquistadora –, uma vez que “sua via concreta de uso

racional da razão política” se dá sob uma “guerra cruel e permanente contra toda e qualquer

autonomia relativa das classes despossuídas, subalternas e trabalhadoras”. O ponto central

desta lógica de atuação se origina em uma transformação capitalista na qual, “burguesias

nativas e burguesias centrais se fundem, transferindo da dominação de classe para o Estado

(ou seja, para a dominação de classe através do Estado) o caráter de sustentáculo número um

da existência, da continuidade e do desenvolvimento do capitalismo”. Fruto desta relação, a

história das instituições políticas brasileiras é

uma história escabrosa de como se fabrica o “desinteresse”, a “apatia”, “ignorância”, a “brutalidade”, etc., da massa pobre e trabalhadora, produzindo-se e reproduzindo-se a exclusão dos trabalhadores da ordem inerente à sociedade para a qual eles geram a riqueza existente e o “desenvolvimento avançado” das classes dominantes.446

Neste ambiente, toda vez em que houve uma tentativa de “irrupção dos pobres e

oprimidos no circuito da transformação capitalista”, estes foram ignorados, reprimidos e

aviltados. Apenas após a queda do Estado Novo, houve uma verdadeira eclosão das massas na

arena política, que provocou uma prolongada instabilidade, levando ao golpe de 1964. Os

445 Ibid., p. 69. 446 FERNANDES, Florestan. A manipulação dos partidos (1981). In: Ib., A ditadura em questão. São Paulo: TAC, 1982, p. 70.

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grupos que lutaram a favor das classes trabalhadoras foram “brutalmente reprimidos,

adulterados ou expostos a uma clandestinidade permanente”.447

Chega-se, pois, na composição de um novo sistema partidário, no qual a autonomia da

luta política ainda estava por ser conquistada pelos partidos das classes trabalhadoras e sob

limitações claras das suas possibilidades de organização. Constatação trágica que obstaculiza

o avanço das classes trabalhadoras em um momento de refluxo da contra-revolução; uma crise

do poder burguês que pode, por vezes, tornar-se letal como ocorreu no fim do Estado novo na

qual “o fluxo da revolução comportou um ascenso dos movimentos de massas e das lutas de

classes em nível político”, com a diferença de que naquele momento vivia-se uma crise de

proporções muito mais amplas.448

O futuro da democracia brasileira não dependia da “abertura democrática” propagada

pelo regime, mas sim, de uma organização política independente das classes trabalhadoras, da

constituição de partidos próprios, que não fossem caudatários e instrumentais dos partidos

burgueses – afastar “o trabalhismo, o socialismo ou o comunismo quer do papel de ‘massa de

manobra’, quer da gravitação incessante em torno dos interesses estáticos da ordem

burguesa”. Sendo assim, tais partidos deveriam chegar a um amadurecimento político

suficiente para a constituição de partidos de classes e não partidos de massas que

sucumbissem à mistificação de se tornar um partido de toda a sociedade, buscando,

abstratamente, a “mobilização política”, a “participação da cultura cívica” e o “pluralismo

democrático”. Logo,

As classes trabalhadoras precisam de partidos políticos próprios para intensificar e consolidar seu desenvolvimento independente como classe; para formar vanguardas operárias dotadas de firmeza política e de capacidade de liderança; para sair do isolamento político e retirar do ostracismo outras classes ou facções de classe (como o setor camponês ou a pequena burguesia); para reduzir a prepotência e o despotismo do poder burguês; e, nos dias que correm, para remover da cena histórica a ditadura de classe da burguesia e por aí iniciar sua luta pela conquista do poder.449

Este tipo de partido seria o instrumento da classe trabalhadora que poderia “impedir

que as classes burguesas [calibrassem] as ‘oportunidades históricas’ a seu bel-prazer”; e estas

oportunidades históricas não são automáticas, “tais oportunidades precisam ser criadas pelas

447 Ibidem. 448 “O fluxo da revolução traz em seu bojo, agora, a necessidade histórica da implantação imediata de uma democracia de participação ampliada, como real forma de transição, o que compele as classes trabalhadoras a terem de mobilizar-se e manifestar-se através de partidos próprios (não mais como cauda eleitoral e política), identificados ideológica e politicamente com seus interesses coletivos de classes e com seus alvos específicos de luta de classes”. Ibid., p. 72. 449 FERNANDES, Florestan. A manipulação dos partidos (1981). In: Ib., A ditadura em questão. São Paulo: TAC, 1982, pp. 72-73.

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classes trabalhadoras, através de seus partidos e do grau de autonomia que eles possam ter

para cruzar-se com as grandes correntes da história mundial”:

Para primeiro transformar a ordem burguesa e em seguida ultrapassar a “reforma capitalista do capitalismo” os trabalhadores necessitam de partidos que contraponham, desde o começo, a democracia burguesa à democracia operária, e que não se detenham jamais na defesa intransigente da forma política de democracia que pode nascer dentro da ordem burguesa, mas não pode expandir-se sem desagregá-la e destruí-la.450

A preocupação de Florestan era justamente no percurso a ser traçado pelos partidos

que nasciam naquele momento; estes não poderiam se perder nas inevitáveis mediações

burguesas para tornarem-se instrumentos autônomos da classe trabalhadora. Foram estas

mediações burguesas que proporcionaram certo avanço aos trabalhadores urbanos e rurais

entre 1945 e 1964, porém, diferente do período pré-64, os partidos deveriam ultrapassar os

limites populistas – uma vez que a revolução a partir de cima, realizada pelo demagogo que

trai sua classe de origem, “não é compatível com a estrutura complexa do regime de classes”.

As classes trabalhadoras daquele momento “já não carecem do demagogo e só têm a perder

com as espúrias alianças de classe de que eles são produtos”.451

O Brasil vivia uma circunstância singular naquele momento, em que “surgia

espontaneamente uma situação que Lênin costumava descrever como o deslocamento dos

trabalhadores ‘à frente do Partido’”. Neste quadro, dever-se-ia “considerar estrategicamente

as formas políticas que a luta de classes tende a assumir”, uma vez que, para pulverizar o

Estado autocrático burguês, o avanço da classe trabalhadora deveria ser firme, sem

provocações, delírios e sem voltar a uma pseudo-política de alianças.452

A burguesia deveria ter sua primeira grande derrota “no plano político e [deveria]

consistir no esfarelamento de qualquer forma de manifestação da ditadura de classe”, de

forma que os partidos da classe trabalhadora devem aproveitar o máximo as possibilidades de

crescimento do partido, ao mesmo tempo em que organiza uma outra frente clandestina para

450 Ibid., p. 73. 451 “A questão da ‘aliança de classes’ só pode ser tática e nenhum partido dos trabalhadores deve confundir sua sobrevivência física (e as árduas e, por vezes, sujas concessões decorrentes) com a natureza e as funções da luta de classes. Isso posto, é inegável que em certas circunstâncias partidos operários e populares de massas, dotados de alguma autonomia relativa, podem acumular forças através de ‘alianças políticas’ interclassistas, sem serem reduzidos à impotência e à aniquilação (como caudatários ou simples peões da hegemonia de determinados estratos da alta e da média burguesias)”. Ibid., p. 74. 452 “Trata-se de um momento histórico delicado, no qual os partidos operários em organização ou subterrâneos devem mostrar sensibilidade à evolução da luta de classes, colocando essa evolução acima de suas vantagens relativas ou de sua vontade de sobrevivência física”. FERNANDES, Florestan. A manipulação dos partidos (1981). In: Ib., A ditadura em questão. São Paulo: TAC, 1982, pp. 75-76.

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“não se sujeitar aos riscos da identificação do plano político com o plano eleitoral e da

mistificação da ‘democracia’ como panacéia universal”. 453

Frente a esta situação, a classe trabalhadora não pode prescindir de uma teoria

revolucionária socialista, posto que “sem uma clara absorção do socialismo, o movimento

operário fica desarmado ideologicamente e condena-se a travar a luta política em terreno

movediço”. Ora,

Não basta o “socialismo reformista”, o socialismo compatibilizado com as funções capitalistas dos sindicatos ou mesclado com a mistificação ideológica burguesa de que a democracia constitui um fim (ou um processo) em si mesmo. É necessário ir mais longe e recorrer à versão revolucionária e proletária do socialismo, que separa as duas etapas em que se pode desdobrar a influência construtiva da luta de classes, mas que estabelece como objetivos centrais a constituição de uma forma política de democracia específica (a democracia operária) e a extinção da sociedade civil (ou seja, a existência das classes, da dominação de classe e do Estado).454

Somente assim as classes trabalhadoras poderiam tomar “consciência objetiva de suas

tarefas políticas”, dando às situações existentes sentidos revolucionários, afastando-se das

mistificações burguesas, constituindo-se enquanto classe em si; a partir daí poderiam

“manejar a luta de classes sem descanso, sem timidez e com muita firmeza”. Por isso é

preciso que “as classes trabalhadoras não recuem diante de seus interesses fundamentais e de

seus alvos políticos estratégicos”. Apenas com partidos solidamente implantados na

transformação da sociedade civil e na reorganização política que as classes trabalhadoras

poderiam tornar-se

forças motrizes da história, conduzindo a luta de classes até o fim e até o fundo, ou seja, subvertendo as relações de dominação de classe e instalando um novo tipo de Estado democrático, voltado, a largo prazo, para a criação das condições sociais do advento do comunismo (e, portanto, para a sua própria extinção).455

De forma que, para desenvolver a saturação do pólo operário, assim como concentrar e

multiplicar “essas forças a nível ideológico e político”, deve-se recorrer aos partidos

operários. Portanto, o desafio central que se coloca em 1980 é conferir meios de ação política

às classes trabalhadoras, desafio nada fácil no quadro social que Florestan esboça ao tratar da

“era na qual as nações capitalistas avançadas aprenderam a conviver com tais ‘perigos

453 “Em síntese, os partidos operários não podem nascer como partidos alternativos do ‘radicalismo burguês’ e, muito menos, como ‘partidos da ordem’. Daí a necessidade de uma complexa impregnação política e ser compulsório, para eles, arcar com as tarefas políticas ou que a ditadura exclui da legalidade ou que a própria democracia burguesa como tal, por “avançada” que seja, repele como subversivas”. Ibid., p. 77. 454 Ibid., pp. 77-78. 455 FERNANDES, Florestan. A manipulação dos partidos (1981). In: Ib., A ditadura em questão. São Paulo: TAC, 1982, p. 80.

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mortais’” e buscam drenar o sindicalismo e o socialismo para a esfera da reforma social

capitalista e estabelecendo o “domínio quase absoluto da ideologia burguesa através dos

meios de comunicação de massa, da educação sistemática e da inculcação patriótica” o que

faz com que “a forma política burguesa ‘avançada’ de democracia [seja] convertida na

DEMOCRACIA”. Esta nova democracia tornou-se o eixo dos maiores sindicatos e partidos

europeus e o alvo fundamental era impedir que “os elos débeis da periferia do mundo

capitalista [seguissem] a via predominante nos impérios centrais de modo ainda mais

destrutivo”. Com isso, o fundamental para evitar tais desvios burgueses seria a retomada da

essência da tradição marxista pela organização política dos trabalhadores.456

Assim, os partidos não deveriam nascer como partidos da ordem, mas sim subverter a

ordem a partir dos “padrões proletários de democracia econômica, social, cultural e política”;

e, para isso, se faz necessária uma vinculação socialista que não se renda as alianças

burguesas, uma vez que “as classes burguesas são o inimigo natural e principal das classes

trabalhadoras” e é através da luta “contra elas de modo intransigente, mas metódico, e

calculado” que os trabalhadores poderiam organizar-se e adquirir presença política. Os

partidos operários

precisam concentrar e centralizar todo o poder real ao alcance de sua esfera de atuação; precisam conhecer, tão exatamente quanto possível, o que semelhante “massa de conflito” ou “potencial de luta de classes” representa na cena histórica para o desencadeamento das tarefas políticas das classes trabalhadoras e a conversão de tais tarefas em programas de partido, formas de educação política, técnicas de propaganda e agitação, liberação ideológica e política, etc.457

Esta compreensão do potencial de luta é essencial para que os partidos componham

seus programas de forma que eles correspondam “à capacidade de pressão organizada dos

setores mais avançados das classes trabalhadoras”:

E devem ser programas para valer, tanto na esfera da ideologia como na esfera da política: exigem uma organização maleável e forte, que deve movimentar bases, quadros e dirigentes educados politicamente para realizar as tarefas táticas e estratégicas decorrentes dos programas partidários e, além disso, deve

456 “Retomar com vigor a essência da tradição marxista, para que o sindicalismo e o socialismo sirvam revolucionariamente (dentro da ordem e contra a ordem) às classes operárias, deixando de ser unilateralmente instrumentais para uma ‘paz social’ burguesa morta. E, principalmente, conferindo às classes operárias meios políticos para a elaboração criativa e construtiva do elemento antagônico, contra a expropriação do trabalho e os seus efeitos, contra a dominação de classe do capital e seus efeitos e contra uma forma de democracia política que paralisa o processo democrático ou no plano formal ou no plano de 10, 20, 30 ou no máximo 40% das classes altas e intermediárias”. Ibid., p. 81. 457 FERNANDES, Florestan. A manipulação dos partidos (1981). In: Ib., A ditadura em questão. São Paulo: TAC, 1982, pp. 84-85.

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contribuir para moldar uma disciplina sólida, fundada no controle democrático do partido em todos os seus níveis. 458

Todas estas postulações nascem da compreensão do autor de que a contra-revolução

havia iniciado “sua rotação de declínio final” e abriam-se, no momento, oportunidades

políticas que não se encontravam no passado; e “por mais que a ingenuidade, a inexperiência

política e a timidez os levem a evitar (provisoriamente) a polarização ideológica e a cruzada

classista, é da natureza das coisas que, para alcançar seus objetivos e obter o apoio das massas

operárias, terão de definir-se nas duas direções”.459

No início dos anos 80, Florestan assistirá a reorganização dos partidos sob o controle

do governo militar; não se engajará na criação de nenhum partido e parece manter-se bastante

cético quanto aos partidos de esquerda que aparecem, como o PT que, como veremos, ele só

passará a integrar a partir de 1986.

Suas atividades naquele momento estarão ligadas às aulas na pós-graduação da

PUC/SP e a atividades com grupos políticos, participando de palestras e debates, como no

caso das atividades realizadas pelo grupo da Revista Ensaio.

458 Ibid., p. 85. 459 Ibid., p. 87.

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Figura 12 – Recorte do Correio da Paraíba, 14 nov. 82. Homenagem feita a Florestan pela Revista Ensaio. No lado esquerdo, próximo ao fotógrafo, vemos o editor da revista José Chasin seguido por Florestan Fernandes.

Acervo particular do professor Antonio Rago Filho.

Figura 13 – Debate no Sindicato dos Jornalistas organizado pela Revista Ensaio. Da esquerda para a direita: Florestan Fernandes, Ricardo Antunes, José Chasin, Almino Afonso e Alípio Freire. Colesp-UFSCar – Fundo

Florestan Fernandes.

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Entre 1980 e 1981, a quantidade de escritos publicados de Florestan é pequena em

relação a sua média de publicações no geral; no entanto, são de grande contundência. No ano

de 1980, são publicados três livros, que representam principalmente atividades realizadas em

anos anteriores sendo eles: A natureza sociológica da sociologia, feito a partir das aulas

lecionadas em 1978 na pós-graduação da PUC/SP e traz a elaboração mais consistente sobre

seu novo posicionamento em relação à sociologia e as funções da ciência sociológica e do

sociólogo para a construção do socialismo; Brasil: em compasso de espera, uma antologia de

artigos e entrevistas realizados pela “pequena” imprensa, dando prova das dificuldades de

manter o trabalho de militante e que abrange principalmente os anos que vão de 1977 a 1979

(possui apenas um texto de 1980); e o opúsculo Movimento socialista e partidos políticos,

uma palestra realizada em 1978. A produção de fato – ou seja, o material escrito no decorrer

destes anos – de 1980 e 1981 se dá em pequenos ensaios concentrados principalmente nos

livros: O que é revolução?, da coleção primeiros passos da editora Brasiliense, de Caio Prado

Jr.; um ensaio sobre as revoluções interrompidas na América Latina, que comporá o livro

Poder e contra poder na América Latina; e importantes ensaios analisando a ditadura militar,

que serão publicados em A ditadura em questão, já em 1982. No entanto, entre 1982 e 1983,

Florestan praticamente fica mudo, pouco escrevendo e, até onde pudemos detectar, nenhum

texto produzido em 1982 foi publicado. Neste ano, temos conhecimento de apenas dois

documentos460 de pequena extensão: uma pequena entrevista no periódico Em tempo e o

manuscrito O significado das eleições, relativo às eleições municipais que ocorreram naquele

ano. Em compensação, sua produção passará, nos anos seguintes, a uma intensidade enorme

como publicista, após 1983, quando passa a escrever periodicamente na Folha de S. Paulo,

chegando a uma quantidade de discursos impressionantes no período em que é realizada a

Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988).

Desta forma, os últimos ensaios mais densos que consolidam a ruptura iniciada em

1969 são os textos realizados principalmente para as aulas na pós-graduação da PUC/SP. O

que não significa que sua produção posterior não tenha um caráter científico, na medida em

que nela se expressa toda sua compreensão científica e análise da realidade. Uma análise de

seus textos mais simples, produzidos para sua campanha e que visavam atingir o publico mais

variado e com menos instrução, não deixa de trazer suas teses e problematizações lastreadas

em suas atividades da época em que era professor na Universidade de São Paulo, obviamente

que, agora, sob o novo posicionamento que apresentamos no primeiro capítulo. Ou seja, este

460 Na verdade há também no Acervo Especial do Fundo Florestan Fernandes uma série de cartas do período que infelizmente não tivemos a oportunidade de analisar.

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lastro dá outra dimensão ao conjunto de publicações e proposituras que Florestan apresenta.

Para analisarmos efetivamente os artigos e demais discursos de Florestan Fernandes, é

incontornável retomarmos, como referencial “heurístico”, sua obra e, assim, poderemos

identificar como cada discurso surge como o desdobramento ou como cimento de uma longa

reflexão. Trata-se de ciência, mas ciência aplicada à mobilização social, para o desvelamento

da consciência dos de baixo e daqueles que se posicionam junto aos de baixo; posição que vai

de encontro a sua reformulação sobre o papel dos intelectuais.

Dito isto, voltemos nossa análise à exígua documentação do ano de 1982, nitidamente

mais um ano de viragem na vida de nosso autor.

O manuscrito O significado das eleições data de 8 de dezembro de 1982 e faz um

balanço do que ocorreu neste período de manipulação dos partidos, iniciando sua fala com a

seguinte conclusão melancólica:

1) em termos de programações logística político-militar = vitoria do governo. Estes conseguiram a sua meta = a ditadura fez o país engolir a transição gradual e a sua rota na direção da “universalidade constitucional” (o texto constituinte Frankenstein!) e da “democracia que desejam”.461

No balanço que Florestan realiza, a vitória eleitoral alcançada pela ditadura significou

na verdade uma derrota política, na medida em que, “para alcançá-la, o SISTEMA teve de

alterar sua tática = o PP e o programa partidário sofreram uma reformulação � a busca de um

equilíbrio pelo centro dos principais grupos estratégicos”. A manobra realizada acabou por

alienar da “ditadura uma parte solida e poderosa de sua base social e criou o risco agora real

de infundir ao PMDB uma estrutura definitiva de partido de centro, como partido da

ordem”.462

O processo eleitoral foi convertido, na análise do sociólogo, em um “fim em si

mesmo”; não conseguiu desencadear um “amplo processo de socialização política” e causou,

por outro lado, “um impacto retroativo em setores mais avançados em termos de posição de

luta política, das classes trabalhadoras”:

Nesse plano = as classes burguesas se aproveitaram do condicionamento político das eleições, das manipulações e casuísmos, da venalidade que marcou essa eclosão eleitoral; as classes trabalhadoras ofereceram a massa dessa vitória e saem mais desunidas do processo eleitoral (embora mais eufóricas = [porque] confundem a derrota eleitoral da ditadura [com] sua inviabilização

461 FERNANDES, Florestan. O significado das eleições. 08 dez. 1982. Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes. 462 Ibidem.

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e não percebem = irão perceber logo = que a ditadura ganha um respiro, aproveitado pela burguesia nacional e estrangeira).463

Figura 14 – Primeira página do Manuscrito: O significado das eleições, 8 dez. 1982. Colesp-UFSCar – Fundo

Florestan Fernandes.

463 FERNANDES, Florestan. O significado das eleições. 08 dez. 1982. Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes.

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Em relação aos partidos, Florestan aponta que “o PMDB ganha como partido de

compromisso de classe, da democracia gradual e do congelamento do radicalismo”; mas dada

a configuração de acirramento de luta de classes em relação com o mau andamento da

economia, era de se esperar que “o que as eleições não fizeram, os processo políticos reais

terão de fazer = e provavelmente, irão fazê-lo de modo relativamente rápido. O povo, que não

foi esclarecido = cobrará a conta = não da ditadura, mas da oposição”.464

Em relação ao PT Florestan avalia que, ao contrário das análises correntes, o PT, sim,

sai com “vantagens líquidas”:

só que não está em face do “radicalismo ideológico”, mas de como fomentar a independência de classe, a consciência teórica dos trabalhadores e suas lutas sociais e políticas = ceder ao impulso eleitoral e aceitar suas tarefas políticas = que são as tarefas do proletariado. Ou converter-se em equivalente do antigo PTB.465

Trata-se, provavelmente, de uma das primeiras análises em que Florestan se refere

diretamente às possibilidades do PT e já expressa uma posição de que o partido deveria

cumprir as funções de um partido socialista. No entanto, o mais importante a ressaltar é que o

Partido dos Trabalhadores aparece como única possibilidade para a esquerda – ainda que não

passe de uma possibilidade –, pois a avaliação que o autor realiza sobre o PDT e o novo PTB

é aniquiladora:

O PDT firmou-se em suas posições e ganha massa de manobra política = mas seu socialismo serve a cabeça do proletariado em uma salva de prata no altar do capitalismo reformado e da democracia civilizada. O PTB é água, a fisiologia sem máscara = sumiu até a demagogia populista. O que ficou = o puro trafico de influência política valida!466

A frase com a qual finaliza o manuscrito não deixa lugar à dúvida da posição que

Florestan visualiza como a mais acertada:

FUTURO = mais do que se pensa, na estratégia do socialismo revolucionário como alternativa. Não surgiu OUTRA!467

Retomando a contextualização do momento, na entrevista para Em Tempo, Florestan

ressalta que houve, de fato, ao final do processo de manipulação dos partidos, um processo no

qual “o poder real das classes possuidoras foi, apesar das aparências, reduzido e relativizado.

464 FERNANDES, Florestan. O significado das eleições. 08 dez. 1982. Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes. 465 Ibidem. 466 Ibidem. 467 Ibidem.

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Embora por vias canhestras, soltou-se e cresceu um espaço comum a todas as classes, dentro

da ordem burguesa e através dele desprendem-se certas tendências à universalização da

cidadania e da justiça social”.468

Esta leitura de Florestan é importante, pois indica que suas análises estavam

acompanhando o andamento do processo histórico. Diferente do que possa ter sido afirmado

sobre a visão dogmática do autor em relação à abertura, em vários momentos, Florestan

aponta para possibilidades de mudanças, ainda que no momento seguinte venha a ter grandes

decepções. Não podemos perder de vista, mesmo sendo repetitivo, que o que está em análise,

para o autor, não é o processo formal ritualístico ou procedimental, mas a qualidade dos

processos históricos concretos; por isso, no manuscrito que apresentamos acima, contrapõe o

processo eleitoral aos “processos políticos reais”, pois um processo eleitoral que se torna um

“fim em si mesmo” pode ter como função a legitimação processual da abertura, mas não deve

contar como processo efetivo de democratização, já que não cumpre funções construtivas em

relação a sociabilização política da população, ou seja, não tem qualidades verdadeiramente

políticas para “os de baixo”.

A situação que o Brasil vivia em 1982 era, para o autor, a típica situação de transição

da sociedade de classe, “quando uma massa maior de trabalhadores por condições sociais,

materiais e políticas conseguem enfrentar a supremacia burguesa em alguns níveis e forçam o

seu espaço político próprio para deixar de ser uma mera cauda eleitoral da burguesia”.469

Em contraposição, as classes dominantes tentam alargar suas bases políticas e criar

instituições fortes; o que, na América Latina, leva a uma difícil tarefa que até então não tinha

sido realizada pelas ditaduras militares. As classes dominantes, do Brasil em particular,

estavam com dificuldades em rearticular um novo equilíbrio com os militares:

E não foi apenas porque os vários setores da burguesia estão divididos entre si. Ela não teve êxito porque não conseguiu encontrar uma fórmula que permitisse urna conciliação entre as soluções que vem desse poder relativamente autonomizado e as fórmulas políticas que são equacionadas em termos conservadores pelos estratos mais reacionários da burguesia. A burguesia tem de conciliar com os seus vários estratos, tem de conciliar com potências externas, com os militares, com os trabalhadores: todas estas necessidades de conciliação significam impotência para a burguesia já que ela não tem meios próprios para equacionar seus problemas.470

468 FERNANDES, Florestan. A ditadura em questão (1982). In: Em Tempo, 23 mar. 1982. Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes. 469 Ibidem. 470 FERNANDES, Florestan. A ditadura em questão (1982). In: Em Tempo, 23 mar. 1982. Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes.

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O impasse no qual as classes dominantes acabaram chegando criava um clima

altamente esperançoso no sentido de uma democratização efetiva, pois as várias posições

divergentes abriam campo para um avanço das classes trabalhadoras. Mas, sempre realista,

Florestan ressalva: “o mal das esperanças é que elas, por si mesmas, não movem a

história”.471

A ditadura ainda estava de pé, sustentando-se na “autonomia do Sistema”, nas

“pressões ambíguas que ele recebe de sua base nacional e estrangeira” e, por fim, pela

inexistência de um movimento popular que fosse capaz de derrubar o governo militar,

deixando “o sistema solto no vácuo e condenado como uma excrescência política”. A

ditadura militar, por outro lado, acaba por se valer muito da ambigüidade de um setor

burguês que faz oposição a ela, mas que busca uma transição sem rupturas gerando um

amplo espaço político para os militares e criando uma situação na qual o

“antiditatorialismo é freado pela dinâmica da oposição legal à ditadura e pela ausência de uma

sólida impulsão antiburguesa e socialista das classes proletárias, as quais faltam, parcial ou

globalmente, meios de ação inconformista ao nível político”.472

Florestan finaliza a entrevista apontando a necessidade da criação de partidos políticos

próprios das classes trabalhadoras, no intuito de desenvolver sua autonomia de classe e

para formar vanguardas operárias dotadas de firmeza política e de capacidade de liderança; para sair do isolamento político e retirar do ostracismo outras classes ou facções de classe (como o setor camponês ou a pequena-burguesia); para reduzir a prepotência e o despotismo do poder burguês; e, nos dias que correm, para remover da cena histórica a ditadura de classe da burguesia e por aí iniciar sua luta pela conquista do poder.473

No entanto, era necessário evitar a todo custo que se perdesse a autonomia dos

movimentos operários e sindicais em troca das utópicas “colaboração de classe” e democracia

“de cima para baixo”. Ou seja, estes partidos das classes trabalhadoras não poderiam nascer e

crescer como partidos da ordem e, para isso, deveriam vincular-se ao socialismo proletário e à

luta de classes que existiam no momento: “sem conteúdos socialistas nítidos e firmes, os

partidos operários oscilariam facilmente para a submissão dócil, o aburguesamento das

lideranças e a consolidação política como recurso de sobrevivência, deixando as classes

trabalhadoras entregues a si próprias e sem bússola política”.474

471 Ibidem. 472 Ibidem. 473 Ibidem. 474 FERNANDES, Florestan. A ditadura em questão (1982). In: Em Tempo, 23 mar. 1982. Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes.

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Para o autor, tratava-se do declínio final da contra-revolução; mas para garantir uma

mudança efetiva em nível estrutural, era necessário que os movimentos sociais se tornassem

dinâmicos o suficiente para cumprir uma função positiva neste processo.

3.9 As diretas-já!

O Brasil passou rapidamente da situação histórica de um país no qual parecia que tudo pode acontecer para outro no qual prevalece um apodrecimento conjuntural. A ordem ilegal forjada pela ditadura não foi estilhaçada. [...] Desse impasse, um acordo de cavalheiros permitirá – se não houver riscos aos interesses burgueses e se se calarem os “radicalismos” – repescar a transição gradual, pacífica e segura que esteve no cronograma político-militar dos dois últimos governos. É fabuloso! (Florestan Fernandes, Equivalentes políticos, 1984)

O movimento das Diretas-já é sem dúvida um marco na história da institucionalização

da contra-revolução. Trata-se de uma das maiores manifestações públicas que se viu no

Brasil: “quase 5 milhões de brasileiros foram às ruas, em comícios que agitaram muitas

dezenas de grandes cidades, desde Curitiba [...] até Vitória, passando pelo Rio e duas vezes

por São Paulo na fase final, puxando 1 milhão de manifestantes cada uma das vezes”.475

As eleições diretas se tornaram uma demanda gritante,476 a ditadura parecia não mais

poder sustentar-se e ter perdido toda a “legitimidade” frente à situação em que mantinha o

país.477 O então, recém eleito, deputado federal Dante de Oliveira (PMDB-MT), ao propor

uma emenda para o restabelecimento das eleições diretas para presidente, em 3 de março de

1983 – dando origem ao que Florestan chamou de “tática providencial”, permitindo que “se

atacasse de flanco uma ditadura que o medo impedia que fosse atacada de frente” –478 acaba

por exprimir esta demanda que se desdobrou nas ruas de forma contundente e, ainda que

arrastada por uma proposta de cariz politicista, continha potencialidades concretas para

romper a “abertura tutelada”.

475 BRAGA, Roberto Saturnino. Fato único na história do país. In: MAUÉS, Flamarion; ABRAMO, Zilah. Pela democracia, contra o arbítrio: a oposição democrática, do golpe de 1964 à campanha das Diretas Já. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006, p. 414. 476 “O jornal o Estado de S. Paulo, no início de abril [de 1983], divulga com impacto os resultados de uma pesquisa nacional de opinião pública realizada em fevereiro pelo Instituto Gallup: 74% do eleitorado brasileiro é a favor à eleição direta para a Presidência da República. No eleitorado das capitais, o percentual subia para 85%. Em pouco mais de um ano, o número de eleitores brasileiros favoráveis à eleição direta aumentara em seis pontos percentuais. Em fevereiro de 1982, eram apenas 68%. E mais: a eleição direta era uma tese genuinamente popular. As classes C, D e E estavam com essa posição dez pontos acima da média. Na classe C, 83%. Na classe D, 84%, na classe E, 85%”. OLIVEIRA, Dante de; LEONELLI, Domingos. Diretas já: 15 meses que abalaram a ditadura. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 105. 477 FERNANDES, Florestan. Eleições diretas e democracia (1984). In: Ib., Que tipo de República? São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 193. 478 Ib., Diretas já uma derrota? (1984). In: Ib., Que tipo de República? São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 180.

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Florestan iniciara sua atividade como publicista na Folha de S. Paulo no final de 1983,

publicando apenas 1 artigo naquele ano. Mas sua participação no jornal se ampliará

sensivelmente já em 1984, publicando 24 artigos ao longo do ano.479 Desta forma, pôde

comentar todo o processo final da abertura, a começar pela ampla movimentação pelas

Diretas.

