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INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO — FUNDAMENTOS DE UMA DOGMÁTICA CONSTITUCIONAL TRANSFORMADORA LUÍS ROBERTO BARROSO

BARROSO Luís Roberto Barroso - Interpretação e Aplicação Da Constituição (Integral)

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Direito Constitucional

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INTERPRETAO E APLICAO DA CONSTITUIO - FUNDAMENTOS DE UMA DOGMTICA CONSTITUCIONAL TRANSFORMADORA

INTERPRETAO E APLICAO DA CONSTITUIO FUNDAMENTOS DE UMA DOGMTICA CONSTITUCIONAL TRANSFORMADORA

LUS ROBERTO BARROSO

Professor Titular de Direito Constitucional da Universidade do

Estado do Rio de Janeiro. Master of Laws pela Yale Law School.

Procurador do Estado e Advogado no Rio de Janeiro.

3 edio 1999 Editora Saraiva

NDICE GERAL

Abreviaturas IX

Um prefcio afinal desnecessrio XI

Registros XXI

INTRODUO

1. A interpretao. Generalidades

2. Apresentao do tema

3. Plano de trabalho 6

PARTE 1

A DETERMINAO DA NORMA APLICVEL

Introduo

CONFLITOS DE NORMAS NO ESPAO E NO TEMPO

Captulo 1

A CONSTITUIO E O CONFLITO DE NORMAS NO ESPAO.

DIREITO CONSTITUCIONAL INTERNACIONAL

1. O tratado internacional e a Constituio

2. A norma estrangeira e a Constituio

a) A norma estrangeira e a Constituio de origem

b) A norma estrangeira e a Constituio brasileira

Captulo II

A CONSTITUIO E O CONFLITO DE NORMAS NO TEMPO.

DIREITO CONSTITUCIONAL INTERTEMPORAL

1. A Constituio nova e a ordem constitucional anterior

2. Emenda constitucional e Constituio em vigor

3. Constituio nova e direito infraconstitucional anterior

4. Algumas questes de direito intertemporal suscitadas pelo advento

de uma nova Constituio

a) Inexistncia de inconstitucionalidade formal superveniente

b) Aplicao imediata, mas no retroativa, da Constituio nova

c) Declarao de inconstitucionalidade e efeito repristinatrio

d) Situaes processuais especficas

e) Normas infraconstitucionais no recepcionadas pela Constituio

de 1988

PARTE II

A INTERPRETAO CONSTITUCIONAL

Captulo I

OS MTODOS E CONCEITOS CLSSICOS APLICADOS INTERPRETAO CONSTITUCIONAL

1. Introduo

2. Peculiaridades das normas constitucionais

3. Conceitos, classificaes e mtodos clssicos de interpretao

a) Subjetivismo e objetivismo. O originalismo nos Estados Unidos

b) Interpretao constitucional legislativa, administrativa, judicial,

doutrinria e autntica

c) Interpretao declarativa, restritiva e extensiva

d) Os mtodos ou elementos clssicos de interpretao

I - A interpretao gramatical

II - A interpretao histrica

III - A interpretao sistemtica

IV - A interpretao teleolgica

e) Integrao da vontade constitucional. Analogia e costume consti-

tucional

4. A interpretao constitucional evolutiva

Captulo II

PRINCPIOS DE INTERPRETAO ESPECIFICAMENTE CONSTITUCIONAL

1. Os princpios constitucionais como condicionantes da interpretao

constitucional

2. Princpio da supremacia da Constituio

3. Princpio da presuno de constitucionalidade das leis e dos atos do

Poder Pblico

4. Princpio da interpretao conforme a Constituio

5. Princpio da unidade da Constituio

6. Princpios da razoabilidade e da proporcionalidade

7. Princpio da efetividade

PARTE FINAL

A OBJETIVIDADE DESEJADA EA NEUTRALIDADE IMPOSSVEL: O PAPEL DO INTRPRETE NA INTERPRETAO CONSTITUCIONAL

Captulo I

SABER JURDICO CONVENCIONAL, TEORIA CRTICA DO DIREITO E DIREITO ALTERNATIVO. A SNTESE NECESSRIA

1. Introduo

2. A teoria crtica

3. O direito alternativo

4. Objetividade e neutralidade. Os limites do possvel

Captulo II

CONCLUSES

ndice onomstico

ndice alfabtico-remissivo

Bibliografia

ABREVIATURAS

ADCT - Ato das Disposies Constitucionais Transitrias

ADIn - Ao Direta de Inconstitucionalidade

AgI - Agravo de Instrumento

AgRg - Agravo Regimental

AJCL - American Journal of Comparative Law

AJIL - American Journal of International Law

BVerfGE - Entscheidungen des Bundesverfassungsgericht

DJU - Dirio de Justia da Unio

Embgs - Embargos

ILM - International Legal Materiais

MI - Mandado de Injuno

ML - Medida Liminar

MS - Mandado de Segurana

QO - Questo de Ordem

RDA - Revista de Direito Administrativo

RE - Recurso Extraordinrio

Rep - Representao de Inconstitucionalidade

REsp - Recurso Especial

RILSF - Revista de Informao Legislativa do Senado Federal

RF - Revista Forense

RMS - Recurso em Mandado de Segurana

RT - CDC e CP - Revista dos Tribunais - Cadernos

de Direito Constitucional e Cincia Poltica

RTDP - Revista Trimestral de Direito Pblico

RTJ - Revista Trimestral de Jurisprudncia

STF - Supremo Tribunal Federal

STJ - Superior Tribunal de Justia

TFR - Tribunal Federal de Recursos

UM PREFCIO AFINAL DESNECESSRIO

Estas palavras no pretendem ser um prefcio que merea o nome.

No que alimentasse a presuno de oferecer um desses prefcios densos e eruditos, que, s vezes, dissimulam a ambio de competir com a obra que apresentam.

Honrado, porm, pelo convite do autor para prefaciar a publicao da tese que lhe deu as merecidas galas de Professor Titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e verdadei-ramente impressionado com a excelncia do trabalho, cheguei a cogitar, guisa de prefcio, de dar um teste-munho: aos sete anos de cotidiana interpretao constitucional por dever de ofcio, pensei aproveitar o tema e dar conta do mtodo e dos motivos de votar de um juiz do Supremo Tribunal Federal. Ao menos, dos motivos conscientes e racionais. Que os outros superado, embora, o mito ingnuo ou mistificador da interpretao neutra (e no apenas imparcial) so, de regra, indevassveis: no que os queira ocultar o intrprete, mas porque, na grande maioria das vezes, ele prprio o primeiro a ignor-los.

Na Parte Final deste livro, disse-o o autor, de modo irretocvel:

"Idealmente, o intrprete, o aplicador do direito, o juiz, deve ser neutro. E mesmo possvel conceber que ele seja racionalmente educado para a compreenso, para a tolerncia, para a capacidade de entender o diferente, seja o homossexual, o criminoso, o miservel ou o mentalmente deficiente. Pode-se mesmo, um tanto utopicamente, cogitar de libert-lo de seus preconceitos, de suas opes polticas pessoais e oferecer-lhe como referncia um conceito idealizado e assptico de justia. Mas no ser possvel libert-lo do prprio inconsciente, de seus registros mais primitivos. No h como idealizar um intrprete sem memria e sem desejos. Em sentido pleno, no h neutralidade possvel".

Frustrou-se o intento do depoimento pessoal, atropelado pelas turbulncias da presidncia do Tribunal e das dimenses inditas da crise do Judicirio, que venho tentando discutir sem preconceitos. E ainda pela certeza de que nenhuma contribuio justificaria retardar ainda mais a publicao de estudo to significativo.

Este livro, cuja apresentao a amizade de Lus Roberto Barroso me entregou, consolida a inscrio do conjunto da sua obra, fruto da juventude ainda vigente, no rol das melhores produes da teoria constitucional brasileira.

O trabalho premiado do estudante O problema da federao (Forense, 1982) - que o grande Seabra Fagundes, no prefcio, no hesitou em saudar como "dos melhores j escritos sobre o regime federal no Brasil" prenunciava os marcos caractersticos do jurista consagrado de hoje: o domnio seguro dos princpios, da histria e da dogmtica constitucional, sem asfixia do compromisso com o seu Pas e o seu povo.

Vem dessa poca a nossa aproximao pessoal, na militncia da OAB, ao tempo em que, "sobre o crepsculo do autoritarismo, incidem as primeiras frestas de claridade" (O problema da federao, cit., p. XII).

1. Prmio Cndido de Oliveira Neto, 1980, da OAB-RJ.

J em 1989 entremeando-se na srie de trabalhos menores, no entanto, de valor indiscutvel (assim, p. ex., Igualdade perante a lei, de 1985, Revista de Direito Pblico, 78:65, e A crise econmica e o direito constitucional, de 1993, Revista Forense, 323:83) completa o autor a verso original de sua tese de livre-docncia A fora normativa da Constituio. Elementos para a efetividade das normas constitucionais a qual, ampliada e atualizada, foi divulgada em duas edies, como ttulo definitivo O direito constitucional e a efetividade de suas normas e o subttulo que trai o engajamento do terico Limites e possibilidades da Constituio brasileira (Renovar, 1991 e 1993).

Na primeira das edies, a veemente divergncia com a minha postura restritiva nos leading cases acerca da natureza e das potencialidades dogmticas do mandado de injuno tal como institudo e disciplinado (e muito mal) pela Constituio valeu-me, na transcrio de uma ementa, o epteto de ser uma "pena ilustre - outrora progressista" (O direito constitucional e a efetividade de suas normas, cit., p. 179), expresses abrandadas, com sutileza, na edio seguinte (O direito constitucional e a efetividade de suas normas, cit., p. 183).

A impiedade da crtica do amigo que assim aparentemente me compelia retirada do crculo dos "progressistas", onde h anos o recebera nem afetou a amizade, nem alterou o juzo extremamente positivo sobre o trabalho.

2. Juzo positivo, alis, que j nem poderia dissimular: da leitura dos originais da tese, dela extrara citao, precedida de referncia elogiosa, que erigira em um dos pilares da fundamentao do voto em que tomara posio na polmica MI 107 (QO), Moreira Alves, RTJ, 133:11, 50.

De qualquer sorte, at por vaidade intelectual, no ousaria retratar-me dos justos encmios ao estudo: a verdade que aps o clssico de Jos Afonso da Silva sobre a eficcia jurdica das normas constitucionais a monografia de Barroso, em torno dos caminhos possveis para a efetividade (ou eficcia social) da Constituio, deu novas dimenses, no Brasil, ao esforo para vencer a paralisia das inovaes constitucionais contra a resistncia sua realizao de parte dos interesses criados.

3. Jos Afonso da Silva, Aplicabilidade das normas constitucionais, Revista dos Tribunais, 1968.

Esta segunda tese, que hoje me orgulha apresentar, responde s mesmas inspiraes do jurista comprometido com a descoberta e a explorao das potencialidades transformadoras da Constituio.

