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BASES PARA UMA METODOLOGIA DA PESQUISA EM DIREITO João Maurício Adeodato Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Escola Superior da Magistratura de Pernambuco. Sumário: 1. Introdução: o contexto brasileiro e a importância da pesquisa e da pós- graduação em direito. 2. Como escolher o tema. 3. Organização da pesquisa jurídica. 4. Fontes de pesquisa jurídica. 5. Redação do trabalho científico. 6. Formas de referências às fontes utilizadas. 7. Sugestões bibliográficas. 1. Introdução: o contexto brasileiro e a importância da pesquisa e da pós-graduação em direito. O ensino jurídico vem atravessando mais uma grande modificação estrutural, talvez a maior na história do ensino superior no Brasil, o que vem provocando debates mais que salutares. Embora se venha escrevendo copiosamente sobre metodologia de pesquisa no Brasil, o direito tem sido sistematicamente esquecido. A pesquisa jurídica é das mais atrasadas do país e os investimentos governamentais na área são irrisórios, nada obstante ser direito um dos cursos superiores mais importantes e procurados pelos egressos do segundo grau no país 1 . Este fenômeno deve-se a diversos fatores, tais como a profissionalização (e mesmo proletarização) da profissão, mercantilismo nos cursos jurídicos privados, omissão do Estado e da sociedade, sem falar nas duradouras conseqüências do esvaziamento qualitativo do corpo docente jurídico levado a efeito pelo governo militar que se estendeu desde 1964. Apesar de sua importância, não cabe aqui considerar essas causas. Além da ignorância sobre como pesquisar e como apresentar os resultados de suas pesquisas, os juristas estão em geral tão envolvidos com problemas práticos do dia-a-dia que não têm tempo para estudos mais aprofundados. A pesquisa toma tempo, exige grande dedicação e as recompensas imediatas são parcas, ainda que seu resultado, o saber, seja extremamente útil no tratamento de problemas práticos do dia-a-dia. E a comunidade jurídica nacional vem percebendo isto. Não só a pós-graduação stricto sensu (mestrado e doutorado) e lato sensu (especialização) em direito crescem visivelmente em quantidade e qualidade, nos ensinos público e privado, como também as entidades que congregam profissionais tradicionalmente afastados da pesquisa preocupam-se mais e mais em melhor formar seus quadros, sejam estes da magistratura, do ministério público, da advocacia, e procuram a pouco e pouco privilegiar a pesquisa e o currículo dos 1 Conferir os quatro volumes publicados pela Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da OAB, Brasília, 1992, 1993, 1996 e 1997. Também Luciano Oliveira - João Maurício Adeodato: O Estado da Arte da Pesquisa Jurídica e Sócio-Jurídica no Brasil. Brasília: Conselho da Justiça Federal, Centro de Estudos Judiciários, 1996.

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BASES PARA UMA METODOLOGIA DA PESQUISA EM DIREITO

João Maurício AdeodatoProfessor do Programa de Pós-Graduação em Direito da

Escola Superior da Magistratura de Pernambuco.

Sumário: 1. Introdução: o contexto brasileiro e a importância da pesquisa e da pós-graduação em direito. 2. Como escolher o tema. 3. Organização da pesquisa jurídica. 4.Fontes de pesquisa jurídica. 5. Redação do trabalho científico. 6. Formas de referênciasàs fontes utilizadas. 7. Sugestões bibliográficas.

1. Introdução: o contexto brasileiro e a importância da pesquisa e da pós-graduaçãoem direito.

O ensino jurídico vem atravessando mais uma grande modificação estrutural,talvez a maior na história do ensino superior no Brasil, o que vem provocando debatesmais que salutares. Embora se venha escrevendo copiosamente sobre metodologia depesquisa no Brasil, o direito tem sido sistematicamente esquecido. A pesquisa jurídica édas mais atrasadas do país e os investimentos governamentais na área são irrisórios, nadaobstante ser direito um dos cursos superiores mais importantes e procurados pelosegressos do segundo grau no país1. Este fenômeno deve-se a diversos fatores, tais como aprofissionalização (e mesmo proletarização) da profissão, mercantilismo nos cursosjurídicos privados, omissão do Estado e da sociedade, sem falar nas duradourasconseqüências do esvaziamento qualitativo do corpo docente jurídico levado a efeito pelogoverno militar que se estendeu desde 1964. Apesar de sua importância, não cabe aquiconsiderar essas causas.

Além da ignorância sobre como pesquisar e como apresentar os resultados de suaspesquisas, os juristas estão em geral tão envolvidos com problemas práticos do dia-a-diaque não têm tempo para estudos mais aprofundados. A pesquisa toma tempo, exigegrande dedicação e as recompensas imediatas são parcas, ainda que seu resultado, osaber, seja extremamente útil no tratamento de problemas práticos do dia-a-dia. E acomunidade jurídica nacional vem percebendo isto. Não só a pós-graduação stricto sensu(mestrado e doutorado) e lato sensu (especialização) em direito crescem visivelmente emquantidade e qualidade, nos ensinos público e privado, como também as entidades quecongregam profissionais tradicionalmente afastados da pesquisa preocupam-se mais emais em melhor formar seus quadros, sejam estes da magistratura, do ministério público,da advocacia, e procuram a pouco e pouco privilegiar a pesquisa e o currículo dos

1 Conferir os quatro volumes publicados pela Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da OAB,Brasília, 1992, 1993, 1996 e 1997. Também Luciano Oliveira - João Maurício Adeodato: O Estado da Arteda Pesquisa Jurídica e Sócio-Jurídica no Brasil. Brasília: Conselho da Justiça Federal, Centro de EstudosJudiciários, 1996.

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candidatos em concursos de ingresso que promovem, além de oferecerem oportunidadesde estudo investindo em seus próprios quadros.

É falaciosa a argumentação de que a pós-graduação não é necessariamentegarantia de qualidade. O silogismo é falso pois o paradigma se transforma em um sofismaquando o exemplo é casual, isolado ou mesmo pouco freqüente. O paradigma só temsentido quando é a regra, não o mero exemplo excepcional2. Apesar da retóricasupostamente objetiva e geral, parece que as ações contrárias e aquelas que pretendemminimizar a importância da pós-graduação em direito no Brasil têm um fundamentonitidamente pragmático e, por motivo deste caráter existencial de sobrevivência, seusbaluartes atuam tão denodadamente em defesa de seus próprios interesses.

Daí a resistência de muitos setores conservadores a mudanças mais profundas,procurando desqualificar a pesquisa e a pós-graduação. Como não a obtiveram nem aquerem ou podem obter, revoltam-se contra o estabelecimento de critérios e contraaqueles que esforçam-se neste sentido. É sintomático observar que todas as críticas ao“excesso de importância” dado à pesquisa e à pós-graduação em direito venham, semexceção, de pessoas que não conseguiram uma coisa nem outra. Nunca se viu um doutormenosprezando publicamente a importância da pós-graduação.

Mas os problemas internos da pós-graduação são muitos e mais sérios. Um deles éo alto índice de desistência, fenômeno que não é exclusivo da pós-graduação brasileiranem do curso de direito3, mas neles atinge níveis ainda mais significativos. Por um lado,tem-se o aspecto psicológico da “síndrome da desistência”, quando o aluno procuraexplicar seu próprio fracasso na empreitada através de argumentos “objetivos”, tais comoter pouco tempo disponível, ser arrimo de família, ter coisas mais importantes a fazer, apouca importância profissional da pós-graduação e toda sorte de problemas pessoais. Ofato é que, ao lado da disponibilidade intelectual, pesquisa é tarefa das mais estafantes enem todos têm conseguido levá-la a cabo satisfatoriamente.

Por outro lado, há a atitude leniente das agências governamentais para combolsistas que não cumprem suas obrigações, culminando na perda de todos os prazos semdefender a dissertação ou tese, inadimplentes após usufruírem de recursos de um paíspobre que tão pouco investe em educação. Com base em pareceres no mínimoquestionáveis, as agências têm entendido a bolsa de estudos pública como uma doaçãopura e simples, sem contrapartidas, quando sanções cíveis contra quem não cumprecontratos seriam ao menos argumentáveis em quaisquer tribunais e são a regra no queconcerne às agências de fomento públicas em outros países.

Este texto pretende auxiliar quem pretende participar de uma discussão sobre odireito em bases científicas, através de uma série de sugestões que o bom senso e aexperiência confirmam.

2 Aristóteles: Retórica, I, 2, 1357b, 30-35, in The Works of Aristotle, trad. de W. Rhys Roberts, coleçãoGreat Books of the Western World. Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1990, vol. 8.3 Estelle M. Phillips - Derek. S. Pugh: How to get a PhD - A Handbook for Students and their Supervisors.Buckingham - Philadelphia: Open University Press, 1995, passim.

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2. Como escolher o tema.

O tema do trabalho não precisa necessariamente ser original. É bastante que oenfoque, a atitude do pesquisador o seja. Costuma-se dizer que uma dissertação demestrado ou monografia de pós-graduação pode-se reduzir a comentar um tema qualquer,ficando a exigência de originalidade adstrita à tese de doutorado. Isto não procede.Evidentemente a originalidade científica é uma virtude e deve ser buscada, qualquer queseja a dimensão ou a pretensão do texto a ser produzido. Assim, uma monografia serátanto melhor quanto mais pareça uma dissertação de mestrado e uma dissertação demestrado será tanto melhor quanto mais pareça uma tese de doutorado. A avaliação piorana direção inversa.

A abrangência do tema é uma questão delicada quando se trata de defini-lo. Osautores de obras jurídicas parecem tender a uma ampliação exagerada de seus temas, fatoque, embora possa atrair estudantes incautos, preocupados com o sucesso em provas, nãose prestam ao trabalho científico. Não faz sentido que um jovem mestrando se dedique aescrever uma dissertação como “Hermenêutica Jurídica” ou “Fundamentos do DireitoPenal” ou “O Estado Moderno”. Temas muito amplos perdem em precisão e acuidade edemandam muita experiência por parte de seu autor4.

Estratégias para reduzir um tema jurídico são basicamente por assunto (“Adispensa abusiva no contrato de trabalho”), por autor (“O conceito de legitimidade emHannah Arendt”), por circunscrição temporal (“Evolução do concubinato na segundametade do século XX”), por circunscrição espacial (“Ações de despejo na Comarca deEscada”), por referência expressa a aspecto específico do direito positivo (“O princípioda nacionalidade na Lei de Introdução ao Código Civil de 1916”) etc., além dessescritérios combinados.

O que é bom para as editoras, posteriormente, se o trabalho vier a ser publicadocom objetivos de mercado, nem sempre é de bom tom científico. Editores tendem aquerer uniformizar os títulos, buscando atingir maior público, muitas vezes com o nomeda disciplina a que se podem dirigir os livros (“Filosofia do Direito” ao invés de“Ontologia do Dever Ser no Neokantismo Tardio”). Ao escrever para seus pares eexaminadores, porém, a norma deve ser invertida.

Outra regra é nunca separar “teoria” de “praxis”, pensar conceitualmente erealidade empírica só têm sentido um com o outro. Interessante observar que, nadaobstante o direito constituir matéria eminentemente prática, os juristas pouco mencionama “prática” do direito quando escrevem seus trabalhos “teóricos”, eles dificilmentereferem-se a seus “trabalhos de campo”, a suas experiências práticas enquanto operadoresjurídicos, para confirmar empiricamente suas teses, o que, em outras áreas, constituimetodologia unânime dos pesquisadores.

4 Franz Wieacker, já autor consagrado, escreveu a História do Direito Privado Moderno mas teve ocuidado de colocar como subtítulo: Com especial atenção ao desenvolvimento alemão. V.Privatrechtsgeschichte der Neuzeit - unter besonderer Berücksichtigung der deutschen Entwicklung.Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1967.

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3. Organização da pesquisa jurídica.

Uma questão que preocupa quem se propõe a escrever um trabalho científicorefere-se às dimensões, ao número de páginas que o texto deve ter. Claro que não há umaresposta pronta para isto, devendo preponderar o bom senso. O grau de especificidade e onúmero de partes, capítulos, subitens etc. dependerão, obviamente, do número de laudas.Subdividir tanto, a ponto de ter dois ou mais subitens em uma só página ou mesmo umpor página é um exagero detalhista. Subdividir um trabalho de cem laudas em apenas trêspartes é o pecado oposto.

Um projeto é sobretudo prospectivo, diferindo do relatório, cujo caráter éretrospectivo. Assim, nada há de errado em listar na bibliografia do projeto obras de queainda não se dispõe nem se sabe como conseguir, obtidas a partir das listagensbibliográficas de outras obras. Desonesto é fazê-lo na versão final do trabalho.

Pesquisar é quase que sinônimo de estudar, significando, quando muito, umaforma especial de estudo. O advogado que estuda para melhor fundamentar suaargumentação no processo faz pesquisa, sem dúvida. Especificamente, contudo, otrabalho de pesquisa é mais ambicioso, apresentando-se de forma sistemática, compretensões de racionalidade e aplicação generalizada. Ele precisa apoiar-se o maisclaramente possível no objeto investigado, seja este objeto formado por eventos, umconjunto de normas ou opiniões de leigos, agentes jurídicos, doutrinadores. Daí aimportância das fontes de referência, que serão comentadas adiante.

Devido à inseparabilidade entre teoria e praxis, o trabalho de pesquisa precisadescrever seus pontos de partida e ao mesmo tempo problematizá-los e explicá-los, isto é,procurar compreendê-los dentro de uma visão (“teoria”) de mundo coerente. Esquecer asbases empíricas do direito faz a “visão de mundo” irreal e inútil, ainda que pareçacoerente; reduzir-se a descrever dados empíricos sem uma teoria, por outro lado, deixa ainformação fora de rumo e dificulta a comunicação.

Ainda que um trabalho de pesquisa possa ser predominantemente conceitual oupredominantemente empírico, o pesquisador deve ter o cuidado de explicitar asinterrelações entre as duas formas de abordagem: se quiser conceituar a diferença entre aprescrição e a decadência, nada melhor do que ajuntar exemplos reais e atuais, além daanálise de precedentes, jurisprudência, casos concretos. Parece-nos, portanto, que umcapítulo “empírico” ou mesmo referências constantes a fatos reais só têm a enriquecer umtrabalho de pesquisa “teórico”.

Conceitualmente, então, devendo mais serem entendidas como fases de uma únicatarefa do que como atitudes distintas, podemos dividir a pesquisa em bibliográfica eempírica.

Pesquisa bibliográfica é aquela “... desenvolvida a partir de material já elaborado,constituído principalmente de livros e artigos científicos”5. Mas ela também inclui outrasformas de publicação, tais como artigos de jornais e revistas dirigidos ao público em 5 Cf. Antônio Carlos Gil: Como Elaborar Projetos de Pesquisa. São Paulo: Atlas, 1991, p. 48.

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geral. No caso da pesquisa jurídica, é importante também o estudo de documentos comoleis, repertórios de jurisprudência, sentenças, contratos, anais legislativos, pareceres etc.,constituindo uma vertente específica da pesquisa bibliográfica que podemos chamar dedocumental.

Já na pesquisa empírica, o pesquisador vai mais diretamente aos eventos e fatos,sem intermediação de outro observador, investigando as variáveis de seu objeto etentando explicá-las controladamente. Seus métodos são muitos, tais como questionários,entrevistas, estudos de caso, entre outros.

A pesquisa jurídica pode ser classificada, dentre outros critérios, em científica,que tem por fim descrever e criticar os fenômenos definidos como objeto, e dogmática,destinada a sugerir estratégias de argumentação e decisão diante de conflitos a partir denormas jurídicas estabelecidas.

Os manuais sobre como redigir um trabalho, disponíveis nas livrarias, insistemsobre os aspectos formais dos planos e projetos. Isto é, sem dúvida, fundamental.

A parte mais importante é dividir o tema escolhido em tópicos razoavelmentedetalhados. Esses tópicos devem ter títulos específicos, personalizando o plano detrabalho desde logo. Não nos parecem os melhores aqueles projetos de pesquisa comsumários assépticos, que poderiam servir a qualquer tema e a qualquer autor, tal comoensinado em alguns cursos de biblioteconomia: “Projeto: As Estratégias de Inconsistênciano Judiciário Brasileiro”. 1. Introdução (1.1. Importância do tema. 1.2. Justificativa). 2.Objetivos geral e específicos. 3. Hipóteses de trabalho. 4. Metodologia (4.1. Material emétodos. 4.2. Universo. 4.3. Instrumentos. 4.4. Procedimentos). 5. Conceitos básicos. 6.Conclusões. 7. Cronograma. 8. Bibliografia”.

Na pesquisa jurídica, pelo menos, isto não funciona. Ainda que tais idéiasprecisem estar presentes por trás do projeto ou sumário, o autor deve procurar títulos quejá exponham ao leitor, a partir do índice, algo do conteúdo que o espera e queindividualizem o trabalho. O ideal é que a introdução tenha um título específico, que jáexpresse uma justificativa pela escolha; dentro desta introdução, um subtítulo designará aimportância do tema: outro explicitará a metodologia empregada, tanto na pesquisa (quaisas fontes, quais as formas utilizadas) quanto na redação (optou por este ou aquele sistemade referência, este ou aquele autor-guia, porque excluiu ou incluiu este ou aquele tema -dependendo de seu papel, a metodologia pode ocupar um capítulo à parte); outroapontará, muito resumida e atrativamente, o conteúdo de cada capítulo. No nossoexemplo: “Projeto: As Estratégias de Inconsistência no Judiciário Brasileiro”. 1.Hipóteses de trabalho (1.1. Direito e Estado subdesenvolvidos. 1.2. Direito estatal edireito extra-estatal. 1.3. O direito extra-estatal dependente do Estado. 1.4. Como seorganiza esta pesquisa). 2. Pressupostos epistemológicos (2.1. Pluralismo jurídico versusmonismo estatal. 2.2. Estratégia. 2.3. Disfunção). 3. O direito extra-estatal no judiciáriobrasileiro (3.1. O nível dogmático previsto no ordenamento oficial. 3.2. O nível extra-dogmático ensejado pelo ordenamento oficial. 3.3. O nível extra-dogmático contrário aoordenamento oficial). 4. Metodologia (4.1. Pesquisa bibliográfica dos fundamentosepistemológicos. 4.2. Coleta de decisões judiciais singulares e jurisprudênciasexemplificativas. 4.3. Pesquisa de legislação. 4.4. Levantamento estatístico de denúncias,tramitação e resultados. 4.5. Observação controlada e induzida de processos em

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tramitação no Foro do Recife). 5. A atuação da sociedade no controle externo dojudiciário. 6. O judiciário e o controle interno das práticas extra-dogmáticas. 7.Conclusão: a ineficiência do procedimento jurídico brasileiro na estruturação dogmáticado direito positivo. 8. Bibliografia”.

4. Fontes de pesquisa jurídica.

Certamente as principais fontes de pesquisa em direito são os livros e artigosespecializados. Os juristas brasileiros costumam usar mais livros e manuais do queartigos, o que contraria as tendências mais modernas, quando tempo é escasso e precioso.Em uma área como física, por exemplo, os livros são dirigidos aos iniciantes e osiniciados concentram-se em artigos menores e mais objetivos.

Quanto mais específicas as fontes bibliográficas, melhor, devendo-se eliminar asobras genéricas que nada têm a ver com o tema e aquelas básicas que são de leituraobrigatória para formação na área, a não ser se especialmente analisadas no texto.

Chama atenção que os juristas, cuja atividade é essencialmente prática, pouco sereferem a legislação, jurisprudência e casos práticos quando publicam trabalhosdoutrinários. Essas referências dão maior peso a uma teoria, além de a tornarem maisclara e eficiente no trato com os problemas, conforme já mencionado. Se o trabalhodogmático nas lides dos profissionais do direito “prático” pouco tem de científico, elecertamente é um objeto de todo interesse para a perspectiva científica que deve ter apesquisa jurídica.

Certos temas, por suas características ou novidade, têm nos artigos e reportagensda imprensa uma fonte de pesquisa importante. O pesquisador não deve ter pejo de referi-los. Mas óbvio que, por sua própria pretensão limitada, tais fontes não têm a mesmadignidade de artigos especializados, por exemplo. Claro que pode haver artigos de jornaissuperiores a artigos de revistas especializadas, sobretudo se o controle de qualidadedestas deixa a desejar, misturando níveis quilometricamente distantes, como é quaseregra unânime no Brasil. Mais aconselhável é, portanto, observar cada referênciaconcreta.

A consulta à bibliografia estrangeira nunca é prejudicial e é, no mais das vezes,indispensável. As fontes são tão importantes que a escolha do próprio tema precisaconsiderar a acessibilidade delas; de nada adianta um tema genial se não há comoinformar-se a respeito dele. A leitura de línguas estrangeiras amplia em proporçãogeométrica as possibilidades de obtenção de informações.

A ficha de leitura é uma das formas mais eficientes de consulta às fontes. Com elao pesquisador consegue ter disponível um maior número de informações quando daredação dos textos, sem que precise a todo momento recorrer a livros, códigos,repertórios de jurisprudência etc. Com a vantagem adicional de ter como fonte pararedação de seu texto final um texto que já foi redigido pelo próprio autor, desde que aficha não se limite a transcrever ipsis litteris o conteúdo da fonte, o que equivaleria ao

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trabalho de grifar trechos dos textos consultados; a ficha de leitura será mais eficiente sejá expressar o conteúdo das fontes nos termos e na perspectiva do pesquisador.

Uma regra geral importante é atentar para a necessidade de referirespecificamente, no decorrer do texto, tudo aquilo que aparecer listado na bibliografia. Evice-versa. Conforme já sugerido, não se devem listar obras de leitura obrigatória oufontes que, embora tenham sido importantes na formação do pesquisador, pouco ou nadatenham a ver com a efetiva elaboração daquela pesquisa e não apareçam diretamentereferidas nos rodapés.

Fontes não-bibliográficas de pesquisa, tão ao gosto dos demais estudiosos dosfenômenos sociais, não vêm sendo utilizadas pelos juristas como seria de desejar:questionários, entrevistas, amostragens estatísticas, dentre outros métodos, desde quecorretamente conduzidos, só trarão conseqüências benéficas à credibilidade de umapesquisa jurídica. Até mesmo relatos provenientes de observações pessoais quase nuncasão aproveitados, perdendo-se por vezes a rica experiência que juízes, advogados,procuradores, promotores que querem participar das discussões científicas têm a relatar.

Outro meio importante de acesso a fontes de pesquisa jurídica são as redes decomputação, eficientes para consulta a bibliotecas, legislação, jurisprudência e a imensagama de informações que possibilita. O mais importante nessas redes é que as regiõesgeográficas diminuem sua importância, difundindo-se a informação a pesquisadores deregiões distantes dos grandes centros, outrora monopolizadores das fontes. Isto éfundamental para o pesquisador brasileiro, a quem o debate científico quase semprechega com atraso. Com as redes computacionais, desde que domine alguma línguaestrangeira mais universal, qualquer pessoa pode comunicar-se e acessar de imediatofontes antes indisponíveis.

6. Redação do trabalho científico.

Como forma de linguagem que é, ao trabalho científico aplicam-se, em princípio,as mesmas regras do bem redigir: clareza, concisão, objetividade etc. Cada capítulo devecuidar de um tema, dentro deles cada subitem tem um assunto específico, cada parágrafoprecisa expressar uma idéia, tudo isto em função da unidade e coerência internas quanto atítulos e subtítulos, para que não se repita em uma parte o que já foi dito em outra,atentando rigidamente para as relações contém e está contido etc.

A clareza é fundamental. E o trabalho tem que partir de um suporte deconhecimentos que o leitor divida com o autor. Se o leitor que o autor tem em mente éiniciante, o trabalho deve partir de bases genéricas, senso comum sobre o direito; se oleitor é especializado, o autor pode começar mais especificamente. Mas a regra é amesma: começar mostrando ao leitor o ponto de partida que se supõe ser dominado porele. Tudo isto levando também em conta o espaço disponível: trazer a novidade comclareza, sem ser repetitivo ou óbvio. É inútil escrever para si mesmo ou achar que o leitorsabe tudo o que o autor sabe, pois aí tem-se o dilema: quem domina os pressupostos dotema não precisa ler o texto do autor, pois ele nada acrescenta; quem não os domina,

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simplesmente não compreende patavina do que se diz no trabalho. Ambas as opçõesdeixam a desejar.

Usar gráficos, fórmulas, tabelas e assemelhados pode ser um recurso muitoefetivo. Mas é preciso cuidado com aqueles que, muito comumente, mais tornamininteligível o que se quer explicar.

Evidentemente a linguagem discursiva não é tida como a única forma decomunicação. Os hippies tentaram comunicar-se pelos olhos e coração e o apelo dasexperiências telepáticas, cinéticas, holísticas demonstram tal convicção. Mas à linguagemcientífica, descritiva, só resta o discurso, com pretensões de racionalidade, deentendimento universal, por assim dizer.

O texto transcrito a seguir, efetivamente publicado6, é um exagero dos defeitosque fizeram com que se generalizasse a convicção de que a filosofia e a teoria geral dodireito, assim como muito da teoria dogmática, são puro palavrório. Mas tais problemasde redação são reais na área jurídica e vale a pena transcrever a aludida peça.

“Direito: uma percepção de infinito. A reflexão filosófica situa o Direito nadimensão infinita ao enfocar o sentido do termo e o modo pelo qual o seu significado foipercebido. Assim é que a evidência detectora viu a latitude e a profundidade ôntica destarealidade ao divisá-la no rumo impetuoso e solene da sua finalidade, o que demonstra aausência absoluta de qualquer limite, tanto na sua percepção como no ente percebido.

A direção e a dimensão deste raciocínio explicitam e indicam, objetivamente, aintrinsidade qualitativa, quer seja do objeto da percepção, quer seja do sujeito perceptor.A direção aponta o fim bem como o método de atingi-lo; a dimensão estabelece ainfinitude desse fim. Logo, o Direito é o caminho infinito ao encontro do infinito. Aqualidade deste caminho está sentida e impressa nele mesmo, e isto se diga, igualmente,do seu perceptor.

O Direito - orientação iluminada - espelha em suas propriedades a qualidadeinfinita do seu escopo, bem como do sujeito deste fito, quer dizer, o fim do Direito setraduz na sua propriedade de conduzir o homem ao seu objetivo (onde se coloca, originale positivamente (,) o caráter educativo da pena).

Ora, se somente o infinito chega ao infinito, o Direito se compreende napercepção infinita do próprio infinito em que a ilimitação ôntica determinante dessapercepção estabelece a própria incomensurabilidade do ente percebido.

A infinitude (d)o ser do Direito como evidência racional encerra a propriedadequalificada e qualitativa do próprio homem, quer dizer, como realidade racional o Direitose caracteriza pela racionalidade mesma. Neste caso, é uma nítida percepção de infinito,porque foi percebido pela propriedade infinita do homem: a razão.”

Mas não só de textos esdrúxulos dos filósofos, grandes ou não, vive aincompreensibilidade. A primeira parte do artigo 58 do Código Civil define o conceito de“coisa principal”: “Principal é a coisa que existe sobre si, abstrata ou concretamente”7.

6 Artigo assinado no Jornal Gazeta do Povo. Curitiba: sábado, 6 de setembro de 1997, 6a. página.7 Código Civil (Lei n. 3.071 de 1.1.1916). São Paulo: Saraiva, 1997.

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Muitos outros exemplos poderiam ser pinçados, mostrando como a vigilância em prol daclareza precisa ser permanente e incansável.

6. Formas de referências às fontes utilizadas.

A Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) tem muita razão aoestabelecer aquelas regras que provocam risos nos juristas mais antiquados, ainda quehaja alguns exageros que em nada contribuem. Mas é fora de dúvida que a grandecortesia do cientista ao seu auditório é fornecer os meios possíveis para repetição detodos os seus passos. O leitor tem todo fundamento para desconfiar do autor que se referea uma obra sem especificá-la, sem referir-se o mais exatamente possível ao trecho sobexame. Diógenes Laércio e Kant puderam dar-se aos luxos da economia e da imprecisãode referências; no mundo moderno, contudo, o número e a variedade dos envolvidos nodebate científico exigem mais.

Além desta justificativa metodológico-científica, o rigor formal é eficientepragmaticamente, sobretudo com a edição de textos por computadores. Um exemplo: dostrabalhos selecionados para publicação a partir dos Anais do XVII Congresso Mundial daAssociação Internacional de Filosofia Jurídica e Social, realizado em Bolonha, no verãode 1995, exigiam-se detalhes de forma centimétricos, sob pena de exclusão. É que assimsalva-se tempo, eliminam-se custos e diminuem-se margens de erro no imenso trabalhoenvolvido em digitar ou mesmo uniformizar dezenas de artigos impressos ou formatadosdiferentemente, entregues ao risco da criatividade gráfica dos diversos autores.

Mas mesmo para quem vai redigir uma tarefa escolar, sem ambições maiores,alguns cuidados formais são imprescindíveis. O mais básico deles é a referência às fontesutilizadas.

Um critério genérico é que as referências, qualquer que seja o sistema escolhido,não obriguem o leitor interessado a ser constantemente remetido a outras partes dotrabalho. Assim, pior do que notas e referências ao final do livro só se elas estiverem aofinal de cada parte ou capítulo.

Há dois sistemas básicos, ambos úteis, se corretamente utilizados, ainda que osjuristas brasileiros não lhes tenham dado devida atenção. O chamado sistema completoé o mais cômodo para o leitor - desde que as referências venham mesmo ao pé da páginae não ao final do livro ou, pior ainda, dos capítulos - posto que todos os dados das fontesestão a qualquer tempo disponíveis. Para ver como ele funciona, observe-se a forma dosrodapés e das sugestões bibliográficas ao final deste trabalho. O pesquisador pode optarentre apor apenas a inicial do primeiro ou dos dois primeiros nomes do autor ou colocá-los por extenso, ainda que seja preferível esta última hipótese. Em se tratando de obra dediversos autores, há várias possibilidades: 1. Quando os autores são em pequeno número,três ou quatro, é aconselhável citá-los todos; 2. Se há muitos autores, pode-se citar onome do primeiro, seguido da expressão et allii (e outros), mas talvez assim destaque-se

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indevidamente o nome do mesmo, daí porque Umberto Eco sugere o uso da sigla AAVV(autores vários)8, que tem a vantagem de colocar todos os autores em um mesmo plano;3. Se a obra é coletiva mas com um ou mais organizadores, a referência deve vir emnome destes, seguidos da abreviatura “orgs.” entre parênteses.

Existem os dados indispensáveis e dispensáveis nas referências. Na primeiracategoria, em caso de livros, estão autor, título da obra (que deve vir em destaque - emnegrito ou itálico), cidade, editora, ano de publicação e página ou páginas específicasreferidas no caso. Quando se tratar de artigos de revistas ou capítulos de livros, sãoindispensáveis o título do texto (entre aspas ou não), o título do veículo em que a obra seinsere (em destaque), referências deste veículo (fascículo, número, anos de existência -quando houver - em suma, como ele se apresenta para identificação), páginas de início efim do texto, além de página ou páginas específicas referidas ali. Dispensáveis, porémúteis e assim desejáveis, são o tradutor, a edição, a coleção em que a obra se insere(quando houver, é claro), o número de páginas da obra etc. A opção do pesquisador ficabasicamente entre dar comodidade ao leitor ou economizar espaço. Na listagembibliográfica, obviamente, dispensa-se a página específica referida.

E é justamente pelo critério da economia de espaço que cresce a adesão ao sistemaautor-data. Aqui, as referências podem vir no rodapé ou mesmo no próprio corpo dotexto: o nome do autor é seguido de vírgula, do ano de publicação da obra, de dois pontose da página ou páginas específicas consultadas (Saldanha, 1982: 68). Os dados completosda referência estarão na listagem das fontes, sem que seja necessário referi-los a cadaoportunidade. A única diferença na forma é que o ano de publicação, na listagembibliográfica, deve aparecer logo depois do nome do autor, entre parênteses, já que é oano, além do nome, que individualiza a referência feita ao longo do texto. Se opesquisador tiver consultado mais de uma obra de um mesmo autor, publicadas nomesmo ano, a diferenciação deve ser feita através de letras minúsculas colocadas logoapós o ano. Caso haja mais de um autor com o mesmo sobrenome, deve-se recorrer àsiniciais do primeiro nome; se ainda ainda assim houver confusão, às iniciais do segundo eassim por diante. Colocar os primeiros nomes por extenso no corpo do texto não é usualneste sistema, posto que seu critério-guia é a economia de espaço. Na listagembibliográfica, porém, é desejável.

Note-se que o sistema autor-data não afasta necessariamente os rodapés, ainda queelimine boa parte deles, aqueles simplesmente referenciais. Mas há os rodapésexplicativos, os quais não podem vir entre parênteses no corpo do texto.

A listagem bibliográfica final (bibliografia) é dispensável quando se optar pelosistema completo e se tratar de texto relativamente curto e com poucas referências, comoé o caso deste aqui.

Mas a norma formal básica é uma só, além daquele “critério material” jámencionado, o de possibilitar ao leitor refazer os passos da pesquisa: a uniformidade. Opesquisador deve escolher seu próprio sistema de listagem de fontes e estabelecer com oleitor um código de comunicação o mais possívelmente objetivo e inequívoco.

8 Umberto Eco: Como se Faz uma Tese em Ciências Humanas. Trad. Ana Falcão Bastos e Luís Leitão,prefácio de Hamilton Costa. Lisboa: Editorial Presença, 1977, pp. 86-87.

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A numeração das referências deve ser contínua, por capítulo ou ao longo de todoo trabalho, com preferência para esta, pois individualiza cada referência, sem precisarcitar o capítulo. Embora isto pareça trivial, muitos pesquisadores iniciantes preferemrecomeçar a numeração a cada página, o que é inadmissível.

Idem significa o mesmo autor, ibidem significa na mesma obra; da mesma formaque op. cit. (obra citada), vêm sendo pouco usados, sobretudo porque podem dificultar oacesso do leitor à informação. Só devem ser usados quando a obra que indicam teve suasreferências completas discriminadas imediatamente antes, por exemplo: na nota número12 o livro foi referido; se as notas 13 e 14 se referem à mesma fonte, as expressões acimasão palatáveis. Mas se as notas seguintes referem-se a outras obras, como é comumacontecer, e a obra referida na nota 12 volta a aparecer lá na frente, digamos, na nota 32,o leitor dificilmente achará as referências necessárias quando se defrontar com idem ouibidem, principalmente se entre elas há referências a várias outras obras, todas lançandomão das mesmas expressões, por sua vez. É confuso.

Para evitar tais dificuldades, alguns autores9 repetem o nome do autoranteriormente citado e colocam entre parênteses o número da nota em que as referênciascompletas daquela obra primeiro apareceram. A vantagem sobre ibidem ou op. cit. éóbvia, pois o leitor saberá exatamente onde encontrar as referências completas, quandodelas precisar. Mas se o número de referências é muito grande, o leitor terá algumtrabalho.

No sistema autor-data, como as referências se repetem tantas vezes quantasnecessárias, as expressões idem, ibidem e op. cit. não são utilizadas.

Mas as expressões latinas apud, (citado por, conforme) e passim (aqui e ali)servem para os dois sistemas. A citação apud cabe quando o autor que se cita não foidiretamente consultado mas a informação chegou através de um outro autor. Deve serusada com toda parcimônia, pois não se trata de fonte bibliográfica primária, e apenasquando a obra que se cita é de difícil acesso; não fica bem citar Pontes de Miranda apudLourival Vilanova, pois a fonte que se quer pode ser sem dificuldade consultadadiretamente. A expressão passim é usada quando o tema abordado está em tantas páginasda obra-fonte que o pesquisador não se dispõe a enumerá-las. É um tipo de referência queimplica responsabilidade de ter consultado toda a obra citada e que a mesma estejarealmente imbricada com o assunto sob exame. Sempre é mais exato citar página porpágina.

A citação ipsis literis, aquela que transcreve literalmente um enunciado da fonte,também é utilizada independentemente do sistema de referência que se escolha. Deve serda mesma maneira usada com economia, quando o pesquisador considere que a fontechegou a uma formulação irretocável, exemplar para algum argumento, para analisá-laespecificamente etc.

Quem escreve um trabalho sempre se pergunta a quantidade de referências quedeve fazer. Esta questão é impossível de ser precisamente respondida, devendo, como

9 Como Robert Alexy: “Probleme der Diskurstheorie”, in Zeitschrift für philosophische Forschung, Band43, 1989, pp. 81-93, ou a tradução brasileira: “Problemas da Teoria do Discurso”, in Anuário do Mestradoda Faculdade de Direito do Recife n° 5. Recife: ed. UFPE, 1992, pp. 87-105.

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sempre, prevalecer o contexto e o bom senso. Talvez, à guisa de mero palpite, umtrabalho jurídico exija em média entre uma referência a cada três páginas e trêsreferências a cada página.

Ao organizar a bibliografia ao final do texto, o pesquisador deve também atentarpara a quantidade de fontes. Em trabalhos mais alentados, esperam-se mais obras nalistagem bibliográfica, é claro. Se forem muitas, é aconselhável dividi-las, sempre sob ocritério de facilitar o trabalho de reconstrução do leitor: livros, artigos, legislação,jurisprudência, redes de computação e outras espécies de documentos. Se o trabalho temdez laudas, por outro lado, devem-se referir apenas as fontes mais importantes.

Finalmente, uma palavra sobre a forma “física” do trabalho, sobre como ele deveapresentar-se no papel. Se o critério básico para a informação do leitor é a referência aomaior número de dados possível para localização da fonte, o critério básico naformatação, assim como dito para a escolha dos métodos de citação, precisa ser auniformidade. Quase nunca o trabalho é escrito em um só fôlego e é comum o empregode formas diferentes ao longo do mesmo texto, o que não é bom. Para evitar isto osprogramas editores de textos dispõem das “makros”. Mas o melhor é de todo jeito prestaratenção à formatação: se o primeiro item está em algarismo arábico, o mesmo deveocorrer com todos; o espaço dos títulos e subtítulos deve ser idêntico a cada um deles,assim como deve ser uniforme toda sorte de espaços e recuos escolhidos; é ideal evitar a“obra de arte” gráfica e não lançar mão de todos os tipos, formas e tamanhos oferecidospelo editor de texto do computador. Sempre é melhor sobriedade e comedimento.

Como sugestão de uniformidade, podem-se reservar as aspas para as citações ipsisliteris, ironias e títulos; o negrito, para os trechos que pretende-se sejam destacados,enfatizados no texto; e o itálico pode ficar para as expressões estrangeiras. Mas talescolha é relativa e o importante é, como dito, a uniformidade.

7. Sugestões bibliográficas.

Conforme esta epígrafe, não se trata da bibliografia utilizada para redação dopresente trabalho, a qual se encontra listada nos rodapés do mesmo, mas sim de sugestõespara quem deseja aprofundar-se um pouco mais na metodologia da pesquisa geral ejurídica. Artigos sobre o tema são raros, daí porque listamos apenas livros.

. ACKOFF, Russel: Planejamento de Pesquisa Social. São Paulo: Herder-EDUSP, 1967.

. ALMEIDA, Maria Lúcia de: Como Elaborar Monografias. Belém: CEJUP, 1991.

. ANDRADE, Maria Margarida de: Introdução à Metodologia do Trabalho Científico -Elaboração de Trabalhos na Graduação. São Paulo: Atlas, 1993.

. BARBOSA Filho, Manuel: Introdução à Pesquisa - Métodos, Técnicas e Instrumentos.Rio de Janeiro: LTC, 1980.

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. BARROS, Aidil de Jesus: Projeto de Pesquisa - Propostas Metodológicas. Petrópolis:Vozes, 1990.

. BASTOS, Lília da Rocha, PAIXÃO, Lyra e FERNANDES, Lucia Monteiro: Manualpara a Elaboração de Projetos e Relatórios de Pesquisa, Teses e Dissertações. Rio deJaneiro: Zahar Editores - UFRJ, 1982.

CAMPESTRINI, Hildebrando: Como Redigir Ementas. São Paulo: Saraiva, 1994.

. CARRAHER, David: Senso Crítico do Dia-a-Dia das Ciências Humanas. São Paulo:Pioneira, 1983.

. CARVALHO, Maria Cecília de: Construindo o Saber - Técnicas de MetodologiaCientífica. Campinas: Papirus, 1988.

. CASTRO, Cláudio de Moura: A Prática de Pesquisa. São Paulo: McGraw Hill doBrasil, 1977.

. CERVO, Amado e BERVIAN, Paulo: Metodologia Científica. São Paulo: McGraw Hilldo Brasil, 1978.

. DEMO, Pedro: Metodologia Científica em Ciências Sociais. São Paulo: Atlas, 1981.

. ECO, Umberto: Como se Faz uma Tese em Ciências Humanas. Trad. Ana Falcão Bastose Luís Leitão, prefácio de Hamilton Costa. Lisboa: Editorial Presença, 1977.

. EMERENCIANO, Maria do Socorro Jordão: Técnicas de Estudo. Belo Horizonte:Interlivros, 1977.

. ESPÍRITO SANTO, Alexandre do: Delineamentos da Metodologia Científica. SãoPaulo: Loyola, 1992.

. FERREIRA SOBRINHO, José Wilson: Metodologia do Ensino Jurídico e Avaliação emDireito. Porto Alegre: Fabris, 1997.

. FERREIRA SOBRINHO, José Wilson: Pesquisa em Direito e Redação de MonografiaJurídica. Porto Alegre: Fabris, 1997.

. GAIDZINSKI, Areti e CARMINATI, Fábia: Metodologia do Trabalho Científico -Conceitos Preliminares, Estratégias e Ações, Diretrizes para a Elaboração do TrabalhoCientífico na Graduação. Criciúma: Gráfica Líder, 1995.

. GALLIANO, Alfredo Guilherme: O Método Científico - Teoria e Prática. São Paulo,Harbra, 1979.

. GIL, Antônio Carlos: Como Elaborar Projetos de Pesquisa. São Paulo: Atlas, 1991.

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. HÜHNE, Leda Miranda (org.): Metodologia Científica - Cadernos de Textos e Técnicas.Rio de Janeiro: Agir, 1992.

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. JABINE, Thomas Boyd: “O Uso de Amostragem Probabilística nas Ciências Sociais”.Boletim do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais do MEC (n. 6). Recife:IJNPS, 1957.

. KAPLAN, Abraham: A Conduta na Pesquisa - Metodologia para as Ciências doComportamento. São Paulo: EPU-EDUSP, 1975.

. KOTAIT, Ivani: Editoração Científica. São Paulo: Ática, 1981.

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. LEITE, Eduardo de Oliveira: A Monografia Jurídica. Porto Alegre: Fabris, 1985.

. MACEDO, Neusa Dias de: Metodologia de Pesquisa Bibliográfica - Tendo em Vista oTrabalho de Pesquisa. São Paulo: EDUSP, 1987.

. MANN, Peter: Métodos de Investigação Sociológica. Trad. de Octávio Alves Velho.Rio de Janeiro: Zahar, 1970.

. MANZO, Abelardo: Manual para la Preparación de Monografias - Una Guia paraPresentar Informes y Tesis. Buenos Aires: Humanitas, 1974.

. MARCONI, Marina de Andrade: Técnicas de Pesquisa - Planejamento e Execução dePesquisas. São Paulo: Atlas, 1982.

. MARTINS, Joel: Subsídio para Redação de Dissertação de Mestrado e Tese deDoutorado. São Paulo: Moraes, 1991.

. MORAES, Irany Novah: Elaboração da Pesquisa Científica. São Paulo: Atheneu, 1990.

. NEOTTI, Ana et allii: Manual de Procedimentos para Elaboração de TrabalhosCientíficos. Ponta Grossa: UEPG, 1985.

. PESSOA, Ida Brandão de Sá: Apresentação de Trabalho Acadêmico. Recife:Universitária, 1982.

. PHILLIPS, Estelle M. e PUGH, Derek S.: How to Get a PhD - A Handbook for Studentsand Their Supervisors. Buckingham - Philadelphia: Open University Press, 1995.

. POPPER, Karl: A Lógica da Pesquisa Científica. São Paulo: Cultrix, 1972.

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. RUIZ, João Álvaro: Metodologia Científica - Guia para Eficiência nos Estudos. SãoPaulo: Atlas, 1986.

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. SANTOS, Gildenir e SILVA, Arlete: Normas para Referências Bibliográficas:Conceitos Básicos (NBR-6023/ABNT-1989). Campinas: UNICAMP, 1995.

. SCHWARZMANN, Simon e CASTRO, Cláudio: Pesquisa Universitária em Questão.São Paulo: UNICAMP - Ícone, 1986.

. SELLTIZ, Claire, JAHODA, Marie, DEUTSCH, Morton e COOK, Stuart: Métodos dePesquisa nas Relações Sociais. Trad. Dante Moreira Leite. São Paulo: Herder - EDUSP,1967.

. SEVERINO, Antônio Joaquim: Metodologia do Trabalho Científico. São Paulo: Cortez,s/d.

. TARGINO, Maria das Graças: Citações Bibliográficas e Notas de Rodapé - NovaVersão. Teresina: UFPI, 1994.

. THIOLLENT, Michel: Metodologia de Pesquisa - Ação. São Paulo: Cortez, 1994.

. THOMPSON, Augusto: Manual de Orientação para Preparo de Monografia -Destinado Especialmente a Bacharelados e Iniciantes. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1991.

. VERA, Armando Asti: Metodologia da Pesquisa Científica. Trad. Maria Helena Crespoe Beatriz Magalhães. São Paulo: Globo, 1989.

. VIEIRA, Sônia: Como Escrever uma Tese. São Paulo: Pioneira, 1991.

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METODOLOGIA DA PESQUISA NOS CURSOS DE DIREITO:

UMA LEITURA CRÍTICA

Horácio Wanderlei Rodrigues **

1 INTRODUÇÃO

Este trabalho tem por objetivo demonstrar a importância da pesquisa no

contexto do processo de ensino-aprendizagem e os equívocos que se entende hoje

serem cometidos nas disciplinas de Metodologia da Pesquisa, em especial no

âmbito dos Cursos de Direito.

Para isso o texto possui três momentos distintos, destinados a: trabalhar o

tratamento dado à pesquisa no contexto da legislação educacional; expor o que são

o conhecimento e a pesquisa; e, finalmente, denunciar a insuficiência da forma como

é trabalhado nas disciplinas específicas o processo acadêmico de pesquisa.

Deve ser lido considerando que é constituído de fragmentos do que se

pretende seja o primeiro capítulo de um livro destinado a: expor a situação atual da

pesquisa nos Cursos de Direito; efetivar uma nova proposta para as disciplinas de

Metodologia da Pesquisa (nos âmbitos da graduação e da pós-graduação);

apresentar um modelo de pesquisa destinado especificamente à área de Direito; e,

também, trabalhar as questões formais dos trabalhos escolares e acadêmicos, a

partir de uma leitura pró meio ambiente das normas da ABNT.

* * Mestre e Doutor em Direito pela UFSC, instituição da qual é professor titular, lecionando na Graduação e na Pós-Graduação. É também professor convidado para cursos de Pós-Graduação em diversas IES brasileiras. Escreveu os livros “Ensino jurídico: saber e poder”, “Ensino jurídico e direito alternativo”, “Acesso à justiça no direito processual brasileiro”, “Novo currículo mínimo dos cursos jurídicos” e “Ensino do Direito no Brasil: diretrizes curriculares e avaliação das condições de ensino” (este último em conjunto com Eliane Botelho Junqueira); organizou as coletâneas “Lições alternativas de direito processual”, “Solução de controvérsias no Mercosul”, “O Direito no terceiro milênio” e “Ensino Jurídico para que(m)?”. Publicou também dezenas de artigos em coletâneas e revistas especializadas. Integrou, de 1996 a 1998, a Comissão do Exame Nacional de Cursos (“provão”) para a área de Direito. É consultor ad hoc do CNPq e das Comissões de Especialistas de Ensino de Direito da SESU/MEC e do INEP/MEC.

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2 PESQUISA NO DIREITO EDUCACIONAL BRASILEIRO

Para se começar a falar sobre a importância da pesquisa no ensino

superior, é importante situá-la no âmbito do Direito Educacional, tendo em vista que

muito de discute sobre a obrigatoriedade da pesquisa, principalmente no que se

refere às Instituições de Ensino Superior (IES) que não são Universidades.

Relativamente às Universidades não há qualquer dúvida, considerando

que a Constituição Federal estabelece expressamente:

Art. 207. As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.

Da aplicação desse dispositivo resta claro a obrigatoriedade de atividades

de pesquisa nas IES credenciadas como Universidades. E o espaço privilegiado

para sua efetivação tem sido os cursos de pós-graduação stricto sensu (mestrado e

doutorado).

No que se refere à educação superior, de forma geral (ou seja, para todas

as IES, mesmo que não sejam universidades), o tema é tratado pela Lei de

Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) da seguinte forma:

Art. 43 – A educação superior tem por finalidade:

[...]

III – incentivar o trabalho de pesquisa e investigação científica, visando o desenvolvimento da ciência e da tecnologia e da criação e difusão da cultura, e, desse modo, desenvolver o entendimento do homem e do meio em que vive;

[...]

Da leitura desse texto fica presente que a educação superior, de forma

geral (em IES credenciadas ou não como universidades), tem por finalidade

incentivar o trabalho de pesquisa e investigação científica. Ou seja, a

obrigatoriedade da pesquisa não se restringe às Universidades.

A necessidade do incentivo à pesquisa na educação superior decorre,

então, do disposto no artigo 43, inciso III, da LDB. Em nível de IES, seu Regimento e

os projetos pedagógicos de seus cursos devem estabelecer, de forma clara, como

será ele realizado. Isso significa que todo e qualquer curso superior deverá possuir

2

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atividades de pesquisa, independentemente de pertencer a Faculdade Isolada, a

Faculdades Integradas, a Centro Universitário ou a Universidade.

O que muda, de acordo com a espécie de credenciamento de cada

Instituição, é o nível de exigência, que vai da existência de programas de iniciação

científica nas IES isoladas até a exigência de programas de mestrado e doutorado

nas Universidades. A pesquisa, nesse sentido, envolve, de um lado, um princípio

educativo e, de outro, o desenvolvimento de competências e habilidades básicas

para a sua efetivação, em especial em nível da iniciação científica, e deve ser

incentivada em toda a educação superior1.

Em resumo, pode-se dizer que as IES não credenciadas como

Universidades, podem limitar-se ao seu incentivo, o que é realizável, por exemplo,

através da manutenção de programas de iniciação científica, com bolsas para

alunos2 e atribuição de carga horária para os docentes3. Já as Universidades tem o

dever de manter, de forma indissociável, atividades de ensino de ensino, pesquisa e

extensão. Relativamente à pesquisa, essa exigência é, regra geral, cumprida através

da manutenção de cursos de pós-graduação stricto sensu, sendo que nas áreas que

elas não possuírem esses programas, a pesquisa deverá ser mantida através de

outros instrumentos.

O processo educacional, para ser plenamente eficaz em sua dinâmica

formativa, deve abranger o ensino, a pesquisa e a extensão – restringindo-se a

atividades exclusivamente de ensino, torna-o meramente informativo. O sentido que

se deve emprestar a essa exigência não deve ser apenas formal (por que a lei

exige), mas sim material, implementando um processo que passe necessariamente

pela produção de novos conhecimentos e pela inserção de seus futuros operadores

na própria realidade política, econômica, social e cultural do país e, em especial, da

sua região. As determinações constantes da LDB devem ser cumpridas; nem

mesmo o CNE pode desconsiderá-las, tendo em vista o princípio da hierarquia das

leis. Cabe às IES serem criativas no cumprimento das exigências, elaborarando

1 É importante ressaltar que a LDB se refere à educação superior e não à ensino superior, exatamente porque nesse nível as exigências não se restringem ao ensino.

2 Um programa desse tipo tem de respeitar as normas constitucionais em termos de isonomia, o que implica em estabelecer critérios objetivos e claros de escolha dos alunos, sendo recomendável a utilização de seleção pública por prova específica ou por análise de projeto (como ocorre no PIBIC/CNPq).

3 Relativamente ao corpo docente o incentivo pode ocorrer através da concessão de bolsa, do pagamento de carga horária especificamente destinada ao desenvolvimento do projeto ou, em se tratando de professores em tempo parcial ou integral, de destinação de parte da carga horária atinente ao regime de trabalho especificamente para essa atividade.

3

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modelos e programas inovadores, o que é plenamente possível frente aos princípios

de liberdade e pluralismo, como inerentes ao processo de ensino-aprendizagem4 e,

portanto, à sua organização por parte das instituições, tendo por base diretrizes

curriculares razoavelmente flexíveis5.

Relativamente aos cursos de pós-graduação lato sensu, a Resolução

CNE/CES n.º 1/2001, ao prever para eles, em seu artigo 10, a exigência de

monografia ou trabalho de conclusão, inclui a pesquisa como sua atividade

obrigatória. Desnecessário se faz qualquer referência aos programas de mestrado e

doutorado (pós-graduação stricto sensu), cuja essência está exatamente em

estarem voltados à formação de docentes e pesquisadores.

No que diz respeito aos cursos de graduação, interessa aqui o estudo

específico do Bacharelado em Direito. Para ele as novas diretrizes curriculares,

presentes na Resolução CNE/CES n.º 9/2004, estabelecem, em seu artigo 10, a

obrigatoriedade do trabalho de curso. Essas mesmas diretrizes, em seu artigo 2º

estabelecem:

Art. 2º [...].

§ 1º O Projeto Pedagógico do curso, além da clara concepção do curso de Direito, com suas peculiaridades, seu currículo pleno e sua operacionalização, abrangerá, sem prejuízo de outros, os seguintes elementos estruturais:

[...]

VIII - incentivo à pesquisa e à extensão, como necessário prolongamento da atividade de ensino e como instrumento para a iniciação científica;

[...]

XI - inclusão obrigatória do Trabalho de Curso.

Ainda nas diretrizes curriculares dos cursos de graduação em Direito,

constantes da Resolução CNE/CES n.º 9/2004, encontram-se os seguintes

dispositivos, relativamente ao perfil que se espera de seus egressos e às

habilidades e competências que devem possuir:

Art. 3º. O curso de graduação em Direito deverá assegurar, no perfil do graduando, sólida formação geral, humanística e axiológica, capacidade de análise, domínio de conceitos e da terminologia jurídica, adequada argumentação, interpretação e valorização dos fenômenos jurídicos e

4 Sobre esse tema ver: RODRIGUES, Horácio Wanderlei. A flexibilidade e o direito educacional brasileiro. Revista

@prender, ed. 7, a. 2, n. 5, set./out. 2002, p. 26-29.5 Diretrizes curriculares que contenham normas definidoras de determinadas formas de pesquisa e extensão, como únicas

obrigatórias e capazes de atender à exigência contida na LDB, são ilegais, pois ferem os princípios de liberdade e pluralismo, como inerentes ao processo de ensino-aprendizagem – exemplo dessa ilegalidade é a exigência, em nível de diretrizes curriculares, da monografia final como forma exclusiva de trabalho de conclusão de curso, desrespeitando a autonomia da IES para a construção de seus projetos pedagógicos.

4

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sociais, aliada a uma postura reflexiva e de visão crítica que fomente a capacidade e a aptidão para a aprendizagem autônoma e dinâmica, indispensável ao exercício da Ciência do Direito, da prestação da justiça e do desenvolvimento da cidadania.

Art. 4º. O curso de graduação em Direito deverá possibilitar a formação profissional que revele, pelo menos, as seguintes habilidades e competências:

I - leitura, compreensão e elaboração de textos, atos e documentos jurídicos ou normativos, com a devida utilização das normas técnico-jurídicas;

II - interpretação e aplicação do Direito;

III - pesquisa e utilização da legislação, da jurisprudência, da doutrina e de outras fontes do Direito;

IV - adequada atuação técnico-jurídica, em diferentes instâncias, administrativas ou judiciais, com a devida utilização de processos, atos e procedimentos;

V - correta utilização da terminologia jurídica ou da Ciência do Direito;

VI - utilização de raciocínio jurídico, de argumentação, de persuasão e de reflexão crítica;

VII - julgamento e tomada de decisões; e,

VIII - domínio de tecnologias e métodos para permanente compreensão e aplicação do Direito. (grifo nosso).

Os textos legais acima mencionados e transcritos positivam a exigência

do incentivo à pesquisa em todas as etapas do ensino superior e, no caso específico

dos Cursos de Direito, institucionalizam, através das diretrizes curriculares, a

necessidade da capacitação obrigatória de seus egressos para realizarem-na (art.

4º, inc. III). A enumeração de habilidades e competências trazida pelas diretrizes

curriculares demonstra a opção por um projeto pedagógico híbrido, estruturado por

competências e conteúdos, em substituição ao projeto pedagógico tradicional,

estruturado apenas por conteúdos6. E muitas das competências e habilidades

propostas para o Bacharelado em Direito apenas podem ser desenvolvidas de forma

adequada em um processo de ensino-aprendizagem em que a pesquisa seja um

instrumento do processo como um todo e não um apêndice, alocado em um único

espaço, a Monografia Final ou o Trabalho de Conclusão de Curso. É nesse contexto

que aparece e ganha importância a Metodologia da Pesquisa, como disciplina

institucionalizada.

Entretanto, o que se percebe quando da leitura de muitos manuais de

Metodologia da Pesquisa e de muitos programas dessas disciplinas, em todos os

graus do ensino superior, é que os conteúdos, habilidades e competências

6 Sobre esse tema ver: RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Pensando do ensino do Direito no século XXI: diretrizes curriculares, projeto pedagógico e outras questões pertinentes. Florianópolis: Fund. Boiteux, 2005.

5

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trabalhados são apenas parcialmente adequados aos objetivos mais amplos do

processo educacional. Na prática é comum perceber-se a redução da Metodologia

da Pesquisa à normalização do trabalho acadêmico: o que se ensina é como fazer

um projeto de pesquisa, como formatar o trabalho final (relatório, artigo, monografia,

TCC, dissertação ou tese) e apresentá-lo segundo as normas da ABNT. Isso tudo é

importante, mas com absoluta certeza é também muito pouco.7

Dentro de um processo de ensino-aprendizagem que se deseja seja

crítico e criativo, são as atividades de pesquisa fundamentais para o trabalho

pedagógico de interação entre teoria e prática: sem pesquisa não há análise

adequada das práticas vigentes e nem novo conhecimento que seja capaz de

modificá-las.

Para que isso ocorra a Metodologia da Pesquisa, enquanto disciplina, no

âmbito do ensino superior, deve estar voltada a desenvolver as competências

inerentes ao processo de produção de conhecimento, o que não se reduz ou

confunde com as habilidades de elaborar projetos e construir relatórios formais,

cujos conteúdos regra geral em nada contribuem para a área e, muitas vezes,

sequer para a formação do próprio acadêmico.

3 DA CONSTITUIÇÃO DO SENSO COMUM À CONSTRUÇÃO DO

CONHECIMENTO CIENTÍFICO

Para se falar da pesquisa no âmbito do ensino superior, é necessário

ainda que se considere que há diferentes níveis de conhecimento e que nem todo

conhecimento deriva de atividade de pesquisa. Também que o fato de o

conhecimento ser ou não ser oriundo de pesquisa científica não lhe atribuí qualidade

inferior ou superior8. As artes em geral constituem elementos fundamentais para o

7 Em grande parte essa situação decorre de tais disciplinas terem sido entregues, na maioria das instituições, para os departamentos de biblioteconomia. Embora o grande respeito que merecem esses profissionais, a sua tendência é transformar a metodologia em normalização do trabalho acadêmico. Na forma como é pensada aqui a Metodologia da Pesquisa, como estratégia do processo de ensino-aprendizagem, é absolutamente indispensável para ministrá-la que se possua formação docente e epistemológica. Especificamente nos Cursos de Direito, essa realidade se deve também à ausência de uma tradição de pesquisa e ao privilegiamento que os aspectos formais regra geral recebem dos profissionais da área jurídica.

8 Ver FEYERABEND, Paul. Contra o método. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977.

6

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ser humano; a elas estão vinculadas em grande parte as atividades de lazer e, como

conseqüência, a alegria e a felicidade. Também algumas áreas técnicas trabalham

com conhecimentos fundamentais para o ser humano, mas que não são produzidos

por pesquisa científica, como é o caso do Direito; não se pode, em sã consciência,

dizer que a legislação e a jurisprudência são construções científicas, embora

possam ser construções derivadas de atividade de pesquisa. Nesse sentido é

importante iniciar verificando quais são as principais espécies de conhecimento.

Considera-se senso comum aquele conhecimento que, regra geral, todos

possuem. É passado de geração em geração e não possui, necessariamente,

comprovação científica; tampouco deriva de atividade de pesquisa, embora

eventualmente essa espécie de atividade possa ter lhe dado origem. A aquisição do

senso comum se dá através dos diversos processos e instituições de socialização e

reprodução cultural, dentre os quais se pode destacar a família, a religião e os meios

de comunicação.

Por conhecimento técnico-profissional entende-se aqui o corpo de

conhecimentos necessários ao desenvolvimento de uma determinada atividade

profissional. Pode ser oriundo da pesquisa científica, como também pode não o ser.