Trata o movimento, a princípio, com certa ressalva e mediações. No primeiro artigo

em que trata do tema – em 21 de março de 1984, Significado político das eleições diretas – o

autor fala da importância de qualquer movimento de massa naquele momento, mas aponta

com certa desconfiança para o fato de setores vinculados à ditadura participarem do

movimento pelas Diretas. Setores estes com interesses que condicionavam as suas posições na

luta política, sendo “nesse nível que o apoio às eleições diretas é mais ambíguo e a tentativa

da ‘transição por dentro do regime’ ou mediante uma ‘conciliação segura’ se mostra mais

forte”.480

Com a mesma precaução, acautela:

As eleições diretas não são uma poção mágica. Elas só apresentam uma eficácia imediata indiscutível: acabar com a ditadura, abrir novos caminhos para a construção de uma nova sociedade política. Seria utópico esperar mais do que isso; e seria uma infantilidade supor que existem potencialidades democráticas que poderiam ser mobilizadas rapidamente e postas a funcionar da noite para o dia, num átimo.481

Era visível, para o autor, que parte da burguesia se mobilizava de forma

“politiqueira”,482 armando um engodo que levaria à despolitização das massas populares para

que eles pudessem agir conciliatoriamente através da democracia “dos mais iguais”. Assim, às

vésperas do debate das eleições diretas, Florestan alertava:

as classes burguesas se cindiram, uma grande parte da burguesia movimenta-se na direção de dissociar-se da “República institucional” e o centro burguês, esteja ele no PDS ou no PMDB, luta por uma “transição política barata” (isto é, uma substituição gradual sem traumas ou o menos traumática possível do regime existente). Sob esse aspecto, voltamos a uma fase de conciliação típica, pela qual as aparências de mudança social profunda são deglutidas e anuladas pelo “talento conservador” das elites no

479 Florestan inicia sua participação na Folha de S. Paulo em 21 de outubro de 1983 com um artigo intitulado: Integridade e grandeza. (In: Que tipo de República? São Paulo: Brasiliense, 1986.) Que falava da morte do comunista Gregório Bezerra. Sua atuação periódica se ampliará e durará até sua morte em 1995. 480 FERNANDES, Florestan. Significados políticos e eleições diretas (1984). In: Ib., Que tipo de República? São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 202. 481 Ib., Eleições diretas e democracia (1984). In: Ib., Que tipo de República? São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 195. 482 A princípio Florestan utiliza os termos “politiqueiro” e “politiquice” para referir-se a política profissional de gabinete, que visa acordos pelo alto, o equivalente a “pequena política”. Mais a frente o autor passa a usar o termo “politicismo” com o mesmo sentido, como podemos verificar em: O politicismo burguês (1986). In: Id., A constituição Inacabada: Vias Históricas e Significado Político. São Paulo: Estação Liberdade, 1989, pp. 16-19.

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poder. Políticos de proa dos dois principais partidos confirmam essa explanação, malgrado as diversidades de suas retóricas políticas e de seus objetivos reais.483

Tal preocupação já vinha sendo alimentada desde as greves e principalmente no

momento imediatamente posterior: a ditadura tentava gerar um “oposto idêntico”, através de

sua institucionalização como governo civil, criando uma democracia saída de sua própria

costela.484

Assim, “na verdade, a ‘política de abertura’ cede para não dar e o que ela oferece de

palpável, de imediato e no futuro, nada tem de comum com o regime democrático exigido

pelas transformações em processo da sociedade civil”.485 Naquele momento, como já vimos, a

ditadura vivia um impasse e estava desgastada “sob o ímpeto de um vigoroso protesto

operário e de uma avassaladora insatisfação popular sem esperança” – questões que foram

alimentadas “pelo rescaldo da crise do milagre, pelos efeitos internos das perturbações

estruturais do capitalismo mundial e pelo curso tomado pela depressão da economia

brasileira”, chegando a um ponto de “fraturas em sua base de sustentação econômica, social e

política, e no qual as várias correntes que constituem esta base murmuram ou mesmo

proclamam suas decepções ou divergências”.486 Para o autor chegara o momento de prestação

de contas.

Ao final do processo, Florestan passa a considerar o momento das Diretas como um

marco autêntico da sociedade civil e que acaba por demonstrar, através do veto parlamentar,

os limites da abertura: o quanto os militares não cediam aos menores riscos e o fato de que

não estavam tão debilitados assim.

No que diz respeito à oposição, curiosamente, ela resgata, reformulando, o conceito de

sociedade civil – que se torna uma espécie de “cavalo de tróia” para os intelectuais “orgânicos

da ordem” – “como uma fórmula cômoda de passar por baixo do nariz da ditadura” ou “por

cima do nariz do povo”, servindo funcionalmente a um simulacro de oposição.

Para Florestan, “não se pode separar ditadura e sociedade civil, como não se pode

separar revolução social e sociedade civil”; a ligação entre as duas é tamanha que,

As classes altas e privilegiadas retiraram a ditadura do seio da sociedade civil; e, além disso, se a ditadura se mantém isso ocorre

483 FERNANDES, Florestan. Desobediência civil e sufrágio universal (1984). In: Ib., Que tipo de República? São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 207. 484 “Estes setores se acham confusos. Devorados pelo monstro que inventaram e produziram não têm ao alcance da mão outra saída segura. Vêem-se compelidos a selar uma segunda aliança, na esperança de que da costela da ditadura nasça o seu complemento político, a apregoada ‘democracia pela qual sempre ansiamos’...”. Ib., Crise ou continuidade da ditadura? (1981) In: Ib., A ditadura em questão. São Paulo: T. A. Queiroz, 1982, p. 8 485 Ibid., p. 35. Grifos do autor. 486 Ibid., p. 7.

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porque esse setor da sociedade civil ainda é bastante forte para impedir tanto a transformação da sociedade civil como o desaparecimento da ditadura. Por sua vez, desde a crise do trabalho escravo e da transição para o trabalho livre os oprimidos lutam para revolucionar a sociedade civil, seja nos limites da ordem, pela maioria, seja contra a ordem, pelos pequenos grupos e partidos socialistas revolucionários.487

Ou seja, se opõe às concepções abstratas e “apolíticas” sobre o tema, que, como o

fazem os scholars estrangeiros e nacionais, expõem sociedade civil e Estado “omitindo a

palavra ditadura”. Apesar de verdadeira, a afirmação alardeada pelos estratos mais

reacionários da burguesia naquele momento, de que a sociedade civil estava crescendo e se

movimentando no sentido de resolver “as questões pendentes”, o autor alerta que este

crescimento seria insuficiente para incorporar “massa de milhões de oprimidos e explorados”

ao processo. Além disso, havia setores da esquerda ao centro que aceitavam uma liberalização

outorgada e, somando as posições, “se a sociedade civil não for movida pelas dissensões,

aspirações e conflitos das massas de oprimidos e deserdados, ela tenderá a recompor-se e a

renovar-se ‘a partir de cima’, sob a ritualização do Estado constitucional e da república

democrática”.488

Florestan compreende que “a sociedade civil existente no Brasil incorpora

morfologicamente milhões de miseráveis da terra, de trabalhadores assalariados livres e

semilivres. Porém, ao mesmo tempo, castra-os socialmente”.489 Estas pessoas, apesar de

serem parte da sociedade civil morfologicamente, não possuem voz ativa dentro desta, e

possuem uma oposição sistemática das classes dominantes, de forma a reduzir o máximo a

participação efetiva deste imenso contingente.

Frente a este quadro, o autor entende como parte necessária de uma efetiva

democratização a construção de uma “sociedade civil transitória”, que seria a construção de

uma “democracia ampliada”; em outras palavras, a efetivação de uma “revolução dentro da

ordem” como passo inicial. Cabe aos trabalhadores, aos “que sempre foram tratados como

‘inimigos da ordem’ e sempre foram excluídos da sociedade civil”, adotarem como saída a

construção de “uma ordem social própria e uma sociedade civil transitória, que ligue a

revolução nacional-democrática e antiimperialista à emergência e à vitória do socialismo”.490

487 FERNANDES, Florestan. Os subterrâneos da História não entram nas enquetes (1986). In: Ib., A constituição Inacabada: Vias Históricas e Significado Político. São Paulo: Estação Liberdade, 1989, p. 31. 488 Ib., A ditadura em questão. São Paulo: T. A. Queiroz, 1982, pp. 3-4. 489 Ib., Os subterrâneos da História não entram nas enquetes (1986). In: Ib., A constituição Inacabada: Vias Históricas e Significado Político. São Paulo: Estação Liberdade, 1989, p. 31. 490 FERNANDES, Florestan. Nós e o marxismo. In: CHASIN, J. (org.) Cadernos ensaio: Marx hoje. São Paulo: Ensaio, 1987.

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Sendo assim, a democracia ampliada para Florestan era vista como passo necessário,

mas não um fim; por isso trata-se de uma “sociedade civil transitória”, seria o passo a partir

do qual se poderia avançar no sentido de uma sociedade comunista. As possibilidades do país

caminhar naquele momento para uma democracia ampliada apoiavam-se no fato dos

“oprimidos [erguerem] os punhos porque não tinham voz na sociedade civil e não possuíam

peso em um Estado que os excluía, os odiava e os martirizava”; as Diretas passaram a ser

vistas pelo autor como um reflexo do processo, no qual os oprimidos “saíram sozinhos do

fundo do poço e quebraram todas as barreiras que o despotismo dentro da empresa, dentro da

comunidade local, dentro da sociedade civil e dentro do Estado levantava à sua insurreição

muda”.491

Sua inspiração sobre o tema é clara:

Marx e Engels enunciaram o essencial: sob o capitalismo e dentro do capitalismo a revolução de sentido histórico se dá contra a sociedade burguesa e o seu Estado democrático-burguês. Uma revolução que, em sua primeira etapa, substituirá a dominação da minoria pela dominação da maioria; e, em seguida, numa mais avançada etapa eliminará a sociedade civil e o Estado, tornando-se instrumental para o aparecimento do comunismo e de um novo padrão de civilização.492

Vale, de passagem, que ressaltemos que, na citação acima, o autor afirma o que

pontuávamos no Capítulo II deste trabalho: o fato de que revolução para Marx se dá em um

sentido histórico mais amplo do que o utilizado pelo próprio Florestan em seu clássico A

revolução burguesa no Brasil. Assim, o que houve no Brasil, no processo de transformação

capitalista, foi, desde o começo, um processo contra-revolucionário; o que nos levaria ao fato

de que a ditadura, enquanto contra-revolução, é apenas uma manifestação específica de uma

necessidade que se expressou reiteradamente no Brasil como característica intrínseca ao

processo capitalista da via colonial. Como esperamos já haver deixado claro, se Florestan

entendeu este processo inicialmente como uma revolução, é devido ao fato de não ter partido,

ao menos naquele momento, do resgate marxiano da revolução enquanto processo histórico

mundial.

Mas, voltando ao problema da sociedade civil, Florestan aponta que a cidadania

desenvolvida sob um capitalismo em sua formação clássica, possibilita o “aparecimento dos

operários que haviam sido mestres; e, mais tarde, tornaram-se técnicos, operários qualificados

(além de comerciantes e capitalistas), o que elevou o nível de exigência e de consciência do

trabalhador”. Será através da movimentação de uma burguesia que “busca realizar-se, num

491 Ib., Os partidos ilegais (1985). In: Ib., Que tipo de República? São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 79. 492 Ib., O que é revolução? São Paulo: Brasiliense, 1981, pp. 14-15.

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curto período de tempo, passando de classe revolucionária para classe dominante e de classe

dominante para classe reacionária”, que se dará a “cristalização de um poder popular, da

cidadania como uma forma de afirmação de pessoas que a revolução burguesa renegou” e,

desta forma, fazendo com que a cidadania “fosse conquistada pela pressão da própria camada

social excluída”.493

Assim, nestes países “onde a revolução burguesa se aprofundou e se alargou, isto foi

produto das pressões dos despossuídos”, da ação das classes trabalhadoras; frente a isso, a

burguesia precisou consentir “em que a revolução democrática constituísse um processo

histórico multipolarizado ou pluripolarizado”, implantando uma democracia que é ampla

devido a participação popular. Esta participação, por sua vez, foi tolerada pela burguesia para

conter a radicalidade das ações populares. Mas, “nos países em que as classes dominantes

foram rígidas demais, a maré montante transbordou e apressou o colapso da ordem existente,

apenas parcialmente uma sociedade civil em sentido estrito” e dentre estes países de classe

dominante rígida, encontra-se o Brasil, 494 onde a burguesia nacional não precisou recorrer aos

trabalhadores como forma de efetivar, ou levar à frente, uma “modernização” nacional. Esta

debilidade da burguesia nacional só poderia ser superada

num momento em que as massas populares e as vanguardas das classes trabalhadoras, apesar de todas as suas debilidades orgânicas, transcenderam e suplantaram as “táticas” de direções sindicais acomodadas ou as oscilações de direções partidárias que põem a sobrevivência física acima de suas tarefas políticas cruciais.495

Esta ampla camada deve reivindicar seu espaço na sociedade civil, deve agir

ativamente reivindicando um projeto nacional voltado para a satisfação de suas necessidades,

fazendo com que a burguesia se veja obrigada a conceder parte de seu poder de ação.

É importante notarmos que, ao diferenciar o processo histórico que compõe a

sociedade civil no caso clássico e no caso brasileiro, Florestan não faz mais do que afirmar,

por outro ângulo, o problema da autocracia burguesa como estrutura histórica no Brasil.

Ora, mesmo um democrata-liberal como Norberto Bobbio tem clareza de que é a

movimentação popular, ou seja, a pressão dos de baixo, que possibilitou a democratização da

sociedade capitalista liberal extremamente “elitizada”, gerando assim uma liberal-democracia

493 FERNANDES, Florestan. Constituinte e revolução (1989). In: Ib., Democracia e desenvolvimento: a transformação da periferia e o capitalismo monopolista da Era Atual. São Paulo: Hucitec, 1994, p. 184. 494 “entre nós, são as classes burguesas nacionais e estrangeiras, articuladas pela dominação de classe e pela atuação do Estado, que promovem uma resistência obstinada contra o potencial revolucionário construtivo das classes despossuídas e oprimidas – as quais não contam na sociedade civil e lutam por classificar-se dentro dela e para ter peso e voz nos assuntos essenciais da coletividade”. Ib., A ditadura em questão. São Paulo: T. A. Queiroz, 1982, p. 4. 495 Ibidem.

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ou a democracia burguesa que comporta uma “sociedade civil ampliada” – defendida naquele

momento por Florestan como primeiro passo, ainda dentro do capital, de uma efetiva

democratização do país. A esquematização de Bobbio, inclusive, se aproxima bastante do

posicionamento de Florestan, na medida em que afirma que “o fluxo de poder, só pode ter

duas direções: ou é ascendente, quer dizer, desce do alto para baixo, ou é descendente, quer

dizer, vai de baixo para cima”.496 Na representação do cientista político, a autocracia é o

poder que parte do alto, um sistema político que sufoca a autonomia da sociedade civil,497

uma construção típico-ideal que é o antípoda da democracia, já que nesta última inverte-se o

fluxo do poder: que vem de baixo. Obviamente que a democracia, para Bobbio, se sustentará

em elementos procedimentais, dando margem a um posicionamento contractualista liberal

bem diferente do posicionamento florestaniano. O que queremos demarcar aqui é apenas a

ideia de fluxos do poder em relação ao entendimento de democratização de Florestan como

ampliação da sociedade civil.

Em resumo, a posição de Florestan é a de que, estruturalmente, o fluxo do poder no

Brasil é descendente, na medida em que a estrutura histórica da autocracia burguesa concentra

o poder no “topo” por vias extras econômicas – inclusive a policial-militar –; assim, retira ao

máximo a autonomia da sociedade civil para que possa efetuar a manutenção da subordinação

do país aos países centrais, mantendo-se, enquanto a burguesia nacional, como associada

menor do capital internacional e, assim, perpetuando a situação de dependência econômica

estrutural que sacrifica a Nação em nome de interesses particularistas e imediatistas.

Em entrevista que concedeu a João Arruda, na Folha de Londrina de 14 de abril de

1984, meio aos grandes comícios das Diretas – O povo nas ruas –,498 Florestan retoma o tema

da sociedade civil de forma muito esclarecedora, ressaltando que a ideia de voltar à

democracia “é uma balela”, na medida em que nunca houve de fato uma democracia no

Brasil, uma democracia efetiva implantada de baixo para cima como desdobramento das lutas

intestinas de uma sociedade civil. Vejamos um trecho esclarecedor da entrevista:

Entrevistador – Há exatos 20 anos, parte da população saía às ruas em apoio à derrubada de João Goulart. Hoje, já foram às ruas mais de três milhões de pessoas pelo restabelecimento imediato das eleições diretas para Presidente. Como você analisa esta transformação?

Florestan – Em primeiro lugar, é preciso esclarecer que há muitos que fazem uso do conceito de sociedade civil quando se referem a

496 BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Rio de Janeiro: Paz e terra, 2009, p. 66. 497 Ibid., p. 48. 498 Na verdade, dois dias antes do último grande comício que reúne mais de um milhão de pessoas no Anhangabaú e a onze dias da frustração de ter as eleições diretas barradas pela Câmara dos Deputados.

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estas amplas camadas que hoje estão mobilizadas pelas diretas. Mas precisamos ter claro que sociedade civil é apenas a parte da sociedade que tem direitos civis, que tem peso e voz na organização do poder. E o que caracteriza o Brasil é que a sociedade civil, aqui, mesmo quando absorve as classes trabalhadoras, subalterniza essas classes. Portanto, temos que falar em classes que lutam entre si, das quais a sociedade civil é um produto. Mesmo em relação ao golpe de Estado, os que queriam aquela mudança não era a sociedade civil, mas sim a sua parte mais reacionária, que conseguiu arrastar consigo quase toda a classe média e o resto das classes dominantes. Hoje, o que nós estamos vendo é que as classes trabalhadoras, tanto nas áreas urbanas como nas áreas rurais – mas principalmente nas grandes cidades – repudiaram esse regime de opressão. Essas classes deram um basta ao regime. A grande modificação que ocorreu é que a vítima da repressão em 64 está hoje cobrando uma situação de liberdade, está exigindo que o Brasil dê peso e voz política às classes trabalhadoras, pela primeira vez na sua História. Isso de dizer ‘vamos voltar à democracia’, como muitos fazem, é uma balela. Antes, não havia uma democracia na qual as classes trabalhadoras tivessem peso e voz, que agora são reivindicados. Esta foi uma alteração substancial. Há o início de um processo. É por isso que afirmo que as eleições diretas não serão um ‘abra-te sésamo’. Não resolverão tudo. Nós vamos criar condições para que as soluções apareçam e soluções que nunca foram utilizadas”. 499

Em um manuscrito intitulado O Estado Capitalista,500 Florestan Fernandes, após uma

exposição sobre o que é o Estado, fazendo longa citação da Origem da Família, de Engels, e

fazendo uma rápida descrição do que é o “moderno Estado representativo”, o autor explica o

que seria uma república democrática, insistindo mais uma vez no fato que a democracia não é

uma dádiva que possa ser dada por uma ditadura, mas um processo histórico de luta de

classes.

A república democrática: Nesta discussão, convém entender que a república democrática não é uma criação exclusivamente ou puramente burguesa. No século XIX, foram as lutas econômicas, sociais e políticas das classes trabalhadoras na Inglaterra e na França que forçaram as classes burguesas a abrir e reconhecer um espaço político universal (isto é, que aumentava o grau de liberdade das classes subalternas ou lhes asseguravam certas ‘garantias sociais e políticas inalienáveis’ dentro da ordem). Esse avanço se produziu sobre um clima de violências de lutas sangrentas e por vezes da guerra civil. Não obstante, o terrorismo burguês teve de ceder esse espaço as classes subalternas e as circunstancias favoreciam esta evolução (a burguesia estava ainda consolidado o capitalismo competitivo e podia fazer barganhas = ou seja, atender as reivindicações socialistas.501

499 FERNANDES, Florestan. O povo nas ruas (1984). In: Ib., Que tipo de República? São Paulo: Brasiliense, 1986, pp. 188-189. (Grifos nossos) 500 Ib., O Estado capitalista. 29 ago. 1980. Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes. 501 FERNANDES, Florestan. O Estado capitalista. 29 maio 80. Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes.

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Deixa claro também que a votação como direito político não é, por si, suficiente para

uma integração automática, nem equivale, necessariamente, à “abolição das ‘prepotências’ e

‘injustiças’ arraigadas, por obra – ou seja, por conta e risco – dos oprimidos”.502 Seria

necessário, para o autor, aproveitar esse início, esse “despertar” da classe trabalhadora que fez

as greves de 78, 79 e 80 e que se preparava para um comício de mais de um milhão de

pessoas, para romper com a subordinação desta classe, abrindo um espaço que incluísse sua

efetiva participação econômica, política e social.

Florestan escreveu no dia 24 de Abril – um dia antes da votação das eleições diretas –

um artigo na Folha de S. Paulo, que dizia: “Toda a oposição sabe perfeitamente que a emenda

só é decisiva para o Congresso e que ela não arromba as portas que já estão abertas”. Ou seja,

se a emenda fosse derrotada, para Florestan, “ela cumpriu o seu fim e quem perdeu a

oportunidade política terá sido o ‘Planalto’, com o seu partido vassalo, o PDS, e as chamadas

‘forças da ultradireita’”; por outro lado, “se for aprovada, o Congresso terá correspondido à

pressão popular e avançado no sentido de afirmar-se como um poder respeitável e

independente” e não se deveria “menosprezar o que a aprovação da emenda representa como

união das reivindicações das lutas travadas em conjunto pela massa mais ativa da população e

a ‘classe política’”.503

O que havia de mais importante no movimento das Diretas Já era a participação

popular. Obviamente que a resolução na Câmara tinha uma importância política, porém, esse

não deveria ser o ponto principal do processo, mas sim o “imenso confronto de massa popular

que a ditadura acabou desencadeando contra si mesma [...] o desencadeamento popular da

revolução democrática”.504

A avaliação de Florestan sobre a não aprovação da emenda Dante de Oliveira só

chegará efetivamente no dia 5 do mês seguinte, em um artigo fundamental sobre o tema, e no

qual o autor rejeita uma interpretação de derrota do povo que foi às ruas. A derrota para ele é,

sobretudo, parlamentar: “em troca de uma ‘derrota parlamentar’ ganhamos um exército pronto

para o combate político”, afirma. Afinal, a ditadura havia sido batida “dentro do campo da

ordem ilegal que ela forjou”.505 Impõe-se assim, a separação entre o processo político levado

a cabo na Câmara e a massa que se mobilizou. No campo político, a votação clarificou,

segundo o autor, “como a ordem ilegal ditatorial passa por dentro dos partidos e do Congresso

502 Ib., Os trabalhadores e a democracia In: Ib., Que tipo de República? São Paulo: Brasiliense, 1986, pp. 188-189. 503 Ib., O Significado de 16 de abril (1984). In: Ib., Que tipo de República? São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 184. 504 Ibid., p. 186. 505 FERNANDES, Florestan. Diretas já: uma derrota? (1984) In: Ib., Que tipo de República? São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 179.

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Nacional, neste momento de crise aguda da República institucional”.506 Como já destacamos

anteriormente, a emenda foi importante ao permitir o ataque de flanco já que o medo impedia

um ataque frontal e forçou que os partidos saíssem do imobilismo, também, nesse sentido, sai

vitoriosa. Frente a este desdobramento, Florestan pontua quais seriam os pontos nevrálgicos

para avançar no confronto entre as classes:

Agora, é preciso partir da situação atual, que não é mais a mesma de alguns meses atrás. A Nação já disse o que quer e o movimento popular equacionou esse querer politicamente. Primeiro, a transição “democrática” arquitetada pela ditadura foi posta fora de questão. Segundo, a conciliação como gentlemen's agreement (como acordo das elites das classes dominantes) foi repudiada e nenhum partido ou chefete político recebeu a investidura de “negociar em nome do Povo”. Terceiro, a pressão contra a ditadura é, em sua contraface positiva, uma obstinada defesa da instauração de uma forma popular de democracia política.507

O novo momento exigiria, portanto, uma nova equalização das forças políticas, na

qual os adversários de uma revolução política, “os donos do sistema”, tentarão negociar uma

emenda que lhes permita continuar no poder e, por outro lado, “os representantes mais

articulados da grande burguesia nacional e estrangeira aspiram a uma ‘conciliação nacional’

que aliaria os ‘pombos do regime’ aos políticos ‘esclarecidos’ e ‘éticos’ do PMDB e do PDS,

numa marcha-à-ré impossível à década de 1950”.508

Neste jogo de previsões dos desdobramentos finais para a “nova República”, Florestan

compreende que naquele ponto, “as massas que deram peso e voz a partidos enquadrados e

ventríloquos [...] não suportarão qualquer recuo, ambigüidade e, em particular, qualquer coisa

que pareça traição política”; porém, nem bem completados três meses da publicação destas

afirmações, o sociólogo pinta um quadro bem mais opaco em relação ao futuro da luta na

“nova República”:

O Brasil passou rapidamente da situação histórica de um país no qual parecia que tudo pode acontecer para outro no qual prevalece um apodrecimento conjuntural. A ordem ilegal forjada pela ditadura não foi estilhaçada. Ao contrário, está sendo brilhantemente conduzida a um impasse artificial, pela colaboração dos principais talentos políticos do governo do PMDB e do PDS. Desse impasse, um acordo de cavalheiros permitirá – se não houver riscos aos interesses burgueses e se se calarem os “radicalismos” – repescar a transição gradual, pacífica e segura que esteve no cronograma político-militar dos dois últimos governos. É fabuloso!509

506 Ib., Diretas já: uma derrota? (1984) In: Ib., Que tipo de República? São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 180. 507 Ibid., p. 181. 508 Ibidem. 509 FERNANDES, Florestan. Equivalentes políticos (1984). In: Ib., Que tipo de República? São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 163.

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“Fabulosa” é também a maneira como “as alternativas ficaram nas mãos do regime em

liquidação”, caminhando para uma aliança-liberal que geraria, na compreensão de Florestan,

“um penoso recomeço das classes possuidoras, de suas elites políticas e das ‘forças

revolucionárias’ da grande burguesia”. Afinal, foi possível, sim, dar marcha-à-ré, e para além

dos anos 50:

Uma “aliança liberal” poderia ter sentido em 1930. Hoje é uma irrisão, um salto para trás de meio século, no momento mesmo no qual as classes trabalhadoras e as massas populares delimitam o seu solo histórico como sendo o do último quartel do século XX e do advento do século XXI! Partilhar de falsas ilusões democrático-burguesas nesse contexto sequer implica fixar o movimento operário na cauda política dos donos do poder. Em linguagem clara, isso pressupõe uma variedade traidora de oportunismo político. 510

Nesse momento, inaugura-se uma nova fase do processo da “abertura”, em que “às

esperanças das grandes manifestações cívicas, sucedeu-se um apagado e desalentador quadro

político”.511 No final das contas, a ditadura poderia ter perdido batalhas, mas no geral sai

vitoriosa, conseguindo bloquear o desenvolvimento de uma democracia autêntica, dos de

baixo, contando com uma oposição que anuiu “descobrindo os meios para tornar o bloqueio

uma manobra encoberta de defesa da ordem e, ao mesmo tempo, reapresentar-se como a única

saída possível”.512

É, desta forma, arquitetada a “nova República”, através de um acordo que busca evitar

o que, o então deputado Ulisses Guimarães, declarou: “as convulsões sociais estão aí”;

Florestan relembrará várias vezes esta fala de Ulisses, a quem apelidou de “mister Diretas já”,

ao tratar do tema: “era a resposta da insatisfação popular ao regime; ou tomavam uma

iniciativa rápida para restabelecer o equilíbrio ou se defrontariam com a rebelião”.513

O episódio configura-se, uma vez mais, como a manutenção da contra-revolução, um

continuísmo “na esperança de que da costela da ditadura nasça o seu complemento político, a

apregoada ‘democracia pela qual sempre ansiamos’”:514 “Nada de revolução democrática de

conteúdo proletário e de base popular. Se o controle burguês do Estado colide com a

revolução democrática, pior para a democracia... Pois a ditadura militar não é a única via de

preservação ou reciclagem da autocracia burguesa”.515

510 Ibid., pp. 164-165. 511 Ib., Ainda as diretas (1984). In: Ib., Que tipo de República? São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 150. 512 Ibid., 149. 513 Ib., A maioria não está na constituinte (1987). In: Ib., Democracia e desenvolvimento: a transformação da periferia e o capitalismo monopolista da Era Atual. São Paulo: Hucitec, 1994, p. 128. 514 FERNANDES, Florestan. A ditadura em questão. São Paulo: T. A. Queiroz, 1982, p. 8. 515 Ib., Equivalentes políticos (1984). In: Ib., Que tipo de República? São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 165.

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A ditadura conseguiu, assim, dar um passo importante para a realização da grande

façanha de “atravessar a tormenta sem perder a capacidade de usar o Estado para fins privados

e com a certeza de que uma nova política econômica autodefensiva poderá ser garantida

apesar de tudo”.516

3.10 A transição transada

Uma vez desbaratada as eleições diretas de imediato, era necessário que o Sistema

desse continuidade à abertura “gradual e segura”. Assim, seria realizada a troca do governo

militar para o civil através de uma eleição indireta eleita, por um Colégio Eleitoral; realizar-

se-ia uma nova constituição durante este governo indireto, para assim ceder o direito ao

sufrágio universal.

Dentro do partido dos militares, o PDS, havia duas tendências aparentemente

conflitantes em relação a como se deveria proceder a “abertura” – uma querendo voltar para

os quartéis e outra que desejava o mesmo, mas que não gostaria de deixar o país cair nas mãos

da esquerda que “cercava Tancredo”, um dos candidatos a presidência nas eleições indiretas.

Divisão que se materializará em duas articulações que polarizaram o Colégio Eleitoral: por

um lado, os militares apresentaram um candidato representando a “linha dura” da ditadura,

Paulo Maluf; e, por outro, o candidato que representa a Aliança Democrática, Tancredo

Neves.

Paulo Maluf chega ao pleito como um representante vinculado à ditadura militar,

mesmo não contando mais com o apoio de parte significativa deste governo; enquanto

Tancredo Neves, graças ao seu caráter conciliatório, traz como vice de sua chapa José Sarney

e todo o estofo militar que abandonou o PDS.

Ao que indica os depoimentos de alguns dos importantes agentes políticos da época,

como Delfim Netto, o general João Figueiredo manteve taticamente uma posição de distância

do pleito em relação à sucessão de sua vaga na presidência.517 O PDS estava cindido em três

candidaturas, além de Maluf havia ainda o ministro Mario Andreazza e o vice-presidente

Aureliano Chaves; e a “falta de atitude” de Figueiredo, que foi reclamada por vários políticos

do governo, faz com que a crise interna do partido para a escolha de seu representante afaste o

516 Ib., Crise econômica, desemprego e eleições diretas (sem data). In: Ib., Pensamento e ação: o PT e os rumos do socialismo. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 81. 517 “A ausência de comando, que encontrou na renúncia do Presidente à coordenação seu emblema mais flamejante, animou os protagonistas da sucessão a agirem por conta própria – embora, todos eles, buscassem não perder Figueiredo como um ponto de referência, o poupassem sempre que possível e procurassem extrair dividendos dos seus gestos ou do anúncio de suas intenções. O presidente, não porque assim quisesse mas pela força e majestade do cargo que exercia, foi o mais importante agente ativo e passivo de todo o processo. A sucessão se fez a partir dele, apesar dele, com ele e contra ele”. DIMENSTEIN, Gilberto; et al. O complô que elegeu Tancredo. Rio de Janeiro: JB, 1985, p. 20.

