BARTHOLO JÚNIOR. Você e eu Martin Buber, presença palavra

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Voc e EuMartin Buber,Roberto Bartholo Jr.

"... quando eu era criana, li um velho conto judaico que no pude compreender. Ele no dizia mais do que isso: 'Fora dos portessentado um de Roma est

mendigo leproso, esperando. Ele o Messias'. Ento me dirigi a um ancio, a quem resposta que ento no consegui entender, somente muito mais tarde. Ele me disse: 'Est esperando voc'." Martin Buberperguntei:

'O

que ele est esperando?' E recebi uma

Garam ondCDS/UnB

Martin

Buber

nunca

nos

deixou

esquecer que "... Sion no poder ser reconstruda 'por qualquer meio', mas somente bamishpat (Isaas 1, 27), ou seja, na justia." Sua viso poltica vincula indissoluvelmente paz e justia, tanto nas relaes interiores como nas exteriores s comunidades humanas. Ser um ns, para ele, reconhecer que a responsabilidade constitui a face tica do dilogo, o cordo umbilical da Criao. E entender que somente os que so capazes de dizer um ao outro:tu podem dizer um com o outro: ns.

1

Voc e Martin Buber, presena palavra Eu

Nessa

perspectiva,

Buber

pode

afirmar: "Se todos estivessem bem vestidos e bem alimentados, ento pela primeira vez o problema tico real passaria a sertotalmente visvel." Neste livro temos a rara oportunidade, talvez pela primeira vez por ~ intermdio de um autor brasileiro, de conhecer algo da vida e da obra ' absolutamente entrelaadas - de Martin Buber, sem dvida um dos pensadores mais originais e profundos do sculo XX.

Idias SustentveisColeo dirigida por

Roberto Bartholo Jr.

Marcel Bursztyn

Martin Buber, presena palavra

Voc e

Garamond

Capyrigbt 2009, Roberto BartholoJr.

Direitos cedidos para esta edio Editora Garamond Ltda. Caixa Portal. 16.230 Cep: 22.222-970 Rio de Janeiro; Brasil Telefax: (021) 224-9088 E-niail: garamond@garanrand. conr. br

Para Marcel e Toms, Marcel Burr,-,tyn e Bertha K Becker

PRAYARt\10 DE ORIGINAIS

Ari RoitmanLllITORAAO

LuiZ OliveiraCA PA

Estdio Garaniond, Projeto de Paulo Luna sobre detalhe de "O Violinista Verde", de Marc Chagall Ri:v is Ao Henrique Tarnapol.rky

CA- rAr.ocAc,Ao NA FON TE DO DEPARTM11PNTO NACIONAL DO LIVRO

B287v Bartholo Jnior, Roberto S. (Roberto dos Santos) Voc e Eu: Martin Buber, presena palavra / Roberto Bartholo Jr. - Rio de janeiro: Garamond, 2001. 120 p.; 12x21 em. ISBN 85-86435-51-1 l.Filosofia. 1. Ttulo. CDD-100

Sumrio i ....otempo passou na janela ... 9II

a felicidade morava to vizinha ... 15

m ... o mundo rodou num instante,nas voltas do meu corao... 30 IV ... feito tatuagem ... 43

v ... me ensina a no andar com os ps no cho...68

vi ... nas discusses com Deus ...84VII ... quando eu morrer, cansado de guerra,

morro de bem com a minha terra ... 94

Epgrafes 117

I ....o tempo passou na janela ... *

Um dos eventos mais significativos do incio do sculo XX foi a redescoberta do princpio dialgico, uma realidade da qual nossa modernidade' se fez cega. No sculo passado, os anos vinte deixaram testemunhos diversos de uma silenciosa "revoluo copernicana", uma verdadeira migrao do "lugar do pensamento" fundada na afirmao de que no o sujeito a "chance primordial do Ser", mas sim nossa vulnerabilidade alteridade. Ou, de modo mais cortante: a afirmao de que, sem o Tu, o Eu impossvel. E as tragdias que se seguiram pareceram anular quaisquer vestgios dessas mensagens, que hoje o mundo da globalizao excludente tanto carece ouvir. A obra-prima de Martin Buber, Eu e Tu (1921),2 parte desse empenho. Ela no se ergue em seu tempo como um marco solitrio. Outros, como Franz Rosenzweig3 e Gabriel9

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tempo est grvido: curar as profundas feridas abertas na face humana pela falsa opo entre o individualismo possessivo e o coletivismo impositivo. Numa coletnea de ensaios descritivos e crticos sobre a filosofia de Martin Buber, Gabriel Marcel escreveu: "... estou particularmente agradado de que este tributo coletivo ao grande pensador Martin Buber me propicie a oportunidade de expressar minha admirao pelo livrinho de valor inestimvel, Eu e Tu. Uma traduo francesa dele existia h cerca de vinte anos, mas pareceme que, fora de um pequeno crculo, ns na Frana no conseguimos nos dar conta da plena importncia do livro. Em relao a isso, encontro-me numa posio peculiar. Por uma notvel coincidncia, descobri a realidade particular do Tu aproximadamente ao mesmo tempo em que Buber escrevia seu livro. Seu nome era bastante desconhecido para mim, como ademais os de Ferdinand Ebner e Friedrich (sic) Rosenzweig, que parecem nos ter precedido nesse percurso. Estamos portanto diante de um daqueles casos de convergncia espiritual que sempre merecem ateno. (...) Num tempo em que uma filosofia cada vez mais concentrada exclusivamente em temas do E.cwelt(Mundo do Isso) estava conduzindo a desenvolvimentos tecnocrticos cada vez mais perigosos para a integridade do homem, e mesmo para sua existncia fsica, era certamente inevitvel que, aqui e ali, pessoas tenham se movido para trazer conscincia, clara e metodicamente, a sua contraparte,

longe que eu na elucidao deste aspecto estrutural da situao humana fundamental.` Gerhard Wehr, em sua biografia de Martin Buber,' relata como J.G. Hamman, W von Humboldt e L. Feuerbach foram precursores no percurso buberiano. Tampouco nos deixa esquecer que, mesmo J.G. Fichte, um pensador to correntemente "etiquetado" como a maior expresso da filosofia idealista do Eu, j em 1797 advertia: "... a conscincia do indivduo necessariamente acompanhada de uma outra, a de um Tu, e somente possvel sob tal condio.` Mas quem afinal Martin Buber? A que denominador possvel reduzir as mltiplas facetas de seu pensamento? Como enquadrlo nos saberes do tempo? Ele prprio no discute isso. E considera equivocadas as tentativas de classific-lo como filsofo da linguagem, da religio ou da educao, como poltico ou como mstico. Diz: ... no posso tornar minha nenhuma das respostas propostas. At onde meu autoconhecimento alcana, eu me chamaria de um homem atpico. Pode ser que minha repulsa contra essa usual- e excessiva tipologia venha desse fato."e Focalizar a centralidade do tema Eu-Tu na vida e na obra de Buber implica uma abertura dialogal. Implica, antes de tudo, compreender que falar de Buber e de sua obra j uma falsificao. Sua obra um

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Nessa perspectiva, a pessoa da relao Eu-Tu o suporte relacional que permite fazer da alteridade uma presena. Uma possibilidade que vai alm do campo das relaes estritamente inter-humanas. Em seus Fragmentor autobiogrficos' encontramos um notvel relato-testemunho dessa verdade, quando Buber nos diz que, quando criana, uma das coisas que mais gostava de fazer era ir estrebaria, sem que as pessoas percebessem, procurar um cavalo preferido. No era para ele um prazer qualquer acariciar-lhe a crina. Era mais. Constitua um momento de tanta profundidade que sua lembrana lhe permaneceu fresca na mo, com a vvida sensao do toque. Pois "... o que vivenciei no encontro com esse animal foi o outro, a terrvel, a imensa alteridade do outro, que, na proximidade comigo, me deixava toc-lo. (...) Quando eu passava a mo sobre a poderosa crina, s vezes admiravelmente alisada, outras vezes tambm espantosamente selvagem, e sentia a vida palpitante sob a minha mo, era como se aproximasse da minha pele o prprio elemento vital. Algo que no era eu, que de modo algum me era familiar; evidentemente o outro, no meramente um outro, mas verdadeiramente o prprio outro, que me deixava aproximar-me, que confiava em mim e que, naturalmente, ficou muito ntimo."" Sem dvida, Buber no hesitaria em permitir que falssemos hoje sobre ele e sobre seu pensamento. Ele mesmo teve que fazer isso quando, apoiado na palavra escrita, objetivou as vivncias da relao Eu-Tu num Isso discursivo. Assim, ele nos diz: "...desde que fiquei maduro para uma vida fundada na prpria experincia-um processo que comeou pouco antes da Primeira Guerra Mundial e se concluiu logo 12