Há muitos conhecimentos técnico-profissionais que possuem origem empírica e que

são passados de geração em geração, como a produção de ferramentas e as

técnicas agrícolas mais simples. Também é perfeitamente possível ter acesso ou

produzir conhecimento técnico-profissional através da pesquisa; mas essa pesquisa

não é necessariamente científica. Na área de Direito, quando um profissional faz um

levantamento doutrinário ou jurisprudencial para embasar os argumentos a favor da

tese jurídica a ser utilizada está fazendo pesquisa, mas não pesquisa científica.

Utiliza-se neste texto a categoria conhecimento escolar-acadêmico para

designar o conjunto de conhecimentos que são transmitidos e produzidos no âmbito

educacional. Esses conhecimentos podem possuir ou não possuir natureza

científica. Na área das artes o conhecimento transmitido e produzido não é, muitas

vezes, científico9; na área do Direito, não se pode dizer que a dogmática jurídica e a

jurisprudência sejam conhecimento científico. Então quando se faz pesquisa no

ensino superior, essa pesquisa pode ser de naturezas diversas, dependendo da

área do Curso. No caso do Direito pode-se realizar pesquisa técnico-profissional

9 Música, escultura, literatura, pintura, etc. não se realizam, necessariamente, por critérios científicos.

7

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(busca de argumentos), pesquisa escolar-acadêmica (levantamento, organização e

sistematização do conhecimento acumulado) ou pesquisa científica (produção de

conhecimento novo).

Talvez seja menos comum falar-se em conhecimento intuitivo, em

especial em um trabalho construído na e para a academia. Mas não se pode omiti-

lo. Estudos contemporâneos reforçam a existência desse sexto sentido do ser

humano. A intuição faz sentir, perceber que algo existe ou não existe, é ou não é de

uma determinada forma. Essa percepção não se dá através dos cinco sentidos; ela

aparece como uma sensação. É importante que se aprenda e escutar essas

sensações, pois podem levar a grandes descobertas. A intuição pode ser o ponto de

partida para a pesquisa, inclusive a científica. Ou seja, a intuição oferece um

determinado caminho; mas a comprovação da sua autenticidade tem ser buscada

através de instrumentos técnicos ou científicos.

Relativamente ao conhecimento científico, era ele visto, tradicionalmente,

como o conhecimento verdadeiro sobre um determinado objeto, descoberto com a

utilização do método científico. Embora essa visão ainda seja muito forte em

algumas áreas, a visão dominante hoje no campo das ciências é a de que a principal

característica do conhecimento científico é sua testabilidade: ele tem de ser público

quanto aos resultados, às hipóteses testadas e aos métodos utilizados para sua

obtenção, de forma que a sua produção possa ser reproduzida em qualquer outro

lugar por qualquer outro cientista, sendo então confirmado ou refutado. Essa visão

da ciência se deve a Karl Popper10, para quem a verdade científica é sempre uma

verdade provisória e sua característica principal a refutabilidade. É da essência do

conhecimento científico a sua produção através da pesquisa, utilizando métodos e

técnicas adequados a cada área do conhecimento.

Há também o denominado conhecimento filosófico. A Filosofia busca

sempre conhecer o objeto de forma crítica, radical e em sua totalidade.11 Nesse

sentido, o conhecimento filosófico é aquele que busca compreender os fundamentos

de um determinado objeto cognoscível ou do próprio conhecimento sobre ele. Isso

não significa que o conhecimento filosófico encontre os fundamentos verdadeiros,

10 POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, 1972. ______. Conhecimento objetivo. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: USP; 1975. ______. A lógica das ciências sociais. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; Brasília: UnB; 1978. ______. A lógica da investigação científica. Três concepções acerca do conhecimento humano. São Paulo: Abril, 1980. (Os Pensadores). ______. Conjecturas e refutações. Brasília: UnB, s.d. p. 63-94; p. 367-77.

11 OLIVEIRA, Admardo Serafim de et. al. Introdução ao pensamento filosófico. São Paulo: Loyola, 1990.

8

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tanto que existem várias escolas filosóficas e várias explicações filosóficas para um

mesmo fenômeno. O conhecimento filosófico pode nascer em qualquer espaço,

sobre qualquer objeto e a qualquer momento. Sua essencialidade está em impedir a

dogmatização de qualquer um dos demais conhecimentos. A Filosofia é, por

essência, anti-dogmática; se se tornar dogmática, Filosofia não é.

Para encerrar é importante lembrar que todas as formas de conhecimento

podem ser transformar em conhecimento dogmático, que é aquele que se coloca

como um dogma inquestionável; como uma verdade absoluta. Um exemplo claro

dessa forma de conhecimento é o conhecimento religioso que, regra geral, não

aceita contestação. Mas não é apenas a Religião que pode ser dogmatizada: em

muitos momentos a Ciência e a Filosofia apresentam seus conhecimentos como

absolutos e definitivos, o que é a negação de suas próprias essências.

Nesse sentido, todo conhecimento deve ser visto como construção e

reconstrução, pelo ser humano, de um determinado objeto ideal, natural ou cultural.

Em razão disso, é sempre produção, não a captação contemplativa de qualquer

essência. O ser humano só conhece a realidade na medida em que a cria.

Entende-se que todo objeto do conhecimento está em constante

construção12, não estando colocado na natureza como um dado. O objeto

cognoscível é construído a partir do próprio processo de conhecimento, através do

método de abordagem utilizado, que delimita os parâmetros da realidade,

respaldado por sua construção epistemológica. Todo dado e todo objeto de análise

são construídos. Portanto toda teoria efetuada sobre eles se caracteriza por ser um

conhecimento aproximado, retificável, e não o reflexo dos fatos.

A pesquisa é hoje a forma privilegiada de produção de conhecimento.

Inclui a busca do e o acesso ao conhecimento já produzido, sua organização e

sistematização e, quando se tratar de pesquisa científica, a produção de

conhecimento novo. A pesquisa se constitui, portanto, em um processo específico

de apropriação e de produção do conhecimento, exigindo, para a sua adequada

efetivação, a aquisição de habilidades e competências próprias e a utilização de

métodos e técnicas pertinentes.

12 Sobre a questão da construção do objeto da ciência ver, de BACHELARD, Gaston, O racionalismo aplicado e A

epistemologia.

9

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4 ETAPAS DA PESQUISA COMO PROCESSO

INSTITUCIONALIZADO

A pesquisa como atividade acadêmica formal, tal qual se apresenta na

educação superior e é exigida pelos principais órgãos de fomento, pressupõe uma

estrutura seqüencial, que obedece, em termos gerais, às seguintes etapas:

10

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MOMENTO PREPARATÓRIO

(Planejamento da pesquisa)

Escolha do tema

Especificação e delimitação do tema

Formulação do problema, das hipóteses e das variáveis (quando for o caso)

Levantamento inicial de dados, documentos e bibliografia

Elaboração do projeto de pesquisa

MOMENTO OPERACIONAL

(Execução da pesquisa e estruturação das idéias)

Levantamento complementar de dados, informações, documentos e bibliografia

Análise de dados e documentos e leitura da bibliografia

Crítica dos dados, documentos e bibliografia; reflexão pessoal

MOMENTO REDACIONAL E COMUNICATIVO

(Apresentação dos resultados da pesquisa)

Redação inicial do relatório / trabalho

Revisão do relatório / trabalho

Redação definitiva do relatório / trabalho

Defesa pública do relatório / trabalho, quando for o caso

Publicação dos resultados da pesquisa

O que se percebe dentro do processo educacional contemporâneo é um

privilegiamento dos momentos inicial e final: privilegia-se o planejamento (projeto de

pesquisa) e o relatório (documento escrito final). O momento intermediário que é o

da efetivação da pesquisa em si fica abandonado.

O grande problema desse tratamento dado à Metodologia da Pesquisa é

que ele é extremamente formalista. Preocupa-se fundamentalmente com a produção

material e formal dos documentos que dão origem à pesquisa e a relatam, mas

abandonam a pesquisa em si: o processo de localização, recuperação, leitura,

compreensão, análise, interpretação, ordenação, sistematização e reelaboração do

conhecimento acumulado e de produção do conhecimento novo.

11

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E como não há preocupação com esse momento, que é aquele que

deveria ser privilegiado, na prática não se tem pesquisa no ensino superior, pelo

menos na área de Direito. O que se tem é apenas um “recorta e cola” de manuais,

que sequer deveriam ser utilizados como fonte de pesquisa, fosse ela séria.

É necessário que se veja a pesquisa como inerente ao processo

educacional, como o principal instrumento de aprendizagem no ensino superior. Isso

exige uma mudança de postura frente à disciplina, que deve ser colocada no início

do curso e possuir grande parte do seu espaço temporal destinado ao como fazer

pesquisa13, desenvolvendo as competências e habilidades relativas a esse saber

fazer e que incluem, dentre outras:

a) capacidade de localizar e selecionar as informações;

b) capacidade de ler e compreender as informações;

c) capacidade de analisar e interpretar as informações;

d) capacidade de ordenar e sistematizar as informações;

e) capacidade de, a partir das informações trabalhadas, elaborar ou

reelaborar o conhecimento respectivo;

f) capacidade de, quando se tratar de pesquisa científica (exigência dos

Programas de Doutorado) construir, a partir das informações

trabalhadas, novo conhecimento.

É preciso também, de forma diversa do pensamento cartesiano14,

entender, como propõe Edgar Morin15, que o conhecimento pertinente deve ser

produzido considerando:

a) o contexto: as informações e os dados apenas adquirem sentido

dentro de seu contexto;

13 Regra geral o aprender pressupõe o fazer, exigindo atividades práticas reais, ou seja, estratégias pedagógicas específicas.14 Conforme René Descartes (Discurso do método. São Paulo: Abril, 1979. p. 37-38. Os Pensadores.), os quatro princípios

básicos que compõe o método adequado ao conhecimento são:

“O primeiro era de jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu não conhecesse evidentemente como tal; isto é, de evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção, e de nada incluir em meus juízos que não se apresentasse tão clara e tão distintamente a meu espírito, que eu não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida.

O segundo, o de dividir.cada uma das dificuldades que eu examinasse em tantas parcelas quantas possíveis e quantas necessárias fossem para melhor resolvê-las.

O terceiro, o de conduzir por ordem os meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir, pouco a pouco, como por degraus, até o conhecimento dos mais compostos, e supondo mesmo uma certa ordem entre os que não se precedem naturalmente uns aos outros.

E o último, o de fazer em toda parte enumerações tão completas e revisões tão gerais, que eu tivesse a certeza de nada omitir.”

15 MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez; Brasília: Unesco; 2000.

12

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b) o global: as informações somente podem ser corretamente

compreendidas quando se compreende as relações entre o todo e as

partes – é preciso recompor o todo para conhecer as partes;

c) o multidimensional: o ser humano é ao mesmo tempo biológico,

psíquico, social, afetivo, racional e espiritual16; a sociedade comporta

as dimensões histórica, econômica, sociológica, religiosa, entre muitas

outras – o conhecimento pertinente deve reconhecer esse caráter

multidimensional e nele inserir esses dados;

d) o complexo: quando as diversas categorias de construção da

realidade estão interligadas, ou seja, são diferentes mas interligadas,

interativas, interdependentes, tem-se a complexidade, que é a união

entre a unidade e a multiplicidade – o conhecimento pertinente deve

enfrentar essa complexidade.

Além disso, a pesquisa, na área do Direito, precisa ser vista em suas

várias dimensões, incluindo necessariamente a pesquisa técnico-profissional. E em

todas elas, para que seja adequada, não pode ser confundida com a simples leitura

e compilação de manuais escolares e a coletânea, sem critérios, de jurisprudências.

A pesquisa do operador do Direito é uma pesquisa pragmática, com

objetivos definidos.17 Nela não se buscam confirmar hipóteses, mas sim encontrar

argumentos para sustentar a hipótese que vai ser utilizada e defendida – é pesquisa

argumentativa, não prova verdades, defende posições.

A pesquisa dos operadores do Direito é sempre comprometida com algum argumento que se pretende defender, mas é pesquisa, sim! E é essa pesquisa, principalmente essa pesquisa, que os alunos precisam aprender a fazer nas Faculdades de Direito, pois a grande maioria dos que trabalharem com Direito [...] será operador de Direito.18

Na pesquisa jurídica a hipótese é sempre confirmada, porque em Direito

não de descobre, se justifica. E isso não é pesquisa científica; mas é a pesquisa que

tem sentido para o mundo do Direito. Entretanto é exatamente aquela que não é

trabalhada nas disciplinas de Metodologia da Pesquisa.

16 Essa dimensão não consta da obra de Edgar Morin e está aqui incluída tendo em vista as posições pessoais do autor deste artigo.

17 Conforme Eliane Junqueira, na lista de discussão da Associação Brasileira de Ensino do Direito (ABEDi), durante um debate ocorrido sobre a pesquisa nos cursos de Direito, no segundo semestre de 2004.

18 Eliane Junqueira, na lista de discussão da Associação Brasileira de Ensino do Direito, durante um debate ocorrido sobre a pesquisa nos cursos de Direito, no segundo semestre de 2004.

13

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5 CONCLUSÃO

A pesquisa jurídica possui características específicas; é necessário

portanto que no Curso de Direito o estudante aprenda a realizá-la de forma

adequada. Para isso são necessários alguns passos importantes:

a) superar a idéia de que só é conhecimento pertinente o conhecimento

científico e de que somente é pesquisa a pesquisa científica;

b) superar a idéia de que o Direito é uma ciência; o Direito, como

conjunto normativo não é ciência; e é mesmo discutível que possa ser

objeto de análise científica;

c) evitar a simples transposição de modelos metodológicos de outras

áreas; é necessário adequá-los à realidade da área do Direito, bem

como buscar alternativas próprias, adequadas ao tratamento de seu

objeto específico;

d) superar a visão dominante nas disciplinas de Metodologia da

Pesquisa, que confundem pesquisa com normalização; e

e) priorizar, nessas disciplinas, o fazer pesquisa, superando a atual

limitação de seus conteúdos nas questões da elaboração de projetos e

de relatórios.

Relativamente ao Trabalho de Conclusão de Curso, é necessário

perceber que ele ocorre no momento de saída do Curso; e não deve ser esse o

momento para se aprender a fazer pesquisa, mas sim para consolidar a capacidade

de fazer pesquisa, aprendida e desenvolvida durante todo o curso. E essa

capacidade de fazer deve estar vinculada às exigências profissionais da área para

um egresso do curso de graduação.

14

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ESPAÇO UNIVERSITÁRIO

Estudo Dirigido

Roteiro didático de elaboração de projetos de pesquisa em Direito

Túlio Lima Vianna

"Toda longa caminhada começa com um primeiro passo. "

Provérbio chinês

Arecente obrigatoriedade de apresentação de monografias de final de curso como re-quisito para a conclusão do curso de gra-

duação em Direito, bem como a proliferação dos cursos de Pós-Graduação lato sensu no país, gerou uma enorme demanda por trabalhos de metodologia de pesquisa.

A grande maioria desses trabalhos, po-rém, parece dar mais ênfase às lombadas dos livros que ao seu conteúdo e não raras são as bancas examinadoras que se limitam à discussão de aspectos formais da obra - como formatação de margens, notas de rodapé, bibliografia, etc. -sem sequer tecerem considerações sobre o con-teúdo do trabalho.

Fugindo desta tendência muito em moda na academia, procuramos tratar aqui - ainda que muito sucintamente - dos principais elementos de um projeto de pesquisa que resulte não em um trabalho final burocrático - mero pré-requi-sito da conclusão do curso - mas em conclusões de real contribuição para a literatura jurídica na-cional.

O problema: o que pesquisar?

A eleição do tema da pesquisa deverá ini-ciar-se pela área do conhecimento humano na qual o aluno pretende trabalhar. Quanto mais específica for a área escolhida, mais fácil será para o pesquisador encontrar seu objeto de pes-quisa.

Assim, o aluno que deseja pesquisar em Ciências Penais deverá escolher entre Direito

Penal, Direito Processual Penal, Criminologia, etc; optando por Direito Penal, deverá escolher entre Teoria do Delito, Teoria da Pena, Execução Penal, etc. e assim sucessivamente, até delimitar a sua perspectiva de estudo.

Muitas vezes, o aluno deseja trabalhar a partir de dois ou mais ramos do conhecimento humano. Nestas hipóteses, o trabalho poderá ser multidisciplinar (análise do tema sob a perspec-tiva de dois ou mais ramos do conhecimento), interdisciplinar (análise do tema sob a perspecti-va de dois ou mais ramos do conhecimento, rela-cionando-os entre si) ou mesmo transdisciplinar (análise do tema sob a perspectiva de dois ou mais ramos do conhecimento, dando origem a um novo, distinto dos anteriores).

Selecionada(s) a(s) área(s) do conhecimento em que o aluno pretende trabalhar, deverá ele escolher um problema a ser solucionado naquela área do saber.

A pesquisa jurídica não é mera compila-ção do conhecimento adquirido por seu autor, mas envolve necessariamente a criação de solu-ções novas a serem incorporadas à doutrina naci-onal. Oportuna é a lição de Celso Albuquerque Mello:

"A meu ver existem duas categorias de juristas: os criadores de novas teorias e os sistematizadores que tentam classificar e aprofundar o trabalho dos primeiros. Contu-do, em países atrasados como o Brasil, há ain-da espaço para uma categoria, cujos integran-tes não podem ser denominados juristas, que são os 'divulgadores de Direito'. Ela existe devido à ausência de bibliotecas públicas, o preço elevado dos livros estrangeiros, bem como poucos estudantes lêem língua estran-geira."1

Na realidade, muitos dos pretensos traba-lhos científicos produzidos em nossas universi-dades não passam de manuais ou resumos da matéria objeto de estudo sem qualquer caráter inovador. Evidentemente, tais obras têm uma grande importância como material didático, mas decididamente não é esta a finalidade das teses, dissertações e monografias de final de curso, que necessariamente devem propor uma solução para um problema previamente definido.

A escolha do tema-problema deverá pau-tar-se pelo binômio interesse-capacidade pesso-al e social na resolução do problema.

Assim, quatro perguntas básicas deve-rão ser respondidas positivamente para que o tema possa ser eleito com acerto:

- Tenho interesse no problema? (curiosidade pessoal e/ou profissional em relação ao problema)

O pesquisador deve se sentir atraído pelo problema proposto. Sua curiosidade quanto ao tema de estudo pode provir de interesses pesso-ais ou profissionais. Para um policial, a pesquisa em Direito Penal pode ser atraente por sua expe-riência profissional; para um aficcionado em com-putadores, um trabalho transdisciplinar envol-vendo o Direito Penal e.a Informática será um tema irresistível.

- Sou capaz de resolver o problema? (conhe-cimento e experiência em relação ao problema)

O pesquisador deve propor um problema que tenha maior facilidade em resolver por seus conhecimentos e experiência anterior à pesquisa. Por mais que alguém se interesse por computa-dores, certamente não poderá realizar um grande trabalho em Direito Informático se não tiver o mínimo de conhecimento em Informática. Na elei-ção do problema a ser pesquisado vale a lei do

66 - Justilex - Ano II - Nº 13 - Janeiro de 2003

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mínimo esforço: o pesquisador deverá optar por temas em que seus conhecimentos prévios lhe possam ser úteis.

- Há interesse social na resolução do proble-ma? (originalidade e relevância social)

O pesquisador deve propor problemas originais, pois de nada adianta escolher um tema exaustivamente discutido na doutrina. Um pro-blema que pode ser solucionado através de uma simples pesquisa doutrinária ou jurisprudencial não é adequado para ser objeto de uma pesquisa.

Na academia são comuns "modismos" em relação aos temas de pesquisa o que, muitas ve-zes, acaba originando inúmeros trabalhos com conclusões absolutamente idênticas, nada acres-centando à literatura jurídica já existente. Por outro lado, toda pesquisa tem uma função social que não pode ser desprezada. Por mais que o proble-ma "pode o crime de adultério ser cometido pela Internet?" possa despertar curiosidade no pes-quisador, sem dúvida seu interesse social é míni-mo. A solução do problema deve ser socialmente útil.

- A sociedade em que vivo me oferece recur-sos para solucionar o problema? (bibliografia, financiamento, possibilidade de coletar dados, prazo para apresentar os resultados, etc)

O pesquisador deve analisar se dentro do contexto social em que irá pesquisar será viável alcançar a solução do problema. Se sua proposta for pesquisar o Direito Penal de Cabo Verde, deverá certificar-se se terá aces-so à legislação e a livros doutrinários daquele país. Se necessitar de verbas ou de autoriza-ções para coletar dados, deverá ter certeza de poder obtê-los.

Por fim, deverá lembrar-se de que sua pesquisa não poderá durar eternamente e portanto seu tema deverá necessariamente estar delimitado principalmente quanto ao objeto, quanto ao tempo e quanto ao espa-ço. Assim, em vez de indagar-se se "a descriminalização das drogas é viável?" melhor seria ques t ionar -se se "a descriminalização do uso de maconha é vi-ável no Brasil do início do século XXI?"2

Delimitado o tema-problema, deverá o pesquisador oferecer uma resposta provisória à sua indagação: "sim, a descriminalização do uso da maconha é perfeitamente viável no Brasil do início do século XXI".

A esta resposta provisória que é dada ao problema denomina-se hipótese e sobre ela o pesquisador irá traçar seu objetivo que, em últi-

I ma análise, será testar a veracidade ou não da I resposta previamente apresentada.

Os objetivos: para que pesquisar?

O objetivo geral da pesquisa científica é oferecer uma resposta ao problema que é o nú-cleo da investigação, testando a veracidade da hipótese de trabalho.

Os objetivos específicos da pesquisa, por outro lado, são as perguntas secundárias a que o pesquisador deverá responder, cujas respostas conjuntas levará à consecução do objetivo geral.

Tradicionalmente os objetivos - geral e específicos - vêm expressos através de verbos no infinitivo.

O objetivo geral nada mais é do que o pro-blema redigido sobre a forma de ação: "analisar a viabilidade da descriminalização do uso de ma-conha no Brasil do século XXI".

Os objetivos específicos são ações a se-rem realizadas pelo pesquisador, que tornarão possível alcançar o objetivo geral: "1) identificar as origens históricas da criminalização da maco-nha no Brasil; 2) identificar os efeitos da droga no organismo humano; 3) avaliar os aumento dos gastos com a saúde após a descriminalização da droga; 4) avaliar o decréscimo da violência urba-na após a descriminalização da droga; etc".

A justificativa: por que pesquisar?

A justificativa é a fase do projeto na qual o pesquisador irá expor quais elementos dentro do binômio interesse/capacidade pessoal e social foram decisivos na eleição do seu tema de estudo.

Evidentemente, o principal elemento a ser explicitado aqui é o interesse social na solução do problema, pois será a partir dele que o orientador, a universidade e as agências de financiamento irão decidir se há ou não interesse institucional em se concretizar o projeto.

O pesquisador, nesta fase, deverá iniciar explicitando o "estado da arte", ou seja, o atual estado das pesquisas científicas sobre o tema. É importante que se faça uma revisão da literatura existente, comentando sucintamente as princi-pais obras que tratam direta ou indiretamente do tema proposto.

Em seguida, necessário se faz demonstrar a relevância social do problema, explicitando-se nesta fase o que já foi comentado anteriormente quanto ao interesse social na resolução do pro-blema.

Em síntese, será nesta fase que o pesqui-sador irá "vender seu peixe", ou em uma lingua-gem mais acadêmica, demonstrar ao leitor o real interesse social de seu projeto de pesquisa.

A metodologia: como pesquisar? Nesta parte do projeto o pesquisador de-

verá demonstrar como irá testar a veracidade de sua hipótese de trabalho.

Para tanto, deverá estabelecer um marco teórico e definir se sua estratégia de pesquisa será dogmática ou empírica.

Marco teórico

Na academia a expressão "marco teórico" é utilizada muitas vezes para designar o autor cujas idéias mais influenciaram o pesquisador em sua formação. Assim, se diz que "meu marco teórico é Kelsen", "meu marco teórico é Habermas", etc.

Marco teórico, porém, é uma concepção teórica da realidade concebida ou consagrada na obra de determinado pensador.

As pesquisas jurídicas sempre retomam uma série de conceitos que necessitam de um fundamento teórico de apoio: crime, democracia, soberania, cidadania, direito, justiça, etc.

Se cada pesquisador precisasse desenvol-ver seus próprios conceitos, a pesquisa certa-mente não evoluiria. Assim, o pesquisador parte do pressuposto de que a concepção teórica de determinado autor sobre aquele conceito é sufi-cientemente adequada.

Ao indagar-se sobre a "viabilidade da descriminalização do uso de maconha no Brasil do início do século XXI", o pesquisador terá como ponto de partida para solucionar o seu problema o conceito de crime que certamente será decisivo no rumo da pesquisa. Se seu marco teórico for juspositivista, sua concepção de cri-me será diversa da de um jusnaturalista, que tam-bém será diferente da de um criminólogo crítico.

Assim, pesquisadores com marcos teóri-cos diferentes, muitas vezes, usarão métodos de pesquisa bastante semelhantes, mas chegarão a resultados absolutamente diversos, já que o ponto de partida da análise é distinto.3

Definido o marco teórico, deverá o pes-quisador optar entre uma pesquisa jurídico-teó-rica ou um trabalho empírico.

Pesquisa jurídico-teórica

É uma estratégia de pesquisa que tem por objeto a análise da norma jurídica isolada do con-texto social em que se manifesta.

Esta concepção baseia-se na análise do dogma jurídico, que é um ponto fundamental

Ano II - Nº 13-Janeiro de 2003 - Justílex - 67

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ESPAÇO UNIVERSITÁRIO

Estuclo Dir ig ido

apresentado como certo e indiscutível, cuja ver-dade se espera que as pessoas aceitem sem ques-tionar: a lei, a jurisprudência, os costumes, os princípios gerais do Direito, etc.

O Direito deverá ser pesquisado en-quanto ciência pura e, portanto, isolado dos elementos sociais que se relacionem com o problema pesquisado.

O único objeto válido para este tipo de pesquisa jurídica é o dogma, daí porque a pes-quisa teórica pode muito bem ser denominada de dogmática.

A solução do problema não é buscada no mundo fático, mas é concebida na mente do pesquisador a partir da análise dos dogmas jurídicos no tempo (História do Direito) e no espaço (Direito Comparado).

Trata-se de uma concepção formal do Direito que é entendido como ciência inde-pendente das demais ciências sociais e, por conseguinte, dotada de autosuficiência metodológica e técnica.

Vê-se claramente que a pesquisa jurí-dico teórica é uma pesquisa de gabinete, construída em uma torre de marfim e abso-lutamente alienada quanto à realidade soci-al, econômica e política da sociedade para a qual o dogma jurídico está sendo construído.

O pesquisador crítico deve, pois, evi-tar uma análise exclusiva dos dogmas jurídi-cos, procurando as respostas do seu proble-ma não só na lei, na doutrina ou na jurispru-dência, mas principalmente na realidade soci-al onde está inserido seu objeto de estudo.

Pesquisa empírica

É uma estratégia de pesquisa que tem por objeto a análise da norma jurídica no contexto da realidade social em que se ma-nifesta.

Por esta concepção, deverá o pesquisa-dor analisar uma série de fatores econômicos, polít icos e sociais e a partir destas constatações empíricas, estabelecer a solução do problema pesquisado.

Parte-se do "ser" para se alcançar o "de-ver ser"; do "real" para o "ideal"; por isto, é uma concepção realista de pesquisa jurídica.

A observação direta (espontânea ou dirigida), a coleta e análise de documentos, de legislações, jurisprudência, etc, a aplicação de questionários (abertos ou fechados) e as en-trevistas (espontâneas ou dirigidas)4 são al-guns dos principais procedimentos da pes-quisa jurídica empírica.

Nem sempre, porém, é possível obter os dados de forma direta, através dos proce-dimentos acima. Assim, na pesquisa empírica, poderá o pesquisador valer-se de dados obti-dos indiretamente que podem ser encontra-dos em livros, em artigos de periódicos e em todo e qualquer material bibliográfico impresso ou informático.

Ainda que o ideal - até por uma ques-tão de confiabilidade dos dados - seja obter os dados diretamente, vale lembrar que o pes-quisador empírico não necessita obrigatoria-mente realizar trabalhos de campo, pois mui-tos dos dados da realidade social, política e econômica de seu problema podem perfeita-mente ser encontrados em material bibliográ-fico das mais diversas fontes.

O que caracteriza a pesquisa empírica não é a coleta dos dados, mas sim a postura do pesquisador em relação ao objeto da pes-quisa: enquanto na pesquisa teórica a solução do problema encontra-se no dogma, na pes-quisa empírica deverá o pesquisador buscá-la na realidade social.5

O cronograma: quando pesquisar?

Como já foi dito anteriormente, nenhu-ma pesquisa pode prolongar-se indefinida-mente no tempo. Assim, necessário é que o pesquisador estabeleça um cronograma no qual especificará quanto tempo levará na realiza-ção de cada etapa de sua pesquisa.

Em geral este cronograma é apresenta-do através de uma tabela na qual as colunas representam os meses em que será realizada a pesquisa e as linhas, as tarefas a serem con-cluídas.

Dentre outros itens, deverão constar no cronograma: levantamento bibliográfico, ob-servações, entrevistas, transcrição das entre-vistas, análise das entrevistas, leitura do ma-terial bibliográfico, cruzamento de dados, re-dação preliminar do texto, discussão do texto preliminar com o orientador, redação final do texto, revisão e edição final.

A bibliografia preliminar: onde pesquisar?

Para encerrar o projeto de pesquisa, o pesquisador deverá listar toda a bibliografia que potencialmente irá utilizar na realização do trabalho.

Evidentemente, na fase do projeto, não há necessidade de o pesquisador ter acesso físico às obras, muito menos de adquiri-las. Deverá, no entanto, ter as referências com-pletas das obras que futuramente poderá con-sultar devidamente formatadas no padrão ABNT. Atualmente, é indispensável a con-sulta através da Internet às bibliotecas das principais Faculdades de Direito do Brasil, bem como à base de dados da Biblioteca do Senado Federal6.

Conclusões

Evidentemente, não tivemos a preten-são de nestas breves linhas esgotar o assunto, mas tão-somente de oferecer os primeiros subsídios à elaboração de um projeto de pes-quisa original.

Esperamos ter despertado o interesse daqueles que darão os primeiros passos na trabalhosa, mas sempre instigante, pesquisa jurídica.

NOTAS 1 MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. 13§ed. Rio de Janei-ro: Renovar, 2001. p. 38. O Prof. Celso Mello se coloca entre os "divulgadores do Direito", o que só se justifica pela infinita humildade do mestre internacionalista, haja vista o inegável conteúdo ci-entífico de sua obra. 2 Sobre o tema-problema e sua delimitação cf. PEREIRA, Lusia Ribeiro. VIEIRA, Martha Louren-ço. Fazer pesquisa é um problema? Belo Horizon-te, Lápis Lazúli, 1999. 39p. 3 Para maiores detalhes sobre o marco teórico cf. GUSTIN, Miracy Barbosa de Sousa. DIAS, Maria Tereza Fonseca. (Re)pensando a pesquisa jurídica: teoria e prática. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p.55 4 Sobre os diversos procedimentos da pesquisa empírica cf. GUSTIN, Miracy Barbosa de Sousa. DIAS, Maria Tereza Fonseca. (Re)pensando a pes-quisa jurídica: teoria e prática. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 100 5 Sobre as diferenças da pesquisa jurídico teórica e da pesquisa empírica cf. WITKER, Jorge. Como elaborar una tesis en derecho: pautas metodológicas y técnicas para el estudiante o investigador del Derecho. s/l: Civitas, s/d. p. 85-120. 6 Os endereços eletrônicos destas bibliotecas po-dem ser obtidos em: www.tuliovianna.org

Túlio Lima Vianna Professor de Direito Penal da

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Mestre em Ciências Penais pela

Universidade Federal de Minas Gerais

68 - Justilex - Ano II - Nº 13 - Janeiro de 2003

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A pesquisa eiD Direito: UID sobre a pesquisa

eiD grupo, o ''Sprechstunde'' e a iniciação

científica na pós-1nodernidade1

Cláudia Lima Sfía'lques Doutora em Direito (Heidelberg), Mestre em Direito (Tübingen), Especialista em Integração Européia (Saarbrücken), Alemanha, Prof. Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade

Federal do Rio Grande do Sul, Depto. de Direito Público e Filosofia do Direito.

" ... any viable education theory has to begin with a language that links schooling to democratic public life, that defines teachers as engaged intellectuals and border crossers, and develops fonns of pedagogy that incorporate difference, plurality, and the language of the everyday as central to the production and legitimation of leaming .... Postmodem educational criticism offers the opportunity for a discursive practice, works in the interest of mankind ... aclawwledging difference as the basis for a public philosophy that rejects totalizing theories that view the Other as a deficit, and providing the basis for raising questions the dominant culture finds too dangerous to raise." (ARANOWI17JGIROUX,Postmodem Education- Politics, Culture & Social Criticism, University ofMinnesotaPress, Minea)xllis, 1993, p. 187 e 188).

lntJ:odução • inquietude, a curiosidade, o interesse

peio são características normais de quem está a aprender, de quem está desenvolvendo e acumulando conhecimentos, como os alunos de Direito de qualquer Universidade brasileira. Penso ser possível direcionar e utilizar esta for-ça de inquietude e de dúvida para a pesquisa científica, para a beleza da descoberta e da ex-plicação da realidade, para o prazer de construir o pensamento, de desenvolver o raciocínio crí-tico, dedutivo ou indutivo, o prazer de desco-

brir a solução de um caso ou um problema da vida, para reconstruir o respeito e a admiração pelas descobertas e caminhos dos juristas que nos antecederam, para conhecer e acompanhar as novas descobertas e os novos caminhos dos juristas de hoje, para desenvolver uma visão própria da realidade, para admirar e descortinar a lógica - racional ou sentimental- das atuais soluções jurídicas para os velhos e novos con-flitos e problemas de nossa sociedade.

1 Trabalho apresentado no IX Encontro Nacional do CONPEDI -Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito, PUC-RIO, no dia 19 de setembro (GTR4-Cooperação Interinstitucional e Programa Simon Bolívar) e discutido no dia 20 de setembro (GTEl-Direito Internacional e Integração regional: os efeitos da globalização). A autora gostaria de agradecer (e homenagear) ao Prof. Michael R. Will e ao Programa DAAD/CAPES pelo apoio recebido durante meu aprendizado na Alemanha.

Réf;ista da Faculdade de Direito da UFRGS, v. 20, Outubro/2001 63

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Pesquisar é pensar, refletir, ler, discutir, perguntar, criticar, descobrir, enfim, é buscar uma visão, uma explicação, uma idéia, uma solução para as perguntas e problemas que nos movi-mentam e interessam; é construir, formar e or-ganizar um pensamento (próprio ou não); é al-cançar um resultado que apazigúe ou que con-firme a inquietude inicial.

Se pesquisar em Direito é algo tão sim-ples e hermenêutico, quase natural e intrínseco a nossa ciência, porque é tratado como algo tão complexo, egoístico e exclusivo de poucos? As explicações são muitas, de jogos de poder,2 à influência do positivismo e do empirismo em nosso pensamento científico.3 Parece-me útil, pois neste IX Encontro Nacional do CONPEDI -Conselho Nacional de Pesquisa em Direito, re-fletir sobre esta pergunta e, analisar as respos-

Cláudia Lima Marques

tas atuais com uma visão pós-moderna.4 Quem sabe, assim poderei contribuir um pouco para uma - a meu ver, ainda necessária - reconstru-ção e redirecionamento de nossos próprios pre-conceitos em relação à pesquisa em Direito e à pesquisa realizada em nossas Faculdades de Direito.

Neste sentido, gostaria de dividir minhas reflexões em duas partes. A primeira analisan-do a pesquisa em Direito na Universidade e as dificuldades de pesquisar hoje em Direito, cons-cientes da crise da pós-modernidade.5 A reali-dade é que, na Universidade e nas outras ciên-cias, considera-se pouco a pesquisa realizada em Direito. Mister, pois, refletir o porquê deste preconceito contra a pesquisa jurídica, mister defender a pluralidade de métodos em pes-quisa,6 especialmente em tempos pós-mo-

2 Assim TRINDADE, Hélgio, Universidade, Ciência e Poder, in Universidade em ruínas, 2ed., Ed. Vozes, 2000, p. 14 a 21. 3 Assim ensina SAMAJA, Juan, Apartes de la metodologia a la refexión epistemológica, in in La posciencia-El conocimento cientifico en las postrimerías de la modernidad, Esther Díaz (Editora), Ed. Biblos, Buenos Aires, 2000, p. 151. 4Esta análise pós-moderna é uma homenagem ao mestre orientador de Doutorado, Prof. Dr. Dr.h.c. Erik Jayme, da Universidade de Heidelberg, que em seu brilhante curso de Haia lançou sua teoria dos reflexos da pós-modernidade no direito. Veja JAYME, Erik, ldentité culturelle et intégration: Le droit internationale privé postmoderne -in: Recueil des Cours de I' Académie de Droit International de la Haye, 1995, II, pg. 36 e seg. 5Sobre os reflexos da atual pós-modernidade, na pesquisa e na ciência do Direito, veja meu artigo A crise cientifica do Direito na pós-modernidade e seus reflexos na pesquisa, in Cidadania e Justiça-Revista da AMB, ano 3, n. 6 (1999), p. 237 e seg. (republicado na Revista Arquivos do Ministério da Justiça) e no livro de Anais da Conferên-cia , Rumos da Pesquisa-Múltiplas Trajetórias , Organizadoras Maria da Graça KRIEGER e Marininha Aranha ROCHA, Porto Alegre: Pró-Reitoria de Pesquisa!Ed.UFRGS, 1998, p. 95 a 108. 6Inspiro-menestetrabalhonolivrodeARANOWI1ZeGIROUX(ARANOW11Z,StanleyeGIROUX,Henry A.,Postmodem Education - Culture & Social Criticism, University of Minnesota Press, Mineapolis, 1993) que demonstra como os paradigmas pós-modernos, como o pluralismo e o fim das metanarrativas absolutas e universais para todas as ciências (como por exemplo, o fim da tradicional metarrativa da necessidade do uso de métodos empíricos para uma pesquisa ser considerada "científica''), pode e deve ser usada para discutir a crise na educação e os nossos métodos universitários atuais: "Regardless of whether critics see postmodemism as pastiche, parody, o r serious cultural criticism, the postmodem temperament arisesfrom the exaustion of the still prevailing intellectual and artistic knowledge and the crisis of the institutions charged with their production and transmission - the schools. The "nihilism" of postmodem discourse does not signify ist rejection of ethics, politisc, and power, only its refosai to accept the givens of public and private moraiity and the judgements arising from them Of course, we go forther in this book and argue that criticai postmodemism provides a politicai and pedagogicai basis not only for challenging current fonns of academic hegemony but aisofor deconstructing conservative fonns of postmodemism in which sociallife merely made over to accommodate expanding fields of infonnation in which reaiity collapses into the proliferation of images. At its bests, a criticai postmodemism signals the possibility for not only rethinking the issue of educational refonn but aiso creating a pedagogical discourse that deepens the most radical impulses and social practices of democracy itse!f" (ARANOW11Z, Stanley e GIROUX, Henry A., Postmodem Education - Politics, Culture & Social Criticism, University of Minnesota Press, Mineapolis, 1993, p. 187).

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, v. 20, Outubro/2001

A pesquisa em Direito: Um testemunho sobre a pesquisa em grupo, o método "Sprechstunde" e a iniciação cientifica na pós-modernidade 65

dernos, 7 mister construir em atitude afirmati-va,8 recusando-se a sermos nós, juristas-pes-quisadores, mais um instrumento de exclusão e de preconceito em relação aos nossos colegas, das Universidades e das Instituições da socie-dade,9 pesquisadores em Direito (Parte I). A segunda parte será dedicada aos problemas e dificuldades de se "ensinar a pesquisar em Di-reito". Em nossa realidade acadêmica, a pesqui-sa extraclasse de estudantes, a pesquisa de ini-ciação científica, sem finalidade de nota ou para trabalhos de conclusão, é ainda muito pouco realizada no país. Como tive a sorte e o privilé-gio de ter sido pesquisadora-junior da Univer-sidade de Saarlandes, do Instituto Max-Planck, na Alemanha e do Instituto Suíço de Direito Comparado, e, como desde minha entrada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul,\h4 10 anos, tenho trabalhado em iniciação científi-ca e pesquisa em grupo, penso poder contri-buir à discussão com um testemunho. Quero

relatar aqui um pouco a forma, o método, as dificuldades e os resultados deste trabalho de pesquisa em grupo na Faculdade de Direito da UFRGS. Este testemunho tem como finalidade não só abrir a metodologia que desenvolvi para ensinar a pesquisar e que denominei "Sprechstunde", mas principalmente, como se trata de um caminho misto, altamente in-fluenciado pelos métodos alemães e não-convencionais no Brasil, de ajudar a refle-tir sobre a necessária abertura de espírito em relação aos esforços dos colegas em ini-ciação científica e em ensino da pesquisa. Talvez, assim, possamos refletir um pouco sobre o norinal "egoísmo" dos professores-pesquisadores e do "fechamento" da redoma da pesquisa. 10 Talvez, assim, pos-samos iniciar uma contratendência, de tra-balho mais cooperativo, interdisciplinar, em grupo, respeitoso das diferenças e da pluralidade atual, em uma espécie de "criticismo educacional pós-moderno" 11

7 Defendo a idéia que a crise da pós-modernidade no Direito advém também da modificação dos bens economica-mente relevantes, que na idade média eram os bens imóveis, na idade moderna, o bem móvel material e que na idade atual seria o bem móvel imaterial ou o desmaterializado "fazer" dos serviços, do software, da comunicação, do lazer, da segurança, da educação, da saúde, do crédito. Se só este bens imateriais e fazeres que são a riqueza atual, os contratos que autorizam e regulam a transferência destas "riquezas" na sociedade também têm de mudar, evoluir do modelo de dar da compra e venda para modelos novos de serviços e dares complexos, adaptando-se a este desafio desmaterializante "pós-moderno". Veja nosso livro, Contratos, p .. 89 e seg. Os sociólogos preferem estudar o fenômeno na mudança dos meios de produção: pré-industrial, industrial e pós-industrial ou informacionalismo (informationalism), veja Castells analisando os ensinamentos de Tourraine, CASTELLS, Manuel, The rise of the network society, vol. I, The lnformation age: economy, society and culture, Blackwell, Massachusetts, 199611999, p. 14 e seg. 8Segundo ROSENAU, Pauline Marie, Post-modernism and the social sciences, Princeton Uni v. Press, Princenton, 1992, p. 117. Na classificação de ROSENAU, p. 53, seriam "skeptical" pós-modernos, para contraponto aos "affirmative" pós-modernos (ROSENAU p. 57), estes últimos clamam por reconstrução e utilização de parte das metanarrativas da modernidade, como a posição defendida neste artigo. 9 Mister frisar que a pesquisa em Direito naao está restrita às Faculdades e Universidades, ao contrário, após minha experiência em Institutos de pesquisa na Alemanha e Suíça e no Brasilcon-Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor, considero que no futuro a pesquisa, também no Brasil, se fará tanto nas universidades como nas organizações e Instituições do Terceiro Setor. 10Defendi o pluralismo na pesquisa escrevi no trabalho "A crise", p. 95 e seg ..

11 A expressão "Postrnodern educational criticism" é um tanto incongruente, pois a crítica é típica da modernidade, mas esta expressão foi usada por ARANOVITZ/GIROUX, p. 188, para descrever sua teoria de reconstrução da educação, de forma democrática, plural e crítica em plena pós-modernidade: "Postmodem educational criticism points to need for constructing a criticai discourse to both constitute and reorder the ideological broader parameters of a radical democracy"

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também em Direito. 12

I. A pesquisa em Direito na Universidade

Como ensina Pádua, em "um sentido amplo, pesquisa é toda atividade voltada para a solução de problemas, como atividade de busca, indagação, investigação, inquirição da realidade, é a atividade que vai nos permitir, no âmbito da ciência, elaborar um conheci-mento, ou um conjunto de conhecimentos, que nos auxilie na compreensão desta realidade e nos oriente em nossas ações." 13

Durante os séculos XVI e XVII assenta-ram-se as bases epistemológicas e metodológicas do saber científico moderno, 14

no qual Galileu Galilei, Isaac Newton e Johannes Kepler são considerados precursores, e que resultou na constituição de um modo novo de

Cláudia Lima Marques

compreensão da realidade e fundamentação do conhecimento, um modo empírico: "El pensa-mento cientifico abandoná la incuestiona-bilidad del dogma y la tradición que teíiiá el pensamento medieval para opornele la legitimidad y lafuerza de los hechos empíricos. La razón vinculada con la experiencia permitió el conocimiento de los fenómenos físicos y natureales. La observación, la experimen-tación y la medición fueron las metodologías fundamentales que facilitaron esta fructífera relación entre teorias y hechos. " 15

Os êxitos alcançado nas ciências exatas permitiram aos pensadores do sécu-lo XVII transferir esta visão "científica" para as análises dos fenômenos sociais, forçando as ciências sociais e aplicadas, 16

como o Direito, para ter "validade" e alcan-çar a "verdade", a utilizar estes métodos. 17

Estava aberta a crise do método de pesqui-sa em Direito.

12Para alguns, esta é uma tarefa muito difícil, que exige uma volta ao pensamento epitesmologico. Assim o mestre argentino, Carlos Alberto Ghersi (GHERSI, Carlos Alberto, Tercera Vw-ÂnúJito Jurídico, Ed. Gowa, 2000), considera que a pós-modernidade construiu um perigoso subjetivismo jurídico e uma metodologia abstrata de ensino, que abstrai da realidade e discursa sobre o direito posto como se fosse real, mesmo que não seja efetivo (p.30), que exalta o individualismo e vê o direito como um fim em si mesmo (p. 44), a destruir a própria validade e função social do Direito (p. 45). Prega o autor uma contratendência (p. 33), que "el derecho debe ensefíarse como fenómeno social complejo" e com recurso às outras ciências, pois "definir la frontera de una ciencia, es limitar la investigación, es no permitir la consubstanciación o entrecruzamento de los saberes, lo social es un todo inescindible, pues apunta a la humanidad en comunidade, parcializada en Estados o globalizada en un solo mundo"(p. 33 e 34) e conclui: ''Pensamos que a partir de involucrar el derecho con los saberes que están en lo social, mostramos aspectos de las normas que las sumergen en un mundo de contradicciones y de causalismos; la contextuación enfrenta así a la abstracción individualista, es la 13Assim define pesquisa, PÁDUA, Elisabeth Matallo Marchesini de, Metodologia da pesquisa- Abordagem teórico-prática, Ed. Papirus, 2.ed, Campinas, 1997, p. 29. 14 Assim ensina Trindade, op. cit., p. 14. 15LUQUE, Susana de, El objeto de estudio en las ciencias sociales, in La posciencia-El conocimento científico en las postrimerías de la modernidad, Esther Díaz (Editora), Ed. Biblos, Buenos Aires, 2000, p. 223. corriente de reacción o su contratendencia."(p. 37). 16 Sobre o tema das especificidades das áreas das ciências e a cada vez maior distinção entre "ciência básica" e "ciência aplicada'', veja síntese do congresso,REGNER, Anna Carolina K. P. , O fazer científico: as especificidades das áreas e uma nova agenda para a ciência, in Rumos da Pesquisa-Múltiplas Trajetórias , Organizadoras Maria da Graça KRIEGER e Marininha Aranha ROCHA, Porto Alegre: Pró-Reitoria de Pesquisa/Ecl.UFRGS, 1998, p. 273. 17 Assim LU QUE, Laposciencia, p. 223: "Los éxitos alcanzados en el ámbito de las cienciasfísicas impulsionaron a los pensadores dei siglo XVII a trasladar la mirada científica hacia dos fenómenos sociales ... [las ciencias sociales] sólo alcanzarían la verdad en la emedidad en que siguieran el modelo de la físico-matemática ... "

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, v. 20, Outubro/2001

A pesquisa em Direito: Um testemunho sobre a pesquisa em grupo, o método "Sprechstunde" e a iniciação cientifica na pós-modernidade 67

A) Dificuldades da pesqu&lemDireito e do diálogo Universitário em tempos pós-modernos

O termo "método", usado no contexto da pesquisa científica, tem um duplo significa-do: a) pode evocar os procedimentos para ob-ter um conhecimento, para descobri-lo, para conhecê-lo, para investigá-lo e b) pode evocar os procedimentos para "validar" ou ')ustificar" um conhecimento, uma assertiva, um resultado que já se sabe. 18

A dificuldade básica da pesquisa em Direito é seu método, apesar de ser polêmico também seu resultado. 19 Efetivamente, em Di-reito, é polêmico tanto o método de pesquisa (método de investigación )20 em si, quanto o método de validação da pesquisa jurídica (mé-todo dejustificaciôn). 21 A primeira crise foi,de seu método de validação. Nos séculos XIX'e XX, o Wienerkreis, o Círculo de Viena com Carnap22 e o fundador da sociologia empírica e do método positivista, Auguste Comte,23 aca-baram por defender, contra toda metafísica e especulação, que somente o que se podia expli-car positivamente e empiricamente teria valida-

de científica. Isto teve enorme repercussão na Filosofia, na Religião e no Direito. Inicialmente o Direito não mudou seus métodos de pesquisa, de procura, de investigação e de "descoberta" dos co-nhecimentos, continuou utilizando o método hermenêutico (dogmático e dedutivo )24 típico des-de os estudos dos livros romanos na Idade Média, o que resultou em uma grande crise de validação (ou de justificação) para a pesquisa em Direito, ajudan-do no triunfo do método positivista, único conside-rado "científico" àépoca.25

1. O método hermenêutico e o menosprezo pela pesquisa em Direito: a falta de validação ou justificação dos métodos qualita-tivos

Por muito tempo, os pensadores menos-prezaram a importância e mesmo a possibilida-de de se pesquisar em Direito.26 Sem querem repetir esta discussão estéril (e hoje felizmente

18 Assim ensina SAMAJA, Juan, Apartes de la metodologia a la refexión epistemológica, in in La posciencia-El conocimento cient(fico en las postrimerías de la modernidad, Esther Díaz (Editora), Ed. Biblos, Buenos Aires, 2000, p. 151. 19 Os hoje denominados produtos da pesquisa em Direito são incialmente os mesmos das outras ciências: livros, artigos, estudos, relatórios, palestras, conferências etc. Mas também os resultam indiretamente da pesquisa em Direito o próprio "objeto" ou Direito, uma lei, um Tratado, uma doutrina nova, um parecer opinativo ou consultivo, um trabalho forense, uma decisão de líder. Estes são normalmente desconsiderados como produtos da ciência, pois fáticos-jurídicos. 20Segundo ensina GIANELLA, p. 78: "[Los métodos de investigación] ... están dirigidos al incremento dei conocimiento, a conocer neuvos hechos, propriedades, relaciones y regularidades." (GIANELLA, Alicia E., Introduccion a la epistemologia y la metodologia de la ciencia, Ed. da la Universidad Nacional de la Plata, La Plata, 1995, p.78). 21Segundo ensina GIANELLA, op. cit., p. 78: "[Los métodos de validación o justificación} tiene por función ejercer una espécie de "contrai de calidad" de los conocimientos, evaluar las hipótesis y teorías desde los fundamentos que ofrecen." 22Assim ensina SAMAJA, op. cit., p. 152. 23 Assim ensina LU QUE, op. cit., p. 228. 24Assim as palavras clássicas de Reinhold Zippelius: "Der Gegenstand bestimmt die Methode", ZIPPELIUS, Reinhold, Juristische Methodenlehre, 5. Aufl., Beck, München, 1990, p. 1. 25PÁDUA, op. cit., p. 31. 26 Veja sobre o tema as reflexões de ZITSCHER, Harriet Christiane, Como pesquisar?, in Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, vol. 17(1999), p. 103 e seg., que distingue entre pesquisa conceitualldogmática e pesquisa empírica, também no Direito.

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, v. 20, Outubro/2001

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quase superada),27 gostaria apenas de desta-car que esta visão é típica da mono-metodologia da idade moderna e não mais condiz com o pluralismo de métodos28 da idade atual ou pós-moderna.29

Como ensina Pádua: "Até meados do século XX, considerou-se como cientifico o conhecimento produzido a partir das bases estabelecidas pelo método positivista, apoia-do na experimentação, mensuração e contro-le rigoroso dos dados (fatos), tanto nas ciên-cias naturais como nas ciências humanas. As-sociou-se a idéia de cientificidade à pesquisa experimental e quantitativa, cuja objetivida-de seria garantida pelos instrumentos e técni-cas de mensuração e pela neutralidade do pró-prio pesquisador frente à investigação da re-alidade. Com o desenvolvimento das investi-gações nas ciências humanas, as chamadas pesquisas qualitativas procuraram consolidar procedimentos que pudessem superar os limi-tes das análises meramente quantitativas. A partir de pressupostos estabelecidos pelo mé-todo dialético, e também apoiadas em bases fenomenológicas, pode-se dizer que as pesqui-sas qualitativas têm se preocupado com o sig-nificado dos fenômenos e processos sociais, levando em consideração as motivações, cren-ças, valores, representações sociais, que permeiam a rede de relações sociais. Como estes aspectos não são passíveis de mesuração e controle, nos moldes da ciência dominante, sua cientificidade tem sido freqüentemente questionada."30

Cláudia Lima Marques

Relembre-se, porém, que na Idade Mé-dia, o método científico era exclusivamente hermenêutico. Quando surgiram as primeiras Universidades, a hermenêutica é a ciência por excelência, ciência da compreensão e da inter-pretação dos textos , das escrituras e das leis. As três primeiras Faculdades organizadas fo-ram justamente de Teologia (Filosofia), Direito e MedicinaY

O Direito, Teologia e Filosofia constro-em seus conhecimentos, sua ciência, seu saber de forma hermenêutica. É historicamente, pois, recente considerar-se científico apenas o méto-do empírico, da reação de Galilei até a formula-ção do empirismo por Locke e outros. Como vimos anteriormente, é somente nos séculos XIX e XX que chegarão os pensadores a consi-derar o método empírico, mais afeito às ciências exatas e ciências outras do que ao Direito, como o único científico, em uma visão perfeccionista típica das crenças universais e absolutas da idade modema.32 O método hermenêutico e tra-dicional do Direito causa espécie, é considera-do problemático, não científico ou não-válido. É preciso fugir deste método, separar-se, é pre-ciso medir, comparar, preparar estudos empíricos e quantitativos sobre a realidade, para que a pesquisa em Direito seja científica.

Passa-se a menosprezar a forma de pro-dução do conhecimento jurídico até então exis-tente, menosprezam-se os juristas e doutrinadores desta época, como não-científi-cos. Força-se o Direito a mudar, a usar métodos outros e com exclusividade, como se a comple-

27 Assim, bastante pós-moderna, REGNER, op. cit., p. 274. 28 Sobre pluralismo de métodos, como reflexo nessário dos tempos atuais, veja JAYME, Curso, p. 36 e seg. 29Veja uma bela defesa do pluralismo, in SILVA, Tomaz Tadeu, A produção social da identidade e da diferença, in Identidade e Diferença, Coord. SILVA, Tomaz Tadeu, Ed. Vozes, São Paulo, 2000, p. 73. Veja também excepci-onal sobre pluralismo no Direito. FRIEDMAN. Lawrence, The Republic ofChoice, Cambridge, Harvard University Press, I994, p. II e seg. Como explica Vattimo em sua introdução, "O pós de pós-moderno indica, com efeito, uma despedida da modernidade ... ", veja VATTIMO, Gianni, O fim da modernidade- niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna, São Paulo, Martins Fontes, 1996, p. VII. 30PÁDUA, op.cit., p. 31. 31 Veja sobre a universidade medieval, TRINDADE, op. cit., p. 12. 32 PÁDUA, op. cit., p. 31.

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A pesquisa em Direito: Um testemunho sobre a pesquisa em grupo, o método "Sprechstunde" e a iniciação cientifica na pós-modernidade 69

xa realidade social pudesse ser compreendida e captada apenas pelos métodos empírico e de pesquisas quantitativas.

Em nossas Universidades ainda hoje encontramos alguns que pensam que o caráter científico (da pesquisa) depende do uso de métodos empíricos. Criticam os juristas e seus métodos, criticam sua falta de dedicação à pes-quisa, à Universidade, sua baixa produção "ci-entífica" , sua preocupação com a prática, sua falta de profissionalismo. 33 Mal ou bem este menosprezo estrutural pelo método hermenêutico usado no Direito contribuiu para o isolamento (e fechamento) do pensamento, do discurso e das atividades científicas dos ju-ristas nas Universidades. Se nos séculos XVIII e XIX, o Direito era ciência de destaque e os juristas consistiam na elite pensante daqti'elas sociedades, no século XX, a partir. da década de 60, com a reforma das universidades e com um novo "cientifismo-neutro" imposto as Fa-culdades de Direito, esta posição científica de destaque, modificou-se, isolando ainda mais nossos predecessores. As Faculdades de Di-

rei to passaram a valorar e a elaborar seu pensa-mento científico de forma distinta das demais ciências sociais,34 em uma independência de "descompreensão" e falta de diálogo. A pes-quisa era individual, por interesse próprio dos docentes35 ou comercial das editoras,36 sem chegar aos alunos e muito menos aos colegas de outras áreas. 37

A avaliação da produção científica oriunda das Faculdades, porém, veio da Uni-versidade, utilizando seus métodos, seus crité-rios, seu empirismo, suas perguntas ao traba-lho realizado pelos juristas, poucas vezes foi este classificado de científico. Chegamos ao ponto de documentos oriundos da universida-de considerarem que não havia "pesquisa ci-entífica" nas Faculdades de Direito, apesar da representativa produção intelectual, especial-mente livros de grande repercussão lá realiza-dos. 38 Importantes eram estátisticas de "impac-to", a repercussão abstrata dos veículos utili-zados para publicação nacional e internacional e não as citações ou a repercussão, prática que nossos mestres conseguiram nos Tribunais, na

33 Efetivamente, TRINDADE, p. 12 comprova que o "profissionalismo" na universidade está intimamente ligado à pesquisa e à dedicação acadêmica, desde o século XVIII: "Com a criação das academias cientificas, intensifica-se a profissionalização das ciências,fato que vai permitir sua inserção nas universidades através da pesquisa. Até o século XVII, o cientista não tem um papel especializado na sociedade, mas a partir daí desencadeia-se uma mudança profunda no sistema de valores e normas universitárias, reconhecendo-se, não sem conflitos, a legitimidade de uma atividade relacionada com as ciências em geral" (p. 12) 34 Assim OLIVEIRA, Luciano e ADEODATO, João Maurício, O Estado da Arte da pesquisa jurídica e sócio-jurídica no Brasil, Ed. CJF/CEJ, Brasília, 1996, p. Il: "Há um notório descompasso entre a pesquisa jurídica e o estágio atual" nas outras ciências. 35 Bastante críticos, OLIVEIRA/ADEODATO, p. I2, usam a expressão " quase diletante" para descrever a pesquisa das Faculdades de Direito desta época. 36 Não se pode desconhece o fato do mercado editorial de livros jurídicos estar muito ligado aos nomes da academia. Veja no Brasil, a tradição em publicações dos professores, por exemplo, da Faculdade Largo de São Francisco da USP. 37 OLIVEIRA/ ADEODATO, p. 11, comprovam que a pesquisa jurídica está quase toda concentrada nas Univer-sidades Públicas, mas que o "debate sobre a pesquisa e o ensino jurídico no Brasil remonta a San Thiago Dantas e Rui Barbosa" (p. 9). 38Surpreende o número de publicações dos professores da Faculdade de Direito de 1904 a 1975, levantadas no livro de nosso falecido professor SANTOS, João Pedro, A Faculdade de Direito de Porto Alegre- Subsídios para sua História, Ed. Síntese, Porto Alegre, p. 189 a 277 e p. 341 a 370. de Kuhn e a evolução da epistemologia, veja em português, BOMBASSARO, Luiz Carlos, Ciência e Mudança conceituai- Notas sobre Epitesmologia e História da Ciência, Edipucrs, Porto Alegre, 1995, p. 61 e seg.

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sociedade, nas leis que ajudaram a realizar, nas Constituições e na jurisprudência em gerai.39 Chegamos a ponto de considerar não-cientis-tas, os grandes autores e doutrinadores do Di-reito do início deste século.40

A incorreção desta lógica de exclusão da produção jurídica da Universidade repousa principalmente em sua visão metodológica re-duzida. Um exemplo pode esclarecer: os médi-cos, geralmente, também dedicam pouco tempo à Universidade, praticam e realizam suas técni-cas na sociedade, modificam a realidade e apli-cam sua ciência em prol da coletividade. Nunca ninguém, porém, acusaria estes brilhantes pro-fessores e práticos da medicina de não-científi-cos. E porque não? Simplesmente por que a Medicina, ao contrário do Direito e da Teolo-gia, sempre utilizou o método empírico. Fácil acusar um hermenêuta de "a-científico", dificí-limo acusar um médico, que usa quase que ex-clusivamente os métodos empíricos, de não ci-entífico. Observem, pois, como cala fundo este preconceito, pré-concebido mito de uma só metodologia científica para a pesquisa. Se a

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dedicação de nossos predecessores foi pouca à Universidade e à pesquisa então considerada científica, também foi grande a falta de compre-ensão quanto as especificidades de nossa ci-ência e métodos tradicionais.