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presidente do partido José Sarney: “Sarney perdera qualquer esperança de reparar as

rachaduras do Partido sob o seu comando e decidira apoiar um candidato da Oposição à

sucessão presidencial, cristalizando assim a dissidência do PDS que ajudaria a eleger

Tancredo Neves”.518 Junto a Sarney, se afasta o então vice-presidente da República Aureliano

Chaves, se colocando igualmente em favor à candidatura oposicionista de Tancredo.

Uma das hipóteses ventiladas por frações do governo ditatorial, em 1984, era a de

uma prorrogação do mandato do próprio Figueiredo por mais dois anos, para então implantar,

em 1986, as eleições diretas. Porém, a saída não agradava a setores da ditadura por duas

questões: a primeira era o fato de favorecer um candidato bastante temido pela ditadura, o

então governador do Rio de Janeiro, Leonel Brizola, que estaria, em 1986, livre de seu cargo

de governador. A segunda era a de que, partidos como PDT, PTB e PT teriam tempo para

ampliar suas estruturas partidárias, podendo ampliar suas possibilidades no pleito. No entanto:

Ao PDS, a prorrogação não interessava, ou não deveria interessar, de acordo com o Senador [Maciel]: “primeiro porque o partido pode eleger já agora o próximo presidente – e a permanência de Figueiredo no poder não significaria a entrada do PDS no poder; segundo, porque mais dois anos de Governo Figueiredo marcaria o PDS em definitivo como o Partido da inflação, do descalabro administrativo, da crise econômica; dificilmente, depois disso, poderia ganhar as eleições de 1986.519

Para os militares, atender às Diretas em 1984, ou seja, dobrar-se à vontade popular, era

algo impossível devido à presença de um “fantasma” de 1964:

Ele [Figueiredo] reafirmou que os chefes militares eram radicalmente contrários à aprovação da emenda Dante de Oliveira porque receavam a eleição do governador Leonel Brizola e achavam que a campanha que a antecederia poderia transformar-se em um julgamento do movimento de 1964.520

A estratégia dos militares foi, então, a de apresentar, através do deputado Marchezan,

uma emenda para desarticular a emenda Dante de Oliveira e rachar a esquerda, transferindo as

eleições diretas para 1989 e dando tempo para os partidos se organizassem para o pleito.

Ao mesmo tempo, outros homens políticos ligados à ditadura, como Antônio Carlos

Magalhães, tratavam de negociar a candidatura de Tancredo Neves – que assumiu um papel

de grande negociador, de conciliador de uma candidatura exeqüível no colégio eleitoral. O

governador mineiro, não só estreitou os laços políticos com os “dissidentes” do PDS, mas

também realizou um processo de convencimento, para que os “radicais” do PMDB, em

518 Ibid., p. 28. 519 Ibid., p. 32. 520 Ibid., p. 43.

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especial Ulysses Guimarães, deixassem a posição de “só Diretas”: “só encontraremos a saída

para os conflitos irreversíveis se as forças que representam o poder e a sociedade civil

souberem conter as suas posições radicais, que levam a confrontos desiguais e funestos”.521

Tancredo surge, então, como uma alternativa aos radicais: Ulysses e Maluf. O PDS

sofreu, neste processo, um esvaziamento – sem apoio de dois dos principais representantes

dos militares, Figueiredo e Geisel – ao ponto do próprio articulador da campanha de Maluf,

Calim Eid, negociar, à revelia do candidato, sua renúncia, o que de fato nunca chegou a

acontecer.

Uma das manobras conciliatórias de Tancredo foi a “sensibilidade” de garantir aos

militares que não haveria o revanchismo em seu governo, pelo contrário, “Tancredo não

apenas repetiu a promessa de combater o revanchismo, mas especialmente, a de preservar a

figura do presidente e de sua família”.522

Inaugura-se, assim, a fase central do processo de institucionalização da contra-

revolução; é o chamado pacto político “oferecido pela Aliança Democrática, pela ‘Nova

República’ e sacramentado por Tancredo Neves”, em que os trabalhadores deixam “de ser

parte de um processo” e acabam se “tornando objeto de barganha dos de cima”. Procedimento

que “visava salvar o capital de uma catástrofe econômica e a ordem política de uma comoção

violenta, de conseqüências imprevisíveis”.523 É a efetivação da possibilidade mais

antidemocrática que Florestan tratava de alardear durante todo processo de distensão e

abertura:

O que existe de mais parecido com o regime de ditadura – que não foi batido e liquidado, mas incorporado a um pseudo-”Estado de direito”, construído a quatro mãos por chefes militares, líderes políticos conservadores, partidos da ordem e o grande capital nacional estrangeiro – é a “Nova República”.524

Em outras palavras, “não existe democracia, porém palavrório democratizante”, uma

vez que “os de cima não podem oferecer aos de baixo aquilo que eles sequer logram dividir

entre si”. É com o início da nova República “que tivemos a mais clara definição política das

improbabilidades da democracia”.525

Através do Colégio Eleitoral, desenvolveu-se um pacto conservador “que o jornalista

Jânio de Freitas chamou ‘pacto transado’ – houve uma transação em torno do pacto”. Pacto

521 NEVES, Tancredo apud DIMENSTEIN, Gilberto; et al. Op. Cit., p. 78. 522 NEVES, Tancredo apud DIMENSTEIN, Gilberto; et al. Op. Cit., p. 181. 523 FERNANDES, Florestan. Pacto social à brasileira (1986). In: Ib., Que tipo de República? São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 27. 524 FERNANDES, Florestan.A cabeça do trabalhador (1986). In: Ib., A constituição Inacabada: Vias Históricas e Significado Político. São Paulo: Estação Liberdade, 1989, p. 44. 525 Ib., Pacto social à brasileira (1986). In: Ib., Que tipo de República? São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 27.

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que reuniu amigos e inimigos, e no qual “uma parte da ditadura, através dos chefes militares

que eram ditos civilizados” juntamente com o

setor que se considerava liberal, dos principais políticos egressos da antiga ARENA e que formaram o PDS permaneceram aliados ao governo enquanto este estava em uma posição segura; eles, por sua vez, abandonaram o barco, se aliaram com aquela vanguarda política conservadora do PMDB e por aí nós tivemos uma conspiração política, que interrompe as esperanças de que a ditadura cairia em função da luta popular.526

Deste pacto transado nasce, segundo o autor, um governo enfermo e que não teve seu

presidente eleito, segundo Florestan, para sorte do próprio Tancredo Neves: “ele faleceu antes

de ter que enfrentar essa composição que ele engendrou e nós nos vemos dentro de um regime

que se proclama democrático, mas que abriga em seu seio um dispositivo militar que toma

decisões capitais, inclusive sem máscaras, sem nenhuma mistificação ou ocultação”.527

Os meios de comunicação de massa, em especial a televisão, após anos de censura

imposta e de auto-censura, passaram, durante toda a ditadura e em especial no período da

abertura, a ocupar cada vez mais espaço nas tomadas de decisões políticas. O processo da

eleição de Tancredo Neves serve, para Florestan, como exemplo de que, através dos meios de

comunicação de massa, se desenvolve “uma farsa para legitimar a eleição através do colégio

eleitoral”, montando-se um “processo de campanha política paralela” que legitima “em

termos de atividade de massa uma candidatura que foi escolhida por meio escuros”.528

Não podemos perder de vistas que houve uma ampla ligação entre a ditadura militar e

a televisão; é durante a ditadura que se dissemina o aparelho de televisão por todo o país,

ajudando a garantir os discursos ufanistas através das Copas do mundo, como também haverá

uma relação muito próxima entre o governo militar e a Rede Globo que se torna a maior rede

televisiva do país, coincidentemente, durante os governos militares e de transição.529

Florestan pontuará esta participação dos meios de comunicação de massa como

componente explicativo, por exemplo, da grande movimentação que se criou no enterro de

Tancredo Neves – uma comoção “feita pelos meios de comunicação cultural de massas e

pelos partidos da Aliança Democrática” –, tentando demonstrar que não se tratava de uma

anuência popular efetiva à eleição do Colégio Eleitoral, mas sim de manipulação.

526 Ib., Palestra de Lançamento da Campanha de 1986 na Fundação Santo André. 527 Ibidem. 528 “E aí não está em jogo só a criança, o jovem; aí está em jogo uma grande massa de pessoas adultas que, às vezes, até aparecem chorando na televisão, comovidas com a própria comoção que o meio de comunicação de massa cria na pessoa. Agora, por que procuram esse caminho? Esse é um caminho de esmagamento do movimento libertador; é um meio pelo qual se pode neutralizar a atividade das classes trabalhadoras, pulverizar a consciência de classe e tornara classe uma massa conformista”. Ibidem. 529 Sobre a relação entre a Rede Globo e os militares ver o excepcional documentário da BBC de Londres, Roberto Marinho: muito além do cidadão Kane, título original: Beyond Citizen Kane, direção: Simon Hartog, Reino Unido, 1993.

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Num artigo intitulado Brasil e Estados Unidos: novas perspectivas, após demonstrar

que é ilusória a ideia de que as ações interestatais e mundiais de um presidente sejam ações de

plano pessoal – indicando que há por trás dos presidentes toda uma cúpula de “‘homens

representativos’ das elites, partidos e grupos de interesses ou ideológicos a que pertencem e

como chefes de governo e de Estados”; e bem medindo o alcance da influência pessoal

presidencial em escala muito menor do que aparenta – o autor lança a questão: “qual seria a

equação pessoal de um Ronald Reagan ou de um Tancredo Neves?”.530

Deixando de lado a descrição de Reagan – que lhe serve no artigo como contraste de

um presidente que “opera no topo de um sistema mundial de poder, que pratica a ‘global

reach’ numa escala organizada institucionalmente”, enquanto o outro operará um governo

satélite “mais ou menos dócil” –, Tancredo Neves encarnava, para Florestan, a representação

do pacto conservador; tendo, a seu ver, “uma margem de manobra e de liberdade política que

nenhum outro governo brasileiro desfrutou”,531 porém, tal margem de manobra, baseada em

compromissos de múltiplas direções, era, por esse mesmo motivo, limitadora, uma vez que

um passo em falso criaria “problemas políticos”.

Tancredo Neves havia participado marginalmente nas mobilizações pelas eleições

diretas, “seu ‘realismo’ político e sua tradição de político conciliador o haviam deixado à

margem de uma campanha que julgava impraticável, pela dificuldade de obtenção de 2/3 no

Congresso”. Após o Colégio Eleitoral dar uma ampla vitória à chapa Tancredo-Sarney,

O novo presidente formou seu ministério combinando políticos de oposição sistemática à ditadura (como Fernando Lira, no ministério da Justiça) com outros recém-saídos do regime militar (como Antonio Carlos Magalhães no ministério das Comunicações, uma forma de satisfazer à Rede Globo), setores empresariais (como Olavo Setúbal no ministério das Relações Exteriores) e tecnocratas neoliberais (como o sobrinho de Tancredo, Francisco Dornelles, no ministério da Fazenda).532

Em 28 de dezembro de 1985, a Folha de S. Paulo lançou a seguinte pergunta em seu

caderno Tendências e Debates: “Você acha possível a realização de um pacto social no

Brasil?”. Em defesa do “não” Florestan escreve o artigo: Quem paga o “pacto”, ressaltando,

como já o vinha fazendo em artigos anteriores, que no Brasil “a ideia de um pacto social

constitui uma obsessão política dos extratos mais conservadores da burguesia”.533 A burguesia

530 FERNANDES, Florestan. Brasil e Estados Unidos: novas perspectivas (1984). In: Ib., Democracia e desenvolvimento: a transformação da periferia e o capitalismo monopolista da Era Atual. São Paulo: Hucitec, 1994, p. 86. 531 Ibidem. 532 SADER, Emir. A transição no Brasil: da ditadura à democracia? São Paulo: Atual, 1990, pp. 41-42. 533 FERNANDES, Florestan. Quem paga o pacto (1985) In: Ib., Que tipo de República? São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 41.

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buscava, através do pacto, o que Tancredo Neves declarou na televisão: uma “rendição

pacífica”:

Trata-se de um “dá cá” sem um “toma lá” correspondente. Depois de verem-se esmagados sob o peso da miséria, de uma taxa impiedosa de exploração do trabalho, do desemprego maciço, da inflação galopante, da exportação líquida de riqueza, da mais desenfreada corrupção e da dilapidação da renda nacional etc., os trabalhadores são chamados para pagar a conta sob a forma de um “pacto social”.534

O novo presidente surgia como o homem certo para estar à testa de tal façanha;

tratava-se de “um político conservador, muito hábil, que soube tecer o caminho até o poder,

usando as armas que os adversários puseram ao alcance de suas mãos”.535 Mas, dentre as

qualidades pessoais interessantes para a burguesia, Florestan levanta a possibilidade de sua

grave doença ser a mais atrativa,536 pois seu eventual substituto seria José Sarney. Este único

fato ,”a escolha de Sarney para ser o eventual substituto já é, em si própria, uma escolha clara,

uma escolha que mostra que a figura para substituir o presidente era uma figura que não

merecia o respeito da Nação em termos de dignidade política”, uma vez que ele “havia

ocupado vários cargos sob a ditadura, tem uma biografia conhecida demais para que se possa

ter ilusões a seu respeito e merece o qualificativo que eu costumo aplicar à figura dele, que é o

de grão-vizir da ditadura”.

É justamente “o grão-vizir da ditadura” que se tornará “o presidente político da

transição e, portanto, o principal instrumento de colaboração do setor civil com o setor militar.

Era uma composição perfeita para que a transição caminhasse devagar”.537 Esta “continuidade

natural entre o atual governo [Sarney] e os governos anteriores” era, em termos históricos, o

“pior caminho”; pois retirava “do povo, da massa popular e das várias forças que se

organizaram ao longo desses vinte e um anos a capacidade de abrir para o Brasil uma saída de

imediato mais ampla”.538

Cria-se uma realidade dramática, “que resultou de um movimento extraordinário, um

dos movimentos mais belos na história do Brasil”: passa-se de um “alvo grandioso” para um

“resultado melancólico”, devido à “iniciativa das elites das classes dominantes”, que adotaram

534 Ibid., p. 41. 535 Ib., “Nova República” não passa de conspiração, diz Florestan (1986). In: Ib., Pensamento e ação: o PT e os rumos do socialismo. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 163. 536 Ib., A transição e as tarefas da classe operária (1987). In: Ib., Democracia e desenvolvimento: a transformação da periferia e o capitalismo monopolista da Era Atual. São Paulo: Hucitec, 1994, pp. 134-135. 537 FERNANDES, Florestan. A transição e as tarefas da classe operária (1987). In: Ib., Democracia e desenvolvimento: a transformação da periferia e o capitalismo monopolista da Era Atual. São Paulo: Hucitec, 1994, p. 135. 538 Ibid., p. 164.

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a palavra de ordem de que a transição democrática deveria ser feita de forma lenta, gradual e segura. Lenta – para que os interesses dos privilegiados pudessem se acomodar com as condições emergentes; gradual – para permitir que esses mesmos interesses pudessem redefinir suas relações com o sistema de poder em transformação e segura – segura para as classes possuidoras, para o capital nacional e estrangeiro, para a grande burguesia nacional e internacional.539

O pacto transado fechava, assim, a possibilidade de uma ruptura levada à frente via as

amplas manifestações que começaram a ser retomadas a partir das greves do ABC.

Formalizou o fim da “abertura democrática” e o nascimento da “nova República”, coroada

pela figura de José Sarney.

Não se tratava do “fim da história”, mas, do Pacto em diante há progressivamente uma

acomodação da radicalidade do processo que envolve as massas e para efetivar uma ruptura

com a “ordem ilegal”. A situação política “se alterou rapidamente para ajustar-se ao quadro

atual das relações e conflitos de classes (pois cessaram muitas interferências inibidoras e

“constrangimentos” paralisadores, impostos artificialmente pela ditadura)”.540 Dentro deste

quadro, o comportamento e estratégias das organizações, incluindo sindicatos e partidos,

arrastaram-se “com evidente timidez, como se os avanços realizados fossem automáticos e

não exigissem correções profundas de rotas preestabelecidas, eliminação de dogmatismos

esdrúxulos e ultrapassagem de técnicas superadas de atuação política”. Foi “somente a

extrema-direita” quem manteve aceso “o seu facho”, uma vez que conservou “muitas posições

vantajosas para tentar a reconquista do poder”. Este pacto político dá corpo a um quadro

confuso e anêmico

que consagrou o Colégio Eleitoral e a eleição indireta, contornando o movimento de sufrágio, que se configurava como um salto histórico viril, encampou o cronograma ditatorial da “transição lenta, gradual e segura” [...] no qual não se chega a dar um passo à frente e já se deu dois passos atrás.541

Para nosso autor, a sociedade civil ficou perplexa, uma vez que o alvo político que

almejavam as organizações e forças sociais – ou seja, a derrocada da ditadura – esfumou-se,

dificultando assim, os

ataques aos alvos construtivos de uma revolução democrática de forte conteúdo proletário e popular. Suas atividades preservam-se íntegras, porém se debilitam organicamente. As aparências de efervescência e de “turbulência” ocultam, na maioria dos casos, uma grave perda de eficácia e de impulso criativo.542

539 Ib., Palestra de Lançamento da Campanha de 1986 na Fundação Santo André. 540 Ib., Novas perspectivas (1985). In: Ib., Que tipo de República? São Paulo: Brasiliense, 1986. P. 64. 541 FERNANDES, Florestan. Novas perspectivas (1985). In: Ib., Que tipo de República? São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 65. 542 Ibidem.

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Ao realizar tal balanço, declara que “os marcos de referência da luta de classes e, por

conseguinte, da luta política se deslocaram substancialmente”.543 A nova quadra histórica traz

em seu bojo “as transformações silenciosas da estrutura da economia e da sociedade civil”;

entram em cena “novas forças sociais e novas exigências de luta política organizada”. O que

não significava a garantia de que as classes dominantes conseguiriam conduzir este novo

processo da forma que lhes apetecesse, mas era necessário que as “forças da esquerda” se

readequassem a este novo panorama “antes de manter compromissos dúplices, de fugir a

alianças de classes corretas ou de cultivar uma tradição pseudopopulista, a qual converte as

classes trabalhadoras do campo e das cidades em cauda política da burguesia”.544

Se até aquele momento “o regime ditatorial concedeu (sem o querer) amplo campo ao

florescimento e à eficácia do espontaneísmo, das ações improvisadas e mais ou menos

desordenadas pelas quais os de baixo abriram os espaços que foram conquistados”, o novo

momento que se inaugurava exigiria mais das organizações de esquerda. Naquele momento, a

burguesia voltava à cena com maior dinamismo

e uma capacidade de cooptação generalizada que são, em si mesmos, mais perigosos para o movimento sindical e proletário que as ameaças da extrema-direita, os rumores de um novo golpe, o imobilismo do governo, a traição do PMDB e do PFL ao “programa tancredista”, o envolvimento do presidente José Sarney e de outros políticos “liberais” na criação de um forte partido de centro-direita, etc.545

Cumpria, agora, que as “forças da esquerda” evitassem o que “os de cima” pretendiam

e estavam conseguindo fazer: “colocar na praça seu velho produto, a ‘democracia à

brasileira’”. Estava em jogo “vencer o ‘legalismo’, banir o aburguesamento do movimento

político do proletariado nas cidades e no campo”. Cumpria estabelecer uma democracia aos

“proletários e os humildes” que lhes garantissem “a liberdade maior de ser gente, de ter peso e

voz na sociedade civil, de exercer controles sociais diretos e indiretos sobre a composição e o

rendimento do Estado”.546

Ao contrário do que possa parecer, a posição de Florestan não nega que houve

avanços, mas afirma que tais avanços não ultrapassam “os limites que ele poderia ter atingido

543 “A ditadura ficou para trás; o ‘pacto conservador’ gerou seu fruto podre e deixou de ser um fator político central; os estratos dominantes das classes burguesas, incorporando-se neles o pólo interno e ‘nacional’ e o pólo externo e ‘imperial’, perderam as vantagens da estratégia de compressão e do comando político verticalizado, propiciados pela ditadura, e são compelidos a aceitar o rateio (naturalmente desigual) do poder político e a travar árduos combates pelo monopólio de certas posições cruciais de controle do Estado e do governo”. Ibidem. 544 Ibidem. 545 FERNANDES, Florestan. Novas perspectivas (1985). In: Ib., Que tipo de República? São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 66. 546 Ibid., p. 67.

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por outras vias, mais construtivas para uma verdadeira transformação democrática da

sociedade brasileira”.547

A ditadura, ao efetuar o golpe, havia unificado a burguesia, enquanto as pressões

populares, juntamente com a crise econômica provocada pelo fim do “milagre”, levaram à

quebra desta unidade. Ao realizar a estratégia de manipulação partidária, a ditadura se desloca

estrategicamente para uma retaguarda bastante saliente e arma, via pacto, uma recomposição

de forças. Esse recuo da ditadura foi um avanço para a esquerda, pois “um governo nascido de

uma composição de forças não tem as mesmas facilidades e autodeterminação que o regime

que resultava de uma ditadura militar”:

E o governo que resultou de uma eleição, ainda que seja uma eleição fechada, é um governo intrinsecamente débil porque ele tem de conquistar a sua legitimidade perante a Nação e os diferentes movimentos políticos. Ele tem que provar a sua capacidade de responder a pressões que não podem ser suprimidas pela força, esmagadas. Isso não implica deixar de reconhecer que as classes dominantes naturalmente possuem mais campo para atuar do que, por exemplo, a pequena burguesia ou os trabalhadores do campo e da cidade.548

Por outro lado, levando em conta os processos da classe trabalhadora durante o Estado

Novo – que criou “um padrão burguês de paz social” e “que instaurou o sindicalismo pelego,

ligado ao Estado” – e a ditadura de 1964 – na qual “as classes trabalhadoras foram privadas de

meios de auto-emancipação coletiva que pudessem organizar as suas lutas” – houve um

avanço concreto da perspectiva da esquerda durante os últimos anos, principalmente no que

diz respeito à “renovação que se deu no movimento sindical” e à “tentativa de criar

mecanismos capazes de unificar a ação dos sindicatos”.549 O problema é que, apesar desse

considerável avanço da classe trabalhadora ser considerável, “ele desemboca no vazio porque

neste momento as classes dominantes podem ocupar todo o seu quadro de dominação

institucional e as classes trabalhadoras possuem ainda meios fracos de auto-afirmação”.550

O fato é que, ao levar a transição do regime para a via parlamentar, as classes

burguesas levam muitas vantagens relativas: “quer dizer, os meios de auto-emancipação da

classe trabalhadora têm de ser criados agora, nestas condições”. Frente a isso, as classes

burguesas ficam inseguras, mas possuem a sombra dos militares para casos de urgência e o

problema principal que se desenha é que, “por sua vez, as classes trabalhadoras não estão

547 Ib., “Nova República” não passa de conspiração, diz Florestan (1986). In: Ib., Pensamento e ação: o PT e os rumos do socialismo. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 164. 548 Ib., O solo da história de um partido (1985). In: Ib., Que tipo de República? São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 93. 549 FERNANDES, Florestan. O solo da história de um partido (1985). In: Ib., Que tipo de República? São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 68. 550 Ibid., p. 94.

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avançando com ritmos muito intensos, em uma velocidade compatível com as exigências da

situação. É uma velocidade pequena em relação ao seu potencial exatamente pela carência de

instrumentos institucionais”.551

Sob a ditadura, os partidos de identidade operária estavam com seus campos de ação

limitados e, em muitos casos, – por exemplo, no caso do PCB e do PC do B – “mais

preocupados com a conquista da legalidade e ainda presos a um esquema, por causa deste

objetivo, de colaboração de classes”.

Por sua vez, o PT não define claramente qual é o eixo principal de sua esfera política, qual é o socialismo do PT. Existem várias correntes – comunidades de base, sindicalistas, grupos de extrema-esquerda – e não há uma definição clara de qual é o tipo de socialismo pelo qual luta o PT. Então, no conjunto, nós temos uma situação em que os meios organizativos de luta estão abaixo dos problemas com que se defronta a classe trabalhadora.552

O desdobramento político que a situação de então, com o surgimento de outros

partidos e a luta entre eles, poderia favorecer o fortalecimento da classe proletária; assim,

“estes partidos têm de atentar agora para a natureza da situação: o que eles devem fazer não

segundo a estratégia do poder burguês mas a partir de uma perspectiva proletária”. A previsão

do autor era de que a “competição partidária” iria “naturalmente compelir estes partidos a

uma proletarização de seu horizonte político, vai obrigá-los a se desprenderem ou de uma

visão de cauda política da burguesia ou então de uma versão empobrecida de social-

democracia”.553

551 Ibidem. 552 Ibid., p. 95. 553 FERNANDES, Florestan. O solo da história de um partido (1985). In: Ib., Que tipo de República? São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 95.

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4. A REFORMA DA REVOLUÇÃO E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA LUTA

Agora, o intelectual não escolhe nem o país no qual ele nasce, nem o proletariado a quem ele pretende servir. O proletariado pode ser mais ou menos forte... Até hoje, o que se pode dizer é que os partidos, ou fizeram mau uso dos intelectuais ou os intelectuais foram fetiches dos partidos. (Florestan Fernandes, Um intelectual a serviço da classe trabalhadora, 1986)

4.1 A adesão ao PT

A adesão de Florestan Fernandes ao PT marca claramente um novo momento e uma

nova forma da luta social no país. Para o autor, tratou-se da forma que lhe restou para

continuar ativamente vinculado a luta pela ruptura com as estruturas de origem colonial que

persistiam.

É comum ouvirmos falar que Florestan Fernandes participou da fundação do Partido

dos Trabalhadores; uma afirmação infundada que, provavelmente, se deve ao fato do partido

ter, desde sua fundação, notáveis intelectuais e ao fato do nome de Florestan estar atrelado ao

partido em seus últimos 8 anos de vida. Na verdade, Florestan só ingressou no PT em 1986;

enquanto a ideação do PT data de 1978, ganhando corpo substancial em 1979, sendo fundado

oficialmente, no Colégio Sion, no dia 10 de fevereiro de 1980.554

Fruto de um dos movimentos mais autênticos da classe trabalhadora no Brasil – as

greves entre 1978 e 1980, irrompidas no ABC paulista – o partido nasce da compreensão de

que a classe trabalhadora necessitava de uma representação política efetiva, como vemos no

manifesto de fundação de 1980:

O Partido dos Trabalhadores nasce da vontade de independência política dos trabalhadores, já cansados de servir de massa de manobra para os políticos e os partidos comprometidos com a manutenção da atual ordem econômica, social e política. Nasce, portanto da vontade de emancipação das massas populares. [...] Os trabalhadores querem se organizar como força política autônoma. O PT pretende ser uma expressão política de todos os explorados pelo sistema capitalista. Somos um Partido dos Trabalhadores, não um partido para iludir trabalhadores.555

554 Ver GADOTTI, Moacir; PEREIRA, Otaviano. Pra que PT: origem projeto e consolidação do partido dos trabalhadores. São Paulo: Cortez, 1989. 555 Manifesto elaborado na fundação oficial do PT. In: GADOTTI, Moacir; PEREIRA, Otaviano. Op. Cit., p. 54.

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O discurso acima, em vários sentidos, parece atender às expectativas de Florestan, ao

se colocar numa perspectiva “anti-populista”, já que o PT pretendia ser uma expressão

política da classe trabalhadora sem a subserviência de outros partidos à classes dominantes.

O PT, em sua origem, conta pelo menos com duas instituições que adquirem uma

extensão razoável: as Comunidades Eclesiais de Base (CEB) e o Sindicato dos Metalúrgicos

de São Bernardo do Campo e Diadema, além de grupos intermediários e pequenas iniciativas

cotidianas que em grande medida foram incentivadas por estas instituições. Houve também a

participação importante de intelectuais da esquerda que estiveram presentes em todo o

processo de constituição do partido.

Uma leitura bastante corrente é a de que estes três elementos de grande importância

para a formação do PT foram reelaborados através de crises de suas configurações anteriores,

assim, as CEB nasceram de uma crise da Igreja que, como resultado, volta-se às necessidades

das populações carentes; como crítica ao sindicalismo pelego, na época encarnado na figura

de Joaquinzão, nasce o “novo sindicato”, primeiro alcançando pequenas melhorias e depois

atingindo uma grande proporção e legitimidade após ficar provada a manipulação por parte do

governo dos índices inflacionários para o reajuste salarial, podendo avançar no sentido das

greves ilegais, porém justas; e, no caso da esquerda, esta renasceria menos voltada às

formulações externas do partido e mais ligada, ainda que por intelectuais “desligados”, à

prática cotidiana de grupos e segmentos – após os massacres sofridos pela ditadura e pela

crise do comunismo em nível mundial.556

Visivelmente, os sindicalistas acabam tomando a frente do processo, mas contando

com toda esta situação de fermentação social que envolve a parte mais progressista da Igreja e

intelectuais de esquerda. Assim, partindo da mobilização dos trabalhadores, iniciada de forma

estritamente jurídica – evitando uma identificação política, para não serem tratados como

“subversivos” pela ditadura –, alcançaram conquistas concretas e de potencialidades

revolucionárias ao questionarem o arrocho salarial praticado pela política econômica da

ditadura militar, ou seja, questionam o coração do sistema em um momento de crise.

Dadas as novas circunstâncias, um grupo liderado por sindicalistas põe em marcha a

criação de um instrumento político “novo” que pudesse cumprir uma função que, segundo

eles, não caberia mais ao sindicato:

O sindicalismo é a ferramenta adequada para melhorar as relações entre o capital e o trabalho. Mas não queremos só isso. Não queremos apenas melhorar as condições do trabalhador explorado

556 SADER, Eder. Op. Cit.

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pelo capitalista. Queremos que os trabalhadores sejam donos dos meios de produção e dos frutos de seu trabalho. E isso só se consegue com a política. O partido é a ferramenta que nos permitirá atuar e transformar o poder neste país. Em nossa luta, a atividade partidária deve completar a sindical, sem que uma queira substituir ou excluir a outra.557

A radicalidade do discurso de Lula havia sido observada por Florestan, em 1978, ao

descrever que a burguesia via o sindicalista, em um primeiro momento, como “operário

realista”, mas que, ao descobrir “qual era a lógica política da orientação do Lula, [muda] de

opinião”: “Pudera! Ele não correspondia à imagem do ‘operário cordial’ e sabia como tocar a

autonomia do movimento sindical para frente”.558

Em 1981, Florestan apontava quão pouco desenvolvido estava o movimento político

da classe operária:

a primeira fase de desenvolvimento do proletariado ainda não se esgotou, a tal ponto que tanto os sindicatos quanto os partidos que se dizem de esquerda e até comunistas não estão lutando pelo desenvolvimento independente de classe. Quer dizer, ainda estão lutando pela autonomia do sindicato, ou pela existência pura e simples, física, do partido. Por aí a gente vê o descompasso que está havendo. Essa fase ainda não amadureceu, mas ela é bastante nítida e mostra que os proletários não querem mais ser cauda, aquela fase incipiente em que são instrumentos da burguesia, em que lutam através da burguesia, isso tudo já é fenômeno do passado.559

Não obstante, os operários brasileiros ainda não estariam “preparados para um

processo muito rápido” e toda uma fase inicial ainda tinha que ser construída para, em

seguida, “organizar para a segunda fase, que é dura, uma fase de luta, de confronto contra a

supremacia burguesa em termos de uma tecnologia atual, de um capitalismo mundial”.560

Estes proletariados que vão consubstanciando o PT são fruto do desenvolvimento do

capitalismo monopolista; trata-se de um novo tipo de classe operária, “um setor de ponta da

classe operária que se joga numa posição mais audaciosa, mais avançada, e que começa a se

preocupar com reduzir pelo menos o despotismo da burguesia, em conquistar o espaço para se

manifestar de uma maneira livre e autônoma, em nível de fábrica, em nível de bairro, em nível

de cidadão”.561

557 SILVA, Luis Inácio Lula. Discurso na 1ª Convenção Nacional. In: GADOTTI, Moacir; PEREIRA, Otaviano. Op. Cit., São Paulo: Cortez, 1989, P. 65. 558 “Outros líderes sindicais da mesma qualidade ou envergadura não são mais um mito. Por quê? Uma burguesia que se alia ao imperialismo e divide com ele o poder de seu Estado nacional não faz alianças de classe com o proletariado e tampouco absorve suas pressões radicais”. FERNANDES, Florestan. Movimento socialista e partidos políticos. São Paulo: Hucitec, 1980, pp. 66-67. 559 Ib., Florestan Fernandes, história e histórias (1980). In: COHN, Amelia (org.) Op. Cit., p. 141. 560 Ibid., pp. 142-143. 561 Ibid., p. 143.