aps ela-, deparei-me com o dever de inserir o arcabouo das experincias decisivas que eu tinha at ento na herana humana do pensamento, mas no como `minhas' experincias e sim como uma perspectiva importante e vlida para outros, para homens diversos de mim. E como eu no tinha recebido qualquer mensagem que pudesse ser transmitida de tal modo, mas apenas passado pelas experincias e adquirido as compreenses, minha comunicao teve que ser de tipo filosfico. Precisou relacionar o nico e particular com o`geral', possvel de ser descoberto por qualquer um em suas experincias. Precisou expressar o que por sua prpria natureza incompreensvel em conceitos que pudessem ser usados e comunicados (mesmo se por vezes com dificuldade). Mais precisamente, tive que fazer um Isso do que tinha experienciado num Eu-Tu e como um Eu-Tu." Mas o testemunho mais nevrlgico da radicalidade do princpio dialgico em sua obra que: "... no tenho nenhuma doutrina. Apenas aponto para algo. Aponto para a realidade, aponto para alguma coisa na realidade que no tinha sido vista, ou o tinha sido muito pouco. Tomo quem me ouve pela mo e o encaminho janela. Abro a janela e aponto para o que est l fora. No tenho nenhuma doutrina, mas mantenho uma conversao." 12

Notas

1 Ver H.C. de Lima Vaz, `Religio e Modernidade Filosfica-, in M.C. Luchetti Bingemer (org), O Impacto da ModrrniJadr olrr ,~

Religio, Ed. Loyola, So Paulo, 1992.

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2 Ver M. Buber, Ich und Du, Heidelberg, Lambert Schneider Verlag, 1997 (13' Edio); h traduo brasileira de N. A. von Zuben, Eu e Tu, Ed. Moraes, So Paulo, 1977. 3 Ver F Rosenzweig, Stern der Erlruug, 1921; Star of Redemption, New York, Holt, Rinehart and Winston, 1970; Ltoile de Ia Redenrption, Paris, Seui1,1982. 4 Ver G. Marcel, I and Thou (traduo inglesa de F Williams), in P. A. Schilpp e M. Friedman (orgs.), "The Philosophy of Martin Buber", in he I lbrary of Isving Phihropherr, La Salle/Illinois, Open Court, vol. XII, 1991. 5 Ver idem, p. 41. 6 Ver G. Wehr, Martin Buber, Rohwohlt Taschenbuch Verlag, Reinbek bei Hamburg, 1968, em particular o captulo "Vor dem Horizont des Dialogischen", p. 7. 7 Ver G. Wehr, idem, p. 7. 8 Ver M. Buber, "Replies to my Critics", in PA. Schilpp e M. Friedman (orgs.) "lhe Philorophy of Martin Buber, op. cit., p. 689. 9 Com o ttulo Begegnung. Autobiographirche Fragmente, foi publicada em Stuttgart, 1960 uma primeira edio do escrito. Posteriormente houve uma edio revista e ampliada, includa na coletnea dedicada a Martin Buber que foi publicada na srie "Philosophen des 20. Jahrhunderts" por P.A. Schilpp e M. Friedman, em Stuttgart, 1963. H traduo brasileira dessa edio revista e ampliada, de S. 1. A. Stein: Encontro. FragmentorAutobiogrfico.r, Editora Vozes, Petrpolis, 1991.

II ...a felicidade morava to vi.Zinha...

10 Ver M. Buber, `Autobiographical Fragments", in PA. Schilpp e M. Friedman, The Philoropby of Martin Buber, op. cit., p. 10; e traduo brasileira, op. cit., p. 19. 11 Ver M. Buber, "Rephes to my Critics", in PA. Schilpp e M. Friedman, The Philorophy of Martzn Buber, op. cit., p. 689.

12 Ver M. Buber, idem, p.

Martin Buber nasceu em Viena no dia 8 de fevereiro de 1878. Aos trs anos de idade, o casamento de seus pais se rompe, de maneira at hoje inexplicada. Sua me, Elise Buber, abandona a casa e seu pai fica com a tutela do menino. Em razo dessa ruptura familiar, o pai, Karl Buber, termina deixando o filho viver na casa dos avs em Lwow (Lemberg), ento capital da provncia da Galcia. Essa provncia sul-oriental polonesa, de densa populao judaica, ser o territrio do encontro de Martin Buber com a mstica hassdica,' originada em torno do lendrio rabi Israel ben Eliezer (1700-1760), - o Baal Shem Tov ("Mestre do Bom Nome'~ - e difundida por seu discpulo, o rabi Dov Baer, que fez do hassidismo um movimento popular, no apenas circunscrito a pequenos crculos de iniciados. Anos mais tarde, Buber publicar colees de histrias hassdicas, DieErZhlungen der Cha.r.ridim, nas quais d forma literria a tradies orais, com zelo de joalheiro. Desta lavra o relato do encontro entre o Baal Shem Tov e Dov Baer:

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decidiu procurar o rabi e pr-lhe prova a sabedoria. Mas se decepciona. O Baal Shem, nos encontros, s lhe diz `banalidades'. Que numa viagem por um deserto lhe faltou po para alimentar o cocheiro, e ento apareceu um campons e lhe vendeu o po. Que noutra viagem lhe faltou feno para os cavalos, at vir um campons e aliment-los. Frustrado, Dov Baer est decidido a partir. Mas na ltima hora o Baal Shem chama-o sua presena para entregar-lhe um texto sobre a natureza dos anjos, pedindo-lhe que o lesse, refletisse sobre ele e depois o interpretasse. Dov Baer assim faz. O Baal Shem lhe diz: `No tens saber', e em seguida recita-lhe a mesma passagem. Diante de Dov Baer, ento, o aposento onde estavam se incendeia e o rumor dos anjos pode ser ouvido por entre as chamas. Dov Baer cai desacordado. Ao recobrar os sentidos, tudo est como antes. O Baal Shem lhe diz: `A interpretao que me deste estava correta, mas no tens saber, pois teu saber no tem alma'. Depois desse encontro, Dov Baer decidiu permanecer para sempre.` No a fria lmina da anlise, a rigorosa causalidade da lgica e a profusiva erudio, e sim o fogo anglico fundindo justia e amor, eis o sangue da alma, que anima o saber verdadeiro e distingue a verdade da mera correo. E aqui radica o vnculo de Buber com hassidismo. A partida para a casa dos avs conduziu Buber para as entranhas da Europa Oriental, ao encontro de comunidades judaicas afastadas do grande cosmopolitismo vienense, enraizadas em suas tradies e nas quais o hassidismo, movimento que teve seu apogeu no sculo 16

XVIII, deixara sua marca. Mas esse hassidismo encontrado por Buber j era decadente. Suas comunidades j no tinham o mesmo vigor de antes, embora tivessem vigor bastante para deixar marca indelvel em sua alma. Foi na pequena cidade onde seu pai tinha algumas terras, Zadgora, na provncia de Bukovina, que Buber teve seu primeiro encontro com os hassidim: "... bem verdade que a grandeza legendria dos antepassados parecia desaparecida nos tempos. (...) Mas, apesar de tudo, no era possvel obscurecer completamente a luz originria, destruir completamente a elevao originria. A nobreza no intencional, espontnea, dos hassidim falava de modo muito mais forte que qualquer pretenso de arbtrio, de juzo, de prescrever condutas, fixando o que se deve fazer e o que no se deve fazer."' A ida de Martin Buber para a casa dos avs, em Lwow, nascera do divrcio dos pais. Nos Fragmentos auencontra-se um relato crucial: a filha de um vizinho, falando-lhe da me, pronuncia na galeria da casa dos avs as palavras decisivas, "No, ela no volta nunca mais". Diante do que, Buber declara: "... suponho que tudo o que experimentei, no correr da minha vida, sobre o autntico encontro tenha a sua origem naquele momento na galeria."4 E continua: "... sei que fiquei mudo, mas tambm que no nutri nenhuma dvida quanto verdade da palavra dita. Ela permaneceu agarrada a mim e agarrava-se, ano aps ano, sempre mais ao meu corao. Depois de mais ou menos uma dcada, comecei a senti-la como algo que na() diziatobiogrficos