Bem, hoje, nós juristas, superamos os preconceitos, o sentimento de vergonha de nosso próprio método, repensamos nosso pa-pel na Universidade, envidamos esforços pelo pluralismo de pensamento e multiplicação da pesquisa jurídica, aceitamos e utilizamos mui-tos métodos e discursamos sobre a pesquisa quase de iguais para iguais com as outras ciên-cia sociais.41 O pluralismo de métodos, de abor-dagens, de procedimentos na pesquisa jurídica é uma realidade.42 As pesquisas qualitativas de hoje não usam apenas o método hermenêutico, o comparatista e o histórico, mas há também a análise jurisprudencial qualitativa ou discursiva, o estudo das diferenças no Di-reito Comparado Pós-moderno,43 sem falar no crescente uso das pesquisas quantitativas no Direito, como o estudo de casos,44 como a aná-

39Como ensina LOPES José Reinaldo de Lima, Direito e Tramformação Social, Belo Horizonte, Ed. Nova 1997, p. 77 tanto o Direito faz parte da cultura quanto possui sua própria cultura e reflexos típicos na

sociedade: " ... o sistema jurídico é constituído de uma "cultura". São as atitudes que fazem do sistema um todo uma unidade e que determinam o lugar dos aparelhos e das normas na sociedade globalmente considerada. A cultura jurídica engloba tanto as atitudes hábitos e treinamento dos profissionais quanto do cidadão comum." Tal linha de pensamento possui tradição no Brasil através da escola de Recife e a influência do ,culturalismo jurídico" de Tobias Barreto sobre o tema veja o nosso Artigo Cem anos de BGB e o Código Civil Brasileiro, in: Revista dos Tribunaus vol. 741. p. 21 e seg. 40Sobre a intolerância científica como forma de manutenção de paradigmas, veja KUHN, Thomas, Die Struktur wissenschaftlicher Revolutionen, Suhrkamp, Frankfurt, 1996, p. 38 e seg., sobre o neo-radicalismo, como respos-ta à intolerância frente ao pluralismo pós-moderno e à nascente neo-ortodoxia, veja GELLNER, Ernest, Pós-modernismo, Razão e Religião, Instituto Piaget, Lisboa, 1992, p. 70 e seg. O autor denomina esta última vertente neo-ortodoxa de "ultra-subjetivismo" como forma de responder ao antigo ultra-cientismo moderno.Sobre a obra de e a evolução da epistemologia, veja em português, BOMBASSARO, Luiz Carlos, Ciência e Mudança concettual- Notas sobre Epitesmologia e História da Ciência, Edipucrs, Porto Alegre, 1995, p. 61 e seg. 41 VejaZitscher, Como pesquisar?, p. 104 a 107. 42Veja bom exemplo deste pluralismo no recente livro de VENTURA, Deisi, Monografia Jurídica- uma visão prática, Ed. Livraria dos Advogados, Porto Alegre, 2000, p. 76 a 78. 43Veja sobre o tema JAYME, Erik, Visões para uma teoria pós-moderna do Direito Comparado, in Revista dos Tribunais nr. 759, janeiro 1999, p.24 a 40. 44 Veja sobre o tema ARAÚJO, Nádia, Formação do jurista pesquisador: Pressupostos e requisitos. Técnicas de pesquisa e ensino na pós-graduação, in Revista Direito, Estado e Sociedade, nr. 14, janJjulho. 1999, PUCIRJ, p. 23 a 37.

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lise jurisprudencial45 e a pesquisa de campo, em suas mais variadas formas. 46 Geralmente, hoje optamos por uma combinação de método de investigação. Com a consolidação da pós-graduação no país, a produção científica no Direito aumentou fortemente,47 assim como o profissionalismo do professor-pesquisador. O que parecia um avanço calmo e certo, porém, sofre com a perda de modelo com a crise social da pós-mcx:lemidade.48 É necessário continuar a construir.49

2. Crise da pós-modernidade: "desconstrução" do Direito e novo acirramento metodológico

Efeti vamente, veio a crise da pós-modernidade,50 as incertezas e o caos atingi-ram todas as ciências.51 Por ironia do destino, foi justamente a ciência do Direito uma das que mais se descontruiu com a crise da pós-

45Bom exemplo é a pesquisa quantitativa e qualitativa de jurisprudência gaúcha sobre seguro-saúde e o CDC, realizada pelo Grupo de Pesquisa CNPq "Mercosul e Direito do Consumidor", coord. Claudia Lima Marques e Harriet C. Zitscher, conjuntamente com estudantes, cujo Relatório foi publicado na Revista Direito do Consumi-dor (São Paulo), vol. 29, jan/mar 1999, p. 88 a 105. 46Bom exemplo de pesquisa de campo é fornecido por RIZZATTO NUNES, Luiz Antônio, Manual da Monografia Jurídica, 2. ed., Ed. Saraiva, São Paulo, 1999, p. 22", 47 Veja sobre o tema, trazendo lista das monografias publicadas no país de 1980 a 1995, LEITE, Eduardo de Oliveira, A monografiajurídica, Ed. Revista dos Tribunais, 3. ed., 1997, p. 288 e seg. 48Assim MINDA, Garry, Postmodern Legal Movements- Law and Jurisprudence at Century's end, New York University Press, New York, 1995, p. 247 e, conclusão, p. 249: "Academic trends in legal scholarship do not occur in a vaccum, nor are law schools and legal scholars autonomous. To understand what has been going on in contemporary legal theory, one must look to what has been going on at the university ... an intellectual and cultural revolution is now under way at American Universities ... The crisis of representation, known as postmodernism, has reached the legal academy and it is represented by a new form ofpostmodernjurisprudence" Veja como ZIMA, Peter, Moderne!Postmoderne, UTB, Francke, Tübingen, 1997, p. 61, identifica nos movimen-tos neo-liberais conservadores e economicistas (de direita) um dos braços da pós-modernidade. Assim também MINDA, p. 83, identifica o movimento conservador de "direita" da análise econômica do Direito como pós-moderno. 49 Assim também, para todas as ciências sociais, conclui REGNER, p. 276. 50Assim manifestou-se ROSENAU, 1992, p. 124: "Legal theory is an arena where post-modern views of epistemology and method have created one of the most serious intellectual crises, questioning the very legitimacy of judicial systems and the integrity of legal studies." 51 Como antes escrevi, A crise, p. 99: "A realidade denominada pós-moderna (LYOTARD, 1994, p. 13) é a realidade da pós-industrialização, do pós-fordismo, da tópica, do ceticismo quanto às ciências, quanto ao positivismo (HABERMAS, 1992, p. 35); época do caos, da multiciplicidade de culturas e formas, do Direito à diferença, da ,euforia do individualismo e do mercado",(GHERSI, p. 27) da globalização e da volta ao tribal. É a realidade da substituição do Estado pelas empresas particulares, de privatizações, do neo-liberalismo, de terceirizações, de comunicação irrestrita, de informatização e de um neo-conservadorismo. Realidade de acumulação de bens não materiais, de desemprego massivo (GHERSI, 1994, p. 13), de ceticismo sobre o geral, de um individualismo necessário, da coexistência de muitas meta-narrativas simultâneas e contraditórias, da perda dos valores moder-nos, esculpidos pela revolução burguesa e substituídos por uma ética meramente discursiva e argumentativa, de legitimação pela linguagem, pelo consenso momentâneo e não mais pela lógica, pela razão ou somente pelos valores que apresenta (KAUFMANN, 1994, p. 224 ). É uma época de vazio, de individualismo nas soluções (LIPOVETSKY, 1996, p. 7) e de insegurança jurídica, onde as antinomias são inevitáveis e a de-regulamentação do sistema convive com um pluralismo de fontes legislativas e uma forte internacionalidade (JAYME, 1995, p. 36) das relações. É a condição pós-moderna que, com a pós-industrialização e a globalização das economias, já atinge a América Latina e tem reflexos importantes na ciência do Direito. É a crise do Estado do Bem-Estar Social."

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modernidade, mas uma das últimas a se dar conta sobre os efeitos desta crise em sua ciência, tal-vez por seu isolamento ainda existente. Como ensina Rosenau, conhecer o fenômeno da pós-modernidade e seus efeitos nas ciências soci-ais é o melhor caminho para superar seu efeito destruidor: "Postmodemism haunts social science today. ln a nwnber of respects, some plausible and some preposterous, post-modem approaches dis-pute the underlying assumptions of mainstream social science and ist research product over the la.st three decades. The challenges post-modemism poses seem endless. lt rejects epistemological assumptions, refites methodological conventions, resists knowledge claims, obscures all versions of truth, and dismisse policy recommendations. lf so-cial scientits are to meet this challenge and take advantage of what post-modemism has to offer witlwut becoming casualities of it excesses, then an adequate understanding of the challenge is essential. "52

Sobre o tema já escrevi de forma crítica e ati vista que: "Se o desafio do passado era ver a pesquisa em Direito reconhecida como tal na Universidade, o desafio do presente é supe-rar a crise da pós-modernidade, de forma a reconstruir uma razão para a pesquisa jurídi-ca e viabilizar um avançar do Direito no futuro.A reação necessária é, pois, de uma pes-

52ROSENAU, p. 3.

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quisa renovada, ao mesmo tempo cientifica e jurídica, plural e tolerante, como se está ten-tando fazer na Faculdade de Direito da UFRGS, 53 apesar das dificuldades. Pesquisa renovada esta que, consciente da crise pós-moderna, possa responder à crescente dispu-ta vazia de formas, métodos e linhas de pensa-mento, que ameaçam hoje devastar as nossas F acuidades, reduzindo-as em um misto de ra-dicalismo, intolerância e passividade cientifi-ca no final de século. Pesquisa esta que de-monstre que a ciência do Direito ainda possui um valor em si mesmo, que o Direito ainda pode e deve dar respostas aos problemas do homem em sociedade e não só pesquisar sobre seu método, sua ideologia, seu discurso, seus afores, suas relações de poder, isto é, que a ciência do Direito ainda está legitimada a procurar o justo e o eqüitativo, apesar da sua atual e profunda crise de fundamentos.

... Neste sentido, como Rosenau, mister alertar que ao quebrar sua legitimidade como ciência de conduta, a crise pós-modernidade levou a uma desconstrução dos fundamentos do Direito tão profunda que nenhuma teoria ou linha de pensamento mais seria absoluta-mente válida e a pesquisa teria ficado "sem objeto ". 54 O foco o ponto de concentração se-ria qualquer outro objeto que não o Direito,

53 Destaque-se que no livro da Pesquisa UFRGS de 1988 a 1992, a Faculdade de Direito aparece com 41 professores, autores de livros e artigos, no Brasil e exterior, denotando que mais da metade dos professores 80 professores da instituição e 70% dos professores ativos de sala de aula fazem pesquisa e submetem-se à crítica através de publicações. No livro da Pesquisa UFRGS de 1993 a 1994, este número aumenta para 51 professores-autores da Faculdade de Direito e no livro da Pesquisa UFRGS de 1995-1996 chega a um total de 54 autores, denotando que 67% dos professores oficialmente ligados à instituição e quase 90% dos 62 professores ati vos de sala de aula fazem pesquisa individual e publicam. Desde 1988, já chegam a seis os grupos de pesquisa oficialmente reconhecidos pelo CNPq. Dois são os nossos pesquisadores A 1, contamos com um Mestrado cientificamente muito ati v o, assim como multiplicam-se os trabalhos de iniciação científica de acadêmicos orientados por professores de nossa casa; de 3 trabalhos no I Salão para os 32 trabalhos inscritos em 1998, assim como dois prêmios Jovem Pesquisador e vários destaques e menções honrosas nesses dez anos de Salão. Este aumento quantitativo é acompanhado por uma crescente preocupação com a formação acadêmica dos professores, Doutores e Mestres, sensibilizados todos para a pesquisa científica. 54Assim ROSENAU, 1992, p. 50.

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dos sentimentos, do discurso, à literatura ou à economia. 55 Rejeitada a verdade jurídica, aber-to o sistema do Direito, deslegitimado o Direi-to e suas instituições, cria-se assim um vazio cientifico e uma desconfortante igualdade ci-entifica dos discursos, todos iguais56 uma vez que todos sem base e subjetivados ou flexibilizados57 há uma grande dificuldade para os estudantes e professores identificarem e avaliarem a qualidade das pesquisas e suas contribuições à sociedade e ao Direito.

Esta crise da pós-modernidade é, em verdade, uma mudança na maneira de pensar o Direito a resultar um certo apatismo e imobilismo em relação às novidades por parte da maioria, combinado com um certo radica-lismo por parte de minorias, face aos novos desafios da sociedade pós-moderna. É uma desconcertante crise de ideais e de valores, entre pluralismo e radicalismo de verdades, que tem grande influência no Direito e na pes-quisa deste final de século. Como ensina Rosenau, 58 o vazio e a insegurança nas ciên-cias sociais são grandes: " Post-modernists reduce social science knowledge to the status of stories .. Post-modern methodology is post-positivist or anti-positivist. As substitutes for the 'scientific method', the affirmatives (post-modernists) look to feelings, personal experience, empathy, emotion, intuition,

subjective judgment, imagination, as well as diverse forms of creativity and play. "

... Como ensina Rosenau59 , esta frag-mentação e desconstrução não pode ser acei-ta totalmente, uma reação deve existir. Em outras palavras, para evitar o atual vazio do estudo do discurso é necessário um reviva[ do sério estudo da filosofia do Direito. Para com-bater o vazio das formas metodológicas, é ne-cessário revisitar a especificidade do conhe-cimento jurídico, 60 aceitar as bases do Direito como procura do justo e valorizar mesmo seus métodos tradicionais e específicos. 61 Para combater a guerrilha metodológica, é neces-sário defender o pluralismo de pesquisas e a tolerância cientifica, única forma de evitar que os radicais "antimodernos" acabem excluin-do vários cientistas que poderiam dar alguma contribuição à criação de um Direito adapta-do ao novo milênio. Em outras palavras, há que se superar a visão que o Direito em si, sua metodologia e seu discurso ou a economia se-ria o único objeto de pesquisa válido. Há que se defender a pesquisa em Direito como con-tribuição à ciência do Direito, contribuição à procura do justo e da solução dos problemas individuais e sociais atuais, não importando a sua linha de pensamento, se alternativa desdogmatizante, se tradicional ou se conser-vadora neo-liberal." 62

55Veja ROSENAU,l992, p.50 a 52: "Post-modernists in almost field ofthe social sciences have been experimenting with a subjectless approach in their inquiries ... Rejecting the subject permits them to the focus of the inquiry elsewhere ... " 56ROSENAU,1992,p.77 ep. 89. 57FACHIN, Luiz Edson e CARNEIRO, Maria Francisca, A5pectos da avaliação institucional dos programas de pós-graduação em Direito: instrumentos e concepções, in Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 35, nr. 137, jan/mar 1998, p. 205. 58ROSENAU,1992, p. 91 e p.117. 59ROSENAU, 1992, p. 124. 6°FACHIN/CARNEIRO, p. 205. 61LARENZ, Karl, Methodenlehre der Rechtswissenschaft, 6.Aufl., Springer, Berlin, 1991,p. 6. 62Extratos de nosso artigo, "A Crise, p. 96 a 101.

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Parece-me, efetivamente, se vamos ser pós-modernos, sejamos pelo menos conscien-tes de nosso papel na evolução da ciência do Direito, sejamos ao menos pós-modernos afir-mativos.63 É o momento do reviva! pós-moder-no, plural e tolerannte, dos Direitos humanos refletir-se na própria academia e na liberdade científica de cada um, como forma de constru-ção de uma teoria não-discriminatória e efetiva de harmonia social, teoria de inclusão científica para o Direito no novo século. Repito: O desa-fio neste início de século não é mais a simples inclusão da pesquisa jurídica nas ciências soci-ais, mas o seu desenvolvimento como efetiva contribuição à sociedade64 e à Justiça , não ao cientificismo e à burocracia.

II - Ensinando a pesquisar: O Grupo de Pesquisa CNPq "Mercosul e Direito do Con-sumidor" e o desenvolvimen-to da metodologia de ensino da pesquisa ''Sprechstunde''

A. Metodologia de pesquisa em grupo "Sprechstunde"

Desenvolvi uma metodologia para ensi-nar a pesquisar e parar pesquisar em grupo, compilando influências alemãs e brasileiras, o resultado final é mais uma experiência do que um caminho, um método, mas de qualquer ma-neira quero agora compartilhar este modelo de erros e acertos. Como antes observei, fui monitora na Faculdade de Direito da UFRGS, e ainda aluna pude colaborar com uma pesquisa quantitativa realizada pelo Prof. Dr. Michael R.

63ROSENAU, 1992, p. 57.

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Will, professor da Universidade de Saarbrücken, durante os seus seis meses de estadia em Porto Alegre. Estas duas experiências confirmaram minha vocação para ser professora e para con-tinuar na pesquisa. A convite do Professor Will fui para a Alemanha, realizei um Mestrado e uma especialização e ainda tive a sorte e honra de ter sido sua pesquisadora-assistente por seis meses na Universidade de Saarlandes, assim como pesquisadora contratada por 3 meses no Instituto Max-Planck, de Freiburg im Breisgau, trabalhando com o Professor Hühnerfeld, além de ser colaboradora científica por três meses no Instituto Suíço de Direito Comparado, em Lausanne, trabalhando com o Professor Alfred von Overbeck. Ao retornar para o Brasil, que-ria compartilhar estes ensinamentos. Procurei basear-me nos modelos europeus que obser-vei, adaptando-os à nossa realidade e necessi-dade.

A solidão da pesquisa, da elaboração dos trabalhos é inevitável. Aprendi, porém, que é possível crescer em conjunto, observando e compartilhando os trabalhos prévios de elabo-ração das produções científicas com os gran-des mestres. Observei que de um talentoso "aprendiz" de pesquisa se pode fazer um bri-lhante sucessor, e que vários aprendizes moti-vados mantém e renovam importantes escolas do pensamento. Efetivamente, eu própria apren-di muito com a precisão, rigorismo e sincerida-de intelectual destes grandes professores-pes-quisadores e fundar um grupo de pesquisa foi a maneira que encontrei para multiplicar estes ensinamentos. Desde minha entrada na Uni-versidade Federal do Rio Grande do Sul, há 10 anos, tenho trabalhado em iniciação científica e pesquisa em grupo. Ao desenvolver uma metodologia própria para ensinar a pesquisar, nomeie em sua homenagem, face à acessibilida-de e à grandeza de meus mestres europeus: "Sprechstunde".

64GELLNER, Ernest, Pós-modernismo, Razão e Religião, Instituto Piaget, Lisboa , 1992, p. 60.

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1. Compilando influências ale-mãs e brasileiras para formar a "Sprechstunde"

A monitoria é uma boa experiência para quem quer ser professor, mas a pesquisa é uma boa experiência para qualquer futuro profissio-nal do Direito. A pesquisa é um elemento diferenciador, tão ou mais importante hoje, quan-do tantos estudam Direito e apenas passam nas Faculdades, como números à procura de um diploma autorizador do exercício de uma profis-são. Saber pesquisar é um instrumento de cria-ção de competência em Direito, é um caminho para a excelência e a especialização cada vez mais procuradas no mercado, é uma base a mais para a formação própria, a suprir falhas eventu,.., ais nos curricula das Faculdades ou os limites dos nossos próprios mestres e de nossas bibli-otecas. Saber pesquisar é uma maneira para enfrentar qualquer desafio novo em Direito e a vida dos profissionais é uma constante reno-vação destes desafios.

Particularmente, considero que a pesqui-sa foi meu caminho de destaque e de excelên-cia. Quando o professor Michael Will me con-vidou para com ele levantar e pesquisar todos os casos de adoção internacional em Porto Ale-gre nos últimos 5 anos, poderia ter dito "não", mas aceitei e isto me descortinou o mundo do Direito. Não há pesquisa em Direito Internacio-nal, porém, sem conhecimento de línguas es-trangeiras e neste caso, fui escolhida inicial-mente por esta aptidão.65 Então no quarto ano da Faculdade tive o prazer de acompanhar o mestre de Saarbrücken, desde a elaboração das fichas de casos e formulários, das fichas de lei-turas e bibliográficas, até o fotocopiar de todas as fontes e os processos. Observei seu rigor e preciosismo, sua preocupação com os erros,

65Assim também ARAÚJO, p. 29.

com a exatidão e exaustão das fontes. Esta pri-meira pesquisa com casos foi uma experiência ímpar, que muito me ajudou no futuro, especial-mente na escolha de meus temas de Mestrado e Doutorado. Nada melhor para descortinar as perguntas importantes, do que saber o que acontece na prática e quais as falhas o nosso sistema legal ainda possui. Esta pesquisa aju-dou-me muito também quando dos trabalhos de elaboração e crítica do Estatuto da Criança e do Adolescente, quando trabalhava na Consultaria Jurídica do Ministério da Justiça. Por ironia do destino, justamente a evolução e a mudança da lei brasileira de 1990 acabou por deixar inédito o trabalho resultado destapes-quisa. De outro lado, esta pesquisa quantitati-va e qualitativa ajudou-me decivamente a abrir meus horizontes também para a interdiciplinariedade, pois tive a oportunidade de trabalhar durante um ano com as assistentes sociais e psicológas do então Juizado de Me-nores.66

Já na Alemanha, fui contratada como pesquisadora-junior no Instituto Max-Planck de Freiburgjunto ao Prof. Dr. Peter Hühnerfeld. O Instituto, que consiste em uma maravilhosa Bi-blioteca, realiza estudos para o governo alemão e pude participar de dois destes trabalhos de pesquisa, transformados mais tardes em livros, um sobre o aborto e a condição da mulher no Brasil e outro sobre a proteção do meio ambien-te no Brasil. Aprendi que o simples levanta-mento bibliográfico e fichamento das obras já é um momento de grande crescimento para o alu-no. Aprender a resumir, a criticar as obras por sua relevância, sua organização, suas notas ou pela origem de suas principais teses, é um vali-oso exercício, que poupa o tempo do pesquisa-dor sénior (ainda mais em um Brasil que tudo se publica) e enriquece em muito, solidificando, os conhecimentos do pesquisador-júnior. Des-

66Minhas homenagens à assistente social Sylvia Nabinger, que realizou com os mesmos casos a pesquisa de seu doutorado na Faculdade de Direito de Lyon, França, por seu aopoio e modelo.

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taque-se a sinceridade intelectual deste mes-tres alemães. Foi muito positivo poder observá-los e ajudá-los a elaborar suas notas de rodapé, seu minucioso re-exame das fontes e organiza-ção lógica do pensamento. Os pesquisadores-junior nada escrevem, mas tudo acompanham, e este acompanhar, inclusive em Congressos e em discussões de grupos de pesquisadores, são momentos de grande crescimento. Outro fator a destacar é a liberdade no trabalho de pesquisa, organizado nas horas (inclusive nos finais de semana) e espaços livres e "inspira-dos" do pesquisador-júnior. Há controle de ta-refas, não de horas ou dedicação, que apare-cem claras nos resultados concretos do levan-tamento.

Em Tübingen, tive o prazer de acompa-nhar o Professor Dr. Wolfgang Knutt Norr em muitas de suas "Sprechstunden". Chamou-me muita a atenção como este grande historiador do Direito estava lá, todas as semanas, na mes-ma hora, a nossa disposição, junto com seus assistentes, para aconselhar e tirar dúvidas, para guiar-nos e repassar-nos literatura e tarefas como se isto fosse parte de uma missão. O aces-so ao professor-orientador é um fator de segu-rança. O contato com o mestre, o poder partici-par das reuniões de Cátedra e observar suas discussões e trabalhos com os assessores, enriquece o aluno. Outra boa experiência na Faculdade de Direito de Tübingen foi ter parti-cipado dos "Doktorseminaren", seminários onde os doutorandos expõem suas pesquisas para se submeter às críticas dos professores e assistentes. A mistura entre ambos, da gradua-ção e da pós-graduação, agradou-me muito. 67

Já mestre fui contratada para ser cola-boradora científica do Instituto Suíço de Direi-to Comparado em Lausanne, podendo escrever um artigo (Prêmio van Calker), mas tendo que escrever pareceres de Direito Internacional

Cláudia Lima Marques

Privado junto ao Prof. Alfred von Overbeck. O Instituto conta, ao total, com cerca de 1 O cola-boradores, que se reúnem regularmente com o professor coordenador, este e os colaborado-res de todos os continentes escrevem juntos os livros do Instituto. Cada colaborador ou pes-quisador tem seu tema individual, afeito a sua origem, sua língua materna, sistema jurídico ou religião, e assim todos trabalham com uma fina-lidade comum, mas individualmente e com ple-na liberdade de opinião. Este método pareceu-me muito frutífero, pois estimula a cooperação e o trabalho em grupo, na convergência do ob-jetivo comum, mas valoriza as individualidades e as origens diferentes (contávamos, por exem-plo, em 1987, com especialistas sobre os siste-mas socialistas, sobre China e Japão, sobre os países muçulmanos, sobre Israel, sobre Aus-trália e Oceania, sobre o sistema da common law, sobre o direito alemão, direito francês, di-reito suíço e direitos da América-Latina).

Ao retornar para o Brasil, em 1988 e após, em 1990, ao passar no concurso da Facul-dade de Direito da UFRGS, procurei organizar algo semelhante, adaptado as nossas circuns-tâncias e contextos. Não posso porém deixar de mencionar a enorme influência que os anos de Doutorado, passados no Instituto de Direito Estrangeiro e Direito Internacional Privado da Universidade de Heidelberg, sob a coordena-ção do Prof. Dr. Dr. h. c. multi Erik Jayme, exer-ceram em mim. Neste Instituto, observei apre-paração das reuniões de redação da Revista IPRAx, onde todos os 26 pesquisadores (seniores e juniores) do Instituto colaboram com material, traduções e artigos. Observei como organizavam em conjunto os congressos - as tradicionais festas de final de semestre- e semi-nários, como cooperam para cumprir com as ta-refas distribuídas pelos 3 professores Direto-res, como compartilham o conhecimento com seus "sucessores", sempre na procura da exce-

67 Assim também o testemunho de GUERRA, Willis,Critérios de avaliação e reconhecimento dos cursos de pós-graduação em Direito, Cad. Pós-Grad. Dir. UFPA, Belém, Ed. Especial, out.1999 , p. 79

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lência e da camaradagem. A organização de um Instituto como o de Heidelberg (que também é uma das mais excepcionais Bibliotecas que co-nheci) é o ideal de qualquer pesquisador.

2. O resultado final: a "Sprechstunde"

Se o resultado final parece-se um pouco com tudo - e não é idêntico a nada que conheci -,resolvi nomear a metodologia com uma ex-pressão alemã, justamente na esperança que fosse algo sólido e frutuoso, como o que ob-servei. Queria bem marcar as influências que sofri: "Hora de aconselhamento", "hora da con-versa", "hora de encontro" são algumas possí-veis traduções desta expressão alemã que está· na porta de cada professor, em cada Faculdade de Direito: "Sprechstunde".

A metodologia de ensino da pesquisa é simples. Repousa sobre três pilares básicos: a) liberdade acadêmica, b) uso positivo do inte-resse, das tarefas e dos erros, c) Aprender pes-quisa, pesquisando e observando.

A liberdade acadêmica está retratada no grupo em dois flSpectos: na liberdade do pes-quisador-senior em escolher o assunto das pes-quisas guarda-chuva e na liberdade de escolha dos temas individuais pelos pesquisadores-juniores. O pesquisador-líder determina livre-mente o tema da pesquisa guarda-chuva, a de-pender de seu interesse ou necessidade mo-mentânea, ele determina também as tarefas que deverão ser cumpridas pelos pesquisadores juniores e seus prazos, explicando-as. Receber uma tarefa é sinal de confiança no potencial do aluno. Quem pode participar naquela semana, manifesta-se e pede para colaborar, quem não

pode cala ou manifesta o motivo porque não pode participar. Assim valoriza-se a tarefa e o grupo desenvolve uma dinâmica própria de aju-da àqueles que receberam uma tarefa e não po-dem a cumprir sozinhos. A reunião é toda conduzida pelo líder, que determina a ordem de temas a ser discutidos. Quando as reuniões semanais terminam, o líder coloca-se à disposi-ção dos pesquisadores juniores para tratar de suas pesquisas individuais e aconselhá-los em suas dificuldades.68

O método usado distingüe-se de outros grupos de pesquisa por nunca impor leituras obrigatórias, referenciais teóricos ou discutir textos previamente lidos em conjunto. O cresci-mento do aluno de iniciação científica é fomen-tado individualmente, pela dinâmica de coope-ração do grupo, pela reincidência das tarefas, nunca por condução do pensamento. Leituras dirigidas, reflexões coordenadas e em grupo dirigem e manipulam o interesse dos alunos, nivelando-os e igualando-os no pensamento. O método "Sprechstunde" se assenta justamen-te na manutenção das diferenças e tendências individuais. Leituras são recomendadas indivi-dualmente e nunca discutidas em grupo. Natu-ralmente, porém, os participantes do grupo aca-bam por ler a produção intelectual dos profes-sores que participam do grupo, por curiosidade e interesse, não, por imposição. O ritmo de lei-turas de cada um, o despertar de seus interes-ses próprios (mais filosóficos, mais ligados à

ao direito comparado etc.) é um dos objetivos do método.

A iniciação científica, nas pesquisas guarda-chuva, dá-se por observação, por cons-trução própria e imitação, não é conduzida, nem o método é discutido ou revelado para os alu-nos, sendo a tarefa de condução metodológica

68 Como ensina Jeniffer GORE,p. 12, citando Foucault, por vezes ser menos democrático, dar forma e dirigir a conduta dos indivíduos em formação pode ser positivo, pois "nesse sentido, é estruturar o campo possível de ação dos outros".(GORE, Jeniffer, Foucault e Educação: fascinantes desafios, in SILVA, Tomaz Tadeu, O Sujeito da Educação, Ed. Vozes, Petrópolis, 1994, p. 12).

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apenas do líder do grupo. Não há qualquer lei-tura metodológica indicada, nem qualquer dis-cussão sobre o método entre aluno de inicia-ção científica e o professor-pesquisador, as lei-turas metodológicas nascem da necessidade sentida pelo aluno, que é então orientado.

A liberdade acadêmica do aluno se ma-nifesta na escolha de seu tem a individual. Cada aluno, que participar das pesquisas guarda-chu-va e das reuniões do grupo, deve escolher um tema, um aspecto, dentre os três tópicos possí-veis: "Direito do Consumidor", "Mercosul", "Pós-modernidade jurídica". Cada aluno passa a pesquisar um tema individual, por ele livre-mente determinado, de acordo com a sua curio-sidade, seu interesse e vocação individual.69

Neste tema ele prepara um pequeno trabalho oral de 1 O a 20 minutos para ser apresentado nos Congressos Acadêmicos do Brasilcon (Ins-tituto Brasileiro de Política e Direito do Consu-midor), em caso de intercâmbio internacional (como aconteceu nos anos de 1996,97,98 e 99 com congressos acadêmicos organizados na Argentina e no Paraguai) e, especialmente, nos Salões de Iniciação Científica da UFRGS. Os salões de iniciação científica realizam-se há 12 anos na UFRGS, sempre em setembro. Há tam-bém o Salão preparatório da Faculdade de Di-reito da UFRGS, que se realiza, há quatro anos, sempre em agosto, organizado pela Comissão de Pesquisa da Faculdade (que atualmente co-ordeno) e o Centro Acadêmico André da Ro-cha. Este foi o pioneiro salão de uma unidade da UFRGS e tem como finalidade divulgar e

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mapear a pesquisa na Faculdade, assim como treinar e desinibir os alunos para a apresenta-ção principal na Universidade.

Há liberdade de determinação do tempo de dedicação à pesquisa, pois o importante é a realização da tarefa, não quando e como o alu-no a cumprirá. Observei no Instituto Max-Planck que a determinação própria do tempo é uma ex-celente medida de disciplina e de adaptação. Cada um tem um ritmo para trabalhar e a pesqui-sa muitas vezes necessita de inspiração ou aten-ção redobrada. Poder pesquisar apenas uma hora por dia ou 5 horas corridas ou 2 noites na semana, vai depender de cada um e de suas tendências. Parece-me que não deve haver ho-rários obrigatórios para a pesquisa ou para a presença do pesquisador na Universidade. A liberdade é também manifestada na presença não obrigatória nas reuniões do grupo. As reu-niões e o contato mais íntimo com os professo-res-orientadores e mestrandos é um oferecimen-to. Se o aluno pode e quer aproveitar do ofere-cimento, excelente, se não, poderá mesmo as-sim pesquisar.

Especialmente com alunos que trabalham durante a graduação, dois caminhos são possí-veis: ou os alunos mantém a comunicação por e-mail e participam das demais atividades do grupo (seminários, encontros, congressos) ou os alunos combinam com seus chefes poder participar de algumas reuniões. Muitos pesqui-sadores voluntários não tem bolsas de pesqui-sa, justamente pois fazem estágios ou já são

69Como exemplo podemos observar a diversidade de temas escolhidos pelos alunos mais adiantados (pesquisado-res-seniôres) este ano de 2000 nos Salões de Iniciação Científica da UFRGS e da Faculdade de Direito: 1. Aspectos da Harmonização do Direito Societário na União Européia: Um exemplo para o Mercosul -Lucas Faria Annes, 2. Publicidade Abusiva: sua regulamentação no Mercosul- Daniela Correa Jacques, 3. Serviços públicos essenciais e o princípio da continuidade: tutela do consumidor versus Estado-Fornecedor - Fernanda Girardi, 4. As várias nuances do dever de informar no Código de Defesa do Consumidor- Fernanda Nunes Barbosa, 5. Medicamentos genéricos: a liberdade de escolha do consumidor - Laura Ederich, 6. Cláusulas abusivas na Argentina e no Brasil-Guillermo Campbell (UFRGS!Univ. de Cordoba, Argentina), 7. Fundamentos da proteção dos direitos da persona-lidade: a evolução da tutela do direito de imagem na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul ( 1984 a 2000) - Bruno Nunes Barbosa Miragem; 8. Internet e Direito- Antonia Espíndola Longoni Klee, 9. Garantia globalizada: Análise de um possívelleading case - Rafael Garcia; 10. Limitação de juros nos cartões de crédito- Odiléa Oliveira de Almeida Simão.

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concursados nos Tribunais. Como as reuniões do grupo são entre 12h30min e 14horas, quase todos que fazem estágios podem participar. A combinação entre prática e ensino da pesquisa em grupo tem sido muito exitosa, tanto que vá-rios juizes do Rio Grande do Sul hoje dão prefe-rência (ou convidam) os pesquisadores do nos-so grupo para assessores, vários escritórios e grandes empresas de Porto Alegre e São Paulo nos telefonam pedindo "pesquisadores" dos últimos anos e as cartas de recomendação do grupo têm aberto várias portas profissionais, assim como permitido vantagens compara ti v as ao se concorrer por bolsas de estudo. O grupo oferece também pequenas aulas sobre metodologia da pesquisa, que são dadas pelos mestrandos e professores visitantes DAAD/ CAPES.

O uso positivo do interesse, das tarefas e dos erros, é uma tentativa de respeitar as indi-vidualidades e permitir que cada um desenvol-va-se no seu ritmo e conforme suas inclinações temáticas (linguísticas e ideológicas). Todos os pesquisadores falam pelo menos uma língua estrangeira e entendem espanhol, que é consi-derada língua de trabalho no Rio Grande do Sul. O grupo facilita o acesso dos pesquisadores aos cursos de línguas, através do pedido de bolsas (principalmente de alemão) e recebe a colaboração constante do Instituto Goethe e do DAAD.70 As tarefas são valorizadas atra-vés da explicação de sua função: o aluno sabe então da importância do levantamento que vai fazer para a pesquisa guarda-chuva do profes-sor ou do grupo, sabe se está procurando uma nota de rodapé ou uma recente crítica publicada da posição defendida do professor, de forma a demonstrar ao aluno como ele está colaboran-do com o pesquisador-senior. Os erros são cri-

ticados e explicados. A crítica é sempre cons-trutiva, mas a demonstrar a valorização do tra-balho do aluno, pois se o erro persistir, o traba-lho principal pode ser comprometido. Por exem-plo, se o aluno fotocopia uma fonte e não indi-ca a Revista da qual retirou o artigo, ou esque-ce de fotocopiar uma página, o erro será identi-ficado pelo orientador, que pedirá para o aluno corrigir, explicando que assim a fonte está in-completa e não pode ser citada, o que a inutili-za. No Brasil, há certo receio em criticar e mos-trar os erros, mas isto pode levar a uma repeti-ção negativa. Na Alemanha, criticar é sinônimo de respeito e, seriedade pelo trabalho alheio e próprio, leva ao crescimento, a melhoria. Errar é natural, e é um indício que o aluno se esforçou, está ativo, atuando, pesquisando. Só erra, quem faz. Quem erra, porque está iniciando e se de-senvolvendo (em pesquisa), merece saber como acertar na próxima . 71

Mais do que funcional, o grupo deve servir para convívio. A aprendizagem passa pelo convívio. É o que distingue a escola da Universidade, que é fórum e lugar de convívio. Do modelo do hiwi alemão aprendi a beleza e prazer de conhecer e conviver mais intimamen-te com os grandes mestres. O grupo de pesqui-sa é uma maneira de conviver com o professor orientador, mas principalmente de encontrar, acompanhar e ajudar, durante sua estada na ci-dade, os professores convidados de fora. Co-nhecer um importante professor estrangeiro, um professor de uma outra Universidade, um dou-torando, um pesquisador associado é também o descortinar de novos horizontes, novos inte-resses, novos temas, nova bibliografia, novas idéias, é sobretudo , importante motivação e modelo para se continuar a pesquisar, a querer saber sempre mais, a acompanhar este mundo

70 Em 2000, receberam as bolsas de curta do duração DAAD para cursos de verão em alemão, na Universidade de Heidelberg e Freiburg, Rafael Garcia e Aline J ackisch. 71 Veja sobre análise do erro (Fehleranalyse) na aprendizagem, EDMONDSON, Willis e HOUSE, Juliane,Einführung in die Sprachlehrforschung, Ed. Francke, Tübingen, 1993, p. 205: "Fehler sind aus dieser Sichtweise also durchaus etwas natürliches, namlich Indizien dafür, dass der Lerner sich aktiv mit [dem Objekt] auseinandersetzt."

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que passa a estar ao alcance. Receber a tarefa de acompanhar, de ser o "Angel" do mestre visitante, pode determinar o lugar onde o es-tudante fará seu futuro mestrado e doutorado, pode mudar a perspectiva de vida do pesqui-sador-júnior. O convívio também deve se fazer no próprio grupo, por isso aprendi em Heidelberg que é preciso encontrar-se em ou-tros momentos e tempos do que apenas na Universidade, especialmente em festas e co-memorações.

O terceiro pilar é a prática da pesquisa: aprender, pesquisando. Se o Grupo de Pesqui-sa funciona como grupo de apoio e levanta-mento de fontes para os pesquisadores seniors e ao líder, ajudando na elaboração de seus tra-balhos, produções científicas e acadêmicas, especialmente para preparar artigos de doutri-na, livros, pesquisas quantitativas de jurispru-dência, levantar novos leading cases, nova bibliografia e acompanhar a rapidez das modi-ficações legislativas. O Grupo funciona, prin-cipalmente, como um laboratório de iniciação científica para os alunos, que assessoram as pesquisas principais ( exceção feita à redação dos trabalhos, que é exclusiva dos pesquisa-dores-seniors),72 que levantam o material, dis-cutem a sua relevância, precisão, orientação e atualidade, lêem e elaboram fichas de leituras individuais (do material selecionado como im-portante pelos pesquisadores seniors), obser-vam as técnicas de delimitação, de precisão, de clareza, de sinceridade intelectual e de re-flexão usadas pelos pesquisadores seniores, assim como passam a dominar os instrumen-tos técnicos da pesquisa (fichas de leituras, fichas de bibliografia, desenvolvimento de fi-chas de análise de casos, etc.) e instrumentos materiais (domínio dos acervos das Bibliote-

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cas existentes na Universidade e na cidade, acer-vo de documentos disponível na Internet, nas publicações e levantamentos anteriores do pró-prio grupo, etc.). Mesmo sem escrever ou elabo-rar textos científicos, é possível aprender a pesquisar. Observar vários momentos e méto-dos do orientador, pesquisar de forma própria, útil e orientada, são os caminhos escolhidos.

B) O Grupo de Pesquisa CNPq ''Mercosul e Di-reito do Consumidor" e a pesquisa em Direito Internacional

Uma vez que leciono na graduação da Fa-culdade de Direito da UFRGS as cadeiras de Di-reito Internacional Privado e Direito das Rela-ções Internacionais (Direito da Integração) fico especialmente honrada com o convite da colega e eminente colaboradora, Profa. Dra. Nádia de Araújo, para participar das discussão do Grupo Temático 1 "Direito Internacional e Integração Regional: os efeitos da globalização". Gostaria de colaborar tecendo algumas observações e reflexões sobre dois aspectos: 1. A possibilida-de que a pesquisa em Direito Internacional abre para trabalhos conjuntos, para a produção do conhecimento em grupos de pesquisa, em gru-pos interdisciplinares, interinstitucionais e inter-nacionais, através da análise comparativa, da pro-dução em conjunto e na diversidade atual; 2. A vocação intrínseca e estrutural do Direito Inter-nacional, como matéria, e da pesquisa realizada neste campo do conhecimento refletir, desenvol-ver e ser instrumento da integração regional.

Como forma de unir e organizar estes dois temas usarei minha experiência como líder e fun-dadora do Grupo de Pesquisa CNPq "Mercosul

72 Ao não permitir que os pesquisadores juniores elaborem qualquer texto, nem que ajudem nas pesquisas de Mestrado e Doutorado dos outros pesquisadores seniores, evita-se qualquer tipo de exploração de idéias e textos dos pesquisadores juniores e mantém-se a sinceridade intelectual de trabalhos exigida pelo modelo alemão, permi-tindo a sua participaçao somente em algumas atividades básicas e que acompanhem os resultados e observem os métodos de cada pesquisador senior.

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e Direito do Consumidor", já com 9 anos de existência prática em Direito Internacional e Di-reito Comparado.

1. Evolução e Estrutura atual do Grupo de Pesquisa CNPq "Mercosul e Direito do Con-sumidor" IUFRGS

O Grupo de Pesquisa CNPq "Mercosul e Direito do Consumidor", que fundei e tenho a honra de liderar, completa agora 11 anos de ex-periência. Iniciou-se em fins de 1990, com alu-nos da minha primeira turma de Direito Interna-cional Privado na Faculdade de Direito UFRGS, então formandos, com o mesmo méto-' do proposto, mas não frutificou. Como na épo-ca era apenas Mestre e Especialista em Direito Comunitário Europeu, fazíamos parte do Grupo de Pesquisa sobre Mercosulliderado pela Profa. Dra. Martha Olivar no PPGD da UFRGS, com um sub-projeto intitulado "Mercosul: Realida-de Jurídica?", dentro da linha de pesquisa do PPGD/UFRGS "Integração como tarefa para a ciência do Direito". Visava o grupo pesquisar apenas os temas momentosos de Direito Inter-nacional Privado73 e do nascente MercosuJ.74

Observei uma primeira dificuldade, pois como todos os alunos de Direito Internacional Privado, cadeira obrigatória do 9 e 10 semestres na UFRGS, formaram-se naquele ano e inicia-vam suas carreiras, as reuniões semanais eram difíceis e começavam a rarear. As tarefas pedi-das não eram realizadas com regularidade e o incentivo à pesquisa era pouco. Em 1991, mi-nistrei algumas aulas de Direito Civil, nos pri-meiros anos da Graduação, e a pedido destes alunos reavivei as reuniões. Este pequeno gru-po de quatro alunos perseverou e apresentou seus trabalhos de DIPr., no Salão de Iniciação Científica da UFRGS em 1992.75 Observei a difi-culdade dos alunos com os temas de Direito Internacional Privado, motivo pelo qual, em 1993, permiti apenas aqueles quinto-anistas, que realizassem suas pesquisas nestes temas. Os demais foram direcionados a pesquisar sobre Mercosul e/ou Direito do Consumidor no Mercosul. 76 Os resultados foram melhores e a pesquisadora voluntária Elaine Ramos da Sil-va, conquistou neste ano de 1993, no V Salão de Iniciação Científica UFRGS e CNPq, na Se-ção III: Ciências Sociais Aplicadas, pela primei-ra vez para a Faculdade de Direito, o PRÊMIO JOVEM PESQUISADOR UFRGS, com o traba-lho: " Sobre a necessidade da Harmonização das Legislações nos países integrantes do Mercosul".

73Este projeto de Pesquisa, na linha de pesquisa "Integração como tarefa para a ciência do Direito" e teve três fases intituladas: 1991192- Fase I: Contratos InterÍlacionais e Mercosul/Circulação de bens, 1992/93 -Fase II:Contratos Internacionais e Mercosul/Circulação de pessoas; 1993/94- Fase ill: Proteção do Consumidor no Mercosul. 74Este projeto de Pesquisa intitulado "Integração do Cone Sul- Realidade Juríd.ca ?"teve apenas duas fases: 1991-Fase I- Mercosul- Aspectos Jurídicos; 1992-1994- Fase II- Mercosul- Realidade Jurídica. 750s trabalhos individuais apresentados em 1992 tinham como temas: 1. Mercosul e Harmonização: Política de Transportes (Ana Inês Algotarta Latorre); 2. Mercosul - Realidade Jurídica (Luiz Carlos Hagmann); 3. O Contrato de Transporte Internacional de Cargas no contexto da integração Latinoamericana (Sabina Cavalli); 4. O papel do projeto de Código de Conduta da ONU sobre transferência de tecnologia nos países em desenvolvimen-to (Elaine Ramos da Silva). 76 Os trabalhos individuais de pesquisa apresentados no Salão de Iniciação Científica da UFRGS, em 1993, tinham como títulos: 1. Sobre a necessidade da Harmonização das Legislações nos países integrantes do Mercosul (Elaine Ramos da Silva); 2. Responsabilidade do Importador no Mercosul (Katia Kneipp); 3. A pessoa como consumidor no Mercosul (Fabiana d' Andrea Ramos); 4. Direito Internacional Privado- O casamento e as novas uniões (Ana Inês Latorre); 5. Relações de Sucessão no Mercosul (Sabina Cavalli).

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Em 1994, em virtude da saída dos quin-to-anistas, resolvi reformular novamente os pro-jetas direcionando-os apenas para a pesquisa em temas envolvendo o Mercosul e o Direito do consumidor interno, de forma a permitir que alunos dos primeiros anos participassem do grupo. Novamente fomos premiados e o grupo renovou-se,77 mas como retornei para a Alema-nha em fins de 1994 e lá escrevi meu Doutorado

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até março de 1996, o grupo ficou sob a coorde-nação da Profa. Dra. Martha Olivar.

Com o meu Doutorado em 1996,78 resol-vi formalizar o Grupo e minha posição de pes-quisador líder junto ao CNPq, dando-lhe a es-trutura e o nome atual "Mercosul e Direito do Consumidor". Desde então o Grupo tem sido muito ati v o e de 1996 a 2001 79 recebeu mais 25 prêmios de pesquisa de iniciação científi-

77 Os trabalhos individuais de pesquisa apresentados no Salão de Iniciação Científica da UFRGS, em 1994, tinham como títulos: 1. A informática e o Direito à Privacidade (Angela Dumerque); 2. Direito de Arrependimento no Código de Defesa do Consumidor (Clarissa Costa de Lima); 3. A nova concepção de oferta e cláusulas abusivas no CDC (Elaine Ramos da Silva); 4. Os contratos de adesão e as cláusulas abusivas sob a perspectiva do CDC (Ana Letícia Fialho); 5. O sistema de solução de controvérsias no Mercosul (Pedro Montenegro); 6. O dever de informar e a publicidade no CDC (Fabiana D' Andrea Ramos). 78 Os trabalhos individuais de pesquisa, apresentados no Salão de Iniciação Científica da UFRGS, em 1996, tinham como títulos: 1. O direito da Concorrência no Mercosul (Pedro Montenegro); 2.Mercosul: Arcabouço jurídico e políticas universitárias (Fábio Morosini); 3.Meio ambiente e consumidor (Ana Letícia Fialho); 4. Importância do conceito de consumidor no Mercosul (Ariane Freitas); 5. Evolução da Família no Direito Brasileiro (Clarissa Costa de Lima); 6. A responsabilidade civil por dano ambiental (Jesus Tupã Silveira Gomes). 790s trabalhos individuais de pesquisa, apresentados no Salão de Iniciação Científica da UFRGS, em 1997, tinham como títulos: - 1. Ilusão de Segurança Jurídica no Mercosul (Pedro Montenegro); 2. Comissão de Comércio do Mercosul (Rodrigo Cogo); 3. A importância do Art. 28 do COC-A Desconsideração da Personalidade Jurídica frente ao consumidor (Barbara Garcia); 4. Contratos à distância e a proteção do consumidor (Ariane Freitas); 5. Quantificação do dano moral: determinação de critérios (Patrícia Peressutti); 6. O conceito de consumidor no CDC (Fernanda Barbosa); 7. Contratos de Seguro-Saúde e o Código de Defesa do Consumidor (Alberto Franco); 8. Direito do consumidor de serviços médicos (Giovanna Maciel); 9. Reconhecimen-to de Paternidade: Um estudo paralelo entre Brasil e Argentina (Fábio Costa Morosíni). Os trabalhos individuais de pesquisa, apresentados no Salão de Iniciação Científica da UFRGS, em 1998, tinham como títulos: 1. A publicidade enganosa e abusiva no CDC e suas tendências (Aline Jackisch); 2. Consumo sustentável e o Direito do Consumidor (Bárbara Garcia); 3. Novo regime das incorporações imobiliárias e o Coe (Fernanda Barbosa); 4. A responsabilidade civil no Coe pelo fato do produto e pelo vício do produto (Fabiano Menck); 5. O atual direito do consumidor de serviços no Brasil (Giovana Maciel) 6. O consumidor equiparado: reflexos nos serviços bancários (Fábio Morosini); 7. Contratos à distância e perspectivas de harmonização das leis (Ariane Freitas), 8. Atividade da Comissão de Comércio no Mercosul (Rodrigo Cogo). Os trabalhos individuais de pesquisa, apresentados no Salão de Iniciação Científica da UFRGS, em 1999, tinham como títulos: ... Os trabalhos individuais de pesquisa, apresentados no Salão de Iniciação Científica da UFRGS, em 2000, tinham como títulos: 1. Aspectos da Harmonização do Direito Societário na União Européia: Um exemplo para o Mercosul (Lucas Faria Annes); 2. Publicidade Abusiva: sua regulamentação no Mercosul (Daniela Correa Jacques) 3. Serviços públicos essenciais e o princípio da continui-dade: tutela do consumidor versus Estado-Fornecedor (Fernanda Girardi) 4. As várias nuances do dever de informar no Código de Defesa do Consumidor (Fernanda Nunes Barbosa) 5. Medicamentos genéricos: a liberdade de escolha do consumidor (Laura Ederich) 6. Cláusulas abusivas na Argentina e no Brasil - Guillermo Campbell (UFRGS/Univ. de Cordoba, Argentina); 7. Fundamentos da proteção dos direitos da personalidade: a evolução da tutela do direito de imagem na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (1984 a 2000) (Bruno Nunes Barbosa Miragem); 8. Garantia globalizada: Análise de um possível leading- case (Rafael Garcia); 9. Limitação de juros nos cartões de crédito (Odiléa Oliveira de Almeida Simão). Os trabalhos individuais de pesquisa que serão apresentados no XIII Salão de Iniciação Científica da UFRGS, que ocorrerá entre os dias 03 e 07 de dezembro próximo, têm como títulos: 1. A Homologação de Sentenças Arbitrais Estrangeiras pelo Supremo Tribunal Federal: comércio Brasil-Alemanha (Ana Gerdau de Botja); 2. Dever de Informação e os Produtos Transgênicos (Ana Rispoli d'Azevedo); 3. A Proteção dos Consumidores nos Contratos Eletrônicos (Antonia Espíndola Longoni Klee); 4. Alimentos Transgênicos: Ética, Consumo e Meio Ambiente (Laura Oliveira Ederich); 5. Aspectos Jurídicos do "Recai!'' e sua Introdução no Direito Brasileiro (Lucas Faria Annes); 6. Análise Crítica do Caso Colgate/Kolynos (Lúcia Carvalhal Sica); 7. Aspectos Jurídicos da Proteção aos Programas de Computador com Código-Fonte Aberto no Brasil (Maitê de Souza Schmitz); 8. O Código de Defesa do Consumidor enquanto Lei de Função Social (Man1ia Zanchet); 9. Os Contratos de Previdência Privada e o Código de Defesa do Consumidor (Odiléa Oliveira de Almeida Simão); 10. O Uso da Internet para a Aquisição de Bens e Serviços: alternativa segura? (Rafael Barreto Garcia); 11. Posição Imutável do Superior Tribunal de Justiça: A Questão da Importação de Merluzas (Rafael Pellegrini Ribeiro); 12. Comparação Principiológica entre a Affirrnative Action e o Código de Defesa do Consumidor (Ricardo Medeiros de Castro); 13. Responsabilidade do Transportador Aéreo por Extravio de Bagagem (Tatiana de Campos Aranovich); 14. O Cartel de Preços e a Defesa do Consumidor (Thales Gonçalves Della Giustina); 15. As linhas gerais da responsabilidade pelo fato do serviço no coe e sua recepção ou não pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul - (Thomaz Francisco Silveira de Araújo Santos)

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caso incluindo, na área de Ciências Sociais A;licadas, novamente o PRÊMIO JOVEM PESQUISADOR UFRGS, em 1999,81 com 0 trabalho do Pesquisador e Bolsista FAPERGS Fábio Costa Morosini, que mere-ceu o prêmio máximo do Salão da UFRGS

com o trabalho individual: "Comunicação de Massa: implicações legais das tecnologias emergentes".

O Grupo de Pesquisa CNPq "Mercosul e Direito do Consumidor", atu-almente congrega 12 alunos de graduação

800s prêmios recebidos pelos integrantes do Grupo, em iniciação científica, foram: 1. Pesquisadora PROPESP-UFRGS Patrícia Peressutti, DESTAQUE no XI Salão de Iniciação Científica UFRGS e CNPq, Seção III, 1997 . 2. Pesquisadora FAPERGS Giovana Maciel (PUC), DESTAQUE no IX Salão Iniciação Seção III, 1997 . 3. Pesquisador CNPq/UFRGS Pedro Montenegro- .. PREMIO no I Salao de Ctenttfica da Faculdade de Direito/UFRGS, Bolsa de estudo do Mestrado em Dtretto/UFRGS para 1998. 4. CNPq/ UFRGS, Bárbara S. Garcia, DESTAQUE no I Salão de Iniciação Científica do Direito, .de 1998 . 5. Pesquisadora CNPq/UFRGS, Ariane Cunha Freitas, DESTAQUE no I Salão de Imciação Ctenttflca do Direito, Faculdade de Direito UFRGS, 1998. 6. Pesquisador voluntário Fabiano Menck, DESTAQUE X Salão de Iniciação Científica UFR<}S e CNPq, Ciências So.ci.ais_ 1998 . 7. voluntána Cláudia Travi Pitta Pinheiro - 2. PREMIO no III Salão de Imciaçao Cientifica da Faculdade de Dtreito/UFRGS, 1999 Bolsa de estudo do Mestrado em Direito/UFRGS para 2000. 8. Pesquisadora CNPq/PIBIC Aline Jackisch, Co-o;ientador o Prof. Sérgio José Porto, DESTAQUE no III Salão de Iniciação Científica do Direito, de Direito UFRGS, 1999. 9. Pesquisadora CNPq/PIBIC Laura Oliveira Ederich, DESTAQUE no III Salão de Imciação Científica do Direito, Faculdade de Direito UFRGSl 1999.10. Pesquisadora PROPE:S91UFRGS Rosaura Macagna.n Viau, DESTAQUE no III Salão de Iniciação Científica do Direito, Faculdade de Direito !999:11. sador PROPESQ/UFRGS Bruno Nunes Barbosa Miragem, III. ?e !mciaçao _do Direito, Faculdade de Direito UFRGS, 1999. 12. Pesquisadora voluntana Odtleia Ohvetra de Almeida Simao, DESTAQUE no III Salão de Iniciação Científica do Direito, Faculdade de Direito UFRGS, 1999. 13. FAPERGS Fábio Costa Morosini (PUC), DESTAQUE no XI Salão de Iniciação Científica UFRGS e CNPq, Ciências Sociais Aplicadas, 1999 .14. Pesquisadora voluntária Fernanda Nunes Barbosa DESTAQUE no .XI Salã? de Iniciação Científica UFRGS e CNPq, Ciências Sociais Aplicadas, 1999. 15. Ahne Jackisch, Co-orientador o Prof. Sérgio José Porto, DESTAQUE no XI Salão de Imciaçao Cientifica UFARGS e CNPq, Ciências Sociais Aplicadas, 1999. 16. Pesquisador FAPERGS Fábio Costa Morosini (PUC), PREMIO JOVEM PESQUISADOR do XI Salão de Iniciação Científica e CNPq, Ciências Pesquisadora voluntária, ex-CNPq/PIBIC, Laura Oliveira DESTAQUE no IV Salao de Cientifi-ca do Direito, Faculdade de Direito UFRGS, 2000. 18. Pesqmsador PROPESQ/UFRGS, Bruno Mtragem, DESTA-QUE no IV Salão de Iniciação Científica do Direito, Faculdade de Direito UFRGS, 2000.19. Pesquisa.dora volun-tária, Daniela Jacques, DESTAQUE no IV Salão de Iniciação Científica do Direito, .de 2000. 20. Pesquisadora voluntária, Fernanda Gíradi, DESTAQUE no IV Salão de. Imciaçao Cientifica do DI_:etto, Faculdade de Direito UFRGS, 2000. 21. Pesquisador CNPq/UFRGS, Rafael Garcia, DESTAQUE no IV Salao de Iniciação Científica do Direito, Faculdade de Direito UFRGS, 2000. 22. voluntária, Klee, DESTAQUE no IV Salão de Iniciação Científica do Direito, Faculdade de Direito UFRGS, 2000. 23. Pesqutsadora voluntária, ex-CNPq/PIBIC, Laura Oliveira Ederich, DESTAQUE no XII Salão de Iniciação Científica UFRGS e CNPq, Ciências Sociais Aplicadas, 2000 .24. Pesquisador Bruno DESTAQUE no XII Salão de Iniciação Científica UFRGS e CNPq, Ciências Aplicadas, 2000 . Rafael Garcia, DESTAQUE no XII Salão de Iniciação Cientifica UFRGS e CNPq, Ciencias Sociais Aphcadas, 2000 . Em 2001 recbemos dois destaques internacionais: primeiro lugar Brasil na nacional. realizada na UFSC do Philip C. Jessup International Law Moot Court Competttwn/2001 1 parttctpaçao em Washmgton, D.C., Estados Unidos , com Professores Cláudio Moretti e Manoel André da Rocha), e estudantes do grupo: Ana Gerdau de Borja ; Thomaz Francisco Silveira de Araújo Santos Maitê de Souza Schmitz , Ricardo Medeiros. de Castro. Prêmio de Melhor Delegado, representando o Canadá, no Comitê de Direitos Humanos, no IV Amencas. Model United Nations (AMUN), realizado em Brasília, D.F, entre 14 e 19 de julho de 2001 para Thomaz Francisco de Araújo Santos. 81 Os trabalhos individuais de pesquisa apresentados no Salão Iniciação da •. em 199?, tinham como títulos: 1. A cláusula de indexação no contrato de leasmg e o consumidor- Laura Oliveira Edench; 2. A garantia como pós-venda no direito do consumidor- Rafael B. 3. C? prazo de nos de incorporação imobiliária - Fernanda Nunes Barbosa; 4. A prestaçao de serviços a luz do do consumidor- Carina Bonzanini da Silva; 5. O Bug do milênio e seus reflexos para o consunndor - Roberto Silva da Rocha; 6. Multi propriedade - Rosaura Macagnan Viau; 7. A. problemática se:viços através das linhas 0900 - Odiléia Oliveira de Almeida Simão; 8. O Plano NaciOnal de Desestattzaçao e o consunndor - Bruno Nunes Barbosa Miragem; 9. A agência estadual de regulação dos serviços públicos do Rio do Sul -AGERGS e o consumidor- Cláudia Travi Pitta Pinheiro;lO. As sociedades comerciais no Mercosul - Simone Stabel Daudt. 11. Comunicação de Massa: implicações legais das tecnologias emergentes - Fábio Costa Morosini.