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Em 1981, Florestan considera que não havia um partido radical no qual ele pudesse

ingressar; em verdade, lamenta o fato de o Partido Comunista, mesmo depois “dessa

experiência dramática que nós tivemos, com essa ditadura prolongada”, não tomar o que ele

considerava o “caminho correto” e, em relação aos outros partidos, conclui: “chamar de

comunistas outros partidos que não são sequer já reformistas, no sentido em que foram

reformistas os partidos socialistas da Segunda Internacional até a Primeira Grande Guerra, é

terrível, não tem conteúdo”. Não mencionando diretamente o PT, mas pela situação histórica

e pelo acompanhamento que tinha do movimento operário, podemos concluir que o PT, no

mínimo, compõe este grupo de outros partidos no quais ele não poderia entrar: “porque aí eu

fico desajustado e crio problemas e sou condenado a ficar como um intelectual gravitante,

como se eu fosse um incoerente ou negligente ou alienado”:

Me aflige muito porque se eu tivesse um partido eu podia ser muito produtivo como intelectual do partido, eu me disciplinaria para trabalhar dentro do partido, tenho qualidades para isso. No entanto, nós formamos intelectuais que poderiam ser orgânicos em outras direções e estão soltos no espaço. Eu me sinto muito mal, quer dizer, eu pago um preço psicológico terrivelmente duro. E isso é anulação política. Eu não posso criar a história do meu país, eu posso quando muito participar dela.562

Já vimos no capítulo anterior que Florestan via o PT como uma possibilidade para a

classe trabalhadora, mas que este ainda se apresentava como um partido ambíguo. Referindo-

se, uma década mais tarde, o motivo de não ter entrado no PT desde o início, Florestan

exprime o que lhe “assustava” no partido:

Desde o início, senti uma grande simpatia pelo PT. Mas, ao mesmo tempo, tinha medo de entrar para o partido, porque o arco que ia desde movimentos de comunidades de base sem conotação política, de caráter humanitário, passando por um núcleo social-democrático que tinha servido e serve para fortalecer a reforma do capitalismo, até socialistas democráticos e comunistas e socialistas revolucionários, esse imenso arco me assustava.563

Se observarmos a trajetória política de Florestan, veremos que, ao longo de sua vida,

ele manteve uma atividade política partidária apenas durante o período que vai de 1943 até

mais ou menos 1953, período que os especialistas consideram como de sua formação.

Manteve, assim, uma atividade como “militante do Partido Socialista Revolucionário na

célula a que pertenciam o Sacchetta, Rocha Barros, Plínio Gomes de Mello, Vítor de Azevedo

562 FERNANDES, Florestan. Florestan Fernandes, história e histórias (1980). In: COHN, Amélia (org.) Encontros: Florestan Fernandes. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008, pp. 146-147. 563 Ib., Memória: Entrevista – Florestan Fernandes. Teoria e Debate. N. 13, 1991. Versão eletrônica: < http://www.fpabramo.org.br/o-que-fazemos/editora/teoria-e-debate/edicoes-anteriores/memoria-entrevista-florestan-fernandes>.

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e José Stacchini” –564 participação política que, ao que parece, teve como maior feito um

trabalho de talhe acadêmico: escreveu a Introdução de Contribuição à crítica da economia

política de Karl Marx e o traduziu.

Com a filiação ao PSR, seção brasileira da IV Internacional, minha militância se tornou sistemática. Nessa época, fiz a tradução da Crítica da economia política, de Marx. O livro saiu em 1946. Eu estudava alemão, mas não sabia o suficiente para traduzir. Então, usei uma edição em inglês, emprestada pelo advogado Alberto da Rocha Barros. Havia uma outra edição espanhola, boa, e uma edição francesa. A pior era a francesa, a melhor era a espanhola. A minha tradução é montada sobre os três textos. Eu cometi alguns erros porque, como eu estudava ciências sociais, usei a terminologia sociológica para alguns conceitos marxistas.565

Será esta a experiência político-partidária que ele reiteradamente apresentará em seu

currículo e, mesmo assim, entra no Partido dos Trabalhadores não com o objetivo de associar-

se como “militante de carteirinha”, mas como candidato a deputado federal constituinte. Suas

contingências são explicitadas desde o início: “Não sou político profissional, portanto não sei

fazer campanha política. Não tenho recursos para financiar uma campanha. Também estou

recém-saído do hospital e a campanha vai ser muito desgastante para mim”.566

A incorporação de Florestan ao partido ocorreu devido a uma soma de fatores –

incluindo o fato de sofrer pressões para que ele aderisse vindas de várias partes –, ao relatar,

por exemplo, seu primeiro contato com Lula, em uma reunião no Sindicato dos Metalúrgicos,

descreve um encontro de altos e baixos, chegando a “um momento em que ele [Lula] quis

usar a superioridade natural do operário diante do intelectual marxista, e perguntou: ‘Bom,

afinal, você é nosso aliado ou inimigo?’”. Florestan não se intimida:

Isso não pega comigo, porque eu tenho origem inferior à sua. Comecei a trabalhar com 6 anos. Para mim, um operário tanto pode aderir a um movimento fascista como a um movimento socialista, ou ficar indiferente. Eu não sou obrerista e não me ajoelho diante do deus operário. Para eu entrar no PT, quero que ele defina seu programa, esclarecendo melhor quais as opções que envolvem a sua presença como núcleo político da classe trabalhadora.567

Após a reunião, o sociólogo passa ao status de contribuinte e simpatizante do partido,

mas, ainda assim, continuou sofrendo “uma forte pressão dos estudantes que achavam que

564 FERNANDES, Florestan. Memória: Entrevista – Florestan Fernandes. Teoria e Debate. N. 13, 1991. Versão eletrônica: < http://www.fpabramo.org.br/o-que-fazemos/editora/teoria-e-debate/edicoes-anteriores/memoria-entrevista-florestan-fernandes>. 565 Ibidem. 566 Ibidem. 567 Ibidem.

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havia uma incongruência entre a minha posição política anterior e o fato de eu não ser

militante do PT. Eu respondia que podia servir o PT dentro ou fora dele”.568

Um dos fatos determinantes que estreitou a relação de Florestan Fernandes com o

partido foi o seu papel de publicista – desempenhado com periodicidade, a partir de 1983 –,

uma vez que “no Brasil inteiro havia petistas lendo os artigos, se comunicando comigo, me

aplaudindo e me entusiasmando”, ou seja,

Os laços foram se estreitando e eu fui sendo empurrado para o PT por essas pressões morais. O Antonio Candido,569 que é uma pessoa a qual eu dedico uma amizade profunda, uma espécie de irmão, pertencia ao PT. Vários dos meus amigos e pessoas que eu admirava pertenciam ao PT.570

O trabalho de publicista ampliara a visibilidade sobre Florestan, dando-lhe um

reconhecimento maior que o papel de professor lhe proporcionava, e, segundo afirma Eliane

Veras Soares, tal reconhecimento ia de encontro a uma estratégia escolhida pelo PT, que era

“a escolha de ‘notáveis’ para concorrer no pleito eleitoral de 1986. Foi dentro desse espírito,

que o nome de Florestan Fernandes surgiu como indicação das bases do PT”.571

As explicações de Florestan sobre sua filiação ao partido, além deste aspecto afetivo e

moral, desdobram-se também através do entendimento de que o PT era potencialmente e

“naturalmente” um partido socialista devido a suas origens, já que o Partido dos

Trabalhadores “não saiu de dentro dos dois grandes partidos da ordem, que garantiam a

‘visibilidade democrática’ do regime ditatorial, para uso externo”:

Além disso, o PT desfraldou a bandeira vermelha daqueles que haviam sido privados do direito de greve e que eram estigmatizados como inimigos públicos, os operários. Suas fronteiras sociais eram amplas, pois iam dos quadros operários e sindicalistas aos estudantes, intelectuais radicais e setores mais irados da pequena burguesia e das “classes médias tradicionais”. Contudo, ali estava de novo o perigo vermelho, o vulcão que poderia ameaçar a ordem e lançar nas ruas as paixões incontroláveis da revolução proletária.572

Florestan afirma ainda ter chegado à conclusão de “que na América Latina a fraqueza

das classes subalternas acaba criando a necessidade de partidos que são frentes ideológicas e

568 FERNANDES, Florestan. Memória: Entrevista – Florestan Fernandes. Teoria e Debate. N. 13, 1991. Versão eletrônica: < http://www.fpabramo.org.br/o-que-fazemos/editora/teoria-e-debate/edicoes-anteriores/memoria-entrevista-florestan-fernandes>. 569 “Todo mundo queria o Florestan. O Prestes queria o Florestan, o Lula queria o Florestan, quem não quer um homem como Florestan?” CANDIDO, Antonio apud SOARES, Eliane Veras. Op. Cit., p. 95. 570 FERNANDES, Florestan. Memória: Entrevista – Florestan Fernandes. Teoria e Debate. N. 13, 1991. Versão eletrônica: < http://www.fpabramo.org.br/o-que-fazemos/editora/teoria-e-debate/edicoes-anteriores/memoria-entrevista-florestan-fernandes>. 571 SOARES, Eliane Veras. Op. Cit., p. 94. 572 FERNANDES, Florestan. O cerco ao PT (1986). In: Ib., A constituição inacabada: Vias Históricas e Significado Político. São Paulo: Estação Liberdade, 1989, p. 37.

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políticas que unem tendências diferentes”.573 Por isso, mesmo sabendo da corrente interna que

denomina “social-democracia reformista” opta por entrar no partido, imaginando que se

fortaleceria a identificação socialista-marxista como única saída que garantiria ao PT

autêntica representatividade das classes trabalhadoras. Para ele, “no momento em que o PT

renegar a sua função de servir de espinha dorsal à luta política dos trabalhadores, deixando de

ser um partido de revolução contra a ordem, ele deixará de ter importância para a instauração

da democracia com igualdade social no Brasil”.574

Esta posição fica clara ao acompanharmos como o autor resgata a formação do

partido: o “PT veio à luz em um momento no qual o edifício da ‘paz burguesa’, montado pelo

Estado Novo, estilhaçava-se”,575 ou seja, o partido representava a ruptura com um modelo

sindical-partidário de conciliação de classes promovido a partir do governo Vargas,

principalmente sob o Estado Novo.576

As greves que nasceram no ABC paulista tratavam de romper com a lógica ditatorial,

o que era o mesmo que “romper com a burguesia reacionária e imperialista”, deixava-se de

lado o sindicalismo pelego, agravavam-se as tensões e assumia-se os riscos, de forma que

“clareou-se o cenário histórico: chegara a hora decisiva de fundar um partido que pudesse

reunir os dissidentes, somando todas as forças e ideologias – vindas do passado recente ou

nascidas do presente – que estivessem voltadas para a formação de um arco operário

orgânico”.577

Na análise florestaniana, o legado mais avançado do PT prende-se ao comunismo que

se espraiou desde os anos de 1920 – “embora certas peripécias da Revolução Russa (e de

outras revoluções posteriores) e a evolução da social-democracia na Europa tenham ampliado

a herança”578 – bem como “o desenvolvimento interno do socialismo, do comunismo e da

guerrilha”, que “amadureceram sobremaneira a esquerda brasileira, de 1945 em diante e, em

particular, depois do governo Goulart e da ditadura militar”.579

573 FERNANDES, Florestan. Memória: Entrevista – Florestan Fernandes. Teoria e Debate. N. 13, 1991. Versão eletrônica: < http://www.fpabramo.org.br/o-que-fazemos/editora/teoria-e-debate/edicoes-anteriores/memoria-entrevista-florestan-fernandes>. 574 Ibidem. 575 Ib., O PT em movimento: contribuição ao I Congresso do Partido dos Trabalhadores. São Paulo: Autores Associados, 1991, p. 39. 576 “o PT procede das profundezas do modo de produção capitalista oligopolista, em seu primeiro pico de crescimento e sob a industrialização maciça que ele propiciou. Ele sucedeu às antigas lutas econômicas e políticas sindicais, e vinculou-se a um “novo sindicalismo”, que tinha seus alicerces dentro das fábricas (e, em alguns casos, das plantações) e das comissões formadas para combater e derrotar a repressão”. Ibid., p. 40. 577 Ibid., p. 41. 578 Ibidem. 579 FERNANDES, Florestan. O PT em movimento: contribuição ao I Congresso do Partido dos Trabalhadores. São Paulo: Autores Associados, 1991, p. 41.

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Soma-se a este panorama, de forma fermentativa, as análises sobre o capitalismo

dependente e o imperialismo, entre outras análises amplamente difundidas, dentro e fora da

academia: análises que “comoveram todas as consciências críticas e abalaram o movimento

sindical, os estudantes, os intelectuais radicais e até círculos teológicos libertários da Igreja

Católica”. Tais discussões chegaram a um clímax político com a irrupção das guerrilhas nos

anos 60/70. “Portanto, o debate se estendia do confronto público de posições e ideias e se

prolongava graças aos textos doutrinários, que davam fundamento teórico ao recurso à

subversão armada”.580

Pouco antes de sua filiação, saiu no jornal Folha de S. Paulo uma notícia de que

Florestan havia pedido a Lula para se filiar ao PT, o que “causou espécie não só em mim, mas

também em meus amigos que sabiam que eu não seria capaz de fazer uma coisa dessas”, ou

seja, não seria capaz de armar um mise-en-scène para tomar tal decisão.581 No dia seguinte à

publicação, José Dirceu telefonou a Florestan dizendo que aquilo não era nenhuma

provocação do PT, o que havia ocorrido é que:

meu nome [Florestan Fernandes] apareceu na indicação de alguns diretórios como um candidato que os diretórios gostariam de ter, e que o partido, portanto, me perguntava se eu aceitava entrar para o PT e seu aceitava concorrer a deputado pelo PT. Marcamos um encontro no PT, meu filho foi a minha testemunha ocular de tudo que aconteceu e eu perguntei ao Lula: O que o PT tem a me oferecer, já que o PT toma a iniciativa de me oferecerem uma candidatura? E ele disse: “o partido não oferece nada, o partido não tem nada a oferecer, ao contrário, todos os candidatos a deputado tem que contribuir na sua coleta com 30% para os candidatos majoritários”. Aí eu achei que um partido que não me dava nada e ainda exigia de mim outras coisas era um partido no qual eu podia entrar com segurança.582

Soma-se a todos estes pontos levantados um evento histórico importante, que leva

Florestan a “não poder rejeitar” o apelo que lhe foi feito para entrar no partido: o fato de que

“o PT estava sob um processo de pressão, tentavam criar condições artificiais para jogá-lo na

ilegalidade – o partido era responsabilizado por um assalto a um banco em Salvador e por

mortes na greve de Leme”.583 Ou seja, para o sociólogo, o partido era ainda um perigo

iminente à ditadura e cumpria corroborar para o seu desenvolvimento.

580 Ibidem. 581 Ib., Palestra de Lançamento da Campanha de 1986 na Fundação Santo André. 582 Ibidem. 583 FLORESTAN, Fernandes. A maioria não está na constituinte (1987). In: Ib., Democracia e desenvolvimento: a transformação da periferia e o capitalismo monopolista da Era Atual. São Paulo: Hucitec, 1994, p. 131.

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Dentro de um quadro de ofensiva das classes dominantes em pleno vigor e que acabara

de reverter toda a luta política de grandes esperanças para a esquerda em um jogo palaciano,

Florestan entra no PT como uma forma de manter-se na luta:

Fiquei aguardando um partido revolucionário. E o PT, quando surgiu, era ambíguo. Como homem político sempre fiquei firmemente na esquerda. Colaborei com movimentos reformistas porque eram os únicos que surgiam. Mas durante toda a minha vida eu esperei um partido revolucionário para me engajar, e esse partido não veio. Com 66 anos ou faço o que posso ou não farei nada. Estou no PT desde maio de 1986, numa tentativa de demonstrar minha coerência, lealdade para com o movimento proletário socialista. Se falhar, falharei com boas intenções.584

4.2 A campanha para o pleito de 1986

Em grande medida, a possibilidade de participar da campanha de 1986 para deputado

federal constituinte é também um dos motivos para a entrada do sociólogo no PT; isto fica

claro em vários discursos de Florestan que vinculam o interesse do sociólogo em participar da

Assembleia Nacional Constituinte. Como vimos, há uma série de outros elementos que

compõem a decisão final de Florestan, mas nos parece que este é um dos pontos definitivos.

Dois documentos inéditos contribuem para analisarmos sua entrada no PT, as funções

que pretende exercer em sua campanha eleitoral e quais eram suas perspectivas se eleito a

deputado federal. O primeiro documento é uma gravação em cassete encontrada no escritório

de Florestan e que também faz parte do Acervo Especial Florestan Fernandes. Trata-se da

gravação do lançamento da campanha em sua casa, em uma conversa com seus futuros

colaboradores da campanha. O segundo documento é também um discurso do lançamento da

campanha, mas agora no ABC paulista, para o público de universitários da Fundação Santo

André que foi registrado em vídeo e disponibilizado pelo professor Antonio Rago Filho como

parte de seu acervo pessoal.

Em ambos os documentos, é feita uma contextualização histórica na qual o autor

insere seu ingresso no PT e aponta seus objetivos ao se candidatar ao pleito eleitoral,

revelando sua compreensão de como o governo buscava manietar o processo político da

transição. A tática mais geral que o sistema utilizou, no caso da constituinte, foi rejeitar o

caráter de uma Assembleia exclusiva: “nós estamos sobre um regime que se proclama de

584 Ibidem.

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transição democrática, mas que na verdade fechou o processo político impedindo que a

convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte exclusiva fosse feita”.585

Assim, Florestan resume, em poucas palavras, todo o processo de articulação da

burguesia que estabelecia um grande ciclo de prolongamento da transição:

nós estamos dentro do ciclo que se inaugurou com os generais e que atingiu o apogeu quando o general Geisel e o general Figueiredo elaboraram a tática da transição lenta, gradual e segura. Essa transição lenta, gradual e segura requeria apoio firme no setor político e exigiu uma aliança precária, mas que funcionou, entre o PMDB e pessoas que estavam trabalhando como principais artífices da ditadura. Que foi a conspiração que levou a eleição de Tancredo Neves, [que] todos nós conhecemos. Essa articulação permitiu o surgimento desse governo, esse governo é um governo que está profundamente comprometido com o setor militar e que não avança nenhum milímetro sem uma afinação com esse setor militar.586

É justamente o setor militar, para Florestan, que impediu a possibilidade de realização

de uma Assembleia Nacional Constituinte exclusiva, ou seja, a Assembleia Nacional

Constituinte que permitiria que pessoas que não tivesse carreira política pudessem participar

da elaboração da carta. Com essa medida, forma-se o que o sociólogo chamou de “arco do

triunfo”, pois até ali a burguesia tinha triunfado em todas suas frentes: seja transferindo todas

as suas perdas econômicas para a classe trabalhadora, seja conduzindo e enfrentado os

problemas políticos sempre a favor de sua composição de poder. Ao preterir a Assembleia

Nacional Constituinte exclusiva em favor de um Congresso Constituinte, a burguesia ganha

novamente ao garantir maior estabilidade política; basta “dizer que qualquer candidato para

chegar ao Congresso Constituinte tem de ser recrutado por partidos”: “Portanto há uma

garantia de segurança política, de estabilidade política. Os partidos são predominantemente

partidos da ordem, o PMDB, o PDS, o PFL, o PTB e vários outros partidos menores

chamados partidos de aluguel, todos eles tem uma configuração semelhante e propósitos

altamente conservadores”.587

Enquanto isso, os partidos de esquerda – como PCB e PCdoB –, que estariam

comprometidos com uma “Constituição radical”, teriam que “manobrar dentro de uma área de

acomodações”, mas

Ainda assim são os principais aliados que o PT poderá ter na Assembleia Constituinte, na elaboração de uma Carta Constitucional em novo estilo. De outro lado, o PDT, que é um

585 FLORESTAN, Fernandes. Fita 4 / Título: Análise da Conjuntura / Data: 25.05.86. Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes. 586 Ib., A maioria não está na constituinte (1987). In: Ib., Democracia e desenvolvimento: a transformação da periferia e o capitalismo monopolista da Era Atual. São Paulo: Hucitec, 1994, p. 131. 587 Ibidem.

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partido com várias máscaras, porque ele possui em cada região do país uma vinculação política ocasional distinta, mas que substantivamente é um partido progressista e de outro lado vinculado a um populismo que não pode se desenraizar de um enlace populista.588

Além disso, começa a se desenhar um quadro no qual “a organização das forças

conservadoras que de uma maneira aberta começou a recrutar os seus quadros com uma

grande virulência”:

Hoje nós temos organizações políticas muito parecidas com aquelas que operaram em 64 e que transformaram a questão eleitoral e o processo eleitoral num mercado econômico. Então, só os partidos radicais da esquerda do PCB, do PCdoB, do PDT ao PT são capazes de oferecer um contra peso e uma resistência a um Congresso que vai ser visceralmente conservador, a massa dos representantes vão ser escolhidas a dedo. E isso de Norte a Sul do Brasil, as notícias vieram de toda a parte, houve uma grande movimentação política nessa direção que é inquestionável.589

Florestan havia desanimado e pensava em desistir de participar como constituinte após

o impedimento da Assembleia Nacional Constituinte exclusiva; mas ao analisar a conjuntura

na qual a direita se articulava, criando instituições como a “organização que se chama União

Democrática Ruralista” e intensificando o ataque direto ao PT, o sociólogo resolve participar

como candidato petista: “Eu achei que devia, que era meu dever concorrer”. Pois, apesar da

esquerda590 estar em grande desvantagem:

São essas forças que nesse Congresso podem fazer alguma coisa, se tiverem o bom senso político de fazer uma, não digo uma unificação à esquerda, mas pelo menos certas convergências, certas alianças táticas, no sentido de render objetivos comuns. A questão não está em chegar a uma constituição ideal, a uma constituição socialista, mas está em impedir o pior e em manter dentro de uma constituição altamente conservadora, medidas que defendam os interesses dos trabalhadores, que defendam os posseiros, os índios, enfim, diferentes categorias da nossa população.591

A atuação de Florestan na Constituinte se apresenta com grandes limitações ao se

configurar não uma autêntica “Assembleia Nacional”, mas como um Congresso Constituinte,

assim sua esperança era de ao menos “apanhar a hipocrisia das classes dominantes em um

alçapão, tentando formalizar certas medidas que garantiriam certas inovações de grande

interesse político para as classes oprimidas”.

588 FERNANDES, Florestan. Fita 4 / Título: Análise da Conjuntura / Data: 25.05.86. Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes. 589 Ibidem. 590 Trata-se dos partidos: PCB, PCdoB, PDT e PT. 591 Ibidem.

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Em contraposição à movimentação da direita, via como possíveis aliados algumas

instituições civis, como a OAB e o setor libertário da Igreja e, principalmente, contava com

“as próprias classes trabalhadoras na cidade e no campo” que, segundo ele, tinha avançado

muito “em termos não só da passagem da luta defensiva para a luta ofensiva, como também

em termos de capacidade de levar a luta política a um nível mais alto do que ela já esteve

antes”.592

O grande esforço que realizaria, levando em consideração a dificuldade de uma

candidatura feita sem muitos recursos, com a idade de 66 anos e com a saúde debilitada, se

tornava válido devido ao significado específico do próprio processo de campanha eleitoral.

Se eu serei eleito deputado federal é algo do qual eu duvido porque é muito difícil que um professor universitário possa conseguir sem meios econômicos, sem uma infra-estrutura política organizada, sem experiência política de caráter legal – eu tive experiência política subversiva durante a vigência do Estado Novo. Quer dizer eu não tenho nenhuma das condições para ser um candidato vitorioso, e ainda por cima eu só posso me dedicar à campanha de uma forma parcial.593

Assim, como afirma Eliane Veras Soares, Florestan “encarou a campanha política e o

processo eleitoral como um processo político no qual o objetivo central não era a mera eleição

do candidato, mas, principalmente, a socialização do jovem, a formação da consciência crítica

do trabalhador e a identidade socialista”,594 lutando ao mesmo tempo para irradiar no PT o

pensamento socialista revolucionário e neste sentido defendia que o partido deveria ter como

objetivo a construção socialista e o desenvolvimento da consciência de classe.

Durante a campanha, deu palestras discutindo as origens dos problemas que estariam

em jogo no futuro Congresso Constituinte, assim como as origens e os desafios do PT e da

classe trabalhadora. Para arrecadar dinheiro, vendia seus livros, que conseguia nas editoras

por preços mais baratos, e fazia festas.595 Tentava demonstrar, assim, que era possível

permanecer “firmemente proletário no seu socialismo”, ao invés de “dar um ar muito

civilizado às pretensões das classes trabalhadoras, suavizar o impacto daquilo que é

fundamental a elas”.596

592 FERNANDES, Florestan. Palestra de Lançamento da Campanha de 1986 na Fundação Santo André. 593 Ibidem. 594 SOARES, Eliane Veras. Op. Cit., p. 97. 595 O que verificamos no Relatório da tesouraria do CDEU, emitido pelo Órgão do Comitê Diretivo Eleitoral Unificado, é que o repasse de 15% de arrecadação obrigatória de Florestan Fernandes foi de Cz$ 9.288,84, o quarto maior repasse entre os candidatos a Deputado Federal pelo PT, para se ter uma ideia o repasse de Luiz Inácio Lula da Silva foi de Cz$ 7.062,03. Relatório da tesouraria do CDEU. Boletim de Campanha nº 3, nov. 1986. Cerqueira relata que ao final da campanha “verificou-se que o débito correspondia a mais ou menos a metade do valor de um carro popular” que o professor Antonio Candido quitou com dinheiro que ganhou em um concurso literário do “Grupo Moinho Santista”. CERQUEIRA, Laurez. Op. Cit., pp. 127-128. 596 FERNANDES, Florestan. Palestra de Lançamento da Campanha de 1986 na Fundação Santo André.

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Figura 15 – Convite para arrecadação de fundos de campanha para Florestan Fernandes e Analto Galvão. Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes.

Da mesma forma que já vinha agindo no âmbito jornalístico, tentava imprimir em seu

material de campanha a compreensão da situação do país e as principais mudanças necessárias

em um sentido socialista, buscando exercer a função de estopim da consciência de classe.

se na campanha eu puder fazer alguma coisa, essa coisa será construtiva porque eu vou tentar despertar em quem me ouvir a consciência de que é preciso acabar com essa relação passiva das classes trabalhadoras e oprimidas diante do uso de recursos legais. Elas precisão usar os recursos legais, esgotá-los. Não adianta nada avançarmos na direção de uma boa constituição se em seguida essa boa constituição não for uma arma política no terreno da luta de

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classe e naturalmente em favor das classes trabalhadoras. Então, essa vai ser uma das tônicas da minha pregação.597

Neste processo retoma as reivindicações de participação popular como elemento sine

qua non para romper com as estruturas arcaicas, porém, agora, ressaltando que as massas

deveriam saturar os espaços legais e ter uma presença marcante no Congresso Constituinte.

Para tocar seu projeto à frente, formou-se então o que Vladimir Saccheta chamou de

“O incrível exército de Florestan Fernandes”, parodiando a comédia de Mário Monicelli:598

Seu filho, Florestan Fernandes Junior, telefonou para algumas pessoas e marcou uma reunião, para o final de uma tarde de domingo, na casa da Rua Nebraska, onde ficava a biblioteca e o escritório. Além de Florestan, estiveram nessa reunião: Hélio Alcântara, que viria a ser seu assessor em Brasília, o professor Octávio Ianni, Cláudio Semiatz e Vladmir Saccheta (filho de Hermínio Saccheta, amigo e companheiro trotskista de Florestan nos anos 1940), que se tornou um dos coordenadores do mandato de São Paulo.599

Figura 16 – Reunião na casa de Florestan Fernandes para o lançamento da campanha 1986. Imagem nº

03.07.4244 do Acervo Especial Florestan Fernandes. Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes.

Segundo nos descreve Laurez Cerqueira, houve uma grande procura de pessoas da

esquerda na busca de ajudar na campanha de Florestan – de anarquistas, que justificavam o

597 FERNANDES, Florestan. Palestra de Lançamento da Campanha de 1986 na Fundação Santo André. 598 O incrível exército de Brancaleone. Título original: La Incredible armata Brancaleone. Direção de Mário Monicelli, Itália, 1965. Look Filmes. 599 CERQUEIRA, Laurez. Op. Cit., p. 124.

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apoio afirmando: “Florestan é Florestan”, a trotskistas, como Miza Boito, que “ficou furiosa

de ter que dividir tarefas com antigos estalinistas”. Frente a esta situação, “Florestan dizia:

‘debaixo do meu guarda-chuva cabem todos os rebeldes’”. 600 Ao final de seu mandato, em

1989, Florestan afirmará que aquela tinha sido “a campanha que lhe deu as maiores

satisfações de ordem política”.

A campanha foi improvisada e conteve elevado grau de espontaneidade — paradoxalmente as razões da vitória a que chegamos. Amigos, leitores, antigos e novos estudantes, jovens desconhecidos, intelectuais de renome, colegas, parentes, operários e sindicalistas da extrema esquerda, Luís Carlos Prestes e diversas personalidades políticas compuseram por conta própria ou a organização e o financiamento da campanha ou a difusão da candidatura. Provaram o que é uma campanha eleitoral de sentido socialista, fundada na solidariedade humana, na fraternidade de ideias e no altruísmo pessoal. Foi esse apoio que me tornou candidato e não um simples figurante de eleições rituais e corrompidas pelo poder econômico.601

Em seu material de campanha, buscou não se render ao marketing do “eleitoralismo

caça votos”, que ocupava um bom espaço nos partidos que se consideravam socialistas –

como fica claro no artigo A cabeça do trabalhador,602 no qual resgata uma pesquisa

participativa de opinião feita por trabalhadores petistas e militantes de vanguarda dos

sindicatos: “Trabalhadores petistas e militantes de vanguarda dos sindicatos patrocinadores,

os principais componentes daquele núcleo do PT, pretendiam uma alternativa de propaganda

política que ultrapassasse o ‘eleitoralismo’ que invadiu as práticas e as posturas mesmo de

candidatos e de partidos que se consideram socialistas”.603

Ao analisar a pesquisa, aponta a “clara penetração da ideologia burguesa na mente do

trabalhador” como resíduo típico de uma dupla condição histórica, mas, por outro lado, se

atém a dois pontos mais significativos: o primeiro foi o que compreendeu como dado

estrutural, o de que estava havendo um “desenvolvimento independente de classe”; e o

segundo era o fato de que “os trabalhadores atacam a ordem existente – uma sociedade civil

‘fechada’ – para obter liberdades políticas, direitos civis e garantias sociais, que lhes

assegurem peso e voz nessa mesma sociedade”, forçando uma abertura que o Estado da “nova

República” visava fechar.