Sua tnica a mesma da obra anterior, uma obsesso frtil com a efetividade da norma constitucional, expressa nesta passagem feliz, que traduz a declarada influncia de Konrad Hesse:

"O malogro do constitucionalismo, no Brasil e alhures, vem associado falta de efetividade da Constituio, de sua incapacidade de moldar e submeter a realidade social. Naturalmente, a Consti-tuio jurdica de um Estado condicionada historicamente pelas circunstncias concretas de cada poca. Mas no se reduz ela mera expresso das situaes de fato existentes. A Constituio tem uma existncia prpria, autnoma, embora relativa, que advm de sua fora normativa, pela qual ordena e conforma o contexto social e poltico. Existe, assim, entre a norma e a realidade, uma tenso perma-nente. neste espao que se definem as possibilidades e os limites do direito constitucional".

Ou nesse pargrafo, irretocvel, que trai a segura apreenso do melhor da lgica de Kelsen:

"No nvel lgico, nenhuma lei, qualquer que seja sua hierarquia, editada para no ser cumprida. Sem embargo, ao menos potencialmente, existe sempre um antagonismo entre o dever-ser tipificado na norma e o ser da realidade social. Se assim no fosse, seria desnecessria a regra, pois no haveria sentido algum em impor-se, por via legal, algo que ordinria e invariavelmente j ocorre. precisamen-te aqui que reside o impasse cientfico que invalida a suposio, difundida e equivocada, de que o direito deve limitar-se a expressar a realidade de fato. Isso seria sua negao. De outra parte, certo que o direito se forma com elementos colhidos na realidade, e seria condenada ao insucesso a legislao que no tivesse ressonncia no sentimento social. O equilbrio entre esses dois extremos que conduz a um ordenamento jurdico socialmente eficaz".

4. A Hans Kelsen, contudo, a obra reserva, depois (Parte Final, cap. 1, n. 1), um tratamento injusto e incide na assimilao, tambm difundida mas equivocada, entre o normativismo da Teoria Pura que tem um dos seus pontos fortes na revelao do carter tambm criador das etapas sucessi-vas de aplicao do direito, at a sentena, inclusive (cf., p. ex., Teora general del derecho y del Estado, trad., Mxico, 1949, p. 137 e s.) e o formalismo dos exegetas, este, sim, que parte da premissa de "que a atividade do intrprete se desenvolve por via de um processo dedutivo, de mera subsuno do fato norma", de sentido supostamente inequvoco: permita-me o autor a crtica ligeira, que, por fora do contraste, realar os muitos elogios.

O tema agora eleito interpretao e aplicao da Constituio de trato freqentemente negligenciado, quando no enfadonhamente repetitivo, seguramente no uma promessa, necessria-mente mistificadora de ensinar caminhos sem desvios nem alternativas para a soluo pretensamente unvoca de todo e qualquer problema constitucional.

Ao contrrio, o subttulo da tese Fundamentos de uma dogmtica constitucional transfor-madora desvela o engajamento progressista do autor, que o pargrafo final do estudo corajosamente renova:

"O constituinte invariavelmente mais progressista que o legislador ordinrio. Tal fato d relevo s potencialidades do direito constitucional, e suas possibilidades interpretativas. Sem abrir mo de uma perspectiva questionadora e crtica, possvel, com base nos princpios maiores da Constituio e nos valores do processo civilizatrio, dar um passo frente na dogmtica constitucional. Cuida-se de produzir um conhecimento e uma prtica asseguradores das grandes conquistas histricas, mas igual-mente comprometidos com a transformao das estruturas vigentes. O esboo de uma dogmtica autocrtica e progressista, que ajude a ordenar um pas capaz de gerar riquezas e distribu-las adequadamente".

Essa audaciosa declarao de compromisso do autor com a "transformao das estruturas vigentes" no seria de celebrar se se tratasse apenas de mais uma dessas tentativas, to comuns na rea do direito pblico, de vender crenas ideolgicas dessa ou daquela colorao como solues de dogmtica constitucional, de simulada neutralidade cientfica.

Certo, Lus Roberto Barroso denuncia com razo que "a idia de neutralidade do Estado, das leis e de seus intrpretes, divulgada pela doutrina liberal-normativista, toma por base o status quo e, por isso, s reputa neutra a deciso ou a atitude que no afeta nem subverte as distribuies de poder e riqueza existentes na sociedade".

verdade tambm que no receou enfrentar preconceitos e resgatar, da superficialidade da rplica que si opor-lhe a crtica reacionria, os aspectos positivos da "teoria crtica do direito" e do movimento do "direito alternativo".

No obstante, a obra repele decididamente a pregao dos que, a partir da "impossibilidade da objetividade plena" dado o inextirpvel coeficiente de subjetividade que toda interpretao contm , renunciam na sua prtica busca da "objetividade possvel".

Da, o trao antolgico da linha de equilbrio que prope:

"A impossibilidade de chegar-se objetividade plena no minimiza a necessidade de se buscar a objetividade possvel. A interpretao, no apenas no direito como em outros domnios, jamais ser uma atividade inteiramente discricionria ou puramente mecnica. Ela ser sempre o produto de uma interao entre o intrprete e o texto, e seu produto final conter elementos objetivos e subjetivos. E bom que seja assim. A objetividade traar os parmetros de atuao do intrprete e permitir aferir o acerto de sua deciso luz das possibilidades exegticas do texto, das regras de interpretao (que o confinam a um espao que, normalmente, no vai alm da literalidade, da histria, do sistema e da finalidade da norma) e do contedo dos princpios e conceitos de que no se pode afastar. A subjetividade traduzir-se- na sensibilidade do intrprete, que humanizar a norma para afeio-la realidade, e permitir que ele busque a soluo justa, dentre as alternativas que o ordenamento lhe abriu. A objetividade mxima que se pode perseguir na interpretao jurdica e constitucional a de estabelecer os balizamentos dentro dos quais o aplicador da lei exercitar sua criatividade, seu senso do razoavel e sua capacidade de fazer a justia do caso concreto".

A essa orientao o autor consegue manter-se invariavelmente fiel, custa da rejeio coerente tentao dos desvios de todas as bandas.

Assim, de um lado, na trilha do seu mestre, o notvel Jos Carlos Barbosa Moreira volta a denunciar a lgica predileta dos reacionrios, "uma das patologias crnicas da hermenutica constitucional brasileira, que a interpretao retrospectiva, pela qual se procura interpretar o texto novo de maneira a que ele no inove nada, mas, ao revs, fique to parecido quanto possvel com o antigo".

Repele, no entanto, com igual vigor, o "charlatanismo constitucional", merc do qual, com freqncia, intrpretes politicamente comprometidos includos alguns dos nossos forcejam por ignorar princpios elementares e limites intransponveis da dogmtica do ordenamento positivo, busca de uma falsa legitimao jurdica para suas posies.

Essa fidelidade dignidade cientfica da interpretao constitucional, sem prejuzo da criatividade e do compromisso com a transformao, na medida em que dogmaticamente viveis, responde pelo nvel de altiplano, sem depresses, que o livro mantm, do comeo ao fim.

impossvel, contudo, no assinalar alguns pontos da obra, cuja particular cintilao a singulariza, no panorama de hoje da nossa doutrina constitucional.

Entre eles, toda a Parte I A determinao da norma aplicvel , que, salvo engano, pela sistemtica do trato dos conflitos das normas constitucionais no tempo e no espao, no encontra paralelo em nossa literatura.

Nela, ganha realce a precisa anlise da questo, quase inexplorada, da legitimidade e dos limites do controle, no foro brasileiro, da validade da norma estrangeira a aplicar, quer perante a Constituio de origem, quer perante a prpria Constituio do Brasil, cujas normas, em passagem de grande felicidade, o autor insere na "ordem pblica internacional". So pginas mpares.

De relevar tambm todo o captulo destinado a enfatizar o decisivo papel dogmtico dos princpios constitucionais "normas eleitas pelo constituinte como fundamentos e qualificaes essenciais da ordem jurdica que instituem" , os quais assinala o autor, reafirmando sua postura fundamental , por sua generalidade, abstrao e capacidade de expanso, permitem muitas vezes ao intrprete "superar o legalismo estrito e buscar no prprio sistema a soluo mais justa", mas, a um s tempo, "funcionam como limites interpretativos mximos, neutralizando o subjetivismo voluntarista dos sentimentos pessoais e das convenincias polticas, reduzindo a discricionariedade do legislador e impondo-lhe o dever de motivar seu convencimento".

Exemplar igualmente, dentro da mesma diretiva metodolgica, nos tpicos que se ocupam dos princpios especficos da interpretao constitucional, a explorao das potencialidades do "princpio da razoabilidade" e a definio dos marcos do seu espao legtimo de incidncia.

S duas palavras a mais.

Vai a primeira para o cuidado da tese com a pesquisa e a anlise da jurisprudncia constitucional brasileira, que a obra de nossos especialistas, a exemplo do que sucede nos demais ramos do direito, tende simplesmente a ignorar.

O escamoteamento da jurisprudncia pela doutrina, entretanto, de todo indesculpvel. No que se pretenda impor ao terico a submisso ao entendimento dos tribunais acentuei, ao prefaciar outra obra recente: o que no leal, sobretudo para o leitor jovem, no dar conta dele e transmitir, como verdades apodticas, opinies diametralmente opostas a quanto se tem decidido certo ou errado, no importa na vivncia cotidiana, na Justia, da lei e da Constituio.

5. Jos Tarcisio de Almeida Melo, Direito constitucional brasileiro, Del Rey, 1996, prefcio.

auspicioso verificar que essa tendncia tradicional est sendo superada por alguns dos melhores nomes da nova gerao de publicistas brasileiros.

6. Cf., a partir de Jos Celso de Melo Filho (Constituio Federal anotada, Saraiva, 1986) e de Gilmar F. Mendes (Controle de constitucionalidade, Saraiva, 1990, e Jurisdio constitucional - controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha, Saraiva, 1996), v. g., Clmerson M. Clve. A fiscalizao abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro, Revista dos Tribunais, 1995; Nagih Slaibi Filho, Ao declaratria de constitucionalidade, Forense, 1994; Elival S. Ramos. A inconstitucionalidade das leis, Saraiva, 1994; Oscar Vilhena Vieira, Supremo Tribunal Federal - jurisprudncia poltica, Revista dos Tribunais, 1994; Joaquim Barbosa Gomes, La Cour Suprim dans le systme politique brsilien, alm de valiosos comentrios e crticas de decises determinadas, e. g., Flvio Bauer Novelli, sobre o julgamento da ADIn 939, declaratria da inconstitucionalidade do art. 2, 2, da EC 3/93, RT - Cadernos de Direito Constitucional, 13:18.

Entre eles, com esta tese, Lus Roberto Barroso se inseriu definitivamente com minuciosa ateno jurisprudncia constitucional do Pas, particularmente a do Supremo Tribunal, que analisa com preciso e critica com agudeza, quando entende ser o caso.

A transcrio de alguns trechos j dispensaria, a rigor, a ltima nota destas palavras, reservada para louvar a clareza e a limpidez do estilo, de elegncia tica, infenso a ouropis e berloques, sem concesses frase arrevesada, s metforas substitutivas de conceitos tcnicos e a tantos outros abominveis vcios de provinciano pedantismo, dos quais muitos de nossos juristas esto longe de libertar-se.

Por tudo quanto foi dito, o melhor encerrar.