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da Faculdade de Direito da UFRGS,82 3 alu-nos da Faculdade de Direito da PUC/RS,83

uma aluna estrangeira (convênio )84 , seis mestrandos do PPGDIUFRGS,85 que realizam na co-orientação do grupo, como parte de sua "ati-vidade docente", um doutorando, que oriento e uma economista, especialista em regulação, e

Cláudia Lima Marques

naco-orientação, contamos até o mês de janei-ro de 2001, com um jovem professor alemão, o docente de longa duração DAAD/CAPES 86

lotado na Faculdade de Direito da UFRGS e com professores convidados estrangeiros87 por cur-to período, assim como com professores brasi-leiros e mestrandos de outras instituições,88 e

82Atualmente fazem parte do grupo, que se reúne sempre as terças feiras na sala de aula da Biblioteca Depositária da Organização das Nações Unidas (ONU), na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, os seguintes alunos: Ana Gerdau de Borja, Ana Rispoli d' Azevedo, Antonia Espíndola Longoni Klee, Laura Oliveira Ederich, Lucas Faria Annes, Lúcia Carvalhal Sica, Maitê de Souza Schmitz, Marília Zanchet, Odiléa Oliveira de Almeida Simão, Rafael Barreto Garcia, Rafael Pellegrini Ribeiro, Ricardo Medeiros de Castro, Tatiana de Campos Aranovich, Thales Gonçalves Della Giustina e Thomaz Francisco Silveira de Araújo Santos. 83 Ana Rispoli d' Azevedo, Lúcia Carvalhal Sica e Tatiana de Campos Aranovich, Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica, PUC/RS, Porto Alegre. 84Já participaram do grupo os seguintes alunos estrangeiros: No ano letivo de 1996, o aluno alemão Christian Schindler, aluno então matriculado na Universidade de Heidelberg, Alemanha, hoje assistente do Prof. Dr. Erik Jayme, no Instituto de Direito Estrangeiro e Direito Internacional Privado da Univ. de Heidelberg, justamente por seu conhecimento do Direito brasileiro. O Doutorando Schindler, que recebeu na época crédito educativo do governo alemão para sua estada na UFRGS, é o secretário da Associação de Juristas Luso-Alemã da Univ. de Heidelberg e coordenou a ida de alunos do grupo para a Alemanha, como o mestrado de Fabiana D 'Andrea Ramos na Universidade de Heidelberg, e os cursos de verão em alemão, na Universidade de Heidelberg de Rafael Barreto Garcia e Aline Jackisch. No ano de 2000, por dois meses, duas alunas da Universidade conveniada de Santa Fé (Argentina). Este Intercâmbio de estudantes da graduação da Faculdade de Direito da Universidad Nacional dei Litoral, Argentina, por dois meses na Faculdade de Direito da UFRGS, para assistir aulas e pesquisar sobre Direito do Consumidor, em maio/junho 2000, foi uma experiência muito positiva para o grupo e foi financiando pela UNL, que deu prêmios de pesquisa às duas estudantes, e esperamos que se repita em 2001. Atualmente, temos acompanhado a estada de Helene Heyd, aluna de Relações Internacionais da Universidade de Berlim, Alemanha. 85 Atualmente Fernanda Nunes Barbosa, Daniela Correa Jacques, Michele Costa da Silveira, Bruno Nubens Barbosa Miragem, Cristiano Heineck Schmidt e José Salvador Cabral Marks., PPGD/UFRGS. 86 Até o mês de janeiro do ano de 2001 tivemos o acompanhamento e orientação do Dr. Ulrich Wehner, professor convidado UFRGS, DAAD/CAPES, oriundo da Universidade de Colônia, Alemanha e indicado pela Universidade de Heidelberg, conveniada com a UFRGS, mas antes contamos por 2 anos com o acompanhamento da Dra. Harriet Christiane Zitscher, do Instituto Max-Planck em Hamburgo (Alemanha), professora convidada UFRGS/ DAAD/CAPES, nesta cátedra alemã na Faculdade de Direito de 1998 a 1999. 87Entre junho e outubro de 2000 tivemos a colaboração do pesquisador do Centre de Droit de la Consommation da Universidade Católica de Louvain-la-Neuve, Bélgica, o Mestre alemão Jens Karsten, enviado pelo Prof. Dr. Thierry Bourgoignie para pesquisar sobre a proteção do consumidor no Mercosul. Tentamos enviar nossos mestrandos para o mesmo intercâmbio no Centre, mas não obtivemos financiamento. O Intercâmbio de Mestrandos do Grupo de Pesquisa CNPq "Mercosul e Direito do Consumidor"IUFRGS com pesquisadores do Centre de Droit de La Consommation da Universidade de Louvain-la-Neuve, Bélgica, em estágios de pesquisa de 4 meses, iniciou-se com a vinda do Me. Jens Karsten. 880s hoje jovens professores das Faculdades de Direito de Porto Alegre, os hoje mestrandos e especializandos,que tem sua origem como pesquisadores do grupo, costumam acompanhar as reuniões do grupo e colaborar na orientação dos mais jovens em seus temas de especialização, assim hoje colaborarm com o Grupo as professoras Fabiana D' Andrea Ramos (PUC/RS), Elaine Ramos da Silva (UFSMIRS), Sandra Lima Alves (CEUB/Brasilía), Sabina Cavalli (Católica!CE). Assim também colaboram os especializandos: Fabiano Mencke, Roberto Silva, Gustavo Aguiar, Alberto Franco, os mestrandos Cláudia Pitta Pinheiro (UFRGS) e Evelena Boenning (UFRGS) e o doutorando Fábio Costa Morosini, University of Texas, Austin.

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A pesquisa em Direito: Um testemunho sobre a pesquisa em grupo, o método "Sprechstunde" e a iniciação cientifica na pós-modernidade 85

com 2 colegas professoras da Faculdade de Direito da UFRGS.89

2. Relações institucionais, inter-institucionais e com a sociedade

A UFRGS mantêm vários convênios,90

a Faculdade de Direito91 também, mas o grupo mantém contatos próprios e menos formais, além destes já formalizados, especialmente com o Instituto Brasileiro de Política e Direito do Con-sumidor (São Paulo), algumas cátedras da UBA, da Universidade de Rosário e de Santa Fé (Ar-gentina), com a UROU de Montevidéu, com o Centre de Droit de la Consommation, na ca, com o Instituto de Direito Internacional Pri'-vado da Universidade de Heidelberg, mais re-centemente com a Universidade de Bremen na Alemanha, com o Centre de Recherches Européeennes da Université de Rennes I, na

França, com o Center of Comparative Law da Universidade de Baltimore, com o Texas International Law Jornal da Universidade do Texas-Austin, USA.

O Grupo de Pesquisa participa ativamen-te do Departamento Acadêmico do Brasilcon, Instituto Brasileiro de Política e Direito do Con-sumidor, uma organização não-governamental de caráter científico, criada pelos autores do Código de Defesa do Consumidor para estudar a eficácia desta lei e controlar a sua manuten-ção no mercado brasileiro. A colaboração com o Brasilcon se concretiza de várias formas. Em primeiro lugar, através de publicações, trabalho que foi iniciado com a organização do congres-so e após do livro que coordeno "Estudos so-bre a proteção do Consumidor no Brasil e no Mercosul", publicado em 1994 pela Editora Li-vraria dos Advogados, de Porto Alegre.

Especialmente, depois volta de meu dou-torado, o grupo passou a realizar traduções do francês, 92 alemão93 , inglês94 e espanhol95 para

s9 As colegas que colaboram nas publicações coletivas do grupo, na organização de congressos e eventos do grupo, assim como acompanham o grupo em suas viagens ao exterior são as colegas Vera Jacob de Fradera (UFRGS) e Martha Olivar Gimenez (UFRGS-PPGD e PUC/RS). Há 4 anos contamos também com a cc-orientação de um bolsista pelo Prof. Me. Sérgio José Porto (UFRGS). 90 O grupo utilizou os convênio da UFRGS até agora com a Universidade de Heidelberg, Tübingen, Kiel na Alemanha, UBA-Argentina, Universidad Nacional de Córdoba e Universidad Nacional dei Litoral, na Argentina, Universidade de Baltimore, nos EUA, Universidad Nacional de Assunción, Paraguai, e Universidad da República, Uruguai. 91 A Faculdade de Direito e o PPGD possuem convênios com a Universidade de Münster, Alemanha, Universidade de Paris I (Panthéon- Sorbonne), Universidad Nacional de Rosário, Argentil,ia e USP, São Paulo. 92Assim os artigos de Alfred von Overbeck (Instituto Suíço de Direito Comparado), "Eleição de Foro segundo a nova lei suíça sobre Direito Internacional Privado de 18 de dezembro de 198T', in Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, vo. 12, 1996, p. 7 a 18 e artigo do Prof. Bernard Dutoit. 93Tradução do artigo de Michael R. Will (Instituto Europa, Saarbücken), A experiência de harmonização das legislações na Europa-Harmonização Autônoma?, executada por Elaine Ramos da Silva e publicada na Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, vol. 13, 1997, p. 207-234. e tradução executada pela líder do grupo do capítulo do livro de Eike von HIPPEL, "Verbraucherschutz" e publicada na Revista Direito do Consumidor, São Paulo, vol. 1, pg. 7 a 15:"A proteção do consumidor-comprador" e também a tradução de artigo do alemão para o português do Prof. Dr. Dr. h.c. Erik Jayme, com 31 pgs., publicada na Revista dos Tribunais nr. 759,janeiro 1999, p.24 a 40, sobre o tema:"Visões para uma teoria pós-moderna do Direito Comparado". 94Tradução do artigo de J.H.A. van Loon, do inglês para o português, "Os Aspectos Legais da Adoção internaci-onal e a proteção da criança- Relatório da Associação de Direito Internacional", publicada no livro : -Homenagem à Carlos Henrique de Carvalho, Ed.Revistas dos Tribunais, São Paulo, 1995, pg. 241ss 95Veja tradução executada pela líder do grupo, para o português de artigo em espanhol do Prof. S. Stiglitz (Universidad de Buenos Aires), publicado na Revista Direito do Consumidor, São Paulo, vol. 13, Janlmarço 1995, pg. 5 a 11, com o título: "Aspectos Modernos do Contrato e da Responsabilidade Civil"

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o português e publicar na Revista do Basilcon (Revista Direito do Consumidor) e também na Revista da Faculdade de Direito UFRGS. Tam-bém organizamos e publicamos colabora-ções em espanhol de nossos "correspon-dentes estrangeiros" ,96 especialmente nos-sos professores visitantes argentinos. 97

Quanto à editoração de Revistas Jurídicas,

Cláudia Lima Marques

inicialmente, de 1992 a 1998, ajudamos o trabalho pioneiro e inovador de Antônio Herman Benjamin, presidente e fundador do Brasilcon,98 na editoração da Revista Di-rei to do Consumi dor. Ao assumir a editoração da Revista, em 1998, criamos uma seção especial para doutrina internacional, onde continuamos a publicar, em espanhol,

96 Assim publicamos os trabalhos dos jovens professores e pesquisadores estrangeiros que se correspondem com o grupo, Diego Fernandez Arroyo, argentino, professor na Univ. de Autonoma Madri (Sobre Ia existência de una família jurídica latinoamericana, in Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, vo. 12, 1996, p. 93 a 110), Gilles Cistac, francês, Diretor da Univ. de Maputo, Monçambique (Poder Legislativo e Poder regulador na Constituição Moçambicana de 30 de novembro de 1990, in Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, vo. 12, 1996, p. 148-160), Christoph Benicke, alemão, assitente na Universidade de Heidelberg ( La convención sobre los derechos dei nino de las naciones unidas y la reforma dei derecho de custodia y de visita en Alemania, , in Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, vo. 13, 1997, p. 51-70), Erasmo Marcos Ramos, brasileiro, mestrando na Universidade de Heidelberg, Alemanha (A influên-cia do BGB na parte geral do novo Código Civil português, in Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, vol. 15, 1998, p. 75-98). 97Yeja os artigos de Carlos Alberto Ghersi (UBA) publicados na Revista da Faculdade de Direito da UFRGS (La contracción entre la reformulación de la categoria jurídica dei dano resarcible y ele acceso ai dano resacible en el final dei siglo XX, in vol. 11,1996, p. 24-39 e Posmodernidad jurídica- el analisis contextuai dei Derecho como contracorriente a la abstracción jurídica, in vol. 15, 1998, p. 21-32 ) e na Revista Direito do Consumidor, de Ricardo Lorenzetti (UBA), publicados na Revista da Faculdade de Direito da UFRGS (La descodificación y fractura dei Derecho Civil, in vol. 11,1996, p. 78-93 e Redes Contractuales, in Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, vo. 16, 1999, p. 161-202) e na Revista Direito do Consumidor e apresentação do livro de Lorenzetti publicado pela Editora Revista dos Tribu-nais (Fundamentos do Direito Privado), Maria Blanca Noodt Taquela (UBA), publicado na Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, vol. 15, 1998, p. 181-192, Atílio Alterini (UBA), Informe sobre la Responsabilidad Civil en el Proyecto de codigo Civil de 1998,vol. 17, 1999, p. 3 e seg. e os publicados na Revista Direito do Consumidor. 98 Assim foram publicados de nossos correspondentes, por inicativa do Dr. Benjamin, na Revista Direito do Consumidor (RT, São Paulo), os seguintes trabalhos: Gabriel Stiglitz "O direito contratual e a prote-ção jurídica do consumidor". RDC n. 01, p. 184-199, "O Direito do Consumidor e as práticas abusivas-Realidade e perspectivas na Argentina" RDC n.03, set/dez 1992, p. 27-35 e "Las acciones colectivas en proteccion dei consumidor"RDC n. 15,jul/set 1995, p. 20-27. Rúben S. Stiglitz "Aspectos modernos do contrato e da responsabilidade civil" RDC n. 13, jan/mar 1995, p. 5-11. Ricardo Luiz Lorenzetti "Analisis crítico de la autonomia privada contractual" RDC n. 14, abr/jun 1995, p. 5-19. Atílio Aníbal Alterini "Os contratos de consumo e as cláusulas abusivas", in RDC n. 15, jul/set 1995, p. 5-19 e "Control de la publicidad y comercialización"RDC n. 12, out/dez 1994, p. 12-16; Roberto M. López Cabana "Ecología y consumo" RDC n. 12, p. 25-28 e, após, 1994: Gabriel A. Stiglitz - Danõ moral individual y colectivo, medioambiente consumidor y danosidad coletiva, RDC n.l9- jul./set. 1996, p. 68176, Atilio Aníbal Alterini- Bases para armar la teoría general del contrato em el derecho moderno,RDC n.19- jul./set. 1996, p. 7/24; Rubén S. Stiglitz- Seguro contra la responsabilidad civil. Control estatal de las condiciones generales de la poliza- estado actual en los países del mercosul, RDC n.20- out./dez. 1996,p. 9114; Ricardo Lorenzetti- La relación de consumo: conceptualización dogmática en base al derecho del mercosur, RDC n.21- jan./mar 1997, p. 9/31; Rubén S. Stiglitz- La obligación precontractual y contractual de información. El deber de conseso, RDC n.22- abr./jun. 1997, p. 9/25; Carlos Alberto Ghersi- Los profesionales y la posmodernidad- los abogados, RDC n.23/24- jun./dez. 1997, p. 9118.

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A pesquisa em Direito: Um testemunho sobre a pesquisa em grupo, o método "Sprechstunde" e a iniciação científica na pós-modernidade 87

os trabalhos de nossos correspondentes. 99

A pesquisadora líder é correspondente in-ternacional da Revista argentina, "Revista de Responsabilidad civil y seguros", cujo Diretor é o Prof. Atílio Alterni, publicado por La Ley, Buenos Aires e da revista belgo/inglesa, Consumer Law Jornal, que tem como editores gerais Thierry Bourgoignie (Uni v. de Louvain-la-N eu v e) e Geraint Howells (Uni v. of Sheffield), publicada pelo Centre de Droit de la Consommation-CDC .100

Outro exemplo de colaboração com o Brasilcon foi a elaboração e a publicação do relatório de pesquisa exaustiva sobre seguro-saúde realizado pelo grupo no TJ/RS da entra-da em vigor do CDC até a elaboração da lei de seguro-saúde, de 1996 a 1998. Este relatório foi publicado na Revista do Instituto (Revista Di-reito do Consumidor/RT)101 e no livro do Insti-tuto "Saúde e Responsabilidade" em 1998 e fa-zia parte de uma pesquisa do Brasilcon sobre a jurisprudência brasileira em seguros e planos

de saúde, coordenada nacionalmente pelo Prof. Dr. José Reinaldo de Lima Lopes (USP). Tive a oportunidade de coordenar a pesquisa no Rio Grande do Sul e Paraná, realizada no Rio Gran-de do Sul com a ajuda da Docente convidada alemã, Dra. Harriet Zitscher e contando no Paraná com a contribuição no levantamento dos casos da acadêmica da PUC/PR, Caroline Araú-jo, também co-autora do relatório do Grupo.

O Grupo fornece jurisprudência atu-alizada para a Revista do Instituto, Revista Direito do Consumidor, que atualmente co-ordeno, revista especializada considerada a 3a Revista mais vendida pela Editora Re-vista dos Tribunais e editada em São Pau-lo. Da mesma forma, a professora alemã Dra. Harriet Zitscher publicou pelo Brasilcon, com apresentação minha, seu livro "Metodologia do ensino com casos práti-cos- Exemplos do Direito do Consumi-dor"102, inaugurando uma nova linha de pu-blicações do Brasilcon/MG.

99 Assim foram publicados, na Revista Direito do Consumidor, os trabalhos de nossos correspondentes da Argentina: Gabriel Stiglitz- Modificaciones a la ley argentina de defesa dei consumidor y su influencia en el mercosur, RDC n.29- jan./mar. 1999, p. 9/20; Carlos Alberto Ghersi- La caracterización de los servicios professionales de la abogacia. El poder cultural y la desigualdad en la formación contractual. RDC n.25- jan./mar 1998, p. 9/18 e Consumo sustentable y medio ambiente, RDC n.31- jul./set. 1999, p. 971103; Medida anticipativa. Prevención de agravamiento del dano a la persona, RDC n.32- out./dez. 1999, p. 1491154 e Esquema de una teoria sistemica del contrato, Revista n.33- jan./mar. 2000, p. 51177; Ricardo Lorenzetti- Redes Contractuales: Conceptualización jurídica, relaciones internas de colaboración, efectos frente a terceros, RDC n.28- out./dez. 1998, p. 22/58, Esquema de una teoria sistemica del contrato, RDC 33, jan/mar. 2000, p. 51177; Atilio Aníbal Alterini- Tendencias en la contratación moderna, RDC n.31- jul./set. 1999, p. 104/114 e Roberto M. Lopez Cabana- Defesa jurídica de los más débiles, RDC n.28- out./dez. 1998, p. 7/21. 100 Veja Informações sobre jurisprudência e legislação brasileira, artigos de Claudia Lima Marques, no "Consumer Law Jornal" (CDC Publications, Bélgica), vol. 7 (1999), p. 108-109 e p. 119-120 :"Consumer car leasing contracts- Repayment indexed in dollars -Currency devaluation - Court applies principies of Consumer code" e "Brazil- New healph insurance law", no vo1.8 (2000), com Gabriel Stiglitz: "New Consumer Protection Laws in Mercosur" e a aparecer: "The cigarette industry have the burden of proving that nicotine is not addictive to consumers". 101Relatório de Pesquisa quantitativa e qualitativa de jurisprudência gaúcha sobre seguro-saúde e o CDC, realizada pelo Grupo de Pesquisa CNPq "Mercosul e Direito do Consumidor", coord. Claudia Lima Marques e Harriet C. Zitscher, conjuntamente com estudantes, publicado na Revista Direito do Consumidor (São Paulo), vol. 29, jan/ mar 1999, p. 88 a 105:"Relatório BRASILCON sobre seguro-saúde no TJRS, de 1991 até maio de 1998" 102Livro de Bolso, "Metodologia do ensino com casos práticos- Exemplos do Direito do Consumidor" Ed. Del Rey, Belo Horizonte, 1999. Apresentação de Cláudia Lima Marques, p. 1 a 19.

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Em matéria de relações interdisciplinares e interinstitucionais, mister destacar que o gru-po possui uma interface muito importante com o Juizado de Pequenas Causas da Faculdade de Direito da UFRGS, uma vez que geralmente o mestrando em estágio docente do Grupo coor-dena tal posto do J uizado ou lá realiza suas pes-quisas de Mestrado em Direito do Consumidor, com a FEE-Fundação de Economia e Estatística do Estado do Rio Grande do Sul, uma vez que contamos com um economista da FEE acompa-nhando e orientado os trabalhos sobre regulação, agências reguladoras e outros tra-balhos voltados para o estudo do impacto das desestatizações frente as consumidores e com a AGERGS, uma vez que vários egressados do grupo trabalham e assessoram a Agência Re-guladora do Estado do Rio Grande do Sul.

Na UFRGS, o grupo mantém contatos com o CEDEP, Centro e Biblioteca especializa-da em Integração e seu curso de Especialização Interdisciplinar "Mercosul e Integração" (IFCH/

Cláudia Lima Marques

UFRGS), coordenados pela Profa. Dra. Maria Suzana Arrosa Soares, uma vez que os alunos de iniciação científica lá realizam suas pesqui-sas e todos os professores envolvidos no gru-po, ministram aulas neste curso, 103 assim como com o Curso de Especialização da Faculdade de Direito da UFRGS "O Novo Direito Interna-cional".104 O grupo também coopera com o pro-jeto TERMISUL, na elaboração de um dicioná-rio de termos do Direito Ambiental Internacio-nal, coordenado pela Profa. Dra. Maria da Gra-ça Krieger. 105

Em matéria de relações internacionais, 106 o grupo mantém contato com a Universidade de Buenos Aires, com a cátedra da Carlos Alberto Ghersi (Direito Civil: Obrigações e Con-tratos), sendo que vários alunos do grupo pu-deram participar de Congressos na Argentina em 1993, 1994, 1997 e 1998, os professores do grupo são convidados anualmente a palestrar na Argentina e os professores da cátedra no Brasil. Da colaboração destes dois grupo nas-

103São professores do Curso, além da autora, as professoras Vera Fradera, Martha Olivar e Fabiana Ramos, além do professor convidado DAAD/CAPES, Ulrich Wehner. 104São professores do Curso do Departamento, além da autora, que o coordena junto com o Prof. Manoel André da Rocha, as professoras Vera Fradera, Martha Olivar e Fabiana Ramos, além do professor convidado DAAD/ CAPES, Ulrich Wehner. 105 Cooperaram com o Projeto os alunos Fábio Morosini e Fernanda Barbosa, além da líder do grupo. 106 Como conclama FERNADEZ ARROYO, Diego, Propuestas para la enseiíanza y la investigación deZ Derecho Internacional Privado en América Latina, no livro "Jornadas de Derecho Internacional', Ed. OEA/Sec. de Asuntos Jurídicos, 2000, p. 93 a 112, há que se criar um "jurista americano abierto ai mundo",p. 96 e especialmen-te frisar os estudos e pesquisas na "integración Iatinoamericana", p. 97.

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ceram várias publicações conjuntas, na Argen-tina107 e no Brasil. 108 Assim também mantêm o grupo colaboração com a cátedra do Prof. Ricardo Lorenzetti, da UBA e Prof. Gabriel Stiglitz, uni v. de La Plata, com a Uni v. de Rosá-rio e Uni v. Nacional dei Litoral, Santa Fé.

Conclusão Como se observa, é possível realizar

pesquisa em grupo,, frutífera e séria, em Direito. O método aqui retratado é apenas um, muitos outros podem ser desenvolvidos e aperfeiçoa-dos pelos colegas interessados em pesquisa.

A pesquisa em Direito internacional é um caminho aberto para o trabalho conjunto, de criação e evolução do pensamento e da doutrina Latino-americana. A colaboração com a sociedade c i vil organizada não pos-sui apenas o caminho da extensão, também pode ocorrer através da pesquisa acadêmi-ca e publicações direcionadas para a solu-ção dos problemas regionais ou setoriais. A Universidade Brasileira evoluiu muito no que concerne a pesquisa de iniciação cien-tífica e este tem se mostrando um caminho positivo para alunos e professores-pesqui-sadores também no Direito. Esperamos que este testemunho possa motivar e ajudar.

107 Em 1993 veja capítulo de Livro publicado na Argentina, "MERCOSUL - Perspectivas desde el Derecho Privado", Carlos Alberto Ghersi(Director), Editorial Universidad, Buenos Aires, 1993, p. 167 a 209: Cap.VIII-"Tranferencia de Tecnología." e 1996 - Parte Brasileira do Capítulo IX do Livro coletivo publicado na Argentina, ,,MERCOSUR- Perspectivas desde el derecho privado- Segunda Parte", org. Ghersi, Carlos Alberto, Editorial Universidad, Buenos Aires, 1996, tradução para o espanhol de Carlos Alberto Ghersi, pg. 199 a 226: Cap.IX-"Los derechos del consumidor. Una visión comparativa entre el Brasil y la Argentina. A) El Código Brasilefío de Defensa dei Consumidor y el Mercosrn'' e em 2000 , capítulo de Livro publicado na Argentina, "Los Nuevos Danos- Soluciones modernas de reparación", vol. 2, Carlos Alberto Ghersi (Director), Editorial Hammurabi, Buenos Aires, 2000, traduzido para o espanhol, pg. 69 a 105: Cap.IV-"Contratos de Time-Sharing en Brasil y la protección de los consumidores: critica ai Derecho Civil en tiempos posmodernos". 108 Assim foram publicado os artigos dos Assistentes da Cátedra de Carlos Alberto Ghersi, Manuel Cunha Rodriguez (El Sistema de Franchising y la tutela de los consumidores y usuários en el derecho argentino, in Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, vo. 13, 1997, p. 147-172), GracielaLovece (El tiempo compartido,, in Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, vo. 13, 1997, p. 131-146), Eduardo Barbier (La tutela dei cliente bancaria desde Ia Iey de defensa dei consumidor en el derecho argentino, , in Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, v o. 13, 1997, p. 99-116), Célia Weingarten (Estado de la doctrina y jurisprudencia en la responsabilidade medica, in Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, vo. 13, 1997, p. 39-50).

Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, v. 20, Outubro/2001

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ESTRATÉGIAS DE LEITURA E ESTUDO NO CURSO DE DIREITO

Judith Apda de Souza Bedê*

* Docente da disciplina de Comunicação e Investigação Científica no curso de Direito no Centro Universitário de Maringá – CESUMAR; Mestranda em Direito da Personalidadeno Centro Universitário de Maringá – CESUMAR; Licenciada em Letras e em Direito pela Universidade Estadual de Maringá – UEM. E-mail: [email protected]

RESUMO: Abundam na mídia informações sobre o desempenho brasileiro nos testes internacionais de leitura, inferior ao de países com economiamuito menos avançada. Também não faltam comentários sobre a proliferação de cursos de Direito com baixa qualidade. De um lado, professoresdo ensino fundamental e médio trabalham em péssimas condições, com remuneração, no mínimo, vexatória; de outro, professores do ensinosuperior estarrecidos com a “qualidade” do novo acadêmico. Em meio a tudo isso fica o alunado: “mal lê, mal fala, mal ouve e mal vê”. Nestaconjuntura sobressai a questão da leitura, que há muito tem preocupado os educadores e a sociedade em geral. É fato que os alunos pouco ounada lêem durante todo o processo de escolarização, deficiência que persiste mesmo diante do prejuízo para sua formação profissional. Quandolêem, restringem-se a um baixo nível de compreensão das informações contidas em textos simples. Assim, o problema em torno do qual se firmaesta pesquisa é o do resgate da leitura nos bancos universitários, a partir da vivência coletiva e da cosmovisão artística e interdisciplinar, visto quea leitura permite dialogar com diversas outras áreas do conhecimento, em suas várias interfaces. Para tanto, este projeto, posto em prática nadisciplina de Comunicação e Investigação Científica, tem por escopo explorar questões relacionadas à leitura aliando-a à expressão oral, com vistaà expansão e aprimoramento do conhecimento acadêmico. Pretende-se dinamizar o processo de leitura, com a conseqüente transformação doaluno em cidadão, em falante e em leitor da sua própria língua e da ciência jurídica.

PALAVRAS-CHAVE: Direito; Leitura; Oralidade; Clássicos jurídicos.

READING AND STUDYING STRATEGIES IN LAW SCHOOL

ABSTRACT: There are, inside the media, a lot of information about the Brazilian performance in international tests of reading, which is lower thancountries with its economy less advanced comparing to Brazil. Also comments about the Law schools proliferation with low quality exist. On theone hand, teachers of the elementary and high school works in poor conditions with remuneration at least embarrassing; on the other hand,college teachers astounded with the “quality” of the new college student. Among all of this, there are the learners: barely read and speak; barelyhear and see. In this context, the issue of the reading highlights, once it has been concerning the educators and the society in general for a longtime. It is a fact that the students do not read or do it very bad during the whole learning process, a deficiency that persists even standing thedamage for its own professional formation. When read, restrict itself to a low level of comprehension of the information founded in simple texts.Thus, the problem around this research is the recover of the reading at the university field, starting from living as a group and from the artistic andinterdisciplinary cosmovision, once reading allows to dialogue with many other areas of knowledge in its various interfaces. This project, put intopractice at the Communication and Scientific Investigation subject, aims at exploring questions related to the reading, working together with the oralexpression, aiming the expansion and improvement of the student knowledge. It intends to improve the reading process with the consequenttransformation of the student into a citizen, a speaker and into a reader of its own language and of the juridical science.

KEYWORDS: Law; Reading; Orality; Juridical classics.

INTRODUÇÃO

Já dizia Monteiro Lobato: “Um país se faz com homens e livros”. No en-tanto, deve-se destacar que, além dos livros, é preciso avaliar algumas con-cepções pelas quais se opta, como as de sociedade, de educação, de lin-guagem, de leitura e de literatura, além da formação do gosto. “E falar em for-

mação do gosto é retomar as relações entre leitura, literatura e escola doponto de vista das possibilidades políticas do movimento no sentido de de-sestabilização da dicotomia entre prazer e saber”. (MAGNANI, 1989, p. 27-29). Desta feita, pensar os problemas, estudar teorias e desenvolver estratégiaspara minimizar problemas com a leitura, a oralidade e a compreensão detextos do universo jurídico foi o objeto de trabalho desta pesquisa.

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Estratégias de Leitura e Estudo no Curso de Direito28

Buscou-se explorar o desenvolvimento de estratégias de leituraque levassem o acadêmico do primeiro ano de Direito a tomar contatocom as leituras do universo jurídico e algumas boas obras da literaturanacional, aprimorando-lhe o gosto e incentivando a perspicácia e agudezade sentidos, assim como a argumentação a partir de determinadospontos de vista. Boa literatura é como uma obra de arte: vem carregadade prazer estético, primordial à humanidade.

Toda área dispõe de mestres, pesquisadores, estudiosos que, atravésde seu trabalho, ofereceram valioso contributo às ciências às quais sefiliaram; nos bancos universitários são eles chamados de clássicos.Entretanto, com o passar do tempo e as mudanças sociais e idiomáticas,o acesso àquele saber fica mais “difícil”, falta intimidade com os termostécnicos, faltam pré-requisitos cognitivos, são escassas as habilidades deleitura e muito daquilo que é valioso, motivador e interessante, perde-se.Quando se trata de uma ciência milenar como o Direito, a compreensãodo desenvolvimento histórico-social e da evolução do pensamento jurídicoem muito pode contribuir para a formação do acadêmico. Não obstante, aleitura dos clássicos da área, da boa literatura, das matérias bem redigidasdos melhores jornais, habilita o aluno a conviver com o outro de modomais abrangente, tornando-o homem mais completo, cidadão cônscio deseus direitos e deveres, profissional apto a diligenciar em favor do direitode seu cliente ou a aplicar a melhor interpretação da lei ao caso concreto.Ler, para o acadêmico de Direito, é pressuposto fundamental.

2 DESENVOLVIMENTO

2.1 LEITURA, LITERATURA E ARTE

No intuito de buscar soluções para o déficit de leitura demonstradopelos alunos do curso de Direito, buscou-se a melhor teoria sobre osproblemas da leitura na escola. O ponto de partida está no próprio homem.O ser humano, à semelhança das formigas, símios e cupins, vive emsociedade; no entanto, diferentemente dos animais, não apenas semovimenta em meio à natureza, mas age motivadamente, visando atingirum objetivo; transforma a natureza, a si mesmo e aos outros a partir deseus atos; como ser social, precisa conviver. Aliás, já dizia Aristóteles: “Ohomem só ou é um bruto ou é um deus”. Ocorre que, desde a RevoluçãoIndustrial até nossos dias, houve um processo crescente de mecanizaçãoda vida, e a sociedade, dividida em classes, gera um homem insociável,ou seja, desligado do compromisso de conviver.

A grande expansão do mercado livreiro deixa entrever que o problemada leitura encontra ainda outro percalço: a massificação e a crise da boaleitura. Para Alfredo Bosi (1999, p. 108), o indivíduo foi massificado. Acomplexidade da leitura dá lugar ao folhetim de qualidade duvidosa e aoapelo aos sentidos, perdem-se valores e padrões estéticos. A leiturapassou a ser mercadoria vendida no shopping neste século de extremos.

Diante deste estado de coisas, é preciso agir, buscar novosparadigmas, o que passa pela concepção de língua como discursoque se efetiva nas diferentes práticas sociais, cabendo à escolaoportunizar o contato com textos literários que aprimorem opensamento crítico e a sensibilidade estética dos alunos; fomentandoo espaço dialógico e polissêmico da Literatura.

Assim, o problema em torno do qual se firma esta pesquisa é o doresgate da leitura como forma de subsidiar o aluno no trato da vivênciacoletiva a partir da cosmovisão artística e interdisciplinar, visto que a Literaturadialoga, em suas variadas interfaces, com diversas outras áreas doconhecimento. Para tanto, haverá o estudo de questões relacionadas àleitura do texto literário, a partir do qual se pretende desenvolver práticas deestudo que conduzam à dinamização do processo de leitura com aconseqüente formação do aluno como leitor, sobretudo um leitor do universojurídico, e também da arte da palavra: a Literatura.

O fracasso escolar, desde as séries iniciais, tem sido associado, deacordo com Magnani (1989, p.10), à falta de leitura, e isso se agrava quandose fala de formação profissional, pois existe o pressuposto da leitura paraaprimoramento, complementação e descoberta de conhecimentos atravésdo ato de ler. À deficiência da leitura da palavra junta-se a falta de leitura demundo, como diria Paulo Freire, e o resultado é um acadêmico que se iludeacerca do desenvolvimento de seus conhecimentos - além de um professordesestimulado, pois sente estar sempre voltando a etapas iniciais, dizendo odito. A conseqüência disso é o fracasso do cidadão, uma vez que suacompreensão fica turvada, sua ação não tem objetivo, se é que se pode falarde ação. Forma-se um homem pela metade: alijado do poder da arte literáriae da força dos argumentos e inconsciente da potência do discurso, vaisendo engolido por ele. Mostrar ao aluno que a leitura está ligada ao prazerestético e à arte de dizer, em muito contribui para que ele veja o mundo queo cerca. A esta idéia se filia Fischer (2002, p. 19):

O poder educacional e social das palavras edas imagens é pacifica-mente reconhecido.Uma obra de arte é encarada não como umacontecimento efêmero, mas como uma açãocujas conseqüências alcançam muito longe:nascida do real, ela reage sobre a realidade.

A leitura, assim, transmuta-se em meio de difusão da arte, da cultura,do saber acumulado. Alfredo Bosi (2002, p. 109) defende a idéia de que,em tempos de televisão e cinema muito evoluídos, a leitura, sobretudodos textos clássicos, parece ter perdido o fascínio, sendo fulminada pelacomodidade da imagem pronta.

Não se advoga contra os recursos tecnológicos, mas há que secompreender que, se o aluno de outras épocas chegava aos bancosuniversitários com poucas leituras, isso se devia, muitas vezes, à faltade acesso ao livro, ao passo que o acadêmico de hoje tem o acesso,

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as condições e até facilidades, mas não se interessa por um meiomenos imediatista que os jogos eletrônicos, filmes e programas, emque se torna mero ouvinte, platéia muda. A leitura exige participação.

Desta feita, novos tempos exigem novos paradigmas, cabendoaos operadores da educação superior oportunizar o contato com textosliterários, com doutrinas clássicas, com obras de relevo, aprimorandoo pensamento crítico e a sensibilidade estética dos alunos; fomentandoum espaço dialógico e polissêmico, que estimule a leitura e a reflexãosobre ela. O ato da leitura é complexo, exigindo amadurecimento doleitor, ainda mais quando o texto tem alto padrão e valor estético

A sociedade cria o homem a partir de um modelo preexistente,impondo ideologias, por isso não é neutra, mas plena de significado.Desse modo, não pode a academia deixar o indivíduo à mercê dasideologias dominantes, mas deve oferecer-lhe os meios para compreendero universo no qual se insere. Para Bordini e Aguiar (1993, p.11-12), éinegável o prestígio conferido ao texto escrito e a desvalorização daquelesque não dominam o código. O livro, detentor por excelência do textoescrito em código verbal, é o mediador do conhecimento e pertence àclasse dominante, que veicula apenas a sua versão da realidade. Deacordo com as autoras supracitadas, o ser humano busca dar sentido àsua existência e ao mundo que o cerca, e o livro pode ser o veículo paraeste diálogo, e mais ainda aqueles livros que, por sua abrangência, atingemuma significação mais ampla.

Desse modo, o primeiro aspecto a ser considerado é o da leitura-frui-ção, tentando provocar no aluno a emoção do belo; para tanto, serão pro-movidos cotejamentos de textos variados, filmes, dramatizações. A leituraserá tomada como espectro de possibilidades a partir da exploração detextos variados (no sentido mais abrangente que a palavra texto possacomportar, significando todo material visual, audiovisual, verbal ou não-verbal). O intuito é desenvolver, reavaliar, aplicar e criar técnicas de mo-tivação da leitura que efetivem a melhora da leitura e da qualidade do leitor.

2.2 ESTRATÉGIAS DE ESTUDO E TRABALHO

A fim de dar conta dos objetivos a que o projeto se propôs, atacou-se acapacidade de compreensão de textos escritos curtos, chegando-se até osmais longos e finalizando-se com a leitura completa de obras ligadas ao uni-verso jurídico. Para tanto, foram usados os recursos de análise lingüística,gramática aplicada e exposição de conceitos jurídicos e idiomáticos funda-mentais à compreensão dos textos, trabalhando com acadêmicos de pri-meiro ano de Direito dos períodos diurno e noturno - por volta de 200 alunos.

Os métodos utilizados são os mais comuns em pesquisa jurídica: oindutivo, o dialético e o sistêmico. Foram utilizados testes de concursospúblicos, inicialmente, partindo-se para a leitura do livro de Paulo Freire: “Aimportância do ato de ler”, com destaque para as idéias principais nelecontidas. Em seguida, com o conto “A igreja do diabo”, de Machado de

Assis, além de diversos excertos de textos interessantes, promoveu-seamplo debate sobre a natureza humana do ponto de vista dos autores dostextos. Seguiu-se a leitura do clássico jurídico “Como nasce o Direito”, deFrancesco Carnelutti, em consonância com os conteúdos abordados nadisciplina de Economia Jurídica. Eram freqüentes os debates, a produçãode parágrafos de forma individual, em duplas e equipes, o que favorece atroca de idéias e amplia a compreensão a partir da visão do outro,acrescentando-se, neste ponto, a necessidade de exercitar o respeito àdiversidade na convivência social necessária.

O passo seguinte, já no segundo bimestre, exigiu uma leitura maiscomplexa, recheada de termos técnicos e conceitos jurídicos: o livro deRoberto Lyra Filho “O que é Direito”. Em sala de aula, após a leitura,realizada pela maioria dos acadêmicos, aliou-se à compreensão básicaa exposição de técnicas de resumo e fichamento. Primeiramente,comentou-se em sala a obra como um todo, colhendo-se dúvidassurgidas durante a leitura. Posteriormente, a professora releu com osalunos o capítulo inicial, marcando trechos de destaque e registrando-os no quadro. Para o capítulo segundo, os trechos de destaque foramdados pelos alunos seguindo-se um roteiro oral, do tipo perguntas erespostas, dado pela professora. Para os dois últimos capítulos, osalunos elaboraram o resumo e realizaram o fichamento para estudo daobra. A fim de exercitar o raciocínio lógico e a capacidade de comparação,explorou-se a música “O meu país”, cantada por Zé Ramalho,estabelecendo-se relações entre a teoria do direito e sua prática nasociedade brasileira contemporânea. Na ocasião, casos recentes decrime e corrupção foram analisados a partir de noticiários de TV ereportagens do jornal escrito. Diante da superação de muitas dasdificuldades iniciais, introduziram-se, no terceiro bimestre, as aulas deteatro e a solicitação de leitura de uma obra de fôlego “A cidade antiga”,de Fustel de Coulanges. Em consonância com a disciplina de CiênciaPolítica, foi recomendada a leitura do livro “O povo brasileiro”, de DarciRibeiro, além de termos assistido partes do documentário de mesmonome, o qual prendeu muito a atenção de todos, gerando reflexão. Nasaulas de teatro, exploram-se a expressão corporal, a concentração, adicção, a postura, o volume adequado à exposição oral de conteúdos,enfim. Ainda no terceiro bimestre, desenvolveu-se a idéia de umseminário dramatizado, a saber, a junção de teoria e prática, um recursocriado pela professora para que os alunos leiam, escrevam, expliqueme dramatizem capítulos da obra de Coulanges, o que lhes oferece aoportunidade de trabalhar individualmente enquanto leitores ecoletivamente, na qualidade de componentes de um grupo que deveráexplanar um tema. É obrigatória a pesquisa sobre a situação do Direitona Antigüidade e atualmente, comparando-se práticas sociais e jurídicas;o que lhes exige pesquisa e leitura da legislação e da doutrina, além doque lhes é dado no primeiro ano. Foi freqüente a relação estabelecida,pelos próprios alunos, com conteúdos ministrados pelos demais

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Estratégias de Leitura e Estudo no Curso de Direito30

professores, o que demonstra compreensão, interesse e, sobretudo,aprimoramento da capacidade de leitura e interpretação, bem comohabilidade para a abstração. Nesta fase, foram acrescentados recursostecnológicos para enriquecer as apresentações e evidenciou-se ointeresse e a melhoria do nível de leitura

O trabalho, embora tenha sido pensado e parcialmente aplicado em2006, sofreu mudanças para aprimoramento, e em 2007 encontra-se emcurso; mas tanto no ano anterior como agora, tem apresentado excelentesresultados, pois os acadêmicos têm demonstrado interesse, desem-penhando seu papel de forma respeitosa e responsável, havendo, inclusive,aumento da média bimestral. Muitos trabalhos deixam claro que houvepesquisa para além do que se pediu como leitura obrigatória, chegando aenvolver clássicos da literatura nacional, com a obra “Morte e vida Severina”de João Cabral de Melo Neto, além de músicas e filmes relacionados aostemas trabalhados. Para o quarto bimestre, será explorada a técnica dapesquisa com produção de um trabalho, sendo que cada equipe escolheuum tema ligado ao Direito e já começou a ler e a fichar. Também será feitoum júri simulado a partir dos livros de Lon Füher “O caso dos exploradoresde cavernas” e “O caso dos denunciantes invejosos”.

A universidade e todo o ensino superior não podem se render àdinâmica do mercado e deixar tudo como está; é preciso que ohomem retome sua identidade e sua humanidade, e isto se faz pelaleitura, pela arte, pelo diálogo e pela qualidade que se busca oferecere adquirir nos bancos universitários. Observa-se que o acadêmico,desacostumado à leitura freqüente, de início apresenta dificuldades,mas adapta-se às exigências das disciplinas. É preciso incentivá-lo ecobrar resultados. Muitos dos nossos acadêmicos podem reclamarde falta de tempo, excesso de trabalho, dificuldades de concentração,mas a prática tem demonstrado a superação de tais obstáculos eótimos resultados, que revertem em benefício dele mesmo e de suavida profissional e pessoal. Outro fator preponderante é que o professorseja leitor, sempre em busca de novidades na sua área ou dedisposição para resgatar antigas práticas. Somente o professor leitoré capaz de formar leitores. O professor pesquisador incentivará apesquisa entre seus alunos, pois o acadêmico de hoje é o profissionalde amanhã, que trabalhará, no caso do Direito, com nossos litígios ependências, com nossos direitos e deveres, por isso este acadêmicoprecisa de uma formação ampla e voltada para o convívio emsociedade. Nesse ponto, houve total apoio dos colegas de trabalho,que exploraram obras clássicas da Filosofia e até da tragédia grega.Entendo que, uma vez no mercado, o bom profissional colhe frutospara si, mas também traz ganhos para a instituição que o formou, poisesta lhe ofereceu o suporte necessário para desenvolvimento desuas potencialidades. Não apenas em Direito este trabalho é possível,mas em todas as áreas, afinal, conhecer da leitura, explorar a oralidade,conviver em sociedade é tarefa de todos nós.

3 ALGUNS ROTEIROS DE TRABALHO

3.1 “COMO NASCE O DIREITO”

No nível universitário, o material lido precisa passar por um processo deregistro, que tornará possível sua posterior retomada, daí a necessidade deescrever, anotar, elaborar fichas de resumo sobre o que se lê. Apenasaplicar o questionário pode ser uma prática, mas pode-se ir além: proporcionarcom ele a releitura necessária, favorecer uma discussão posterior acercado que foi perguntado e do que foi respondido, realizar a troca de i-déias quelevam à reflexão. Embora bastante antigo, o recurso do questionário podese tornar válido, sobretudo quando se está diante de uma situação de poucocontato com a leitura, como é o caso da maioria dos nossos jovens.

QUESTIONÁRIO1.O que diferencia o direito dos juristas, de acordo com Carnelutti?2.Quando estudamos em sala os universos cultural e natural,

vimos que o homem convive. É nesse meio social que atua, travaconhecimento com os outros, buscando atender seus anseios.Carnelutti também trata das necessidades humanas, relacionando-as com outro ramo do conhecimento. Que ramo é este? Qual o pontode encontro entre esta outra ciência e a ciência do Direito?

3.No contexto do capítulo, fala-se do contrato como fenômenoeconômico e jurídico: qual o papel dele na sociedade, de acordocom Francesco Carnelutti?

4.Em determinado ponto do capítulo II, o autor cita o filósofo Kant,dizendo que a base da razão moral é a capacidade do homem de agirracionalmente. Assim, a paz social seria obtida quando cada o indivíduose comportasse com o outro do mesmo modo como gostaria que asoutras pessoas se comportassem com ele. Nessa linha estreita-se arelação entre Direito e Moral, e pergunta-se: Direito e Moral confundem-se? Se sim, de que modo? Se não, como estão ligados?

5.Qual o papel da sanção de acordo com Carnelutti? Estaria elaligada mais à Moral ou mais ao Direito?

6.De acordo com o autor, o delito é resultado dos tempos deguerra ou dos tempos de paz? Por quê?

7.Diferencie sanção penal de sanção civil seguindo osparâmetros dados pelo autor.

8.No livro, o que distingue os delitos dolosos dos culposos? Osomissivos dos comissivos?

9.Em que consistem a prevenção geral e a prevenção especialprevistas no ordenamento?

10.O que vem a ser direito objetivo? E direito subjetivo?11.Como se explica que a propriedade tenha passado de instituto

econômico a instituto jurídico, e mais, alçado à qualidade de direito?

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12. Explique com suas palavras como Carnelutti desenvolve aidéia de que pela propriedade chegou-se ao direito de crédito,ressaltando a importância deste instituto para o direito.

13.Explique a seguinte assertiva: “Pode-se comparar aeconomia à terra sobre a qual a ética espalha sua semente; sobreessa terra e dessa semente nasce, cresce e agiganta-se o direito.Por analogia, não há, no complexo ordenamento jurídico, umavegetação mais luxuriante do que a do contrato”.

14.O que é e como deve ser o ler, de acordo com Carnelutti?15.Existe, para Carnelutti, relação entre o progresso da

sociedade e o número de leis criadas para ela?16.O que vem a ser a “Lei das XII Tábuas”? E o “Código de

Hamurabi”?17. Qual a concepção de juízo defendida pelo autor?18. Explique a evolução do Estado a partir da célula familiar,

ressaltando pontos relevantes desse desenvolvimento históricoexplicitados no capítulo VIII do livro

19. Pode-se dizer que a “previsão” de Victor Hugo (1851) realizou-se?20.Se Estado e Direito se encontram tão intimamente

relacionados que um pressupõe a existência do outro, seria corretoafirmar que a globalização atual poderia corresponder a um EstadoInternacional? Explique de acordo com o seu entendimento do texto.

21. Direito e justiça são a mesma coisa, de acordo com o autor?Explique.

22. “Se o Direito é um instrumento da justiça, nem a técnica nem aciência bastam para saber manejá-lo. (...) mas qualquer um de nóstem o dever de fazer o quanto puder para alcançar esse objetivo (ajustiça)”. O que você compreende desta afirmação de Carnelutti?

3.2 “O QUE É DIREITO”

Considerando a complexidade da leitura do livro “O que é Direito”, oprofessor deve retomar alguns conceitos, até mesmo discutir aorganização do livro, que pode ser feita oralmente, mas seguindo umroteiro que leve o aluno a compreender a leitura, a assimilar os conteúdosali veiculados. Um exemplo de questões a serem vistas é o que segue:

1) A organização topográfica proposta pelo autor (colocação decapítulos, itens, seqüência) favoreceu a leitura? Seguiu uma ordemde complexidade? Propôs retomadas de temas citados em capítulosantecedentes ou exigia conhecimento sobre teorias jurídicas?Explique como você realizou a leitura.

2) Existe diferença entre lei e direito?3) Seria correto afirmar que da lei emana o Direito?4) Roberto Lyra, autor do livro estudado, afirma na p. 09 que

também no Socialismo “surgem leis que carecem de “autenticidade

e adequação” e escapam ao que é “verdadeiro e correto”juridicamente”. O que ele quis dizer? Você concorda? Por quê?

5) Gramsci, importante líder marxista italiano, defendia: “a visãodialética precisa alargar o foco do Direito”. Qual a abrangência desteposicionamento? Explique o que ele quis dizer.

6) Dentro da temática da ideologia abordada no livro, explique a assertiva:“O ‘discurso competente’, em que a ciência se corrompe a fim de servir àdominação, mantém ligação inextrincável com o discurso conveniente”.

7) Quais os principais modelos de ideologia jurídica citados no iníciodo segundo capítulo? Como se caracterizam? Que autores são citados?Quais as palavras-chave para estes modelos? Há uma subdivisão nessesmodelos? Seja abrangente na resposta, mas sem copiar do livro.

3.3 SEMINÁRIO DRAMATIZADO

A leitura do livro “A cidade antiga” foi solicitada com bastante antecedência,mas contando-se com as dificuldades de compreensão e concentração ecom a possível resistência à leitura de uma obra de mais de quatrocentaspáginas, optou-se por um trabalho em grupo. A fim de deixar claros osobjetivos do trabalho e o processo de desenvolvimento, foi dado ao aluno umroteiro com as regras do trabalho a ser desenvolvido. Além disso, as equipespuderam marcar horário para atendimento com a professora, a fim desanar dúvidas e discutir idéias. O roteiro não foi discutido em sala, masdisponibilizado no sistema aluno on line. O intuito deste ato foi, justamente, ode promover a leitura, uma leitura que, para o acadêmico, se tornariafundamental. As perguntas direcionadas à professora deixaram claro quaisos problemas mais comuns no campo da compreensão de textosinstrucionais, os quais são comuns no cotidiano de todos os indivíduosletrados, da receita de bolo à receita de remédio, passando pelos manuaisdos utensílios da casa e os cadastros em sites, onde seguir instruções éfundamental. Eis as instruções dadas:

SEMINÁRIO DRAMATIZADO_ORIENTAÇÕES GERAIS1. O que é?2. Para que serve?3. Como deverá ocorrer?4. Quem participará?5. Quanto vale?

Caros alunos, penso que alguma(s) pergunta(s) acima ainda possa(m)estar ecoando na cabeça de muitos; assim, aproveito o serviço do aluno online, que a instituição oferece, para trazer, por escrito, mais detalhes.

1. O que é?Um seminário é um trabalho acadêmico que tem como meta a

exposição e o debate de assuntos explorados por grupos de estudos

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Estratégias de Leitura e Estudo no Curso de Direito32

a partir da explanação de cada um dos participantes. Já umadramatização tem por escopo tornar ou procurar tornar interessantes(curiosos, dramáticos ou comoventes) fatos, situações, problemas,narrativas (HOLANDA, 1998).

A modalidade seminário dramatizado foi desenvolvida pelaprofessora com o objetivo de reunir os dois elementos, portanto, apartir do estudo do grupo, haverá a explicação de um dos conteúdospreviamente selecionados, juntamente com a dramatização dosfatos que envolvem o citado conteúdo.

Assim, os grupos estão cientes de que deverão apresentar-secontemplando os dois requisitos.

Para o seminário, considera-se correto que a equipe escolhaou combine alguns dos elementos abaixo:

a) cartazes;b) lâminas de transparência;c) eslaides do power point;d) material fotocopiado;e) banner; f) apostilas;g) imagens e textos variados.

Para a parte a ser dramatizada, o grupo deverá atentar para apresença de:

a) cenário mínimo;b) caracterização das personagens;c) diálogos claros e compreensíveis;d) fala audível para todos os presentes;e) obediência aos conteúdos do livro; f) relação com a atualidade.Os alunos podem optar por registrar previamente em material

audiovisual seu trabalho, mas este deve obedecer aos mesmoscritérios acima, assumindo a equipe a responsabilidade poreventuais problemas técnicos.

Pressupostos mínimos:a) leitura do capítulo com o qual se comprometeu;b) compreensão suficiente para solidarizar as informações mais

relevantes, interessantes, curiosas;c) pesquisa em outros materiais como forma de enriquecer sua

apresentação, compreensão e repasse para os colegas;d) ambos – seminário e dramatização - serem trabalhados,

não importando a ordem em que apareçam;e) fazer a relação da Antigüidade com a atualidade.

2. Para que serve?O presente trabalho servirá para:

a) ajudar o aluno a compreender os conteúdos veiculados pordiversas fontes de pesquisa;

b) explorar o trabalho em grupo como ferramenta do profissionaldo Direito;

c) favorecer a oralidade, muito negligenciada no ensinofundamental e médio e essencial para a nossa área;

d) oportunizar situações de postura pública com certa carga deestresse;

e) por meio da discussão em grupo e da elaboração de materiala ser repassado aos colegas, aprimorar a prática da pesquisa e daescrita em língua padrão;

f) o aluno se fazer entender oralmente e por escrito;g) completar o entrosamento entre colegas a partir da base do

respeito mútuo, havendo situações de embate, discussão econcórdia a serem resolvidas internamente;

h) gerar um ambiente de parceria responsável, uma vez quetodos os conteúdos poderão ser objeto de avaliação escrita posterior.

Enfim, como podem ver, o presente trabalho é um recursodidático muito valioso e que não deve ser negligenciado.

3.Como deverá ocorrer?Uma vez organizados os grupos, com as devidas datas

agendadas, cada equipe terá em torno de 20 minutos para seapresentar (não menos que 10 nem mais que 30 minutos).

Durante a apresentação, a equipe deverá observar os critériossalientados nos itens anteriores, sempre respeitando colegas eprofessores e tentando ser o mais clara possível nas suas explanações.

O grupo que, por qualquer motivo, não se apresentar no dia elocal marcados, sofrerá como sanção a perda total dos pontos dotrabalho (4,0, a saber).

Nos casos legais previstos pela instituição para faltas, o grupodeverá encaminhar requerimento escrito e documentado para aprofessora com, no mínimo, 24 horas de antecedência, solicitandonova data para apresentação.

Caso seja marcada nova data, esta NÃO se prenderá a dias deaula da disciplina ou a dias letivos.

Se apenas um elemento do grupo enquadrar-se numa dassituações anteriores (abandono ou falta justificada), deverão osdemais integrantes substituí-lo como possível, a fim de não seprejudicarem ou trazerem prejuízo aos colegas.

Ao final da apresentação do seminário dramatizado, os alunospoderão fazer perguntas aos colegas para o esclarecimento deeventuais dúvidas. O fato de o grupo, porventura, não saberresponder a alguma questão, não trará prejuízo à equipe.

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Iniciação Científica CESUMAR - jan./jun. 2008, v. 10, n.1, p. 27-34

BEDÊ, J.A.S. 33

4. Quem participará?Participam do evento todos os acadêmicos de primeiro ano de

Direito, matutino e noturno, regularmente matriculados no Cesumar.Os alunos em dependência ou adaptação poderão anexar-se a

qualquer grupo ou entrar em contato com a professora para fazeremo trabalho correspondente.

5. Quanto vale?A apresentação (seminário dramatizado), juntamente com o

respectivo resumo, valerá 4,0 (quatro) pontos, sendo 3,0 (três) parao dia do evento (apresentação) e 1,0 (um) para a parte escrita, quedeverá estar em conformidade com as regras para trabalhos científicosda instituição disponíveis no site. Por isso, todos da equipe devem“falar” no dia e escrever bem o texto!!!

Para a apresentação serão observados: empenho, desenvoltura,domínio do assunto, dicção, clareza na exposição de idéias, recursosutilizados e demais elementos que possam ser explorados pelogrupo para transmitir o conteúdo do seu trabalho.

6.No dia da apresentação, já marcado, a equipe deverá entregaro resumo impresso da parte que lhe coube, incluindo as falas deencenação e detalhes pertinentes da apresentação, indicando afunção de cada elemento da equipe. Ao final, deverá ser anexadauma conclusão da equipe. Este trabalho será, em seguida, enviadopor e-mail para a professora, no formato de documento do Word edisponibilizado para os colegas no aluno on line.

7. Alunos de DP e ADAP deverão procurar a professora parafazerem o respectivo trabalho;

8. Caso ainda restem dúvidas, por favor, entrar em contato coma professora no horário de aula.

Sucesso! Beijo carinhoso, abraço apertado! Profª Judith BedêInvoca-me no dia da angústia, e eu te livrarei, e tu me

glorificarás” Salmos 50:15 “

3.4 JÚRI SIMULADO

O recurso do júri simulado como técnica de trabalho traz resultadosmuito alentadores, porque o aluno de Direito vivencia, pelos meios decomunicação de massa, sobretudo a televisão, situações em que o Direitoé discutido. Pelo fato de ser ligada à sua opção profissional, essa é umaatividade que lhe desperta interesse e para a qual ele já vem motivado.Assim, o roteiro básico de trabalho envolve algumas etapas, a saber:

Pede-se que leiam os livros:”O caso dos exploradores decavernas” e “O caso dos denunciantes invejosos” de Lon Füher erefletam seguindo os passos dados:

APRENDER A VER + APRENDER A INFORMAR-SE1. Qual a situação?

2. Quais informações são muito importantes e quais dados sãosecundários?

3. Qual é o problema a ser resolvido?4. Esquematize todos os elementos do problema.5. Registre tudo até aqui.6. Extraia informações de um documento e tome notas de

comunicação oral.

APRENDER A SINTETIZAR7. Estruture a resolução do problema;8. organize informações sobre o tema;

APRENDER A DEDUZIR (apoiar-se em princípios e delesextrair conseqüências para um fato)

9. Quais conclusões lógicas poderiam ser feitas?

APRENDER A COMUNICAR-SE10. Conte a história com outras palavras:a) deixando a situação melhor;b) deixando a situação pior.

APRENDER A DECIDIR (julgar e estabelecer planos de ação)APRENDER A AGIR (a partir dos planos, dar vida aos projetos)APRENDER A REFAZER (fazer ajustes nos planos ou decisões)Dadas as bases para o raciocínio dos casos, a turma é dividida

em equipes:1. Defesa;2. Acusação;3. Magistrados;4. Jurados;5. Réus e testemunhas;6. Dois indivíduos para registro do evento.

Definidas as funções, são discutidas com a turma as condiçõesde uso da palavra, o tempo de intervenção, o devido respeito aoscolegas, a forma de votação. Tenta-se seguir, ao máximo, o rito dotribunal do júri, fazendo as adaptações necessárias.

O resultado é uma turma comprometida com a argumentação,lendo teses sobre as obras, buscando soluções em códigos e minúciasdo texto escrito que poderão ajudá-los no deslinde da situação.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Favorecer a leitura, estimular a oralidade, proporcionarcrescimento e emancipação são papéis da escola em todos osníveis, e quando o ensino superior se propõe a resgatar alunos,

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Iniciação Científica CESUMAR - jan./jun. 2008, v. 10, n.1, p. 27-34

Estratégias de Leitura e Estudo no Curso de Direito34

buscando soluções para os problemas que o atingem, está-secumprindo o papel social da educação.

Ainda que os resultados só sejam percebidos a longo prazo, não érecomendável desistir, porque se a leitura é relevante para o acadêmicodo curso de Direito, ainda é mais importante para o homem que, convivendocom outros homens, transforma tudo o que o cerca. A percepção estética,o trato com o próximo, as lições de solidariedade, o companheirismodesenvolvido, a responsabilidade cobrada e assumida trarão ao alunomais que um diploma para o exercício profissional, pois o estudo, a leitura,a pesquisa e a prática do raciocínio lógico são recursos que possibilitarãoao acadêmico acesso a uma formação em humanidades capaz detransformar sua vida e a dos que o cercam. É esse o maior papel daeducação: favorecer o pleno desenvolvimento das potencialidades dohomem a fim de fazê-lo conviver com outros homens segundo os preceitosde justiça, honradez, dignidade e sabedoria; enfim, fornecer-lhe os meiosde acesso aos instrumentos de uma vida feliz.