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respeito somente a mim, mas tambm ao ser humano. Mais tarde apliquei a mim mesmo o sentido da palavra desencontro, com a qual era descrito, aproximadamente, o fracasso de um verdadeiro encontro entre seres humanos.` Na silenciosa espera pelo ansiado retorno de algum cujo nome os avs nunca pronunciavam em sua presena, Buber forja uma nova palavra alem: Vergegnung, que podemos traduzir por desencontro, no sem com isso perdermos as mais sutis dimenses evocadas - de um tempo que se esvai em vo. E `:.. quando, aps outros vinte anos, revi minha me, que viera de longe me visitar, minha mulher e a meus filhos, eu no conseguia olhar em seus olhos, ainda espantosamente bonitos, sem ouvir de algum lugar a palavra desencontro (Vergegnung), como se fosse dita a mim.` A onipresente ausncia da me foi fundante para a identidade de Buber, cuja infncia transcorreu na expectativa de que cada instante pudesse vir a ser a porta de entrada de seu impossvel retorno. Seu av, Salomo Buber, era pessoa de forte enraizamento na tradio judaica. No era um judeu secularizado, citadino, conforme predominava nos meios cosmopolitas de Viena. Era um latifundirio, comerciante de cereais, proprietrio de minas de fosforita na fronteira austrorussa, alm de uma das lideranas da comunidade judaica de Lwow e membro da Cmara Municipal de Comrcio.

dos avs estava impregnada por uma atmosfera de estudos. Salomo Buber era muito mais um "doutor da lei" do que propriamente um mstico. Mas, enraizando o menino na tradio judaica, contribuiu para aproximlo do hassidismo. A av, Adele, foi figura decisiva na sua formao. Ela era a estrutura da casa, a condio de possibilidade de todo estudo. Era tambm quem geria os negcios e manuseava os livros de contabilidade. O amor da av pela palavra empenhada, pela palavra dita e vivida, mais forte que a meramente escrita, deixa em Buber ressonncia inesquecvel. Um amor que parecia ao menino visceral, incisivo, imediato, espontneo e devotado. Desde os nove anos, o menino Buber passava todo vero na propriedade do pai. Aos catorze, deixa a casa dos avs para morar na cidade junto a ele, j casado outra vez. Karl Buber era um proprietrio rural, que nada tinha em seu perfil que pudesse caracteriz-lo como um homem de letras, um intelectual. A marca mais significativa deixada por ele na formao do adolescente foi a dedicao natureza e agricultura sem sentimentalismos romnticos, com zelo e responsabilidade social. Como indica Pamela Vermes, no deve ser subestimada na formao de Buber a influncia desse homem que um dia declarou que sua nica i-riportncia era ser o filho de seu pai e o pai de seu filho.' Aspecto destacado nos Fragmentos autobiogrficos a ateno dedicada por

Roberto Bartholo Jr. `:.. como participava da vida das pessoas que dependiam dele, de uma ou outra maneira; dos criados da fazenda, em suas casas ao redor da Quinta, construdas segundo suas instrues; dos pequenos agricultores, que lhe prestavam servios sob condies criadas por ele, com rigorosa justia; do caseiro; e de como ele cuidava das relaes familiares, da criao e instruo das crianas, das doenas e do envelhecimento de todas as pessoas." $ Dois episdios so expressivos da influncia de Karl Buber sobre seu filho. O primeiro ilustra seu zelo e curiosidade pelas novidades tcnico-agrcolas: "... quando eu ainda era criana, ele trouxe de uma exposio mundial parisiense um grande pacote de ovos de galinha, de espcies ainda desconhecidas; transportara-os durante toda a viagem sobre os joelhos, a fim de que nenhum fosse danificado.` O segundo era o modo como saudava seus cavalos, cumprimentando um animal aps o outro "... no apenas amigavelmente, mas de forma francamente pessoal.`O Na percepo de Martin, seu pai era um homem imerso nas relaes diretas, para quem o que verdadeiramente importava era o simples acontecimento das relaes "... sem qualquer ao colateral, apenas a existncia de criaturas humanas e aquilo que sucede entre elas."" Para Karl Buber no havia "... nenhuma outra ajuda seno aquela de pessoa a pessoa, e esta ele praticava. Na velhice, ainda deixou-se eleger para a`Comisso do Po' da comunidade judia de Lemberg, e peregrinava sem cansar pelas casas para descobrir os verdadeiros necessitados e suas necessidades;

Voc e Eu: Martin Buber, presena palavra como isto poderia ocorrer de outra maneira a no ser atravs do verdadeiro contato?!" 12 At a idade de onze anos, Martin recebe uma educao domstica, na casa dos avs, dedicada principalmente ao estudo do hebraico, do francs e do latim. Posteriormente, o jovem estudaria no Ginsio Franz Josef, o educandrio polons de Lwow Ali se destaca seu interesse pela filosofia, e dois livros sero os marcos decisivos de sua formao - acontecimentos instauradores de rupturas num processo que at ento se constitua numa continuidade sistemtica, estruturada sobre uma cuidadosa leitura dos clssicos de Plato. A primeira ruptura foi introduzida pela leitura, aos quinze anos, dos Prole gmeno.r a toda metafsica do futuro de 1. Kant, lidos com a avidez de quem desperta para as inquietaes do filosofar, num momento de vida em que "... eu era irresistivelmente impelido a querer apreender o decorrer total do mundo como fctico, e isto significava compreender o tempo como principiando e finalizando, ou como sem princpio nem fim. Ambos os caminhos mostravam-se, a cada tentativa de sup-lo como realidade, igualmente absurdos." 13 Na leitura de Kant, o rapaz aprendeu que o espao e o tempo eram apenas "condies formais de nossa intuio sensvel humana, e no qualidades reais das coisas em si mesmas." O impacto desse aprendizado foi radicalmente inquietante e libertador, pois "... eu no precisava mais, atormentado, querer qucs tionar o tempo sobre seu fim; ele no se impunha , i mim, ele era meu, pois era `nosso'. A qucst.o f(~i, po~r

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sua natureza, declarada insolvel, mas simultaneamente fui libertado dela, libertado da exigncia da interrogao. O presente que recebi de Kant, ento, foi a liberdade filosfica."14 A segunda ruptura foi trazida, aos dezessete anos de idade, pela leitura do Assim falava Zaratustra de Nietzsche, cujo efeito foi o de um terremoto. Diversamente do caso anterior, "... no atuou sobre mim na forma de uma ddiva, mas na de um assalto e de um seqestro, e demorou muito at eu conseguir libertarme."15 A concepo fundamental da obra se baseia na interpretao do tempo como "eterno retorno do mesmo", vista pelo autor como a mais profunda das doutrinas. O tempo seria assim uma srie infinita de duraes finitas, essencialmente iguais. Kant foi filosoficamente modesto em sua proposio e renunciou a qualquer pretenso de resolver o enigma: apenas apontou e delimitou o problema da nossa humana dependncia s formas do tempo. J Nietzsche, aos olhos amadurecidos de um Buber mais tardio, teria pretendido colocar, no lugar do manifesto mistrio da singularidade de todo acontecer, o pseudomistrio do "eterno retorno do mesmo". Mas "... no esprito do rapaz de dezessete anos, embora ele no tivesse aceito essa concepo, e no pudesse aceitla, ocorreu uma seduo negativa." Livrar-se do seqestro niet,-.rchiano custou a Buber um penoso retorno libertao kantiana, e anos mais tarde,

no atemporal? No estamos na eternidade?" Certamente no teramos que identificar essa eternidade com a fatalidade de que nos fala o Zaratustra de Nietzsche, pois trata-se "... daquela que incompreensvel em si, que despede o tempo e nos coloca naquela relao com ele que denominamos existncia. >>is No ginsio polons Franz Josef, em Lwow, Buber vive tempos de "mtua tolerncia sem mtuo entendimento", em que estudavam, juntas, a maioria polonesa e a minoria judia sem que houvesse um "dio percept vel aos judeus". Mas uma recordao no pode ser esquecida: "... todos os dias, s oito da manh, soava a campainha e um professor subia ctedra, sob um imenso crucifixo pregado na parede. Os poloneses faziam ento o sinal-da-cruz e rezavam em voz alta Santssima Trindade, enquanto ns, judeus, ficvamos ali imveis, em p, com os olhos baixos.` Essa experincia matinal - prolongada ao longo de oito anos - de sentir-se como "convidado forado" de uma cerimnia religiosa "da qual nenhuma parcela da minha pessoa podia ou queria participar", deixou marcas profundas na alma do rapaz, por mais que nunca se tivesse feito nenhuma tentativa de converter um dos alunos judeus. O fato que "... minha antipatia por qualquer misso radica-se nas experincias daquela poca.