Afinal, se o livro to bom e to bem escrito, j mais que hora de deixar que o leitor desavisado, que haja gasto seu tempo com esta apresentao desnecessria, entregue-se afinal ao prazer intelectual da sua leitura.

Brasilia, maio de 1996.

J. P. Seplveda Pertence

REGISTROS

Inmeras pessoas participaram deste projeto, com maior ou menor intensidade, em contribui-es intelectuais e afetivas. Por evidente, nenhuma delas tem culpa no resultado. Ana Paula de Barcellos tem sido um adorvel anjo da guarda destes ltimos anos, com sua dedicao e talento. Lus Eduardo Barbosa Moreira prestou-me valiosa ajuda na pesquisa dos materiais em italiano e reviu em mincia o texto final. Lcia Maria Lefebvre Fisher, de novo e sempre, foi a bibliotecria que tomou minha vida mais fcil e melhor. Devo, igualmente, ao Professor Osris Cuadrat de Souza inmeras correes da primeira verso.

Nelson Nascimento Diz, Mauro Fichtner Pereira e Joel Alves Andrade, advogados e pessoas notveis, foram interlocutores freqentes e gratificantes de minhas angstias e perplexidades. Os Professores Jos Carlos Barbosa Moreira, Milton Flaks, Joaquim Arruda Falco e Hlio Assuno honraram-me com a leitura dos originais e com suas crticas lcidas e proveitosas. O Professor Gustavo Tepedino tem sido companheiro e amigo constante de muitos caminhos, que vm desde o movimento estudantil e chegaro a um mundo melhor.

Os Professores Doutores Caio Tcito, Raul Machado Horta, Jos Alfredo de Oliveira Baracho, Carlos Alberto Direito e Jacob Dolinger integraram a banca de concurso que me conferiu o grau de titular em Direito Constitucional, com nota mxima. A leitura atenta que fizeram de meu trabalho e as argies eruditas e instigantes valorizaram imensamente a conquista. Partilho o ttulo, em profunda comunho afetiva, com a Professora Carmen Tiburcio, pelo estmulo, carinho e transcendente amizade de todos estes anos.

Este trabalho dedicado T, que o acompanhou a cada passo, e Luna, que nasceu junto com ele. Nas madrugadas e fins de semana em que o escrevi, e por isto no pude estar com elas, reconheci-me no verso encantado de Jorge Luis Borges, uma linda declarao de amor: "Estar com voc ou no estar com voc a medida do meu tempo".

Dezembro de 1995

LRB

INTRODUO

"Um texto, depois de ter sido separado do seu emissor e das circunstncias concretas da sua emisso, flutua no vcuo de um espao infinito de interpretaes possveis.

Por conseqncia, nenhum texto pode ser interpretado de acordo com a utopia de um sentido autorizado definido, original e final. A linguagem diz sempre algo mais do que o seu inacessvel sentido literal, que j se perdeu desde o incio da emisso textual."

Umberto Eco

Umberto Eco, Les limites de linterprtation, 1992, p. 8.

01. A interpretao. Generalidades

A Terra plana, e todos os dias o sol nasce, percorre o cu de ponta a ponta e se pe do lado oposto. Por muito tempo isto foi tido como uma obviedade, e toda a compreenso do mundo era tributria dessas premissas, que, todavia, eram falsas. Desde logo, uma primeira constatao: as verdades, em cincia, no so absolutas nem perenes. Toda interpretao produto de uma poca, de uma conjuntura que abrange os fatos, as circunstncias do intrprete e, evidentemente, o imaginrio de cada um. Ao longo dos sculos, o homem tem recorrido mitologia, ao sobrenatural, ao pantesmo, f monotesta de diversos credos e obsesso do racionalismo. No necessariamente nessa ordem.

Em instigante trabalho no qual procurou traar um paralelo entre a Fsica e o direito constitucio-nal, Laurence Tribe dissertou sobre os trs grandes estgios da Fsica moderna, e como cada um deles influenciou a percepo do universo em geral. Newton trabalhou sobre a idia de que os objetos eram isolados e interagiam distncia e utilizou-se de conceitos metafsicos como espao e tempo absolutos. A Fsica ps-newtoniana, marcada pela teoria da relatividade de Einstein, superou a fase do absoluto, divulgou a idia da curvatura do espao e de que todos os corpos interagem entre si. Por fim, com a Fsica quntica percebeu-se que a prpria atividade de observao e investigao interfere com os fatos pesquisados. Vale dizer: nem mesmo a mera observao neutra. (Laurence Tribe, The curvature of constitutional space: what lawyers can learn from modern physics, Harvard Law Review, 103:1, 1989).Ao longo do tempo, varia a percepo que o homem tem, no apenas do mundo sua volta, como tambm de si mesmo. Em passagem clssica, Sigmund Freud identificou trs momentos em que, pela mo da cincia, o homem se viu abalado em suas convices e mesmo em sua auto-estima. O primeiro golpe deveu-se a Coprnico, com a revelao de que a Terra no era o centro do universo, mas apenas um minsculo fragmento de um sistema csmico cuja vastido inimaginvel. O segundo golpe veio com Darwin, que atravs da pesquisa biolgica destruiu o suposto lugar privilegiado que o homem ocuparia no mbito da criao e provou sua incontestvel natureza animal. O terceiro abalo, possivelmente o mais contundente, veio com o prprio Freud, criador da Psicanlise: a descoberta de que o homem no senhor absoluto sequer da prpria vontade, de seus desejos, de seus instintos. Seu psiquismo no dominado pela razo, mas pelo inconsciente. (Sigmund Freud, O pensamento vivo de Freud, 1985, p. 59).

certamente possvel incluir neste elenco um outro golpe mais recente: o fiasco dos pases que se organizaram sob inspirao do marxismo e puseram em prtica o chamado socialismo real. A ideologia, que chegou a envolver quase metade da humanidade e cativou coraes e mentes por todo o mundo, representava um exerccio supremo do racionalismo e um esforo de criao de um novo homem. Um homem que no seria predestinado pela fatalidade, pela providncia ou por seus prprios instintos, mas pela histria. Uma histria que poderia ser tomada nas mos para promover uma sociedade igualitria, solidria e pretensamente universal, sem Estados, nacionalismos ou fronteiras. No faltam os que possam alegar que, desde a primeira hora, denunciaram a inviabilidade ou os desvios do modelo, no deixa de ser desolador para o esprito humano que tudo tenha acabado em secesso, desordem e fratricdio.

O trabalho que a seguir se desenvolve parte da premissa consolidada de que a interpretao no um fenmeno absoluto ou atemporal. Ela espelha o nvel de conhecimento e a realidade de cada poca, bem como as crenas e valores do intrprete, sejam os do contexto social em que esteja inserido, sejam os de sua prpria individualidade.

2. Apresentao do tema

A interpretao constitucional no Brasil era um tema espera de um autor. Possivelmente continuar a ser. Este estudo, todavia, tem a ambio de identificar e sistematizar os elementos essenciais da teoria da interpretao aplicveis ao direito constitucional. No seu desenvolvimento, sem embargo da nfase dada realidade brasileira, procurou-se importar, seletivamente, com moderao e sentido crtico, o que de melhor havia no direito comparado sobre a matria.

Posteriormente publicao da 1 edio deste livro, em 1996, foram lanados outros trabalhos monogrficos acerca da interpretao constitucional, dentre os quais se destacam: Inocncio Mrtires Coelho, Interpretao constitucional, 1997; Uadi Lammgo Bulos, Manual de interpretao constitucional, 1997; Celso Ribeiro Bastos, Hermenutica e interpretao constitucional, 1997; Lenio Luiz Streck, Hermenutica jurdica e(m) crise: uma explorao hermenutica da construo do direito, 1999.

Neste esforo, deu-se especial ateno bicentenria produo jurisprudencial da Suprema Corte norte-americana, bem como fecunda atuao do Tribunal Constitucional Federal alemo em pouco mais de um quarto de sculo. Contudo, e naturalmente, reservou-se maior destaque para as decises do Supremo Tribunal Federal brasileiro, referidas e reproduzidas com freqncia ao longo do texto, contrariando um velho hbito da doutrina de tratar a jurisprudncia, sobretudo a nacional, com certo desdm. No se correu o risco, aqui, de ficar de frente para o mar, de costas para o Brasil.

O trabalho que se segue no tem por objeto a filosofia da interpretao constitucional, nem tampouco pretende ser uma teoria geral sobre o tema. Ele se volta, predominantemente, para a atividade de realizao da vontade constitucional, e procura fundamentar, desenvolver e sistematizar o conhecimento necessrio a tal desiderato. Concentra-se, assim, no itinerrio intelectivo a ser percorrido no processo de interpretao da Constituio, desde a determinao da norma aplicvel at o ato final de sua incidncia sobre o caso concreto, sem descurar do questionamento acerca do papel desem-penhado pela subjetividade do prprio intrprete.

A interpretao constitucional, como a interpretao em geral, no um fenmeno monoltico, singular. Ela essencialmente plural e comporta nfase em aspectos diferentes. Em uma anlise cientfica, assim, possvel voltar a ateno, em primeiro lugar, para o sistema, isto , para o conjunto de normas, princpios e conceitos inerentes ao processo interpretativo. Pode-se, de outra parte, dar um papel destacado ao objeto, vale dizer, aos casos concretos, s situaes da vida, aos problemas que devem ser solucionados pela interpretao da norma. Por fim, possvel cogitar, ainda, de investigar o papel do sujeito da interpretao, voltando os olhos para os valores e a ideologia do intrprete e sua repercusso no produto de seu trabalho.

Metodologicamente, portanto, possvel encarar a interpretao constitucional a partir do sistema, do primado da norma e da dogmtica jurdica tradicional, qual se adicionam particularidades exigidas pelo carter singular da Constituio. A interpretao constitucional, por via de conseqncia, uma espcie de interpretao jurdica, enriquecida por princpios e regras prprias. Este mtodo, que se pode identificar como mtodo hermenutico clssico, trata a Constituio como lei, e procura desenvolver sua fora normativa, sem embargo de dificuldades que a peculiar estrutura das normas constitucionais muitas vezes suscita.

Ernst-Wolfgang Bckenfrde (Escritos sobre derechos fundamentales, 1993) faz referncia ao mtodo hermenutico clssico, que associa a Forsthoff (Rechtsstaat im Wandel, 1976), e dele distingue variaes de menor ou maior sutileza, como o mtodo hermenutico-concretizador, de Konrad Hesse (Grundzge des VerfassungsR der Bundesrepublik Deutschland. 1976) e F. Mller (Enzvklopdie der geisteswissenschaftichen Arbeitsmethoden, 1972), e o que denomina interpretao constitucional orientada s cincias da realidade, de Smend (Staatsrechtliche Abhandlungen, 1968).

possvel, igualmente, optar por uma metodologia que valorize antes o objeto que motiva a interpretao, isto , o caso concreto ou o problema a ser resolvido. Nos pases onde vigora a tradio do common law, como nos Estados Unidos, a nfase da argumentao jurdica recai, precisamente, na discusso dos aspectos de fato da causa e na busca do precedente mais adequado, sem que exista, normalmente, a rigidez de uma norma taxativa emanada do sistema. Paralelamente ao case system norte-americano, desenvolveu-se entre os alemes a tpica, o chamado mtodo tpico aplicado aos problemas, pelo qual se sustenta o primado do problema sobre a norma jurdica e sobre o sistema, onde a interpretao se apresenta como um mtodo aberto de argumentao, indutivo e no dedutivo. Nele, a ordem jurdica apenas uma referncia, um dos argumentos, um dos topoi a serem levados em conta na soluo das situaes concretas. (Veja-se, por todos, em meio a vastssima bibliografia, o texto clssico de Karl Llewellyn, The case law system in America, Columbia Law Review, 88:989, 1988).