A conclusão que Florestan chega parece ser chave para a condução de seu processo de

campanha: “A luta de classes não é um slogan ou uma palavra de ordem. Ela é um processo

600 CERQUEIRA, Laurez. Op. Cit., p. 125. 601 FERNANDES, Florestan. Pensamento e ação: o PT e os rumos do socialismo. São Paulo: Brasiliense, 1989, pp.7-8. 602 Ib., A cabeça do trabalhador (1986). In: Ib., A constituição Inacabada: Vias Históricas e Significado Político. São Paulo: Estação Liberdade, 1989, pp. 43-46. 603 Ibid., P. 43.

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social e uma técnica política”. Seria necessário então, naquele momento, a “aquisição de

meios sociais proletários de organização da luta de classes (pelos sindicatos, pelos partidos de

trabalhadores, por organizações culturais operárias etc.)”, de forma que, seriam estas

organizações as que deveriam realizar a tarefa política de ampliar a “consciência social

proletária da luta de classes”, ou seja:

A socialização socialista do proletário faz parte do “trabalho educativo” de tais organizações e constitui um pré-requisito da luta pela conquista do poder. Não adianta resmungar contra os fatos crus. O melhor é enfrentá-los e superá-los! Ou submeter-se passivamente à “supremacia burguesa”...604

Fica claro nesta afirmação final que, para Florestan, a conquista do poder não deve ser

um fim em si, dissociada da elevação da consciência de classe e da capacidade de luta das

classes populares; não se deve chegar ao poder para depois voltar-se à “socialização socialista

do proletariado”, ou como assevera, resgatando as palavras de Lenin:

Se o socialismo não penetrar a consciência política da classe operária teremos um mero obreirismo, não uma política operária de sentido revolucionário. Essa função de difundir o socialismo entre os trabalhadores e de elevar sua consciência de classe ou aumentar sua capacidade de luta ofensiva na esfera política cabe ao PT. Como dizia Lenin, “sem teoria revolucionária não há revolução”. Sem uma forte coerência socialista, o PT não poderá conduzir as classes trabalhadoras à vitória, nas próximas eleições, e à conquista do poder, mais tarde.605

Ou seja, a campanha não tinha por finalidade “ganhar” votos, mas criar votos a partir

de uma consciência de classe. Sua campanha adquire, portanto, um caráter educativo,

tentando traduzir problemas que até então vinham sendo tratados através de produções

teóricas e jornalísticas. Compreendia como “essencial, neste momento, despertar nos

oprimidos e nas classes trabalhadoras a consciência mais clara possível de seus direitos civis

ou políticos e de suas garantias sociais”.606

Como lema de campanha, Florestan e sua equipe cunharam a frase: “Contra as ideias

da força, a força das ideias”.

Dever-se-ia opor às ideias da força material – muito claramente representada pela

ditadura militar e consortes que se mantinham no poder – com a força das ideias socialistas,

que Florestan visava representar. Já há muito tempo o sociólogo era reconhecido como ilustre,

um dos maiores intelectuais brasileiros, e é esta a contribuição que se propõe a dar: trazer a

604 FERNANDES, Florestan. A cabeça do trabalhador (1986). In: Ib., A constituição Inacabada: Vias Históricas e Significado Político. São Paulo: Estação Liberdade, 1989, pp. 45-46. 605 Material da campanha de Florestan Fernandes para Deputado Federal em 1986. Acervo: Centro Sergio Buarque de Holanda. Fundação Perseu Abramo. 606 Ibidem.

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força de suas ideias, a força de um intelectual marxista, nascido das classes trabalhadoras.

Assim, lemos em seu material de campanha:

Pensador marxista, cassado pela ditadura militar em 1969, é autor de inúmeros livros sobre a Universidade, o negro e o índio. Em 1979, com a anistia, recusou-se a solicitar sua reintegração aos quadros da Universidade de São Paulo por achar absurdo ter de pedir para retornar a um posto do qual nunca pedira para sair. Candidato ao Congresso Constituinte, Florestan cerra fileiras com os que batalham por uma Constituição que se torne um instrumento de luta política dos oprimidos e das classes trabalhadoras. Florestan acredita que lutar no Congresso Constituinte em nome do PT significa defender a crescente difusão do socialismo no movimento operário.607

Há duas constantes em seus textos de campanha: a primeira trata-se das análises da

situação política e econômica do país; e, a segunda, se refere às propostas de atuação do

candidato. Em um panfleto com título-destaque: Não era esta a república dos nossos sonhos,

temos a seguinte descrição do país:

O Brasil não é um país do povo brasileiro, mas das grandes empresas, latifundiários, fazendeiros, comerciantes, generais, multinacionais. São esses os interesses que o governo atende, obedece. O governo da “nova república”, do mesmo jeito que o governo da ditadura militar, continua a ajudar os grandes negócios. Por isso está sempre desligado do povo, contra o povo.608

607 Material da campanha de Florestan Fernandes para Deputado Federal em 1986. Acervo: Centro Sergio Buarque de Holanda. Fundação Perseu Abramo. 608 Ibidem.

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208

Figura 17 – Material da campanha de Florestan Fernandes para Deputado Federal em 1986. Acervo: Centro Sergio Buarque de Holanda. Fundação Perseu Abramo.

Em outro, vemos uma charge com um trabalhador segurando uma estrela do PT contra

um Conde Drácula, capitalista e americano, intitulado Pelo socialismo!, no qual lemos:

Faz muito tempo que o trabalhador brasileiro vem sendo sugado até a última gota de seu trabalho para gerar a riqueza dos patrões brasileiros e as fortunas dos monopólios internacionais. Para nós só tem sobrado miséria, desemprego, doença e fome.

Agora uma “Nova República”, que de nova só tem o nome, vem para que as coisas permaneçam na mesma e se garanta o poder da burguesia e das multinacionais.

Tais palavras e caricaturas visavam difundir a compreensão da estrutura de

dependência em seu caráter de articulação dual de extração, que gera “a riqueza dos patrões

brasileiros e as fortunas dos monopólios internacionais”, e que através de uma “transição

acertada” se perpetuaria.

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Figura 18 – Recorte de Folheto: charge de Iasi. Material da campanha de Florestan Fernandes para

Deputado Federal em 1986. Acervo: Centro Sergio Buarque de Holanda. Fundação Perseu Abramo.

Em outra “dobradinha” intitulada Na defesa da saúde e educação – com Arlindo

Chinaglia representando a saúde e Florestan a educação – retoma-se o tema da falácia da

“nova República”, a necessidade do máximo de candidatos eleitos pela esquerda para limitar a

“maioria conservadora” e, em seguida, ressalta-se que “não só os trabalhadores devem

participar do processo constituinte. Os professores, os estudantes, os médicos e outros

profissionais da área de saúde, bem como suas famílias, são igualmente vítimas dos

desmandos que a ditadura implantou na esfera do ensino e saúde”. Trata-se de um discurso

voltado para as classes médias, de profissionais liberais e estudantes; mas um discurso sem

tentativas de camuflar a posição socialista:

Pensando dessa forma, FLORESTAN FERNANDES e ARLINDO CHINAGLIA assumem o compromisso de lutar por essas prioridades no Congresso-Constituinte e na Assembleia Legislativa, buscando contribuir para a emancipação social do trabalhador, dos médicos e professores, através de sua libertação da condição de assalariado e do jugo do capital. Isso só pode ser conseguido por meio de duras lutas políticas, sempre objetivando (e de modo firme!) uma sociedade socialista.

O socialismo, no entanto, não é apresentado como passe de mágica, mas como

resultado de um processo que poderia “conduzir as classes trabalhadoras à vitória, nas

próximas eleições, e à conquista do poder, mais tarde”, com a classe trabalhadora consciente e

ativa, em outras palavras, politizada:

como afirmava Marx, as eleições burguesas não passam de um momento onde de quatro em quatro anos, o povo deve escolher qual membro da classe dominante deverá representá-lo no parlamento. Mas essa situação se alterou. O PT introduz uma nova realidade histórica. O militante do PT, ou qualquer trabalhador, pode escolher um representante de sua própria classe (um operário ou um líder sindical) ou escolher entre os companheiros alguém que, não

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sendo da mesma classe, esteja identificado com a classe operária e a construção socialista do PT. Existem, pois, condições objetivas e subjetivas para um novo processo de escolha, de politização da classe e de eficácia da luta política dos trabalhadores no plano parlamentar.609

Suas propostas de campanha estiveram sempre atreladas a uma participação efetiva

dos movimentos sociais na tentativa de saturar a via legal, pois sabia que de nada vale uma

Constituição, por mais moderna e progressista que seja, se não for construída e colocada em

prática pelos “de baixo”, como fica claro no Jornal da Campanha:

Florestan acredita que lutar no Congresso-Constituinte em nome do PT significa defender a crescente difusão do socialismo no movimento operário para que os de baixo possam impor aos de cima, queiram estes ou não, a obediência a seus direitos civis e políticos.

Se eleito, Florestan Fernandes cerrará fileiras com os que batalham por uma carta constitucional que se torne um instrumento de luta política dos oprimidos e das classes trabalhadoras.610

Ao mesmo tempo, a participação popular na Constituinte assim como na campanha

deveria funcionar como um processo pedagógico de luta de classes, uma vez que estariam

também em cena as forças mais reacionárias da nação e poder-se-ia, assim, tentar uma ruptura

com os interesses que estes representavam.

Figura 19 – Recorte de Folheto: charge de Henfil. Material da campanha de Florestan Fernandes para

Deputado Federal em 1986. Acervo: Centro Sergio Buarque de Holanda. Fundação Perseu Abramo.

609 Material da campanha de Florestan Fernandes para Deputado Federal em 1986. Acervo: Centro Sergio Buarque de Holanda. Fundação Perseu Abramo. 610 Ibidem.

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A posição que Florestan adota neste momento difere em muito da adotada pelo autor

durante os anos 70; buscava “despertar em quem me ouvir a consciência de que é preciso

acabar com essa relação passiva das classes trabalhadoras e oprimidas diante do uso de

recursos legais”, mas não mais para uma afronta à ordem através da desobediência civil: as

massas populares eram agora convidadas a saturar os espaços legais que se abriam através do

Congresso Constituinte.

A Constituinte é um lugar bom para se discutir o país, a nação que o povo quer. Nela dá para fazer propostas para começar a mudar a situação, construir outra nação. O que os trabalhadores da cidade e do campo querem pode chegar lá. As lutas dos operários, peões, camaradas, sitiantes, colonos, posseiros, seringueiros, castanheiros e todo o mundo podem influenciar a Constituinte e começar a mudar a situação também por lá.

Na hora da Constituinte, dá para discutir como o povo quer que se organize a propriedade, o trabalho, o ganho, o salário, os direitos a saúde, a educação, a moradia, o transporte e outros assuntos. Em lugar de deixar que esses assuntos sejam resolvidos conforme a imposição do governo e dos seus amigos, dá para encaminhar a coisa conforme os interesses do povo, da gente que trabalha na terra, fábrica, oficina, escritório, casa, escola, hospital, transporte e outros lugares.611

Por mais que não se trate mais de ver na “desobediência civil” o mote do movimento

social no período da constituinte, Florestan mantém, como vemos, a ideia de que se deveria

tratar das questões concretas e cotidianas do povo como forma de mobilizá-los politicamente

– como vemos a carestia da vida continua sendo um dos pontos chaves para a articulação

política.

No entanto, não apresenta nenhuma supervalorização das possibilidades que se abriam

na Constituinte. O processo é visto pelo autor “como o ponto de partida da liquidação dos

resíduos ainda muito fortes do regime ditatorial” dentro do âmbito legal; e neste sentido que

ganha significado: não enquanto bem em si, paládio da democracia, mas como arena política

para um embate de classes.

Os trabalhadores não devem cultivar ilusões. O próximo Congresso Constituinte foi convocado de forma a conferir o seu controle às classes conservadoras, ao governo e aos partidos da ordem. Ele não nos trará a tão sonhada revolução democrática da sociedade brasileira. Poderá elaborar uma carta constitucional “avançada” e “neoliberal”, mas respeitando os interesses econômicos, sociais e políticos dos setores mais fortes das classes dominantes, do grande

611 Material da campanha de Florestan Fernandes para Deputado Federal em 1986. Acervo: Centro Sergio Buarque de Holanda. Fundação Perseu Abramo.

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capital industrial e financeiro, enfim, dos donos do poder e do imperialismo. 612

Esta posição parte de uma compreensão de Florestan Fernandes de que as classes

trabalhadoras e as massas populares estavam ganhando capacidade de organização e

autonomia, o que lhes permitiria uma participação efetiva.613 Longe de buscar uma

Constituição avançada, de “primeiro mundo”, o necessário para Florestan era que esta

participação garantisse aos mais pobres e oprimidos a possibilidade de “ser gente em toda a

plenitude da palavra, podendo desfrutar, assim, as regalias do cidadão, inclusive a de lutar

livremente por seus objetivos de classe”.614

Ou seja, existiu, para o candidato, de fato, um amadurecimento das classes como não

houvera antes:

Tais esperanças seriam levianas e utópicas até os inícios da década de 60. Nos últimos vinte e cinco anos, apesar da ditadura e da repressão, a aceleração do desenvolvimento econômico e o despertar da consciência de repúdio à ordem social existente pelos trabalhadores das fábricas e da terra produziram o aparecimento de meios de luta de classe que são, ao mesmo tempo, mais eficientes e organizados, e mais fortes e decisivos. A CUT, a CGT, o PT, os partidos comunistas que se “legalizaram”, a Contag, a Fetaeg, a CPT e outras organizações de luta no campo, o despertar de aliados da pequena burguesia e de setores radicais da classe média, com organizações de frente como a Ordem dos Advogados do Brasil, as comunidades eclesiais de base, a CNBB etc, forjaram uma situação histórica fermentativa e construtiva, na qual os de baixo podem bater-se pela revolução democrática no sentido mais amplo possível. Já não se trata de converter os trabalhadores e seus movimentos sociais em “cauda política” dos grão-senhores da in-dústria e da terra, dos donos do poder e do Estado.615

Um dos pontos centrais da análise de Florestan é a necessidade de fomentar uma

“frente ampla” da esquerda. A configuração da base de colaboradores de sua campanha era

um exemplo deste esforço, por exemplo, figurou entre seus apoiadores o “cavaleiro da

esperança”, Luiz Carlos Prestes, que lança uma carta aberta com o título Por que votar em

Florestan Fernandes, em que, após um balanço da situação Brasileira, requisita:

612 Material da campanha de Florestan Fernandes para Deputado Federal em 1986. Acervo: Centro Sergio Buarque de Holanda. Fundação Perseu Abramo. 613 “Os trabalhadores livres e semi-livres aumentaram em número, em capacidade de organização e na posse de meios sindicais e partidários para alcançar objetivos próprios, independentes e sem passar pela patronagem dos de cima. Por isso, já estão suficientemente fortes para escolher os princípios legais e políticos de uma forma de democracia que não os exclua da sociedade civil e que não os torne mendigos dá proteção do Estado. Ao contrário, podem escolher e levar à vitória várias reivindicações que, equacionadas corretamente na nova carta constitucional, lhes confira peso social e voz política na sociedade civil e, ao mesmo tempo, lhes permita ter influência e participar dos canais normais de funcionamento do Estado”. Ibidem. 614 Ibidem. 615 Ibidem.

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solicito a meus companheiros, amigos e a todo o povo paulista que votem, em 15 de novembro próximo, no nome de FLORESTAN FERNANDES, para deputado federal e constituinte, por ser pessoa em quem deposito inteira confiança e que asseguro ser efetivamente merecedora dos votos do eleitorado paulista, cujos interesses – estou certo, saberá defender com despreendimento, sem vacilações e com valentia. FLORESTAN FERNANDES, como sociólogo e pensador marxista, com seu talento e sua experiência, dará grande e eficiente contribuição na elaboração da Carta Constitucional.

Figura 20 – Luis Carlos Prestes e Florestan Fernandes. Fotografia feita pelo professor Antonio Rago Filho.

Doada ao acervo Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes.

Na compreensão do candidato, para alcançar uma ruptura de fato com a “democracia

de fachada”, seria necessário “recorrer aos quadros intelectuais dos movimentos reformistas e

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revolucionários, que grassaram no passado, remoto ou recente”. Porém, apesar desta ideia de

frente ampla da esquerda, contra os resquícios da ditadura, Florestan mantém-se firmemente

comprometido com o PT – mau grado a existência de posições que chegavam ao anti-

marxismo no interior do partido:

Não sou operário nem pretendo qualificar-me como equivalente do operário na condição de “trabalhador intelectual” e de “professor”. Sou um ativista marxista e me apresento como candidato a deputado federal pelo PT, ou seja, como intelectual a serviço deste partido. O PT possui um programa político próprio e uma plataforma constitucional. Lutarei por ambos na medida de minhas forças e com a sólida identidade proletária de um ativista marxista.616

A campanha de 1986 teve grande importância para o amadurecimento político

partidário do PT como um todo, ainda que tenha sido afetada pela campanha de difamação e

não tenha crescido o quanto o partido esperava. No entanto, ampliou o número de estados que

representava – contando já com metade dos estados brasileiros – e ampliou também o número

de deputados eleitos de 12 para 33, sendo que Luis Inácio Lula da Silva foi o deputado mais

votado, adquirindo 7% dos votos para a Constituinte.617

Foram eleitos, naquele ano, 487 deputados federais e 49 senadores que se somariam

aos 23 senadores eleitos em 1982. Num total 559 políticos que deram início ao trabalho

constituinte em 1º de fevereiro de 1986, a composição partidária para a ANC foi a seguinte:618

PMDB – 54,4% PFL – 23,6% PDS – 6,8% PDT – 4,7% PTB – 3,2% PT – 2,9% Pequenos partidos da direita (PL, PDC, PMB) – 2,5% Pequenos partidos da esquerda (PCdoB, PCB, PSB) – 2,0%

Quadro importante para compreendermos a correlação de forças dentro da ANC, mas

que retrata o resultado de toda a reestruturação político-partidária que, em grande medida,

como já vimos, foi manipulada pelo próprio governo militar, que teve grande influência na

determinação do novo sistema partidário, mas que contou também com uma importante

mobilização dos setores das classes dominantes para a atuação no “jogo democrático”. Para

616 Material da campanha de Florestan Fernandes para Deputado Federal em 1986. Acervo: Centro Sergio Buarque de Holanda. Fundação Perseu Abramo. 617 GADOTTI, Moacir; PEREIRA, Otaviano. Op. Cit. 618 Dados retirados de: FREITAS, Rafael; MOURA, Samuel; MEDEIROS, Danilo. Procurando o Centrão: Direita e Esquerda na Assembleia Nacional Constituinte 1987-88. In: Maria Alice Rezende de Araújo; Cícero Araújo; Júlio Assis Simões. (Org.). A Constituição de 1988 - passado e futuro. São Paulo: Anpocs / FFord / Hucitec, 2009.

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melhor compreendermos a posição de Florestan dentro da ANC temos que ter em vista a

dimensão tomado por esta mobilização e como ela se desdobra dentro da ANC (e para além

dela).

Florestan Fernandes obtém uma vitória significativa: atinge 50.024 votos, sendo o 4º

deputados mais votado do PT – acredita-se inclusive que para que Florestan tenha recebido

uma votação tão expressiva, “muitos votos foram recrutados entre os leitores não vinculados à

universidade”.619 Entre os elementos que podem ter ajudado neste resultado deve-se destacar

o apoio de uma personagem tão importante na política nacional como Luiz Carlos Prestes, e a

própria visibilidade que o autor ganhou como publicista.

4.3 Pivôs político-ideológicos

Como Florestan apontou, a ditadura esgotara-se como recurso e as classes dominantes

tiveram que abrir um campo de manobra perigoso, aproveitando a sombra do tacão de ferro

ditatorial, mas sabendo que deveria mudar tudo para que tudo continuasse o mesmo. Antigos

e novos métodos teriam que entrar em jogo para estabelecer a democracia que lhes fosse

conveniente e, neste sentido, tanto as empresas nacionais como as transnacionais não

pouparam esforços nem dinheiro. Ora, como dirá o coordenador da União Brasileira de

Empresários, durante a Constituinte: “Nós estamos sem experiência do jogo democrático.

Perdemos o jogo de cintura. No regime anterior, o empresário conversava no máximo com

quatro pessoas: o Figueiredo, o Delfim, o Galvêas e o ministro da área. E o decreto-lei

resolvia o resto. Hoje o jogo é democrático... Nosso grande interlocutor agora, é o

Congresso”.620

Os empresários não trataram apenas de defender o antigo regime e sistema, mas

realizar as readequações necessárias; para isso foi necessário a reorganização das forças

dominantes. Seguindo a argumentação de Dreifuss, vemos que esta reorganização das classes

dominantes constituiu um processo complexo e multifacetado, desde a articulação para eleger

e assessorar um futuro governador, que sucedesse Leonel Brizola no Rio de Janeiro, passando

pela profissionalização do lobbysmo e chegando à criação do que o autor chamou de pivôs

políticos-ideológicos. Toda uma estrutura é organizada já no início dos anos 80 e terá como

um dos pontos principais de sua atuação a ANC, buscando realizar exatamente o que

619 SOARES, Eliane Veras. Op. Cit., p. 101. 620 Antonio de Oliveira SANTOS apud DREIFUSS, René. O jogo da direita. Petrópolis: Vozes, 1989, p. 44.

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Florestan havia indicado à esquerda: saturar todos os espaços da constituinte no âmbito legal.

Além do mais, não faltaram iniciativas que extrapolaram este âmbito de atuação.

Seguindo a lógica que Florestan aplicara nos anos 50-60, podemos afirmar que se

tratou, de uma nova fase de coalescência do empresariado; que contou em várias situações,

inclusive, com os mesmos personagens que cumpriram o papel de “vanguarda do

empresariado” durante o golpe militar de 1964 – basta lembrarmo-nos da figura de Tancredo

Neves e as funções que cumpriu em 1961 e em 1985.

O mecanismo mais sofisticado desenvolvido pelo empresariado eram os pivôs

político-ideológicos nascidos da necessidade de criar órgãos autônomos, fora dos formatos

tradicionais:

não só envolvidas com análise, consultoria e lobby, mas também com o planejamento e a coordenação política classista. Pretendia-se, que funcionasse com instâncias das quais uma formação política mais ampla – uma classe, um bloco, uma coligação de forças, à qual pertencem e, em última instância, orientam e estimulam – fosse capaz de retirar sua preferência ao alterar posições e modificar a sua situação na correlação de forças. Enfim, como pivôs de poder e de ação política.621

Estas serão as novas instituições que darão forma ao “pluralismo democrático”

brasileiro, profundamente ligado a suas estruturas históricas autocráticas. Instituições

empresariais, nem sempre discretas, que são a base da reedição da democracia restrita através

da institucionalização da contra-revolução.

Dentre os pivôs mais atuantes teremos:

• a Câmara de Estudos e Debates Sócio-Econômicos – Cedes: Surge em 1980,

expandindo suas atividades a partir de 1983. Visava atuar na escolha de

representantes para a ANC, tendo como figura central Delfim Netto que, entre

outras coisas, distribuiu um lista com o nome de 30 candidatos de todo o país e de

vários partidos, incluindo o PMDB, que precisavam de apoio financeiro. “A Cedes

passou a ser mantida por cinqüenta empresas e associações, nacionais e

transnacionais. Seu orçamento para 1986 foi de 1,2 milhões de cruzeiros”.622 Entre

as atividades realizadas por esta “organização civil” preocupada com o futuro da

democracia brasileira, destaca-se um encontro realizado em 1986, que visava

analisar o rumo da economia latino americana – trabalho encomendado pela

Americas Society, presidida por David Rockefeller, no qual os economistas deram

621 DREIFUSS, René. O jogo da direita. Petrópolis: Vozes, 1989, p. 49. 622 DREIFUSS, René. Op. Cit., p. 52.

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suas recomendações: “abertura ao exterior, na forma de incremento das exportações

e atração de capitais estrangeiros; abandono da excessiva proteção contra

importações; redução de déficit orçamentário e redução do papel do Estado, além

da ‘desregulamentação’ da economia, como meio de promover um

desenvolvimento sustentado” –623 em uma palavra, promover o que ficou conhecido

como neoliberalismo. Obviamente que ao providenciar estes requisitos, haveria, em

contra-partida, um novo “milagre”: “os países latino-americanos ganhariam dos

Estados Unidos e de outras nações capitalistas industriais, novos empréstimos,

spreads mais favoráveis, importações sem restrições ou tarifas alfandegárias

adicionais e uma queda real das taxas de juros”,624 acenando assim para uma

inserção global como saída da crise estrutural em que o Brasil passava. O Cedes foi

também importante para a conscientização da classe dominante; com o lema “A

constituinte é problema seu”, mobilizou amplamente os vários setores empresariais

– chegando a fazer cálculos mais ousados do que a lista dos 30 apresentada por

Delfim – e, neste caso, pelo menos 100 deputados poderiam ser facilmente

colocados na Constituinte pelo setor empresarial urbano, além dos 40 com a força

rural e outros 20 da Associação comercial do Rio de Janeiro. Ou seja, contavam que

conseguiriam eleger pelo menos 160 deputados para o Congresso Constituinte.

• o Instituto Liberal – IL: Desde 1983 em Porto alegre e no Rio e, a partir de 1987,

em São Paulo, o instituto – que foi presidido por Jorge Simeira Jacob

(Arapuã/Fenícia), Roberto Konder Bornhausen (Unibanco) e Jorge Gerdau

Johannpeter (grupo Gerdau) – preocupava-se com perspectivas de longo e médio

prazo no plano ideológico. Sustentado com 8 milhões de cruzados velhos mensais,

em 1987, o IL editou livros e promoveu palestras e conferências para um público

selecionado como, por exemplo, a Escola de Guerra Naval.

• a Confederação Nacional das instituições Financeiras – CNF: Representando o

setor financeiro, que visava a redução da presença do Estado na economia, foi

lançado em Brasília em 1985. O CNF também fazia questão de ver o setor

financeiro representado, em número substancial, na ANC. O presidente deste pivô

financeiro, Roberto Bornhausen, deixa claro os objetivos do CNF: “coordenação

das associações de classes representando empresas financeiras, com vistas a

permitir uma ação unificada político-institucional, frente aos poderes constituídos, à

623 DREIFUSS, René. Op. Cit., p. 53-54. 624 Ibid., p. 54.

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mídia e outros setores, e ao público em geral, em defesa de seus interesses

legítimos”.625

• a União Brasileira de Empresários – UB: A conquista de vagas na ANC tornou-se

efetivamente um grande investimento empresarial e no qual muitos empresários

faziam questão de se candidatarem pessoalmente ao pleito. Enquanto alguns

empresários não admitiam estar sendo organizada uma plataforma empresarial para

a Constituinte, outros, como Afif Domingos, não via nada de mais e “enquanto isso,

o deputado Maurílio Ferreira Lima, do PMDB de Pernambuco, denunciava que

estaria sendo organizada uma ‘caixinha’ de 4,5 milhões de cruzeiros, para eleger

pelo menos 300 candidatos que defendessem as posições do empresariado na

Constituinte”.626

A articulação do empresariado, como frente de operações, buscando manter

presença no sistema estatal e no governo vai gerar, em 1986, a UB, endossada por

várias confederações e falando em nome delas. Para além da batalha na

Constituinte, a UB estava preocupada também com a eleição do próximo

presidente, em 1989; além de tratar de alinhar várias campanhas de candidatos a

governadores que se mostravam mais próximos a sua proposta de reordenamento

político-econômico do estado brasileiro.

A atuação da UB é amplíssima e, para além da mobilização empresarial e

governamental, colocou-se na luta o que Dreifuss chamou de “linhas auxiliares

externas”, para compensar a fragilidade partidária da direita. Na busca de obterem

um “colchão de apoio social”, penetrou no meio sindical e trabalhador tentando

criar um “pacto social”. Questão que Florestan abordará constantemente e que se

resume na problematização que já apontamos anteriormente: “quem paga o

Pacto?”.627 Mas, se para a esquerda um “novo” pacto social deveria ser totalmente

rejeitado, este era indispensável para a UB:

O “pacto” era uma necessidade política e econômica. Almejando a estabilidade do quadro econômico, dentro da ótica de classe, procurava-se realçar figuras ditas “moderadas” do âmbito sindical, com os quais o empresariado se sentisse à vontade para dialogar em posição de supremacia, isolando ao mesmo tempo (ou ao menos, criando fendas na pretensa frente sindical), as lideranças mais

625 Roberto BORNHAUSEN apud DREIFUSS, René. Op. Cit., p. 57. 626 DREIFUSS, René. Op. Cit., p. 58. 627 Ver: FERNANDES, Florestan. Quem paga o pacto? (1985) e Pacto social à brasileira (1986). In: Ib., Que tipo de República? São Paulo: Brasiliense, 1986.

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combativas da CUT e assim, procurando minar a suposta base do Partido dos Trabalhadores.628

Não é demais lembrarmos do “sindicalismo de resultado”, que ganha corpo na

época e que se alinha a esta concepção de “pacto social” e ao chamado modelo

“neoliberal”.629 Antonio Magri um, dos pais do “sindicalismo de resultado” no

Brasil, contou com o apoio da AFL-CIO norte americana para implantar esta

corrente de sindicalismo “pragmático”, “apartidário” e de “resultados” no país,

contando com apoio e estrutura técnica, além de um orçamento de 2 milhões de

dólares vindos dos Estados Unidos.630

• a União Democrática Ruralista – UDR: Criada em 1985 pelos empresários rurais,

“retrógrada em seus objetivos e até violenta em seus métodos”, visava intimidar o

poder político, tanto contra qualquer tentativa de reforma agrária, como por uma

política agrária que atendesse o que consideravam como “a verdadeira política

agrícola”. Estabeleceu-se, assim, a estrutura de empresários rurais mais bem

organizada que o Brasil já conhecera. À frente do grupo, a partir de 1986, estava o

fazendeiro Ronaldo Caiado; no mesmo ano, a UDR já contava com sedes em 15

estados, mais de 40 mil associados e com uma “caixinha” que somava 20 milhões

de cruzados.

A UDR tinha como objetivo a independência em relação ao governo, chegando

mesmo a travar quedas de braço com ele, nas quais saiu vitoriosa, como no caso do

bloqueio do ministro da reforma agrária de Sarney, que teve que engavetar sua

tímida proposta de reforma agrária à espera da Constituinte; ou ainda no episódio

do “Boi gordo”, onde os criadores “esconderam” a carne da população e da Polícia

Federal como forma de conseguir benefícios econômicos.

A UDR colocou toda sua estrutura na eleição de deputados constituintes e

estaduais e não escondeu a intenção de tentar fazer um ministério; mas, não tendo

tempo hábil para formar um partido próprio, Caiado tratou de identificar os

“amigos” no: PMDB, PDC, PL, PFL e PDS:

Para eleger seus representantes, a UDR se engajou numa frenética sucessão de leilões eleitorais, angariando fabulosas somas em dinheiro e fazendo com que seus associados participassem do esforço, num movimento de retroalimentação de engajamento e afirmação da entidade. Ficou óbvio, nessas andanças que, se os

628 DREIFUSS, René. Op. Cit., p. 65. 629 Ver: DUARTE, Ozeas. Mercadores de Ilusão: análise crítica do “sindicalismo de resultado”. São Paulo: Brasil Debates, 1988. 630 DREIFUSS, René. Op. Cit., p. 67.