Roberto Bartholo Jr. Voc e Eu: Martin Buber, presena palavra

No ginsio de Lwow, Buber aprende a mestria do idioma polons e sua literatura, e tambm faz contato com a Ilustrao europia. No outono de 1896, com a idade de dezoito anos, matricula-se para o semestre de inverno na Universidade de Viena e, num ambiente cultural impregnado de romantismo - que lhe exercer forte influncia -,21 Buber comea a freqentar as Tlorle.rungen de filosofia. Em 1896 o jovem est matriculado no curso de Filosofia e Histria da Arte da Universidade de Viena, onde uma fervilhante vida cultural, aberta a uma vasta pluralidade de influncias, vai mergulh-lo num mundo de cosmopolitismo secularizado, afastando-o das razes hassdicas deixadas em Lwow. As percepes herdadas da casa do avs ficaro adormecidas. Mais tarde, Buber dir: "... quando morei na casa de meus avs, estive firme nas razes, ainda que muitas questes, perguntas e dvidas pudessem vir at mim. Mas logo, quando sa dessa casa, fui como que tragado pelo redemoinho da poca. At meus vinte anos, e em menor medida ainda depois, meu esprito estava em permanente e mltiplo movimento, impulsionado pelas mais diversas e variadas influncias, tomando sempre novas formas, numa troca de tenses e solues. Mas sem um centro e sem ter em si uma substncia que fosse crescente, cumulativa." Nos primeiros semestres universitrios, freqentou as aulas de Histria da Arte e de Filosofia, conheceu muitos autores e textos, porm a vivncia mais significativa nesse perodo foi outra. O que mais o fascinava era a livre troca de perguntas e respostas. Nela se lhe 24

mostrava do modo mais perceptvel que o lugar onde o esprito habita o Entre, o lugar da relao, do dilogo, do encontro. Emerge nesse mesmo tempo outro elemento fundamental para ele: o teatro. Em suas freqentes idas a eventos teatrais, o que mais o atraa era a palavra humana em sua incisiva expresso verbal-gestual. No teatro, Buber presenciava a razo de ser da palavra em seu dizer completo, a potncia da palavra dita, a genuna diZibilidade vernacular do idioma, sempre maior e mais potente que a linguagem como mera articulao, conceitual e lgica, de elementos informativos. Nos semestres de inverno de 1897-1898 e 1898-1899, Buber deixa Viena e vai estudar em Leipzig, onde completa seu vigsimo ano de vida. Ali, a vivncia mais forte vai ser o encontro com a msica, e em particular com a msica de Bach, cantada e tocada no lugar e modo prprios, "como Bach queria que ela fosse cantada e tocada". Essa majestosa influncia modificou sua vida de alguma forma e, "s a partir da, tambm o pensamento". Mas "... sou totalmente incapaz de narrar nesses fragmentos autobiogrficos coisas to grandes e misteriosas." O certo que "... devagar, tmida e persistentemente, cresceu o conhecimento da realidade da existncia humana e da frgil possibilidade de fazer justia a ela. Bach ajudou-me."24 Mais tarde, como um andarilho acadmico, Buber segue para a Universidade de Zurique, onde realiza uni programa de estudos dos mais diversificados, abrangendo filosofia, filologia, germanstica, filologia clssica, histria da literatura, histria da arte, psiquiatria c cu momii;i.

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po, compreendi a vocao de anunci-la ao mundo."" Ento comea um tempo de aprofundamento nas tradies judaicas. Por anos, Buber se afasta do movimento sionista, deixa de escrever artigos, de participar de reunies, discusses, palestras, encontros. Em recolhimento, acumula materiais para um novo projeto. No apenas conclui sua tese de doutorado, como tambm desenvolve todo um trabalho de organizao, sistematizao e escritura das histrias de ensinamento da tradio oral das comunidades hassdicas. No se trata de mera curiosidade antropolgica. Tratase de recriar na escrita a oralidade tradicional, dotandoa de pertinncia em novo contexto comunicativo. Num esforo quase alqumico, Buber recria as histrias e a si mesmo, enraizando-se mais profundamente na tradio de seus avs, pois "... trago em mim o sangue e o esprito daqueles que as criaram, e em sangue e esprito elas so renovadas em mim.""

Voc e Eu: Martin Buber, presena palavra

Em 1901 vai estudar na Universidade de Berlim com W Dilthey e G. Simmel e ali, em 1904, obtm o ttulo de doutor em filosofia com a tese "Contribuies para a histria do problema da individuao". Ocupou-se ento com os msticos da Renascena e da Reforma, estudando Nicolau de Cusa, Paracelso e Weigel, e sofrendo forte atrao pela figura de Jacob Bhme. Durante seus anos universitrios, Buber participa ativamente do movimento sionista, numa relao intensa e conflitiva. Sua perspectiva era muito mais culturalespiritual do que a hegemnica perspectiva polticoestatal de Theodor Herzl. Mas a aproximao ao sionismo reabre para Buber o que h de essencial no judasmo. Revitaliza-se o hebraico esquecido da casa dos avs. E, junto com ele, a reconsiderao de tudo o que havia sido abandonado nos anos universitrios. Cresce a percepo da dizibilidade hebraica de coisas incomunicadas nas lnguas ocidentais. E, com isso, fecundado o embrio do seu projeto de realizar uma nova traduo alem daTor.

Na base de tudo est a revitalizao buberiana do hassidismo, centralizada na figura do tsadik (o justo) - o grande rabi Israel Ben Eliezer, Baal Shem Tov. A verdadeira identidade admica como "imagem e semelhana" de Deus, Buber a vislumbra na vida do Isadik, e no como um mero conjunto de prescries habitualizadas.

Nota:

1 Ver G. Scholem, Main Trends in Jewish Mistici.rm, New York, Schocken,1954. 2 Ver M. Buber, "Die Erzhlungen der Chassidim" (1949), in Werke III, Schriften Zum Chassidismus, Munique-Heidelberg, Lambert Schneider Verlag, 1963; h traduo brasileira de M. Arnsdorff, T Belinky, J. Guinsburg, R. Mautner, R. Schivartche e

Roberto Bartholo Jr.4 Ver M. Buber, Encontro. Fragmeuto.r/lutohiogrfzeo,r (traduo brasi leira de S.I.A. Stein), Ed. Vozes, Petrpolis, 1991, p. 8. 5 Ver M. Buber, idem, p. 8. 6 Ver M. Buber, idem, p. 8.

7 Ver P. Vermes, Martin

Buber

(traduo francesa de E Abergel),

III ... o rnundo rodou numinstante, nas voltas do meu corao ...

Paris, Albin Michel, 1992, p. 36; original ingls: Peter Halban Publishers Ltd., Londres, 1988. 8 Ver M. Buber, Encontro. FragmeutorAutoGiogrfaco.r, op. cit., p. 14. 9 Ver M. Buber, idem, p. 13. 10 Ver M. Buber, idem, p. 13. 11 Ver M. Buber, idem, p. 14. 12 Ver M. Buber, idem, p. 14. 13 Ver M. Buber, idem, p. 22. 14 Ver M. Buber, idem, p. 22. 15 Ver M. Buber, idem, p. 23. 16 Ver M. Buber, idem, p. 23. 17 Ver M. Buber, idem, p. 23. 18 Ver M. Buber, idem, p. 24. 19 Ver M. Buber, idem, p. 15. 20 Ver M. Buber, idem, p. 24.