A obra fundamental sobre a tpica de Theodor Viehweg, Topik und Jurisprudenz, 1953. Vejam-se, tambm, H. Ehmke, Prinzipien der Verfassungsinterpretation, 1963; Ernst-Wolfgang Bckenfrde, Escritos sobre derechos fundamentales, cit., p. 19 e s.; Jos Antonio Estvez Araujo, La Constitucin como proceso y la desobediencia civil, 1994; Eduardo Garca de Enterra, Reflexiones sobre la ley y los principios generales del derecho, 1984. Em lngua portuguesa, v. Paulo Bonavides, Curso de direito constitucional, 1993, p. 404 e s.

Por fim, possvel, na interpretao constitucional, voltar os olhos para o papel do intrprete, as possibilidades de sua atuao e os limites de sua discricionariedade. Aqui de grande relevo o aporte trazido pela teoria crtica do direito e seus desdobramentos, notadamente no seu questionamento da onipotncia da dogmtica jurdica convencional e da funo ideolgica do direito e do intrprete. Abre-se, assim, um espao para a discusso da objetividade da norma e da neutralidade de seu aplicador, e do papel do direito como instrumento de conservao e de transformao. (V Michel Miaille, Introduo crtica ao direito, 1989; Carlos Maria Crcova e outros, Materiales para una teora crtica del derecho, s. d.; Luis Alberto Warat e Eduardo A. Russo, Interpretacin de la ley, 1988, v. 1.

O presente estudo procurou, na medida do possvel, produzir a sntese necessria dessas perspectivas distintas. Sem deixar de reconhecer, contudo, que tanto a tpica quanto a crtica bem como outras variaes, que vo do sociologismo ao economicismo so questionamentos do sistema legal, do saber jurdico tradicional, e no propostas que possam erradic-lo ou desdenh-lo. Rejeitou-se, assim, o ceticismo terico de que o direito, tanto na sua dimenso cientfica quanto na normativa, no seja mais do que um instrumento assegurador do status quo e perpetuador de certas relaes de poder. Sem embargo da crtica histrica severa que se lhe possa fazer, inegvel a existncia de um amplo espao onde o direito pode ser no mero reflexo da realidade, mas uma fora capaz de conform-la e transform-la.

Investiu-se, tambm, grande esforo na divulgao do conhecimento tradicional, na exibio dos mtodos clssicos de interpretao e na explorao dos princpios especficos de interpretao constitu-cional. preciso conhecer o direito posto. Tal preocupao poderia decorrer da advertncia de Umberto Eco de que, para violar regras ou opor-se a elas, importa, antes de tudo, conhec-las e, eventualmente, saber mostrar sua inconsistncia ou funo meramente repressiva. Mas a verdade que a ignorncia do que existe conduz antes ao preconceito do que atuao transformadora. (Umberto Eco, Como se faz uma tese, 1993, p. 48).

O exame do caso brasileiro revela existirem amplas e generosas possibilidades exegticas no texto constitucional em vigor. O texto que se segue procura fornecer elementos, dentro do sistema jurdico, que permitam ao intrprete neutralizar certas perverses ideolgicas suas ou do ordenamen-to , realizando a justia do caso concreto. um esforo em busca de uma dogmtica jurdica autocrtica e progressista. Mas, de qualquer modo, de uma dogmtica jurdica.

3. Plano de trabalho

O estudo que aqui se empreende foi concebido em trs grandes partes, cada uma delas dividida em dois captulos. A Parte I cuida da determinao da norma aplicvel. Trata-se de investigao em tema normalmente negligenciado pelos constitucionalistas. O primeiro momento de qualquer atividade interpretativa h de ser a determinao da norma jurdica a ser aplicada hiptese. Na interpretao constitucional, essa determinao poder ficar sujeita prvia soluo de conflitos entre normas provindas de fontes ou ordenamentos jurdicos distintos. Ser necessrio, por vezes, dirimir colises entre um tratado internacional e a Constituio nacional. Em outras situaes, sendo hiptese de aplicao de direito estrangeiro por um juiz brasileiro, precisar ele confrontar tal norma com o direito constitucional vigente, para aferir-lhe a validade. Diversas possibilidades se abrem nesta matria, com carter eminentemente prtico e no apenas terico, como demonstra a farta jurisprudncia levantada sobre o assunto. O captulo I, portanto, dedicado ao direito constitucional internacional.

A determinao da norma aplicvel a uma dada hiptese concreta depender tambm, muitas vezes, da soluo de conflitos de natureza temporal. Quando da entrada em vigor de uma Constituio nova, fruto da atuao do poder constituinte originrio, ou de uma emenda constitucional, criada pelo constituinte derivado, indispensvel definir as relaes que se estabelecem entre esses novos textos e as normas constitucionais e infraconstitucionais anteriormente existentes. O captulo II volta-se para o direito constitucional intertemporal, cuidando da vigncia de normas luz de novas disposies consti-tucionais, abrangendo aspectos relacionados com a aplicao imediata e eventualmente retroativa da Constituio, com a inconstitucionalidade material e formal supervenientes, com existncia ou no de efeito repristinatrio quando da declarao de inconstitucionalidade da norma revogadora, dentre outros temas complexos.

A Parte II do estudo tem por objeto a interpretao constitucional propriamente dita. No captulo I faz-se a apreciao dos conceitos e mtodos clssicos de interpretao jurdica aplicados interpretao constitucional. Analisam-se, assim, as singularidades das normas constitucionais que as distinguem das normas infraconstitucionais, bem como aspectos relativos determinao da vontade do constituinte e da autonomia assumida pelo texto constitucional uma vez posto em vigor.

Percorrem-se, em seguida, as categorias em que se classifica a interpretao, inclusive constitucional, quanto origem (legislativa, administrativa ou judicial), extenso (declarativa, extensiva ou restritiva) e quanto aos elementos tradicionais (gramatical, histrica, sistemtica e teleolgica). Em desfecho, estudam-se o costume e a analogia como mtodos integrativos das lacunas constitucionais, abrindo-se, ainda, um tpico especial para a interpretao evolutiva.

O captulo II constitui o ncleo bsico do trabalho e consiste na sistematizao e estudo dos princpios de interpretao especificamente constitucional. Nele, enfatiza-se, em primeiro lugar, a relevncia dos princpios constitucionais materiais como vetores de toda a atividade interpretativa da Constituio. Passa-se, logo aps, ao exame detalhado e individual de cada um dos princpios arrolados: supremacia da Constituio, presuno de constitucionalidade das leis e atos do Poder Pblico, interpretao conforme a Constituio, unidade da Constituio, razoabilidade-proporcionalidade, concluindo com o princpio da efetividade.

A Parte Final do trabalho cuida da objetividade desejada e a neutralidade impossvel: o papel do intrprete na interpretao constitucional. Analisa-se, ali, no captulo I, a teoria jurdica clssica ou tradicional e algumas formulaes que a questionaram, como a teoria crtica do direito e o movimento impropriamente designado de direito alternativo. Faz-se, nessa parte, ampla especulao sobre a norma como parmetro para a objetividade do direito e da atividade interpretativa, bem como sobre questes afetas neutralidade do intrprete. Encerrando o captulo, procura-se enfatizar a importncia de uma boa dogmtica constitucional, que liberte o estudo do direito constitucional da retrica vazia e do discurso puramente poltico, sem densidade jurdica. A concretizao da Constituio, sua valorizao como documento jurdico, aproxima-a antes do processo do que da cincia poltica. Por derradeiro, no captulo II procura-se apresentar, esquematicamente, uma sntese das idias desenvolvidas ao longo do estudo.

Ao longo de todo o texto, nenhuma preocupao foi mais constante do que a que inspirou a bela passagem de Manuel Bandeira, em Itinerrio de Pasrgada, lembrada por Plauto Faraco de Azevedo, em sua Crtica dogmtica e hermenutica jurdica:

"Aproveito a ocasio para jurar que jamais fiz um poema ou verso ininteligvel para me fingir de profundo sob a especiosa capa de hermetismo. S no fui claro quando no pude".

PARTE I A DETERMINAO DA NORMA APLICVEL

Introduo - CONFLITOS DE NORMAS NO ESPAO E NO TEMPOA ordem jurdica de cada Estado constitui um sistema lgico, composto de elementos que se articulam harmoniosamente. No se amolda idia de sistema a possibilidade de uma mesma situao jurdica estar sujeita incidncia de normas distintas, contrastantes entre si. Justamente ao revs, no ordenamento jurdico no podem coexistir normas incompatveis. O direito no tolera antinomias.1Um dos critrios comumente utilizados para evitar as antinomias, solucionando o conflito entre normas, o critrio hierrquico: a norma superior prevalece sobre a inferior. Assim, pois, se a Constituio e uma lei ordinria divergirem, a Constituio que prevalece. Se um decreto regulamen-tar desvirtuar o sentido da lei, ser invlido nesta parte. Se a resoluo deixar de observar o teor do regulamento, no poder prevalecer. E assim por diante.

Um segundo critrio de que se vale o sistema normativo para selecionar a regra aplicvel, em meio a preceitos incompatveis, o da especializao. Havendo, em relao a dada matria, uma regra geral e uma especial (ou excepcional), prevalece a segunda: lex specialis derogat generalis.2Existem, no entanto, duas espcies de conflitos de normas cuja soluo, ao menos em princpio, no se socorre dos critrios hierrquico ou de especializao, mas, sim, de outro instrumental terico. So os conflitos de leis no espao e no tempo, cujo equacionamento percorre caminhos complexos e acidentados, que passam por diversos ramos do direito.

As normas jurdicas positivas existentes no mundo no so universais nem perptuas. Ao contrrio, cada Estado tem suas prprias leis, que emanam de sua soberania; e cada poca tem os seus prprios valores, que se consubstanciam em regras vigentes. Porque assim , as normas variam infinitamente, no tempo e no espao, e so suscetveis de gerar conflitos diversos.3Ordinariamente, determinada relao jurdica constituir-se-, produzir seus efeitos e extinguir-se- sob a vigncia da mesma lei. E, nesse caso, inexistir qualquer conflito de natureza temporal. Por igual, ser mais comum que uma relao jurdica tenha o seu nascimento e todo o seu ciclo de existncia no mbito do mesmo Estado, sendo regida, pois, por um nico sistema de normas. Inexistir, em tal hiptese, qualquer conflito de natureza espacial.

Todavia, ocasies existem em que essa relao sofre a incidncia de lei nova ou entra em contato com o ordenamento jurdico de outro Estado. Tais hipteses, alis, tornam-se mais corriqueiras por fora da mudana acelerada da tcnica e dos costumes provocando a modificao das leis aliada internacionalizao das atividades humanas, gerando obrigaes em que alguns de seus elementos (sujeitos, objeto, fato jurdico) esto em conexo com Estados diferentes.