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gastos para eleger um deputado federal se mantivessem no limite de 500 mil cruzados, como era calculado, a UDR já contava com dinheiro para eleger 60 representantes. [...] O presidente da UDR em São Paulo estimava, já em julho de 86, que seriam eleitos, pela entidade, de 3 a 4% da Assembleia Nacional Constituinte. Mas se ele somasse a isto candidatos apoiados em conjunto com banqueiros, industriais e empresários do setor comercial, chegaria a 70% do novo Congresso.631

• a Associação Brasileira de Defesa da Democracia – ABDD: Os militares também

montaram um pivô que aglutinou politicamente a direita militar, em 1985, e que

tinha como objetivo:

a defesa dos postulados do verdadeiro regime democrático; a defesa dos valores morais e espirituais da nação brasileira e de seus sentimentos cristãos; a valorização do país através da promoção de seus valores, seus símbolos, suas tradições, seus ideais, seus objetivos, do espírito de civismo de seu povo, do amor à pátria e à nacionalidade; a defesa dos postulados da propriedade privada e da livre iniciativa no domínio econômico; e a defesa dos fundamentais direitos da pessoa humana, através da divulgação de estudos, pesquisas, publicações, cursos, conferências e outras atividades correlatas.632

Dentre os militares que constam na lista de fundadores deste pivô, que

declarava ter como seu primeiro objetivo defender a “verdadeira democracia” no

país, constam alguns nomes de militares que estiveram ligados, durante a ditadura,

a instituições tão democráticas como o SNI e o DOI-COD, além de alguns civis,

entre eles o professor da Escola Superior de Guerra, Jorge Boaventura, ideólogo da

ABDD.

A principal atuação deste pivô, além da aglutinação de esforços para o período

da Constituinte, foi também a de articulação ideológica através de jornais e revistas

próprios.

A descrição que apresentamos destes pivôs político-ideológicos é fundamental para

entendermos a correlação de forças que existiu durante o processo Constituinte no país. Se o

leitor se interesse pelo ótimo trabalho de Dreifuss, verá que vários dos nomes ligados a estas

organizações permanecem até hoje na vida política e empresarial brasileira.

Focados na Assembleia Nacional Constituinte, todos estes pivôs tinham objetivos

bastante claros e concretos de como deveriam atuar na luta a ser travada e no desdobramento

da “nova República”, com instauração das eleições diretas a partir de 1989. Ao logo do

período de organização e funcionamento da ANC, foram criadas pontes móveis e fixas entre

631 DREIFUSS, René. Op. Cit., p. 82. 632 Diário Oficial do Distrito Federal apud DREIFUSS, René. Op. Cit., p. 87.

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estes vários pivôs, que passaram a desenvolver ações visando moldar o governo e a opinião

pública. Um dos pontos principais era a mobilização de ataques por vários ângulos a seus

adversários como a CUT o PT e o PDT e, por outro lado, ganhar o máximo de postos dentro

da ANC e nos governos estaduais. Este esforço inicial do empresariado brasileiro, com o

apoio de capital internacional, só pode ser visto, a partir de seus objetivos, como um grande

sucesso. Seu desdobramento foi a construção de uma “máquina de ação constituinte”, de

forma que dos 559 congressistas, apenas 120 “podiam ser etiquetados como ‘progressistas de

fé’” –633 o que tornou a Constituinte uma esfera conservadora e fisiológica e, além do mais,

uma “Constituinte mansa” já que, além de estar em menor número, a esquerda estava

pulverizada em vários grupos.

Com estas informações podemos ter uma dimensão da capacidade de manobras das

classes dominadoras frente à esquerda. De fato, não se tratou apenas de fragmentar a esquerda

que, até então, estava concentrada no MDB, mas também de reorganizar os “donos do poder”

no novo cenário que se abria, garantindo a “segurança” para a saída de cena dos militares para

os bastidores, mas, de forma que servisse de garante, em última instância, de todo o Sistema.

4.4 Os trabalhos da constituinte

Como vimos, a ideia de realizar uma Assembleia Nacional Constituinte já vinha sendo

proposta desde os anos 70; porém, agora ela se transforma em um fato incontornável. Isto,

após uma grande conciliação política que retirou de cena o perigo do enfrentamento direto

com “os de baixo”.

Florestan continua a defender que não se poderia acreditar, em nenhum momento, em

uma ANC como “abre-te sésamo” da sociedade brasileira; uma vez que “não adianta nada

uma Constituinte muito avançada para uma realidade retrógrada. O problema está em atingir

uma participação econômica, cultural e política efetiva das massas, novas formas de

socialização política das classes trabalhadoras e destituídas”.634

Em resumo, seu ponto de partida continua sendo o de desmistificar a Constituição,

retirando-a de uma “perspectiva formal e utópica”, que a colocava “acima das classes”; de

desmascarar a ideia de que “ela regularia as relações de classe através de normas ‘puras’,

‘neutras’ e ‘absolutas’” e que o ordenamento pretendido pela burguesia, através de uma

633 DREIFUSS, René. Op. Cit., p. 109. 634 “É claro que não. A eficácia da Constituição e dos códigos legais depende de outras condições, e essas condições não são implantadas a partir das deliberações de uma Assembleia política. Elas têm de crescer com a economia, com a sociedade, com a cultura e com o movimento político das massas, isto é, com o comportamento das classes verdadeiramente oprimidas. São efeitos, fenômenos de consciência de classes, de lutas de classe, de atividade política das classes. Muitos dizem que essa é uma visão obsoleta e ultrapassada da realidade, que não existem mais classes sociais, mas eu não me incluo entre essas pessoas...”. FERNANDES, Florestan. Brasil: em compasso de espera. São Paulo: Hucitec, 1980, p. 269.

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Constituição, é “um meio que permite conciliar a desigualdade de riqueza, de cultura e de

poder com um mínimo de eqüidade nas relações de classes desiguais ou de cidadãos

pertencentes a classes desiguais”.635 Por outro lado, Florestan aponta a necessidade de

explorar as possibilidades que o processo constitucional apresenta para atingir rupturas

estruturais, que agora estariam fadadas a ter como limite a revolução dentro da ordem.

Outra preocupação importante, sempre presente nos discursos de Florestan e que

naquele momento se tornava um elemento fundamental devido à conjuntura política, era a

autonomia da esquerda; pois, como tendência histórica, estava inclinada a manter uma relação

estreita com o interesse das classes dominantes. Por isso, o autor dirige seu discurso a todos

os que considerava fazer parte da esquerda de então:

Dirijo estas reflexões aos companheiros da esquerda, de todas as correntes político-ideológicas e aos representantes da chamada esquerda parlamentar do radicalismo burguês que, finalmente, começa a emergir, especialmente no PMDB. Porém, meu diálogo se volta para a CUT, a CGT, a Oposição Sindical, a CONTAG, o PT, o PDT, o PSB, o PCB, o PC do B, o MR-8 e os vários agrupamentos anarquistas, socialistas “democráticos”, trotsquistas, comunistas, basistas radicais ou marxistas, etc., ainda abrigados em partidos legais.636

Era necessário naquele momento que a esquerda não devorasse a si própria; era

necessário fugir de um sectarismo a fim de obter chances reais para se opor à direita

organizada “em várias frentes e seus setores mais conservadores e reacionários financiam

abertamente a seleção de ‘candidatos fiéis’ à representação, se não unificada, pelo menos

articulada dos interesses e valores das classes possuidoras”. O momento exigia que “uma

união à esquerda, ainda que ‘tática’ e ‘provisória’, prevaleça no campo político,

particularmente durante a eleição dos representantes dos movimentos operários e sindicais no

próximo Congresso Constituinte e, com maior razão, durante a elaboração da nova Carta

Constitucional”.637

Assim, apesar da total consciência do autor de que seria “impossível anular o conjunto

de influências nocivas que estão interferindo, desde já, na predeterminação de uma

Constituição típica de uma república bananeira, coberta de lantejoulas mas inócua”,

acreditava que poder-se-ia, com uma unificação da esquerda, gerar um “contrapeso a essa

castração”.

635 FERNANDES, Florestan. A esquerda e a Constituição (1986). In: Ib., Que tipo de República? São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 17. 636 Ibid., p. 19. 637 Ibidem.

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O Congresso Constituinte poderá gerar um monstrengo, tanto quanto poderá produzir uma Constituição à altura das exigências históricas do presente. E isso vai depender do modo pelo qual as esquerdas e os radicais se comportarem diante de tais exigências, unindo-se como uma força social favorável à revolução democrática ou enquadrando-se às bandeiras traiçoeiras da “transação conservadora” e da “Nova República”.638

De saída, a primeira grande perda relacionada ao processo constituinte foi a

impossibilidade de uma Assembleia Constituinte exclusiva – que Florestan considerava como

mais adequada, pois “abriria as portas da elaboração da nova carta constitucional a todos os

candidatos que se empenhassem por um avanço sólido e, em seguida, se desmobilizariam” –,

perda que foi entendida pelo autor como “o equivalente a entregar nas mãos dos círculos mais

conservadores a possibilidade de escolherem políticos que são dirigidos pela focinheira”.

O que significava uma Assembleia nacional constituinte exclusiva? Ela significava que a população teria recursos, teria meios para eleger representantes escolhidos fora dos partidos da ordem, fora dos partidos existentes, fora da política profissional. Uma Assembleia constituinte exclusiva permitiria que aqueles que realmente foram os campeões da luta contra a ditadura, os campeões da luta por uma nova sociedade, por um novo regime político, que eles pudessem disputar ao lado dos políticos profissionais uma representação dentro do congresso e a oportunidade de colaborar diretamente na elaboração de uma carta constitucional nova.639

Por outro lado, o PT também se vê prejudicado em sua participação na ANC, já que se

tornara vítima, segundo Gadotti e Pereira, de uma legislação eleitoral retrógrada, através da

qual o quociente partidário acabou “beneficiando indiretamente outros partidos, como PMDB,

PFL, PDS etc., por obterem maior média e ‘roubarem’ deputados do PT”.640

Como é possível imaginar depois do que já vimos sobre a mobilização do

empresariado, Florestan considera que a organização da Constituinte foi feita seguindo a

tradição brasileira, ou seja, tornando-a monopólio das elites intelectuais e políticas das classes

dominantes e gerando duas conseqüências irremediáveis:

1ª) a maioria parlamentar, representativa de uma minoria econômica e social hegemônica na sociedade civil, ditaria a forma e o conteúdo da Constituição; 2ª) a elaboração da Constituição assumiria um caráter inevitavelmente “técnico” e “jurídico”, com os riscos já conhecidos e consagrados de dissociar o processo constituinte da maioria real, a massa dos cidadãos e seus problemas humanos e dilemas sociais concretos, resultantes do desenvolvimento desigual, da satelitização do Brasil pelas nações

638 FERNANDES, Florestan. A esquerda e a Constituição (1986). In: Ib., Que tipo de República? São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 20. 639 Ib., Palestra de Lançamento da Campanha de 1986 na Fundação Santo André. 640 GADOTTI, Moacir; PEREIRA, Otaviano. Op. Cit., p. 264.

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capitalistas avançadas e da internacionalização do modo de produção capitalista nos moldes vigentes, da extrema concentração social, racial e regional da riqueza e da cultura, bem como dos imensos bolsões de atraso educacional e de miséria, existentes tanto no campo, quanto em todos os tipos de cidades.641

Da forma que configurou-se a ANC, os partidos de esquerda não tinham meios de

alavancar mudanças por eles próprios, devido a “suas debilidades organizativas e ideológicas

crônicas ou pelo peso relativo demasiado pequeno, que teriam no conjunto da Assembleia

Nacional Constituinte”; assim, não obstante a “tendência do parlamentar à pratica de suas

tarefas segundo uma práxis que o converte em ‘representante do povo’” e “a fraca experiência

de participação popular institucionalizada imperante em todas as esferas da vida social

organizada”, segundo Florestan, “a solução natural seria, portanto, casar a forte tradição do

constitucionalismo formal às pressões daquelas forças vivas, que se introduziram na ANC,

através do estímulo às pressões externas, por meio da iniciativa popular e das emendas

populares”.642

O primeiro ano do trabalho de Florestan Fernandes como deputado, 1987, tem um

significado especial na medida em que nele se estabelecem as correlações de forças e a

configuração estrutural na qual se desenvolverá a carta constituinte. Assim, os mecanismos

que começaram a ser desenvolvidos no início dos anos 80 e que atuaram de forma intensa

para levar candidatos “confiáveis” do empresariado ao Congresso seriam funcionalizados

como suportes da classe dominante na configuração do Congresso Constituinte.

Em seu primeiro discurso na Câmara dos Deputados, Florestan Fernandes, como “o

calouro mais velho da casa”, declara que se iniciava a elaboração da mais importante

Constituição da história do Brasil, no entanto, nas condições mais adversas que já existiram,

pois seria realizada sob a “Nova República” – que “nasceu de um parto da ditadura” e recebeu

como herança “uma ordem institucional ilegal”, que dava as diretrizes para a realização desta

nova Constituição: “A Constituição de 67, com os complementos da de 69 e todo o conjunto

de atos institucionais e decretos, constitui-se em um Frankestein constitucional, e vemos aqui

sacerdotes que se ajoelham diante dela, como se fosse um modelo de todas as Constituições e

deve-se pautar nosso comportamento dentro desta Casa”.643

O intuito deste primeiro discurso era o de resgatar o significado histórico da

constituinte, apontando mais uma vez à necessidade de imprimir, através deste processo,

mudanças estruturais que respondessem ao momento, que era de “transações estruturais

641 FERNANDES, Florestan. Introdução (1987). In: Ib., O processo constituinte. Brasília: Câmara dos Deputados. Centro de Documentação e Informação Coordenação de Publicações, 1988, p. 5. 642 Ibidem. 643 FERNANDES, Florestan. Diário da Assembleia Constituinte, 12 fev. 1987, p. 222.

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profundas na sociedade brasileira”. Contudo, sua análise a respeito da burguesia nacional não

apontava grandes espectativas a este respeito. Esta burguesia ganhava, com o processo

constituinte, uma oportunidade histórica nova para realizar aquilo que lhe seria próprio, é

dizer uma revolução democrática e a revolução nacional. Porém, por abrir mão de seu papel

histórico, se colocando como defensora da “ordem ilegal” que imperava, não tinha a

capacidade para levar a cabo tais revoluções. Portanto, caberia aos partidos vinculados à

esquerda e à movimentação popular cumprir esta função; fato que gerava um paradoxo:

“torna-se estranho que eu, marxista, venha aqui defender a validade de uma constituição

burguesa e a sua renovação. Mas esses são os fatos históricos da nossa evolução e de fatos

inexoráveis não há como fugir”.644

Florestan demarca assim, em seu discurso inaugural, a contingência de sua condição

política “profissional”: buscava influenciar uma reforma burguesa, tendo, para isso, que

enfrentar toda a “resistência sociopática à mudança” encarnada em uma classe dominante

cujos interesses particularistas funcionam, em grande medida, como uma indirect rule dos

interesses do grande capital internacional. Escolhendo pela “via fácil de enfrentar os seus

dilemas em colaboração com as nações capitalistas centrais e com a sua superpotência, os

Estados Unidos”, a “nossa burguesia” realiza a manutenção do nexo colonial, que “ressurge

sob um forma sofisticada e, ao mesmo tempo, muito dura, porque aquelas nações se vêem

incorporadas em uma rosca sem fim de miséria, crescimento espoliativo controlado à

distância e perda irreparável de soberania nacional”.645

No momento de instauração da constituinte, o país passa por uma crise conjuntural,

fruto de “políticas econômicas perversas e espoliativas”, somadas aos “efeitos e ao

crescimento da dívida [que] provocaram um agravamento global de desequilíbrios que

vinham de longe”, além do mais, sofria-se também as conseqüências negativas do Plano

cruzado.646

No entanto, o que aparece como crise de superfície deve ser considerada, de acordo

com Florestan, em sua relação direta com a crise estrutural, “que vem desde o passado

colonial, da herança deixada pela Velha República oligárquica, pela ditadura do Estado Novo

e pela recente ditadura militar”.647 Cria-se, assim, uma superposição entre a crise de

conjuntura e a crise estrutural, na qual “os elementos corrosivos da crise de conjuntura

644 Ibidem. 645 Ib., A Crise (1987). Ib., A constituição inacabada: vias históricas e significado. São Paulo: Estação Liberdade, 1989, p. 64. 646 Ibidem. 647 FERNANDES, Florestan. Discurso na Sessão de 19-2-87. In: FERNANDES, Florestan. O processo constituinte: pronunciamentos e debates. Brasília: Câmara dos Deputados/Centro de Documentação e Informação, 1988, p. 64.

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multiplicaram por cem mil os dramas originados da crise estrutural e, reciprocamente, os

dinamismos destrutivos da crise estrutural fizeram girar velozmente o torvelinho da crise de

conjuntura”.648 Trata-se de uma situação que apontaria para uma revolução histórica,

mantendo uma guerra civil latente, podendo explodir em guerra civil declarada, o que seria

ruim para todos e, principalmente, para as classes trabalhadoras e os oprimidos;

pois sua trajetória ascendente de auto-organização e ofensiva seria interrompida, sem que uma consciência social revolucionária e socialista, em processo de difusão e consolidação, pudesse levá-los a conquistas decisivas. Eles avançaram demais para continuarem banidos da sociedade civil. Contudo, ainda não podem passar de bigorna a malho.649

Por outro lado, esta crise conjuntural poderia cumprir um papel positivo para o

funcionamento da Assembleia Nacional Constituinte, caso o processo constituinte fosse capaz

de gerar uma revolução dentro da ordem, sem a irrupção de uma guerra civil; pois, seria “a

conquista de uma forma política popular de democracia, uma ‘democracia pluralista’ com

duas faces: uma proletária, outra burguesa”.650 Destarte, para cumprir esta tarefa, era

necessário que os deputados se colocassem como representantes da soberania popular e não

como “delegados de poderes constituídos”. Neste sentido, Florestan declara que o PT visava

apresentar novas modalidades de relação com as massas populares, sendo elas a iniciativa

popular e o referendo, que estavam

nas raízes de uma nova tendência, na produção dos direitos, na revolução do direito. Já não são mais apenas os representantes do povo os produtores do direito e tampouco é a Assembleia Nacional Constituinte que gera a Carta Magna do País isoladamente.651

Para Florestan, a ANC não estava conseguindo defender suas prerrogativas, nem

mesmo suas responsabilidades e funções, frente “às ambições de todos aqueles que sonharam

com a ditadura no passado, que continuam a sonhar com a ditadura no presente e que

continuarão a sonhar com a ditadura no futuro”.652 Florestan denunciava a intervenção, do

exército e da marinha em uma movimentação pacífica dos trabalhadores pela elevação dos

seus salários, demonstrando que era dever do governo e da ANC garantir os direitos destes

trabalhadores, o que não foi feito. Situação que só servia para demonstrar que o poder real

vinha das baionetas e não do Povo, de quem a ANC deveria agir como representante.

648 Ib., A Crise (1987). Ib., A constituição inacabada: vias históricas e significado. São Paulo: Estação Liberdade, 1989, pp. 64-65. 649 Ibid., p. 65. 650 Ibid., p. 66. 651 Ib., Discurso na Sessão de 19-2-87. In: Ib., O processo constituinte: pronunciamentos e debates. Brasília: Câmara dos Deputados/Centro de Documentação e Informação, 1988, p. 65. 652 Em defesa das prerrogativas do congresso constituinte (1987). In: CERQUEIRA, Laurez. Perfil Parlamentar: Florestan Fernandes. Brasília: Câmara dos Deputados/Centro de Documentação e Informação, 2004, p. 216.

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Por outro lado, juridicamente a ANC estava sob “ferrolhos” que balizavam suas

atividades:

Na linguagem coloquial dos próprios parlamentares, foram impostos dois “ferrolhos” à manifestação legítima da soberania da ANC, o que, por si e em si mesmo, pressupõe uma asfixia consentida da referida soberania. O apoiamento de um terço e o processo de votação e aprovação escolhido erguem-se como um “ferrolho”, numa ANC de composição esmagadoramente conservadora. O recurso à aprovação prévia da Comissão de Sistematização é, por sua vez, um ardil de superação dificílima e bastaria ele para criar um “ferrolho” quase intransponível.653

Reiteradamente, Florestan aponta o papel histórico da Constituinte; tal como vimos ao

longo deste processo – seja para explicar a ditadura de forma geral em A revolução burguesa,

ou para explicar o milagre econômico e o processo de manipulação dos partidos – o autor

retoma todo o movimento de transformação histórica do país, porém acentuando, desta vez, a

forma especifica pela qual o país desenvolve sua estratificação social; é o que lemos no

discurso de 29 de abril de 1987, denominado A constituição como projeto político.654

Florestan inicia seu discurso fazendo uma comparação entre o processo de

estratificação em diversos países capitalistas como base dos projetos políticos de suas

Constituições; projetos estes que traduzem “ideológica e socialmente como as classes

dominantes pretendem organizar a sociedade civil e o Estado”.

Segundo o autor, a estratificação social varia de acordo com o modo de produção

econômica, interesses e situações de classe “dos estratos sociais que se apropriam do poder

real, dominam as outras classes, estratificam a sociedade civil como condição histórica para

reproduzir a ordem social existente”.

Assim,

A Alemanha era um país periférico, dependente e subdesenvolvido; os Estados Unidos tinham um passado colonial e corriam o risco de realizar uma independência engolfada na dominação econômica externa, através do mercado, e, portanto, de ver sua soberania política corroída e o forte impulso de seu “destino manifesto” anulado; o Japão resistiu decididamente ao drama do colonialismo, contornando-o e resguardando-se como uma nação independente, por meio de uma revolução econômica sob controle social e político interno. O Brasil caminhou em outra direção, como sucedeu em toda a América Latina. Aceitou a dominação indireta como uma

653 FERNANDES, Florestan. Autofagia (1987). Ib., A constituição inacabada: vias históricas e significado. São Paulo: Estação Liberdade, 1989, p. 74. 654 Ib., A constituição como projeto político (1987). In: Ibid., O processo constituinte: pronunciamentos e debate. Brasília: Câmara dos Deputados/Centro de Documentação e Informação, 1988, p. 11.

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vantagem histórica, privilegiando a preservação das estruturas coloniais de produção e estratificação social.655

A Constituição no Brasil estaria, então, vinculada, não ao liberalismo anticolonialista,

“mas ao absolutismo da coroa e a um modelo de sociedade civil que restringia a monarquia

constitucional à vontade política dos senhores de escravos”. Como resultado, a tradição

constitucional do país é impregnada de um “modernismo importado e de formalismo jurídico

avançado”, cujos elementos funcionam como “um biombo para excluir os homens pobres

livres da sociedade civil e para dar continuidade à existência e à sobrevivência da escravidão,

com as novas perspectivas que se abriam a uma economia satelitizada e exportadora”.656

Para Florestan, esta é a “raiz remota” que sempre ressurge “no agravamento sempre

renovado da ‘tragédia brasileira’”:

Não existe uma consciência constitucionalista, porque não existe uma sociedade civil que associe o modo de produção capitalista à necessidade histórica das várias revoluções burguesas (como a revolução nacional, a transformação estrutural capitalista no campo, a revolução urbana e a revolução democrática). A nossa modernização política se reduziu à importação de uma tecnologia estatal de dominação de classe. A modernização se impunha: de fora, para encadear a produção econômica interna ao mercado mundial; de dentro, para que as classes dominantes pudessem dispor de instrumentos eficazes de defesa da ordem e pudessem associar-se aos estratos mais poderosos da burguesia internacional contando com freios para limitar o constante desgaste que eles exerciam sobre a soberania do Estado.657

Neste quadro, a democracia se constitui como sistema de poder deformado e o

constitucionalismo, como farsa política, ao mesmo tempo em que o Estado funciona como

castrador da Nação.

Resgatando as várias constituições, Florestan aponta que a da República Velha foi

mera cópia de progressos de outros países, sem incorporar a crise recente do modo de

produção escravista. Já a Constituição de 1934 acaba por registrar um saldo histórico que não

se realizou, “porque as classes dominantes e suas elites preferiram defender-se fora e acima

do circuito das revoluções burguesas, recorrendo a uma ditadura que recompôs a estabilidade

política dentro da ordem”:

Prevalece, então, uma política de fundar a paz social em concessões entendidas como antecipadas e suficientemente elásticas para anular as pressões sociais dos de baixo, especialmente das classes trabalhadoras, da pequena burguesia e de uma classe média inquieta

655 FERNANDES, Florestan. A constituição como projeto político (1987). In: Ibid., O processo constituinte: pronunciamentos e debate. Brasília: Câmara dos Deputados/Centro de Documentação e Informação, 1988, p. 11 656 Ibidem. 657 Ibid., p. 12.

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com os abalos que sofriam sob as novas tendências de desenvolvimento capitalista e de alterações do regime de classes sociais.658

Durante o Estado Novo, é arquitetado um modelo de “paz burguesa” que articula o

interesse de vários setores da burguesia; por outro lado, é reciclada uma oligarquia (baseada

em uma plutocracia) que se recusa a levar “avante, das constrições e cicatrizes do regime

ditatorial e da transição para uma nova era, dita ‘democrática’”.

Na segunda guerra, a morfologia do país se altera, substancialmente, com um novo

ritmo de industrialização, crescimento das cidades e do mercado interno. Ocorrendo também

uma mudança na relação Campo/Cidade e modificações estruturais no regime de classes.

A pressão de baixo para cima tornara-se demasiado forte para o esquema de paz burguesa, montado pelo Estado Novo. O referido esquema de paz social nunca deixou de operar contra os oprimidos, as reivindicações do movimento operário e sindical, a eclosão democrática visada pelo pólo proletário da luta de classes, até hoje. Graças à ditadura, a representação sofrerá um golpe sério, principalmente nas cidades mais urbanizadas e industrializadas; e o sistema de poder burguês perdera o monolitismo anterior, o que levou ao Parlamento uma nova safra de políticos burgueses ou vinculados ao proletariado.659

Pela primeira vez na história brasileira, as classes dominantes travam uma luta dentro

do Parlamento; e, como tática, cedem o “terreno no plano formal e ideológico, mantendo

firmes as rédeas da dominação de classes (no que se viam ajudadas pela herança institucional,

legal e política do Estado Novo, mantida intacta nos pontos essenciais)”.660 Procedimento

possível, na medida em que se encontrava uma maioria conservadora no Parlamento; assim, a

Constituição de 1946 “exibe uma modernização espantosa”, no entanto, “uma democracia de

fachada mantém-se à tona, sem fazer face às exigências da situação histórica”.

Neste contexto dá-se a internacionalização da economia que corresponde à

internalização crescente do modelo monopolista de desenvolvimento capitalista

O fim da década de 1950 e o início da década de 1960 denunciavam que através dos meios tradicionais (do mandonismo, do paternalismo e do clientelismo) só se poderia compor uma maioria parlamentar conservadora, sem deter as eclosões sociais que atingiam gravidade extrema. Dentro de aparências democráticas e do ritualismo eleitoral seria impraticável manter a estabilidade política e o controle burguês da sociedade civil e do Estado. As crises explodem no âmbito do Governo, porque as classes dominantes não conseguiam enfrentá-las e resolvê-las no seio da

658 FERNANDES, Florestan. A constituição como projeto político (1987). In: Ibid., O processo constituinte: pronunciamentos e debate. Brasília: Câmara dos Deputados/Centro de Documentação e Informação, 1988, p. 12. 659 Ibid., p. 13. 660 Ibidem.

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sociedade civil nem transferi-las e solucioná-las na esfera do Parlamento.

O resultado teria sido o golpe militar, ou seja, “a Constituição de 1946 não gerou a

democracia, pariu a ditadura militar”.661

Durante a ditadura, desenvolve-se um forte componente de dominação externa direta,

no qual “o imperialismo deixa de operar seletivamente, através do mercado mundial,

implantando-se dentro do País, como o antigo sistema colonial”. A industrialização maciça e

o aparecimento de um novo sindicalismo modificam a “moldura histórica”; e, neste contexto,

as classes burguesas colocam em primeiro plano a estabilidade política e a repressão policial-

militar da luta de classes. “Não há clima para o populismo – nem mesmo um populismo

militar ultranacionalista de direita. Nessas condições, ocorrem duas oscilações dentro da

sociedade civil, no que refere à existência do Parlamento, dos partidos, das eleições e dos

marcos constitucionais”.662

Para Florestan, havia uma oscilação que vinha de cima, da composição de poder civil-

militar, que leva a uma “revisão constitucional” e culmina na Constituição de 1967 e seus

complementos, que ganham o nome de “Constituição de 1969”. Junto aos atos institucionais,

formam uma “ordem ilegal indiscutível” apoiada pelo aparelho policial-militar, ou seja, uma

constituição que nasce da violência.

Para amainar a contra-violência, as classes dominantes realizaram “concessões que

provocaram uma ‘democratização de cima para baixo’, batizada de ‘consentida’”, e, com isso,

conseguiram preservar a ordem ilegal e interromper as “eclosões sociais” através de artifícios.

As classes trabalhadoras e os sindicatos foram os principais peões dessas concessões, porque provocaram medo entre os de cima. Mas não se deve subestimar o papel que tiveram entidades e organizações que combatiam abertamente a ditadura e recorriam à desobediência civil como instrumento de desmoralização da ditadura e de sua desagregação. Além disso, a ditadura pagou um preço alto à hipocrisia. Para contar com uma fachada democrática, admitira a oposição consentida. O MDB (e o PMDB em seguida) se desprenderam da liberdade relativa vigiada e puseram em prática, in crescendo, a oposição real.663

Na medida em que a ditadura deixava de aparentar uma legitimidade que não possuía,

ela se tornava cara e obsoleta; e, desta forma, “compelia os sócios hegemônicos, as nações

capitalistas centrais e as ‘multinacionais’, e as classes dominantes nacionais e suas elites a se

661 FERNANDES, Florestan. A constituição como projeto político (1987). In: Ibid., O processo constituinte: pronunciamentos e debate. Brasília: Câmara dos Deputados/Centro de Documentação e Informação, 1988, p. 14. 662 Ibidem. 663 FERNANDES, Florestan. A constituição como projeto político (1987). In: Ibid., O processo constituinte: pronunciamentos e debate. Brasília: Câmara dos Deputados/Centro de Documentação e Informação, 1988, p. 15.

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exporem em cheio ao ódio que fermenta nos porões da sociedade”.664 E por aí dar-se-ia o

referencial da segunda oscilação apontada por Florestan.

Frente ao barril de pólvora que o Brasil se tornara, era necessária ou uma alternativa

para a retirada estratégica da ditadura militar “que os desmoralizaria e os faria passar à

História como bodes expiatórios (quando, de fato, eles foram a mão do gato...)” – ou um

movimento pacífico pelas eleições diretas.