Como bem assinala Michel Lwy,' Max Weber foi um dos pioneiros em identificar o carter potencialmente revolucionrio da tradio religiosa judaica,'- pois o mundo da Tor historicamente provisrio e est destinado a ser substitudo, numa revoluo futura sob ordem e conduo de Deus. Karl Mannheim, em Ideologie arnd Utopie, j dizia ser o anarquismo a forma mais pura de expresso da conscincia utpica/milenarista no mundo i-noderno, e identificava no amigo de Buber, Gustav Landauer, a personificao mais completa desta perspectiva e atitude.; Em ensaio sobre a idia messinica no judasmo, Gershom Scholem afirma mesmo a possvel presena de um elemento de anarquia no prprio seio do messianismo, levando a uma "... negao das antigas restries, esvaziadas de significado no novo quadro da liberdade messinica."' Michel Lwy diz que "... o messianismo contm duas tendncias, intimamente ligadas c coni r1 ditrias: uma 29

21 Ver M. Lwy, Redeno e Utopia. O judairmo libertrio na Europa Central (um estudo de afinidade eletiva), E d. Companhia das Letras, So Paulo, 1989. 22 Ver M. Buber, Meia Weg Zum Chassidismus, op. cit., p. 966, apud G., Wehr, op. cit., p. 17. 23 Ver M. Buber, Encontro. FrgmeutorAutohiogrcifacor, op. cit., p. 27. 24 Ver M. Buber, idem, p. 28. 25 Ver M. Buber, Meia Weg ~um Char,cidirmur, op. cit., p. 967, apud G., Wehr, op. cit., p. 25. 26 Ver G. Wehr, op. cit, p. 27.

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restabelecimento de um estado ideal do passado, uma idade de ouro perdida, uma harmonia ednica quebrada, e uma corrente utpica, aspirando a um futuro radicalmente novo, a um estado de coisas que jamais existiu."' Ambas as tendncias so no entanto inseparveis, configurando uma dualidade constitutiva fundamental. Nas palavras de Gershom Scholem, "... mesmo a corrente restauradora veicula elementos utpicos e, na utopia, fatores de restaurao esto presentes. (...) Esse mundo inteiramente novo comporta ainda aspectos que dependem claramente do mundo antigo, mas o prprio mundo antigo no mais idntico ao passado do mundo; antes um passado transformado e transfigurado pelo sonho explosivo da utopia.` A maior expresso dessa dualidade na tradio judaica a idia de tzkkun, a restaurao da harmonia originria, primordial, rompida com a Quebra dos Vasos e a Queda. O advento do Messias o cumprimento do retorno de todas as coisas ao vnculo originrio com a Divindade no mundo do tikkun (Olam Ha-Tikkun), que suprime todo o mal. Como aponta Michel Lwy,' o pensamento socialista utpico-libertrio opera uma dualidade anloga, podendo ser identificada, no ncleo de sua contestao, uma atitude romntica em relao ao passado. assim que, de modo mais exemplar em Landauer, a utopia revolucionria acompanhada de uma profunda nostalgia romntica pela

Outra caracterstica distintiva do messianismo judaico que a redeno no constitui um evento subjetivo, processado apenas no estado de alma dos crentes, mas um acontecimento eminentemente histrico, visvel, sensrio, objetivo. Entre o presente estado de degradao e a redeno h uma ruptura, uma verdadeira "irrupo catastrfica". Como diz Gershom Scholem, polemizando contra as teses de Herman Cohen - que reduziriam o messianismo judaico apenas a um "progresso eterno", secularizado no processo histrico universal - o messianismo judaico "... em sua origem e natureza uma teoria da catstrofe. Essa teoria insiste no elemento revolucionrio, cataclsmico, na transio do presente histrico para o porvir messinico.` A Tor jamais considera a redeno como fruto de um progresso da histria, mas como uma irrupo, "... o surgimento de uma transcendncia acima da histria, a projeo de um jato de luz a partir de uma fonte exterior histria."10 A transformao introduzida pelos ltimos tempos universal. No ocorre nenhum aperfeioamento do mundo antigo, mas a ruptura que cria um mundo novo, um mundo que irredutivelmente outro, expresso na radicalidade das imagens profticas de Isaas (Is. 65:25): "... o lobo e o cordeiro pastaro juntos, e o leo comer feno como o boi". Para muitos intrpretes da escatologia bblica, a instaurao do novo mundo

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Michel Lwy afirma que as caractersticas anteriormente descritas revelam "... uma notvel homologia estrutural, um inegvel isomorfismo espiritual entre esses dois universos culturais situados em esferas (aparentemente) bem distintas: a tradio messinica judaica e as utopias revolucionrias modernas, particularmente as libertrias.' 112 Mas essa identificao, em si, no ultrapassa o campo das correspondncias e analogias. Para que da venha a emergir uma autntica simbiose cultural preciso que um elemento dinmico venha a ser incorporado, configurando um processo de "... estimulao e alimentao recprocas, e mesmo, em alguns casos, de combinao ou fuso dessas duas figuras espirituais." Para tanto, prope a fecunda hiptese interpretativa de que esse elemento no foi meramente a.reculari.Zao, mas sim "... o novo surto de romantismo, desde o final do sculo XIX at o incio dos anos 30. O termo romantismo no designa aqui um estilo literrio ou artstico, mas um fenmeno bem mais vasto e profundo. A corrente de nostalgia das culturas prcapitalistas e de crtica cultural sociedade industrialburguesa, corrente que se manifesta tanto no domnio da arte e da literatura quanto no pensamento econmico, sociolgico e poltico." No romantismo centroeuropeu se entrelaam a utopia revolucionria futurista e a restaurao, como pano de fundo tico-cultural da dinamizao da afinidade eletiva entre o messianismo judaico e o socialismo utpicolibertrio. O final do sculo XIX trouxe consigo uma vigorosa acelerao da industrializao e da monetarizao das r 32

laes sociais na Europa Central, principalmente na Alemanha. Nesse perodo a Grande Transformao` atinge escala impressionante. No incio da segunda metade do sculo XIX, a produo alem de ao era menor que a francesa e muito menor que a inglesa. Em 1910 j era superior soma dos dois pases juntos. Emergem no espao centro-europeu importantes cartis na produo siderrgica, txtil, qumica, eltrica. O novo surto de romantismo foi uma reao a este processo, e "... essa Weltan.rchauung ir constituir na Europa Central e sobretudo na Alemanha, na virada do sculo, a sensibilidade dominante na vida cultural e universitria. O mandarinato acadmico, categoria social tradicionalmente influente e privilegiada, uma de suas principais bases sociais: ameaado pelo novo sistema que tende a reduzi-lo a uma situao marginal e impotente, reage manifestando seu horror ante o que considera uma sociedade sem alma, padronizada, superficial, materialista."" Tema central na crtica romntica a oposio entre Kultur (domnio de valores ticos, estticos, religiosos, comunitrios, vitais) e Zivilisation (domnio dos valores econmico-mercantis, tcnicos, materialistas, mecnicos). A intelectualidade acadmica centro-europia, tradicionalmente influente na organizao da cultura no espao cultural germnico, acusar a Grande Transformao em curso de engendrar "...uma sociedade sem alma, padronizada, superficial e materialista."" A Grande Transformao centro-europia teve for te impacto tambm sobre as comunidades judaicas. Cidades como Budapeste, Praga, Viena e Berlim conhecem significativo aumento da populao judaica, que, 33

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deixando o tradicional espao dos guetos e pequenas aldeias, urbanizou-se aceleradamente. Nessas grandes cidades ir se formar uma ampla "nova classe mdia"e tambm uma "nova burguesia" - de origem judaica, com crescente presena nos negcios, comrcio, indstria e finanas, e "... na medida em que ela enriquece e so levantadas as restries civis e polticas (na Alemanha em 1869-71), essa `classe mdia judaica' passa a ter uma s aspirao: assimilar-se, aculturar-se, integrar-se na nao germnica."" A corrente assimilacionista mais expressiva era aCentral Tlerein DeutscherStaatsbrgerJdischen Glaubens (As

conceituao de Max Weber, seguiam configurando as caractersticas de um Pariavolk (povo pria).` Com as portas da universidade no espao centroeuropeu seguindo abertas, o assimilacionismo judaico empenha-se por ali a formar seus filhos. A partir de 1895, os judeus representaro 10% da comunidade universitria alem, e pouco mais de 1% da populao alem totaL22 Como aponta Michel Lwy, est em formao uma nova categoria social, correspondente definio, proposta por Karl Mannheim, de umaintelectualidade desvinculada (eine so,~,,ial freisch2vebende Intelligen,-) .z3

sociao Central dos Cidados Alemes de Confisso judaica). Desse crculo, ao qual pertencia sua prpria famlia, Gershom Scholem d significativo depoimento: "... reiterava-se a todo momento, com nuanas diversas, que pertencamos ao povo alemo, no interior do qual formvamos um grupo religioso como os demais. Isso era mais paradoxal na medida em que na maioria dos casos o elemento que deveria constituir nossa nica diferena era inexistente, sem nenhuma influncia sobre a conduta de vida."" Mesmo um judeu to enraizado em sua identidade tradicional como Franz Rosenzweig escreveu no ano de 1923, pouco aps a publicao de sua obra prima Der Stern der Erl:rung ("A Estrela da Redeno"): "... penso que meu retorno ao judasmo fez de mim um alemo melhor e no pior."zo Mas o assimilacionismo tinha limites objetivos. Os judeus permaneciam excludos de fato da administrao pblica, da magistratura, das foras armadas, e confrontados com um anti-semitismo crescente. Na 34