Pois bem: os conflitos de leis no tempo, que geralmente se observam no mbito de um mesmo sistema jurdico, so equacionados e resolvidos dentro de um domnio cientfico denominado direito intertemporal. Os conflitos de leis no espao, isto , os que exigem a definio de qual ordenamento jurdico reger a espcie, constituem objeto do direito internacional privado. Cada um deles tem princpios e regras peculiares, que, singularmente, no se aglutinam em um texto normativo nico, mas se espalham difusamente pelos diferentes documentos legais.4 O direito intertemporal e o direito internacional privado, cujas regras integram o chamado "sobredireito", desempenham papel de destaque na misso do direito de assegurar a continuidade e a estabilidade das relaes jurdicas. Com efeito, funda-se o primeiro no princpio da no-retroatividade da lei e no respeito s situaes jurdicas preexistentes. De forma anloga, o direito internacional privado repousa sobre o princpio da territorialidade, bem como no reconhecimento das situaes jur-________________

1. Sobre antinomias e critrios para solucion-las, v. Norberto Bobbio, Teoria do ordenamento jurdico, 1990, p. 81 e s. 2. V. Norberto Bobbio, Teoria do ordenamento jurdico, cit., p. 81 e s.

3. Haroldo Vallado, Direito internacional privado, 1974. v. 1, p. 4.

4. Nada obstante, existe uma especial concentrao dessas normas na Lei de Introduo ao Cdigo Civil. So de direito intertemporal os arts. 1, 2 e 6. So de direito internacional privado maior parte das normas remanescentes, notadamente do art. 7 em diante.

dicas constitudas no mbito de eficcia de uma lei estrangeira.5 e 6Sem embargo do que foi dito acima, hipteses h de aplicao retroativa e de aplicao extraterritorial do direito. A seguir se estudam os princpios, as regras e as excees que regem a aplicao das normas constitucionais no tempo e no espao.

________________

5. V.. Pontes de Miranda, Direito supra-estatal, direito interestatal, direito intra-estatal e sobredireito, in Estudos jurdicos em homenagem ao Professor Oscar Tenrio, 1977, p. 458. V. tambm Jacob Dolinger, Direito internacional privado; parte geral, 1994, p. 25: "Acima das normas jurdicas materiais destinadas soluo dos conflitos de interesses, sobrepem-se as regras sobre o campo da aplicao destas normas. So as regras que compem o chamado sobredireito, que determinam qual a norma competente na hiptese de serem potencialmente aplicveis duas normas diferentes mesma situao jurdica".

6. Joo Baptista Machado, Lies de direito internacional privado, 1982, p. 9-10.

Captulo I - A CONSTITUIO E O CONFLITO DE NORMAS NO ESPAO. DIREITO CONSTITUCIONAL INTERNACIONALComo ficou assentado, o direito internacional privado visa a solucionar o conflito de leis no espao, vale dizer, o entrechoque de normas que emanam de soberanias diferentes. Ele regula os fatos em conexo com leis autnomas e divergentes. A despeito da denominao imprecisa, sua atuao no se restringe ao campo do direito privado, estendendo-se a diferentes domnios do direito pblico, haja vista existirem conflitos potenciais entre normas constitucionais, penais, fiscais e financeiras dos diferentes Estados.1, 2 e 3O direito internacional privado abrange os conflitos de leis, sem qualquer cogitao a respeito da natureza das normas da diviso clssica. Seu papel no o de formular a regra que vai reger o caso concreto, mas, sim, indicar, dentre as normas que dispem diferentemente sobre uma mesma matria, qual dever prevalecer em uma dada situao. Por tal razo, diz-se que as normas de direito internacional privado so indiretas.4 e 5As regras de direito internacional privado so, normalmente, disposies de direito interno, de vez que cada ordenamento jurdico estabelece suas prprias regras de soluo de conflitos. Tais preceitos, que se denominam regras de conexo, indicam qual dos ordenamentos jurdicos em contato com uma dada relao dever prevalecer e disciplin-la.

Paralelamente a isso, e ingressando em faixa de intensa conexo com o direito internacional pblico, existem normas que no so criadas pelo rgo legislativo interno, mas, sim, resultam de acordos entre Estados: so os tratados e convenes internacionais. Surge, a, nova possibilidade de conflito: o que venha a contrapor a norma internacional e os princpios e regras de direito interno. o chamado conflito entre fontes. Para os fins do estudo aqui desenvolvido, interessa especialmente a incompatibilidade entre o tratado e a Constituio.H, ainda, outro ponto relevante na determinao de qual lei vai reger a hiptese. que, ao solucionar um conflito de leis, a regra de direito internacional privado pode indicar como aplicvel uma lei de seu prprio ordenamento a lex fori ou pode apontar para a aplicao de norma de outro ordenamento jurdico. Disso resulta que aos juzes e tribunais de um Estado caber, por vezes, aplicar direito estrangeiro. Ao faz-lo, tero de apreciar alguns aspectos importantes dessa interao de duas ordens legais. Dentre eles se inclui a verificao da compatibilidade entre a norma estrangeira e a Constituio, seja a do Estado de origem, seja a do foro.

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1. Sobre o tema, na literatura nacional mais recente, vejam-se, alm do livro de Haroldo Vallado, j citado, Jacob Dolinger, Direito internacional privado, cit.; Oscar Tenrio, Direito internacional privado, 1976; Amilcar de Castro, Direito internacional privado, 1987; Irineu Strenger, Curso de direito internacional privado, 1978; Wilson de Souza Campos Batalha, Tratado de direito internacional privado, 1977; e Agustinho Fernandes Dias da Silva, Introduo ao direito internacional privado, 1975. Na literatura internacional, so fontes de referncia clssicas as obras seguintes: Savigny, Trait de droit romain, 1855-1860; Story, Comentrios sobre el conflicto de las leyes, 1834; Pillet, Principes de droit international priv, 1903; Nyboyet, Trait de droit international priv franais, 1944; Ferrer Correia, Lies de direito internacional privado, 1963; Battifol e Lagarde, Droit international priv, 1981-1983.

2. Haroldo Vallado, Direito internacional privado, cit., p. 4, e Oscar Tenrio, Direito internacional privado, cit., p. 13. Existe vasta controvrsia acerca do objeto do direito internacional privado, no sendo esta a sede prpria para reedit-la. Conforme o pas ou o autor, tem sido includo no domnio do direito internacional privado o estudo da nacionalidade, da condio jurdica do estrangeiro, da teoria dos direitos adquiridos, do conflito de jurisdio e do reconhecimento de sentenas estrangeiras. H consenso, todavia, em que a soluo do conflito de leis sua principal razo de existir. V. amplo levantamento sobre o tema em Jacob Dolinger, Direito internacional privado, cit., p. 1 e s.

3. A denominao direito internacional privado foi utilizada pela primeira vez por Joseph Story (Comentrios sobre el conflicto de las leyes, cit., p. 12) e adotada na Frana por M. Foelix (Trait du droit International priv ou du conflit des lois de difrentes nations, en matire de droit priv, 1843). Embora se mantenha fiel denominao tradicional, a doutrina unnime em condenar o termo internacional o direito internacional privado predominantemente interno e no disciplina relaes entre naes e o termo privado, j que abrange conflitos regidos pelo direito pblico, sendo o seu prprio papel de soluo de conflitos de leis de natureza eminentemente pblica.4. Oscar Tenrio, Direito internacional privado, cit., p. 13.

5. V. Jacob Dolinger, Direito internacional privado, cit., p. 48: "Estas normas do Direito Internacional Privado apenas indicam qual, dentre os sistemas jridicos de alguma forma ligados hiptese, deve ser aplicado". O autor refere, tambm, alguns casos em que, excepcionalmente, a regra de direito internacional privado ter carter direto, substancial.

A expresso "direito constitucional internacional", que abre este tpico, aqui empregada em associao com a idia de direito internacional privado acima exposta. Por tal designao se identifica o conjunto de princpios e de regras que envolvem a soluo dos conflitos existentes entre as normas internacionais e estrangeiras, de um lado, e as normas constitucionais, de outro.

Na acepo adotada, o conceito de direito constitucional internacional no se confunde com o estudo dos preceitos constitucionais que, genrica e difusamente, tenham algum reflexo internacional, como os que versam a nacionalidade, a condio jurdica do estrangeiro ou as relaes externas do Pas. O objeto de que aqui se cuida mais restrito: trata-se to-somente de encontrar a soluo para os conflitos do tipo acima descritos.61. O tratado internacional e a Constituio

O tema do conflito entre as normas internacionais e a ordem interna evoca duas grandes correntes doutrinrias que disputam o melhor equacionamento da questo: o dualismo, pregado no mbito internacional por Triepel e Anzilotti e seguido no Brasil por Amilcar de Castro, e o monismo, concepo desenvolvida por Hans Kelsen e seguida no Brasil pela maior parte da doutrina, inclusive Vallado, Tenrio, Celso Albuquerque Mello e Marotta Rangel.7, 8, 9, 10 e 11Para os dualistas, inexiste conflito possvel entre a ordem internacional e a ordem interna simplesmente porque no h qualquer interseo entre ambas. So esferas distintas, que no se tocam. Assim, as normas de direito internacional disciplinam as relaes entre Estados, e entre estes e os demais protagonistas da sociedade internacional. De sua parte, o direito interno rege as relaes intra-estatais, sem qualquer conexo com elementos externos. Nesta ordem de idias, um ato internacional qualquer, como um tratado normativo, somente operar efeitos em mbito interno de um Estado se uma lei vier incorpor-lo ao ordenamento jurdico positivo. Os autores se referem a esta lei com "ordem de execuo".12O monismo jurdico afirma, com melhor razo, que o direito constitui uma unidade, um sistema, e que tanto o direito internacional quanto o direito interno integram esse sistema. Por assim ser, torna-se imperativa a existncia de normas que coordenem esses dois domnios e que estabeleam qual deles deve prevalecer em caso de conflito. Kelsen admite, em tese, o monismo com prevalncia da ordem interna e o monismo com prevalncia da ordem internacional, embora seja partidrio desse ltimo. A superioridade do direito internacional sobre o direito interno de cada Estado foi afirmada, desde 1930, pela Corte Permanente de Justia Internacional. 13 e 14A Constituio da maior parte dos pases europeus contm regras sobre as relaes entre o direito interno e o direito internacional, normalmente no sentido de considerar este ltimo como parte integrante do primeiro. No, assim, a Constituio da Frana, de 1958, que expressa no sentido da superioridade do direito internacional, bem como a da Holanda, de 1983. A verdade, no entanto, que a jurisprudncia restritiva dos tribunais tende a neutralizar essa supremacia formal, salvo quanto ao ________________

6. nesta acepo mais ampla que a expresso foi empregada por Celso Albuquerque Mello, em seu Direito constitucional internacional, 1994.7. Vejam-se Heinrich Triepel, Vlkerrecht und Landesrecht, 1899, p. 169 e s., e Dionsio Anzilotti, Cours de droit international, 1929, p. 49 e s. Vejam-se, tambm, Triepel, Recueil des Cours (Cursos proferidos na Academia de DIP da Haia), 1:79 e s., apud Haroldo Vallado, Direito internacional privado, cit., p. 51, e Anzilotti, Curso de derecho internacional, p. 48, apud Amlcar de Castro, Direito internacional privado, cit., p. 123.