REFERÊNCIAS

ASSIS, Machado de. A igreja do diabo. In: OBRA COMPLETA deMachado de Assis. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. v. II.Disponível em: < http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/diabo.html>Acesso em: 20 fev. 2007.

BORDINI, Mª da Glória; AGUIAR, Vera Teixeira. Literatura eformação do leitor: alternativas metodológicas. 2. ed. Porto Alegre:Mercado Aberto, 1993.

BOSI, Alfredo. Literatura na Era dos Extremos. In: AGUIAR, Flávio.Estudos em Homenagem a Antônio Cândido. São Paulo:Humanitas, 1999.

CARNELUTI, Francesco. Como nasce o Direito. Tradução deRicardo Rodrigues Gama. Campinas: Russel, 2004.

COULANGES, Fustel de. A cidade antiga: estudos sobre o culto,o direito e as instituições da Grécia e de Roma. Tradução de EdsonBini. São Paulo: Edipro, 1998.

FISCHER, Ernest. A necessidade da arte. Tradução de LeandroKonder. 9. ed. Rio de Janeiro: Guababara Koogan, 2002.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três volumesque se completam. 42. ed. São Paulo: Cortez, 2001.

FÜHER, Lon. O caso dos exploradores de cavernas. São Paulo:RT, 2005.

________ . O caso dos denunciantes invejosos. Tradução deDimitri Domoulis. São Paulo: RT, 2005.

HOLANDA, Aurélio Buarque de. Dicionário eletrônico Aurélio.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.

LIRA FILHO, Roberto. O que é Direito. São Paulo: Brasiliense,1996. (Coleção Primeiros Passos).

MAGNANI, Maria do Rosário Mortatti. Leitura, Literatura eescola: sobre a formação do gosto. São Paulo: Martins Fontes,1989.

MELO NETO, João Cabral de. Morte e vida severina. Rio deJaneiro: Editora Sabiá,1969.

RIBEIRO, Darcy. O Povo brasileiro: a formação e o sentido doBrasil. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

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Tópicos de Fundamentos e Formação em Biblioteconomia e Ciência da Informação

Fichamento como método de documentação e estudo

Marivalde Moacir Francelin

1. IntroduçãoApesar de o enfoque deste capítulo ser o fichamento,

destacamos que as três formas básicas de apresentação de análise do texto acadêmico podem ser: fichamentos, resumos e resenhas. Entre os manuais metodológicos é comum dizer que fichar, resumir e resenhar documentos fazem parte dos métodos de [1] estudo do pesquisador iniciante. Na verdade fazem parte dos métodos de quase todo pesquisador que lida com fontes e registros de informação.

Esses elementos do processo da documentação e da pesquisa não são estanques e nem se isolam em suas etapas e formas de desenvolvimento. Pode-se fichar um documento e, logo em seguida, usar o fichamento para confeccionar um resumo ou uma resenha.

Além de recursos essenciais para estudantes e pesqui-sadores, fichamentos, resumos e resenhas acadêmicos tam-bém são parte das atividades cotidianas de trabalhos em disciplinas e relatórios de pesquisa. Portanto, podem ser con-siderados etapas de investigação acadêmico-científica.

No caso dos trabalhos acadêmicos não há um único método de desenvolvimento ou padrão de apresentação. Pro-fessores requisitam esses trabalhos como atividade e podem se apoiar em concepções e formatos distintos de fichamentos, resumos e resenhas. Dessa maneira, mesmo sabendo como

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Tópicos para o Ensino de Biblioteconomia

e porque fazê-lo, quando lhe for solicitado um fichamento, uma resenha ou um resumo, cabe ao estudante perguntar ao professor sobre o modelo que será usado na apresentação do trabalho.

Em síntese, podemos dizer que o fichamento é um mé-todo de pesquisa pessoal, portanto pode ser realizado de vá-rias maneiras como veremos mais adiante. Sua função é de organizar ideias através do material consultado para a reali-zação de uma pesquisa. Não há limite para se fazer fichamen-tos, mas isso depende de coerência. Não se pode fichar tudo sobre um assunto e, geralmente, não usamos todo o material que levantamos e fichamos, mas teremos uma fonte de infor-mação organizada para consultas posteriores.

Os resumos já seguem, por exemplo, parâmetros pré-estabelecidos como as normas da ABNT (Associação Brasi-leira de Normas Técnicas). A função do resumo, muitas ve-zes, é de divulgação, ou seja, não serve apenas como método pessoal de pesquisa. Vocês verão muitos resumos e resenhas publicados mas, dificilmente, verão um fichamento em algu-ma publicação.

Um resumo tem extensão limitada e não comporta, como em resenhas e fichamentos, citações e comentários e, muito menos menciona outras obras. Geralmente, os resu-mos trazem informações sobre o conteúdo de uma obra. Tais informações devem ser claras e objetivas, representando o tema da obra, a metodologia utilizada, as hipóteses levanta-das, metodologias e conclusões. Em fichamentos e resenhas estes itens não são obrigatórios, a não ser que sejam a temá-tica da pesquisa empreendida e/ou da obra que está sendo analisada.

Outra coisa importante sobre os resumos está no fato de existirem vários tipos deles, mas não estamos falando ape-nas de resumos críticos, informativos e descritivos como as

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José Fernando Modesto da Silva e Francisco Carlos Paletta

normas sugerem. Estamos falando de resumos acadêmicos e resumos documentários. Qual é a diferença entre eles?

Os resumos acadêmicos são feitos como atividades de análise de textos para as disciplinas de graduação. Possuem linguagem menos formal e objetiva e não se baseiam, neces-sariamente, em normas. Os resumos acadêmicos são aqueles que os professores requisitam como atividade de análise de textos. Assim como na linguagem, também não há uma for-matação para o texto do resumo acadêmico e nem mesmo critérios quanto à sua extensão. Eles podem ser apresenta-dos em espaços duplos, com parágrafos e em mais de uma página, desde que mantenham as informações essenciais do documento.

A resenha comporta alguns elementos do fichamento e do resumo. Sendo um texto informativo e crítico ao mesmo tempo, a resenha, invariavelmente, pode intercalar comentá-rios e citações (diretas e indiretas), fazer referências a outros textos, constituindo já um exercício de produção textual. As resenhas não possuem número máximo de páginas, mas de-vem respeitar alguns limites para não ser confundida com um ensaio ou um artigo ou com um resumo.

Não vamos nos estender muito nestas observações, mas é importante ter em mente que:

1. O fichamento é o primeiro passo na realização de uma pesquisa, portanto, quase sempre fazemos fichamentos, independentemente do tipo da pesquisa.

2. O resumo é uma atividade, um exercício de raciocínio que visa entendimento e síntese de uma obra a partir de regras pré-estabelecidas ou não.

3. Já a resenha é uma atividade de análise e síntese que per-mite maior elasticidade na abordagem, porém, exige, além das características já mencionadas, um certo domínio so-bre assunto tratado na obra que está sendo resenhada. A

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Tópicos para o Ensino de Biblioteconomia

resenha é, portanto, uma atividade mais complexa, porém torna-se mais fácil quando o hábito de fazer fichamentos e resumos são familiares ao pesquisador.

Bem, chega de teoria e vamos aos exemplos. Por outro lado, devemos lembrar que a teoria é extremamente impor-tante, pois, é a partir dela que refletimos sobre o que estamos fazendo e sobre o que pretendemos fazer. Lembrem-se que saber e fazer andam juntos! Se não pensamos, estaremos ape-nas copiando modelos mecanicamente e voltamos à estaca zero em termos de pesquisa e desenvolvimento de conheci-mento. Pesquisa é um ir e vir constantes. Então, ao entrarem em contato com os exemplos abaixo, sempre procurem con-sultar o que está escrito acima como indicativo, e obras de referência para maiores detalhes, ou seja, as próprias fontes citadas e o material de apoio relacionado na bibliografia.

2. Formas de análiseSalomon (2001, p.91) diz que resumir faz parte da vida

dos estudos, porém, esse exercício intelectual torna-se evi-dente, e frequente, na universidade, seguindo também como uma necessidade na vida profissional.

O autor revela ainda que os estudantes têm dificulda-des em resumir, encontrar as ideias centrais e detalhes do texto lido. Assim, Salomon (2001, p. 92-94), indica duas “fon-tes” principais dessas dificuldades.

Dificuldades do estudante: alguns têm facilidade em encontrar semelhanças (processo de síntese), outros, diferen-ças (processo de análise). O principal problema, no entanto, reside no fato de, diante da necessidade de identificar o que é “fundamental, integrante ou acessório”, acaba-se agindo de forma apressada e retirando, de forma irrefletida, partes e mais partes do texto. “Antes tudo do que nada.”, conforme diz o autor.

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José Fernando Modesto da Silva e Francisco Carlos Paletta

Dificuldades do texto: estilo e temática podem interfe-rir na leitura e compreensão de um texto. Assim como a difi-culdade anterior, entendimento, base de leitura, domínio do vocabulário corrente e conhecimento do assunto são ques-tões que se impõem ao estudante. O resultado é o mesmo: “Antes tudo do que nada.” É fato, podemos acrescentar, que a linguagem usada e a terminologia especializada também dificultam a compreensão do texto. Mas, nesse caso, existe ainda a possibilidade de se encontrar diante de um texto es-crito por um autor que não estava muito preocupado com a comunicação de suas ideias. São minoria em boa parte das áreas do conhecimento, mas é bom saber que, esses autores, que escrevem de maneira complexa, truncada e, muitas ve-zes, incompreensível, provocam enorme desgaste naqueles que precisam resumir ou resenhar seus textos.

Cabe destacar que essas dificuldades não se restringem ao resumo, elas fazem parte dos fichamentos e das resenhas. Dessa maneira, é importante que se esteja preparado para momentos em que tais dificuldades surgirem. Com paciên-cia, aplicação e insistência elas serão superadas. Os resultados são motivadores quando se consegue superar tais obstáculos.

Referindo-se às resenhas, Létourneau (2011, p. 19), diz que As vantagens desse exercício são numerosas: ele pos-

sibilita descobrir as obras de um autor, apreciar as sutile-zas de sua reflexão, afinar-se com o diapasão da ciência, assimilar novos conhecimentos e familiarizar-se com téc-nicas, métodos de trabalho e procedimentos de análise.

Quando novos conhecimentos são assimilados, a per-cepção que se tem de determinados tipos de textos pode mu-dar, justificando um esforço maior de leitura daqueles docu-mentos que parecem mais uma obrigação disciplinar do que uma etapa no processo de aprendizado. Busca-se, como diz Létourneau na citação acima, uma familiarização metodo-

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Tópicos para o Ensino de Biblioteconomia

lógica que permita que essa forma de estudo e pesquisa seja incluída nos afazeres diários da academia.

Entendendo que há um propósito na leitura para um fichamento, um resumo ou uma resenha, evita-se o desperdí-cio de tempo e outros aborrecimentos que aparecem quando não se vê sentido naquilo que está sendo feito. Para Salomon (2001, p. 95),

O estudante que tem o hábito de ler sem um propó-sito determinado assenta-se e simplesmente lê; ao término diz: ‘Pronto, já li.’ Assim o faz com todas as matérias, no mesmo ritmo de leitura, e reage da mesma maneira diante de qualquer assunto. Tal estudante tem muito a aprender, pois este não é o modo correto de agir.

É preciso ter um propósito inicial e ler em função dele. Um propósito inicial pode ser o de ter ideia do assun-to. Outro pode ser o de tirar a essência ou o mais impor-tante do que se vai ler.

“Por que estou lendo esse documento?” e “Do que se trata esse documento?” são perguntas que sevem, primeiro, como ponto de partida, motivação, compreensão de uma ação diante de um documento e, segundo, como integração com o conteúdo do documento e a apropriação de suas in-formações. Antes de passar ao tópico seguinte, destaca-se que essa apropriação de informações segue objetivos prévios do estudante pesquisador, mas, também, é influenciada pe-los objetivos do próprio documento. Reflete, portanto, um processo dialético, de extrema importância, pois, conduzirá leitor e documento para novas sínteses, conclusões, análises, perguntas e relações.

3. Etapas da análise do Documento AcadêmicoIndicados esses momentos de encontro com alguns

obstáculos nos estudos e compreendido que esses obstáculos quase sempre se apresentarão, às vezes perceptíveis, outras

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José Fernando Modesto da Silva e Francisco Carlos Paletta

não, pois, são parte do processo de conhecimento e o objetivo é superá-los, passa-se agora para a apresentação das etapas básicas de análise do documento acadêmico.

Na esfera da leitura do documento acadêmico, na Figu-ra 1, seguem as etapas propostas por Antônio Joaquim Seve-rino, no livro “Metodologia do Trabalho Científico”.

Figura 1. Etapas da leitura analítica.

Fonte: Severino (2010, p. 64).

Para Macedo (1994, p. 34-35), “[...] o pesquisador é um homem como qualquer outro; pensa numa língua dada, cujas categorias lhe foram introjetadas através da educação, que é um processo social; possui uma visão de mundo socialmente condicionada pela sua realidade histórica concreta [...]”, ou seja, possui uma memória de saberes contextuais e afetivos. Dessa maneira, segundo a autora, “O discurso ‘objetivo’ su-põe sempre o ponto de vista acerca da objetividade de quem o emite, calcado no grupo a que pertence, no momento his-tórico no qual vive, na ‘verdade’ que elegeu ou que lhe foi im-posta.” Isso quer dizer que mesmo um texto objetivo tem sua objetividade analisada de um determinado ponto de vista,

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Tópicos para o Ensino de Biblioteconomia

incorporando a ele elementos históricos e contextuais enri-quecedores, porém, ao mesmo tempo, subjetivos.

São esses elementos que podem ser trazidos à tona com a leitura analítica (Figura 1). Por outro lado, nosso foco prin-cipal é, justamente, o registro das leituras enquanto registros de informação.

É importante que, desde o primeiro texto lido, um ar-quivo para anotações seja aberto. Mas, como fazer tais ano-tações? Geralmente, elas podem ser feitas por meio de ficha-mentos.

O fichamento é o primeiro exercício que fazemos quan-do entramos em contato com novos ambientes de pesquisa, quando temos novas ideias e/ou quando precisamos “esca-var” subsídios para sustentar pontos de vista.

4. Observações sobre os fichamentosComo já mencionado na introdução, o fichamento é

um método de pesquisa e de documentação pessoal, portanto, pode ser realizado de várias maneiras. Sua função é de orga-nizar ideias a partir do estudo do material de pesquisa.

Não há limite para se fazer fichamentos, mas isso de-pende de coerência. Não se pode fichar tudo sobre um tema e, geralmente, não usamos todo o material que levantamos.

Mas será que o simples ato de produzir fichas é tão im-portante assim? Quer dizer que “copiar” trechos de textos é uma tarefa fundamental?

Três pontos podem ser observados em relação às pergun-tas acima:

1. Fazer um fichamento não é um ato mecânico e isolado. Não é uma questão de quantidade de registros, mas de pesquisa. Quando falamos em pesquisa temos que ter em mente que a perspectiva reflexiva e crítica deve sobressair, em tese, à característica da mensuração. Entender um

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José Fernando Modesto da Silva e Francisco Carlos Paletta

assunto é, na maioria das vezes, mais importante do que compilar muitos assuntos mecanicamente.

2. Quando fazemos algum fichamento devemos ter claro qual é o seu objetivo. Por que fazer um fichamento? Qual o seu objetivo? Qual o tema ou ideia que será usada para selecionar os trechos para o fichamento? Assim, não são apenas trechos que “copiamos”, mas ideias que vamos dis-pondo de forma ordenada para organizar nosso raciocí-nio, permitindo sua recuperação.

3. Se pensarmos nossa atividade de documentar como uma forma de pesquisa e de geração de novos conhecimentos, não veremos o fichamento como um simples “copiar-co-lar”, mas como uma base confiável e coerente para dar sus-tentação às nossas ideias.

Orientações gerais:

Todo fichamento deve conter a referência completa da obra;Os trechos literais extraídos dos textos devem aparecer como citações; Toda citação direta ou indireta deve seguir uma normali-zação;Dispor coerentemente o texto;Incluir todas as informações necessárias sobre o tema fi-chado;Ter objetividade, respeitando os dois itens anteriores;Seja coeso na construção textual;Se possível, use suas próprias palavras entre as citações (o fichamento reelabora ideias);Sempre que possível, procure fazer uma síntese geral no início ou no final do fichamento.

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Tópicos para o Ensino de Biblioteconomia

No fichamento é possível registrar as anotações em fi-chas, cadernos, blocos de anotações; também pode digitar no computador, montar pastas e fazer arquivos online.

Vejamos agora como é um fichamento na prática:Antônio Joaquim Severino divide os fichamentos em:

temáticos, bibliográficos e biográficos. Lembremos que há uma certa liberdade nesta atividade, pois é um método pes-soal de estudo.

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a] Ficha de documentação temática

ESPISTEMOLOGIAConceituação

Segundo Lalande, trata-se de uma filosofia das ciências, mas de modo especial, enquanto “é essencialmente o estudo crítico dos prin-cípios, das hipóteses e dos resultados das diversas ciências, destinado a determinar sua origem lógica (não psicológica), seu valor e seu al-cance objetivo”. Para Lalande, ela se distingue, portanto, da teoria do conhecimento, da qual serve, contudo, como introdução e auxiliar indispensável.

LALANDE, Voc. Tecn., 293

“Por Epistemologia, no sentido bem amplo do termo, podemos considerar o estudo metódico e reflexivo do saber, de sua organiza-ção, de sua formação, de seu desenvolvimento, de seu funcionamento e de seus produtos intelectuais.”

JAPIASSU, Intr., 16.

Japiassu distingue três tipos de Epistemologia:

1. a Epistemologia global ou geral que trata do saber global-mente considerado, com a virtualidade e os problemas do conjunto de sua organização, quer sejam especulativos, quer científicos;

2. a Epistemologia particular que trata de levar em considera-ção um campo particular do saber, quer seja especulativo, quer científico;

3. a Epistemologia específica que trata de levar em conta uma disciplina intelectualmente constituída em unidade bem de-finida do saber e de estuda-la de modo próximo, detalhado e técnico, mostrando sua organização, seu funcionamento e as possíveis relações que ela mantém com as demais dis-ciplinas.

Obs.: Conteúdo global da obra.

Fonte: Severino (2010, p.75).

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Tópicos para o Ensino de Biblioteconomia

Notem que não há um padrão. O que é importante num fichamento é coletar elementos, de maneira coerente, retratando o conteúdo de um texto e/ou de um tema. Mas, atenção, o que deve ser levado em consideração também é a estrutura e não somente a formatação. Geralmente, os ma-nuais de metodologia estão desatualizados e/ou imprimem uma interpretação própria. Assim, a primeira citação do exemplo a] ficaria da seguinte maneira:

b]

“[...] é essencialmente o estudo crítico dos princípios, das hipóteses e dos resultados das diversas ciências, destinado a determinar sua origem lógica (não psicológica), seu valor e seu alcance objetivo.” (LALANDE, ano, p. 293).

Vejam também que o fichamento do exemplo a] traz, no final, uma síntese do conteúdo que interessa ao autor. Nestes casos não é necessário indicar páginas, pois o que está sendo tratado é o conteúdo global da obra.

Nos fichamentos, assim como em qualquer outro tex-to, as citações diretas devem aparecer entre aspas, acompa-nhadas de sobrenome do autor, ano e página (exemplo b]). Quando a citação tiver mais que três linhas, deve ser deslo-cada, sem espacejamento e com a letra menor que o resto do texto. As citações indiretas não precisam de aspas, mas de-vem trazer autoria, ano e página, se for o caso. Aconselha-se consultar as NBRs 6023 (referência), 10520 (citação) e 14724 (apresentação de trabalhos).

Saber usar as normas não é um simples requisito aca-dêmico e/ou profissional, mas é uma obrigação daqueles que trabalham com textos e estão comprometidos com a qualida-de do que produzem, fazendo justiça aos autores utilizados. Existem muitos manuais que trazem roteiros para o uso das normas da ABNT. Eles podem ser encontrados com facilida-de na internet.

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José Fernando Modesto da Silva e Francisco Carlos Paletta

Continuemos com os exemplos.

c] Ficha de documentação bibliográfica

EPISTEMOLOGIA

JAPIASSU, Hilton F. O mito da neutralidade científicaRio, Imago, 1975 (Série Logoteca), 188p.Resenhas: Reflexão I (2): 163-168. abr. 1976.Revista Brasileira de Filosofia 26O texto visa fornecer alguns elementos e instrumentos introdutó-rios a uma reflexão aprofundada e crítica sobre certos problemas epistemológicos (p.15) e trata da questão da objetividade científica, dos pressupostos ideológicos da ciência, do caráter praxiológico das ciências humanas, dos fundamentos epistemológicos do cientificis-mo, da ética do conhecimento objetivo, do problema da cientificida-de da epistemologia e do papel do educador da inteligência.Embora se trate de capítulos autônomos, todos se inscrevem dentro de uma problemática fundamental: a das relações entre ciência obje-tiva e alguns de seus pressupostos.O primeiro capítulo, “Objetividade científica e pressupostos axio-lógicos” (p.17-47), coloca o problema da objetividade da ciência e levanta os principais pressupostos axiológicos que subjazem ao pro-cesso de constituição e de desenvolvimento das ciências humanas.No segundo capítulo, “Ciências humanas e praxiologia” (p.49-70), é abordado o caráter intervencionista destas ciências: elas, nas suas condições concretas de realização, apresentam-se como técnicas de intervenção na realidade, participando ao mesmo tempo do descri-tivo e do normativo.No terceiro capítulo, “Fundamentos epistemológicos do cientificis-mo” (p.71-96), o autor busca elucidar os fundamentos epistemoló-gicos responsáveis pela atitude cientificista e mostra como o méto-do experimental, racional e objetivo, apresentando-se como único instrumento particular da razão, assumiu um papel imperialista, a ponto de identificar-se com a própria razão.

Fonte: Severino (2010, p.76).

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Tópicos para o Ensino de Biblioteconomia

No caso acima c], a estrutura está bem definida e as indicações de conteúdo também, porém é de difícil identi-ficação a obra que é objeto do fichamento. Há um conjun-to desordenado de elementos bibliográficos no início do fi-chamento, mas não há nenhuma menção do porque estão ali. Também não há uma referência correta de acordo com a NBR 6023. Porém, olhando com mais atenção, podemos verificar que o fichamento é sobre o livro O mito da neutrali-dade científica. Na sequência, Severino indica duas resenhas que estão, respectivamente, nas revistas Reflexão e Revista Brasileira de Filosofia. Na verdade, a referência do exemplo c] seria a seguinte:

d]

JAPIASSU, Hilton F. O mito da neutralidade científica. Rio de Ja-neiro: Imago, 1975.

É importante que, no âmbito do fichamento pessoal, todas as informações necessárias sejam incorporadas e de maneira correta, principalmente, no caso de referências bi-bliográficas relacionadas. Deve-se dizer porque foram rela-cionadas, pois, muitas vezes, é comum se esquecer o motivo de elas estarem ali, perdendo alguma informação importante para trabalhos posteriores. Dessa maneira, mesmo com a li-berdade de se realizar um fichamento no âmbito da docu-mentação pessoal, é necessário o uso de algum padrão para o registro das informações.

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José Fernando Modesto da Silva e Francisco Carlos Paletta

e] Ficha de documentação biográfica

JAPIASSU

Hilton Ferreira Japiassu

1934-

Licenciou-se em Filosofia pela PUC do Rio de Janeiro, em 1969; for-mou-se em Teologia, pelo Studium Generale Santo Tomás de Aqui-no, de São Paulo. Fez o mestrado em Filosofia, na área de Epistemo-logia, na Université des Sciences Sociales, de Grenoble, na França, em 1970; nessa mesma Universidade, doutorou-se em Filosofia, em 1973. Fez pós-doutorado em Strasbourg, no período 84/85, também na área de Epistemologia.

Atualmente é docente de Epistemologia e de História das Ciências e de Filosofia da Ciência, nos cursos de pós-graduação em Filosofia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Desenvolve suas pesquisas nas áreas de epistemologia, investigando as relações entre ciência e sociedade, o sentido da interdisciplinari-dade e o estatuto epistemológico das Ciências Humanas em geral, e da Psicologia em particular.

Além da tradução de vários textos filosóficos e da publicação de muitos artigos, Japiassu já lançou os seguintes livros: Introdução ao pensamento epistemológico, 1975; O mito da neutralidade científica, 1975; Interdisciplinaridade e patologia do saber, 1976; Para ler Ba-chelard, 1976; Nascimento e morte das ciências humanas, 1978; Intro-dução à epistemologia da Psicologia, 1978; A psicologia dos psicólo-gos, 1979; Questões epistemológicas, 1981; A pedagogia da incerteza, 1983; A revolução científica moderna, 1985; As paixões da ciência, 1991; Francis Bacon: o profeta da ciência moderna, 1995.

Fonte: Severino (2010, p.77).

A partir do exemplo acima poderíamos levantar a se-guinte questão: por que devemos fazer um fichamento sobre um autor?

Claro que escrever sobre autores não parece comum, talvez desnecessário, mas isto é um engano. Conhecer o lega-

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Tópicos para o Ensino de Biblioteconomia

do literário/científico de um autor/pesquisador é tão impor-tante quanto conhecer uma única obra sua em profundidade. É comum escrevermos usando outros autores, por vezes, nos detemos demoradamente sobre ideias alheias, porém, pouco sabemos sobre quem as escreveu.

Apresentamos trabalhos e seminários, nos baseamos em outras obras para fazer isso, mas, na maioria das vezes, mal sabemos o primeiro nome ou o sobrenome dos autores dessas obras. Muitas vezes nos referimos a um texto ou autor como “aquele que trata de tal assunto”, ignorando até mesmo seu título.

É importante conhecer as pesquisas de determinado autor. É importante saber qual a sua formação. São informa-ções que nos ajudam a compreender o itinerário de pensa-mento do próprio autor, suas predileções e principalmente, a escola de pensamento a qual segue.

Claro que, sempre que tivermos que fichar um mate-rial, não iremos fazer fichas “temáticas”, “bibliográficas” e “biográficas”, mas podemos incluir, em um mesmo ficha-mento todos esses elementos e ter outros resultados como uma resenha ou o início de uma revisão bibliográfica.

Para finalizar, tente fazer um exercício de fichamento unindo a], c] e e], não necessariamente nesta ordem, para ver como isso se daria na prática.

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José Fernando Modesto da Silva e Francisco Carlos Paletta

Exemplos de fichas

Fonte: Eco (2014, p. 78).Fonte: Eco (2014, p. 114).

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Tópicos para o Ensino de Biblioteconomia

Fonte: Eco (2014, p. 123).Fonte: Eco (2014, p. 124).

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José Fernando Modesto da Silva e Francisco Carlos Paletta

Referências

ECO, Umberto. Como se faz uma tese. Tradução Gilson Cesar Cardoso de Souza. 25. ed. São Paulo: Perspectiva, 2014.

LÉTOURNEAU, Jocelyn. Como fazer uma resenha de leitura. In:_________. Ferramentas para o pesquisador iniciante. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 19-35.

MACEDO, Neusa Dias de. Iniciação à pesquisa bibliográfica: guia do estudante para a fundamentação do trabalho de pes-quisa. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1994.

SALOMON, Délcio Vieira. Como resumir. In:________. Como fazer uma monografia. 10. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 91-120.

SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do trabalho científi-co. 23. ed. São Paulo: Cortez, 2010.

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GÊNEROS TEXTUAIS PRÓPRIOS DA COMUNIDADE DISCURSIVA FORENSE

Viviane Raposo PIMENTA (Universidade Federal de Uberlândia)

ABSTRACT: This work aims the investigation of the several criminal suit court record text categories: types, genres and species (according to TRAVAGLIA, 2003a) which are used in our society in the criminal court. Therefore, our intention is to verify the existence of these several categories of texts and verify in the genre “sentence” the reflexes, by means of linguistic marks, of those text genres which were used in criminal processes and motivated the judge to make up his decision and declare his “sentence”. Once the law science depends substantially on the language which can not nominate different institutes with the same name neither can it nominate the same institutes with different names. Such analyses and characterizations are based on the foundations of the Text Linguistics, the Theory of the Speech Acts (AUSTIN, 1962), The Communicative Action Theory (HABERMAS, 1983), as well as the postulate of Discourse Communities (SWALES, 1990). KEYWORDS: criminal suit; genres; sentence; text. 1. Introdução

Este estudo tem como finalidade investigar as várias categorias de texto forenses da

área criminal: tipos, gêneros e espécies (segundo TRAVAGLIA, 2003a) que circulam em nossa sociedade. Destarte, é necessário contemplar a idéia de que grande é o número das categorias de texto que circulam em nossa sociedade e que cada época vive um complexo de regras que lhe são próprias, ou seja, não desprezam o passado, não rompem com as tradições, contudo, modelam ou disciplinam os fatos humanos, segundo as exigências do seu momento.

Norteia-se, este estudo, teoricamente pelos estudos da Lingüística Textual e pelas reflexões sobre as mais variadas categorias de texto presentes no nosso dia a dia forense, sobre as quais manuais de advogados ora se referem como peças processuais, ora como processo, ou simplesmente pela terminologia jurídica proposta na legislação, que muitas vezes leva ao erro, uma vez que não possui um rigor da terminologia na linguagem jurídica. Haja vista, que o rigor da ciência jurídica depende substancialmente da linguagem, não devendo designar com um nome comum institutos diversos, nem institutos iguais com nomes diferentes. O legislador não abraçou, porém, critério lingüístico e divorciado de qualquer preocupação científica ou sistemática, preferiu, em cada lei, as soluções meramente empíricas.

As análises dos gêneros textuais que mais influenciam o juiz ao proferir sua sentença norteiam-se, também, pelos pressupostos teóricos da Teoria dos Atos de Fala (AUSTIN, 1962), da teoria da Ação Comunicativa (HABERMAS, 1983), assim como do postulado teórico de Comunidades Discursivas (SWALES, 1990). Sobre o ato de fazer pesquisa e sobre as conseqüências éticas das escolhas envolvidas na pesquisa. Em consonância com Cameron et al (1992), entendemos que os pesquisadores são pessoas posicionadas socialmente, e assim, trazem, inevitavelmente, seus pensamentos e tudo o que constitui sua subjetividade para dentro dos processos de pesquisa com os quais se envolvem. No entanto, segundo os mesmos autores, essa subjetividade não deve ser vista como algo negativo, mas como “um elemento presente nas interações humanas que incluem o objeto de estudo” (CAMERON et al, 1992, p.5).

Assim, estando na posição de pesquisadora de um tema interdisciplinar, crítico (não ingênuo)1 não podemos ignorar “as condições afetivas, sociais e históricas, sob as quais 1 Entendemos que a interdisciplinaridade é uma questão de atitude, está longe de ser apenas fusão de conteúdos ou métodos, e, ao invés de se prender nos elementos, busca sempre as relações entre eles, ou seja, trabalha-se sempre com uma estrutura de relações. Não se realiza sob ordens/decretos, nem tampouco tem etapas definidas

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existem e funcionam a ciência e o homem de ciência contemporâneos” (CASTORIADIS, apud SIQUEIRA, 2003, p. 1). Sendo assim, o estudo que estamos propondo diz respeito às inúmeras interações e interferências em vários campos do saber, dentre eles: a Lingüística (sobretudo os Estudos sobre Texto e Discurso e especialmente a Lingüística Textual), o Direito, o Direito Penal e Processual Penal, a Filosofia, a Filosofia da Linguagem e a Hermenêutica.

É preciso explicar que optamos por utilizar o termo “comunidade discursiva forense” e não “comunidade discursiva jurídica” por acreditarmos que os textos redigidos por esta encampariam todos os textos jurídicos, de todas as áreas do Direito, ou seja, apenas a título de ilustração: do Direito Civil, Comercial, Financeiro, Administrativo, Penal, Tributário, do Trabalho, Internacional Público e Privado, Agrário, do Meio Ambiente, do Consumidor, dos Direitos Difusos e Coletivos, dentre outros, além daqueles que não têm a ver com áreas específicas do Direito.

Desta forma, tivemos que fazer um recorte e por questões de interesse e curiosidade da população em geral (muitas vezes quando se fala em Direito e Advogado, logo se pensa em Crime e Direito Penal – senso comum2). Também por se tratar de uma área que, para atender a própria legislação, possui características muito próprias e peculiares optamos pelo estudo das categorias de texto: tipos, gêneros e espécies, redigidos pelos “operadores do Direito” que, por não encontrarmos em nossa metalinguagem nenhuma expressão sobre o tema, optamos por chamar de “comunidade discursiva forense” de acordo com o conceito de ‘Comunidade discursiva’ de Swales (1990), conforme explicaremos em nossa fundamentação teórica.

Chamamos aqui “operadores do Direito” todos aqueles que atuam na atividade adjudicante: (advogados, defensores públicos, o representante do ministério público); o juiz, o oficial de justiça, o escrivão/escrevente, e os serventuários da justiça que trabalham nas secretarias das varas criminais. Por se tratar de Direito Penal, estaremos considerando também os textos redigidos pelo Delegado de Polícia, seus auxiliares e policiais (embora eles, de acordo com o conceito por nós adotado, não pertençam à comunidade discursiva forense, mas sim à comunidade discursiva policial judiciária).

Observamos que a comunidade discursiva forense, ao redigir seus textos, recorre a modelos, exemplos e fórmulas já preparadas, o que induz ao erro e à má redação destes textos. Sabemos que muitos membros desta comunidade discursiva não se sentirão representados aqui, mas, nos referimos a uma grande maioria.

Devido a este problema é que realizamos este estudo, com intuito de alertar aqueles que desconhecem a ciência cujo objeto de estudo é seu instrumento de trabalho (a língua/ linguagem) e de melhor compreendermos e utilizarmos os conceitos oriundos da Lingüística com a finalidade de melhor operacionalizar nosso trabalho, conscientes das contribuições que tal ciência pode nos oferecer. Uma vez que já pesquisamos, nos mais diversos anais científicos sobre as categorias de texto próprias da comunidade científica jurídica, e não encontramos nenhum trabalho nesta área, acreditamos ser este um estudo relevante não só para nós operadores do Direito, mas também para os estudos lingüísticos.

Podemos dizer que os variados gêneros textuais, característicos da área do Direito, são instrumentos sem os quais não pode haver a operacionalização do trabalho forense. Isto pode se tornar um problema grave, uma vez que o mau desenvolvimento desses gêneros (que

que possam ser aplicadas indiscriminadamente, é um processo que se desenvolve de acordo com as necessidades específicas de cada contexto e estudo. 2 "Senso comum", seria, na nossa opinião, uma analogia com a formulação de Bakhtin (1997) sobre a circularidade da cultura, em que existe uma influência recíproca entre a cultura das classes subalternas e a cultura hegemônica. As formas ideativas do "senso comum" concebido para analisar como determinadas "idéias e noções" científicas são apropriadas pelo conhecimento ordinário.

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formam as peças processuais) pode exercer influência direta no processo jurídico, inclusive na sentença jurídica proferida. É por meio da redação desses gêneros textuais que os fatos serão narrados e descritos e, ao serem narrados e descritos (serão reconstituídos; verdades serão reconstruídas) e os fatos interpretados pelas partes envolvidas nos processos. Cabe ressaltar, que, de acordo com a Constituição Federal de 1988, o juiz deve se ater apenas às peças que compõem o processo (apresentadas por meio dos diferentes gêneros de texto) para julgar e proferir a sentença. Não cabe ao juiz julgar “extra petita” nem “ultra-petita”3. Daí a importância desses textos constitutivos de um processo.

Não se trata aqui de “encapsulamento” dos textos, pois sabemos que a língua é dinâmica, trata-se de uma tentativa de organização destes textos, uma vez que, como podemos ver em nossas considerações teóricas, vários são os estudiosos que procuram uma explicação para o assunto ora tratado. E nesta tentativa de organização destes textos, acreditamos que a proposta de Travaglia (2003a) é a que melhor nos atente, uma vez que, embora não tenhamos encontrado em nosso estudo nenhuma espécie do tipo, várias foram as espécies do gênero que encontramos no corpus analisado, apenas a título de ilustração encontramos o gênero auto de prisão em flagrante e as espécies que dele derivam por apresentarem características formais de estrutura e da superfície lingüística e/ou por aspectos de conteúdo que resultarão em “ação penal pública incondicionada”, “ação penal pública condicionada à representação” e “ação penal condicionada à representação”.

Entendemos que trabalhar com taxonomia não é tarefa fácil, classificar textos é muito mais complexo do que se imagina e só conseguimos entender a amplitude do trabalho quando colocamos “a mão na massa”.

O juiz pode, no final do processo, deixar de julgar uma causa alegando que os fatos não lhe foram trazidos de forma tal que ele possa motivar sua sentença. Isto implicará na não realização do Direito material e na frustração, por parte das partes envolvidas e da sociedade, quanto à justeza do Direito.

Baseamos nosso levantamento das categorias de textos forenses criminais, sua caracterização e estudo da relação de outros gêneros com o estabelecimento da sentença, na análise de 10 (dez) processos penais, sendo: 5 (cinco) sobre o tipo penal: crimes dolosos, contra a vida e os outros 5 (cinco) sobre outros tipos penais dolosos ou culposos 2. Fundamentação teórica 2.1. Sobre comunidades discursivas.

Swales (1990) aponta que nem todas as comunidades serão necessariamente

comunidades discursivas e que então, faz-se necessário o estabelecimento de critérios para eliminar as controvérsias e a circularidade entre comunidade e discurso. Swales (1990) propõe então a diferenciação entre ‘comunidade de fala’ e ‘comunidade discursiva’ a fim de eliminar as controvérsias.

Segundo Swales (1990) a comunidade de fala compartilha formas lingüísticas, regras e conceitos culturais. Para o autor em uma comunidade de fala sócio-lingüística, as necessidades de socialização ou solidariedade do grupo tendem a predominar no desenvolvimento e na manutenção de suas características discursivas. Assim, o autor afirma que o que determina primariamente o comportamento lingüístico é o social, enquanto que em uma comunidade discursiva retórica o que determina o comportamento lingüístico está ligado ao funcional. Para Swales (1990): 3 O juiz não pode julgar fora do que foi apresentado nos autos do processo mesmo que ele tenha conhecimento de algo que não foi citado no processo ‘extra petita’. Também não pode julgar além do que foi pedido ‘ultra petita’.

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“. uma ‘comunidade discursiva’ consiste em um grupo de pessoas que se unem com objetivos que estão acima dos objetivos de socialização e solidariedade, mesmo que estes também ocorram. Numa ‘comunidade discursiva’ as necessidades de comunicação de seus objetivos tendem a predominar no desenvolvimento e manutenção de suas características discursivas.”4 (SWALES, 1990, p. 24)

Finalmente Swales (1990) esclarece que as comunidades de fala são centrípetas, pois

tendem a absorver as pessoas enquanto que as comunidades discursivas são centrífugas e tendem a separar as pessoas em termos de ocupação ou grupos de interesses. O autor advoga que uma ‘comunidade de fala’ herda sua participação por meio do nascimento, por acidente ou por adoção enquanto que uma ‘comunidade discursiva’ recruta seus membros por meio de persuasão, treinamento ou qualificação.

Swales (1990) apresenta seis características que considera suficientes para identificar um grupo como sendo uma ‘comunidade discursiva’. Para o autor uma ‘comunidade discursiva’:

“1. Possui um conjunto de objetivos públicos comuns; 2. Possui mecanismos de inter comunicação entre seus membros; 3. Utiliza seus mecanismos de participação para oferecer informação e feedback; 4. Utiliza e possui um ou mais gêneros na função comunicativa de seus objetivos; 5. Além de possuir gêneros, uma comunidade discursiva possui um léxico específico; 6. Possui um nível de membros com uma formação própria de conteúdo relevante e uma expertise em discurso.”5(SWALES, 1990, p.24 - 27).

O autor finaliza com algumas questões ainda restantes, mostrando que o uso da linguagem é uma forma de comportamento social, e o discurso mantém e aumenta o conhecimento do grupo segundo os critérios utilizados por ele para definir ‘comunidade discursiva’.

Para Swales (1990) por várias razões, é possível negar a premissa de que a participação leva à assimilação, de que a participação não é tão incomum, e toma um contexto relativamente inócuo. Assim, um indivíduo pode participar de várias comunidades discursivas, os indivíduos podem variar de comunidades de acordo com os gêneros que eles comandam. 2.2. Sobre tipologia textual.

Para fins deste trabalho sobre os gêneros textuais próprios da comunidade discursiva

forense, adotamos a proposta de tipologia textual advogada por Travaglia (1991, 2001 e 2003a) que afirma que os tipos e as espécies compõem os gêneros, ou seja, os tipos e espécies não se apresentam sozinhos, necessitam dos gêneros para tomarem forma. Assim, a título de ilustração, não encontramos uma narrativa solta no espaço e no tempo se auto-denominando ‘sou uma narrativa’, mas a encontramos no gênero DENÚNCIA, mais especificamente na parte do texto que trata do relato dos fatos.

Devemos ressaltar que, como toda tipologização, a proposta por nós adotada deve ser entendida como uma proposta que possui critérios que não devem ser vistos como únicos e

4 Tradução nossa para o seguinte trecho: “a discourse community consists of a group of people who link up in order to pursue objectives that are prior to those of socialization and solidarity, even if these latter should consequently occur. In a discourse community, the communicative needs of the goals tend to predominate in the development and maintenance of its discoursal characteristics.” 5 Tradução nossa para os trechos: “1. A discourse community has a broadly agreed set of common public goals. 2. A discourse community has mechanisms of intercommunication among its members. 3. In addition to owing genres, a discourse community has acquired some specific lexis. 6. A discourse community has a threshold level of members with a suitable degree of relevant contents and discoursal expertise.”

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absolutos, mas que são pertinentes tendo em vista um projeto maior de construção de uma teoria geral de tipologia que possua parâmetros lingüísticos de análise do corpus.

Travaglia (1991) apresenta três tipologias textuais, a saber: Conforme Travaglia (1991) na primeira classificação temos o tipo descrição, em

que o enunciador se coloca na perspectiva do espaço em seu conhecer, o que se quer é caracterizar, dizer como é, o interlocutor é percebido como um “voyeur” do espetáculo.

Na narração o que se pretende é dizer os fatos, contar os acontecimentos, o enunciador se coloca na perspectiva do tempo e a narração instaura o interlocutor como o assistente, “o espectador não participante”. Sobre este tipo gostaríamos de ressaltar que nos textos forenses as narrativas se mostram muito argumentativas e podemos perceber o enunciador como emissor de argumentos no ato de narrar. Voltaremos a esta questão ao discutirmos a segunda tipologia proposta por Travaglia (1991).

Na dissertação a atitude do enunciador em relação ao objeto é a de explicar, avaliar, refletir, conceituar, expor idéias, associando-se à análise e à síntese de representações. Neste tipo o enunciador se coloca na perspectiva do conhecer abstraído do tempo e do espaço e o interlocutor é o ser pensante que raciocina. A dissertação no texto forense é muito utilizada logo após a narrativa dos fatos quando o enunciador utiliza os fatos narrados para avaliar e expor idéias no sentido de convencer o juiz e/ou o tribunal.

O quarto tipo proposto na primeira tipologia é a injunção na qual o enunciador se coloca na perspectiva do fazer posterior ao tempo da enunciação, trata-se da ação requerida, desejada, o que e/ou como fazer. Este tipo é muito comum nas categorias de texto forenses uma vez que o juiz é aquele que determina o que deve ser feito, como e quando e em muitas peças processuais as partes também requerem ações futuras.

Dentro desta perspectiva temos textos descritivos, dissertativos, narrativos e injuntivos que se caracterizam por uma tendência que estabelece uma dominância. É sabido que existem tipos puros, porém os textos que apresentam os diferentes tipos cruzados, articulados aparecem em maior freqüência.

A segunda tipologia proposta por Travaglia (1991) é chamada de “discurso da transformação” e “discurso da cumplicidade”.

No primeiro, o discurso da transformação o enunciador tem o seu alocutório e/ou interlocutor como alguém que deve ser convencido, persuadido, influenciado, o enunciador utiliza o texto para fazer com que o seu alocutário ou interlocutor receba suas idéias e opiniões e as aceite. Aqui o interlocutor ou alocutário é visto como um adversário que deve ser convencido. O texto resultante do discurso da transformação é chamado por Travaglia (1991) de argumentativo “stricto sensu”: são textos nos quais a argumentação se apresenta de maneira explícita e atinge o seu grau máximo.

Já no discurso da cumplicidade o enunciador se coloca numa situação mais confortável, pois, tem o seu interlocutor como seu cúmplice, alguém que já compartilha de suas idéias e opiniões. Neste caso o enunciador sustenta, reforça e acrescenta novos argumentos. O texto resultante do discurso da cumplicidade é chamado de argumentativo não “stricto sensu”6, uma vez que, nesta perspectiva, todo texto seria argumentativo, mesmo quando a intenção do enunciador é a de reforçar, sustentar ou acrescentar novos argumentos.

O autor advoga que a argumentação é feita através de descrições, dissertações, injunções e narrações de diferentes formas. Nos textos forenses a argumentação se apresenta de forma muito clara, até mesmo nos textos injuntivos que deferem ou indeferem um determinado agravo com intenção meramente procrastinatória, isto é postergação.

6 Esta denominação é ligeiramente diferente da proposta por TRAVAGLIA (1991) e foi proposta pelo autor em comunicação pessoal em sala de aula.

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A terceira tipologia proposta apresenta os textos “preditivos” e “não-preditivos”, sendo que nos preditivos o enunciador faz uma antecipação no seu dizer, está pré-dizendo algo, enquanto que nos não preditivos não há antecipação, previsão ou anúncio antecipado.

Em 1998, Travaglia estabelece a hipótese de que haveria “elementos tipológicos fundamentais” (TRAVAGLIA, 2002a, p.2), ou seja, elementos tipológicos que estariam presentes na composição de todos ou da maioria dos textos existentes em nossa cultura/sociedade, independentemente da classificação tipológica desses textos, Na busca dos elementos tipológicos fundamentais, o autor pôde encontrar fatos sobre tipologização que sugeriam a necessidade e a validade de se distinguir três “elementos tipológicos” (categorias de texto) de naturezas diferentes. Para o autor a não distinção desses três elementos tipológicos seria responsável pela criação de mal entendidos por um lado no estabelecimento de tipologia e da relação entre elas e por outro na classificação tipológica de textos e em como relacionar diferentes classificações que um mesmo texto pode receber. 2.3. Tipelementos: tipos, gêneros e espécie.

Travaglia (2002b) propõe a distinção de três naturezas diferentes de categorias de

texto que julgamos interessante considerar ao tratar dos textos redigidos pela comunidade discursiva forense, pois, nestes textos, podemos encontrar e distinguir os três tipelementos propostos por Travaglia (2001 e 2003a) que propôs o termo tipelementos como um termo genérico para os elementos tipo, gênero e espécie de texto.

Assim, o primeiro “elemento tipológico” é o tipo e este comporá os gêneros juntamente com as espécies. Para o autor o tipo se caracteriza por instaurar uma forma de interação, de interlocução, segundo perspectivas que podem variar e constituir critérios para se estabelecer tipologias diferentes.

O segundo “elemento tipológico” proposto é o gênero de texto caracterizado por exercer uma função sócio-comunicativa específica que embora sejam vivenciadas não são de fácil explicitação e o terceiro tipelemento é a espécie7, definido e caracterizado por aspectos formais de estrutura e da superfície lingüística e/ou por aspectos de conteúdo. Finalmente, queremos registrar que, o “gênero pode se vincular a vários tipos diferentes em termos de dominância, assim o gênero pode ser de um ou outro tipo. Quanto às espécies, algumas podem ser vinculadas a um tipo ou gênero sendo que não possuem realização independente, ou seja, estão sempre na composição de um gênero. Desta forma, o que funciona na sociedade e na cultura são os gêneros que são compostos por tipos e espécies, sendo que as espécies estabelecem variedades de um tipo ou gênero necessárias à interação. 2.4. As teorias dos atos de fala e da ação comunicativa

Neste momento gostaríamos de sinalizar que para verificarmos a influência ou não de

determinados gêneros na sentença proferida pelo juiz, temos a intenção de utilizar as propostas de Austin (1962) em sua obra “How to do things with words”, traduzida por Danilo Marcondes como “Quando dizer é fazer – palavras e ações”, para podermos apreender o significado de atos locucionários, ilocucionários e perlocucionários. Uma vez que sabemos Austin tinha um interesse peculiar pelo crime, conforme Marcondes (1990):

“.a questão da ética, a questão da responsabilidade que decorre de uma ação. e a razão de assim proceder radica-se no fato de as condições de possibilidade de emprego desses termos revelarem as circunstâncias que permitem ao falante usá-los para justificar, desculpar ou eximir-se da responsabilidade de seu ato.

7 Travaglia (2001 e 2002a) utilizou o termo “subtipo”, para o que hoje chama de espécie.

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. Nesta sua análise, Austin recorre a uma série de exemplos tirados não só da prática cotidiana do uso lingüístico, como também de processos criminais8 em que alguém foi ou não responsabilizado por uma ação.” (SOUZA FILHO, Danilo Marcondes de. Apresentação: A filosofia da Linguagem, 1990, p. 9. In: AUSTIN (1962). Quando Dizer é fazer: palavras e ação).

Austin (1962) fizera a separação entre atos locucionários, ilocucionários e

perlocucionários; entre enunciados constatativos – afirmações com valores semânticos de verdade ou falsidade – e performativos, aqueles que não visam descrever um estado de coisas, porém realizar uma ação no mundo, como nomeações, ordens, promessas, declarações, juras, perguntas etc. que são chamados de atos ilocucionários. Todo enunciado pode produzir efeitos perlocucionários, os enunciados produzem efeitos nos ouvintes o que Austin chama de atos perlocucionários como ofender, estimular, convencer, dissuadir, entre outros. Os atos ilocucionários dependem de um assentimento do ouvinte quanto a sua satisfação ou adequação, segundo as circunstâncias em que foram proferidos.

No entanto, nos parece que na XII conferência, Austin chega à conclusão de que todo ato de fala possui uma força performativa. Exemplificando, podemos dizer que no gênero QUALIFICAÇÃO, por mais inocente que seja a descrição de uma parte como “do lar”, “desempregada”, “divorciada”, numa ação de alimentos, por exemplo, esta descrição terá sua força performativa e, sobretudo perlocucionária. O mesmo pode ocorrer num crime de furto, a descrição, “desempregado”, “sem residência fixa estabelecida” também implicará em um fazer.

Entendemos que na XII conferência apresentada em “How to do Things with words” (1962), Austin resume suas conferências e nos parece que chega à conclusão de que o que sua teoria apresenta de novo e relevante seria a visão performativa presente em todos os atos de fala e que, mesmo uma declaração, por ter sido feita, não seria somente um ato de fala mais sim um fazer.

Com a débâcle da razão prática, i.e., desse resoluto estado interno centrado na boa vontade, (HABERMAS 1983, p. 19) propõe que ela seja recolhida e em seu posto fique a ação comunicativa, por esta se apresentar mais adequada do ponto de vista da moral e especialmente por permitir a reflexão e a própria meta-reflexão.

Embora só desenvolvida em plenitude na década de 80, já (HABERMAS 1989, p. 41) e sobretudo (HABERMAS 1983, p. 31) acenam com a ação comunicativa como capaz de ocupar o vazio conceitual/teórico que razão prática e mesmo o trabalho e a produção haviam deixado via materialismo dialético.

A ação comunicativa pertence à faculdade da linguagem ou a este processador neuro-cortical humano, capaz de combinar conceitos e expressões simbólicas articuladas linearmente, capazes de sustentar o pensamento conceitual e proposicional. Por ser extremamente econômica em seu trabalho, a faculdade da linguagem estabelece representações do mundo na fôrma de conceitos e na forma de símbolos estruturalmente seqüencializados.

Neste sentido, não é a realidade que deve estar em jogo durante o ato de comunicação, mas dois pontos de vista em questão. Assim, entender-se é uma questão primordial na ação comunicativa. A referência como um acordo entre emissor/receptor.

Encaixada dentro da racionalidade, a ação comunicativa, que é função da linguagem, que não escapa à normatividade, porque ela mesma, a linguagem, é constituída de normas convencionais. Uma convenção conceitual/expressiva combina com outra, para formar uma proposição, capaz de aproximar intersubjetividades discursivamente.

8 Grifo nosso.

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A ação comunicativa ocorre principalmente por meio da proposição. Base na estruturação da proposição, os conceitos/categorias a constituem.

Um aspecto da linguagem, ou mais precisamente da lógica, que merece destaque é o fato da proposição assertiva ser verdadeira ou falsa. A referência nem sempre é um problema lingüístico, porque a linguagem opera com conceitos que são construtos da realidade. O consenso de verdade depende muito mais do entendimento da comunidade lingüística, e mais ainda, a proposição não depende também da realidade a que se refere, para ser válida ou não válida.

(HABERMAS, 2003, p. 35) considera o "agir comunicativo" capaz de coordenar o processo de entendimento entre os agentes sociais. Como parte fundamental da racionalidade, em exercício, a ação comunicativa permite que emissor e receptor elaborem e re-elaborem mensagens na interação social.

Parte decisiva na manutenção da ordem normativa e na integração social, a ação comunicativa é fator fundamental no estabelecimento da conduta humana. Na verdade, ela não só é decisiva na integração social, mas também na própria desintegração social. Sem ser causa direta de uma ou de outra, ela é parte integrante do sucesso ou do insucesso do entendimento intersubjetivo.

O poder do mundo da vida é enorme no dia-a-dia e no entendimento entre as pessoas. Sob seu horizonte, as pessoas se aproximam e se distanciam; aceitam-se ou não se aceitam; auxiliam-se ou não se auxiliam; são amigos, são indiferentes ou são mesmo inimigos. No mundo da vida, os sentimentos e emoções têm espaço e pertinência.

Quando o mundo da vida é marcado por circunstâncias sociais de desigualdade, a ação comunicativa encontra resistências para alcançar o consenso desejado. Nesse caso, mundo da vida e a ação comunicativa mantêm estreitas relações entre si.

Na passagem do direito natural para o direito positivo, o Estado assumiu o papel de regulador e mantenedor da ordem jurídica. A norma torna-se um fato e sua validade uma questão do Estado, como forma de garantir a organização social e a liberdade individual e coletiva.

Na sociedade democrática, com a liberdade de imprensa, escrita, falada e televisada, à facticidade da norma acresceu-se não só a validade oficial, mas também a validade emergente da ação comunicativa. Os cidadãos, ao se tornarem esclarecidos e críticos, podem rever normas, entendê-las de maneira diferente bem como criar outras, desde que sejam transformadas em consensos junto da maioria social.

Enfim, (HABERMAS, 2003) propõe novas alternativas para problemas antigos da teoria da sociedade. A razão prática é substituída pela razão comunicativa; a ação comunicativa faz a razão prática se expressar; e o direito natural, já convertido em positivo e administrado pelo Estado, mantém-se como facticidade normativa, mas à procura da validade social conferida pela permeabilidade da sociedade democrática.

Contudo por não ser natural, ou seja, por ser uma construção social, o direito positivo, com sua facticidade normativa, na sociedade democrática carece da validação social, para exercer na plenitude seu papel de integrador social.

A possibilidade de entendimento que Habermas alcança com a ação comunicativa e com a validade social versus a facticidade das normas, não são horizontes claros, pois a comunicação, embora de natureza argumentativa, nem sempre se estriba em proposições assertivas. E mais que isso, na maioria das vezes, não é o conteúdo das proposições que leva ao entendimento, mas sim a intenção de busca de entendimento.

Em outros termos, a intenção de entendimento precede ao conteúdo proposicional, contido nos argumentos utilizados na ação comunicativa. Pai e filho, independente do problema existente e que os perturba, procuram se entender, porque o entendimento vital é vital para a relação familiar que procuram mantêm.

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Enfim, entendemos que John Langslaw Austin assim como Jürgen Habermas não podem ser esgotados prematuramente e muito menos serem recebidos de maneira imprópria pela academia, especialmente fazendo-os dizer o que nunca pretenderam dizer. Este cuidado temos de ter. 3. Gêneros textuais próprios da comunidade discursiva forense criminal

Como já mencionamos um dos objetivos da Lingüística Textual é definir e classificar

os mais diferentes tipos de textos, e, segundo Travaglia (1991), a tipologização de textos ainda se encontra em fase de controvérsias e faltam critérios adequados para a descrição global das diversas categorias de texto, uma vez que, para esta classificação, as propostas apresentadas variam de acordo com o objetivo de análise.

O fato de termos diversas propostas no sentido de construir uma teoria tipológica de textos não torna o estudo menos interessante, ao contrário, nos mostra que fazer ciência é um ato que deve ser exercitado, de acordo com Kuhn (1989), as ciências não evoluem de forma linear, mas se desenvolvem após crises às quais o autor denominou crises de paradigmas. O autor também refere-se a métodos em ciências, como um conjunto de processos pelos quais se torna possível chegar ao conhecimento de algo, o que depende do objeto da pesquisa, do problema ao qual se propõe resolver e do objetivo da pesquisa.

Ora, o objetivo de toda ciência é o conhecimento, porém, para se possuir conhecimento, particularmente científico, é preciso deter algum tipo de justificação para sustentar o que acreditamos, e o tipo de justificação nem sempre é o mesmo. Assim sendo, o conhecimento nas ciências, segundo (KUHN, 1989), é a “crença” verdadeira e justificada, de tal modo que o conhecimento encontra-se correlacionado com a “verdade”.

A ciência hoje, não é considerada algo pronto, acabado ou definitivo. Não é a posse de “verdades absolutas e imutáveis”, mas sim a busca constante de explicações e soluções e de revisão de seus resultados.

Neste sentido para ser aceita como paradigma, uma teoria deve parecer melhor que suas competidoras, mas não precisa explicar todos os fatos com os quais pode ser confrontada. O novo paradigma implica uma definição nova e mais rígida do campo de estudos.

A título de exemplo, podemos citar o fato de, recentemente, termos sido surpreendidos com a notícia de que astrônomos, de todo o mundo, haviam se reunido e decidido que o planeta Plutão havia deixado de ser um planeta, ficando assim, o sistema solar com apenas 8 (oito) planetas. Ou seja, o que acreditávamos como se tratando de uma “verdade” na área da Astronomia, devido a novas pesquisas, após tanto tempo, novos critérios foram definidos e estabelecidos e, sem demérito para o que se pensava anteriormente, uma nova “verdade” foi estabelecida nesta área de conhecimento.

Assim, sendo na Lingüística e no Direito ciências não prontas, não definitivas e nem acabadas, mas sim, ciências em constante evolução, a cada atividade de análise surgem novas propostas, novos olhares, novos paradigmas.