Os novos intelectuais judeus emergentes no apresentam vnculos sociais precisos. So, paradoxalmente, assimilados e marginalizados, e, "... em estado de disponibilidade ideolgica, logo sero atrados pelos dois principais plos da vida cultural alem, que se poderia associar s duas clebres personagens de A montanha mgica de Thomas Mann, Settembrini, o filantropo liberal, democrata e republicano, e Naphta, o romntico conservador/ revolucionrio."z4 Um amplo espectro de jovens intelectuais judeus vai encontrar na referncia,Settembrini a configurao fundamental de uma identidade fundada naAufklrung (Ilustrao) germnica e sua perspectiva racional-progressista, de base neokantiana, com o judasmo reduzido a uma tica monotesta. Mas outro grande contingente vai encontrar abrigo na referncia Naphta. Aqui emergi - um conflito de geraes na forma de um "... rompi mento dos jovens antiburgueses amigos da Kuhui, (Li espiritualidade, da religio, da arte, com seus cn1 presrios, comerciantes ou banqueiros, lihcnu~ ~~ ~~ ~~ I~ i., 35

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dos, indiferentes em matria religiosa e bons patriotas alemes."'' No ambiente neo-romntico, os jovens intelectuais rebelam-se contra os valores assimilacionistas da casa dos pais aburguesados, e impulsionam um movimento de parcial dessecularizao e desassimilao. Outro elemento do mesmo contexto a forte atrao da intelectualidade judaica pelo iderio socialista internacionalista. Por isso, a "explicao" do anti-semitismo parece simples: o judeu aptrida teria uma pulso natural para aderir ao internacionalismo comunista. Esse clich falso, uma vez que "... os judeus, em sua maioria, eram de fato patriotas alems ou austracos - mas provvel que a situao de assimilao/rejeio/marginalizao nacional dos intelectuais judeus o$ tornassem potencialmente mais sensveis temtica internacionalista do socialismo."" Importante contingente da intelectualidade judaica lanou sobre a realidade centro-europia um olhar e um discurso construdos desde uma perspectiva pria e rebelde, que nega as verdades e certezas dos novos-ricos. Para a conscinciapria h sempre duas alternativas bsicas: a radical negao de si mesmo ou "... um questionamento radical dos valores da sociedade que desvalorizou sua alteridade."Z' Mas tambm significativo que, em meio aos judeus prias-rebeldesromnticos da Europa Central -

internacionalista na qual as desigualdades sociais e nacionais seriam radicalmente abolidas: o anarquismo, o anarcossindicalismo ou uma interpretao romntica e libertria do marxismo. tamanha a fora desse ideal que ele influencia at os prprios sionistas (Buber, Hans Kohn, Scholem)."Z$ Em contraste, na Europa Oriental um proletariado judeu se organiza no Bund, organizao socialista surgida ao final do sculo XIX na Litunia, ou adere s fraes bolchevique e menchevique do Partido Operrio Social-Democrata Russo. As condies de vida muito mais opressivamenteprias vigentes no Leste e a proletarizao e a violncia do anti-semitismo dos pogroms engendraram uma forte participao da intelectualidade judaica na militncia revolucionria sob o Imprio czarista desproporcional sua participao demogrfica. Esses militantes apresentam uma caracterstica comum: "... a recusa da religio judaica; (...) a seus olhos, tudo isso no passa de resqucios obscurantistas do passado, ideologias reacionrias e medievalismos de que preciso desembaraar-se o mais rpido possvel em proveito da cincia, das Luzes e do progresso." A maioria dos intelectuais revolucionrios judeus do Leste se origina de famlias "esclarecidas", secularizadas, assimiladas e oriundas de centros urbanos como Odessa, onde foi forte a Haskal, o movimento de abertura do judasmo ao iderio iluminista,

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tornando-se permevel a influncias neokantianas e neo-romnticas. Mas na Rssia isso no ocorreu. Como resposta crtica dos maskilim (ilustrados), "... o judasmo rabnico tornou-se conservador, inflexvel e repressivo; o hassidismo o acompanhou nesse cami nho."30 Nessas condies, "... o messianismo dos meios ortodoxos (rabnicos ou hassdicos), quietista e indiferente poltica, era incapaz de se combinar ou articular com uma utopia secular que eles rejeitavam como um corpo estranho. Era preciso primeiro emanciparse da religio, tornar-se ateu ou `esclarecido', para poder aceder ao mundo externo das idias revolucionrias."" Assim, no Leste Europeu a Haskal assumiu uma face predominantemente secularizante. Na Europa Oriental, a ruptura geracional, onde ocorre, mais radical que na Europa Central, e o jovem rebelde recusa-se a qualquer romantizao do tradicionalismo conservador. Isaac Deutscher, dirigente comunista polons que veio ser o mais famoso bigrafo de Trotski - e construiu seu caminho para a militncia revolucionria rompendo com os rumos religiosos que sua famlia planejara para sua vida -, nos d sobre isso depoimento expressivo: "... ns conhecemos o Talmud, fomos educados no hassidismo. Todas as idealizaes no passam, para ns, de poeira nos olhos. Crescemos em meio a esse

de romnticos como Martin Buber, podamos ver, e sentir, o obscurantismo da nossa religio arcaica e seu modo de vida inalterado desde a Idade Mdia. Para algum com meu background, a nostalgia em moda entre os judeus ocidentais de um retorno ao sculo XVI, um retorno que supostamente ajudaria a encontrar, ou redescobrir, a identidade cultural judaica, parecia irre al e kafkiana."3Z

Notas

1 Ver M. Lttry, Redeno e Utopia. O judai.rmo libertrio na Europa Central (um estudo de afinidadeeletiva),

Ed. Companhia das Letras, So Paulo,

1989, captulo 2, "Messianismo judaico e Utopia Libertria. Das correspondncias Attractio Electiva", p . 19 e seguintes. 2 Ver M. Weber, Wirt,rebaft und Getelcbaft. Grundriss der Verstehenden So.Ziologie, J.C.B. Mohr (Paul Siebeck), Tbingen, 1976, p. 301 e seguintes. 3 Ver K. Mannheim, Ideologie und Utopie, Verlag G. Schulte-Bulmke, Frankfurt am Main, 1978, p. 173-4 e p. 224. 4 Ver G. Scholem, "Zum Verstndnis der messianischen Idee im Judentum", in Judaica, v. 1, Suhrkamp Verlag, Frankfurt am Main, 1963, p. 41-42; apud M. Lwy, Redeno e Utopia, op. cit., p. 20. 5 Ver M. Lury, Redeno e Utopia, op. cit., p. 20. 6 Ver G. Scholem, "Zum Verstndnis der messianischen Idcc in Judentum", in op. cit., p. 20; apud M. Lwy, Redeno e

l'iopi,r,

op. cit., p. 22.