8. Direito internacional privado, cit., p. 53 e 94.

9. Direito internacional privado, cit., p. 93 e s.

10. Direito constitucional internacional, cit., p. 344.

11. V. Os conflitos entre o direito interno e os tratados internacionais, Boletim da Sociedade Brasileira de Direito Internacional, 44/45, p. 29.

12. Amlcar de Castro, Direito internacional privado, cit., p. 123, citando Morelli, Nozioni di diritto internazionale, p. 91 e s.13. Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 1979, p. 437 e s., especialmente p. 442-7.

14. Em parecer consultivo proferido em 31-7-1930, assim pronunciou-se a Corte: " princpio geral reconhecido, do direito internacional, que, nas relaes entre potncias contratantes de um tratado, as disposies de uma lei no podem prevalecer sobre as do tratado" (apud Hildebrando Accioly, Manual de direito internacional pblico, 1978, p. 6).

direito comunitrio europeu, que tem desfrutado de primazia sobre o direito interno. 15, 16, 17 e 18Nos Estados Unidos, a jurisprudncia, de longa data, considerou os tratados e convenes internacionais incorporados ao direito interno, na interpretao dada ao art. 6, 2 seo, da Constituio. Aos atos internacionais adequadamente aprovados pelo Congresso reconhece-se o mesmo nvel das leis federais, de forma tal que o posterior prevalece sobre o anterior. Paradoxalmente, na prtica, o direito internacional freqentemente privilegiado, por fora de uma atitude de deferncia dos tribunais americanos, que somente consideram derrogados os atos internacionais quando seja evidente a inteno do Legislativo nesse sentido. 19 e 20No Brasil no existe disposio constitucional a respeito do tema, o que tem suscitado crticas diversas. No obstante, no que diz respeito ao conflito entre tratado internacional e norma interna infraconstitucional, a doutrina, como assinalamos pouco atrs, amplamente majoritria no sentido do monismo jurdico, com primazia para o direito internacional. Por tal postulado, o tratado prevalece sobre o direito interno, de forma a alterar a lei anterior, mas no pode ser alterado por lei superveniente. Esse entendimento positivado no art. 98 do Cdigo Tributrio Nacional. 21 e 22Curiosamente, os autores, unanimidade, vislumbravam essa mesma orientao na jurisprudn-cia constante e reiterada do Supremo Tribunal Federal. Por tal razo, causou imensa reao a deciso proferida pela Corte no Recurso Extraordinrio n. 80.004, que teria quebrado longa tradio ao decidir: "Embora a Conveno de Genebra que previu uma lei uniforme sobre letras de cmbio e notas promissrias tenha aplicabilidade no direito interno brasileiro, no se sobrepe ela s leis do Pas, disso decorrendo a constitucionalidade e conseqente validade do Decreto-lei n. 427/69 que instituiu o registro obrigatrio da Nota Promissria em Repartio Fazendria, sob pena de nulidade do ttulo". 23Decises posteriores da Suprema Corte mantiveram a mesma linha de entendimento, consoante fundamentao do Ministro e internacionalista Jos Francisco Rezek:

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15. V. Constituio da ustria, de 1929, art. 9 Constituio da Alemanha, de 1949, art. 25; Constituio da Itlia, de 1947, art. 10.

16. Constituio da Frana, art. 55: "Os tratados ou acordos regularmente ratificados ou aprovados tm, a partir de sua publicao, uma autoridade superior das leis, desde que respeitadas pela outra parte signatria". Constituio da Holanda, art. 94: "As disposies legais em vigor no Reino deixaro de se aplicar quando colidirem com disposies de tratados obrigatrios para todas as pessoas ou com decises de organizaes internacionais". No mesmo sentido o art. 15, n. 4, da nova Constituio russa, aprovada por referendo popular em 12 de dezembro de 1993 (v. Gennady M. Danilenko, The new Russian Constitution and international law, American Journal of International Law, 88:451, 1994, p. 464 e s.).

17. Jacob Dolinger, Direito internacional pri vado, cit., p. 83.

18. Jacob Dolinger, Direito internacional privado, cit., p. 83. V. tambm Celso Albuquerque Mello, Direito constitucional internacional, cit., p. 325: "Quanto ao D. Comunitrio ele tem sido visto como um ramo do DIP com caractersticas prprias, por exemplo, a supranacionalidade, a cesso de competncias soberanas comunidade. Ele considerado uma categoria especial dentro da ordem jurdica dos Estados-membros. Esta a posio da Corte de Justia das Comunidades Europias". Sobre o tema, v., infra, acrdo do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, nota 46. J. J. Gomes Canotilho (Direito constitucional, 1991, p. 915-6) assinala que os tratados institutivos das comunidades europias e as disposies comunitrias dotadas de aplicabilidade direta impem-se sobre a legislao interna, quer com base no princpio da especialidade ou no da competncia prevalente. Note-se que, nesta segunda hiptese, a prevalncia no implica ab-rogao das normas internas precedentes ou a invalidade das subseqentes (Anwendungsvorrang).19. V. Cherokee Tobacco, 78 U. S. (11 Wall)616(1871); The Paquete Habana, 175 U. S.677 (1900); Cook vs. United States, 288 U. S. 102 (1933); Diggs vs. Schultz, 470 F. 2d 461 (D. C. Circuit) (1972), cert. den., 411 U. S. 931.

20. V. Reestatement (Third) of Foreign Relations Law of the United States, 1988, 14.

21. Celso Albuquerque Mello, Direito constitucional internacional, cit., p. 343, e Lus Roberto Barroso, A brief guide to Brazil ls new Constitution and some international issues arising under it, mimeografado, 1989, p. 22.

22. CTN, art. 98: "Os tratados e as convenes internacionais revogam ou modificam a legislao tributria interna, e sero observados pela que lhes sobrevenha".

23. RTJ, 83:809, 1978. A deciso foi criticada por Jos Carlos de Magalhes, que lavrou: "O que fica dessa deciso, contudo, a impresso de recuo do Supremo aceitao da prevalncia do direito internacional. (...) Afastando-se da orientao anterior, no atentaram aqueles Ministros para a problemtica da responsabilidade do Estado na ordem internacional" (O Supremo Tribunal Federal e as relaes entre direito interno e direito internacional, Boletim Brasileiro de Direito Internacional, 61-69:53, 1975-79, p. 56). Celso Albuquerque Mello tambm condenou o julgado: "Entretanto, houve no Brasil um grande retrocesso no RE n. 80.004, decidido em 1978, em que o STF decidiu que uma lei revoga tratado anterior. Esta deciso viola tambm a Conveno de Viena sobre direito dos tratados (1969) que no admite o trmino do tratado por mudana de direito superveniente" (Direito constitucional internacional, cit., p. 344).

"O STF deve garantir prevalncia ltima palavra do Congresso Nacional, expressa no texto domstico, no obstante isto importasse o reconhecimento da afronta pelo pas de um compromisso internacional. Tal seria um fato resultante da culpa dos poderes polticos, a que o Judicirio no teria como dar remdio".A verdade que, em exame detido da jurisprudncia, Jacob Dolinger constatou que a leitura que a maioria dos autores fazia das decises do Supremo Tribunal Federal era antes reflexo de sua prpria crena no primado do direito internacional do que expresso da realidade dos julgados. Ao contrrio do sugerido, a orientao da mais alta Corte a do monismo moderado, em que o tratado se incorpora ao direito interno no mesmo nvel hierrquico da lei ordinria, sujeitando-se ao princpio consolidado: em caso de conflito, no se colocando a questo em termos de regra geral e regra particular, prevalece a norma posterior sobre a anterior.Existem, porm, algumas excees a essa equiparao entre tratado e lei ordinria para efeito de resoluo de conflitos. A primeira d-se em matria relativa tributao, onde o art. 98 do Cdigo Tributrio Nacional (Lei n. 5.172, de 25-10-1966), como visto, expresso quanto prevalncia da norma internacional. A segunda exceo refere-se aos casos de extradio, onde se considera que a lei interna (Lei n. 6.815, de 19-8-1980), que geral, cede vez ao tratado, que regra especial. Confira-se o afirmado em palavras do prprio Dolinger, Professor Titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro:"Nossa concluso que, excetuadas as hipteses de tratado-contrato, nada havia na jurisprudn-cia brasileira quanto prevalncia de tratados sobre lei promulgada posteriormente, e, portanto, equivocados todos os ilustres autores acima citados que lamentaram a alegada mudana na posio da Suprema Corte. A posio do STF atravs dos tempos de coerncia e resume-se em dar o mesmo tratamento a lei e a tratado, sempre prevalecendo o diploma posterior, excepcionados os tratados fiscais e de extradio, que, por sua natureza contratual, exigem denncia formal para deixarem de ser cumpridos. 25, 26 e 27J com a redao dada ao art. 178 da Constituio pela Emenda Constitucional n. 7, de 15 de agosto de 1995, instituiu-se nova regra especfica nas relaes entre o tratado e os atos internacionais. De fato, passou o preceptivo constitucional a ter a seguinte dico: "Art. 178. A lei dispor sobre a ordenao dos transportes areo, aqutico e terrestre, devendo, quanto ordenao do transporte internacional, observar os acordos firmados pela Unio, atendido o princpio da reciprocidade".Posta a questo das relaes entre o direito internacional e as disposies internas infraconstitu-cionais, cumpre agora investigar o tpico mais relevante para os fins aqui propostos: como se situa o direito em face do conflito entre o direito internacional e a Constituio. O tema envolto em controvrsias.

Seria possvel cogitar, em um primeiro lance de vista, da invalidade de norma constitucional que se encontrasse em confronto com determinadas normas internacionais fundamentais, emanadas dos princpios gerais do direito e dos costumes dos povos civilizados. Tal seria o caso de preceitos que estabelecessem a submisso jurdica de um pas vizinho, prescrevessem sua anexao ou por qualquer outra via ofendessem a soberania de um outro Estado. Igual juzo recairia sobre uma disposio que pregasse o genocdio. Os exemplos poderiam multiplicar-se, embora sempre tangenciando o absurdo. ________________

24. RTJ, 115:969, 1986, p. 973, e 119:22, 1987, p. 30. Tambm a legislao ordinria desprezou a preferncia dos doutrina-dores pelo primado das normas internacionais. Assim que a Lei n. 7.357, de 9-2-1985, passou a reger os cheques sem ateno Lei Uniforme de Genebra, fruto de conveno que fora firmada pelo Brasil e promulgada pelo Decreto n. 57.595, de 7-1-1966.25. E assim j decidiu o Supremo Tribunal Federal: No sistema brasileiro, ratificado e promulgado, o tratado bilateral de extradio se incorpora, com fora de lei especial, ao ordenamento jurdico interno, de tal modo que a clusula que limita a priso do extraditando ou determina a sua libertao, ao termo de certo prazo (quarenta e cinco dias contados do pedido de priso preventiva), cria direito individual em seu favor, contra o qual no oponvel disposio mais rigorosa da lei geral (noventa dias, contados da data em que efetivada a priso - art. 82, 2 e 3 da Lei 6.815/80) (RTJ, 162:822, 1997, Extr. 194-Repblica Argentina, rel. Min. Seplveda Pertence).