E é neste sentido que fizemos a leitura do nosso corpus de pesquisa, segundo os critérios teóricos por nós adotados, ou seja, a partir do conceito de categorias de textos que possuem uma função social e fazem parte da esfera da atividade humana forense criminal; e, baseando-nos em nossa carta magna Constituição Federal de 1988, na lei penal e processual penal, em relação ao produtor do texto, a quem o texto se dirige e à função básica comum de cada texto, encontramos 130 (cento e trinta) gêneros de textuais que pertencem à comunidade discursiva forense criminal que, por questão de delimitação, apenas as relataremos abaixo:

1) Noticia- crime; 2) boletim de ocorrência; 3) Qualificação; 4) Auto de prisão em flagrante; 5)Nota de culpa; 6) Despacho de deferimento de pedido de fiança; 7) Termo de

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fiança; 8) Despacho que determina ordem de serviço; 9) Ordem de serviço; 10) Relatório de ordem de serviço; 11) Portaria; 12) Auto de busca pessoal; 13) Auto de busca e apreensão; 14) Termo de representação; 15) Termo de representação, ofendida menor; 16) Termo de representação apresentado ao promotor de justiça; 17) Termo de representação apresentado para o juiz de direito; 18) Termo de representação, ofendida menor ao juiz de direito por seu representante legal; 19) Termo de representação, ofendida menor ao promotor de justiça por seu representante legal; 20) Termo de representação, por escrito, por advogado com poderes que lhe foram outorgados pela ofendida ou, se for o caso de menor, por seu representante legal; 21) Requisição de Instauração de Inquérito Policial, pelo promotor; 22) Requisição de Instauração de Inquérito Policial, pelo juiz de direito; 23) Procuração; 24) Assentada; 25) Relatório; 26) Distribuição; 27) Despacho de expediente; 28) Despacho, decisões interlocutórias; 29) Exceção de suspeição e de impedimento; 30) Exceção de suspeição e de impedimento, pelas partes; 31) Conclusão dos autos; 32) Resposta do excepto; 33) Liminar que rejeita a resposta do excepto; 34) Decisão que reconhece a argüição de suspeição; 35) Acórdão; 36) Exceção de incompetência do juízo, pelas partes; 37) Exceção de litispendência; 38) Exceção de coisa julgada; 39) Exceção de ilegitimidade de parte; 40) Autuação; 41) Termo de recebimento dos autos, pelo ministério público; 41) Termo de arquivamento dos autos do inquérito policial, pelo ministério público; 42) Pedido de arquivamento do inquérito policial, pelo ministério público; 43) Remessa dos autos à procuradoria geral da justiça; 44) Denúncia; 45) Intimação para comparecer em juízo; 46) Citação; 47) Intimação de decisão do juiz; 48) Rejeição da denúncia; 49) Despacho recebendo a denúncia; 50) Termo de audiência de interrogatório do réu; 51) Pregão; 52) Assentada em juízo; 53) Defesa prévia; 54) Termo de audiência de inquirição das testemunhas; 55) Abertura de vista; 56) Pedido de vista; 57) Termo de vista; 58) Alegações finais; 59) Sentença penal; 60) Absolvisão sumária; 61) Desclassificação; 62) Impronúncia; 63) Pronúncia; 64) Conclusão ao juiz presidente do tribunal do júri; 65) Libelo crime acusatório; 66) Contrariedade do libelo crime acusatório; 67) Julgamento pelo tribunal do júri; 68) Queixa crime; 69) Audiência de reconciliação; 70) Exceção da verdade; 71) Contestação da exceção da verdade; 72) Pedido de perdão; 73) Aceitação do pedido de perdão; 74) Oferta de perdão ao querelado; 75) Reconvenção; 76) Queixa crime, ação subsidiária da pública; 77) Remessa dos autos; 78) Recurso em sentido estrito; 79) Apelação; 80) Contra razões de apelação; 81) Hábeas Corpus; 82) Hábeas Corpus Preventivo; 83) Protesto por novo júri; 84) Revisão criminal; 85) Embargos divergentes e infringentes; 86) Embargos de declaração; 87) Embargos de divergência; 88) Carta testemunhável; 89) Recurso especial; 90) Agravo; 91) Recurso ordinário constitucional; 92) Recurso extraordinário; 93) Correição parcial; 94) Embargos infringentes ou de nulidade; 95) Suspensão Condicional da Pena (SURSIS); 96) Requisição; 97) Traslado; 98) Atestado de antecedentes; 99) Ofício; 100) Pedido de habilitação de assistente; 101) Rol de testemunhas; 102) Recibo ao testemunhante; 103) Autenticação; 104) Graça; 105) Indulto; 106) Termo de acareação; 107) Pedido de liberdade provisória; 108) Alvará de soltura; 109) Carta precatória; 110) Edital; 111) Ofício de mandado de prisão; 112) Ofício ao diário oficial para publicação de edital; 113) Termo de apensação; 114) Termo de compromisso aos peritos; 115) Petição interlocutória; 116) termo de recebimento; 117) termo de recurso; 118) Parecer do ministério público; 119) Argüição de conflito de competência; 120) Decreto de revelia; 121) Decreto deferindo pedido de devolução do valor da fiança – réu absolvido; 122) Termo de ocorrência e deliberação; 123) Relatório médico; 124) Exame de corpo delito; 125) Laudo de exame cadavérico; 126) termo de compromisso de perito ad-hoc; 127) Laudo de exame de veículo; 128) Declaração; 129) Atestado; 130) Certidão.

Quanto à sentença proferida pelo juiz, as sentenças por nós estudadas apresentam as seguintes características formais escritas.

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Num primeiro momento, o juiz faz uma exposição do histórico do processo, um resumo. Neste momento o juiz já mostra indícios de quais peças processuais – gêneros forenses criminais - que o levaram a tomar sua decisão, já demonstra quais provas apresentadas lhe pareceram pertinentes, verdadeiras, melhor redigidas, com argumentos lógico-racionais bem encadeados e elaborados no sentido de convencê-lo. Neste momento observamos que a comparação da pretensão deduzida com a norma que constitui o direito objetivo se transforma numa arena na qual nem sempre o direito objetivo se realiza via processo, uma vez que, como já mencionamos “os fatos serão tantos quantas forem suas narrativas e descrições”.

O texto melhor elaborado e melhor redigido por profissionais experts se faz presente, talvez daí o fato de ‘pobres mortais’, pessoas que possuem baixo poder aquisitivo, acreditarem que “a justiça só é feita para os pobres, ladrões de galinha”.

Entendemos que, de alguma forma, cada juiz empresta às suas sentenças as marcas de seu temperamento e as dominantes de sua formação. No entanto, não vemos este fato de forma pejorativa, ao contrário, acreditamos que aquele que tem autoridade para fazê-lo indica com excelências supremas do julgado a concisão que não argua pobreza ou dê ao estilo ‘supremas do estilo do julgado’ a concisão que não abastarde em vulgaridade, a clareza. O que podemos exigir do juiz, como já relatamos, é que dê os fundamentos da sua convicção. 4. Considerações finais.

Partindo do pressuposto de que os gêneros se caracterizam por exercer uma função sócio-comunicativa que podem revelar atividades profissionais específicas, admitimos que os gêneros textuais produzidos por profissionais que atuam na esfera forense, que denominamos, de acordo com o postulado por Swales (1990), de ‘comunidade discursiva forense’, possuem funções rígidas, organização textual própria, estrutura composicional que os diferem facilmente dos textos redigidos por profissionais de outras áreas, estilo altamente formal, um variado leque de léxico próprio que é dificilmente compreendido por senão por seus pares, dentre outros, acreditamos ter confirmado nossa hipótese e alcançado o nosso objetivo de fazer um levantamento e breve caracterização destes gêneros textuais que consideramos próprios desta comunidade discursiva.

Na área da Lingüística Textual, afirmar que é possível encontrar mais de cem categorias de texto distintas entre si, ora devido ao seu produtor, ora devido às suas condições de produção, ora devido as suas conseqüências jurídicas futuras, não é tarefa fácil.

Acreditamos que esta definição e caracterização só é possível baseada numa teoria de tipologização de textos que estabeleça critérios bem definidos para a sua realização. Neste sentido, acreditamos que a proposta de Travaglia (2003a) “Dos Tipelementos” nos forneceu os critérios adequados para a realização do trabalho.

Quanto ao nosso objetivo de fazer um estudo mais detalhado da ‘sentença judicial’ e dos gêneros que a influenciam e que, portanto, merecem maior atenção por parte dos operadores do Direito, entendemos que em relação à estrutura composicional da ‘sentença judicial’ foi possível percebermos que, embora tenhamos analisado sentenças do mesmo juiz, cada julgado recebe por parte do juiz tratamento diferenciado e único, afinal trata-se de fatos sociais diferentes, e que, embora o juiz tenha que atender o dispositivo no art. 381 do CPP em relação ao que deve conter a sentença, o juiz prima pela fundamentação de sua sentença. Nesta parte do texto, o juiz argumenta consigo mesmo, se convence, trava uma batalha interna com intuito de promover a justiça.

Procuramos fazer uma análise da ‘sentença judicial’ enquanto ‘acontecimento’ como a exterioridade que não está fora e que representa o lugar de ruptura com os sentidos

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estabelecidos, e também como ‘estrutura’, o sujeito, a ideologia e o próprio discurso, como sistemas cujas fronteiras não são fechadas e cujo princípio de organização não está no centro.

Ora, o texto redigido pelo juiz no gênero ‘sentença judicial’ já no inicio, quando faz o breve relatório dos fatos que lhe foram trazidos, já demonstra como será o seu julgado. As escolhas lingüísticas feitas pelo juiz possuem papel fundamental no texto, o que corrobora nossa hipótese de não haver texto neutro, imparcial nem inocente. Dessa forma, o juiz não está no centro de si mesmo e tampouco é a fonte do sentido; e o lugar onde está não tem centro, mas é uma estrutura.

As técnicas argumentativas implícitas na estrutura textual podem construir verdades que nem sempre visam o auditório universal, por se tratarem de ‘verdades’ ‘construtos’ localizadas no tempo e no espaço, são ‘verdades’ baseadas naqueles ‘fatos’ específicos e que portanto estão voltadas para um auditório particular.

Percebemos que para proferir a sentença judicial, o juiz se baseia na comparação, principalmente, daqueles gêneros que lhe trazem as várias versões do fato, buscando assim um meio que o conduz para sua decisão.

Neste sentido, entendemos que nossa hipótese de que alguns gêneros exercem maior influência para a sentença judicial se confirma. Esses gêneros são aqueles cuja função sócio-comunicativa é a de trazer a versão das partes para o fato, tornando o fato em tantos fatos quantas forem suas narrativas, descrições e argumentos nelas apresentadas. Ganha o melhor argumento, o mais articulado, o mais convincente, o que menos dúvida deixa sobre a sua veracidade.

Assim, quanto ao nosso objetivo específico de fazer uma caracterização mais detalhada do gênero textual ‘sentença’ na tentativa de encontrar os gêneros ‘outros’ que a afetam, reconhecemos que este estudo só é possível com o estudo sobre as teorias da argumentação, dos atos de fala e da ação comunicativa que entendemos estão de alguma forma relacionadas.

Não temos a intenção de mudar o panorama da Lingüística Textual no que se refere a um de seus objetivos que é o de definir e classificar os diferentes tipos de textos encontrados na sociedade atual. Mas, baseado no aparato teórico que adotamos e no estudo aqui apresentado, gostaríamos de poder somar, no sentido de contribuir para a construção de uma teoria tipológica geral de textos. Pesquisa, que devido à sua dimensão e grandeza, requer muito mais.

Esperamos ter conseguido mostrar como o estudo das categorias de textos redigidos por membros da ‘comunidade discursiva forense’ pode servir como meio para uma abordagem mais ampla destes e, ao mesmo tempo, servir como uma sugestão na classificação e tipologização de textos. Referências AUSTIN, J. L. How to do things with words. London/Oxford/ New York, 1962. _____, Quando Dizer é fazer: palavras e ação. Tradução: SOUZA FILHO, D. M. de. Apresentação: A filosofia da Linguagem, 1990, p.9. Porto Alegre, Artes Médicas, 1990. BAKHTIN, Michail. Estética da criação verbal. Trad. PEREIRA, M. E. G. G. São Paulo: Martins Fontes, 1997. Pp. 275-326. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. _____. Código Penal (1940), Legislação brasileira. Org. dos textos, notas remissivas e índices por OLIVEIRA, j de. São Paulo: Saraiva, 1992. _____. Código de Processo Penal (1940), Legislação brasileira. Org. dos textos, notas remissivas e índices por OLIVEIRA, j de. São Paulo: Saraiva, 1992.

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2040

CAMERON, D. et al. Researching languague: uisssues of power and method. London: Routledge, 1992. HABERMAS, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Tradução: SIEBENEICHLER, F. B. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. _____. El discurso filosófico de la modernidad. Tradução: REDONDO, M. J. Madrid: Altea, Taurus, Alfaguara S. A. 1989. _____. Conciência moral e agir comunicativo. Tradução: SIEBENEICHLER, F. B. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,1983. KUHN, T. S. A Estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva S.A. 1975. SWALES, J. English in academic and research settings. Cambridge: Cambridge University Press, 1990. TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Tipologias textuais literárias e lingüísticas. In: Abordagens transdisciplinares de língua e literatura”, Revista Scripta. MG: PUC/MG. 2003b _____. Tipelementos e a construção de uma teoria tipológica geral de textos. In: Língua Portuguesa e Ensino. (Org.) FÁVERO, Leonor Lopez; BASTOS, Neusa M. de Oliveira B., et al. São Paulo: Cortez/EDUC, 2003a _____. Gêneros de texto definidos por atos de fala. In: ZANDWAIS, Ana (org.) Relações entre pragmática e enunciação. Porto Alegre: Sagra Luzatto, 2002b. Pp. 129 – 153. _____, Tipos gêneros e subtipos textuais e o ensino de língua materna. In: BASTOS, Neuza Barbosa (org.) Língua Portuguesa: uma visão em mosaico. São Paulo: TIP – PUC – SP/ EDUC, 2002a. Pp. 201 – 214. _____. Da Distinção entre tipos, gêneros e subtipos de textos. In: Estudos Lingüísticos XXX. Art. 200. Marília: SP/ Fundação de Ensino Eurípedes Soares da Rocha, 2001, artigo 200. (Revista em CD-ROM). 2001. Pp. 01-06. _____. Um estudo textual-discursivo do verbo no Português do Brasil. Tese de Doutorado. UNICAMP/ILEL Campinas, 1991. Pp. 46 – 306.

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O JURIDIQUÊS E A LINGUAGEM JURÍDICA:

O CERTO E O ERRADO NO DISCURSO

Valdeciliana da Silva Ramos Andrade1

O Direito, como qualquer outro ciência – matemática, biologia, economia, medicina,

informática, etc –, tem uma linguagem técnica que lhe é peculiar, a qual deverá será

empregada sempre que for preciso. Contudo, o problema do juridiquês não se refere

ao uso comedido e necessário de termos técnicos.

Infelizmente, cumpre destacar que a prática do juridiquês não é restrita somente a

magistrados, como acreditam algumas pessoas, mas também é uma prática de

muitos advogados, procuradores, promotores, enfim de muitos profissionais do

Direito.

É claro que o profissional do Direito não pode se esquecer nunca da função social

da linguagem nesta área, pois muito mais do que produzir uma peça o profissional

deve ter em foco o outro o qual é destinatário de sua mensagem deseja saber que

direitos estão sendo defendidos ou violados. Assim, o operador do Direito precisará

dosar o seu texto, de forma que a linguagem técnica não deverá sacrificar nunca a

clareza do que está sendo dito. Não é um campo fácil, mas é algo que se pode

realizar.

Voltando ao juridiquês, este não surgiu por causa da linguagem técnica, mas, sim,

por causa do excesso de formalismo na área jurídica, que é visto até hoje nos

pronomes de tratamento, mesmo fora do âmbito forense entre os pares, nos trajes,

na burocracia que envolve o processo, nas formas de acesso à justiça.

Convém esclarecer somente que vivemos em um mundo globalizado, onde o tempo

da informação é instantâneo – tudo ocorre no tempo real. Já existe o processo on-

line, as decisões estão disponíveis em rede, o acompanhamento processual pode

1 Doutora em Língua Portuguesa pela UERJ, mestre em Linguística e Filologia pela UNESP, professora de Linguagem Jurídica da Faculdade de Direito de Vitória – FDV.

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ser feito por qualquer pessoa, entre outras realidades virtuais que estão se inserindo

no mundo jurídico. É bem verdade que o processo de inserção dessas “novidades” é

lento, entretanto é real e tangível.

A única área que resiste a essas mudanças é a do Direito, mas muito pior que

resistir é cometer o desvio, o exagero. É exatamente isso que é o juridiquês – um

desvio da linguagem jurídica. Isso se dá de duas formas, a saber: o preciosismo

empregado na linguagem jurídica e os problemas que rondam a construção textual

na área do direito.

1 O JURIDIQUÊS NAS PALAVRAS E NAS EXPRESSÕES

Antes de tratarmos acerca do que seja “preciosismo” no âmbito jurídico, é

importante, antes, prestar um esclarecimento. Juridiquês não é tecnicismo, como já

dissemos, muitas vezes, o emprego de termos técnicos será necessário, mas nada

impede que o profissional esclarecido utilize recursos para esclarecer tal linguagem

técnica. Preciosismo é um desvio que contempla o uso descomedido de latinismo,

de termos ou expressões arcaicas ou mesmo rebuscadas e de neologismos. Tais

recursos impedem a compreensão adequada do está sendo proferido, deste modo o

processo de comunicação fica prejudicado. Parece que há um prazer em se eleger

um léxico que não seja acessível ao cidadão comum.

Infelizmente, há profissionais do âmbito jurídico que acreditam que escrever bem é

escrever difícil – ISSO NÃO É VERDADE! Um bom texto não é medido pela

quantidade de palavras latinas, arcaicas ou rebuscadas que se utiliza. Além disso,

parece que o uso de um vernáculo mais elitizado demonstra cultura – ledo engano,

isso hoje é burrice!

Apenas para perceber como isso ocorre, vejamos alguns exemplos desse desvio

que está exposto em um site (http://www.paginalegal.com/categoria/juridiques). Para

designar “petição inicial” (peça que se inicia uma ação – petição ! pedir), como é

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previsto pelo art. 282 do Código de Processo Civil, foram encontradas 23

ocorrências, como vemos:

• peça atrial • peça autoral • peça de arranque

• peça de ingresso

• peça de intróito

• peça dilucular • peça exordial • peça gênese

• peça inaugural • peça incoativa

• peça introdutória

• peça ovo

• peça preambular • peça prefacial • peça preludial • peça primeva

• peça primígena

• peça prodrômica

• peça proemial • peça prologal • peça pórtico

• peça umbilical • peça vestibular

Não raro, o que se vê aqui são neologismos, os quais se constituem em erros

crassos em se tratando de língua portuguesa. Sejamos técnicos, por que não utilizar

“petição inicial”, mas não é só isso. Há mais.

• Alvazir de piso: o juiz de primeira instância

• Aresto doméstico: alguma jurisprudência do tribunal local

• Autarquia ancilar: Instituto Nacional de Previdência Social (INSS)

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• Caderno indiciário: inquérito policial

• Cártula chéquica: folha de cheque

• Consorte virago: esposa

• Digesto obreiro: Consolidação das Leis do Trabalho (CLT)

• Ergástulo público: cadeia

• Exordial increpatória: denúncia (peça inicial do processo criminal)

• Repositório adjetivo: Código de Processo, seja Civil ou Penal

Os problemas do juridiquês não residem apenas nisso, visto que essa ânsia de

trazer para língua portuguesa um status de erudição em nome da “clareza jurídica”,

pois os que defendem tal tese asseguram que os termos técnicos não dão margem

à ambigüidade (quem assegura isso é está extremamente equivocado). Muitas

vezes, os profissionais criam códigos que são só conhecidos por eles, inclusive as

abreviações são, quase sempre, incógnitas. Isso pode ser visto em

[...] que o d. Juízo de V.Exa. omitiu-se acerca do que deveria se pronunciar, d.m.v., como se sustenta nas razões que se seguem:[...]

O que será “d. Juízo de V.Exa”? Será que é uma homenagem à inteligência do juiz?

Como disse Shakespeare – “Há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha

nossa vã filosofia”. Ademais, ninguém sabe informar, de fato, o que seja “D.M.V.”.

Por curiosidade, apenas para verificar, indaguei o que seria a possível sigla para

alguns juízes – nem eles mesmos sabem. Quem dirá então o cidadão comum. Isso

não é linguagem jurídica, mas é pura e simplesmente ERRO de língua portuguesa.

No tocante a isso, o ministro Edson Vidigal, do Superior Tribunal de Justiça,

[...] compara o “juridiquês” ao latim em missa, acobertando um mistério que amplia a distância entre a fé e o religioso; do mesmo modo, entre o cidadão e a lei. Ou seja, o uso da linguagem rebuscada, incompreensível para a maioria, seria também uma maneira de demonstração de poder e de manutenção do monopólio do conhecimento. (apud ALVARENGA, 2005)

Isso é presente não só em termos ou expressões do âmbito jurídico, está permeado

em construções marcadas pela falta de clareza, como se vê nos exemplos2 a seguir:

2 Exemplos disponíveis em: < www.gazetadotriangulo.com.br>. Acesso em: 16 fev. 2008.

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V. Exª., data máxima venia não adentrou às entranhas meritórias doutrinárias e jurisprudenciais acopladas na inicial, que caracterizam, hialinamente, o dano sofrido. Com espia no referido precedente, plenamente afincado, de modo consuetudinário, por entendimento turmário iterativo e remansoso, e com amplo supedâneo na Carta Política, que não preceitua garantia ao contencioso nem absoluta nem ilimitada, padecendo ao revés dos temperamentos constritores limados pela dicção do legislador infraconstitucional, resulta de meridiana clareza, tornando despicienda maior peroração, que o apelo a este Pretório se compadece do imperioso prequestionamento da matéria alojada na insurgência, tal entendido como expressamente abordada no Acórdão guerreado, sem o que estéril se mostrará a irresignação, inviabilizada ab ovo por carecer de pressuposto essencial ao desabrochar da operação cognitiva.

Em todas essas ocorrências, não há emprego de linguagem técnica, só há

juridiquês. Conseguir traduzir o juridiquês é uma arte de muito mau gosto. É melhor

desprezar construções que não trazem beleza, nem elegância para o texto, apenas

afastam as pessoas da compreensão de seus direitos. Apenas para perceber, é

possível fazermos uma “tradução” do que está posto nos parágrafos anteriores.

Assim, temos:

! 1º exemplo – V. Exª. Não abordou devidamente a doutrina e a jurisprudência

citadas na inicial, que caracterizam, claramente, o dano sofrido.

! 2º exemplo – Um recurso, para ser recebido pelos tribunais superiores, deve

abordar matéria explicitamente tocada pela instância inferior ao julgar a causa. Se

isto não ocorrer, será pura e simplesmente rejeitado, sem exame do mérito da

questão.

Parece ser absurdo isso – mas pode ter certeza de que não é!!!

Outro aspecto do juridiquês é o emprego de latinismos. Neste sentido, cabe uma

explicação. A língua portuguesa, conquanto tenha sua origem no latim, evoluiu

assim como ocorreu com as demais línguas neolatinas. Tal evolução não significa

que desprezamos nossas raízes, mas é não é possível utilizar, a todo momento,

expressões ou termos que possuem equivalentes em língua portuguesa e são mais

comunicativos.

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Ainda é muito comum vermos termos ou expressões em latim no Direito, isso ocorre

em virtude de alguns tentarem demonstrar que sabem latim. Aqui convém um

pequeno esclarecimento – praticamente a maioria dos que empregam

constantemente latinismos em seus textos não sabem latim de fato. Decoram

expressões ou brocardos e passam a utilizá-los indistintamente.

Apesar disso, é verdade também que a língua portuguesa já incorporou algumas

expressões latinas, inclusive há dicionários que trazem expressões acentuadas (algo

que não existe na língua latina), como exemplo, temos: habeas corpus – que é uma

ação judicial com o objetivo de proteger o direito de liberdade de locomoção lesado

ou ameaçado por ato abusivo de autoridade3 –; habeas data (que já traz acento

habeas no dicionário Houaisss) – é uma ação que assegura o livre acesso de

qualquer cidadão a informações a ele próprio relativas, constantes de registros,

fichários ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público4 –;

data venia – em língua portuguesa, corresponde a uma locução adverbial, que

remete a uma expressão respeitosa com a qual se inicia uma argumentação,

contrariando a opinião de outrem, uma possível tradução seria “com a devida

licença” ou “com o devido respeito”5.

Nota-se que, nesses casos, o emprego da expressão latina é mais sucinta e precisa

que o equivalente em língua portuguesa, em virtude disso tais expressões (assim

como outras – “per capita”, “vide”, “vade mecum”, “versus”, “corpus”, “supra”,

“status”, etc) têm sido incorporadas na língua portuguesa. Tal processo de

incorporação de palavras de outras línguas à nossa língua mãe é algo comum.

Apenas para exemplificar, basta lembrarmo-nos de algumas palavras, tais como:

show, abajur, entre outras.

Nossa crítica ao latinismo não se refere a este tipo de emprego de palavras ou de

expressões, mas tão somente se refere àquelas que têm um equivalente apropriado

em língua portuguesa e não é observado. Em geral, o uso descomedido do latim

visa denotar uma falsa cultura, que, em geral, funciona como elemento de

3 Definição trazida pelo Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. 4 Ibidem. 5 Ibidem.

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distanciamento entre o operador do Direito e o homem comum o qual, muitas vezes,

é uma pessoa culta, com curso superior, entre outros predicativos. Tais absurdos

podem ser vislumbrados nos exemplos seguintes:

Ad argumentandum tantum considerando que ao adentrarmos na res in juditio deducta, o contestante nada trouxe de espeque para inviabilizar [...]

Na construção acima, as expressões “ad argumentandum tantum” e “res in juditio

deducta” significam “apenas para argumentar” e “coisa ou questão trazida a juízo”.

São expressões que apenas complicam o processo de compreensão e não trazem

clareza ao texto, ao contrário somente dão a sensação de que quem lê não sabe

nada. Deste modo, uma possível tradução seria – Apenas para argumentar,

considerando que, ao adentrarmos na questão trazida a juízo, o contestante (ou réu)

não trouxe nada como apoio (arrimo, amparo) para inviabilizar [a ação ...].

Há um aspecto pior, a expressão “res in juditio deducta” não se encontra grafada

nos dicionários desta forma, mas como “res in iudicium deducta”. É muito provável

que o autor tenha copiado de algum lugar e foi reproduzindo sem observar a grafia

adequada. Ademais, o autor desconhece regras básicas do emprego da vírgula,

basta ver a “tradução”.

A falsa cultura disseminada por aqueles que utilizam o latim como forma de tornar o

texto mais claro e mais culto revela, geralmente, uma falta de conhecimento da

língua portuguesa, pois, com freqüência, erram o uso da vírgula e de outros sinais

de pontuação, empregam inadequadamente o gerúndio entre tantos outros erros

comuns.6 O descaso com a língua atinge todos os âmbitos gramaticais

(concordância, regência, ortografia, etc)7. Como se vê nos exemplos8 a seguir:

Brasileiro, casada de fato, garson, CTPS [...] (RT, n° 0420.2005.013.1700-2, grifo nosso) [...] intenta a presente reclamatória, afim de que seja a reclamada compelida [...] (RT, n° 01535.2004.005.17.0-9) [...] pois o que levou a empresa nessa situação foi concorrências acirradas supermercados [...]. (Contestação, n° 00736.2003.006.17.0-4, grifo nosso)

6 Para ter mais informações acerca de problemas em textos jurídicos, ver a pesquisa desenvolvida pelo advogado, especialista em Direitos Humanos, Daniel Roepke Viana, cujo título é “DIREITO E LINGUAGEM: OS ENTRAVES LINGÜÍSTICOS E SUA REPERCUSSÃO NO TEXTO JURÍDICO PROCESSUAL”. 7 Para se ter mais informações acerca desses problemas, verificar a monografia de Daniel Roepke Viana. 8 Os exemplos foram retirados da monografia de Daniel Roepke Viana.

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A empresa-ré, possui no Estado do Espírito Santo, 02 (duas) gerências INDIVIDUALIZADAS [...]. (Contestação, n° 0029.2002.005.17.00-8, grifo nosso)

Este cenário é paradoxal – a pessoa emprega a língua latina com tantos cuidados,

que não é a nossa língua oficial, nem mesmo é falado por comunidades lingüísticas

(trata-se, para muitos, de uma língua morta), no entanto é incapaz de empregar

corretamente, de acordo com a norma padrão, a língua portuguesa que é o

instrumento diário de interação do profissional da área jurídica no Brasil.

Parece que alguns profissionais do Direito se esquecem do que está posto no art.

156 do Código de Processo Civil – “Em todos os atos e termos do processo, é

obrigatório o uso do vernáculo”. Ora o vernáculo a que se refere o art. 156 é a língua

portuguesa de acordo com o padrão da norma culta.

2 O JURIDIQUÊS NA PRODUÇÃO TEXTUAL

Há que se acrescentar que juridiquês não é só o uso de arcaísmos, palavras

rebuscadas, neologismos, latinismos e o uso inadequado da língua portuguesa, mas

também contribui para a existência do juridiquês a produção textual truncada,

extensa.

Em nome do rigor e do formalismo jurídico, a produção textual jurídica passa muito

longe dos princípios básicos que regem a boa escrita. Aliás, os textos jurídicos

parecem não só ter parado no tempo, mas ter regredido, pois, além de os textos

serem extensos, são difíceis de serem compreendidos.

É comum ver textos permeados de citações, sem qualquer relação textual.

Esclarecendo melhor, os textos processuais trazem uma espécie de “colagem” de

diversas citações, não há, em geral, qualquer comentário acerca do que foi citado, o

texto trazido é como se fosse uma espécie de apêndice, pois a citação está ali para

“enfeitar” o texto.

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Este é um dos grandes problemas do texto jurídico – a falta de objetividade. Há um

equívoco disseminado no meio jurídico de que é preciso falar muito, citar muito para

se ter um bom texto. Isso transgride as normas de conduta de um bom texto,

primeiro porque não pelo muito falar que um texto será bom – a qualidade de um

texto está no desenvolvimento de habilidades textuais –; segundo porque o fato de

citar não garante cientificidade, nem qualidade textual.

Vivemos uma época em que tempo é algo precioso, portanto não adianta se produzir

textos extensos, redundantes, pois os mesmos não serão lidos nem mesmo pelos

magistrados. É época de se primar pela economia lingüística, de se primar pela

clareza, pela objetividade, pela concisão e porque não dizer pela cientificidade.

A grande questão é como conseguir esses atributos para um texto. Para conseguir

isso, é preciso que o profissional do Direito se esforce para melhorar sua produção

textual jurídica. É importante, então, que se desfaçam os conceitos preconcebidos, a

fim de se obter melhor qualidade do que será produzido.

O texto deve ter apenas o essencial, falar o que deve ser dito, argumentar com

coerência e precisão, averiguar o veículo adequado da comunicação e vislumbrar o

destinatário, sabendo que, muitas vezes, este nem sempre coincide com

interpretante real. O desafio está posto.

Assim, passemos a alguns aspectos que merecem destaque. Ao falarmos em

economia lingüística, falamos em objetividade, quanto a isso devemos seguir uma

máxima de Winston Churchil – “Das palavras, as mais simples: das mais simples, a

menor”. Isso significa que devemos primar sempre por palavras que trazem maior

clareza para o texto e, sempre que possível, pelas que são de menor tamanho. Tais

dicas são importantes, pois elas determinam a escolha do léxico a ser utilizado no

texto, que pode contribuir ou não para a compreensão textual. Infelizmente, o que

encontramos hoje no discurso jurídico são palavras empoladas que não trazem luz

ao que se está dizendo.

Outro aspecto importante no processo textual é a clareza, a objetividade e a

concisão. Tais elementos conduzem-nos a uma estruturação adequada do

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parágrafo. O que vemos ultimamente são parágrafos longos em que as idéias não

são claras e redundantes, isto é, muitas vezes, os profissionais do Direito não

conseguem ser claros em um parágrafo e acabam repetindo o mesmo assunto em

outros parágrafos. Isso, não raro, faz com que as pessoas se percam no

emaranhado de informações. Como se vê no fragmento a seguir, o qual retirado de

uma petição inicial.

[...] Cabe ressaltar, como cediço, que o trabalho dignifica o homem, de forma que a sociedade e o Estado não podem mais ficar assistindo inertes ao aumento assustador da legião de pessoas que estão sendo aleijadas, mutiladas e mortas por falta de proteção e segurança no trabalho, face costumeiramente à omissão das empresas em cumprirem com as normas de segurança e medicina do trabalho e a imprudência de prepostos mal eleitos para o exercício de certas funções. Como dito, a Autora depois de ocorrido o fato, tem dificuldade até mesmo para andar, o que somente consegue realizar com o auxílio de muletas, fato este que se soma as enormes dores físicas que vem sentindo desde então e que somente são amenizadas com os remédios que se vê obrigada a adquirir. Desta forma, mister se faz uma indenização à Autora como forma de reparação a dor íntima, tanto física como psicológica e, ao fato de conviver com limitações que outrora não possuía, fazendo-se assim mais do que justa a indenização também por danos morais. No caso em tela a culpa da ré é evidente, já que foi negligente em não cumprir com as normas de trânsito, medicina e segurança do trabalho e por empregar como motorista indivíduo que se mostrou imprudente ao imprimir ao ônibus velocidade incompatível com o local (culpa in eligendo), fazendo com que o corpo da Autora fosse arremessado de encontro a lataria interna do ônibus no qual eram transportados, tendo como conseqüência os citados danos a sua perna. Assim, o prejuízo moral sofrido pela Autora está amplamente comprovado, pois a sua paz, tranqüilidade de espírito, saúde física, honra e moral foram violentamente abaladas. Além disso, se deve ter em mente que a Autora é mulher, divorciada, possuindo atualmente apenas 37 (trinta e sete anos) de idade, tendo tais danos prejudicado sua estética, posto que como dito somente se locomove com o auxílio de muletas, trazendo assim danos à sua beleza exterior que outrora não possuía. Ao sofrer tais danos torna-se a Autora merecedora de uma reparação através de um valor compensatório e satisfatório para que possa abrandar a dor moral suportada, podendo estes, como sabido, se cumularem aos danos materiais acima descritos, de acordo com a súmula 37 do Superior Tribunal de Justiça que assim determina [...]

Além dos problemas de língua portuguesa (uso da vírgula, gerundismo,

concordância, etc.), há problemas sérios de coerência que, muitas vezes, é causado

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por causa da repetição de idéias ou mesmo do uso inadequado do pronome relativo,

como se tem em: “somente se locomove com o auxílio de muletas, trazendo assim

danos à sua beleza exterior que outrora não possuía”.

A repetição é tão notória que, em 7 parágrafos, há 4 expressões que remetem ao

que já foi mencionado. Na verdade, a falta de objetividade faz com que o produtor do

texto fale a mesma coisa até perder o rumo do texto, pois, em geral, começa a

empregar argumentos que não são muito plausíveis – a autora é mulher e possui 37

anos – o que isso significa exatamente? O autor não deixa claro.

Parece que, quando faltam argumentos e quando falta clareza acerca do que será

dito, o profissional do Direito passa a andar em círculos em seu próprio texto – na

verdade, quando falta argumentação, sobra “enrolação”.

Em oposição a esta cultura do juridiquês, falar, falar e não dizer nada, é importante

que exista uma atenção especial à produção dos parágrafos. Neste sentido,

apresentamos a seguir alguns princípios que devem ser observados, a saber:

" Todo parágrafo deve ter apenas uma idéia básica que deve ser expressa em

uma frase.

" A frase que contém a idéia básica (tópico frasal) deve ser grafada no início do

parágrafo (topicalização), pois, se alguém ler o texto superficialmente, lerá a

primeira frase de cada parágrafo. Neste caso, o autor do texto já cumprido

com seu objetivo (ao menos em parte) comunicacional.

" O parágrafo não deve ser longo – máximo entre 8 a 10 linhas. Não mais que

isso.

" Os parágrafos devem promover uma continuidade textual – quando o leitor

terminar de ler o texto, deve conseguir percorrer mentalmente os argumentos

elencados pelo autor.

" Os parágrafos devem ser encadeados adequadamente – empregar as

relações textuais necessárias para promover a progressão textual e, desta

forma, a continuidade do que se está tratando no texto.

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" Só pode haver o reforço da tese que perpassa o texto e não de um

argumento específico que pode cansar. Tal reforço é a retomada da idéia

central que está sendo defendida.

" Falar apenas o necessário – nada mais.

" Evite o excesso de predicativos.

" Evite as generalizações, mas não se prenda excessivamente aos detalhes de

forma que o leitor possa perder o foco do que está sendo dito.

" Observe as normas gramaticais – isso pode depor contra a pessoa.

" Nunca utilize o juridiquês!!!

Verificados esses aspectos, cabe ressaltar apenas mais um – a cientificidade. O uso

indiscriminado de citações só produz textos longos que nunca são lidos por

ninguém, nem mesmo por quem produz, visto que, invariavelmente, a pessoa “copia

e cola” o texto citado de algum lugar. O emprego de citações deve ser

extremamente comedido, USE APENAS O ESSENCIAL para fundamentar a tese.

Além disso, deve ser referenciado adequadamente, quando se tratar de texto

processual ou de texto que não tenha referência bibliográfica, em nota de rodapé.

Se se tratar de outros tipos de texto jurídico em que é possível haver, no final,

referências, é facultativo o tipo de chamada, isto é, a chamada da citação pode ser

autor-data (FULANO DE TAL, ano, p.11) ou pode ser numérica (nota de rodapé).

Isso é importante para denotar que houve uma preocupação científica por parte de

quem produziu o texto.

Há ainda que se informar que não é só pôr a citação, fazer referência, é preciso

muito mais. É preciso que tal citação seja fundamental e que ela seja explorada por

quem está argumentando, deste modo reforça a tese à luz de outros textos que

conferem credibilidade que se está defendendo.

Tais dicas não são regras infalíveis para abolir o juridiquês, mas são um bom

caminho para que tenhamos um texto mais limpo, claro, conciso e coerente.

Por fim, usar a linguagem técnica não é nem pode ser pressuposto para o emprego

do juridiquês. É possível usar a linguagem técnica jurídica e ser claro e objetivo.

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Basta que se prime por empregar uma linguagem culta, num texto com parágrafos

concisos e bem estruturados, nos quais a idéia básica esteja evidente. Além disso,

sempre que for necessário, o autor do texto pode recorrer ao aposto (expressões ou

frases explicativas) para explicar acerca do trata determinado termo ou expressão.

Na verdade, o emprego do juridiquês é uma forma de afastar o cidadão da

comunicação de seus direitos e de seus deveres, este recurso visa tornar o

processo mais moroso e, em conseqüência, a justiça mais lenta. Decididamente,

empregar juridiquês é estar na contra mão da história e é ir de encontro com a

evolução real e natural da língua. Por isso, ABAIXO O JURIDIQUÊS e VIVA A

LINGUAGEM JURÍDICA, clara, correta e concisa!

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Direito & Justiçav. 41, n. 2, p. 195-204, jul.-dez. 2015

: http://dx.doi.org/10.15448/1984-7718.2015.2.21432

http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fadir/

A medida acautelatória de indisponibilidade de bens particulares dos sócios, administradores e conselheiros

na sociedade anônima aberta

The precautionary measure for the unavailability of the assets of the controlling shareholders, directors and advisers of the Publicly-Held Company

Jorge Luiz Lopes do Cantoa

RESUMO

O presente estudo visa perscrutar os pressupostos processuais para concessão da cautela preparatória de indisponibilidade de bens particulares dos sócios controladores, administradores e dos conselheiros de sociedade anônima aberta, bem como os efeitos jurídicos daí decorrentes, à luz da doutrina e jurisprudência.Palavras-chave: Cautelar Preparatória. Indisponibilidade de bens. Sociedade Anônima. Capital Aberto. Sócios. Controlador. Administrador. Conselheiro.

ABSTRACT

This research aims to examine the procedural prerequisites for granting the preparatory precautionary measure of the unavailability of the assets of the controlling shareholders, directors and advisers of the Publicly-Held Company, as well as the legal consequences arising therefrom, within the doctrine and jurisprudence spectrum.Keywords: Preparatory Precautionary Measure. Unavailability of Assets. Joint-Stock Company. Publicly-Held Company. Shareholders. Controlling Shareholder. Director. Advisers.

a Desembargador do TJRS. E-mail: <[email protected]>.

INTRODUÇÃO

O presente estudo se trata de breve escorço sobre a repercussão jurídica da indisponibilidade de bens no patrimônio particular daquelas pessoas que detêm, em algum grau, a responsabilidade de gerir, bem administrar e fiscalizar uma sociedade anônima de capital aberto.

A sociedade anônima de capital aberto é um ícone do sistema capitalista, no sentido que se trata da personificação de direitos, interesses jurídicos e patrimônio autônomo distinto da personalidade daqueles que, individualmente, tem poder decisório de administrar a mesma, em prol da concretização de seu objeto estatutário.

A medida processual preparatória visa garantir a solvabilidade de determinadas pessoas que atuam

na sociedade anônima de capital aberto, a fim de possibilitar eventual responsabilidade pessoal destas. Por sua vez, a responsabilização pessoal desses atores da companhia aberta tem por finalidade assegurar aos demais sócios e a terceiros a obtenção de eventual ressarcimento decorrente da má fé e culpa lato sensu (dolo e culpa).

O estudo precitado começou a ser desenvolvido nos idos de 1996, quando da discussão e elaboração da atual lei de falência e recuperação de empresas, passando a existir regulação específica a esse respeito por ocasião da edição deste diploma (art. 83, § 2º, da Lei nº 11.101/2005). Entretanto, o primeiro texto legal que regulamenta de forma expressa esta possibilidade jurídica no país é o fiscal, mediante o art. 4º, § 1º, da Lei nº 8.397/92, de acordo com a redação dada pela Lei nº 9.532/97.

Exceto onde especificado diferentemente, a matéria publicada neste periódico é licenciada sob forma de uma licença Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional.http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/

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196 Canto, J. L. L.

Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 41, n. 2, p. 195-204, jul.-dez. 2015

Cabe mencionar que na década de 90 já havia decisões na seara falimentar a esse respeito, com base no poder geral de cautela do juiz da falência (art. 14, VI, da Lei nº 7.661/45, atual 99, inc. VII, da Lei nº 11.101/2005).

O primeiro ponto a ser abordado no presente trabalho diz respeito à sociedade anônima de capital aberto, esta, em apertada síntese, é aquela que admite a captação de recursos mediante negociação de ações no mercado mobiliário, ou seja, bolsa de valores ou mercado de balcão.

Sob esse viés é que há o interesse jurídico de proteger acionistas e terceiros, no caso, aplicadores no mercado de ações, como os debenturistas, quanto à malversação dos recursos de companhia aberta, resultante do controle exercido, da má administração ou da conivência com esta.

Por fim, o último tópico a ser tratado no presente trabalho é quanto às questões de ordem processual, que exsurgem da cautela de indisponibilidade de bens, no que tange aos seus efeitos em função de sua natureza jurídica e requisitos necessários para concessão da mesma, além do prazo razoável pela qual esta pode vigorar.

Desta forma, a complexidade deste tema, diante da interpolação de questões de direito material e processual, privado e público, bem como garantias de ordem constitucional, assim como, a prevalência entre interesses distintos, no caso o particular e o coletivo, é que torna fascinante este estudo, diante dos mais diversos matizes jurídicos a serem exami- nados.

1 SOCIEDADE ANÔNIMA DE CAPITAL ABERTO

A companhia aberta é a que melhor personifica o sistema capitalista, pois se trata de sociedade de capital, cuja formação gira em torno da obtenção de recursos no mercado para constituição desta, a fim de alcançar a justa remuneração do investimento feito mediante a realização do objeto social, sendo mais evidente aqui o intuito de obter o lucro almejado, sob o ponto de vista econômico.

O insigne jurista Modesto Carvalhosa1, a meu ver, é quem melhor define este tipo de sociedade, ao lecionar que:

Quando, por outro lado, a companhia procura recursos de capital próprio (ações) ou de terceiros (debêntures) junto ao público, oferecendo a qualquer pessoa desconhecida ações e debêntures de sua emissão, temos uma companhia aberta.

Neste caso, em face da dispersão dos tomadores de valores mobiliários emitidos pela companhia, que se presume incapazes de formar uma comunidade apta a defender eficazmente seus interesses perante aquela, seus controladores e administradores, a lei estabelece um regime especial de tutela do Poder Público em favor dessa coletividade de acionistas, debenturistas e demais portadores de títulos acionários.

Se a sociedade logra ou não colocar seus títulos em consequência da oferta, pouco importa. Basta que haja a oferta junto ao público investidor para que, sobre a sociedade, incida o regime especial de tutela estatal previsto em lei.

Não obstante isso, resta indubitável no art. 4º da Lei das Sociedades Anônimas que há intervenção do Estado na regulação deste mercado, diante da previsão de que a empresa deve registrar-se na Comissão de Valores Mobiliários para negociar suas ações na Bolsa de Valores. Destaque-se que o prévio registro mostra-se essencial quando a sociedade anônima de capital aberto é de economia mista, uma vez que o prevalente interesse público se faz presente.

Em qualquer destas hipóteses há que se levar em conta o interesse do particular, na condição de investidor, e o interesse público, no sentido de preservar a coletividade que atua na economia para consecução de um fim determinado, ao mesmo tempo que busca o desenvolvimento desta e o avanço econômico-social daí decorrente.

Desse modo, imprescindível voltar a atenção para este tipo de sociedade de capital, sem olvidar-se daqueles que a controlam, gerem ou administram, bem como as pessoas que atuam em seus conselhos de administração ou fiscal, as quais podem ser consideradas, no mínimo, coniventes com a má administração deste tipo de sociedade em prejuízo da coletividade.

1.1 Os sócios, administradores e conselheiros

da companhia aberta

A responsabilidade dos sócios, administradores e conselheiros na sociedade anônima aberta não decorre de causa indistinta ou de razão jurídica que não esteja subsumida na forma de participação nesta, pelo contrário, estão sujeitos à indisponibilidade de bens apenas aqueles atores que atuarem na gestão ou administração da referida companhia, ou ainda, que forem coniventes com os atos praticados por estes, como na hipótese dos conselheiros fiscais.

Igualmente, há que se sopesar a prática de conduta ilícita e o nexo causal entre esta e o dano ocasionado, para que surja o dever de reparação, aqui independe

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A medida acautelatória de indisponibilidade de bens particulares ... 197

Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 41, n. 2, p. 195-204, jul.-dez. 2015

se é adotada a teoria da responsabilidade subjetiva ou objetiva, pois, sob o ponto de vista que se analisar, há necessidade de averiguar se houve a prática de ilicitude, de má-gestão ou de atos contrários ao estatuto social.

Portanto, a medida acautelatória de indisponi- bilidade de bens particulares do sócio, administrador ou mesmo conselheiro decorre do exame prévio da responsabilidade destes pela prática dos atos precitados, que importem em prejuízo da companhia aberta considerada, dos sócios desta, ou de terceiro que investiu ou negociou com aquela.

a) Extensão de cautela inerente à patrimônio

distinto daquele pertencente à sociedade

anônima de capital aberto

A extensão dessa cautela preparatória de indis- ponibilidade de bens visa garantir a solvabilidade de sócio controlador, gestor, administrador ou de conselheiro da referida sociedade, que tenha o dever de responder pelos atos praticados e ressarcir os prejuízos causados, enquanto presentante ou representante daquela, em função de ter se beneficiado economicamente dos mesmos, direta ou indireta- mente.

A responsabilização do patrimônio pessoal dos sócios controladores, administradores, gestores ou conselheiros de uma sociedade anônima aberta é exceção, pois se trata aqui de patrimônios distintos e autônomos, cada qual respondendo, como regra, pelas obrigações que assumem em suas relações jurídicas. Assim, a responsabilidade pessoal em questão recai sobre o patrimônio pertencente à determinada pessoa, seja ela natural ou jurídica, que pratique os atos ou negócios jurídicos que causem lesão à sociedade, aos sócios ou a terceiro, cujo nexo causal deve estar perfeitamente delineado.

Desse modo, é possível a ampliação da medida processual de indisponibilidade dos bens ao patrimônio de pessoa diversa da sociedade anônima em questão, de sorte a bloquear este e permitir, durante lapso de tempo certo, o exame dos atos e negócios jurídicos que teriam ocasionado danos à companhia em questão ou a terceiros, que mantiveram relação jurídica com esta, a fim de permitir a justa reparação dos prejuízos causados.

b) As pessoas passíveis de atingimento pela

cautela de indisponibilidade de bens

– Sujeito Passivo

Ressalte-se que as pessoas que se sujeitam a este tipo de cautela preparatória são exclusivamente os sócios, administradores, gestores e conselheiros que detêm poder de gestão, administração e fiscalização

sobre os atos e negócios jurídicos da sociedade anônima aberta.

A partir de tal premissa, conclui-se que não se sujeita ao bloqueio de seu patrimônio o mero sócio capitalista que não disponha dos poderes precitados, estando restrita a sua participação ao capital investido e a perceber os frutos civis daí decorrentes.

Igualmente, também não se submete a este tipo de medida o conselheiro que não participa relações jurídicas precitadas, ou cuja aprovação destas esteja em consonância com a ordem jurídica vigente, inexistindo omissão que caracterize culpa e possa importar em responsabilidade civil.

Estabelecidos estes parâmetros, resta claro que o denominado sócio controlador, assim como seus presentantes ou representantes, estão sujeitos à cautela de indisponibilidade de seus bens particulares, sendo necessário para tanto investigar se houve locupletamento ilícito em virtude de seu poder de mando na realização de determinado ato ou negócio jurídico, o qual resulte em prejuízo da sociedade controlada, da coletividade que participa (acionista, etc.) ou mantém relação negocial com aquela.

O culto doutrinador Comparato2 traça com precisão o perfil de quem é o controlador numa sociedade anônima, como se vê a seguir:

Na economia da nova sociedade anônima o controlador se afirma como seu mais recente órgão, ou se preferir a explicação funcional do mecanismo societário, como o titular de um novo cargo social. Cargo, em sua mais vasta acepção jurídica, designa um centro de competência, envolvendo uma ou mais funções. O reconhecimento de um cargo, em qualquer tipo de organização, faz-se pela definição de funções próprias e necessárias. Ora, tais funções existem vinculadas à pessoa do controlador. No vigente direito acionário brasileiro, elas podem resumir-se no poder de orientar e dirigir, em última instância, as atividades sociais; ou como se diz no art. 116, alínea “b” da Lei nº 6.404, no poder de “dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos demais órgãos da companhia” (com o reconhecimento implícito de que o acionista controlador é um dos órgãos da companhia). Trata-se de um feixe de funções indispensáveis ao funcionamento de qualquer entidade coletiva – como assinalamos anteriormente – e especialmente da sociedade anônima. Poderia, sem dúvida, o legislador manter essas prerrogativas diluídas no corpo acionário, tal como ocorria no passado. Preferiu, no entanto, desde a Lei n. 6.404, localizá-las no “titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, a maioria dos votos nas deliberações da assembleia geral e o poder de eleger a maioria dos administradores da companhia”.

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Igualmente, os sócios administradores ou gestores da companhia aberta, assim como aqueles designados para administrá-la ou geri-la, se sujeitam à medida acautelatória em questão, a fim de aferir a prática de ato ou negócio lesivo aos interesses da mesma, quer em razão da ilicitude da conduta adotada, quer em função de ser o ato praticado contrário à lei ou aos estatutos daquela. Em qualquer destas hipóteses responderiam os sócios controladores, administradores ou gestores da companhia aberta com o patrimônio particular.

Note-se que a responsabilidade aqui é solidária e ilimitada, conforme conclusão do enunciado nº 59 do CEJ – CJF, devendo os sócios controladores, admi- nistradores ou gestores reparar a integralidade do prejuízo ocasionado à referida sociedade, aos sócios desta e a terceiros, em função dos atos ou negócios jurídicos realizados da forma preconizada anteriormente.

Há que se distinguir aqui duas espécies de con- selheiros: a) os que integram o denominado conselho de administração; e b) os que compõem o conselho fiscal da companhia aberta.

Na primeira hipótese os conselheiros respondem também pelo excesso, tanto de poder, como por ultrapassar o objeto social, além das circunstâncias elencadas anteriormente.

Já no que diz respeito ao conselheiro fiscal o patri- mônio particular deste estará sujeito a eventual medida de indisponibilidade, caso tenha se omitido, ainda que por culpa strictu sensu (negligência, imprudência e impe-rícia), de se manifestar específica e circunstanciadamen- te sobre a ocorrência de algum dos atos ou negócios jurídicos passíveis de gerar a responsabilização dos administradores ou gestores da sociedade em tela, sendo ou não, neste caso, detentores da condição de sócio.

Aqui há que se ter em mente a denominada omissão prejudicial, que sonega o direito de informação dos demais acionistas ou investidores a dado sigiloso ou reservado que seria decisivo para prática de determinado ato ou negócio, ou que causaria dano à companhia em função de retirar desta determinada oportunidade de negócio que lhe seria vantajosa.

Conclui-se que a medida cautelar em análise inerente às pessoas anteriormente elencadas decorre do direito subjetivo de reparação dos danos que deram causa, em decorrência da própria Lei especial das Sociedades Anônimas (art. 158) ou das regras gerais dispostas no estatuto civil.

1.2 Efeitos sobre os bens particulares daqueles

que atuam na gestão, administração e

fiscalizaçãodasociedadeanônimaabertaÉ oportuno destacar que para surtirem efeitos

sobre os bens particulares dos sócios controladores,

administradores e conselheiros, como analisado anteriormente, a eficácia pretendida e a medida preparatória em questão decorrem de justa causa e estão, necessariamente, vinculadas a ato ou a negócio jurídico certo, bem como possuem caráter excepcional, pois o bom direito alegado na cautela proposta deve estabelecer o nexo causal entre aquela e o resultado descrito, isto é, o prejuízo econômico determinado ou determinável.

Ainda, é preciso delimitar qual o patrimônio será atingido, que parcela deste é economicamente útil para reparar o prejuízo ocasionado e o lapso temporal que os bens submetidos a esta medida de indisponibilidade deverá ser considerado para tanto, ou seja, o prazo no qual ficarão adstritos à averiguação da responsabilidade dos sócios controladores, administradores e conse- lheiros.

a) Impossibilidade temporária de transmissão

dos bens pertencentes ao sócio controlador,

administradores e conselheiros da companhia

O primeiro ponto a ser abordado neste tópico diz respeito à duração dos efeitos da medida acautelatória sobre os bens particulares das pessoas antes referidas. À toda evidência, este interregno de tempo não é indefinido, ao contrário, está sujeito a termo final.

A questão a ser definida é qual é este prazo? A resposta a esse questionamento parece óbvia. A medida cautelar preparatória em questão deve perdurar até ser solvida a ação principal indicada nesta, que visa apurar a responsabilidade dos sócios, dos administradores ou dos conselheiros.

A razão da referida limitação temporal decorre do fato de que na hipótese de ser comprovada a responsabilidade de reparar o prejuízo causado por parte do sócio controlador, administrador ou conselheiro, estar-se-ia diante do fumus boni juris alegado na cautelar de indisponibilidade de bens daqueles, bem como do periculum in mora de não ser adotada esta medida de urgência, pois haveria o risco deles se desfazerem de seu patrimônio e se reduzirem a insolvabilidade.

Contudo, encerrado o prazo para apurar a referida responsabilidade, desaparece a possibilidade jurídica de obter o ressarcimento do prejuízo causado, quer em função da prescrição ou da decadência, quer resultando da inexistência do dever de reparar o dano ocasionado por parte daqueles, conclusão que se deduz, em função da improcedência da ação principal ajuizada, que tinha por escopo alcançar a responsabilização das pessoas supracitadas sujeitas à medida acautelatória em tela.

Assim, a referida medida cautelar vigora por prazo certo, ou seja, até a apuração da responsabilidade

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daqueles que respondem com o patrimônio particular pelo prejuízo ocasionado à sociedade anônima de capital aberto, aos sócios destas e mesmo a ter- ceiros, que mantêm relação jurídica com a referida companhia.

b) Direito de uso, gozo e fruição dos

proprietários na vigência da medida

cautelar de indisponibilidade

É de se destacar que a indisponibilidade de bens alcança apenas uma das faculdades do domínio e, ainda, de forma parcial, pois o proprietário do bem atingido pela medida em questão tem restringido o seu direito de transmitir para outrem o domínio sobre a coisa, corpórea ou incorpórea (bens ou direitos), sujeita a cautela analisada.

Desse modo, é atingido parte do direito de dis- posição, permanecendo o proprietário, sujeito a esta medida cautelar, com a posse da coisa, uso, gozo, fruição e o direito reipersecutório atinente ao bem indisponível, podendo adotar todas as medidas necessárias à conservação do mesmo, bem como perceber os frutos relativos a este, o que cessará mediante a excussão da coisa (corpórea ou incorpórea) através de ação própria.

Portanto, trata-se a indisponibilidade de bens de medida cautelar temporária de restrição de uma das faculdades do domínio, no caso, o direito de dispor livremente daquele patrimônio, até que seja apurada a responsabilidade dos atores precitados pelos prejuízos que deram causa.

2 A CAUTELA DE INDISPONIBILIDADE DE BENS

A cautela de indisponibilidade de bens é pre- paratória, ou seja, trata-se de medida acessória, desprovida de caráter satisfativo, não prescindindo da indicação da demanda principal a ser dirimida, bem como se destina a garantir a solvabilidade do sócio controlador, administrador, gestor ou conselheiro de sociedade anônima de capital aberto, a fim de que seja apurada a responsabilidade daqueles pelos prejuízos que deram causa à sociedade, aos demais sócios desta ou a terceiros.

A incidência daquela medida ocorre sobre a faculdade de disposição do domínio de determinada coisa, de acordo com o esclarecido anteriormente, bem como vigora temporariamente até ser sol- vida a ação principal que visa à indenização dos prejuízos causados pelas pessoas supracitadas, as quais respondem com o seu patrimônio parti- cular.

2.1 A tutela de indisponibilidade de bens

do sócio controlador, administradores e

conselheirosdasociedadeanônimaaberta

O bom direito alegado decorre da possibilidade jurídica de existir o dever de reparar ou de pagar dívida exequível por parte do sócio controlador, administrador e conselheiro pela prática de conduta ilícita, consubstanciada em abuso de poder, ato ou negócio contrário à ordem jurídica ou aos estatutos da empresa.

Ao passo que o perigo da demora na prestação jurisdicional está adstrito ao risco de insolvabilidade do proprietário dos bens precitados, o que inviabilizaria eventual excussão destes para satisfazer o débito decorrente da ação principal declinada na mesma.

É de se elucidar que tal cautela também pode ser incidental, o que seria possível em dois tipos de execução: a) a coletiva falimentar; e b) a fiscal. A primeira, ocorrerá na falência como medida preparatória para apurar a responsabilidade do sócio controlador ou administrador pela quebra, isto é, se esta decorreu da malversação do patrimônio da empresa. Já a segunda, dar-se-á no executivo fiscal com o fim de garantir o proveito econômico pretendido, coibindo o dolo, a fraude ou a má fé daquele tipo de ator da sociedade anônima de capital aberto.

Note-se que a tutela cautelar em questão destina-se a efetividade da prestação jurisdicional, na medida em que objetiva manter incólume o patrimônio do devedor, a fim de que os credores exerçam o seu direito de reparação mediante a liquidação judicial deste.

a) Hipóteses de incidência e solução

jurisprudencial

O direito pátrio estabelece expressamente a indisponibilidade de bens, tanto no art. 4º, § 1º, da Lei n. 8.397/92, como no art. 83, § 2º, da Lei n. 11.101/2005, regulando as condições para obtenção da referida cautela acessória.

Inicialmente, passa-se a abordar a matéria que diz respeito a indisponibilidade de bens decorrente de medida cautelar que precede o executivo fiscal, cuja aparência de bom direito – fumus boni juris – está consubstanciada na existência de obrigação líquida e exigível, bem como na possibilidade jurídica de existir a prática de determinada conduta ilícita por parte do sócio controlador, administrador ou conselheiro que implique no dever de reparação a pessoa certa, física ou jurídica.

O segundo requisito a ser examinado para concessão da referida cautela preventiva é o risco de dano grave ou de difícil reparação – periculum in mora –. Aqui há

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que se ater à possibilidade daquelas pessoas, em face das quais se busca a reparação, estarem em situação de déficit econômico. Note-se que neste caso deve se atentar a duas circunstâncias fáticas específicas: a primeira, a identificação do prejuízo no que concerne a sua extensão; a segunda, a proporção suficiente do patrimônio particular do sócio controlador, do administrador e conselheiro da companhia aberta que seja útil à reparação pretendida.

A proporcionalidade aqui é essencial, pois se de um lado o bloqueio autorizado não pode impedir o prosseguimento da atividade mercantil de determinada sociedade, de outro, quando incidir sobre coisa atinente ao patrimônio de pessoa natural, não deve reduzir esta ao estado de miserabilidade, atentando a dignidade da pessoa humana, ou a impeça de prosseguir em suas atividades profissionais habituais.

A esse respeito é oportuno trazer à baila as lições do jurista Humberto Theodoro Jr.3 que seguem:

É fácil verificar, portanto, que a proibição de dispor, regulada pela Lei 8.937/92, não é automática, nem muito menos pode ser imposta discricionariamente pelo juiz. Tal como fez o Có- digo de Processo Civil (LGL/1973/5), em relação ao arresto, a lei especial também sujeitou a medida cautelar fiscal a requisitos que obrigatoriamente devem ser demonstrados pela parte promovente e que, dentro da técnica geral, da tutela cautelar, correspondem ao fumus boni iuris e ao periculum

in mora: o primeiro localiza-se na comprovação de existência de obrigação líquida e certa, documentalmente revelada (caput do art. 2º) e o segundo situa-se na conduta do devedor ina- dimplente que põe em risco a exeqüibilidade do crédito fazendário, diante do fundado receio de que irá fazer desaparecer os bens que, a seu tempo, deverão suportar a penhora no processo de execução fiscal (incs. I a V do art. 2º).

É sempre bom lembrar a insuperável lição de Calamandrei de que todos provimentos jurisdicionais existem como “instrumento do direito material, que por intermédio deles atua”. Nos provimentos cautelares, porém, “verifica-se uma instrumentalidade qualificada, ou seja, elevada, por assim dizer, ao quadrado: eles são, de fato, inquestionavelmente, um meio predisposto para a melhor eficácia do provimento definitivo, que a sua vez é um meio para a atuação do direito; isto é, são eles, em relação à finalidade última da função jurisdicional, instrumento do instrumento”. Vale dizer: os provimentos cautelares nunca são um fim em si mesmos, e surgem sempre “da existência de um perigo de dano jurídico, derivado do atraso de um provimento jurisdicional definitivo (periculum

in mora)” (apud Clayton Maranhão, in Rev. Direito

Processual – Genesis, Curitiba, 1996, v. I, p. 134).