7 Ver M. Lwy, Redeno e Utopia, op. cit., p. 21. 8VerG.Landauer,DieRevodution,RltenundLoeninYI imi1.hio m, Main, 1907.

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Roberto Bartholo Jr. 9 Ver G. Scholem, "Zum Verstndnis der messianischen Idee in Judentum", in op. cit., p. 12-13; apud M. Lwy, Redeno e Utopia, op. cit., p. 22. 10 Ver G. Scholem, idem, p.13, apud M. Lwy, idem, p. 22. 11 Ver J. Taubes, Studien Zu Geschichte und Syrtem der aGendlndirchen Eschatologie, Berna, Rsch, Vogt und Co., 1947, p. 24, apud M. Lwy, Redeno e Utopia, op. cit., p. 24. 12 Ver M. Lwy, Redeno e Utopia, op. cit., p. 24. 13 Ver M. Lwy, idem, p. 25. 14 Ver M. Lwy, idem, p. 25. 15 O termo uma referncia deliberada obra clssica de Karl Polanyi. Ver K. Polanyi, A Grande Transformao. As origens de nossa poca (traduo brasileira de I: Wrobel), 2' edio, Ed. Campus, Rio de janeiro, 2000. Original ingls: "1'h,e Great 1 ranrformation, Rinehart & Company, Londres, 1944. 16 Ver M. Lw}', idem, p. 32. 17 Ver P. Ringer, he Decline of the German Rlandarinr. 1

Voc e Eu: Martin Buber, presena palavra 27 Ver M. Lwy, idem, p. 39. 28 Ver M. Ltiwy, idem, p. 40. 29 Ver M. Lbwy, idem, p. 43. 30 Ver M. Lwy, idem, p. 45. 31 Ver M. Lwy, idem, p. 45. 32 Ver 1. Deutscher, The Non jew::rh Jew and other errayr, Londres, Oxford University Press, 1968, p. 46-47; apud M. Lwy, Redeno e Utopia, op. cit., p. 46.

he

German

Academic

Gommunity

1890-1933,

Cambridge/Massachusetts, Harvard University Press, 1969, p.13, apud M. L,wy, Redeno e Utopia, op. cit., p. 32. 18 Ver M. Lwy, Redeno e Utopia, op. cit., p. 33. 19 Ver G. Scholem, "On the social psychology of the Jews in Germany. 1900-1933", in D. Bronsen (ed), Jewr and Germanr

from 1860 to

1933. 1

hepmhlematzcrymhio.rir,

Heidelberg, Carl Winter University Verlag, 1979, p.l l. 20 Ver F. Rosenzweig, Briefe, Berlim, Schocken Verlag, 1955, p. 474, apud M. Lwy, Redeno e Utopia, op.cit., p. 34. 21 Ver M. \Veber, Wirtrchaftund Gerellrhaft, op. cit., p. 300 e p. 371-2, 22 Ver 1. Elbogen, Geschichte der Juden in De:rtrchland, Berlim, E. Lichtenstcin Verlag, 1935, p. 303; e E. Rosenthal, rendr

of lhe Jewirh Popnlntiar in Germany (19101939), Jewirh Social Stuaies, VI, jun. 1944, p. 257, apud M. Lwy, Redeno e Utopia, op. cit., p. 179.23 Ver K. Mannhcim, Ideologie und Utopie, op. cit., p. 135. 24 Ver M. I.w}', Redrrrm e Utopia, op. cit., p. 35. 25 Ver M. Lwy, idem, p. 35. 26 Ver M. Lwy, idem, p. 38.

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firme, mas sim aquele l em cima, que sempre vem novamente a meu encontro e me estende alguns dedos, o mundo. Ambos tm ddivas para distribuir. O esprito me

IVfeito tatuagem ...

d seu man, os livros; o mundo preparou um po integral para mim, em cuja casca quebro os dentes e com o qual nunca fico satisfeito: os homens.` Os livros sempre falam. J a simples presena dos homens sorri o sorriso vinculante na mudez da criatura. Os homens so "... constitudos de discurso e mudez; (...) da mudez humana, por trs do discurso, o esprito sussurra em tua direo.` certo que Buber, em diversos momentos da vida, escolhe a solido de um quarto a portas fechadas para se dedicar leitura de um livro. Mas faz isso "... apenas porque posso abrir a porta novamente, e um homem levanta os olhos em minha direo.` E, de modo ainda mais agudo, afirma: "... eu nada sabia de livros quando me evadia do colo de minha me, e quero morrer sem livros, com uma mo humana sobre a minha."6 Destacamos em seguida os mais notveis encontros inter-humanos que marcaram a vida de Buber.

No

Apndice

a

seus

Fragmentos

autobiogrficos, Buber inclui o texto "Livros eHomens", no qual fala de sua trajetria de vida partindo de uma situao em que "... se me tivessem perguntado na primeira juventude se preferia lidar apenas com homens ou apenas com livros, eu teria certamente me pronunciado a favor dos ltimos. Mais tarde, isso modificou-se cada vez mais.` Essa modificao tem sua raiz na confisso de algo radical, que Buber se v compelido a tornar explcito, sem o que considera nunca poder ser compreendido por seus interlocutores: "... o mais ntimo do meu corao mais ama o mundo que o esprito.` A confisso demanda um aclaramento adicional, e Buber afirma: "... Certamente no estou to altura da vida com o mundo como gostaria; sempre volto a falhar ao lidar com ela, volto sempre a ser devedor daquilo que ela espera de mim, em parte porque estou to preso ao esprito. Estou preso a ele de certo modo como estou preso a mim, porm no o amo verdadeiramente, assim como no me amo verdadeiramente. Na verdade, no amo este aqui que me agarrou com sua garra celeste e que segura 42

IV .1 ... e a prudncia dos sbios nem ousou conter nos lbios o.rorri.ro e a paixo ... Um primeiro grande encontro foi com Gusta Landauer. Em 1899 Buber conhece o dirigente do crc ub) anos berlinenses. O pensamento do judeu ( ~,~~~

n((,

romntico Neue Gemeinschaft, do qual particip;ir,

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libertrio Landauer exercer forte influncia sobre a filosofia poltica de Buber, contribuindo decisivamente para fornecerlhe um acento anarcomessinico. Como recorda Pamela Vermes,' feriu a alma de Buber do modo mais profundo a morte desse amigo militante revolucionrio, ocorrida em 1919 aps seu envolvimento em combates de rua, no bojo das convulses revolucionrias que, em territrio alemo, acompanharam o fim da Primeira Guerra Mundial. Gustav Landauer nascera em 7 de abril de 1870, filho de uma famlia judaica de origem burguesa, culturalmente assimilada. Foi um ativo militante anarquista e escritor com importante obra nos campos da filosofia poltica e da crtica literria, assim como redator da revista Der So.~iali.rt entre 1909 e 1915. Em abril de 1919 tornou-se, por poucos dias, Comissrio do Povo para assuntos culturais e instruo pblica da brevssima Repblica dos Conselhos da Baviera, violentamente reprimida pelo exrcito. Em 2 de maio de 1919 ser assassinado. Aos olhos de Landauer, os conselhos operrios eram as partes constitutivas orgnicas de um povo que se autodetermina no esprito renovador e proftico da Revoluo. O romantismo revolucionrio de Landauer foi ex posto de modo ntido em seu ensaio Die Revolution, de 1907. Nos papis do Arquivo Landauer, de Jerusalm, encontra-se a significativa afirmao de que em sua perspectiva o romantismo no devia ser visto

Para a perspectiva romnticorevolucionria de Landauer, toda a era moderna que se segue ao ocaso da Idade Mdia um tempo de decadncia e transio, uma penosa travessia entre o eclipse do esprito comunitrio cristo e a emergncia do novo esprito comunitrio socialista libertrio. Nessa travessia, as revolues, comeando com Thomas Mnzer e os anabatistas, so injees de autenticidade e esprito nas veias de uma humanidade mortificada. Landauer rejeitava a f progressivista dos socialistas cientficos marxistas em leis annimas de movimento, explicativas do devir dos processos histricos. Para ele, sempre que a humanidade presenciou algo de elevado e grandioso e inovador, houve uma ruptura inexplicvel em seu espao de experincias. E na revoluo que esse milagre se faz possvel. Segundo Landauer, a f progressivista conduzia ao imprio do maior inimigo da vida e do esprito, o Estado moderno. Contra esse cenrio de tendncia inercial, ele quer afirmar a resistncia inovadora de uma rede federativa de relaes comunitrias autnomas, os aistais de vida do socialismo, aptos a "... criar uma Kultur com os meios da Zivili.ration moderna." Na viso de Landauer, os militantes socialistas libertrios do presente revivificam o esprito hertico das revolues camponesas em luta contra o dilaceramento que o capitalismo industrial

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O encontro com Buber propicia a Landauer novas bases de aproximao com o judasmo. Ocorre aqui uma profunda afinidade, pois no foi pequena a influncia da filosofia poltica de Landauer sobre Buber. E ser decisivo para Landauer tomar conhecimento da coletnea de relatos hassdicos organizada por Buber. Para termos idia de como isso influenciou sua identidade judaica, preciso mencionar que, em carta escrita ao jornal Zeit- na avaliao de Michel Lwy, certamente anterior a 1908 -,13 polemizando com teses anti-semitas, Landauer afirma que sua pertena ao judasmo obra de um acaso. J numa resenha da obra Die Legende des Baal.rchem, datada de outubro de 1910, assegura que `... em nenhum lugar pode um judeu aprender, como no pensamento e na escrita de Buber, o que muitos hoje no sabem espontaneamente e s descobrem por meio de um impulso externo: que o judasmo no um acidente exterior, mas uma qualidade interna imperecvel, cuja identidade rene um certo nmero de indivduos em uma comunidade." O messianismo judaico no ser em Landauer secularizado, no sentido vulgar da palavra. Ocorre uma verdadeira Aufhebung (superao) hegeliana, que dialeticamente conserva e supera a dimenso religiosa, permitindo que ela permanea presente no imaginrio poltico como um atesmo mstico. Escrevendo em 1913 sobre a questo judaica, afirma que "...