26. Sobre a distino entre tratado-contrato e tratado normativo, v. infra.

27. Direito internacional privado, cit., p. 102.

Nas hipteses aventadas, afirmar-se-ia a supremacia do direito internacional sobre o direito constitucional. 28 e 29De fato, a idia da soberania ilimitada do poder constituinte no merece abrigo. No possvel emprestar Constituio todo e qualquer contedo, sem atender a quaisquer princpios, valores e condies. A questo acima delineada confronto da ordem constitucional com certos valores universais , embora suscite a interessantssima discusso acerca dos limites materiais do poder constituinte originrio, mais terica do que real, pelo que se situa fora do objeto de um estudo mais preocupado com a aplicao concreta do direito constitucional.30A anlise a seguir desenvolvida concentra-se no confronto entre o ordenamento interno superior e o direito internacional convencional. E muito embora haja quem sustente que todo direito verdadeiramente internacional repousa sobre o consentimento, interessa-nos aqui, particularmente, o especfico ato de vontade, convencional por excelncia, que o tratado internacional, e como ele se coloca diante da Constituio do Estado que o celebrou.

Assim como no direito interno uma norma sujeita-se ao contraste constitucional tanto do ponto de vista formal quanto do material, tambm os tratados internacionais submetem-se a essa dupla apreciao. Por via de conseqncia, possvel avali-los sob dois aspectos: o de sua constitucio-nalidade extrnseca e o de sua constitucionalidade intrnseca.A inconstitucionalidade, na primeira hiptese, tambm denominada ratificao imperfeita, ocorre quando o tratado aprovado viola as regras constitucionais de competncia e de procedimento para sua celebrao, aprovao parlamentar, ratificao e entrada em vigor. A doutrina oscilou entre admitir-lhe a validade, a despeito do vcio formal, ou proclamar-lhe a nulidade. A Conveno sobre Direito dos Tratados (Viena, 1969) tomou partido na controvrsia, afirmando a validade do tratado em tal hiptese, salvo manifesta violao de norma fundamental sobre competncia. 33, 34 e 35A doutrina monista do primado do direito internacional s admite essa hiptese de inconstitu-cionalidade do tratado, rejeitando qualquer possibilidade de seu exame intrnseco para verificao da compatibilidade com a Lei Maior. Diversos so os autores de reputao que sustentam a primazia do tratado sobre a prpria Constituio.Hildebrando Accioly taxativo ao afirmar que a lei constitucional no pode isentar o Estado de responsabilidade por violao de seus deveres internacionais. Invoca, em favor de seu ponto de vista, deciso da Corte Permanente de Arbitragem, de Haia, onde se deliberou que "as disposies constitucionais de um Estado no poderiam ser opostas aos direitos internacionais de estrangeiros". E ________________

28. O Estatuto da Corte Internacional de Justia prev como fontes do direito internacional pblico isto , normas internacionais os tratados (convenes internacionais), o costume internacional e os princpios gerais do direito. Faz referncia, ainda, jurisprudncia e doutrina como fontes auxiliares, e faculta o emprego da eqidade (art. 38).

29. Agustinho Fernandes Dias da Silva (Introduo ao direito internacional privado, cit., p. 33) sugere alguns outros exemplos, como o de norma constitucional que estabelecesse o domnio universal como objetivo nacional, que afirmasse a hegemonia nacional sobre um continente ou elegesse a guerra como meio de soluo de conflitos. E averbou: "As normas internacionais bsicas so indenunciveis e irrevogveis, por isso prevalecero sempre". 30. V. Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, 1983, t. 2, p. 86.

31. Jos Francisco Rezek, Direito internacional pblico, 1989, p. 3.

32. Os tratados so atualmente a fonte mais importante do direito internacional (v. Celso O. de Albuquerque Mello, Direito internacional pblico, 1992, v. 1, p. 157). A Conveno sobre Direito dos Tratados (Viena, 1969) fornece a seguinte definio (art. 1, a): "Tratado significa um acordo internacional celebrado entre Estados em forma escrita e regido pelo direito internacional, que conste, ou de um instrumento nico ou de dois ou mais instrumentos conexos, qualquer que seja sua denominao especfica".

33. Na Constituio brasileira, a celebrao de tratados, convenes e atos internacionais competncia privativa do Presidente da Repblica, sujeita a referendo do Congresso Nacional (art. 84, VIII), ao qual incumbe resolver definitivamente sobre quaisquer acordos e atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimnio nacional (art. 49, I). Sobre o tema, embora referente ao regime constitucional anterior, v. Jos Francisco Rezek, Direito dos tratados, 1984, p. 185 e s. J sob a Constituio atual, v. Celso O. de Albuquerque Mello, Direito internacional pblico, cit., p. 156 e s.34. V. Celso D. de Albuquerque Mello, Direito constitucional internacional, cit., p. 321.35. Conveno, art. 46: "Um Estado no poder invocar o fato de que seu consentimento em obrigar-se por um tratado foi expresso em violao de uma disposio de seu direito interno sobre competncia para concluir tratados, a no ser que essa violao seja manifesta e diga respeito a uma regra de seu direito interno de importncia fundamental".

cita, tambm, julgado da Corte Permanente de Justia Internacional, de 4 de fevereiro de 1932, onde se declarou:"Um Estado no pode invocar contra outro Estado sua prpria Constituio para se esquivar a obrigaes que lhe incumbem em virtude do direito internacional ou de tratados vigentes".36 e 37Haroldo Vallado, nessa mesma linha de entendimento, sustenta que a disposio interna, mesmo de natureza constitucional, no poder ser observada se contrariar preceito em vigor de direito internacional bsico, geral ou de direito internacional convencional, isto , de tratado vlido e vigente. Acompanha-o, nesse passo, Agustinho Fernandes da Silva, para quem o tratado deve ser observado at extinguir-se ou ser denunciado. Enfatiza que a forma prpria de revogao de um tratado por vontade de uma das partes a denncia, e no a previso constitucional em contrrio.38 e 39Os dois autores, todavia, fazem uma distino clara e relevante, de natureza temporal: as proposies enunciadas acima somente se aplicam quando o tratado j se encontre em vigor no momento de promulgao da Constituio. Na hiptese inversa, em que o tratado celebrado na vigncia de uma dada Carta, sendo com ela incompatvel, a no prevalecer, por no se haver constitudo legitimamente. Em palavras de Vallado:"Assim, prevalecem as regras dos tratados anteriores ao texto constitucional; s no prevalece a norma internacional que vier a ser aprovada e ratificada aps vigncia do texto constitucional que a ela se ope, pois nesse caso decorreria dum ato internacional invlido, no vigorante, pois no podia ter sido aprovado nem ratificado. distino necessria para os atos convencionais internacionais". 40Em sentido diverso, e com melhor razo, parte substancial da doutrina brasileira. Aurelino Leal, j em 1925, averbava:"A mim me parece que se os assuntos regulados nos tratados forem compatveis com as alteraes introduzidas no regime constitucional, nada h que se oponha a que as mesmas continuem em vigor. Se, porm, as modificaes feitas na lei suprema colidirem com a matria regulada nos acordos internacionais, no se me afigura que os mesmos prevaleam contra a nova orientao constitucional a menos que o poder constituinte consigne na reforma uma disposio garantindo a sua vigncia".41Na mesma linha o magistrio de Carlos Maximiliano:"A Constituio a lei suprema do pas; contra a sua letra, ou esprito, no prevalecem resolues dos poderes federais, constituies, decretos ou sentenas federais, nem tratados, ou quaisquer outros atos diplomticos".42Tambm internacionalistas da melhor linhagem endossam a idia de prevalncia da Constituio, quando no por opo doutrinria, ao menos por constatao da realidade e do princpio da supremacia constitucional. Veja-se, em seqncia, a opinio de Oscar Tenrio e Jos Francisco Rezek, respectivamente:

"A decretao da inconstitucionalidade dos tratados pelo Supremo Tribunal Federal no se limita aos elementos de validade, como a ratificao e a promulgao, mas se estende ao confronto entre a letra do tratado e a letra da Constituio. Uma nova Constituio cria uma nova ordem jurdica. Subsistem apenas as normas pretritas no incompatveis com ela. Assim, os tratados anteriores a ela perdem sua eficcia desde que contrrios Constituio"."A constituio nacional, vrtice do ordenamento jurdico, a sede de determinao da estatura da norma jurdica convencional. Dificilmente uma dessas leis fundamentais desprezaria, neste momento histrico, o ideal de segurana e estabilidade da ordem jurdica a ponto de subpor-se, a si mesmo, ao produto normativo dos compromissos exteriores do Estado. Assim, posto o primado da Constituio ________________

36. Hildebrando Accioly, Manual de direito internacional pblico, cit., p. 56.

37. Manual de direito internacional pblico, cit., p. 56.

38. Haroldo Vallado, Direito internacional pri vado, cit., p. 94.

39. Agustinho Fernandes Dias da Silva, Introduo ao direito internacional privado, cit., p. 33.

40. Haroldo Vallado, Direito internacional pri vado, cit., p. 94.

41. Aurelino Leal, Teoria e prtica da Constituio Federal brasileira, 1925, p. 628.

42. Carlos Maximiliano, Hermenutica e aplicao do direito, 1981, p. 314.

43. Oscar Tenrio, Direito internacional privado, cit., p. 94.

em confronto com a norma pacta sunt servanda, corrente que se preserve a autoridade da lei fundamental do Estado, ainda que isto signifique a prtica de um ilcito pelo que no plano externo, deve aquele responder".44No direito comparado europeu, exceo de Portugal, que adota um regime hbrido, e da Holanda, onde a aprovao do tratado por trs quartos dos Estados Gerais modifica a Constituio, a regra que tratados que conflitem com a Lei Fundamental no possam ser aprovados sem prvia reviso constitucional. o que dispem, expressamente, v.g., as Constituies da Frana (art. 54), da Espanha (art. 95, I) e da Alemanha (art. 79, I).45 e 46A esse propsito, alis, o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha (Bundesverfassungsgericht) apreciou, recentemente, recurso constitucional contra a participao da Alemanha na Unio Europia, apresentado por um grupo de polticos e professores, incluindo um ex-dirigente da Comunidade Econmica Europia, e por membros do Partido Verde alemo que integram o Parlamento Europeu.47Os requerentes alegaram, dentre outras coisas, que o Ato de Adeso ao Tratado e o Ato que emendara a Constituio violavam seus direitos polticos de representao, seus direitos individuais (pela transferncia de atribuies para sua proteo Unio Europia), bem como ofendiam o princpio democrtico, a soberania nacional e o direito de serem pagos em Deutsche Mark (e no em uma futura moeda comum), alm de deverem ser submetidos a referendo popular.Em deciso longamente fundamentada, datada de 12 de outubro de 1993, a Corte rejeitou a impugnao e permitiu a entrada em vigor do Tratado da Unio Europia (tambm conhecido como Tratado de Maastricht), em novembro de 1993. No obstante isso, o Tribunal Constitucional Federal cuidou de qualificar diversas questes e assentou relevantes premissas a propsito de sua interpretao das relaes entre o direito constitucional e o direito comunitrio. Os diferentes aspectos da deciso podem ser sintetizados nas proposies seguintes:1) O direito alemo probe a diminuio do poder do Estado atravs da transferncia de deveres e responsabilidades do Parlamento Federal, na extenso em que isso importar em violao do princpio democrtico.2) O princpio democrtico no impede que a Repblica Federal da Alemanha se torne membro de uma comunidade intergovernamental organizada em base supranacional.