Nesse diapasão é entendimento jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça4, cujo precedente delimita o uso da referida cautela preventiva, que colaciono a seguir:

PROCESSUAL TRIBUTÁRIO. MEDIDA CAU- TELAR FISCAL. INDISPONIBILIDADE DOS BENS DOS SÓCIOS INTEGRANTES DO CON- SELHO DE ADMINISTRAÇÃO. LEI 8.397/92. RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA. AUSÊN- CIA DE COMPROVAÇÃO DE EXCESSO DE MANDATO, INFRAÇÃO À LEI OU AO REGU- LAMENTO.

1. É assente na Corte que o redirecionamento da execução fiscal, e seus consectários legais, para o sócio-gerente da empresa, somente é cabível quando reste demonstrado que este agiu com excesso de poderes, infração à lei ou contra o estatuto, ou na hipótese de dissolução irregular da empresa (Precedentes: REsp nº 513.912/MG, Rel. Min. Peçanha Martins, DJ de 01/08/2005; REsp nº 704.502/RS, Rel. Min. José Delgado, DJ de 02/05/2005; EREsp nº 422.732/RS, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJ de 09/05/2005; e AgRg nos EREsp nº 471.107/MG, deste relator, DJ de 25/10/2004).

2. Os requisitos necessários para a imputação da responsabilidade patrimonial secundária na ação principal de execução são também exigidos na ação cautelar fiscal, posto acessória por natureza.

3. Medida cautelar fiscal que decretou a indisponibilidade de bens dos sócios integrantes do Conselho de Administração da empresa devedora, com base no artigo 4º, da Lei 8.397/92.

4. Deveras, a aludida regra deve ser interpretada cum grano salis, em virtude da remansosa jurisprudência do STJ acerca da responsabilidade tributária dos sócios.

5. Consectariamente, a indisponibilidade patri- monial, efeito imediato da decretação da medida cautelar fiscal, somente pode ser estendida aos bens do acionista controlador e aos dos que em razão do contrato social ou estatuto tenham poderes para fazer a empresa cumprir suas obrigações fiscais, desde que demonstrado que as obrigações tributárias resultaram de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos (responsabilidade pessoal), nos termos do artigo 135, do CTN. No caso de liquidação de sociedade de pessoas, os sócios são “solidariamente” responsáveis (artigo 134, do CTN) nos atos em que intervieram ou pelas omissões que lhes forem atribuídas.

6. Precedente da Corte no sentido de que: “(...) Não deve prevalecer, portanto, o disposto no artigo 4º, § 2º, da Lei 8.397/92, ao estabelecer que, na concessão de medida cautelar fiscal, ‘a

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indisponibilidade patrimonial poderá ser estendida em relação aos bens adquiridos a qualquer título do requerido ou daqueles que estejam ou tenham estado na função de administrador’.

Em se tratando de responsabilidade subjetiva, é mister que lhe seja imputada a autoria do ato ilegal, o que se mostra inviável quando o sócio sequer era administrador da sociedade à época da ocorrência do fato gerador do débito tributário pendente de pagamento. (...)” (REsp 197278/AL, Relator Ministro Franciulli Netto, Segunda Turma, DJ de 24.06.2002)

7. In casu, verifica-se que a decretação da indisponibilidade dos bens dos sócios baseou-se, tão-somente, no fato de integrarem o Conselho de Administração da Olvepar S.A. – Indústria e Comércio, “com competência para fiscalizar a gestão dos diretores, através de exame de livros e documentos da sociedade, bem como, para solicitar informações sobre contratos celebrados, incluin- do-se o presente Contrato de Benefício Fiscal concedido à referida empresa por intermédio do PRODEI (Programa de Desenvolvimento Industrial do Estado)”, o que configura ofensa ao artigo 135, do CTN.

8. Ressalva do ponto de vista no sentido de que a ciência por parte do sócio-gerente do inadimplemento dos tributos e contribuições, mercê do recolhimento de lucros e pro labore, caracteriza, inequivocamente, ato ilícito, porquanto há conhecimento da lesão ao erário público.

9. Recursos especiais providos. (REsp 722.998/ MT, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 11/04/2006, DJ 28/04/2006, p. 272)

Por fim, há que se examinar a cautela preventiva de indisponibilidade de bens particulares dos sócios controladores, administradores e conselheiros da companhia aberta na execução coletiva falimentar, cuja aparência de bom direito – fumus boni juris – decorre do exame de eventual abuso de direito ou da infração à lei ou ao estatuto social por parte daqueles, que implique no dever de indenizar o prejuízo ocasionado.

O segundo pressuposto a ser examinado para o deferimento da cautela preparatória em questão é o risco de dano grave ou de difícil reparação – periculum

in mora –, aqui há que se ater à possibilidade daquelas pessoas, em face das quais se busca a reparação, serem reduzidos à insolvabilidade (carência econômica), em virtude de se desfazerem de seu patrimônio por estarem no exercício do jus abutendi.

No que diz respeito a essa matéria merece trans- crição os ensinamento do jurista Abrão5 a seguir:

Na medida em que a indisponibilidade patri-monial dos sócios ou antigos administradores

resultar na efetividade do provimento, é salutar que se fundamente a determinação, a fim de que na condenação haja meio necessário ao pagamento do prejuízo imposto.

Singularmente, andou bem o legislador ao estabelecer o primado da compatibilidade entre a reserva e o valor exigido na demanda proposta contra os responsáveis. Assim, supõe-se um lineamento que possa respaldar o efeito de se alcançar um nexo causal entre ambos.

Perdurará a indisponibilidade até o sentencia- mento do feito; porém, sendo acolhida a pretensão, evidente que a medida se manterá incólume, e na hipótese diversa quando for julgada improcedente, isso não exige necessariamente sua desconsideração, até em virtude da sujeição recursal no duplo efeito.

Realça-se o color da indenização como pressuposto da ação, daí por que a indisponibilidade visa prestigiar a regra da existência de bens que possam ser constritados no tempo adequado e que se mostrem compatíveis com os danos exigidos na lide.

O caráter acautelatório da media se reveste de substancial relevância por vários motivos: permite congelamento e subsunção do patrimônio, da informes suficientes à ação de responsabilização e, por derradeiro, evita eventuais fraudes com a transferência antes da propositura, facilitando assim o ingresso de valores na massa falida.

De igual modo, trago a esse estudo jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, cujo voto condutor foi de minha lavra6, conforme se vê abaixo:

APELAÇÃO CÍVEL. FALÊNCIA. MEDIDA CAUTELAR DE SEQUESTRO. AÇÃO DE RES- PONSABILIZAÇÃO DOS SÓCIOS DA FALIDA. RESTRIÇÃO JUDICIAL DE INDISPONIBILI- DADE DOS BENS. POSSIBILIDADE JURÍDICA.

Da preliminar de nulidade da sentença

1. Não há que se falar em nulidade da sen- tença por desrespeito ao devido processo legal em função de que supostamente não teriam sido analisadas as provas dos autos, ou em função de ausência de fundamentação, quando atendido o ordenamento jurídico vigente, que adotou o princípio do livre convencimento motivado ou persuasão racional do Juiz.

2. Assim, todas as decisões judiciais devem ser assentadas em razões jurídicas, cuja invalidade decorre da falta destas, consoante estabelecem os artigos 93, inc.IX da Constituição Federal e 458 do Código de Processo Civil, o que inocor- reu no presente feito, logo, rejeita-se a prefacial suscitada.

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Mérito do recurso

3. Denota-se dos autos que em abril de 2002 o Síndico da Massa Falida apelada ajuizou ação de responsabilidade contra os sócios da falida, em virtude dos desmandos apurados em relatório do Banco Central do Brasil, em perícia criminal e em processo crime, para tornar juridicamente possível a responsabilização pessoal e solidária destes pelas dívidas da sociedade.

4. Na presente ação cautelar de seqüestro foi determinada, liminarmente, a restrição judicial de indisponibilidade sobre os bens dos sócios da falida, a qual foi definitivamente confirmada na sentença de primeiro grau.

5. O Juiz pode determinar a restrição judicial de indisponibilidade sobre o bem imóvel da embargante com base no artigo 14, VI, do Decreto-Lei 7.661/45, aplicável ao caso em tela, a teor do que estabelece o art. 192 da Lei 11.101/2005.

6. Ressalte-se que a providência adotada encontra amparo atualmente no artigo 99, inciso VII, da novel Lei de Falências e Recuperação de Empresas, visto que se trata do poder geral de cautela, a fim de garantir a isonomia de tratamento entre os credores.

7. O Síndico tem o direito, em tese, de propugnar pela declaração de ineficácia dos atos praticados pelo falido que resultem na alienação de bens em flagrante prejuízo à massa, bem como, pleitear responsabilização direta dos sócios por eventual ilícito praticado por estes, cuja reparação repercuta em proveito da massa subjetiva.

Negado provimento ao apelo.

b) Efeitos patrimoniais e vigência temporal

O principal efeito sobre o patrimônio particular do sócio controlador, administrador ou conselheiro da companhia aberta é no que tange à faculdade de dispor do proprietário de determinada coisa afeta aquele, ainda que de forma parcial, isto é, restrita a transmissão do domínio ou a cessão dos direitos deste, a qual fica bloqueada provisória e temporariamente.

O efeito acessório patrimonial daí decorrente é a possibilidade jurídica de que, caso seja transferido o domínio de determinado bem, ou cedido os direitos sobre este, o referido ato ou negócio será ineficaz frente aos credores, caracterizando fraude à execução, por exemplo, na hipótese do executivo fiscal, caso aquela medida processual seja anterior essa relação jurídica e a esta execução.

Frise-se que a vigência temporal está adstrita à prescrição quinquenal da dívida ativa na hipótese da execução fiscal, bem como da decadência no lapso de dois (02) anos do direito de responsabilizar por eventual prejuízo ocasionado à empresa falida pelo

sócio controlador, administrador e conselheiro, seja pertencente ao conselho administrativo ou fiscal da companhia aberta, na ação de responsabilização pessoal prevista na lei de falências, a contar do trânsito em julgado da decisão que decreta a quebra.

Ademais, a indisponibilidade de bens precitada poderá ser concedida com base no poder de cautela geral da lei processual civil, conforme disposto no art. 798, a fim de prevenir a ocorrência de lesão grave ou de difícil reparação, a qual pode se dar tanto de forma incidental quanto preparatória. Logo, havendo a possibilidade jurídica de responsabilização daqueles com base, por exemplo, na Lei especial das Sociedades Anônimas, cujo prazo de prescrição é o trienal, na forma do art. 287, inc. II, do referido diploma legal, o tempo de duração da medida poderá ser este, na hipótese de incidência em discussão.

Não obstante isso, a regra é que, a medida cautelar perdura até a fluência do prazo de exercício do direito da ação principal indicada para responsabilizar civilmente aqueles atores que têm atuação na companhia aberta, ou quando decaia aquele direito, em qualquer hipótese sempre haverá prazo certo de vigência da referida tutela jurisdicional vinculado ao tipo de pretensão a ser deduzida e a eficácia sentencial preponderante desta.

2.2 Questões de ordem processual da

indisponibilidade de bens

No presente estudo é oportuno que se esclareça que a indisponibilidade de coisa, corpórea ou incorpórea, pertencente ao patrimônio do sócio controlador, administrador ou conselheiro, é uma medida cautelar assecuratória da reparação civil, mas não sujeita ao perdimento de pronto do referido bem, importando apenas em eventual ineficácia relativa à transmissão do domínio deste ou cessão dos direitos atinentes ao mesmo.

Por conseguinte, não é possível suprimir garantias constitucionais do exercício da ampla defesa (art. 5º, LV, da CF), do direito ao devido processo legal (art. 5º, LIV, da CF), nem do direito à propriedade privada (art. 5º, XXII, da CF), cuja eventual perda desta decorre de regular provimento judicial e do reconhecimento da responsabilidade civil de reparar os prejuízos causados à companhia aberta, aos sócios desta ou a terceiro que mantenha relação jurídica com a referida empresa.

a) Natureza jurídica e requisitos

Trata-se aqui de matéria de ordem pública, pois processual, cuja natureza jurídica é de cunho cautelar preventiva, ou seja, a prestação jurisdicional não se exauriu com a eventual concessão provisória da tutela de indisponibilidade de bens, isto é, mediante o

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A medida acautelatória de indisponibilidade de bens particulares ... 203

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bloqueio da possibilidade jurídica de transmissão do domínio de determinada coisa, corpórea ou incorpórea, ou a cessão dos direitos desta.

É necessário que seja intentado o feito principal do qual a medida acautelatória precitada é acessória, a fim de que seja solvida a questão de direito material pertinente aquele, qual seja, o bom direito alegado na cautelar, assim como aferir o risco de ocorrer prejuízo grave (irreparável) ou de difícil reparação devido à demora da prestação jurisdicional.

Assim, os requisitos exigidos para apreciação da cautela preparatória de indisponibilidade de bens dos agentes antes mencionados, que atuam na companhia aberta, são: o fumus boni juris e o periculum in mora.

A primeira questão a ser analisada para con- cessão da tutela de indisponibilidade de bens é a existência de direito plausível, no sentido de que o sócio controlador, administrador ou conselheiro possam ter adotado conduta, comissiva ou omissiva, abusiva, contrária à lei ou ao estatuto da sociedade anônima de capital aberto, que resulte no dever de responder civilmente perante a sociedade, seus sócios ou terceiros com o patrimônio particular, em função do referido comportamento antijurídico.

Por fim, o último requisito a ser considerado para a concessão da cautela preventiva de indisponibilidade dos bens daqueles agentes é ocorrência de perigo efetivo de retardo na prestação jurisdicional, o qual importaria em prejuízo grave ou de difícil reparação, decorrente da insuficiência patrimonial resultante do exercício do direito de disposição dos bens particulares dos mesmos, cuja medida restritiva a ser adotada deve se limitar a exata proporção dos prejuízos que se pretende ressarcir na ação principal indicada.

b) Consequências de ordem processual

O primeiro corolário processual que decorre da medida de indisponibilidade dos bens é o de que descabe este tipo de cautela se não há plausibilidade do direito alegado como bom, nem existe o risco de ocorrer dano grave ou de difícil reparação, pois se há patrimônio suficiente e a alienação de determinado bem não desfalca este, a ponto de reduzir o devedor à insolvabilidade, carece o pleito de causa jurídica para conceder aquela.

Outra consequência que exsurge da cautela de indisponibilidade de bens em exame, é que ela importa em mera restrição parcial da faculdade de disposição atinente ao direito de propriedade, provisória e temporária, cuja deliberação final a esse respeito se dará apenas quando houver a decisão no feito principal do qual a mesma serve apenas para garantir e efetividade desta.

Ainda, há que se aplicar a esse tipo de cautela preparatória o princípio da proporcionalidade, isto é, atenta-se aqui a limitação do estado-juiz, detentor do poder público, no sentido de que a restrição do direito de propriedade precitada não importe em ônus maior do que o objetivo perseguido, qual seja de garantir patrimônio suficiente para eventual reparação de prejuízo causado.

Aliás, a esse respeito à doutrinadora Taíza Ribeiro7 tece os comentários pertinentes quanto ao tema discutido abaixo:

Os princípios da proporcionalidade e razoabi- lidade, nas palavras de Fabrício dos Reis Brandão contém elementos intrínsecos para sua utilização na solução dos conflitos, que se dividem em subprincípios, quais sejam: adequação, exigibilidade e proporcionalidade em sentido estrito”. Nesse liame, extrai-se que a proporcionalidade subdivide-se em três aspectos: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade estritamente. A adequação refere-se à escolha de uma medida coerente e propícia a alcançar o fim almejado. Por sua vez, a necessidade diz respeito à escolha do meio estritamente necessário e imprescindível para a consecução do fim objetivado, sem exceder os limites indispensáveis. E, por fim, a proporcionalidade em sentido estrito significa que o ônus, o sacrifício gerado ao valor sacrificado deve ser menor do que as vantagens advindas do valor preponderante.

Desse modo, a cautela preventiva em questão não pode desbordar da extensão do prejuízo que se pretende reparar, devendo guardar relação e proporcionalidade a este, de sorte que a medida imposta assegure o direito vindicado, sem importar em ônus desmedido ao proprietário da coisa sujeita a esta restrição que ultrapasse o objetivo a ser alcançado na demanda principal.

CONCLUSÃO

A natureza jurídica da tutela de indisponibilidade de bens é de cautelar preventiva, que visa garantir a solvência patrimonial para hipótese de ser respon- sabilizado pessoalmente o sócio controlador, adminis- trador ou conselheiro, seja fiscal ou administrativo, pela prática de conduta lesiva à sociedade anônima aberta, em decorrência do poder de gestão, administração ou de fiscalização sobre os atos e negócios jurídicos desta.

É oportuno destacar que para surtirem efeitos sobre os bens particulares dos sócios controladores, administradores e conselheiros, como analisado ante- riormente, a eficácia pretendida e a medida preparatória decorrem de justa causa e estão, necessariamente,

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204 Canto, J. L. L.

Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 41, n. 2, p. 195-204, jul.-dez. 2015

vinculadas a ato ou a negócio jurídico certo, que se mostraram danosos aos interesses da companhia aberta, demais sócios ou a terceiro. Aliado ao fato de que a tutela em questão possui caráter excepcional, pois o bom direito alegado na cautela proposta deve estabelecer o nexo causal entre a conduta antijurídica praticada e o resultado descrito, isto é, o prejuízo econômico determinado ou determinável.

Assim, a referida medida cautelar vigora por prazo certo, ou seja, até a apuração da responsabilidade daqueles que respondem com o patrimônio particular pelo prejuízo ocasionado à sociedade anônima de capital aberto, aos sócios destas e mesmo a terceiros, que mantêm relação jurídica com a referida companhia.

Trata-se a indisponibilidade de bens de cautela provisória de restrição de uma das faculdades do domínio, no caso, o direito de dispor livremente daquele patrimônio, até que seja apurada a responsabilidade dos atores precitados pelos prejuízos que deram causa.

A primeira questão a ser analisada para concessão da tutela de indisponibilidade de bens é a existência de direito plausível – fumus boni juris –, no sentido de que o sócio controlador, administrador ou conselheiro possam ter adotado conduta, comissiva ou omissiva, abusiva, contrária à lei ou ao estatuto da sociedade anônima de capital aberto, que resulte no dever de responder civilmente perante a sociedade, seus sócios ou terceiros com o patrimônio particular, em função do referido comportamento antijurídico.

O último requisito a ser considerado para a con- cessão da cautela preventiva de indisponibilidade dos bens daqueles agentes é ocorrência de perigo efetivo de retardo na prestação jurisdicional – periculum in

mora –, o qual importaria em prejuízo grave ou de difí- cil reparação, decorrente da insuficiência patrimonial resultante do exercício do direito de disposição dos bens particulares dos mesmos, cuja medida restritiva a ser adotada deve se limitar a exata proporção dos prejuízos que se pretende ressarcir na ação principal indicada.

REFERÊNCIAS

ABRÃO. Carlos Henrique. In: TOLEDO, Paulo F. C. Salles; ABRÃO, Carlos Henrique (coord.). Comentários à lei de

recuperação de empresas e falência. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 251-252. CARVALHOSA, Modesto, Comentários à Lei de Sociedades

Anônimas. São Paulo: Saraiva, 1997. Vol. 1: arts. 1º a 74, p. 31-32.COMPARATO, Fábio Konder, O poder de controle na sociedade

anônima. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983. p. 107.RIBEIRO, Taíza Irene de Haro Pouchain. A indisponibilidade dos bens na cautelar fiscal e sua extensão ao ativo circulante. Revista

da PGFN, p. 161-184.THEODORO JÚNIOR, Humberto, medida cautelar fiscal – responsabilidade tributária do sócio-gerente (CTN, art. 135). Revista dos Tribunais, São Paulo v. 739 p. 115, maio 1997. Doutrinas essenciais de Direito Tributário, v. 6, p. 453, fev. 2011.STJ, PRIMEIRA TURMA, REsp 722.998/MT, Rel. Ministro LUIZ FUX, julgado em 11/04/2006, DJ 28/04/2006, p. 272.TJRS, 5ª Câmara Cível, processo nº 70036298545, julgado em 26.01.2011.

NOTAS

1 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas.São Paulo: Saraiva, 1997, v. 1: arts. 1º a 74, p. 31-32.

2 COMPARATO, Fábio Konder, O poder de controle na sociedade

anônima, 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 107.3 THEODORO JÚNIOR, Humberto, medida cautelar fiscal – responsa-

bilidade tributária do sócio-gerente (CTN, art. 135). Revista dos

Tribunais, São Paulo, v. 739, p. 115, maio 1997. Doutrinas Essenciais

de Direito Tributário, v. 6, p. 453, fev. 2011.

4 STJ, PRIMEIRA TURMA, REsp 722.998/MT, Rel. Ministro LUIZ FUX, julgado em 11/04/2006, DJ 28/04/2006, p. 272.

5 ABRÃO. Carlos Henrique. In: TOLEDO, Paulo F. C. Salles; ABRÃO, Carlos Henrique (coord.). Comentários à lei de recuperação de empresas

e falência. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 251-252.6 TJRS, 5ª Câmara Cível, processo nº 70036298545, julgado em

26.01.2011.7 RIBEIRO, Taíza Irene de Haro Pouchain, A indisponibilidade dos bens

na cautelar fiscal e sua extensão ao ativo circulante. Revista da PGFN, p. 161-184.

Recebido em: 30/10/2014; aceito em: 04/11/2014.

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Pesquisa documental: pistas teóricas e metodológicas

Documentary research: theoretical and methodological clues

Jackson Ronie Sá-Silva1 Cristóvão Domingos de Almeida2

Joel Felipe Guindani3

Resumo: O objetivo deste artigo é apresentar alguns apontamentos teóricos e

metodológicos sobre a pesquisa documental. Ao fazermos essa exposição pública, por meio

de ensaio bibliográfico, queremos provocar o debate sobre a utilização desse procedimento

no cotidiano das pesquisas de estudantes, professores e pesquisadores. Primeiramente,

conceituamos a pesquisa documental, apresentando as similaridades e diferenças entre

esta e a pesquisa bibliográfica, para, em seguida, discutirmos o conceito de documento. Na

seqüência, abordamos os critérios metodológicos de pré-análise do documento escrito e,

por fim, apresentamos as etapas da análise documental.

Palavras-chave: Pesquisa documental; Metodologia; Documentos escritos.

Abstract: This paper presents some theoretical and methodological notes on the

documentary research. By making this public exposure, through bibliographic essay, we

want to lead the debate on the use of this procedure in daily researches of students,

teachers and researchers. First, we define the documentary research, showing the

similarities and differences between this research and the literature research, and then we

discuss the concept of document. Next, we accost the methodological criteria for pre-

analysis of the written document, and, finally, we present the steps of the documentary

analysis.

Key-words: Documentary research, Methodology, Written documents.

Notas introdutórias

Ao conhecer, caracterizar, analisar e elaborar sínteses sobre um objeto de

pesquisa, o investigador dispõe atualmente de diversos instrumentos metodológicos. Sendo 1 Professor Assistente da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA) e Doutorando em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS-RS). E-mail: [email protected]. 2Doutorando em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e bolsista CAPES. E-mail: [email protected]. 3 Mestrando em Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS-RS) e bolsista CAPES. E-mail: [email protected].

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assim, o direcionamento do tipo de pesquisa que será empreendido dependerá de fatores

como a natureza do objeto, o problema de pesquisa e a corrente de pensamento que guia o

pesquisador. Goldenberg (2002: 14) sintetiza esse pensamento: “o que determina como

trabalhar é o problema que se quer trabalhar: só se escolhe o caminho quando se sabe

aonde se quer chegar”.

Inúmeros são os autores que se dedicam às categorizações e classificações de

tipologias de pesquisa. A literatura é vasta e rica. Nesse ensaio não é nosso objetivo

discorrer sobre os principais tipos de pesquisas utilizadas no campo das ciências sociais.

Faremos um recorte e aqui será destacada a pesquisa documental. Colocar em destaque a

pesquisa documental implicar trazer para a discussão uma metodologia que é “pouco

explorada não só na área da educação como em outras áreas das ciências sociais” (LÜDKE

e ANDRÉ, 1986: 38).

O uso de documentos em pesquisa deve ser apreciado e valorizado. A riqueza

de informações que deles podemos extrair e resgatar justifica o seu uso em várias áreas das

Ciências Humanas e Sociais porque possibilita ampliar o entendimento de objetos cuja

compreensão necessita de contextualização histórica e sociocultural. Por exemplo, na

reconstrução de uma história vivida, [...] o documento escrito constitui uma fonte extremamente preciosa para

todo pesquisador nas ciências sociais. Ele é, evidentemente, insubstituível

em qualquer reconstituição referente a um passado relativamente distante,

pois não é raro que ele represente a quase totalidade dos vestígios da

atividade humana em determinadas épocas. Além disso, muito

freqüentemente, ele permanece como o único testemunho de atividades

particulares ocorridas num passado recente (CELLARD, 2008: 295).

Outra justificativa para o uso de documentos em pesquisa é que ele permite

acrescentar a dimensão do tempo à compreensão do social. A análise documental favorece

a observação do processo de maturação ou de evolução de indivíduos, grupos, conceitos,

conhecimentos, comportamentos, mentalidades, práticas, entre outros. (CELLARD, 2008).

O que é a pesquisa documental? O que é um documento? Como se constitui

uma análise documental? Estes são os questionamentos centrais que conduzirão as nossas

reflexões. Utilizando os princípios da pesquisa bibliográfica e tendo como material de apoio

investigativo livros e artigos que enfocam o campo da pesquisa documental, pretendemos:

1. Conceituar e caracterizar a pesquisa documental; 2. Discutir o conceito de documento; e

3. Demonstrar os procedimentos da análise documental. Reconhecendo as limitações em

abordar a totalidade da metodologia de trabalho com os diversos tipos de documento,

priorizamos a discussão da análise documental com o texto escrito ou impresso.

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Pesquisa, método, análise ou técnica documental?

Como classificar o trabalho acadêmico com documentos? Os pesquisadores

realizam pesquisa documental ou análise documental? Ou seria uma técnica de pesquisa

com documentos? May (2004: 206) chama esse procedimento de Pesquisa Documental e

reconhece a dificuldade de lidar com o tema: Não é uma categoria distinta e bem reconhecida, como a pesquisa survey e

a observação participante. Dificilmente pode ser considerada como

constituindo um método, uma vez que dizer que se utilizará documentos é

não dizer nada sobre como eles serão utilizados.

Ao tentarem nomear o uso de documentos na investigação científica os

pesquisadores pronunciam palavras como pesquisa, método, técnica e análise. Então

teríamos as seguintes denominações: pesquisa documental, método documental, técnica

documental e análise documental. Vejamos como alguns autores se expressam: “A análise

documental busca identificar informações factuais nos documentos a partir de questões e

hipóteses de interesse” (CAULLEY apud LÜDKE e ANDRE, 1986:38); “Uma pessoa que

deseja empreender uma pesquisa documental deve, com o objetivo de constituir um corpus

satisfatório, esgotar todas as pistas capazes de lhe fornecer informações interessantes”

(CELLARD, 2008: 298); “A técnica documental vale-se de documentos originais, que ainda

não receberam tratamento analítico por nenhum autor. [...] é uma das técnicas decisivas

para a pesquisa em ciências sociais e humanas” (HELDER, 2006:1-2). E por fim temos o

olhar de Kelly apud Gauthier (1984: 296): Trata-se de um método de coleta de dados que elimina, ao menos em parte,

a eventualidade de qualquer influência – presença ou intervenção do

pesquisador – do conjunto das interações, acontecimentos ou

comportamentos pesquisados, anulando a possibilidade de reação do

sujeito à operação de medida.

Pimentel (2001: 179) mescla esses termos quando aborda o tema do trabalho

acadêmico com documentos. No artigo O método de análise documental: seu uso numa

pesquisa historiográfica, a autora nos apresenta as possibilidades para o uso desse

procedimento metodológico: Com o intuito de contribuir para a utilização da análise documental em

pesquisa esse texto apresenta o processo de uma investigação. [...] São

descritos os instrumentos e meios de realização da análise de conteúdo,

apontando o percurso em que as decisões foram sendo tomadas quanto às

técnicas de manuseio de documentos: desde a organização e classificação

do material até a elaboração das categorias de análise.

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Os termos “processo de investigação” e “percurso”, usados pela autora, lembram

a palavra “metodologia”. Já as palavras “instrumentos e meios” nos fazem pensar em

“procedimentos técnicos”. Vale lembrar que alguns autores usam essas palavras quase que

como sinônimas quando abordam o uso de documentos em pesquisas. Lüdke e André

(1986: 38) falam sobre a importância do uso de documentos em investigações educacionais:

“Que é análise documental? Quais as vantagens do uso de documentos em pesquisa?

Quando é apropriado o uso dessa técnica?”. Dizem também: “Como uma técnica

exploratória, a análise documental indica problemas que devem ser mais bem explorados

através de outros métodos”.

Qual seria o termo que melhor traduz esse tipo de investigação? Pesquisa,

método, técnica ou análise? Será que os dicionaristas nos ajudariam com suas definições?

No dicionário Houiss, por exemplo, pesquisa significa: investigação científica, artística,

escolar; método: 1) procedimento, técnica ou meio para atingir um objetivo; 2) processo

organizado de pesquisa; 3) modo de agir; metodologia: conjunto de métodos, princípios e

regras empregados por uma atividade ou disciplina e técnica: 1) conjunto de procedimentos

ligados a uma arte ou ciência; 2) maneira própria de realizar uma tarefa; análise: 1) estudo

de diversas partes de um todo; 2) investigação; exame.

Quando um pesquisador utiliza documentos objetivando extrair dele

informações, ele o faz investigando, examinando, usando técnicas apropriadas para seu

manuseio e análise; segue etapas e procedimentos; organiza informações a serem

categorizadas e posteriormente analisadas; por fim, elabora sínteses, ou seja, na realidade,

as ações dos investigadores – cujos objetos são documentos – estão impregnadas de

aspectos metodológicos, técnicos e analíticos: Para pesquisar precisamos de métodos e técnicas que nos levem

criteriosamente a resolver problemas. [...] é pertinente que a pesquisa

científica esteja alicerçada pelo método, o que significa elucidar a

capacidade de observar, selecionar e organizar cientificamente os caminhos

que devem ser percorridos para que a investigação se concretize (GAIO,

CARVALHO e SIMÕES, 2008: 148).

Buscando elementos que possibilitem compreender melhor o que aqui foi

exposto sobre método, técnica, análise e pesquisa e relacionando esses conceitos ao

campo da pesquisa documental, encontramos o posicionamento de Minayo (2008) que, ao

discutir o conceito e o papel da metodologia nas pesquisas em ciências sociais, imprime um

enfoque plural para a questão: “a metodologia inclui as concepções teóricas de abordagem,

o conjunto de técnicas que possibilitam a apreensão da realidade e também o potencial

criativo do pesquisador” (MINAYO, 2008: 22). Esse fundamento se aplica às pesquisas de

um modo geral e no campo da utilização de documentos não é diferente. Portanto, a

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pesquisa documental é um procedimento que se utiliza de métodos e técnicas para a

apreensão, compreensão e análise de documentos dos mais variados tipos.

Pesquisa documental ou pesquisa bibliográfica?

Alguns autores divulgam que pesquisa documental e pesquisa bibliográfica são

sinônimas. Appolinário (2009), no Dicionário de Metodologia Científica descreve o seguinte:

pesquisa documental: [bibliographical research,; documental research]; pesquisa

bibliográfica: [bibliographical research,; documental research]. Pesquisa que se restringe à

análise de documentos. Além disso, ele faz a indicação para ver também as estratégias de

coleta de dados (p.152). Seguindo as recomendações do autor citado buscamos

compreender o sentido desses termos e chegamos à definição estratégia de coleta de

dados. No verbete, Estratégia de coleta de dado, ele nos informa que: Normalmente, as pesquisas possuem duas categorias de estratégias de

coleta de dados: a primeira refere-se ao local onde os dados são coletados

(estratégia-local) e, neste item, há duas possibilidades: campo ou

laboratório. [...] A segunda estratégia refere-se à fonte dos dados:

documental ou campo. Sempre que uma pesquisa se utiliza apenas de

fontes documentais (livros, revistas, documentos legais, arquivos em mídia

eletrônica, diz-se que a pesquisa possui estratégia documental (ver

pesquisa bibliográfica). Quando a pesquisa não se restringe à utilização de

documentos, mas também se utiliza de sujeitos (humanos ou não), diz-se

que a pesquisa possui estratégia de campo (APPOLINÁRIO, 2009: 85).

Tanto a pesquisa documental como a pesquisa bibliográfica têm o documento

como objeto de investigação. No entanto, o conceito de documento ultrapassa a idéia de

textos escritos e/ou impressos. O documento como fonte de pesquisa pode ser escrito e não

escrito, tais como filmes, vídeos, slides, fotografias ou pôsteres. Esses documentos são

utilizados como fontes de informações, indicações e esclarecimentos que trazem seu

conteúdo para elucidar determinadas questões e servir de prova para outras, de acordo com

o interesse do pesquisador (FIGUEIREDO, 2007). Tendo em vista essa dimensão fica claro

existir diferenças entre pesquisa documental e pesquisa bibliográfica.

Oliveira (2007) faz uma importante distinção entre essas modalidades de

pesquisa. Para essa autora a pesquisa bibliográfica é uma modalidade de estudo e análise

de documentos de domínio científico tais como livros, periódicos, enciclopédias, ensaios

críticos, dicionários e artigos científicos. Como característica diferenciadora ela pontua que é

um tipo de “estudo direto em fontes científicas, sem precisar recorrer diretamente aos

fatos/fenômenos da realidade empírica” (p. 69). Argumenta que a principal finalidade da

pesquisa bibliográfica é proporcionar aos pesquisadores e pesquisadoras o contato direto

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com obras, artigos ou documentos que tratem do tema em estudo: “o mais importante para

quem faz opção pela pesquisa bibliográfica é ter a certeza de que as fontes a serem

pesquisadas já são reconhecidamente do domínio científico” (p. 69). Ela se posiciona sobre

a pesquisa documental: “a documental caracteriza-se pela busca de informações em

documentos que não receberam nenhum tratamento científico, como relatórios, reportagens

de jornais, revistas, cartas, filmes, gravações, fotografias, entre outras matérias de

divulgação” (p. 69).

A pesquisa documental é muito próxima da pesquisa bibliográfica. O elemento

diferenciador está na natureza das fontes: a pesquisa bibliográfica remete para as

contribuições de diferentes autores sobre o tema, atentando para as fontes secundárias,

enquanto a pesquisa documental recorre a materiais que ainda não receberam tratamento

analítico, ou seja, as fontes primárias. Essa é a principal diferença entre a pesquisa

documental e pesquisa bibliográfica. No entanto, chamamos a atenção para o fato de que:

“na pesquisa documental, o trabalho do pesquisador (a) requer uma análise mais cuidadosa,

visto que os documentos não passaram antes por nenhum tratamento científico” (OLIVEIRA,

2007: 70).

É fundamental que os (as) cientistas sociais entendam o significado de fontes

primárias e fontes secundárias. As fontes primárias são dados originais, a partir dos quais se

tem uma relação direta com os fatos a serem analisados, ou seja, é o pesquisador (a) que

analisa. Por fontes secundárias compreende-se a pesquisa de dados de segunda mão

(OLIVEIRA, 2007), ou seja, informações que foram trabalhadas por outros estudiosos e, por

isso, já são de domínio científico, o chamado estado da arte do conhecimento.

O conceito de documento

O que é um documento? Para Cellard (2008: 296) não é tarefa fácil conceituá-lo:

“definir o documento representa em si um desafio”. Recuperar a palavra “documento” é uma

maneira de analisar o conceito e então pensarmos numa definição: “documento: 1.

declaração escrita, oficialmente reconhecida, que serve de prova de um acontecimento, fato

ou estado; 2. qualquer objeto que comprove, elucide, prove ou registre um fato,

acontecimento; 3. arquivo de dados gerado por processadores de texto” (HOUAISS, 2008:

260). Phillips (1974: 187) expõe sua visão ao considerar que documentos são “quaisquer

materiais escritos que possam ser usados como fonte de informação sobre o

comportamento humano”.

As definições acima mostram com muita clareza a representação do documento

como material escrito. No final do século XIX com a escola positivista, o registro escolhido

pela maioria dos historiadores era o documento escrito, sobretudo o oficial. Esse documento

assumia o peso da prova histórica e a objetividade em garantia pela fidelidade ao mesmo

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(VIEIRA, PEIXOTO e KHOURY, 1995). Os historiadores Seignobos e Langlois, no século

XIX, fizeram do documento o principal elemento de discussão de uma obra de metodologia

que influenciou inúmeros pesquisadores – Introduction aux études historiques. Esses

célebres historiadores deram início ao desenvolvimento da História como ciência, todavia o

conceito de documento se aplicava quase que exclusivamente ao texto, e, particularmente,

aos arquivos oficiais. Tal definição decorria principalmente da abordagem histórica praticada

por quase todos os investigadores da época: “uma abordagem conjuntural, focada,

sobretudo, nos fatos e gestos dos políticos e dos ‘maiorais’ desse mundo” (CELLARD, 2008:

296).

A valorização do documento como garantia de objetividade, marca indelével dos

historiadores positivistas, exclui a noção de intencionalidade contida na ação estudada e na

ação do pesquisador, sendo esse processo construído historicamente. A palavra documento

com o sentido de prova jurídica, representação que se mantém até a atualidade, já era

usada pelos romanos, tendo sido retomada na Europa Ocidental no século XVII. Assim, os

historiadores positivistas, ao se apropriarem do termo, conservam-lhe o sentido de prova,

agora não mais jurídica, e sim com status científico. O próprio fato de nomear a palavra

documento aos testemunhos históricos traduz uma concepção de história que confunde o

real com o documento e o transforma em conhecimento histórico. Captar o real nessa lógica

cartesiana seria conhecer os fatos relevantes e fundamentais que si impõem por si mesmos

ao conhecimento do pesquisador. Como resultado desse pensamento, só se considerava

relevante para o campo da História aquilo que estava documentado, dando privilégio para os

termos e ações da política governamental: ações do governo, atuações de personalidades,

questões ligadas à política internacional, e outros assuntos. (VIEIRA, PEIXOTO e KHOURY,

1995).

Este conceito de documento será profundamente modificado devido à evolução

da História enquanto disciplina e método, tendo como principal impulsionador o movimento

feito pela Escola de Annales. Para esses historiadores o acontecer histórico se faz a partir dos homens.

Daí o documento histórico se produzir com tudo o que, pertencendo ao

homem, depende do homem, exprime o homem, demonstra a presença, a

atividade, os gostos e as maneiras de ser do homem. Nesse caso, ao

documento incorporam-se outros de natureza diversa, tais como objetos,

signos, paisagens, etc. (VIEIRA, PEIXOTO e KHOURY, 1995: 14-15).

A Escola de Annales ao privilegiar uma abordagem mais globalizante amplia

consubstancialmente o conceito de documento: “tudo o que é vestígio do passado, tudo o

que serve de testemunho, é considerado como documento ou ‘fonte’” (CELLARD, 2008, p.

296). E mais: “pode tratar-se de texto escritos, mas também de documentos de natureza

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iconográfica e cinematográfica, ou de qualquer outro tipo de testemunho registrado, objetos

do cotidiano, elementos folclóricos, etc” (p. 297). No limite, poder-se-ia até qualificar de

documento um relatório de entrevista, ou anotações feitas durante uma observação.

(CELLARD, 2008).

Appolinário (2009: 67), amplia a definição de documento: “Qualquer suporte que

contenha informação registrada, formando uma unidade, que possa servir para consulta,

estudo ou prova. Incluem-se nesse universo os impressos, os manuscritos, os registros

audiovisuais e sonoros, as imagens, entre outros”. E, de acordo com o conceito técnico da

Associação de Arquivistas Brasileiros, o documento defini-se como qualquer informação

fixada em um suporte (AAB, 1990).

Preparando um documento para análise: a ritualística necessária

Quem trabalha com documentos deve superar alguns obstáculos e desconfiar de

determinadas armadilhas, antes de estar apto a fazer uma análise de seu corpus

documental. Inicialmente deve localizar os textos pertinentes e avaliar a sua credibilidade,

assim como a sua representatividade. O autor do documento conseguiu reportar fielmente

os fatos? Ou ele exprime mais as percepções de uma fração particular da população? Por

outro lado o investigador deve compreender adequadamente o sentido da mensagem e

contentar-se com o que tiver na mão: eventuais fragmentos, passagens difíceis de

interpretar e repletas de termos e conceitos que lhes são estranhos e foram redigidos por

um desconhecido. É impossível transformar um documento; é preciso aceitá-lo tal como ele

se apresenta, às vezes, tão incompleto, parcial ou impreciso. No entanto, torna-se, essencial

saber compor com algumas fontes documentais, mesmo as mais pobres, pois elas são

geralmente as únicas fontes que podem nos esclarecer sobre uma determinada situação.

Desta forma, é fundamental usar de cautela e avaliar adequadamente, com um olhar crítico,

a documentação que se pretende fazer análise.

Listamos abaixo as orientações dadas por Cellard (2008) sobre a avaliação

preliminar dos documentos. Tal avaliação constitui a primeira etapa de toda a análise

documental que se aplica em cinco dimensões:

O contexto

É primordial em todas as etapas de uma análise documental que se avalie o

contexto histórico no qual foi produzido o documento, o universo sócio-político do autor e

daqueles a quem foi destinado, seja qual tenha sido a época em que o texto foi escrito.

Indispensável quando se trata de um passado distante, esse exercício o é de igual modo,

quando a análise se refere a um passado recente. No último caso, no entanto, cabe admitir

que a falta de distância tenha algumas implicações na tarefa do pesquisador, mas vale

como desafio. O pesquisador não pode prescindir de conhecer satisfatoriamente a

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conjuntura socioeconômico-cultural e política que propiciou a produção de um determinado

documento. Tal conhecimento possibilita apreender os esquemas conceituais dos autores,

seus argumentos, refutações, reações e, ainda, identificar as pessoas, grupos sociais,

locais, fatos aos quais se faz alusão, etc. Pela análise do contexto, o pesquisador se coloca

em excelentes condições até para compreender as particularidades da forma de

organização, e, sobretudo, para evitar interpretar o conteúdo do documento em função de

valores modernos. Tal etapa é tão mais importante, que não se poderia prescindir dela,

durante a análise que se seguirá.

O autor (ou os autores)

Não se pode pensar em interpretar um texto, sem ter previamente uma boa

identidade da pessoa que se expressa, de seus interesses e dos motivos que a levaram a

escrever. Uma questão é fundamental: “esse indivíduo fala em nome próprio, ou em nome

de um grupo social?”. Cellard (2008) acreditar ser “bem difícil compreender os interesses

(confessos, ou não!) de um texto, quando se ignora tudo sobre aquele ou aqueles que se

manifestam, suas razões e as daqueles a quem eles se dirigem” (p. 300).

Elucidar a identidade do autor possibilita, portanto, avaliar melhor a credibilidade

do texto, a interpretação que é dada de alguns fatos, a tomada de posição que transparece

de uma descrição, as deformações que puderam sobrevir na reconstituição de um

acontecimento. Na mesma ordem de idéias, é salutar nos questionarmos por que esse

documento, preferencialmente a outros, chegou até nós, foi conservado e publicado. Muitas

vezes, sobretudo num passado relativamente distante, uma única categoria de indivíduos,

ou seja, os que pertenciam à classe instruída podiam expressar seus pontos de vista por

meio da escrita. É preciso, então, poder ler nas entrelinhas, para compreender melhor o que

os outros viviam, senão as interpretações correm o risco de serem grosseiramente

falseadas.

A autenticidade e a confiabilidade do texto

Cellard (2008: 301) nos lembra que “é importante assegurar-se da qualidade da

informação transmitida”. Para ele, não se deve esquecer de verificar a procedência do

documento. Em alguns casos, é também necessário considerar o fato de que alguns

documentos nos chegam por intermédio de copistas que tinham, às vezes, de decifrar

escritas quase ilegíveis. Por outro lado, é importante estar atento à relação existente entre o

autor e o que ele escreve. Ele foi testemunha direta ou indireta do que relatou? Quanto

tempo decorreu entre o acontecimento e a sua descrição? Ele reportou as falas de alguma

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outra pessoa? Ele poderia estar enganado? Ele estava em posição de fazer esta ou aquela

observação, de estabelecer tal julgamento?

A natureza do texto

Na análise de um documento deve-se levar em consideração a natureza do

texto, ou seu suporte, antes de tirar conclusões. Efetivamente a abertura do autor, os

subentendidos, a estrutura de um texto pode variar enormemente, conforme o contexto no

qual ele é redigido. Cellard (2008) cita um exemplo para facilitar a compreensão dessa

dimensão: “é o caso, entre outros, de documentos de natureza teológica, médica, ou

jurídica, que são estruturados de forma diferente e só adquirem um sentido para o leitor em

função de seu grau de iniciação no contexto particular de sua produção” (p. 302).

Os conceitos-chave e a lógica interna do texto

Delimitar adequadamente o sentido das palavras e dos conceitos é, aliás, uma

precaução totalmente pertinente no caso de documentos mais recentes nos quais, por

exemplo, utiliza-se um “jargão” profissional específico, ou nos que contém regionalismos,

gíria própria e meios particulares, linguagem popular, etc. Deve-se prestar atenção aos

conceitos-chave presentes em um texto e avaliar sua importância e seu sentido, segundo o

contexto preciso em que eles são empregados. Finalmente, é útil examinar a lógica interna,

o esquema ou o plano do texto: Como um argumento se desenvolveu? Quais são as partes

principais da argumentação? Essa contextualização pode ser um apoio muito importante,

quando, por exemplo, comparam-se vários documentos da mesma natureza.

A análise documental

A etapa de análise dos documentos propõe-se a produzir ou reelaborar

conhecimentos e criar novas formas de compreender os fenômenos. É condição necessária

que os fatos devem ser mencionados, pois constituem os objetos da pesquisa, mas, por si

mesmos, não explicam nada. O investigador deve interpretá-los, sintetizar as informações,

determinar tendências e na medida do possível fazer a inferência. May (2004) diz que os

documentos não existem isoladamente, mas precisam ser situados em uma estrutura teórica

para que o seu conteúdo seja entendido.

Feito a seleção e análise preliminar dos documentos, o pesquisador procederá à

análise dos dados: “é o momento de reunir todas as partes – elementos da problemática ou

do quadro teórico, contexto, autores, interesses, confiabilidade, natureza do texto, conceitos-

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chave” (CELLARD, 2008: 303). O pesquisador poderá, assim, fornecer uma interpretação

coerente, tendo em conta a temática ou o questionamento inicial.

A análise é desenvolvida através da discussão que os temas e os dados

suscitam e inclui geralmente o corpus da pesquisa, as referências bibliográficas e o modelo

teórico. No caso da análise de documentos recorre-se geralmente para a metodologia da

análise do conteúdo: Conjunto de técnicas de investigação científicas utilizadas em ciências

humanas, caracterizadas pela análise de dados lingüísticos. [...]

Normalmente, nesse tipo de análise, os elementos fundamentais da

comunicação são identificados, numerados e categotizados. Posteriormente

as categorias encontradas são analisadas face a um teoria específica

(APPOLINÁRIO, 2009: 27).

Ressalta-se que a análise de conteúdo é uma dentre as diferentes formas de

interpretar o conteúdo de um texto, adotando normas sistemáticas de extrair significados

temáticos ou os significantes lexicais, por meio dos elementos mais simples do texto.

Consiste em relacionar a freqüência da citação de alguns temas, palavras ou idéias em um

texto para medir o peso relativo atribuído a um determinado assunto pelo seu autor.

Pressupõe, assim, que um texto contém sentidos e significados, patentes ou ocultos, que

podem ser apreendidos por um leitor que interpreta a mensagem contida nele por meio de

técnicas sistemáticas apropriadas. A mensagem pode ser apreendida, decompondo-se o

conteúdo do documento em fragmentos mais simples, que revelem sutilezas contidas em

um texto. Os fragmentos podem ser palavras, termos ou frases significativas de uma

mensagem (CHIZZOTTI, 2006).

A análise qualitativa do conteúdo começa com a idéia de processo, ou contexto

social, e vê o autor como um auto-consciente que se dirige a um público em circunstâncias

particulares. A tarefa do analista torna-se, nas palavras de May (2004), uma “leitura” do

texto em termos dos seus símbolos. Com isso em mente, o texto é abordado a partir do

entendimento do contexto da sua produção pelos próprios analistas. Devemos então estar

atentos para o fato de que a análise de conteúdo pode caracterizar-se como um método de

investigação do conteúdo simbólico das mensagens. Essas mensagens podem ser

abordadas de diferentes formas e sob inúmeros ângulos.

O processo de análise de conteúdo dos documentos tem início quando tomamos

a decisão sobre a Unidade de Análise. Ludke e André (1986) dizem que existem dois tipos

de Unidade de Análise: a Unidade de Registro e a Unidade de Contexto. Na Unidade de

Análise o investigador pode selecionar segmentos específicos do conteúdo para fazer a

análise, determinando, por exemplo, a freqüência com que aparece no texto uma palavra,

um tópico um tema uma expressão, uma personagem ou um determinado item (operação

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que usa a quantificação dos termos). No entanto, dependendo dos objetivos e das

perguntas de investigação, pode se mais importante explorar o contexto em que uma

determinada unidade ocorre, e não apenas sua freqüência. Assim, o método de codificação

escolhido vai depender da natureza do problema, do arcabouço teórico e das questões

específicas de pesquisa.

Realizado a codificação da Unidade de Análise, o passo seguinte no processo

de análise documental é caracterizar a forma de registro. Alguns pesquisadores preferem

fazer anotações à margem do próprio material analisado, outros fazem esquemas,

diagramas e outras formas de síntese. Tais anotações como um primeiro momento de

classificação dos dados podem incluir o tipo de fonte de informação, os tópicos ou temas

tratados, o momento e o local das ocorrências e a natureza do material coletado. Após

organizar os dados, num processo de numerosas leituras e releituras, o investigador pode

voltar a examiná-los para tentar detectar temas e temáticas mais freqüentes: “esse

processo, essencialmente indutivo, vai culminar na construção de categorias ou tipologias”

(LUDKE e ANDRÉ, 1986: 42).

Construir categorias de análise não é tarefa fácil. Elas surgem, num primeiro

momento, da teoria em que se apóia a investigação. Esse conjunto preliminar de categorias

pode ser modificado ao longo do estudo, num processo dinâmico de confronto constante

entre empiria e teoria, o que dará gênese a novas concepções e, por conseqüência, novos

olhares sobre o objeto e o interesse do investigador. Sobre a construção de categorias

analíticas vale lembrar os seguintes ensinamentos: Não existem normas fixas nem procedimentos padronizados para a criação

de categorias, mas acredita-se que um quadro teórico consistente pode

auxiliar uma seleção inicial mais segura e relevante. [...] Em primeiro lugar

[...] faça o exame do material procurando encontrar os aspectos relevantes.

Verifique se certos temas, observações e comentários aparecem e

reaparecem em contextos variados, vindos de diferentes fontes e diferentes

situações. Esses aspectos que aparecem com certa regularidade são a

base para o primeiro agrupamento da informação em categorias. Os dados

que não puderem ser agregados devem ser classificados em um grupo à

parte para serem posteriormente examinados (Ludke e André ,1986: 43).

Com as categorias iniciais organizadas é necessário que se faça uma avaliação

desse conjunto. Guba e Lincoln (1981) argumentam que as categorias devem antes de tudo

refletir os propósitos da pesquisa. Eles apontam alguns critérios que podem auxiliar o

investigador a avaliar com mais segurança as categorias que foram originadas do material

documental: a homogeneidade interna, a heterogeneidade externa, inclusividade, coerência

e plausibilidade. O que eles querem propor com a introdução desses critérios? Para Guba e

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Lincoln (1981), se uma categoria abrange um único conceito, todos os itens nessa categoria

devem ser homogêneos, ou seja, devem estar coerentemente integrados. Além do mais, as

categorias devem ser mutuamente exclusivas, de modo que as diferenças entre elas fiquem

bem claras. Espera-se, de acordo com esses pesquisadores, que grande parte dos dados

seja incluída em uma ou em outra categoria.

O processo de análise documental tem um desenvolvimento concatenado.

Depois de obter um conjunto inicial de categorias, a próxima fase envolve um

enriquecimento do sistema mediante um processo divergente, incluindo as seguintes

estratégias: aprofundamento, ligação e ampliação. Baseado naquilo que já obteve, o

pesquisador volta a examinar o material no intuito de aumentar o seu conhecimento,

descobrir novos ângulos e aprofundar a sua visão. Pode também explorar as ligações

existentes entre os vários itens, tentando estabelecer relações e associações e passando

então a combiná-los, separá-los ou reorganizá-los. Finalmente, o investigador procurará

ampliar o campo de informações identificando os elementos emergentes que precisam ser

mais aprofundados (LUDKE e ANDRÉ, 1986).

A etapa final consistirá num novo julgamento das categorias quanto à sua

abrangência e delimitação. Ludke e André nos dão a seguinte orientação: Quando não há mais documentos para analisar, quando a exploração de

novas fontes leva à redundância de informação ou a um acréscimo muito

pequeno, em vista do esforço despendido, e quando há um sentido de

integração na informação já obtida, é um bom sinal para concluir o estudo

(Ludke e André (1986: 44).

Considerações finais

A pesquisa documental é um procedimento metodológico decisivo em ciências

humanas e sociais porque a maior parte das fontes escritas – ou não – são quase sempre a

base do trabalho de investigação. Dependendo do objeto de estudo e dos objetivos da

pesquisa, pode se caracterizar como principal caminho de concretização da investigação ou

se constituir como instrumento metodológico complementar. Apresenta-se como um método

de escolha e de verificação de dados; visa o acesso às fontes pertinentes, e, a esse título,

faz parte integrante da heurística de investigação. Deve muito à História e, sobretudo aos

seus métodos críticos de investigação sobre fontes escritas. Isso por que a investigação

histórica ao pretender estabelecer sínteses sistemáticas dos acontecimentos históricos

serviu, sobretudo, às ciências sociais, no sentido da reconstrução crítica de dados que

permitam inferências e conclusões. Enfim, a possibilidade que se tem de partir de dados

passados, fazer algumas inferências para o futuro e, mais, a importância de se compreender

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os seus antecedentes numa espécie de reconstrução das vivências e do vivido. Portanto, a

pesquisa documental, bem como outros tipos de pesquisa, propõe-se a produzir novos

conhecimentos, criar novas formas de compreender os fenômenos e dar a conhecer a forma

como estes têm sido desenvolvidos. Ao apresentar esse panorama metodológico queremos

provocar a reflexão de estudantes, professores e pesquisadores que utilizam documentos

como método investigativo para o desvelamento de seus objetos de estudo e

problematização das suas hipóteses. Acreditamos que as pistas elencadas neste artigo são

elementos essenciais para todos que se aventuram em produzir conhecimento no campo da

pesquisa documental.

Bibliográficas

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Recebido em 27/05/2009

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Aprovado em 18/06/2009

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Dez coisas que você deveria saber sobre o Qualis

Rita de Cássia Barradas Barata* Resumo Este artigo trata de dez pontos essenciais para se compreender o Qualis Periódicos e, assim, dirimir as dúvidas frequentemente apresentadas aos coordenadores de área por editores científicos, docentes e alunos de programas de pós-graduação. As questões serão apresentadas de modo a esclarecer aspectos aplicáveis a todas as áreas de avaliação sempre que possível. Alguns aspectos particulares terão por base a experiência da área de Saúde Coletiva. Palavras-chave: Produção Científica. Avaliação de Programas. Classificação de

Periódicos. Ferramentas de Avaliação. 1 PRIMEIRO PONTO: O QUE É O QUALIS PERIÓDICOS?

O sistema de avaliação dos programas de pós-graduação no país foi instituído pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior (Capes) em 1977, ocasião em que foram criadas as comissões de assessores por área, para a avaliação e o acompanhamento dos cursos, e foi estabelecido o Conselho Técnico-Científico da Educação Superior (CTC-ES). Nesse primeiro momento, o resultado da avaliação realizada não tinha divulgação pública, sendo informado apenas às instituições. A avaliação era expressa em conceitos: A (muito bom), B (bom), C (regular), D (fraco) e E (insuficiente) (FERREIRA; MOREIRA, 2001; CAPES, 2011).

Em 1990, sob a presidência da Profa. Eunice Durham, os conceitos foram substituídos por notas de 1 a 5, e passaram a ser incluídos no processo de avaliação alguns indicadores quantitativos, entre os quais a quantidade de artigos publicados pelos programas (FERREIRA; MOREIRA, 2001; CAPES, 2011). Em 1998, ocorreu mudança substancial no processo, com a padronização da ficha de avaliação, que incluía sete quesitos: a proposta do programa, o corpo docente, as atividades de pesquisa, as atividades de formação, o corpo discente, as teses e dissertações e a produção intelectual. Todas as áreas de avaliação deveriam analisar os mesmos quesitos embora pudessem utilizar, no processo, diferentes tipos de indicadores (BARATA, 2015).

Nesse momento, o CTC-ES sentiu a necessidade de qualificar a produção dos programas e não mais apenas contabilizar o número de artigos publicados. Já então, o número de artigos publicados nos programas, em cada triênio de avaliação, era bastante expressivo, tornando impraticável qualquer tentativa de avaliar a qualidade de cada um desses produtos do trabalho científico. Diante dessa impossibilidade, a opção adotada foi a classificação dos veículos de divulgação da produção científica, pressupondo-se que a aceitação de um artigo por periódico indexado e com sistema de peer review garantia, de certo modo, a sua qualidade. Por outro lado, considerou-se que periódicos com circulação internacional e maior impacto na comunidade acadêmica teriam processos de seleção mais competitivos e, portanto, os artigos por eles selecionados teriam qualidade e relevância (LINDSEY, 1989).

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A primeira classificação adotada dividia os periódicos em três grupos com três estratos em cada grupo. Os grupos separavam os periódicos segundo a circulação – internacional, nacional ou local –, e, em cada grupo, as revistas científicas eram classificadas nos estratos A, B e C, conforme seu impacto ou relevância para um determinado campo científico.

Dada a heterogeneidade de tradições científicas existentes nas diversas áreas de avaliação, cada uma delas teve a liberdade de eleger os critérios segundo os quais procederia à classificação da produção em sua área. Nas grandes áreas de Ciências Exatas, Ciências Biológicas, Ciências Agrárias e Ciências da Saúde, a tendência predominante foi a de construir a classificação considerando as bases de indexação e as medidas de impacto bibliométrico. Nas grandes áreas de Ciências Sociais e Humanas, a tendência foi a de utilizar um conjunto de aspectos formais dos periódicos científicos, normalmente empregados pelas bases indexadoras para a aceitação da indexação, para realizar a classificação.

Durante dez anos, essa classificação foi adotada no processo de avaliação, sofrendo diversos ajustes a cada período avaliativo. Após a trienal de 2007, a Diretoria de Avaliação propôs ao CTC-ES a reformulação do Qualis com base em uma avaliação quantitativa que mostrava o uso inadequado da classificação e a perda progressiva do poder discriminatório ao longo dos anos. Muitas áreas acabavam efetivamente utilizando três ou quatro estratos na avaliação, e poucas eram aquelas que usavam os nove estratos previstos (BARATA, 2015).

Após praticamente um ano de intensas discussões, o CTC-ES aprovou a nova classificação contendo sete estratos: A1, A2, B1, B2, B3, B4 e B5. Há ainda um estrato C, destinado a publicações que não constituem periódicos científicos ou não atendem aos critérios mínimos estabelecidos em cada área para ser classificado.

O Qualis Periódicos, portanto, é uma das ferramentas utilizadas para a avaliação dos programas de pós-graduação no Brasil. Sua função é auxiliar os comitês de avaliação no processo de análise e de qualificação da produção bibliográfica dos docentes e discentes dos programas de pós-graduação credenciados pela Capes. Ao lado do sistema de classificação de capítulos e livros, o Qualis Periódicos é um dos instrumentos fundamentais para a avaliação do quesito produção intelectual, agregando o aspecto quantitativo ao qualitativo. 2 SEGUNDO PONTO: O QUE O QUALIS PERIÓDICOS NÃO É?

Saber o que o Qualis não é parece tão importante quanto saber o que ele é, pois muitos dos usos inadequados e das incompreensões em torno dessa ferramenta resultam justamente da pouca compreensão sobre esse ponto. O Qualis não é uma base de indexação de periódicos – este é o ponto que provavelmente gera maior confusão entre os editores científicos e é fonte de inúmeras consultas aos coordenadores de área.

Vários são os editores que solicitam a inclusão, vale dizer a indexação, de seus periódicos na lista do Qualis. Entretanto, tal solicitação não tem sentido visto que o Qualis só existe como ferramenta para a avaliação de programas. Estar ou não na lista do Qualis significa tão somente que algum dos alunos ou professores dos programas credenciados publicaram artigos naqueles periódicos. Do mesmo modo, o Qualis Periódicos não é uma base bibliométrica e não permite o cálculo de nenhuma medida de impacto dos periódicos nele incluídos. Sendo assim, o Qualis Periódicos não deve ser considerado como uma fonte adequada de classificação da qualidade dos periódicos científicos para outros fins que não a avaliação dos programas de pós-

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graduação. Por uma série de características que serão destacadas a seguir, a classificação de uma revista no Qualis não pode ser usada fora de seu contexto, sob pena de produzir mais problemas do que soluções.