O PT encetou o segundo ponto de partida, rapidamente endossado pelas entidades e organizações que se batiam pela desobediência civil e pelo PMDB, engrossado pelos liberais que navegavam nos barcos e nas águas da ditadura. Em conseqüência dessa evolução, a oscilação ganhou força e logo demonstrou que seria imbatível. Nesse contexto, o movimento das diretas-já, que poderia propiciar uma saída límpida e radical, submergiu numa composição conservadora, que decidiu, a partir de cima, atravessar o rubicão através do Colégio Eleitoral. Aliaram-se os chefes militares “civilizados”, o PMDB através de suas cúpulas dirigentes e os “democratas” recém-saídos do ventre do regime em decomposição. Isso significa que a oscilação foi detida por uma nova conspiração, que se crismou como um ato de conciliação política. Ela também endossou a fórmula político-militar de uma transição democrática lenta, gradual e segura! A ordem ilegal atrasou a crise letal, que se esboçara, e protegeu o nascimento da Nova República. Convertido em partido da ordem, o PMDB deu guarida à Aliança Democrática, pela qual os chefes militares e os notáveis da ditadura iriam cobrar, em conúbio com a maioria conservadora da cúpula do PMDB e do Parlamento a continuidade da ordem ilegal forjada pela República institucional.665

Desta forma, a oscilação histórica foi cortada em seu ápice e gerou duas visões opostas

sobre o que deveria ser a Constituinte em elaboração: a primeira defende o “compromisso

sagrado com Tancredo Neves” e que se demonstra altamente conservadora, se fixando na

consolidação da “nova República”. Esta visão compreende o Congresso reduzido a um poder

derivado, reiterando um afã ultraconservador e ultra-reacionário – “que conta com o apoio da

maioria parlamentar e com a tolerância das direções dos principais partidos da ordem – o

PMDB e o PFL à frente” –666 de realizar uma revisão da “Constituição de 1989”, conferindo-

lhe legitimidade.

A segunda visão é a daqueles vários grupos e tendências de opinião que

“compartilham da ideia de que o desenvolvimento capitalista e do regime de classes sociais

desembocou em um beco sem saída que só pode ser ultrapassado se os oprimidos e os

trabalhadores adquirirem peso e voz na sociedade civil e a faculdade de exercer controle ativo

664 Ibidem. Grifos do autor. 665 Ibidem. 666 FERNANDES, Florestan. A constituição como projeto político (1987). In: Ibid., O processo constituinte: pronunciamentos e debate. Brasília: Câmara dos Deputados/Centro de Documentação e Informação, 1988, p. 16.

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sobre o funcionamento no Estado”.667 Deste ponto de vista, a Constituinte deveria ser

realizada para um devir: “uma sociedade civil civilizada e um Estado capitalista

democrático”. Ou seja, para uma revolução dentro da ordem.

Isso desenha uma curiosa situação histórica. A Constituição é menos importante que a dominação direta de classe e o uso do Estado como uma arma de ataque e de defesa nas relações com os oprimidos e com as classes trabalhadoras. Não pode haver Constituição e projeto de Constituição, porque não há promessa – prevalece o impulso e o apego à repressão. Sem resolver o problema principal, suas relações com o imperialismo e sua debilidade orgânica diante dele, com as multinacionais crescendo por dentro da sociedade brasileira, transformada em fronteira do centro imperial, as classes dominantes nada têm a oferecer – ou dominação ou caos. O que fazer diante da miséria? O que fazer com o desemprego crescente? O que fazer com o papel das Forças Armadas? O que fazer com a propriedade, a iniciativa privada e o Estado? A sociedade civil, por sua mesma organização capitalista, erige-se em uma fonte de ameaças. O Estado, por sua mesma organização capitalista, erige-se em um fortim – mas como confiar nele, se ele sofre um gigantismo incontrolável, necessário à acumulação capitalista? O conservantismo é o único ponto seguro.668

Este posicionamento conservador repele qualquer alternativa de democracia

participativa, ainda que dentro dos padrões burgueses, identificando-a como um equivalente

político do socialismo, pois se torna um “fantasma” “para a totalidade de uma burguesia presa

a privilégios pré-capitalistas e a uma acumulação capitalista originária permanente, que não

cessa nunca, alimentada pela deformação do Estado”.669

Se a burguesia e se os estratos mais politizados e orgânicos da burguesia não possuem alternativa, a Constituição não encontra os campeões de um projeto constitucional dentro da ordem. E os que combatem a ordem existente não podem levar a sério substituir seus ideais revolucionários pela salvação da ordem!... Não é o seu papel histórico. O que lhes compete é lutar pela revolução social e pela conquista do poder. Na ANC eles compõem uma esquerda real, que não se confunde com a esquerda dos partidos da ordem e do Governo. À margem desses partidos, eles podem formar, em uma situação de atraso político, ao lado daquela esquerda parlamentar. Contudo, só poderão pensar em projeto de Constituição quando a questão do poder se formular em termos de como organizar uma sociedade e um Estado socialistas.670

Esta conclusão que chega Florestan parece ser contraditória. Lembremos que em seu

discurso inaugural o autor declara que estava em uma posição paradoxal por ser um socialista

667 Ibidem. 668 Ibid. p. 18. 669 Ibidem. 670 FERNANDES, Florestan. A constituição como projeto político (1987). In: Ibid., O processo constituinte: pronunciamentos e debate. Brasília: Câmara dos Deputados/Centro de Documentação e Informação, 1988, p. 19.

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lutando por reformas tipicamente burguesas; isto porque a própria burguesia, por sua

morfologia história, seria incapaz de realizá-las. Já no discurso citado acima, Florestan parece

adotar a postura de uma esquerda revolucionária que deve ir ao parlamento para cumprir uma

função que se limita a denúncia.

Ao que parece, esta não foi mais que uma oscilação, dentro das várias situações

contraditórias que o parlamento lhe impunha. O autor tinha consciência destas oscilações que

pareciam ziguezaguear de acordo com as esperanças e desilusões que o processo histórico

vivo ia criando:

[...] as esperanças e decepções subiram e desceram, ao longo do período. [...] O leitor descobrirá o quanto é volátil a imaginação humana. Às vezes, com as esperanças no alto, acreditei, com outros companheiros, em avanços que afloraram reiteradamente, sem concretizar-se. Outras vezes, com as decepções fervendo, empenhei-me a fundo no combate contra influências ou deliberações, que se desvaneceram ou vigaram.671

Esta posição pode ser vista em toda a atividade de Florestan Fernandes no que diz

respeito à segunda parte deste trabalho, isto só demonstra que, apesar de partir de um sólido

referencial analítico, não estava dogmaticamente apegado a ele, pautava-se em boa medida na

história viva que se desdobra em possibilidades e frustrações.

4.5 Notícias e estratégias da Constituinte

Florestan guardou em seu escritório alguns registros das reuniões de trabalho com sua

base de campanha. Neles, o autor dá notícias de como andavam os trabalhos na Câmara,

esclarecia maus entendidos que nasciam a partir da divulgação tendenciosa da mídia e fazia

análises conjunturais do processo político da Constituinte. Apesar dos registros possuírem um

caráter fragmentário, encontramos no material uma série de elementos que são tratados

diferentemente de seus discursos jornalísticos e de seus pronunciamentos como deputado.

Trata-se de um discurso de bastidores, que, por vezes, nos ajuda a esclarecer elementos que

por outros meios não aparecem ou aparecem de forma mais velada. Neste item, partiremos

deste discurso e desdobraremos outros elementos a partir dos artigos e pronunciamentos de

Florestan Fernandes.

Em um áudio que data de 14 de fevereiro de 1987, Florestan declara: “eu gostaria que

vocês falassem com franqueza o que vocês estão pensando, porque se eu começar a falar vou

exercer influências sobre vocês [...] todos podem falar, eu estou interessado em ouvir críticas

671 Ib., Nota explicativa (1988). In: Ib., A constituição Inacabada: vias históricas e significado político. São Paulo: Estação Liberdade, 1989, pp. 11-12.

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ao meu trabalho no Congresso”.672 No entanto, a pessoa que estava gravando a reunião parece

cortar esta parte inicial do encontro logo após esta declaração do sociólogo; assim,

prevalecem no conteúdo da fita as falas de Florestan e alguns trechos de debate.

A fala de Florestan busca apresentar principalmente como está sendo o trabalho do PT

e também a avaliação de outros partidos da esquerda e das dificuldades encontradas.

O primeiro problema a ser enfrentado pelo autor é o fato de que o trabalho da

Constituinte já nascia viciado pela prática do Congresso; para Florestan, somente uma ANC

exclusiva poderia ter selecionado constituintes e não deputados e senadores – que “carregam

consigo, na maioria, hábitos e expectativas adquiridos pela prática parlamentar rotineira”. Por

outro lado, o “Centrão”673 havia conseguido aprovar o segundo regimento, que acentuava “a

moldagem da ANC pela rotina das citadas instituições, diluindo o constituinte na

personalidade-status do deputado e do senador. A imaginação política constituinte foi, desta

forma, sufocada em favor da práxis legislativa”.674 Está “imaginação política constituinte”

estava longe de ser secundária no processo, uma vez que o parlamentar “se investe de uma

soberania delegada de curta duração e alta intensidade” e que se choca com a imaginação

política legislativa, operada “através de princípios e preceitos constitucionais já

instituídos”.675

Desta forma, ao submeter a ANC ao Congresso Nacional Constituinte, ela fica

“reduzida em substância e atribuições a um poder constituído”, gerando uma renovação

superficial dos quadros, que ficam cheios de “políticos profissionais, parlamentares de

mentalidade legislativa e objetivos políticos essencialmente regulados e de rotina” – mas,

obviamente, houve exceções, tanto de parlamentares de “legislaturas anteriores”, que

“demonstrassem sólida vocação política constituinte”, como o seu contrário.

Houve, portanto, uma tendência espontânea a subordinar ANC ao modo tradicional de

organizar as realizações institucionais e de “induzir o constituinte a comportar-se como se

fosse um legislador exercendo um papel adicional (emendar velhas constituições ou submeter-

672 FERNANDES, Florestan. Fita 5 – Título: Florestan Fernandes 1 – 14 fev. 87. Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes. 673 O “Centrão” tinha a finalidade de um mecanismo de demolição, não se tratava de um “centro”; segundo Dreifuss, “jamais houve centro, enquanto postura básica e programática, embora o termo campeie no marketing ideológico”: “O terceiro esforço bem sucedido de articulação conserviológica foi a constituição do ‘Centrão’ – montado para enfrentar as esquerdas nas questões centrais e substantivas – como pretenso espinhaço da nova Constituinte. [...] O grupo, que aglutina uma maioria de 280 a 290 votos [...] se transformaria em verdadeiro rolo compressor do empresariado para a votação de questões vitais na Constituinte”. DREIFUSS, René. Op. Cit., p. 113. 674 FERNANDES, Florestan. Rigidez institucional (1988). In: Ib., A constituição Inacabada: Vias Históricas e Significado Político. São Paulo: Estação Liberdade, 1989, p. 227. 675 Ibidem.

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se à revisão constitucional)”.676 O resultado deste conjunto mental e institucional é que

“perdeu-se muito tempo com coisas que pouco têm a ver com a elaboração de uma

constituição moderna e democrática. A retórica vem consumindo pelo menos dois terços do

tempo de trabalho”.677

Florestan relata sessões esparramadas pelos “pinga-fogos”, “horário das lideranças” e,

meio a isto, “o fervilhar de reclamações e de questões de ordem”:

Não impera nem a concentração mental nem o trabalho intensivo exclusivamente dedicado à discussão, reelaboração e aprovação das emendas e dos destaques. A dispersão estimula o palavrório e acarreta uma rigidez institucional destrutiva. Primeiro, porque ela confere ao Presidente e à mesa poderes e atribuições que são exorbitantes. As soluções ditatoriais desabam de cima para baixo, como se o Presidente e os demais membros da mesa fossem superconstituintes. Segundo, porque multiplica a perda irremediável de tempo.678

Cria-se, portanto, uma anomalia – a rigidez constitucional – que favorece as classes

dominantes, pois está presa à ordem existente e à figura do parlamentar bem comportado que,

na busca de modelos modernos de constituinte, cria uma Constituinte da colagem:

Poder-se-ia dizer: a Constituição é uma colagem. Onde os mortos não governam os vivos, os vivos imitam o legado de várias constituições, “clássicas” ou modernas. Onde o Brasil comparece de corpo e alma, o que prevalece são as composições que dão primazia à iniciativa privada, à “colaboração” com o capital estrangeiro e à privatização do público, o que permite tanto a sobrevivência de privilégios arcaicos nos quadros do Estado quanto a concepção superada de que uma “boa constituição” configura-se como uma carta de organização do Estado. Os constituintes não se empenharam cm debates preliminares sobre o caráter da Constituição necessária ao Brasil concreto de hoje. Tampouco deram atenção ao que lhes cabia diligenciar para exceder a mentalidade legislativa e representar a Constituição como “uma revolução a fazer”.679

Frente a esta rigidez institucional, a primeira estratégia que parece funcionar para a

atuação do partido, de forma geral, é a utilização do Pinga Fogo, que segundo ele, é um dos

momentos mais caóticos no Congresso. A ideia de utilizar o “pinga-fogo”, se deu porque o PT

apresentava formalmente as resoluções e a mesa as “engavetava”; assim, o esforço coletivo

concentrados nas resoluções formais passaram a ser encarnados também por “tentativas

individuais de apresentação dos tópicos das resoluções que são vitais, porque permitiriam

676 FERNANDES, Florestan. Rigidez institucional (1988). In: Ib., A constituição Inacabada: Vias Históricas e Significado Político. São Paulo: Estação Liberdade, 1989, p. 228. 677 Ibidem. 678 Ibid., p. 229. 679 FERNANDES, Florestan. Rigidez institucional (1988). In: Ib., A constituição Inacabada: Vias Históricas e Significado Político. São Paulo: Estação Liberdade, 1989, p. 229.

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fazer a abulasão desses elementos que são realmente perniciosos nesse Frankstein

constitucional que nós herdamos da ditadura e que foram vitalizados pela Nova República”.680

Florestan narra o processo constituinte como a luta de uma formiguinha (esquerda)

contra um elefante (direita): “só na cabeça da formiga cabe a ideia de que o elefante se abala

com a presença dela e com a atividade dela”.681

Neste quadro, segundo Florestan, “o PT luta tenazmente”, ainda que a imprensa

apresente uma ideia de que os parlamentares do partido fizessem corpo mole, buscando assim

criar uma estigmatização contra o PT: a de um partido radical e irresponsável.

Percebeu-se, já nesse momento, a necessidade de mudar o sentido da atividade

parlamentar de mera defesa do socialismo para uma participação “mais produtiva”:

E de fato a única coisa que sobra para o militante petista mais radical é que os deputados lá acabaram levados – não tinha outra saída – a tomar uma posição mais realista do que aquela que prevalecia antes. Quer dizer, antes a ideia era que nós chegarmos lá definirmos as nossas preposições numa linguagem socialistas, numa linguagem socialista e fazermos o nosso papel, mas, em vista da inocuidade da coisa, a orientação foi no sentido de tentar intervenções que tenham um conteúdo e conseqüências mais produtivas, então o militante petista mais exigente pode estar insatisfeito.682

Florestan ressalta que o PT trabalha muito tentando modificar as coisas de todos os

lados possíveis, mas deixa claro que “o fato é que a maioria parlamentar é representante de

uma minoria capitalista [que] está habituada ao poder”. 683

Diferente dos deputados com “visão de carreira política”, o problema para o PT “é

intrinsecamente político”, mas não depende apenas da vontade, já que há toda uma

configuração que complica a atuação da esquerda e facilita, por outro lado, o político de

“visão de carreira”. Chega-se a uma situação na qual havia mais de 1.400 emendas ao

regimento interno – “quer dizer, que a equipe que trabalha com Fernando Henrique Cardoso

tem um prato suculento ali, porque eles podem manipular o regimento à vontade, com todas

essas emendas eles podem pinçar tudo o que for mais vantajoso, limitar o campo”.684 Diante

disso, declara de antemão que “a batalha pelo regimento é uma batalha que não vai ser

680 Ib., Fita 5 – Título: Florestan Fernandes 1 – 14 fev. 87. Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes. 681 Ibidem. 682 Ibidem. 683 “Portanto as prerrogativas tem de ser reconquistadas, a pressão que vem diretamente das classes possuidoras, dos seus setores mais fortes nacionais ou estrangeiros, ou que vem do executivo, ou que vem do judiciário, são no sentido de manter a subalternização do parlamento. E o PT naturalmente se bate contra isso com as outras forças, mas ao mesmo tempo é uma luta que até agora não produziu outros dividendos a não ser nos manter lá ativos, tentando fazer o que é possível. Aí não por uma questão de respeito pelos nossos eleitores, por uma questão de respeito pelo próprio papel que nós conquistamos”. Ibidem. 684 FERNANDES, Florestan. Fita 5 – Título: Florestan Fernandes 1 – 14 fev. 87. Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes.

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vencida por nós” e amarga a compreensão de que “nós temos o pequeno PT travando uma

batalha com denodo e conseguindo vitórias que são vitórias mais morais do que políticas”.685

Além da rigidez institucional, aparecem outras preocupações relacionadas com

práticas e organizações de defesa e reforço das classes dominantes no Congresso Constituinte.

Preocupações como, por exemplo, lobbies e instituições como a União Democrática Ruralista

(UDR); problemas que, no momento, mostravam toda a sua vitalidade, uma vez que:

Mobilizou com intransigência os numerosos parlamentares-empresários e conservadores, suas entidades corporativas, massas variáveis de suas facções de classe, seus lobbies, grupos de pressão e canais de influência direta e indireta, da presidência aos meios culturais de comunicação de massa. Em seguida, sabotou a aplicação dos dispositivos constitucionais “perigosos”, a regulamentação das principais leis necessárias, os poucos protestos indignados do Legislativo. O Executivo recorreu à desobediência depreciativa, com apoio intimidador da tutela militar e, no início, a cumplicidade do Judiciário (que só atuou de modo exemplar em casos esporádicos).686

A UDR, que tinha “uma implicação muito forte dentro do parlamento” e que acabara

de realizar uma “caminhada cívica” de 30 a 40 mil pessoas, segunda suas próprias

estimativas, para pressionar o Congresso, sustentava: “Nós vamos lá dar apoio aos nossos

deputados, àqueles que defendem os mesmos princípios da UDR, de direito à propriedade

privada e respeito ao princípio da livre iniciativa”.687A instituição teria influências não só no

PFL e PDS, mas também em setores do PMDB – partido que dizia não apoiá-la – que

estiveram presentes no dia da manifestação. Para Florestan, “a UDR passou a manta no PT e

em outros partidos de esquerda política, eles mobilizaram o pequeno produtor e lançaram uma

massa do pequeno produtor lá”;688 ou seja, não apenas organizou uma manifestação “com

todas as técnicas modernas” e com muita “eficácia”, mas também mobilizou o trabalhador;

ainda que

Na festa da UDR, como admitiu o próprio Caiado, tinha até mesmo trabalhador rural recrutado pelos patrões. Eles, de acordo com uma denúncia da Comissão de Conflitos Agrários do Incra, foram enganados pela UDR. No distrito de Floresta, no sul do Pará, os trabalhadores foram convidados com o apelo de que iriam

685 “As coisas levam o parlamento a ter uma circulação de ar viciado, pelo top. Então quais são os ganhos que nós vamos ter, eu não sei. É claro que com essa avalanche de propostas alguma coisa se deslocou do centro, ou da direita, ou da direita para o centro, ou do centro para a esquerda. Mas isso não é algo que assuste os conservadores e que ameace o equilíbrio da ordem”. Ibidem. 686 Ib., Revisão constitucional (1990). In: Ib., Parlamentarismo: contexto e perspectivas. Brasília: Centro de Documentação e Informação Coordenação de Publicações, 1992, p. 33. 687 Paulo Roberto BERNARDES (vice-presidente da seccional mineira da UDR e secretário-geral da Frente Ampla em Minas) apud UDR leva 30 mil para pressionar Constituinte. Jornal do Brasil, 1º caderno, política, 2 jul. 87, p. 2. 688 FLORESTAN, Fernandes. Fita 5 – Título: Florestan Fernandes 1 – 14 fev. 87. Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes.

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pressionar os Constituintes a transformar o distrito em município. Em Redenção, na mesma região, o convite era para que a nova Constituição garantisse o direito à propriedade.689

O episódio da marcha dos 30 mil só servia para reforçar a ideia de Florestan de que

não se poderia “superestimar não só a organização do capital e a sua disposição de luta, mas

também a atividade política que ele está desencadeando com decisão”.690

A preocupação imediata de Florestan com o evento da UDR era com o impacto na

opinião pública:

Mostra que se a esquerda não acordar, se nós não nos libertarmos dessa fixação na Constituição, quando nós acordamos vamos ter uma realidade mais difícil porque eu acho a Constituição importante, mas há outras coisas que estão acontecendo que são tão importantes quanto à Constituição.691

Para ele, a luta direta com estes setores conservadores do campo e da cidade seria

primordial, na medida em que “poderá decidir se uma Constituição avançada depois será ou

não aceita”.692

Era necessário ativar uma movimentação social que desse respaldasse o trabalho

constituinte, que se encontrava limitado a um espaço totalmente dominado pela burguesia e

que necessitava, como contrapeso, da participação popular.

Houve um erro na sociedade brasileira pensando: fulano, beltrano sicrano, agora resolve o problema..., o Lula resolve. Não resolve. É preciso ter o movimento da luta de classes [...] Que a organização social da CUT, do PT, do PC, do PCdoB, etc. [...] e que daí surja uma base social e política diferente, para que os parlamentares que estão vinculados ao movimento popular, às classes trabalhadoras, que eles possam desempenhar novos papéis. Porque de fato nós estamos dentro do espaço burguês, nós não saímos dele. Na, verdade nós estamos trabalhando com a burguesia e para a burguesia. É preciso que se diga isso com coragem. Mas não pela burguesia. Nós fazemos isso com outras intenções.693

Em boa medida, as possibilidades vislumbradas por Florestan na Constituinte

passavam pela ativação dos movimentos sociais, mais do que pela luta aberta dentro da

Constituinte.694 No entanto, se por um lado, Florestan, juntamente com os demais setores da

esquerda, buscava ampliar a participação popular, os setores conservadores não só tentavam

689 UDR espera até 40 mil em sua marcha em torno do Congresso. O Globo, o país, 11 jul. 87, p. 3. 690 FLORESTAN, Fernandes. Fita 5 – Título: Florestan Fernandes 1 – 14 fev. 87. Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes. 691 Ibidem. 692 Ibidem. 693 FLORESTAN, Fernandes. Fita 5 – Título: Florestan Fernandes 1 – 14 fev. 87. Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes. 694 Ver texto feito para o Boletim Nacional da CUT: Controle burguês do processo constituinte (1987). In: Florestan Fernandes. A constituição Inacabada: vias históricas e significado político. São Paulo: Estação Liberdade, 1989, p. 116.

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artifícios que passassem a ideia de receberem apoio popular, como no caso narrado acima

sobre a passeata dos 30 mil, como também buscavam formas de limitar e filtrar a participação

que apoiava a esquerda parlamentar. Em resumo:

O Povo penetrou dentro da casa, mas não a conquistou. Tudo foi feito para excluí-lo, da forma mais minuciosa e inteligente. Sessões para debates constitucionais inócuas, estruturadas dispersivamente e com presença limitada do Povo nas galerias. É claro, ele não compareceu... A festa não era para ele; era para os que pretendem editar uma constituição que reproduza a ordem existente tal qual ela é no momento. As pressões para corrigir essa deliberada esterilização do processo constituinte foram pura e simplesmente ignoradas.695

Ora, o processo constituinte transfere a “transição democrática”, como “um marco

insuperável na história das torpezas políticas”,696 para dentro dos muros do Congresso. Assim,

a ANC sofreu o impacto das anomalias políticas desta “transição democrática”: como os

partidos da ordem não possuíam projeto de Constituição, viram “na elaboração da

Constituição uma oportunidade para transformar suas batalhas em pugnas no seio do processo

constituinte. Em conseqüência disso, prolongaram-no, complicaram-no e empobreceram-

no”.697

Dentro dessa moldura histórica c política, os partidos verdadei-ramente radicais e de esquerda ficavam asfixiados dentro da Assembleia Nacional Constituinte. O PDT, o PT, o PSB, o PC do B c o PCB sequer dispunham de uma arena política para se afirmarem cm termos de seu radicalismo, de seu socialismo proletário ou de seu comunismo. Portanto, a “transição democrática” ligava o nada ao lugar nenhum e só contribuía para tornar invulneráveis as muralhas da reação.698

Florestan declara que “o processo constituinte foi cercado de condições negativas

insanáveis”, graças a uma sociedade civil dominada por categorias sociais privilegiadas, que

deteriorou a constituinte de duas maneiras: a primeira, “porque determinou a composição da

maioria parlamentar”, e a segunda, “porque ela dispõe de uma capacidade de pressão

tentacular. Ela define e impõe, como moeda corrente, o que entende como natureza ‘pacífica’

e ‘moderada’ do Povo brasileiro. E, acima das contingências, manipula todas as instituições-

chave, da escola, da Igreja e da empresa ao Estado”.699 Sem falar no constrangimento, já

apontado, que veio da tradição parlamentar.

695 Florestan Fernandes. O jeitinho brasileiro (1987). In: Ib., A constituição Inacabada: vias históricas e significado político. São Paulo: Estação Liberdade, 1989, p. 128. 696 Ib., A “transição democrática”: novas perspectivas? (1987). In: Ibid., p. 146. 697 Ibid., p. 148. 698 FERNANDES, Florestan. A “transição democrática”: novas perspectivas? (1987). In: Ib., A constituição Inacabada: vias históricas e significado político. São Paulo: Estação Liberdade, 1989, p. 148. 699 Ib., O apogeu do processo constituinte (1987). In: Ibid., p. 165.

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A nossa presente Constituição contém muitos avanços nas áreas das liberdades individuais e coletivas ou dos direitos sociais. No entanto, esses avanços são moderados. Não correspondem à necessidade de dar peso e voz aos assalariados na sociedade civil e no Estado e, quanto aos milhões de excluídos, miseráveis e oprimidos, eles são inócuos. Não contribuem para extinguir a fome, o desemprego ou subemprego aberto e disfarçado, o atraso cultural e mental, a desumanização crônica e o aviltamento moral que prevalecem no campo e na cidade.700

Obviamente que Florestan sabia e sempre disse que uma constituição não poderia

fazer milagres, a questão é que, no caso brasileiro, “onde o poder público recua ou anula, a

iniciativa privada não opera como um fator estrutural e dinâmico de compensação. Ao

contrário, o subdesenvolvimento funciona como o motor permanente de uma acumulação

capitalista originária, que se renova sem cessar, insaciável”.701 É neste sentido, estrutural

histórico, que a constituição não apresentava grandes garantias e nem representava grandes

avanços.

Para compreender o significado da Constituição de 1988, Florestan ressalta mais uma

vez o caráter da classe burguesa nacional e o tipo de democracia burguesa que lhes

corresponde:

Como não há aqui qualquer forma concreta de antiimperialismo, as classes burguesas do tope cultivam a rendição passiva como negócio, e os estratos médios e baixos da burguesia, bem como as várias facções da pequena burguesia, propugnam por um nacionalismo defensivo. A ideologia da superpotência e das nações centrais e a ideologia das classes burguesas, com variações de radicalidade que não ameaçam o modelo de produção capitalista “internacionalizado”. Ele pressupõe uma democracia relativamente domesticada e facilmente conversível cm "Estado de Segurança Nacional".702

Apesar deste tom bastante negativo em relação ao processo constituinte, em seu

balanço final, Florestan não se mostra totalmente pessimista. Aponta que as contradições do

capitalismo monopolista – que acabaram por passar como um “trator” sobre as classes médias

– geraram um fermento que chegou até a ANC e que gerou duas tendências: a primeira se

constitui do conservadorismo burguês reacionário e pró-imperialista que “cortam o texto

constitucional de ponta a ponta”; e, a segunda, uma participação popular, na qual “os de baixo

levavam seus clamores aos constituintes e bem ou mal tinham de ser ouvidos”.

O resultado foi uma Constituição heterogênea e heteróclita:

700 Ib., Opressão de classe e Constituição (1987). In: Ibid., p. 177. 701 Ibid., pp. 177-178. 702 FERNANDES, Florestan. O produto final (1988). In: Ib., A constituição Inacabada: vias históricas e significado político. São Paulo: Estação Liberdade, 1989, p. 346.

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Preserva intacta uma ampla herança do passado, inclusive a tutela militar, como recurso extremo para qualquer fim... Mas abre muitas portas para a inovação mais ou menos radical. Isso indica que a sociedade civil se alterou cm suas estruturas e dinamismos fundamentais. Porém, a burguesia mostrou-se incapaz de formular um projeto histórico de constituição válido para o presente, com respostas claras diante das exigências da situação. Não basta agrupar a rica massa de cérebros da burguesia. E preciso alimentar uma chama criativa, que a burguesia brasileira não possui. A melhor constituição, comparada às de 1934 e 1946, nasce com vida curta e terá de ser revista ou substituída, na melhor das hipóteses, dentro cm breve.703

Dentro do quadro apresentado por Florestan, o caráter inacabado da constituição

parece ser, ao final do processo constituinte, uma das conquistas; pois, não fecha totalmente

as possibilidades de atuação da esquerda. Obviamente que esta característica funciona como

faca de dois gumes, dependendo dos resultados seguintes desencadeados pela luta de classes.

Já que os elementos que poderiam parecer uma vitória das forças populares poderia também

“converter-se na fonte de manipulações jurídicas dilatórias e perversas, capazes de anular as

conquistas mais notórias da nova carta”.704

O novo elemento estratégico para a ruptura estrutural passa a ser, então, a participação

popular, que poderia se apropriar da Constituição como ponto de partida e se unir a um novo

elemento que entra no cenário histórico: as eleições de 1989.

A constituição em aberto somada à possível eleição de Luis Inácio Lula da Silva para

a presidência da república, poderia desencadear a revolução dentro da ordem, já que uma

revolução socialista parecia ter se afastado como possibilidade mais imediata, desde o fim

insosso da movimentação das Diretas Já.

Como bem sabemos, mais uma vez a direita conseguirá dar um passo a frente e eleger

aquele que Florestan compreenderá como fruto direto da ditadura militar, Fernando Collor de

Mello, que manipulará todos os elementos em aberto da constituinte, mais uma vez, a favor

das estruturas arcaicas que deitam suas raízes neste solo desde a colonização.

703 Ibid., p. 347. 704 Ibid., p. 349.

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

É um discurso corrente o de que, atualmente, vivemos em um país democrático.

Alguns especialistas, mais receosos, fazem as ressalvas de que temos uma democracia muito

frágil, recém-nascida, que deve ainda percorrer uma longa trajetória. A pluralidade de

instituições mediadoras aparece como grande termômetro da “nossa democracia” e, segundo

indicam certas análises, estamos trilhando o caminho certo rumo a uma democracia moderna,

na medida em que diminuímos cada vez mais o “gap” entre o tipo ideal de instituições

burocraticamente equilibradas e o “autoritarismo” do “regime militar”, extinto em 1985.

As previsões que compõem este discurso são as de que, se continuarmos nesse

caminho, chegaremos à “normalidade”, aos padrões adequados da racionalidade capitalista:

uma equalização entre mercado e políticas públicas abrangentes, desenvolvidas pela relação

multilateral entre um Estado mínimo e instituições variadas que compõem a “sociedade civil”.

Quadro que deve ser pautado por uma “razão comunicativa”,705 que permita a conciliação do

diverso: um garante para a pluralidade e para as minorias; consolidando o avesso do

“autoritarismo” de ontem e de seu irmão, o “populismo” de anteontem; e, principalmente, de

seu antípoda, o “socialismo” e o “comunismo” que, segundo dizem, a história “demonstrou”

irrealizável ou “derrotado”. Nas palavras de Francisco Weffort:

Deste modo, os socialistas têm de resgatar seus valores libertários e igualitários de origem, no mesmo momento em que têm de aprender a conviver com o mercado. De outro modo, perderão o caminho da modernidade. Mas, aprendendo a conviver com o mercado, terão que casar-se com a democracia, ligando-se a tudo o que sirva a reforçá-la e consolidá-la: os movimentos sociais, a sociedade civil, o pluralismo. De outro modo, perderão não apenas o caminho da modernidade mas, o que é ainda pior, o próprio sentido da liberdade e da justiça social.706

Este tipo de discurso é sistematicamente reproduzido, ainda que ganhe cores e acentos

distintos de acordo com o porta-voz, nos vários meios de comunicação, nas universidades,

fóruns e por onde mais for necessário – sempre recheado de exemplos que funcionam como

reforços “positivos” e “negativos” para o caminho desta que é tida como a democracia

verdadeira, possível: consensual.