3) Se uma comunidade de Estados assume poderes e responsabilidades de soberania, os povos dos Estados-membros precisam legitimar esse processo atravs dos seus parlamentos nacionais.

4) O princpio democrtico impe limites extenso de funes e poderes a serem transferidos para a comunidade europia. O Parlamento Federal dever reter funes e poderes de importncia substancial.

5) O programa de integrao e os direitos transferidos comunidade europia supranacional devem ser especificados com preciso. Cabe ao Tribunal Constitucional Federal determinar se os direitos de soberania exercidos pelas instituies e entidades dirigentes europias esto dentro dos limites ou se extrapolam os que lhes foram conferidos.6) A interpretao das regras de competncia do Tratado de Maastricht no dever importar em extenso do Tratado. Se tal ocorrer, a Alemanha no ficar vinculada.7) O Tribunal Constitucional Federal e a Corte Europia de Justia exercem jurisdio em uma "relao cooperativa".8) O Tratado de Maastricht estabelece uma comunidade intergovernamental para criao de uma unidade mais estreita entre os povos da Europa. Cada um desses povos organizado em um Estado prprio, inexistindo, pois, um Estado da Europa, com seu prprio povo.________________

44. Jos Francisco Rezek, Direito internacional pblico, cit., p. 103-4.

45. Dispe o art. 277, 2, da Constituio portuguesa: "A inconstitucionalidade orgnica ou formal de tratados internacionais regularmente ratificados no impede a aplicao das suas normas na ordem jurdica portuguesa, desde que tais normas sejam aplicadas na ordem jurdica da outra parte, salvo se tal inconstitucionalidade resultar de violao de uma disposio fundamental".

46. Com relao especificamente ao direito comunitrio, v. nota 18.

47. Neue Juristische Wochenschrift, v. 47, 1993, p. 3047 e s. A ntegra do acrdo, vertido para o ingls, est publicada no International Legal Materials, v. XXXIII, 1994, p. 388 e s.

9) a) O Tratado de Maastricht no confere Unio Europia auto-determinao na obteno de recursos, financeiros ou de qualquer outra natureza, destinados a atender seus objetivos. necessrio o consentimento dos Estados.b) A ratificao do Tratado no sujeita a Repblica Federativa da Alemanha a um processo incontrolvel e imprevisvel que conduza inexoravelmente unificao monetria. O Tratado de Maastricht simplesmente prepara o caminho para a integrao gradual da Comunidade Europia em uma comunidade de leis. Qualquer passo adiante depende do consentimento do Governo Federal, sujeito deliberao do Parlamento.48Nos Estados Unidos, muito embora seja indiscutvel a superioridade da Constituio sobre os atos internacionais, a Suprema Corte jamais declarou um tratado inconstitucional. Tal fato pode ser creditado, em parte, a uma associao exagerada, quando no equivocada, que os tribunais fazem entre questes internacionais e "questes polticas", o que excluiria aquelas do controle judicial. 49, 50 e 51Desse modo, a despeito do imenso prestgio e independncia do Poder Judicirio nos Estados Unidos, h uma persistente tradio de os juzes e tribunais cederem o passo avaliao dos Poderes Polticos, notadamente ao Presidente da Repblica, sempre que a matria envolva relaes interna-cionais de qualquer natureza. H toda uma linha de casos ratificando essa atitude de deferncia ao Executivo. Essa orientao, alis, chegou ao extremo de chancelar, em mais de um caso, as decises do Poder Executivo de seqestrar, em Estado estrangeiro, pessoas contra as quais se houvesse instaurado processo criminal nos Estados Unidos, para sujeit-las a julgamento naquele pas. A questo, por sua gravidade e relevncia, merece breve digresso.52Em United States vs. Verdugo Urquidez, a Suprema Corte, reformando deciso do Tribunal Federal do 9 Circuito, decidiu que a Constituio americana, ou ao menos a 4 emenda (que assegura a inviolabilidade das pessoas, suas casas, documentos e bens contra buscas e apreenses ilegais), no se aplicava fora dos Estados Unidos. Como conseqncia, no poderia ser invocada por cidado mexicano levado fora para julgamento nos Estados Unidos (com a concordncia do Governo mexicano), cuja casa, no Mxico, havia sido objeto de busca ilegal por agentes norte-americanos.53Pouco mais adiante, em deciso que estarreceu a comunidade jurdica internacional, a Suprema Corte, por maioria, e reformando deciso de duas instncias inferiores, admitiu ser possvel submeter a julgamento nos Estados Unidos cidado mexicano que fora seqestrado no Mxico, sem anuncia do Governo daquele pas, que formulou protesto diplomtico veemente. Servindo-se de um argumento primrio o de que o tratado de extradio entre Estados Unidos e Mxico no proibia expressamen-________________

48. International Legal Materiais, cit., p. 393-7. Resumo e traduo para o portugus de responsabilidade do autor.

49. V. Restatement (Third) of Foreign Relations Law of the United States, 1988, 111 (p. 43): "In their character as law of the United States, rules of international law and provisions of international agreements of the United States are subject to the Bill of Rights and other prohibitions, restrictions, and requirements of the Constitution, and cannot be given effect in violation of them. However, failure of the United States to carry out an obligation on the ground of its unconstitutionality will not relieve the United States of responsability under international law".

50. Sobre o tema, V. Louis Henkin, Foreign affairs and the Constitution, 1975. Para um painel amplo e atualizado das relaes entre direito interno e direito internacional na perspectiva norte-americana, v. JohnH. Jackson, Status of treaties in domestic legal systems: a policy analysis, American Journal of International Law, v. 86, 1992, p. 310 e s.

51. E assim se passa a despeito da advertncia do Justice Brennan, ao relatar e julgar Baker vs. Carr (369 U. S. 186) (1962), um dos principais precedentes que delineou a "political question doctrine": "It is error to suppose that every case ar controversy which touches foreign relations lies beyond judicial cognizance" ( equvoco supor que qualquer litgio que tangencie as relaes internacionais situa-se fora do conhecimento judicial).

52. Vejam-se, por exemplo, United States vs. Curtiss - Wright Corp (299 U. S. 304) (1936), Banco Nacional de Cuba vs. Sabbatino (376 U. S. 398) (1964), First National Citibank vs. Banco Nacional de Cuba (406 U. S.759) (1972), Alfred Dunhill of London, inc. vs. Republic of Cuba (425 U. S.682) (1976), Goldwater vs. Carter (444 U. S.996) (1979), Dames & Moore vs. Reagan (453 U. S. 654) (1981). Veja-se, tambm, o interessantssimo caso United States vs. Palestine Liberation foi Barquero vs. United States (International Legal Materials, 33:904, 1994), onde se afirmou a constitucionalidade do Organization (U. S. District Court, Southern District of New York, 1988). O caso mais recente julgado pela Suprema Corte tratado celebrado entre Estados Unidos e Mxico sobre troca de informaes tributrias. O tratado permite que, mediante requerimento do outro pas, a autoridade governamental requisite a qualquer banco comercial informaes sobre determinado correntista.

53. 110 S. Ct. 1056 (1990). Sobre este caso especificamente, v. Andreas F. Lowenfeld, U. S. law enforcement abroad: the Constitution and international law, continued, AJIL, 84/444, 1990, especialmente p. 491-3.

te o seqestro , a Suprema Corte afastou a incidncia do tratado (que teria fora de lei) como j vimos e aplicou uma antiqssima jurisprudncia pela qual admitia que, uma vez apresentado Justia, um acusado pudesse ser submetido a julgamento, independentemente de haver sido conduzido por meio lcito ou ilcito. Em desfecho, a Corte admitiu que o seqestro violava princpios de direito internacional, mas entendeu que a deciso sobre a restituio ou no do acusado ao seu pas, de onde fora retirado fora, era uma questo da competncia discricionria do Executivo. J que ele estava nos Estados Unidos, cabia Justia norte-americana julg-lo.54Precedente mais edificante foi, estabelecido, recentemente, pela Suprema Corte do Canad. Em R. vs. Cook, julgado em outubro de 1998, decidiu a Corte que o interrogatrio de um cidado canadense, por agentes policiais canadenses, ainda que realizado nos Estados Unidos, sujeitava-se aos procedimentos e garantias da Carta de Direitos e Liberdades do Canad. No caso especfico, o acusado de um homicdio no fora informado do seu direito de ser assistido por um advogado durante o interrogatrio.55Retomando a linha de raciocnio, e passando ao caso brasileiro, vai-se constatar que, entre ns, desde a primeira Constituio republicana se admite a verificao da constitucionalidade intrnseca de um tratado. Em acrdo de 15 de setembro de 1977, o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade, em parte, de alguns artigos da Conveno da OIT n. 110, referentes s condies de trabalhadores em fazenda. A Constituio de 1967-69 ensejava tal tipo de pronunciamento, em regra que foi reproduzida na Carta atual. De fato, no art. 102, III, a, da Constituio de 1988, prev-se o cabimento de recurso extraordinrio quando a deciso recorrida declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal.56, 57 e 58 bem de ver que a dico pura e simples da clusula constitucional, tal como vem sendo reproduzida nos diferentes Diplomas, no infirma, prima facie, a tese defendida por Haroldo Vallado acima exposta. que, em verdade, ao prever declarao de inconstitucionalidade de tratado, o texto constitucional s pode estar-se referindo quele que seja posterior Constituio. Isso porque, consoante regra consolidada do direito constitucional intertemporal brasileiro, no se declara a inconstitucionalidade de preceito anterior Constituio (v., infra, captulo II). Portanto, a letra expressa da Lei Maior no dirime a dvida sobre a possibilidade de o tratado anterior prevalecer, mesmo que contraste com a nova norma constitucional.Todavia, o Supremo Tribunal Federal, no apagar das luzes do regime constitucional anterior, afastou, de forma taxativa, quaisquer incertezas que pudessem existir. A questo se imps relativamente cobrana do imposto sobre circulao de mercadorias (ICM) na importao de bens de capital de pases membros do GATT. vista do entendimento consolidado, a Corte editou o verbete n. 575 da Smula, com o seguinte teor: " mercadoria importada de pas signatrio do GATT ou membro da ALALC, estende-se a iseno do Imposto de Circulao de Mercadorias concedida a similar nacional".Sobreveio, todavia, a Emenda Constitucional n. 23, de 1 de dezembro de 1983, que acrescentou um 11 ao art. 23 do Texto, determinando a incidncia do tributo sobre as mercadorias importadas, sem qualquer distino quanto ao pas de origem. O Tribunal de Justia de So Paulo proferiu deciso mantendo a iseno, nos casos de importao de bem de capital de pases signatrios do GATT. A Fazenda do Estado de So Paulo interps recurso extraordinrio, sob o fundamento de que oTribunal a ________________

54. United States vs. Alvarez Machain, 31 I. L. M. 900(1992). Na concluso