Para Landauer, os judeus tm a misso, a vocao e a tarefa de colaborar com a gnese de uma nova humanidade. Em 1912, numa palestra em Berlim sobre "Judasmo e Socialismo", afirma que a Dispora judaica liga os dois e que a redeno do judeu s ser se for simultaneamente redeno da humanidade. A Dispora a condio objetiva que livra o judeu do delrio e.rtati.rta e o ancora objetivamente no socialismo internacional. Em tal perspectiva, Landauer nega tanto o assimilacionismo judaico-germnico quanto o sionismo poltico de Theodor Herzl, e acolhe calorosamente os eventos revolucionrios de outubro de 1917 na Rssia. Em carta a Buber, questiona sua adeso perspectiva palestinense e, embora aceite participar de um encontro com sionistas-socialistas a ser organizado por Buber em abril de 1919, escreve-lhe: "... meu corao jamais foi seduzido por esse pas, e no penso que ele seja necessariamente a condio geogrfica de uma Gemein.rchaftjudaica. O verdadeiro acontecimento, que para ns importante e talvez decisivo, a libertao da Rssia. (...) Neste momento parece-me prefervel, apesar de tudo, que Bronstein no seja professor na Universidade de Haifa, mas que seja Trotski na Rssia.` 6

IV.2 ... vou voltar, .rei que ainda vou voltar ...

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amigo de Karl Marx, abandonou o marxismo sob influncia do movimento nacionalista de unificao da Itlia (1861). Em sua mais importante obra, Rom undJerusalem (1862), falava de um estado moderno judeu na Palestina fundado no trabalho produtivo, confiando em que da Europa Oriental sairiam os voluntrios para as colnias que lhe assentariam as bases. Mas foi Theodor Herzl o grande artfice do moderno nacionalismo judeu. Nascido em Budapeste no seio de uma famlia de banqueiros assimilados, e educado em Viena, Herzl formou-se em direito pela universidade local. Com forte vocao literria, escreveu peas teatrais e colaborou como correspondente em Paris do jornal vienense Neue Freie Presse. Evento crtico em sua vida foi a cobertura jornalstica do julgamento por corte marcial de Alfred Dreyfus, capito do exrcito francs acusado de passar aos alemes segredos militares. Apesar das provas apresentadas, altamente duvidosas, o judeu Dreyfus foi condenado em processo rumoroso, com a marca do antisemitismo. O affaire Dreyfus, somado a episdios mais especificamente pessoais, faz de Herzl - na expresso de Moacyr Scliar"- um judeu novo, dedicado causa da emancipao do judasmo. Significativa nesse contexto sua confrontao em Paris, no ms de junho de 1895, com o baro Maurice de Hirsch, grande empresrio com importante obra filantrpica junto aos judeus pobres da

vos e covardes". No ms seguinte, escreveu Der Judenstaat, um curto textomanifesto que, com sentido de urgncia e conciso jornalstica, no apenas diagnosticava a condio judaica como tambm prescrevia-lhe alternativas. Em seu prefcio, Herzl preocupou-se em manifestar seu distanciamento de qualquer utopismo: "... no se trata aqui de uma dessas utopias amveis, como numerosos autores desenvolveram antes e depois de Thomas Morus."18 Ele no pretende inventar "... a situao histrica em que se acham os judeus, nem os meios de levar remdio situao existente." Seu objetivo utilizar uma fora motriz existente na realidade: a angstia dosjudeus, que, "... racionalmente empregada, bastante poderosa para acionar uma grande mquina e transportar homens e coisas."" Herzl quer ver no Estado judeu um projeto da modernidade, mas "... para isso preciso, antes de tudo, fazer nas almas tabula rasa de muitas idias antiquadas, passadistas, atrasadas, confusas e estreitas. Assim, espritos limitados pretendero antes de mais nada que a migrao, saindo da civilizao, dever dirigir-se ao deserto. Absolutamente! A migrao se efetua em plena civilizao. No descemos a um grau inferior; ao contrrio elevamo-nos. No ocupamos choas de barro e palha, mas belas casas modernas." 21 E Herzl publica seu livro-manifesto junto com o apelo: "... quero que os homens esclarecidos aos

Roberto Bartholo Jr.

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rem as tentativas que fizeram como defeituosas e ineficazes." zz H uma certa convergncia entre Herzl e Marx no diagnstico de que "... a situao crtica dos judeus um anacronismo, (...) um pedao da Idade Mdia desgarrado em nossos tempos" z3 e na prescrio de que "... a luz eltrica no foi inventada para que alguns esnobes iluminem seus sales, mas sim para que, sua claridade, resolvamos as questes que preocupam a humanidade. Uma dessas questes, e no a menos importante, a questo judaica. Resolvendo-a no trabalhamos s para ns mesmos, mas tambm para muitas outras igualmente fatigantes e penosas."z4 H tambm uma certa convergncia com a proposio de Jean-Paul Sartre de que "o judeu uma inveno do anti-semita": "... a questo judaica existe por toda a parte onde os judeus vivem. (...) Onde no existia foi levada pelos emigrantes judeus. Vamos naturalmente aonde no nos perseguem, e a, todavia, a perseguio a conseqncia do nosso aparecimento. Isso verdade e permanecer uma verdade por toda parte, (...) por tanto tempo quanto a questo no for resolvida politicamente." zs Herzl afirma que, encarando como judeu, "sem dio e sem medo", o anti-semitismo de seu tempo, ele pode at mesmo vislumbrar, em meio vulgaridade da grosseria, inveja e preconceito, um certo "efeito da legtima defesa", vinculado a interesses nacionais. O anti-semitismo cresce em meio aos povos porque suas causas, tanto remota como prxima, continuaro a ser vigentes enquanto no for solucionada a questo judaica. E 50

a causa remota a perda de nossa assimilabilidade, vinda da Idade Mdia; a causa prxima nossa superproduo em inteligncias mdias, que no podem nem efetuar seu escoamento, descendo, nem operar o seu movimento ascensional, subindo, ao menos de modo normal. Descendo, tornamo-nos revolucionrios, proletarizando-nos, e formamos os suboficiais de todos os partidos subversivos. Ao mesmo tempo, cresce no alto nossa temida potncia financeira."" Para Herzl, em estreita sintonia com seu tempo - que exacerbou a afirmao do Estado-nao -, a questo judaica no deve ser considerada "... nem como uma questo social, nem como uma questo religiosa, qualquer que seja alis o aspecto particular sob o qual ela se apresenta, conforme os tempos e lugares. uma questo nacional e, para resolvla, nos preciso, antes de mais nada, fazer dela uma questo poltica universal, que dever ser regulada nos conselhos dos povos civilizados." Para solucionar a questo judaica, prope um projeto que "... na sua forma originria infinitamente simples, e preciso que o seja, pois deve ser compreendido por todos. Que nos dem a soberania de um pedao da superfcie terrestre em relao a nossas legtimas necessidades de povo, e ns nos encarregaremos, ns mesmos, de todo o resto."" Para realizar tal tarefa, duas instituies deveriam ser criadas: a Society of Jews, o corpo poltico que rcpresentar o povo judeu e formular a estratgia de implantao do seu Estado nacional, e a Jewish Compam,, concebida imagem e semelhana das companlii:ts d