705 A ideia de “razão comunicativa” foi formulada por Apel e Habermas e pode ser apresentada em resumo como uma “razão orientada para o entendimento”, que visa superar uma “‘razão instrumental’ fundada na expectativa de êxito e na pretensão de derrotar o oponente”. ROLIM, Marcos. Reflexões críticas sobre o marxismo. In: Revista Teoria & Debate, caderno especial: O PT e o marxismo. São Paulo: diretório nacional do PT, 1991, pp. 26-35. 706 WEFFORT, Francisco. Qual democracia? São Paulo: companhia das letras, 1994, p. 12.

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Pouquíssimos espaços arriscam-se a colocar em questão este coro hegemônico; o que é

normal, se partirmos da perspectiva da direita e dos espaços dominados por ela – como os

meios de comunicação de massa e boa parte das universidades. No entanto, este discurso

invadiu, também, em grande medida, os partidos políticos e sindicatos que seguem se auto-

afirmando “de esquerda”.

Talvez por isso, haja uma tendência, desde os anos 70, de não se levar em conta o

pensamento de Florestan Fernandes depois de sua saída da Universidade de São Paulo, em

1969 – mais do que não levar em conta, chega-se mesmo, como vimos, a desqualificar o

caráter científico de sua obra a partir de então.

Nesta forma de se tratar a democracia, não há nenhuma novidade quanto ao

formalismo anistórico que predomina na explicação dos politicólogos e sociólogos do Brasil e

do mundo. Mas, de fato, este não era o modo de proceder de Florestan Fernandes, que não fez

concessões às visões formalistas ou neocontratualistas da democracia com seus pactos

sociais, através dos quais temos que nos apegar as “regras do jogo”, como única saída

possível de se evitar a barbárie.707

A visão desenvolvida por Florestan no período analisado incorpora definitivamente a

história em sua análise – como lemos no segundo prefácio de A revolução burguesa no Brasil,

que, infelizmente, não foi incorporado na mais recente reedição do livro.708 O autor jamais

abandonou a sociologia, mas buscou funcionalizá-la às necessidades sociais “dos de baixo” –

e isto para o bem da própria sociologia, que se tornara, dentro do capital monopolista,

segundo o próprio autor, infecunda enquanto ciência, presa aos limites liberais da academia.

O ideário florestaniano, obviamente, não compõe todas as chaves para a compreensão

da institucionalização da ditadura militar e da renovação da autocracia como estrutura

histórica; mas, com certeza, nos permite problematizar o nódulo intocável, que chega a ganhar

um cariz místico: a ideia de que a sociedade brasileira é uma sociedade estruturalmente

democrática e que seu aperfeiçoamento e consolidação são apenas uma questão de tempo e

paciência – ou seja, devemos manter a dinâmica proposta por Geisel e continuar a agir de

forma lenta, gradual e segura – para que esta democracia se amplie a todas as camadas

sociais. Afirmação que pode até fazer sentido para uma minoria restrita da sociedade

brasileira, provavelmente para a minoria de intelectuais, políticos e outros membros das

classes médias e altas, que são ou se sentem contemplados pela “democracia dos mais iguais”.

No entanto, parece que o restante da população brasileira ainda não foi avisado; ou,

707 BOBBIO, Norberto. Op. Cit., p. 77. 708 Para saber mais sobre o tema ver a primeira parte do trabalho.

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simplesmente, não sabe o que fazer com toda esta democracia que lhes garante ouvir todo tipo

de descalabros na televisão, mas que é submetida à violência cotidiana do Estado e à violência

econômica imposta pelas empresas; em suma, a violência da miséria material e espiritual que

lhe cerca tão de perto no Brasil. Como expressou, de forma contundente, o psicanalista Tales

Ab’Saber: “A nossa democracia tutelada e limitada e a nossa consciência pública ruinosa e

feliz, bem adaptada a ela, são produzidas com a exclusão das reparações necessárias

referentes à nossa ditadura: excluindo a dignidade humana de sua matéria simbólica geral”.709

Florestan, em sua trajetória, debate-se, sem esquivas, com o jogo da direita. Não se

deixou seduzir pelo caminho fácil e ilusório da paz social; sempre teve claro o que significava

esta paz e quem pagou os vários “pactos” realizados pelo alto; sempre soube que estes nunca

ficaram em paz.

Através de suas análises, podemos lançar luz a um mecanismo de manipulação,

próprio da estrutura social histórica brasileira – através do qual, tanto a “esquerda” quanto a

direita destilam a “essência democrática do país”: o politicismo,710 ainda que, para sermos

justos, este mecanismo só tenha sido compreendido adequadamente, em sua forma mais

abrangente em seus aspectos estruturais, por José Chasin.711 De qualquer forma, o ponto

central é que o ideário florestaniano nos fornece elementos que permite compreender como as

classes dominantes “liberam”, como campo de atuação “democrático”, o espaço infecundo do

politicismo, enquanto a política de fato, a grande política, pautada na vida social, nas relações

econômicas, continua cerceada, exclusiva à manipulação de um grupo restrito, portador de

uma “resistência patológica à mudança”: os sócios menores e portadores dos interesses do

grande capital.

Em grande medida, esta é a relação central que o autor compreende como ponto

nevrálgico a ser superado historicamente: a ruptura com a concentração de riqueza, prestígio e

poder que subordina a economia e sociedade a interesses externos ao país, vinculando as

necessidades da “Nação” às necessidades particularistas do grande capital internacional, é

dizer, gerando uma espécie de não-Nação ou Nação satélite: dependente e subordinada.

Esta compreensão de Florestan não resulta de uma leitura unilateral retirada de forma

hermética, ou mecânica, de sua construção teórica; nem se trata de um rancor para com a

709 AB’SABER, Tales. Brasil, a ausência significante política (uma comunicação). In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir. (Org.) Op. Cit., p. 201. 710 A rigor mesmo Florestan Fernandes parece, por momentos, resvalar em certo politicismo. Principalmente no que diz respeito a momentos em que recorre a conceitos extraídos da sociologia da modernização, como a demagogia populista. Mesmo assim, fica muito claro que se trata de oscilações e suas conseqüências devem ser ainda melhor estudadas. 711 Ver além dos textos já citados no corpo do texto: CHASIN. José. A determinação ontonegativa da politicidade, tomo III, política. Santo André: Ad Hominem, 2000.

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ditadura ou de uma distorção “psicológica” estrutural, como alguns intérpretes parecem supor.

Como vimos, Florestan acompanha de perto o movimento histórico, sem negar certos

avanços, chegando a declarar, por exemplo, que, em alguma medida, houve alterações

estruturais e dinâmicas fundamentais na sociedade civil no fim do processo constituinte 712 e

que

Chegamos bem perto da instauração de uma nova época, com a votação de Luiz Inácio Lula da Silva [...] Esse resultado mostra o quanto o Brasil já se distanciou de suas matrizes arcaicas e, em particular, o quanto beiramos o soterramento de um legado político eu sempre consagrou o monopólio do poder pelos de cima.713

No entanto, a cada avanço que notava por parte das classes trabalhadoras e populares,

parecia ver ampliar-se, simetricamente, a dimensão dos pactos e transações entre os vários

setores da política nacional, sem falarmos na violência direta cotidiana.714

Até 1990, quando escreve a citação acima e após a vitória dos trabalhadores com as

Greves do ABC – que, segundo o autor, derrotou em boa medida a ditadura militar –,

Florestan apresenta três desdobramentos deste processo que poderiam levar a rupturas com as

estruturas históricas arcaicas, mas que falharam no Brasil, sendo elas: o movimento das

Diretas Já; a participação popular autêntica na Constituinte; e a eleição de Lula em 1989. Os

três desdobramentos falharam como ruptura histórica, graças a uma atuação “exitosa” das

classes dominantes nacionais e internacionais, que não só mantiveram a atuação popular

manietada como, ao mesmo tempo, foram legitimando cada resultado colhido como passos

democráticos moderados – seja com a figura conciliatória-conservadora de Tancredo Neves,

que resulta no governo Sarney e na “Nova República”; seja com uma feitura adstringida da

Carta Constituinte; seja com o retorno às eleições diretas elegendo Fernando Collor de Melo,

um filho legítimo da ditadura militar.

Se retomarmos sua narrativa dos processos que ocorrem a partir do aceleramento da

institucionalização, de 1985 até 1995, veremos um Florestan perplexo, reafirmando – ao ver

cada nova “composição” das classes dominantes com setores que ele considerava

tendenciosamente de esquerda ou tendenciosamente antagônicos – que “aquele pacto” tinha

sido o maior pacto da história do país; até que, na sequência, surgia um maior ainda.

Perplexidade que o acometeu nos três casos de possíveis rupturas que relatamos acima, mas

712 FERNANDES, Florestan. O produto Final (1988). In: Ib., A constituição Inacabada: vias históricas e significado político. São Paulo: Estação Liberdade, 1989. 713 Ib., A transição prolongada: o período pós-constitucional. São Paulo: Cortez, 1990, p. 5. 714 Apenas como um exemplo dessa violência: “ao contrário do que aconteceu em outros países da América Latina, as práticas de tortura em prisões brasileiras aumentaram em relação aos casos de tortura na ditadura militar”. TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir. (Org.) O que resta da ditadura. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 10.

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também, na “viragem” que o PSDB realizou nos anos 90. Para Florestan, o partido de seu ex-

aluno Fernando Henrique Cardoso foi visto com bons olhos em seu surgimento; o encarava

“como uma força de centro na esquerda autêntica”. Mas, no entanto, em 1994, percebe que “o

castelo de cartas ruiu”:

O PSDB pôs a luta pelo poder acima de tudo. Negou-se a si próprio e tripudiou sobre o significado histórico que adquirira. Tornou-se, sob o governo Itamar Franco, o partido da ordem, o mais firme, ousado e ambicioso. E, pior que isso, rebaixou-se ao nível de tudo que renegara – o autoritarismo, o oportunismo, o clientelismo e o fisiologismo. Converteu-se, de um salto, ao aventureirismo extremo, aliando-se à ultradireita e consentindo receber intromissões extravagantes. Dizem que “Deus escreve direito por linhas tortas”. Como confiar no brocardo, se o arcaico moderniza-se no presente e ameaça o futuro do país?715

Mas e quanto ao PT? Partindo desta perspectiva, é possível argumentar, contra

Florestan, certo “messianismo”, como o fez David Maciel716 – que apesar de reconhecê-lo

como um dos maiores teóricos brasileiros, discorda da posição do autor em relação ao PT,

partido ao qual se manterá atrelado até o fim da vida.

De saída, vale lembrar que a relação de Florestan com o PT, no início, foi de certa

desconfiança: primeiro pela dificuldade inicial do partido em se decidir ideologicamente e,

depois, pela tendência social democrática persistente desde seu início. Situação que se

complica a partir da perda do pleito de 1989, da crise das esquerdas em âmbito mundial e do

próprio crescimento do partido: o “crescimento rápido está sendo nocivo para o PT,

centuplicando os filiados sem qualquer ótica socialista. A evolução dilui-se em uma social-

democratização moderada”.717

Nesta perspectiva, o autor refaz, uma vez mais, a questão muitas vezes presente em

seus discursos a respeito do PT: “Dadas as características da sociedade brasileira pode o PT

enfrentar os problemas de desenvolvimento desigual sem o socialismo? Impõe-se a indagação

dramática, que Lula deixou de lado. O que o crescimento rápido e uma política de alianças

aberta farão do PT, se ele negligenciar sua natureza socialista?”718 Um ano depois de escrever

estas linhas, Florestan parece ter visto uma tomada de posição de Lula, através da qual

acreditou que o PT estava tomando de fato o caminho de uma esquerda socialista:

715 FERNANDES, Florestan. Realidades Chocantes. Folha de S. Paulo, 30 mai. 94. Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes. 716 MACIEL, David. Florestan Fernandes e a questão do transformismo na transição democrática brasileira. Anais do IV Simpósio Lutas Sociais na América Latina. Set. 2010. Universidade Estadual de Londrina. 717 FERNANDES, Florestan. Dilemas eleitorais e políticos do PT. Folha de S. Paulo, 02 nov. 92. Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes. 718 Ibidem.

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Várias camadas da burguesia e até setores do movimento sindical acreditam que o socialismo está “morto”. Trata-se de uma ilusão de ótica. O socialismo fortaleceu-se, nestes anos de tragédia, e mais do que nunca é a alternativa histórica para o capitalismo oligopolista da terceira fase.

Falando em nome do socialismo, Lula encarna essa situação histórica e apresenta-se como um candidato íntegro, com o máximo de congruência entre seu discurso político, suas promessas eleitorais e a significação do PT. A “virada à esquerda” representa a síntese e a depuração que os militantes e parcelas consideráveis dos simpatizantes esperavam com angústia.719

Florestan sempre cumpriu seu papel de militante disciplinado e a serviço do partido, e

só desta forma podemos compreender sua campanha para o segundo mandato de Deputado

Federal;720 mas isso não parece o ter impedido de demonstrar, ao menos em certo nível, seus

desacordos em relação ao partido. Prova disso é que, em diversos momentos, mostrou-se

insatisfeito com os caminhos do partido, desde sua entrada no PT até o fim de sua vida –

como, por exemplo, na entrevista que dá, em 1994, ao programa Roda Viva da TV Cultura, na

qual se coloca abertamente contra os mecanismos de financiamento de campanha que o

partido estava adotando.

No entanto, se sua postura em relação ao partido foi por momentos cautelosa, dada a

composição ampla do PT, parece não ter tido a mesma cautela em relação a Lula – que,

segundo ele, “aparece como uma personalidade emblemática, que se identifica com o

socialismo ideologicamente, embora se envolva diretamente com a ‘revolução dentro da

ordem’”721 – e, de fato, Florestan resvala em certo messianismo ao tratar do ex-metalúrgico,

demonstrando uma confiança e entusiasmo muito grandes para a figura do operário de origem

nordestina, humilde, que se torna um grande homem político; chegou mesmo a exageros, que

não eram muito de seu feitio:

O discurso do dia 12 deste mês colocou Lula diante de uma massa compacta, calculada em 50 mil pessoas. Ele já perdeu os ares toscos do início da carreira. É competente no manejo da linguagem e da forma de compartilhar os sentimentos, estados de espírito com aqueles que buscam em suas palavras razões para acreditar que não são párias rejeitados nem vítimas do “inferno da terra”. Como João Batista, propaga acusações que fazem estremecer os que são puros ou perseguem a purificação. Como Cristo, oferece a outra face e

719 FERNANDES, Florestan. PT: mudança social. Folha de S. Paulo, 28 jun. 93. Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes. 720 Nesta segunda campanha o autor não teve o mesmo entusiasmo da primeira, chegou mesmo a deixar o país durante a campanha para receber um prêmio em Portugal. No entanto, é eleito. 721 FERNANDES, Florestan. Ameaças de guerra civil? Folha de S. Paulo, 01 ago. 94. Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes.

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prega aos “malditos da terra”. Esse circuito esgota o substrato do seu compromisso íntimo com o populismo dos de baixo.722

No ano eleitoral de 1994, em particular, veremos uma super-afirmação de Lula como

possibilidade de ruptura com as estruturas arcaicas do país. Neste processo, o presidente do

PT é apontado como um verdadeiro paladino da ética: “sabem que há uma ética política no

PT. Ela impede a Lula qualquer intercâmbio espúrio e que ele, por sua vez, obriga-se a ser um

dos paladinos dessa ética. As lutas dos oprimidos repudia a política da selva”.723

Em suma, Florestan acredita que, também em 1994, a eleição de Lula poderia levar o

país a uma ruptura dentro da ordem, na medida em que Lula não seria capaz de romper com

suas origens, com uma dada ética e fazer acordos espúrios pela conquista do poder pelo poder,

marginalizando os de baixo, seus irmãos da terra. Os exemplos desta posição de Florestan são

abundantes:

todos queremos a eleição de Lula e nos batemos ardorosamente por ela. Não porque Lula possa, como personalidade singular, modificar o Brasil por um passe de mágica. Mas porque a “ruptura” só pode vir de baixo, com um novo tipo de educação, a universalização da cidadania e a desobediência civil.724

Assim, não é gratuito que o próprio Lula se dê a liberdade de impingir uma aprovação

póstuma de Florestan em relação ao seu governo:

Se ainda vivesse, Florestan certamente ficaria feliz ao constatar que esse pensamento recuperou espaço no Estado brasileiro a partir de 2003. Prova disso é o programa nacional de produção de biodiesel, lançado em dezembro de 2004, que fortalecerá a agricultura familiar do semi-árido nordestino, articulando quinhentos mil propriedades ao mercado promissor da energia renovável.

Outro exemplo é o projeto de integração da bacia do São Francisco, que levará água, empregos e dignidade ao Nordeste setentrional a partir de 2006.

Eu diria, com respeito e carinho, que embora Florestan já não esteja entre nós, os dois meninos pobres – aquele que ele foi, e o que eu fui – continuam a entrelaçar seus caminhos e afinidades pelo Brasil, em busca de um País melhor para todos.725

Obviamente, nem o então presidente Lula, nem ninguém, pode falar pela boca de

Florestan. Impossível saber como o sociólogo marxista reagiria às alianças que o PT realizou

722 FERNANDES, Florestan. PT: mudança social. Folha de S. Paulo, 20 jun. 94. Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes. 723 Ib., Propaganda ou massacre?. Folha de S. Paulo, 17 jan. 94. Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes. 724 Ib., Canibalismo político. Folha de S. Paulo, 15 ago. 94. Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes. Ver também os artigos da Folha de S. Paulo: Propaganda ou massacre? (24 jan. 1994); Lula: o apelo das favelas (21 mar. 1994); As perspectivas de Lula (18 abr. 1994); A pugna eleitoral (16 mai. 1994); O discurso de Lula (20 jun. 1994); Ameaças de guerra civil? (01 ago. 1994); Significado do teste eleitoral (16 set. 1994). E o texto: Lula e a transformação do Brasil contemporâneo (Revista Praxis nº 2, Belo Horizonte, set. 94). 725 SILVA, Luis Inácio Lula. Prefácio. CERQUEIRA, Laurez. Perfil Parlamentar: Florestan Fernandes. Brasília: Centro de Documentação e Informação, 2004, pp. 20-21.

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com figuras como José Sarney e Fernando Collor de Mello – só para ficarmos em duas figuras

muito conhecidas –, as quais criticou duramente, nelas reconhecendo a encarnação civil do

que havia de mais espúrio na ditadura militar.726 Tampouco podemos saber como Florestan

reagiria à recusa definitiva do socialismo por parte do PT e do próprio Lula – se é que este

último algum dia se declarou socialista efetivamente.

Mas Lula não foi o único a se apropriar da memória de Florestan Fernandes, fazendo

leituras “particulares” do autor; outro exemplo, que chama a atenção, é o de seu ex-aluno, o

eminente sociólogo José de Souza Martins, que chega a declarar que o governo Fernando

Henrique Cardoso foi a aplicação prática do projeto desenvolvido por Florestan e outros

pesquisadores na USP durante os anos 50 e 60. Assim, a Escola sociológica de São Paulo,727

apesar de, segundo Martins, não ter coloração ideológica, através do projeto Economia e

Sociedade,728 sintetizou as preocupações de implicação política que foi, “de certo modo, o

quadro sociológico mais amplo de referência do governo Fernando Henrique Cardoso, um

projeto de Florestan Fernandes que Fernando Henrique e os outros assistentes de Florestan

ajudaram a conceber e escrever”.729

É óbvio que todos os autores estão sujeitos a leituras e tais leituras vão ganhando

maior ou menor legitimidade de acordo com quem a realiza e como a faz. Não há dúvida da

admiração de Florestan por Lula e José de Souza Martins; nem, tampouco, há dúvidas da

importância teórica de Florestan para a formação do PT e do PSDB. Mas ao acompanharmos

os critérios de análise de Florestan Fernandes, nos parecem no mínimo problemáticas tais

apropriações, tão seletivas e descontextualizadas.

Contudo, estas apropriações indicam uma questão relevante que, infelizmente, aqui só

podemos apontar: em qual medida permaneceram atados os laços teóricos que amarram a

Escola Paulista de Sociologia com o PT e o PSDB? Quais as conseqüências práticas destes

726 A crítica a José Sarney foi exposta rapidamente no corpo do texto, já a crítica a Collor vai desde a época da eleição em 1989 se ampliando até o impeachment, ver: «Charming boy» (1990). In: FERNANDES, Florestan. A transição prolongada: o período pós-constitucional. São Paulo: Cortez, 1990; Brasil Novo? (Folha de S. Paulo, 20 abr. 90); Brasil: reconstrução pela dependência? (Folha de S. Paulo, 22 abr. 91); Transição sinuosa (Folha de S. Paulo, 10 fev. 92); A educação do presidente (Folha de S. Paulo, 02 jul. 92); O colapso do governo Collor I, II e II (Folha de S. Paulo, 07,14 e 21 set. 92); entre outros. 727 “O professor Florestan nunca concordou que o notável grupo de sua geração, na faculdade, em especial o grupo que ele mesmo constituiu e dirigiu, pudesse ser classificado como uma escola sociológica. [...] No entanto é possível que ele não tivesse razão. Certamente, o chamado ‘grupo de São Paulo’ não chegou a construir uma escola de unanimidade teórica, como a chamada ‘escola de Chicago’ (que ele tinha como referência). [...] No entanto, penso, há sim uma ‘escola sociológica de São Paulo’ no que se refere às indagações mais ou menos comuns que orientaram os trabalhos de seus pesquisadores e orientaram ainda as investigações de seus alunos e continuadores.” MARTINS, José de Souza. O professor Florestan e nós. In: Ib., Florestan: Sociologia e consciência social no Brasil. São Paulo: Edusp, 1998, p.36. 728 “Havia o projeto Economia e Sociedade, de 1962, que era referência dos projetos desenvolvidos na cadeira de Sociologia I. O centro das preocupações desse projeto era a questão da resistência às mudanças, um tema muito forte em sua sociologia quando tratava das dificuldades para transformar o país em um país democrático, moderno”. Ib., Sociologia e militância. In: Ib.,Op. Cit., p. 153. 729 Ibid. P. 165

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laços? E, mais importante ainda para o nosso caso, em qual medida Florestan manterá

ligações com esta Escola Paulista, já que é um dos primeiros a criticá-la como projeto teórico?

Se chegarmos a existência de tais ligações, não poderemos perder de vista, por outro

lado, que, seguindo a lógica de análise acompanhada na pesquisa, o ponto central para

Florestan é a realização de rupturas como as estruturas arcaicas, ou seja, a realização de uma

revolução dentro da ordem ou, no melhor dos casos, uma revolução contra a ordem.

Mas, voltando às apropriações diretas e arbitrárias do ideário florestaniano,

poderíamos nos perguntar: quais rupturas estes governos, que se desdobraram e se sucederam

após a morte do autor, realizaram com as estruturas históricas arcaicas que estavam presentes

até 1995 no Brasil? Quanto ao PSDB, Florestan chega a acompanhar seu nascimento e, como

vimos, reage de forma bastante negativa ao que vê. Mas e quanto ao PT? Alcançou em seus

governos a “revolução dentro da ordem”, que Florestan esperava do partido e, em especial, de

Lula? As afirmações repetitivas do ex-sindicalista de “nunca antes na história deste país”, se

traduzem no equivalente de uma revolução social autêntica ou, mais uma vez, trata-se do

maior pacto já visto na história deste país?

Olhando para a dimensão estrutural histórica, reiteradamente ressaltada na obra de

Florestan Fernandes, fica mais difícil se apropriar livremente de seu ideário para legitimar os

novos governos “democráticos”. Em grande medida, o que o autor ressalta em todo este

processo é que a transição se arrasta até ser incorporada em uma nova fase de acumulação.

Desde, pelo menos, meados dos anos 80, esta nova fase de incorporação passa a acenar como

saída para a crise do “milagre” que se esgota em 1973. É dizer, a transição se prolonga e vai

se resolver efetivamente apenas através de uma nova fase de “modernização conservadora”,

induzida desde fora – um novo milagre:

O Brasil foi colhido por uma rápida alteração acumulativa do capital monopolista e no padrão correspondente de imperialismo [...] Como outros países periféricos, o Brasil penetra nessa moldura histórica pela porta dos fundos sob o “monitoramento” das novas concepções imperialistas [...] Desencadeia-se outro momento decisivo e repetem-se os erros. Com uma diferença: a globalização fragmentada engolfa o Brasil em tendências regressivas, que nada tem a ver com a utopia burguesa e o otimismo governantes. O espelho não lhes desvendou o reverso da imagem e somos impelidos a uma aventura capitalista trágica.730

Florestan verá a globalização de forma extremamente negativa e a incorporação do

país neste processo, da maneira que foi feita, como um completo equívoco, mas, ainda que

730 FERNANDES, Florestan. 1995: perspectivas consolidadas. Folha de S. Paulo, 09 jan. 95. Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes.

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passe a levar o processo em consideração continuamente em seus artigos, não temos notícia,

infelizmente, de uma análise sua mais sistemática sobre o tema.

Como já vimos, na fase de incorporação do país ao capital monopolista, estas

incorporações permitem relações conjunturais favoráveis na transferência de capital e

tecnologia, mas obviamente que não podemos tratar esta nova fase de incorporação como

mera repetição; tudo indica que se trate de um processo de todo novo e ainda carente de

compreensão em muitos sentidos.

Para concluir essas considerações, vale ressaltar que o ideário de Florestan Fernandes

não foi, nem de longe, totalmente explorado nesta pesquisa. Não fizemos mais do que um

pequeno esforço na direção de compreender os problemas levantados pelo autor – problemas

que não podem mais ser rejeitados e muito menos ser etiquetados como “importantes mas

antiquados”. O que não significa concordarmos com tudo que o autor propõe de forma

dogmática – o que seria um insulto a Florestan –, mas sim nos esforçarmos para, ao menos,

entendê-lo de corpo inteiro, com suas contradições próprias e em sua radicalidade. É o

mínimo que podemos fazer em um país tão carente de intelectuais de fôlego, que pensaram o

Brasil com coragem e autonomia, sem ficar macaqueando as teorias da moda ou restringidos à

ética liberal predominante na academia como via sacra do bom senso e da paz mundial.

Se tomarmos um esforço atual louvável, que vai no mesmo sentido da crítica de

Florestan Fernandes à institucionalização da ditadura militar – a coletânea O que resta da

ditadura – veremos que os vários autores que compuseram o livro vão desdobrando e

detalhando, por diversos ângulos, muitas das proposições de Florestan. Assim, demonstram,

por vezes mais concretamente, a profundidade dos problemas que esta institucionalização

acarretou, como, por exemplo, as relações civil-militares herdadas da ditadura que acabaram,

entre outras coisas, por institucionalizar o golpe militar –731 o que Florestan já apontava em

seus textos:

os militares desempenharam papéis supracastrenses, pelos quais moveram a maioria dos parlamentares a consagrá-los como o garante constitucional da defesa e proteção da ordem, degradando o futuro Estado democrático em um Estado sob tutela militar. Essa é uma perspectiva sinistra de conceber a “consolidação” e o “aperfeiçoamento” da democracia.732

731 Ver: ZAVERUCHA, Jorge. Relações civil-militares: o legado autoritário da constituição brasileira de 1988. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir. (org.) Op. Cit. 732 FERNANDES, Florestan. O “desengajamento dos militares” (1988). In: Ib., A constituição Inacabada: vias históricas e significado político. São Paulo: Estação Liberdade, 1989, p. 367.

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Ou como a ditadura legou uma dada psicologia, ou um dado ranço cultural na

sociedade brasileira, chegando-se mesmo ao limite de se afirmar, que:

De fato, diante de tal mundo infernal, nossa nova ordem de terra em transe pacificada de mercado, poderíamos dizer que o que restou da ditadura foi simplesmente tudo. Tudo menos a própria ditadura. O Brasil continua sendo um país extremamente excludente e fortemente autoritário, com controles particulares dos espaços públicos, confirmando a sua incapacidade profunda de reparar a clivagem social radical de sua origem.733

No entanto, poucos dos autores da coletânea resgataram, ao menos em seus artigos, o

pensamento anterior sobre o tema; na verdade, apenas Paulo Eduardo Arantes, em seu ótimo

artigo 1964, o ano que não terminou, lembra-se de citar Florestan como um dos pioneiros a

denunciar a democracia implantada no país como uma democracia restrita e tutelada. Mesmo

assim, nada se fala de autores como José Chasin e René Dreifuss. Não se trata aqui de citar

estes nomes como um exercício de erudição ou de render homenagens; trata-se, na verdade,

de retomar um trabalho que já foi iniciado por grandes intelectuais que tiveram a

preocupação, cada um a sua maneira, de buscar os elementos estruturais que sustentam a

sociedade brasileira em sua particularidade.

Se não buscarmos estas estruturas históricas profundas, para ficarmos em uma

terminologia florestaniana, tenderemos a repetir erros, a girar em falso na esfera do

politicismo, do formalismo abstrato e anistórico. Tenderemos a estimular mais do mesmo,

ainda que este “mesmo” venha enfeitado como novidade, como uma grande conquista da

“democracia moderna”, mas que nos manterá tolhidos pela “miséria brasileira”, persistente

por toda esta via tortuosa que é a via colonial de entificação do capital.734

733 AB’SABER, Tales. Brasil, ausência significante política (uma comunicação). In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir. (org.) Op. Cit., p. 193. 734Ver além dos textos já citados: CHASIN, José. O integralismo de Plínio Salgado: forma de regressividade no capitalismo hiper-tardio. Santo André: Ad Hominem, 1999; Ib., A determinação ontonegativa da politicidade, tomo III, política. Santo André: Ad Hominem, 2000.

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Áudios:

FERNANDES, Florestan. Fita 4 / Título: Análise da Conjuntura / Data: 25.05.86. Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes.

__________. Fita 5 / Título: Florestan Fernandes 1 / Data: 14.02.87 / Transcritores: Carlos Shigueki Oki/Alessandra Garcia / Duração: 46 min /

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Revisor: Rodrigo Augusto Prando / Finalizadora: Vanessa Gal Paiva. Colesp-UFSCar – Fundo Florestan Fernandes.

Material de Campanha:

FERNANDES, Florestan. Não era esta a república dos nossos sonhos. Material da campanha a Dep. Fed. 1986, panfleto, Acervo Centro Sergio Buarque de Holanda. Fundação Perseu Abramo.

__________. Pelo socialismo. Material da campanha a Dep. Fed. 1986, panfleto, Acervo Centro Sergio Buarque de Holanda. Fundação Perseu Abramo.

__________. Sem título (com Wagner Lino Alves). Material da campanha a Dep. Fed. 1986, folheto, Acervo Centro Sergio Buarque de Holanda. Fundação Perseu Abramo.

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Bibliotecas e arquivos consultados:

Acervo pessoal do professor Antonio Rago Filho.

Biblioteca Florestan Fernandes – FFLCH, Universidade de São Paulo (USP).

Coleções especiais: Florestan Fernandes. Biblioteca Comunitária da Universidade Federal de São Carlos (UFScar).

Centro de documentação e informação. Câmara dos Deputados.

Centro Sérgio Buarque de Holanda. Fundação Perseu Abramo – Departamento de memória.