O Qualis Periódicos não é uma classificação absoluta, estando sujeita a revisão permanente. Tendo em vista que a classificação é sempre feita a posteriori, conforme será detalhado em outro item, não é aconselhável que a lista sirva de referência para ações futuras, tais como a escolha de periódicos para submissão de artigos. A escolha de um periódico para a submissão deveria levar em conta, entre outros aspectos, o público-alvo do próprio artigo, o escopo dos diversos periódicos em um mesmo campo científico, a credibilidade, a rapidez no processo de julgamento e de publicação, a competitividade expressa pela taxa de rejeição, a circulação que os periódicos têm na comunidade de interesse e seu prestígio, o que pode ser indiretamente avaliado por diferentes medidas de impacto.

Finalmente, o Qualis Periódicos não é uma ferramenta que possa ser utilizada em avaliações do desempenho científico individual de pesquisadores, visto que não foi desenvolvido com essa finalidade. Sua aplicação faz sentido para a análise coletiva da produção de um programa, cumprindo requisitos específicos do processo de avaliação comparativo estabelecido pela Capes. Em avaliações orientadas por princípios essencialistas, os instrumentos usados para comparações relativas nem sempre se mostrarão adequados. 3 TERCEIRO PONTO: A GERAÇÃO DA LISTA

Como mencionado anteriormente, a classificação dos periódicos não é duradoura. A cada ano uma listagem de periódicos é gerada a partir dos dados sobre a produção científica publicada sob a forma de artigos informados pelos programas nos aplicativos da Capes. Os programas enviavam anualmente suas informações por meio do Coleta Capes; mais recentemente, com a introdução da plataforma Sucupira, os dados podem ser permanentemente incluídos durante o desenrolar das atividades dos programas. Essa forma de geração da listagem faz com que ela seja sempre um retrato a posteriori, pois é sempre referente aos anos anteriores cujos dados já foram informados para a Capes. Assim, por exemplo, a classificação de 2014 divulgada em 2015 se refere aos artigos publicados em 2014.

O desconhecimento sobre esse mecanismo de geração da lista é outro motivo de inúmeras consultas aos coordenadores de área. Editores científicos encaminham exemplares de suas publicações e solicitações de inclusão, alegando que suas publicações abrangem temáticas daquela área do conhecimento. No entanto, se nenhum docente ou discente de um programa de pós-graduação credenciado tiver publicado um artigo naquela revista, não há nenhum sentido em incluí-la na lista, uma vez que a única finalidade do Qualis Periódicos é classificar os artigos produzidos pelos programas.

Docentes e discentes apresentam dois tipos de preocupações que também não procedem, desde que se conheça o mecanismo de geração da listagem. O primeiro receio é o de não encontrar na lista o periódico no qual acabaram de ter um artigo publicado. Evidentemente, se o artigo for informado na plataforma Sucupira, no ano subsequente, o periódico estará incluído automaticamente na listagem. O segundo questionamento, decorrente do anterior, diz respeito à consideração ou não dessa produção para efeito de avaliação. Novamente, trata-se de uma precipitação. Mesmo que, no último ano do período de avaliação, alguns periódicos não estejam incluídos como resultado de falhas no processamento dos dados, as comissões procederão à sua

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classificação manual, utilizando exatamente os mesmos critérios usados para os demais periódicos.

Outra dúvida frequente entre docentes e discentes surge quando da escolha de uma revista científica para a submissão de um artigo, diante da constatação de que esta ainda não se encontra na listagem da área. Evidentemente, por tudo que já ficou dito, tal revista científica passará a figurar na lista desde que, aceito o artigo, seja a publicação informada por meio da plataforma Sucupira. 4 QUARTO PONTO: CLASSIFICAÇÃO EXAUSTIVA

Tendo em vista o processo de geração da lista anteriormente descrito e a finalidade precípua do Qualis Periódicos, cada área de avaliação deverá classificar todos os títulos constantes de sua lista. Nenhum dos títulos listados poderá ficar sem classificação, uma vez que isso significaria a exclusão a priori de determinados produtos informados pelos programas.

Para que essa regra básica seja cumprida, foi proposto o estrato C, que pode ser utilizado de diferentes maneiras para garantir a exaustividade da classificação. Muitos programas informam como produção intelectual bibliográfica produtos que não se qualificam como artigos científicos, tais como matérias ou entrevistas em jornais ou revistas destinados ao público leigo, textos elaborados para blogs e outras mídias eletrônicas, boletins, material de propaganda como posters, folders e outros, material didático e artigos técnicos. Nesses casos, de acordo com a definição de cada área de avaliação, essas entradas na listagem do Qualis podem ser classificadas como C, separando-as dos demais artigos científicos produzidos pelo programa. Geralmente esse tipo de material pode ser informado corretamente como produção técnica, ou seja, não deve ser informado como artigos completos em periódicos científicos. Esses produtos podem ser excluídos da classificação por meio de uma opção disponível no aplicativo que permite identificá-los como não sendo artigos científicos.

Algumas áreas de avaliação utilizam o estrato C para desconsiderar os artigos científicos publicados em periódicos não indexados ou que não atendam aos critérios mínimos estabelecidos pela comissão de avaliação. Assim, aquela produção classificada no estrato C estaria automaticamente glosada. Há, ainda, algumas poucas áreas que utilizam o estrato C para glosar toda a produção divulgada em periódicos que, por seu escopo, não pertencem à área de conhecimento sob avaliação. Esse é um recurso discutível, tendo em vista o fato de que a ciência atual é cada vez mais interdisciplinar, e os limites disciplinares estreitos muitas vezes não refletem corretamente o que está sendo produzido. Felizmente, poucas são as áreas de avaliação que adotam visão tão exclusivamente disciplinar. Afinal, uma deliberação como essa por parte do coordenador de área ou de sua comissão de avaliação pode ter efeitos deletérios sobre as possibilidades de cooperação interdisciplinar.

Além dos problemas já mencionados, a decisão de classificar no estrato C periódicos considerados “fora de área” ou que não apresentem pelo menos determinado fator de impacto gera muito ruído entre a comunidade, pois revistas bem classificadas em alguma das áreas podem estar classificadas como C em outras, sugerindo que a classificação é desprovida de sentido e feita de forma totalmente aleatória. Para evitar esse tipo de situação seria recomendável que todas as áreas de avaliação reservassem o estrato C apenas para publicações que não pudessem ser classificadas como científicas, independentemente da área de conhecimento.

Para o caso de haver ocorrido falha no processamento dos dados completos dos programas no momento de geração da listagem, o processamento dos cadernos de

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indicadores ou dos relatórios da produção classificará cada produto em um dos estratos do Qualis, separando em um bloco à parte aqueles que ficarem sem classificação. Esses produtos poderão ser classificados manualmente de acordo com a disponibilidade de tempo dos membros das comissões de avaliação. Para evitar que essa produção seja desconsiderada na avaliação, é importante que o preenchimento dos dados relativos aos artigos seja o mais completo e correto possível, com especial atenção para o número correto do ISSN e para o título correto e atualizado da revista científica. Outros dados importantes são o ano, o volume e o fascículo da publicação. 5 QUINTO PONTO: REGRAS COMUNS A TODAS AS ÁREAS DE AVALIAÇÃO

A avaliação dos programas de pós-graduação está sempre tensionada pela necessidade de ter uma base comum para avaliar o conjunto dos programas independentemente das áreas de conhecimento e pelas evidências de que diferentes áreas de conhecimento têm diferentes tradições de produção científica, e suas especificidades precisam ser levadas em conta para que a avaliação seja justa e apropriada.

Do ponto de vista estrito de cada programa, não haveria problema em que os critérios avaliativos fossem totalmente diferentes entre as diversas áreas de avaliação, uma vez que em cada uma delas o processo é comparativo e, assim, só importaria garantir que os mesmos critérios fossem aplicados, da mesma maneira, para todos os programas em uma determinada área.

No entanto, os programas existem em unidades acadêmicas dentro de faculdades, centros universitários ou universidades onde avaliações muito discrepantes podem gerar dificuldades e problemas. Assim, tanto o CTC-ES quanto o Conselho Superior da CAPES sempre se preocuparam em ter alguns parâmetros que pudessem tornar a avaliação minimamente comparável entre as áreas.

Nesse sentido, são utilizados basicamente três mecanismos: as portarias e resoluções da Presidência, do Conselho Superior, da Diretoria de Avaliação ou do Conselho Técnico-Científico da Educação Superior; a padronização da ficha de avaliação e as regras de construção do Qualis Periódicos e da classificação de livros. As portarias, resoluções e outros atos normativos visam estabelecer diretrizes que devem ser seguidas em todo o sistema nacional de pós-graduação (SNPG), conferindo-lhe unidade e organicidade.

A padronização da ficha de avaliação visou estabelecer os quesitos e os itens indispensáveis e comuns a todas as áreas no processo de avaliação. Ao longo dos anos foram sendo modificados esses componentes na medida em que a evolução do SNPG foi superando certos problemas e gerando outros. Atualmente, a ficha está composta por cinco quesitos: proposta do programa, corpo docente, corpo discente, produção intelectual e inserção social; e 17 itens comuns distribuídos entre esses quesitos. As áreas de avaliação têm a liberdade de propor itens adicionais e definir os indicadores e critérios que serão utilizados na avaliação de cada item. Desse modo, pretende-se garantir a comparabilidade sem perder a flexibilidade necessária para abarcar toda a diversidade contida nas 48 áreas de avaliação. O instrumento de classificação de capítulos e livros também contém elementos mínimos e outras variáveis de modo que diversas áreas do conhecimento possam utilizá-lo. Nesse caso, há inclusive a opção de não considerar a produção de capítulos e livros na produção científica dos programas, a critério de cada área de avaliação.

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Com relação ao Qualis Periódicos, as regras comuns a todas as áreas são três, além daquela já apresentada da obrigatoriedade de classificar todos os títulos da listagem da área. Na tentativa de preservar o caráter classificatório e a capacidade de discriminação entre produções de maior ou menor “qualidade”, foram estabelecidas essas regras que forçam as comissões de área a serem bastante seletivas. A primeira regra estabelece que no máximo 50% dos títulos presentes em cada lista podem ser classificados nos três estratos mais altos da classificação: A1, A2 ou B1. Ou seja, qualquer que seja a área de conhecimento, apenas metade dos periódicos utilizados pelos docentes e discentes para veicular suas publicações pode ser classificada entre os de excelência (estratos A) ou de maior qualidade (B1). A segunda regra estabelece que apenas 25% dos títulos em cada lista podem ser considerados de excelência e, portanto, classificados nos estratos A. Ou seja, dentro do conjunto, apenas um quarto dos títulos usados em cada área pode ser classificado como excelente. A terceira regra estabelece que, entre os títulos classificados no estrato A, aqueles inseridos no estrato A1 têm de, necessariamente, ser em menor proporção do que os classificados no estrato A2.

Essas regras, embora tenham sido propostas para garantir alguma comparabilidade entre as diferentes áreas do conhecimento, ignoram o fato de que os critérios de classificação são bastante diferentes entre elas e permitem apenas uma comparação relativa, na medida em que as mesmas proporções se aplicam a totalidades muito diversas. Quadro 1 – Número de títulos e aplicação das regras comuns à listagem de cada área de avaliação, Qualis 2014 Área de Avaliação Títulos A1+A2 A1+A2+B1 C CIÊNCIAS EXATAS E DA TERRA Astronomia e Física 739 18,8 41,8 20,0 Ciência da Computação 636 17,3 36,9 22,2 Geociências 565 23,4 47,3 5,3 Matemática, Probabilidade e Estatística 563 23,4 47,2 0,9 Química 1.088 18,8 40,3 17,9 ENGENHARIAS Engenharias I 866 19,7 34,3 14,1 Engenharias II 966 26,1 50,0 0,0 Engenharias III 1.375 23,9 45,7 4,1 Engenharias IV 844 23,8 48,2 3,2 MULTIDISCIPLINAR Biotecnologia 1.528 21,9 42,6 11,7 Ciências Ambientais 1.396 22,9 47,5 5,0 Ensino 686 9,3 23,5 3,4 Interdisciplinar Materiais 602 18,4 40,5 13,0 CIÊNCIAS AGRÁRIAS Ciência de Alimentos 621 19,2 39,1 18,2 Ciências Agrárias I 1.601 19,6 46,2 7,4 Medicina Veterinária 749 21,9 45,5 0,0 Zootecnia e Recursos Pesqueiros 670 16,7 34,6 26,3 CIÊNCIAS BIOLÓGICAS Biodiversidade 1.539 16,0 36,1 23,5 Ciências Biológicas I 1.520 23,4 47,8 0,5 Ciências Biológicas II 1.564 21,6 43,4 13,2 Ciências Biológicas III 895 18,5 34,1 22,0 CIÊNCIAS DA SAÚDE

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Educação Física 772 24,5 47,9 0,0 Enfermagem 573 24,1 46,8 2,4 Farmácia 1.199 22,3 44,5 10,9 Medicina I 2.084 24,0 47,9 3,2 Medicina II 1.984 23,9 47,5 4,1 Medicina III 711 22,2 45,3 9,1 Nutrição 479 21,3 48,2 3,5 Odontologia 946 25,7 42,3 1,2 Saúde Coletiva 1.177 22,0 40,4 5,0 CIÊNCIAS HUMANAS Antropologia 270 11,5 27,8 5,9 Ciência Política e Relações Internacionais 391 15,9 25,3 16,1 Educação 1.333 9,4 19,5 34,9 Filosofia 304 14,5 35,2 14,8 Geografia 488 18,9 32,0 14,5 História 682 14,5 28,0 17,0 Psicologia 895 23,6 46,4 2,3 Sociologia 664 8,4 18,8 16,1 Teologia 142 11,3 26,1 19,7 CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS Administração e Turismo 1.054 19,6 32,5 2,5 Arquitetura, Urbanismo e Design 311 21,2 27,7 8,7 Ciências Sociais Aplicadas I 477 9,9 28,3 19,7 Direito 657 11,4 22,8 41,4 Economia 504 11,3 25,0 11,3 Planejamento Urbano e Regional/Demografia 481 17,9 39,9 2,5 Serviço Social 197 10,7 20,3 24,9 LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTES Artes /Música 346 11,0 21,7 31,5 Letras e Linguística 890 13,8 24,4 32,9 Fonte: elaboração própria.

Em 2014, o número de títulos variou entre 142 (Teologia) e 2.084 (Medicina I). A proporção de periódicos classificados no estrato A1 foi de 0,7%, na área de Teologia, a 13,1%, na área de Engenharia II, enquanto a proporção de periódicos no estrato A2 foi de 4,8%, na área de Ensino, a 15,1%, na área de Psicologia. O valor mediano para a proporção de periódicos no estrato A1 foi de 8,5% e, para o estrato A2, 11,5%.

A somatória entre os dois estratos superiores variou de 8,4%, na área de Sociologia, a 26,1%, na área de Engenharias II. A parcela dos três estratos superiores apresentou o menor valor na área de Sociologia, com apenas 18,8%, e o maior na área de Engenharias II, com exatos 50%.

Houve também grande variação na proporção de periódicos classificados no estrato C. Algumas áreas não tiveram nenhum título classificado no estrato C, enquanto outras apresentaram valores bastante altos. A área do Direito foi a que mais classificou títulos no estrato C, chegando a 41,4%. Ou seja, mesmo em relação à aplicação das regras gerais, observa-se grande variação entre as áreas, embora possam ser notadas algumas tendências. A grande área das Ciências da Saúde é a que apresenta maior homogeneidade. De modo geral, as Ciências da Vida e as Ciências Exatas apresentam proporções maiores de revistas classificadas nos três primeiros estratos e nos estratos A, enquanto as Humanidades tendem a mostrar menores proporções de periódicos nesses estratos, refletindo uma tradição diferente de publicações. No primeiro grupo de Ciências predominam periódicos editados por editoras comerciais ou associações científicas de grande prestígio acadêmico,

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enquanto no segundo grupo ainda predominam publicações vinculadas aos próprios programas acadêmicos. 6 SEXTO PONTO: CRITÉRIOS CLASSIFICATÓRIOS

Conforme assinalado anteriormente, cada área de avaliação tem a liberdade de estabelecer seus próprios critérios classificatórios desde que as regras comuns de construção do Qualis sejam cumpridas. Ainda que os indicadores utilizados pelas diferentes comissões variem, 31 (65%) áreas de avaliação compreendidas nas grandes áreas de Ciências Exatas e da Terra, Ciências Biológicas, Engenharias, Ciências da Saúde, Ciências Agrárias e Multidisciplinar utilizam critérios que combinam aspectos da circulação, avaliada por meio das bases de indexação às quais os periódicos pertencem, e aspectos relativos aos impactos bibliométricos, avaliados por intermédio de um ou mais indicadores obtidos em uma ou mais fontes de informação.

As fontes de dados bibliométricos mais utilizadas são JCR (Journal Current Report), Scopus e SciELO. Cada uma delas fornece indicadores um pouco diferentes e valores distintos para indicadores equivalentes porque possuem em sua base um número variável de periódicos. A base mais ampla é a Scopus, portanto, os indicadores calculados por ela tendem a ser mais altos do que nas outras duas. A menor é a SciELO, e os fatores de impacto medidos nessa base serão todos menores do que nas outras duas. O JCR possui uma base um pouco menor que a da Scopus e, além disso, adota uma definição pouco clara e polêmica do que considera documentos citáveis, podendo assim subestimar ou superestimar o fator de impacto (BARRETO, 2013).

Os indicadores mais usados são o fator de impacto, as citações por documento citável e o índice “h”. Algumas áreas utilizam ainda a vida média ou o fator de “imediatez” para ponderar as medidas de impacto. A combinação de fontes e indicadores é uma forma de balancear as características e fragilidades de cada um deles isoladamente.

Quinze (31%) áreas de avaliação incluídas nas grandes áreas de Artes e Letras, Ciências Sociais Aplicadas e Ciências Humanas utilizam um conjunto de critérios formais (tais como periodicidade, regularidade, corpo editorial diversificado, revisão por pares, distribuição, indexação) e um “ranqueamento” estabelecido pelas comissões avaliadoras quanto à relevância de cada revista para o campo.

Finalmente, as áreas de Economia e Administração e de Turismo utilizam critérios mistos, combinando aspectos dos dois anteriormente descritos. É facultado aos coordenadores de área e a suas comissões de revisão do Qualis optar por atribuir uma classificação mais elevada para um pequeno número de revistas nacionais que sejam consideradas relevantes. Esse recurso tem ajudado diversas revistas nacionais a receber um número maior de artigos; assim, elas podem selecionar os melhores e, com isso, aumentar o fator de impacto. O mecanismo chamado de “indução” deve estar claramente explicitado no documento de atualização do Qualis e ser aprovado pelo CTC-ES. 7 SÉTIMO PONTO: ATUALIZAÇÃO DA CLASSIFICAÇÃO

A atualização do Qualis Periódicos é feita anualmente, cerca de um a dois meses após a data de chancela dos dados dos programas. A Diretoria de Avaliação da Capes estabelece um período para que o Qualis seja atualizado por todas as áreas de avaliação.

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A área interdisciplinar é a única que realiza a atualização do Qualis em data separada porque, dadas as características de seus programas, habitualmente sua classificação é construída com base na combinação das classificações realizadas pelas áreas disciplinares. Essa atualização ocorre quase sempre no mês de julho, quando o JCR divulga os fatores de impacto relativos ao ano anterior. Desse modo a nova classificação pode refletir o desempenho dos periódicos no ano da publicação dos artigos. No entanto, devido a problemas de calendário da própria DAV, algumas vezes a atualização é feita antes que essas informações estejam disponíveis e, nessa hipótese, são utilizados os indicadores do ano anterior. Eventualmente, no caso de revistas que vêm apresentando mudança acelerada de indicadores, tal procedimento pode ser prejudicial.

Uma vez realizada a atualização e chancelada a nova classificação, não é possível realizar correções até o ano seguinte. Esse é um motivo constante de reclamações de coordenadores de programas e de editores científicos sempre que consideram ter havido erro por parte da comissão ou uso de dados desatualizados. Em geral, quem não conhece de perto o funcionamento da agência não consegue entender por que não é possível fazer uma correção em um banco de dados eletrônico assim que um erro é detectado. No entanto, devido à sobrecarga que os sistemas informatizados apresentam e à própria escassez de funcionários da área técnica, operacionalmente torna-se inviável realizar modificações fora do período de atualização. 8 OITAVO PONTO: POR QUE UMA MESMA REVISTA POSSUIU CLASSIFICAÇÃO TÃO VARIADA ENTRE AS ÁREAS?

Como cada uma das áreas de avaliação possui seus próprios critérios classificatórios e deve classificar todos os periódicos que constem em sua lista, a mesma revista científica pode ter classificações bastante distintas em cada uma das áreas de avaliação. Além disso, para cumprir as regras comuns, dando destaque aos periódicos do próprio campo de conhecimentos, várias áreas rebaixam periódicos de outros campos, mesmo que eles cumpram os critérios para uma melhor classificação. Esse aspecto do Qualis é fonte de inúmeros mal-entendidos entre coordenadores de programas, docentes e editores científicos.

Do ponto de vista dos editores é sempre difícil de compreender como o mesmo periódico pode assumir classificações tão diferentes. Se os critérios usados para a classificação são baseados em características do periódico, não é fácil aceitar que a mesma revista possa ser classificada em praticamente qualquer dos estratos, dependendo da área de avaliação. Essas discrepâncias podem ter a ver com diferentes pontos de corte adotados para a classificação com base nos indicadores de impacto, uma vez que a distribuição desses valores é variável conforme a área de conhecimento; mas também podem resultar de julgamentos da relevância do periódico para determinada área do conhecimento aliados, geralmente, a concepções fortemente disciplinares. Quadro 2 – Exemplos de classificação homogênea e heterogênea de periódicos nas diferentes áreas de avaliação, Qualis 2013-2014

Área de Avaliação Science (FI = 17,710)

Nature (FI = 42,351)

Anais da Academia Brasileira de Ciências

(FI = 1,065)

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Astronomia - A1 - Biodiversidade A1 A1 - Biotecnologia A1 A1 - Ciências Agrárias A1 A1 A1 Ciência de Alimentos - - B2 Ciências Ambientais A1 A1 B1 Ciências Biológicas I A1 A1 - Ciências Biológicas II A1 - B4 Ciências Biológicas III A1 - - Engenharias II - A1 - Geociências - A1 B1 Medicina I - - B2 Medicina II - A1 B2 Medicina Veterinária - - B2 Química - A1 B2 Zootecnia - - B1 Fonte: Webqualis Capes. Disponível em: <www.sucupira.capes.gov.br>. Acesso em: out. 2015.

O Quadro 2 mostra a classificação de três periódicos científicos que não são dedicados a uma disciplina ou campo científico em particular. Os três são dedicados a todos os campos científicos. Evidentemente, periódicos com fatores de impacto tão altos quanto os da revista Science ou Nature garantem que qualquer que seja a área de conhecimento, ela será classificada no estrato A1. Já os Anais da Academia Brasileira de Ciências, embora com um fator de impacto bom para uma revista brasileira, dependendo dos pontos de corte utilizados em cada área de avaliação, teve classificações bastante diferentes, variando entre o estrato A1 e o B4. Quadro 3 – Exemplos de classificações heterogêneas para periódicos brasileiros de escopo multidisciplinar, Qualis 2014 Área de avaliação

Cadernos de Saúde Pública

(FI=1,097)

Dados – Revista de Ciências Sociais

(FI= 0,327)

Ciência & Saúde Coletiva

(FI=0,761)

Direito A1 A1 - Ciência Política - A1 - História - A1 - Planejamento Urbano, Regional e Demografia

A1 - A2

Sociologia - A1 - Administração e Turismo A2 A2 - Antropologia A2 - - Ciências Ambientais A2 B1 - Ciências Sociais Aplicadas I A2 - - Enfermagem A2 - B1 Ensino A2 - A2 Odontologia A2 - B1 Psicologia A2 - A2 Saúde Coletiva A2 - B1 Serviço Social A2 A2 - Ciências Agrárias B1 B2 - Educação Física B1 - B1 Engenharias III B1 - - Nutrição B1 - - Economia B2 B2 - Educação B2 - - Engenharias IV B2 - -

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Medicina I B2 - B3 Medicina II B2 - B3 Medicina Veterinária B2 - - Biodiversidade B3 - - Biotecnologia B3 - - Farmácia B3 - B3 Medicina III B3 - - Ciências Biológicas I B4 - - Ciências Biológicas II B4 - - Ciências Biológicas III B4 - - Ciência da Computação C - - Fonte: WebQualis Capes. Disponível em: <www.sucupira.capes.gov.br>. Acesso em: out. 2015.

O Cadernos de Saúde Pública, editado pela Escola Nacional de Saúde Pública, da Fiocruz, é o periódico que aparece referido em maior número de áreas de avaliação (30) e também o que apresenta a maior diversidade de classificações, indo de A1 a C, com exceção do estrato B5. Como uma revista que atende a todos os requisitos formais, arbitrada, indexada nas mais importantes bases bibliográficas e com fator de impacto acima de 1 pode ser classificada no estrato C? Ocorre que o documento do Qualis da área de Ciência da Computação informa que utiliza o fator de impacto normalizado e introduz um deflator de dois níveis para periódicos de outras áreas do conhecimento. Supondo que a normalização seja feita com base na média e no desvio-padrão do fator de impacto dos periódicos da área, isso explicaria a posição do Cadernos de Saúde Pública no estrato C.

A revista Dados, publicada pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos, da UERJ, é a revista de Ciências Sociais mais bem indexada e com o maior fator de impacto entre as brasileiras nesse campo. Nesse caso, as classificações vão de A1 a B2, refletindo a relevância atribuída ao periódico nas diferentes áreas em que ele é utilizado.

Finalmente a revista Ciência & Saúde Coletiva, publicada pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), apresenta classificações nos estratos A2, B1 ou B3 nas dez diferentes áreas em cujos programas os autores estão inseridos como docentes.

A única maneira de solucionar essa contradição entre diferentes classificações para as mesmas revistas seria a adoção de uma lista única, na qual cada periódico fosse classificado apenas pela área ou pelas áreas de conhecimento incluídas em seu escopo de publicação. Revistas dedicadas à ciência em geral, tais como Science, Nature, Anais da Academia Brasileira de Ciências, Annals of the New York Academy of Sciences, Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America, poderiam ser classificadas pela área interdisciplinar. Periódicos cujo escopo abrangesse mais de uma área de avaliação seriam classificados em comum acordo. Desse modo, o Qualis Periódicos poderia ser uma listagem livre de contradições e, desde que cada área, ao classificar seu conjunto de periódicos, adotasse as regras comuns, a listagem final também cumpriria os mesmos requisitos. Uma vantagem adicional dessa alternativa seria aprimorar o processo de classificação, uma vez que cada área teria uma lista menor de periódicos para analisar, podendo dedicar maior tempo e cuidado à tarefa de avaliação. 9 NONO PONTO: COMENSURABILIDADE ENTRE AS ÁREAS DE AVALIAÇÃO

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Conforme já mencionado anteriormente, há uma preocupação constante no CTC-ES, no Conselho Superior e nas pró-reitorias de pós-graduação e pesquisa das universidades com a comparabilidade dos resultados da avaliação dos PPGs, visto que esses resultados são utilizados para orientar uma série de ações e políticas no interior das universidades e no país em geral.

Apesar da padronização dos instrumentos de avaliação, será que um PPG nota 5, 6 ou 7 em uma dada área de avaliação é comparável com outro PPG nota 5, 6 ou 7 em outra área de avaliação? Esta pergunta não tem, evidentemente, uma resposta simples. A tendência do sistema de avaliação da pós-graduação tem sido a de adotar o princípio do “ranqueamento” em vez do princípio essencialista. Ou seja, os programas são avaliados em cada uma das áreas, e as notas são atribuídas não a partir de características essenciais, mas, antes, pela posição relativa daquele programa no conjunto dos programas da área. Desse modo, pode-se dizer que a comparação entre programas com a mesma nota em áreas de avaliação diferentes indicaria apenas que eles ocupam a mesma posição relativa nos PPGs da área sem, contudo, significar que têm qualidade equivalente quanto aos quesitos avaliados.

Algumas áreas de avaliação tentam adotar o princípio essencialista definindo “tipos ideais” para cada uma das notas, isto é, definindo que características, em relação a cada um dos quesitos, um PPG deve ter para receber determinada nota. Entretanto, essa postura acaba sendo pressionada pela ideia de que, assim, as comissões de avaliação estariam “prejudicando” a própria área na comparação com outras áreas de conhecimento.

Focando especificamente o Qualis como um desses instrumentos de padronização da avaliação, é frequente ouvir de membros do Conselho Superior ou de coordenadores de programas menos afeitos aos estudos bibliométricos que tal ou qual área não é rigorosa na atribuição de suas notas porque os pontos de corte que utiliza para construir os estratos do Qualis são inferiores àqueles usados por áreas consideradas como de referência (geralmente as Ciências Exatas ou Biológicas). Ou ainda, em se tratando das Ciências Humanas e Sociais, que é inaceitável ter classificados nos estratos superiores periódicos publicados exclusivamente em português, portanto, com circulação internacional limitada.

É sabido que os fatores de impacto são influenciados por muitos aspectos que não estão diretamente relacionados com a qualidade da produção, tais como o tamanho da comunidade científica em cada área, o prestígio de subáreas do conhecimento dentro de um mesmo campo, o número médio de autores por artigo, a língua da publicação, o país de residência dos autores, entre outros (LEEUWEN et al., 2001; WALTER et al., 2003; TAYLOR; PERAKAKIS; TRACHANA, 2008; RUANO-RAVINA; ALVAREZ-DARDET, 2012).

As diferentes áreas do conhecimento têm distribuições específicas e não comparáveis (GLÄNZEL; MOED, 2002). Análise de todos os periódicos indexados na base Scopus, segundo as áreas do conhecimento e com indicadores de impacto do ano de 2012, mostra que a distribuição dos fatores de impacto é muito variável. Considerando apenas as Ciências Exatas e da Terra, observa-se que o valor máximo do fator de impacto chega a 14,88 para os periódicos da Matemática e Ciência da Computação, 26,13 para os de Geociências, 39,73 para os de Química e 41,56 para os de Astronomia e Física. Na área das Ciências Médicas, o maior valor passa de 100. Portanto, não se pode simplesmente comparar valores do fator de impacto dos pontos de corte de cada estrato.

Do mesmo modo, é sabido que nas áreas de Ciências Humanas e Sociais até recentemente havia um número reduzido de periódicos indexados em bases

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bibliométricas; portanto, para a maioria dos veículos não havia nenhuma medida de impacto disponível, sem contar o fato de que parte da publicação nessas áreas se faz preferencialmente por meio de livros e coletâneas. Essa tradição começa a mudar pressionada pelo uso crescente desses indicadores em diversos processos de avaliação do desempenho acadêmico. Hoje é possível encontrar na base SCImago um número considerável de periódicos classificados em Ciências Sociais (5.092), inferior apenas ao número dos periódicos da área médica. Assim, em médio prazo seria possível pensar em um uso crescente desses indicadores abarcando todas as áreas de avaliação. Esse problema requer dois conjuntos de soluções, uma aplicável àquelas áreas de avaliação que utilizam medidas de impacto para a construção do Qualis Periódicos; outra, aplicável àquelas áreas que não utilizam nenhuma medida de impacto por não ser tradição em suas áreas de conhecimento.

Para as 31 áreas de avaliação que utilizam medidas de impacto na construção do Qualis, a opção de tornar as classificações comensuráveis, ou seja, capazes de expressar grandezas diferentes, porém com o mesmo significado relativo em cada campo, seria a adoção de percentis preestabelecidos para cada um dos estratos (BORNMANN, 2013). Por exemplo, se todas as áreas adotassem como ponto de corte para o estrato A1 o percentil 95 da distribuição de um determinado indicador ou conjunto de indicadores de impacto, seria imediatamente comparável a produção qualificada nesse estrato para as diferentes áreas do conhecimento, visto que os periódicos aí classificados corresponderiam aos 5% superiores, isto é, aos 5% com maior impacto em cada uma das áreas. Quadro 4 – Fatores de Impacto correspondentes a percentis selecionados da distribuição dos periódicos das áreas de Ciências Exatas e da Terra, 2012 Percentil Matemática Computação Física Química Geociências P25 0,380 0,430 0,340 0,530 0,240 P50 0,645 1,010 0,850 1,310 0,750 P75 1,118 1,920 1,790 2,640 1,690 P90 1,900 3,158 3,266 4,286 2,661 P95 2,441 4,032 5,926 5,906 3,290 Fonte: elaboração própria.

Esses poderiam ser os pontos de corte para os estratos, de tal modo que, em qualquer área de avaliação, os periódicos classificados no estrato B5 fossem aqueles com fator de impacto igual a zero ou sem fator de impacto medido; no estrato B4 estariam os periódicos com fator de impacto maior do que zero e inferior ou igual ao valor do percentil 25; no estrato B3 ficariam as revistas com impacto entre o percentil 25 e a mediana (P50); no estrato B2, aquelas com impacto entre a mediana e o percentil 75; no estrato B1, os periódicos com impacto entre o percentil 75 e o percentil 90; no estrato A2, as revistas com impacto entre o percentil 90 e o 95, e, finalmente, no estrato A1, aquelas acima do percentil 95.

Assim, o Qualis das áreas seria imediatamente comparável, e a produção dos PPGs poderia ser avaliada com base na proporção de artigos em cada estrato, pois eles teriam todos o mesmo sentido. Para as demais áreas que ainda não utilizam medidas de impacto, seria necessário estabelecer critérios de transição e políticas de incentivo aos periódicos nacionais para que busquem a indexação nas bases bibliométricas; e, aos autores, para que comecem a publicar em periódicos já indexados nessas bases.

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Somente dessa forma, será possível dar maior visibilidade à produção científica do país e incentivar a publicação de pesquisas de qualidade em todas as áreas do conhecimento. Quadro 5 – Fatores de impacto correspondentes a percentis selecionados da distribuição dos periódicos das áreas de Ciências Sociais e Humanas, 2012 Percentil Economia Administração Educação Geografia Direito P25 0,193 0,240 0,160 0,090 0,130 P50 0,515 0,580 0,460 0,315 0,380 P75 1,130 1,230 0,940 0,733 0,870 P90 1,980 2,229 1,500 1,236 1,314 P95 2,833 3,170 2,052 1,787 1,701 Fonte: elaboração própria.

O Quadro 5 mostra a distribuição dos fatores de impacto para cinco áreas selecionadas das Ciências Sociais e Humanas. O mesmo princípio discutido anteriormente se aplicaria neste caso. Atualmente na base SCImago estão listadas cinco revistas brasileiras de Administração, sete de Economia, três de Direito, seis de Geografia e 18 de Educação. Destas, tomando por base os pontos de corte apresentados na tabela, três seriam classificadas no estrato B5, 25 no estrato B4 e 11 no estrato B3, pois nenhuma delas apresenta fator de impacto acima do valor mediano. Entretanto, uma vez que na atualidade os artigos produzidos na pós-graduação brasileira não se destinam a essas publicações, seria necessário estabelecer alguns critérios comuns que permitissem estipular a equivalência entre as classificações das diferentes áreas. Por exemplo, para ser classificada no estrato A1, a revista deveria estar indexada em pelo menos uma base bibliométrica, ter impacto diferente de zero e ter artigos publicados em outra língua além do português. E assim, sucessivamente, poderiam ser determinados critérios qualitativos para o preenchimento de cada estrato. Se esses esforços, por um lado, restringem a flexibilidade de cada área no estabelecimento de suas próprias regras, por outro, poderiam contribuir para um sistema mais coeso e racional de avaliação. 10 DÉCIMO PONTO: USOS INDEVIDOS DO QUALIS PERIÓDICOS

O Qualis Periódicos, como anteriormente assinalado, é um dos instrumentos utilizados na avaliação dos programas de pós-graduação, tendo sido introduzido fundamentalmente para qualificar a produção bibliográfica sob a forma de artigos dos mencionados programas. Há, no entanto, usos indevidos ou inadequados desse instrumento, seja no processo de avaliação, seja em outros âmbitos da política acadêmica ou científica.

Apesar das tentativas da Diretoria de Avaliação de estabelecer regras comuns, nem todas as áreas do conhecimento fazem um uso adequado desse instrumento. A intenção inicial de utilizar os estratos para efetivamente discriminar de forma adequada os distintos tipos de produtos pode ficar seriamente comprometida se no processo de construção os estratos não forem exaustivos e mutuamente exclusivos. Além disso, a proposta original pressupunha que a produção seria avaliada por meio da pontuação obtida pela multiplicação do número de artigos em cada estrato pelo seu peso ou fator de ponderação. Assim, se em uma área for atribuído o peso 10 aos artigos no estrato A1 e o peso 5 aos artigos no estrato B1, haveria equivalência entre

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um artigo A1 e dois artigos B1. Entretanto, nem todas as áreas vêm utilizando o Qualis dessa forma, preferindo simplesmente comparar proporções de artigos nos estratos superiores ou acima de um determinado estrato. Desse modo, os sete estratos não são efetivamente utilizados.

Há, contudo, outros usos indevidos do Qualis fora do âmbito da avaliação dos programas que deveriam ser evitados. Entre esses possíveis usos, três serão aqui destacados: pelos editores científicos, pelos comitês de assessoramento do CNPq e pelas próprias universidades ou institutos de pesquisa na avaliação de docentes e pesquisadores. O uso da classificação do Qualis pelos editores científicos para obtenção de fomentos e pelas agências para aprová-los é bastante discutível em se tratando da competição entre periódicos dos diferentes campos científicos, na medida em que as classificações são incomensuráveis, como anteriormente demonstrado. As características da classificação com suas regras de proporções pré-fixadas para os estratos superiores, e os diferentes critérios classificatórios usados pelas diferentes áreas, além da possibilidade do recurso à indução ou sobrevalorização de determinados periódicos, tornam seu uso como aferidor da qualidade do periódico, fora do âmbito da avaliação de programas, bastante discutível. Um periódico pode ter qualidade e atender a todos os critérios formais desejáveis, mas, por ser publicado em português e receber poucas citações nas bases internacionais, estar classificado em um estrato como B3 ou B4. Isso não significa que não deva receber o fomento adequado, inclusive para superar essa situação, podendo, por exemplo, traduzir todos os artigos para o inglês e, assim, aumentar sua probabilidade de receber citações.

Nas avaliações dos pesquisadores feitas pelos comitês assessores do CNPq para a concessão de bolsas de produtividade, de auxílios diversos ou de fomento à pesquisa, o uso do Qualis para avaliar a produção científica individual é bastante incorreto e inadequado. Os comitês deveriam analisar detidamente os critérios usados em cada área de avaliação e adaptá-los para as finalidades da avaliação da produção individual. Diversas áreas, como, por exemplo, a Saúde Coletiva, classificam no estrato B2 periódicos com impacto acima da mediana da área, portanto, todos os artigos publicados em periódicos B2 ou superiores poderiam ser considerados de qualidade equivalente. Tendo em vista as travas representadas pelas regras comuns da classificação, o que diferencia os periódicos classificados nos quatro primeiros estratos é apenas o valor dos indicadores de impacto, sem que, necessariamente, essas diferentes quantitativas remetam a diferenças fundamentais na qualidade da pesquisa publicada. Muitas vezes, a diferença tem mais a ver com o tema da pesquisa do que com a qualidade intrínseca, dados os diferentes padrões de citação observados nas subáreas de um mesmo campo científico. Do ponto de vista das avaliações do CNPq para a área de Saúde Coletiva, por exemplo, faria mais sentido separar os artigos usando apenas três estratos do Qualis, e não os sete originais. Os artigos publicados em periódicos classificados nos estratos B2 a A1 formariam um grupo, aqueles publicados em periódicos dos estratos B3 e B4 formariam outro grupo, e o terceiro seria formado pelos artigos publicados em periódicos do estrato B5.

As mesmas limitações apontadas para a avaliação da produção individual dos pesquisadores se aplicam à avaliação da produção docente para fins de promoções na carreira acadêmica ou para definição de incentivos financeiros definidos pelas universidades e outras instituições de ensino superior. Os comitês acadêmicos encarregados dessas avaliações teriam de adaptar o Qualis de cada uma das áreas de avaliação antes de aplicá-lo indiscriminadamente. Nesse caso em particular, como as avaliações, muitas vezes, implicam a comparação entre as diferentes unidades

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acadêmicas, o problema se torna ainda maior exatamente pela incomensurabilidade das classificações. 11 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como todo instrumento de classificação utilizado em processos avaliativos, o Qualis Periódicos apresenta uma série de vantagens, mas traz também uma série de dificuldades e problemas. Há margem para vários desenvolvimentos dessa ferramenta, tornando-a mais apropriada para a finalidade que motivou sua criação.

E, para que esse processo de desenvolvimento e aprimoramento ocorra, é necessário que exista melhor compreensão sobre os diferentes aspectos envolvidos. Em primeiro lugar, é preciso compreender os motivos e os pressupostos por trás do instrumento. Em segundo lugar, é essencial ter clareza sobre os princípios classificatórios adotados. Em seguida, é necessário combinar diferentes fontes de informação e indicadores de impacto, buscando minimizar as limitações inerentes a cada um, e, finalmente, é importante desenvolver um sistema que permita a comparação entre diferentes áreas e elimine as contradições atualmente existentes no sistema.

Ten things you should know about the Qualis Abstract This article aims to address ten key points to understand the Qualis (classification of journals) and thus answer questions that are often presented to area coordinators by scientific editors, teachers and students of graduate programs. The questions will be presented in order to clarify aspects applicable to all areas of evaluation whenever possible. Some particular aspects will build on the experience of Public Health area. Keywords: Scientific Production. Graduate Course Evaluation. Journals

Classification. Assessment Tools. Diez cosas que vosostros debeis saber acerca del Qualis Resumen Este artículo trata de abordar diez puntos clave para entender el Qualis periódicos y así responder a las preguntas que a menudo se presentan a coordinadores de área por editores científicos, profesores y estudiantes de los programas de postgrado. Los tópicos se presentarán a fin de aclarar los aspectos aplicables a todos los ámbitos de la evaluación siempre que sea posible. Algunos aspectos particulares se basarán en la experiencia de la área de Salud Colectiva. Palabras clave: Producción Científica. Evaluación de Posgrados. Clasificación de

Periódicos Científicos. Herramientas de Evaluación.

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Notas * Doutora em Medicina Preventiva pela Universidade de São Paulo (USP) e professora-adjunta da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: [email protected]. Referências BARATA, R. B. A ABRASCO e a pós-graduação stricto sensu em Saúde Coletiva. In: LIMA, N. T.; SANTANA, J. P.; PAIVA, C. H. A. (Eds.) Saúde Coletiva: a ABRASCO em 35 anos de história. Rio de Janeiro: Fiocruz/Abrasco, 2015 BARRETO, M. L.; ARAGÃO, E.; SOUSA, L. E. P. F.; SANTANA, T. M.; BARATA, R. B. Diferenças entre as medidas do índice h geradas em distintas fontes bibliográficas e engenho de busca. Revista de Saúde Pública, São Paulo, SP, v. 47, n. 2, p. 231-238, 2013. BORNMANN, L. How to analyze percentile citation impact data meaningfully in bibliometrics: the statistical analysis of distributions, percentil rank classes and top-cited papers. Journal of the American Society for Information Science and Technology, Carolina do Norte, USA, v. 64, n. 3, p. 587-595, 2013. COORDENAÇÃO DE APERFEIÇOAMENTO DE PESSOAL DE NÍVEL SUPERIOR – CAPES. CAPES 60 anos. Revista Comemorativa 2011. Disponível em: <https://www.capes.gov.br/images/stories/download/Revista-Capes-60-anos.pdf>. Acesso em: 5 out. 2015. FERREIRA, M. M.; MOREIRA, R. L. Capes. 50 anos. Depoimento ao CPDOC/FGV. Brasília, 2002. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/me001600.pdf>. Acesso em: 5 out. 2015. GLÄNZEL, W.; MOED, H. F. Journal impact measures in bibliometric research. Scientometrics, v. 53, n. 2, p. 171-193, 2002. LEEUWEN, T. H. et al. Language biases in the coverage of the Science Citation Index and its consequences for international comparison of national research performance. Scientometrics, v. 51, n. 1, p. 335-346, 2001. LINDSEY, D. Using citations counts as a measure of quality in science measuring what’s measurable rather than what’s valid. Scientometrics, v. 15, n. 3-4, p. 189-203, 1989. RUANO-RAVINA, A.; ALVAREZ-DARDET, C. Evidence-based editing: factors influencing the number of citations in a national journal. Annals of Epidemiology, v. 22, n. 9, p. 649-653, 2012.

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SJR – Journal Search – Scimago Journal & Country Rank. Disponível em: <www.scimagojr.com/journalsearch.php>. Acesso em: out. 2013 e out. 2015. TAYLOR, M.; PERAKAKIS, P.; TRACHANA, V. The siege of science. Ethics in Science and Environmental Politics, v. 8, p. 17-40, 2008. WALTER, G. et al. Counting on citations: a flawed way to measure quality. Medical Journal of Australia, v. 178, n. 17, p. 280-281, March 2003. WEBQUALIS CAPES. Disponível em: <www.sucupira.capes.gov.br>. Acesso em: out. 2015.

Recebido em 28/03/2016 Aprovado em 27/06/2016

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DIREITO & JUSTIÇA A revista da Escola de Direito da PUCRS

e-ISSN: 1984-7718 DIREITOS FUNDAMENTAIS | BIODIREITO

Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2016. ID 24691. 255

Direito Fundamental à vida e o Princípio da Autonomia da Vontade: uma visão

histórica diante das práticas abortivas

Fundamental right to life and the principle of autonomy of will: an historical view

forward practices abortifacient

BAEZ, Narciso Leandro Xavier i

Stephani Elizabeth Steffen ii

DOI: 10.15448/1984-7718.2016.2.24691

RESUMO: A presente pesquisa versa sobre o direito fundamental à vida e o princípio da autonomia da vontade no ordenamento jurídico brasileiro, em que faz referência a uma discussão em face do aborto analisado sob uma perspectiva histórica. Os estudos realizados têm por objetivo dissertar de forma breve sobre o significado e entendimentos doutrinários do direito fundamental a vida e do princípio da autonomia da vontade. Pretende-se também explicar quais são as espécies de abortos permitidos e proibidos no ordenamento jurídico pátrio, bem como sua história e alterações através dos tempos. Ainda, desenvolver a discussão sobre a prática do aborto no direito pátrio diante dos direitos supramencionados. Entre os pressupostos mencionados e destacados estão o direito fundamental a vida, o princípio da autonomia da vontade, e o instituto do aborto analisados em consonância com o princípio da dignidade humana que é o pilar da Constituição Federal. Palavras-chave: Direito Fundamental a Vida; Princípio da Autonomia da Vontade; Aborto.

ABSTRACT: This research is about the fundamental right to life and the principle of freedom of choice in the Brazilian legal system, which refers to a discussion in the face of abortion analyzed from a historical perspective. The studies aim to expound briefly on the meaning and doctrinal understanding of the fundamental right to life and the principle of freedom of choice. It also intends to explain what kinds of allowed and prohibited abortions in the

i Coordenador Acadêmico-Científico do Centro de Excelência em Direito e do Programa de

Mestrado em Direito da Universidade do Oeste de Catarina; Pós-Doutor em Mecanismos de Efetividade dos Direitos Fundamentais pela Universidade Federal de Santa Catarina; Doutor em Direitos Fundamentais e Novos Direitos pela Universidade Estácio de Sá, com estágio bolsa PDEE/Capes, no Center for Civil and Human Rights, da University of Notre Dame, Indiana, Estados Unidos; Mestre em Direito Público; Especialista em Processo Civil; Juiz Federal da Justiça Federal de Santa Catarina. Email: [email protected] .

ii Graduanda em Direito pela Universidade do Oeste de Santa Catarina – UNOESC Chapecó. Bolsista FAPE do Programa Mestrado em Direitos Fundamentais. Contato: [email protected] .

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Brazilian legal system, as well as its history and changes over time. Still, developing the discussion on the practice of abortion in parental rights on such rights. Among those mentioned and highlighted assumptions are the fundamental right to life, the principle of freedom of choice, and abortion institute analyzed in line with the principle of human dignity which is the pillar of the Constitution.. Keywords: Fundamental Right to Life; Principle of Freedom of Choice; Abortion.

INTRODUÇÃO

A presente pesquisa tem por base examinar mesmo que de forma sucinta o

direito fundamental à vida e o princípio da autonomia da vontade, tendo como

balizador o princípio da dignidade humana, tratando todos os direitos expressos e

implícitos na Constituição Brasileira de 1988 com o mesmo grau de hierarquia, ou

seja, verticalizados.

O estudo norteia-se pelo instituto do aborto, tema bastante controverso e

polêmico, enraizado culturalmente nas sociedades desde a antiguidade sob

diferentes aspectos. Embora a legislação brasileira venha evoluindo em que pese

alguns posicionamentos no que tange ao direito fundamental à vida e o princípio da

autonomia da vontade, no entanto ainda atrelados a tabus que não mais condizem

com a sociedade contemporânea.

Diante da vasta bibliografia produzida a respeito desses temas e das

diferentes vertentes teóricas que problematizam os assuntos, sem, no entanto,

alcançarem consenso, adota-se a postura científica de simplificar a sua abordagem,

dividindo-a em partes.

Primeiramente estudam-se o conceito de direitos fundamentais, para tanto,

analisa-se os direitos e princípios fundamentais, mais especificamente o princípio da

dignidade humana, seus entendimentos sob o enfoque doutrinário. Além disso,

aborda-se o direito fundamental a vida e o princípio da autonomia da vontade. Após,

disserta-se a respeito do instituto do aborto, tanto do ponto de vista histórico,

filosófico quanto jurídico, para enfim verificar a tutela jurídica do direito

fundamental à vida e do princípio da autonomia da vontade diante das práticas

abortivas.

O aporte teórico deste estudo pauta-se na pesquisa bibliográfica,

consubstanciada na leitura crítica de obras doutrinárias e julgados do Supremo

Tribunal Federal, utilizando-se da abordagem qualitativa para a consecução dos

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objetivos propostos.

1 DIREITO FUNDAMENTAL A VIDA E O PRINCÍPIO DA AUTONOMIA DA VONTADE:

ASPECTOS CONCEITUAIS

A grande problemática do direito fundamental à vida refere-se

principalmente ao conflito de interesses e consequentemente a colisão de princípios,

pois embora o direito a liberdade, autonomia da vontade e o direito à vida estejam

dispostos na Constituição Pátria com o mesmo grau de hierarquia existe

entendimentos que o direito à vida possua uma valoração superior e por vezes

inferioriza o direito a autonomia da vontade do indivíduo, ou seja, o direito a

liberdade da pessoa.

Visto sob uma perspectiva histórica os direitos fundamentais sempre

estiveram ligados ao aspecto político de cada sociedade tendo por principal objetivo

romper com a ideia de poderes ilimitados do Estado (GALINDO, 2003) buscando a

proteção do indivíduo, ou seja, a autonomia do cidadão em face do governo

restringindo assim sua intromissão na vida social (THEODORO, 2002).

Assim, os direitos fundamentais se tornaram basicamente instrumentos de

efetividade e garantia de concretização de uma vida digna tendo em vista que o fato

de existirem em inúmeras constituições ao redor do mundo contribuiu para a

concretização dos direitos humanos, bem como possibilita por meio de ações

judiciais devido à vinculação do Estado a defesa contra arbitrariedades. Portanto, os

direitos fundamentais são a positivação dos direitos humanos dentro de cada Estado

tendo por objetivo a realização da dignidade da pessoa humana (BAEZ, 2010).

A dignidade da pessoa humana foi consagrada como condição de

fundamento do nosso Estado Democrático (SARLET, 2012), considerada como um de

seus sustentáculos (PEIXINHO, 2003), sendo a Constituição Federal de 1988

entendida por excelência como garantidora desse instituto tido como elemento

basilar e informador dos direitos e garantias fundamentais (SARLET, 2012).

Hodiernamente, a tese sobre a dignidade da pessoa humana desenvolvida

por Immanuel Kant (1980) é referência para a maioria dos doutrinadores, nela Kant

afirma que o ser humano por ser possuidor de razão possui autonomia da vontade,

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se autodetermina, dessa forma vive de acordo com as leis que ele mesmo produz

sendo um fim em si mesmo o que o diferencia dos seres irracionais que apenas

servem como meio sendo considerados como meras coisas. O fato de possuir

dignidade impede substituição, logo não possui valor.

Dessa forma, o ser humano por ser possuidor de razão e detentor de

autonomia de vontade, consciente de seus atos possui dignidade, diferentemente de

seres irracionais tratados como meras coisas, objetos, ou seja, passíveis de

substituição, coisificação. Dito isso, percebe-se que a dignidade está acima de

qualquer preço, sendo exclusiva ao ser humano (BAEZ, 2010), e não somente por sua

condição humana, mas pelo fato de viver de acordo com seus próprios parâmetros e

decisões (COMPARATO, 2003).

O direito à vida é característico dos direitos de personalidade, sendo

indisponível pelo fato de ser direito à vida e não direito sobre a vida, bem como um

direito de ordem negativa, pois não se pode dispor da vida com ou sem

consentimento, sendo de valor supremo tutelado pelo Estado (Ó CATÂO, 2004).

Considerado também um direito de primeira dimensão1, nasceu com o advento das

revoluções francesas e norte-americanas, onde a burguesia reclamava por liberdades

individuais bem como a limitação dos poderes tidos pelos governos absolutistas.

Mas a proteção do direito à vida começou a ser realmente vista e tutelada

com maior rigor com o advento da Segunda Guerra Mundial, a partir de todas as

atrocidades e desrespeitos cometidos nos campos de concentração nazista, gerando

assim a consciência da proteção da dignidade humana a qualquer custo (PIOVESAN,

2011).

A Organização das Nações Unidas - ONU órgão criado com o intuito de

celebrar e promover internacionalmente a paz e a segurança mundial teve como

precursora a Liga das Nações estabelecida em 1919 durante a Primeira Guerra

Mundial que possuía previsões genéricas relativas a Direitos Humanos, embora

somente com a ONU em meados do século XX que ocorreu a verdadeira

1 Direitos fundamentais de Primeira Dimensão são os direitos conquistados pelo indivíduo em face do Estado, consagrados no período do liberalismo e implantados nas primeiras constituições. Os Direitos contemplados são: direito a vida, direito a liberdade, direito a propriedade e igualdade formal. (GALINDO, 2003)

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consolidação dos Direitos Humanos. Seu principal instrumento, a Declaração

Universal dos Direitos Humanos estabeleceu no Art. III “que toda pessoa tem direito

à vida, à liberdade e à segurança pessoal”. A partir disso, diversos pactos e tratados

foram firmados em todo o mundo (PIOVESAN, 2011).

O Brasil no que tange a proteção ao direito à vida somente trouxe

especificamente positivado no texto constitucional de 1988 na chamada Constituição

Cidadã, que prevê no artigo 5º que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de

qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no

País a inviolabilidade do direito à vida”, bem como dos demais direitos que dela

nascem (SARLET, 2012). O direito à vida foi inserido no rol dos direitos fundamentais,

assumindo posição de valor superior em relação aos demais direitos de acordo com

diversos doutrinadores, assegurando desta forma não só o direito à vida dos

nacionais como também dos estrangeiros, e dos seres humanos de forma geral.

Dentre as sete constituições do Brasil, a constituição de 1988, foi pioneira

no que diz respeito a Direitos Humanos, embora as demais Constituições não

trouxessem expressamente à proteção a vida, esta era tida como inata, pois

indiretamente se referia nas leis infraconstitucionais, assim passou a sua positivação

diretamente no texto constitucional em 1988 para que não houvesse mais dúvidas

da posição do país em que pese à dignidade humana e o respeito ao próprio ser

humano. A partir de então as monstruosidades da Segunda Guerra Mundial e os

trinta anos de ditadura que o Brasil havia acabado de “superar” ficariam para trás de

acordo com o novo texto constitucional.

Enquanto que a idéia de liberdade tornou-se mais forte com o advento da

revolução francesa ocorrida em 1789 em que o povo passa a se autodeterminar,

exercer sua autonomia da vontade sob a forma de legislar suas próprias leis e assim

findando uma era dos governos despóticos (BOBBIO, 1992).

Kant (2004) desde a revolução francesa defende a tese da

autodeterminação, onde o princípio da autonomia da vontade é a capacidade que

somente os seres racionais têm de se auto-determinar e agir de acordo com a

representação de certas leis, visto ser um princípio norteado pela dignidade da

natureza (SARLET, 2011). Assim, acredita que a verdadeira finalidade do Estado é dar

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liberdade ao seu povo, para que com ela busque sua felicidade plena (BOBBIO,

1992). Nesse sentido menciona que o homem é um fim em si mesmo não podendo

ser coisificado, sendo um fim e não um meio, pois não possui um preço, possuindo

assim dignidade.

De acordo com Berlim (1981), muitas são as perspectivas que a ideia de

liberdade pode trazer, a liberdade individual pode ser considerada como conclusiva e

de acordo com essa tese ninguém poderia simplesmente retirá-la por ser intrínseca,

visto de forma adaptada como liberdade institucional que prevê a máxima de não

trate os outros como não gostaria de ser tratado, considerada como uma das bases

da moralidade liberal, e dessa forma a liberdade institucional é considerada como

um dos objetivos do homem.

A liberdade em si, apresenta-se num primeiro momento em uma dicotomia:

liberdade interna e liberdade externa. A primeira é subjetiva, a liberdade moral, é o

livre-arbítrio, como simples manifestação da vontade no mundo interior do homem,

a outra liberdade é objetiva, e consiste na reprodução externa do querer pessoal, é a

liberdade de poder fazer, mas esta liberdade implica o afastamento de obstáculo ou

coações, de modo que o homem possa agir livremente (SILVA, 2002).

A liberdade só existe, sempre e onde quer que se aproveite a oportunidade

de auto-realização, adquirindo forma na conduta efetiva dos homens. Portanto, a

principal ideia consiste em eliminar toda espécie de coação que se oponha no

caminho da liberdade. Nada deve restringir a auto-realização do homem no aspecto

de sua vida, restando apenas à sociedade preservar seus principais interesses em

prol da coletividade (DAHRENDORF, 1981).

A liberdade não pode ser conceituada por fórmulas simples ou conceitos

anárquicos, mas pelo estudo dos limites e das condições que, num campo e numa

situação determinada, podem tornar efetiva e eficaz a possibilidade de auto-

realização do homem. Laski (1934) afirma que por liberdade pode-se entender como

a ávida manutenção daquela atmosfera através da qual os homens têm

oportunidade de ser o melhor de si.2

2 “By liberty I mean the eager maintenance of that atmosphere in which men have opportunity to be

their best selves.”

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Sarmento (2005) exara que “É certo que a autonomia privada recebe

proteção da ordem constitucional, também está fora de dúvida que, dentro do

quadro axiológico delineado pela Constituição de 1988, essa tutela não é uniforme,

sendo muito mais intensa no plano concernente às escolhas existenciais da pessoa

humana do que no campo da sua vida patrimonial e econômica. Por outro lado,

considerando a noção de pessoa subjacente à ordem constitucional brasileira, é fácil

inferir que a proteção da autonomia privada, em cada caso, não pode prescindir de

considerações a propósito das condições efetivas de liberdade do sujeito de direito

no mundo da vida”.

O Ordenamento jurídico brasileiro prestigia o direito a liberdade no inciso X

do artigo 5º da Constituição Federal em que menciona que “são invioláveis a

intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a

indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”, dessa forma,

autorizando as pessoas como seres individuais a se auto-reger, com poder de

decisão sobre suas próprias vidas.

Portanto, conforme explanado por Sarmento (2005) “Não cabe ao Estado, a

qualquer seita religiosa ou instituição comunitária, à coletividade ou mesmo à

Constituição estabelecer os fins que cada pessoa humana deve perseguir, os valores

e crenças que deve professar, o modo como deve orientar sua vida, os caminhos que

deve trilhar. Compete a cada homem ou mulher determinar os rumos de sua

existência, de acordo com suas preferências subjetivas e mundividências,

respeitando as escolhas feitas por seus semelhantes, pois os particulares são

titulares de uma esfera de liberdade juridicamente protegida, que deriva do

reconhecimento da sua dignidade”.

Dessa forma, basta percorrer e analisar com a mínima atenção a

Constituição de 1988 para verificar que a liberdade que ela pretende assegurar não é

a mera liberdade formal ou negativa, circunscrita à ausência de constrangimentos

externos ao comportamento dos agentes. Pois, é flagrante no discurso constitucional

a preocupação com a efetividade da liberdade, e com a garantia das condições

materiais indispensáveis ao seu exercício, o que se evidencia diante do generoso

preâmbulo, do amplo rol de direitos sociais consagrado, e ainda dos princípios

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norteadores da ordem econômica e da ordem social brasileira acolhido pelo

constituinte (SARMENTO, 2005).

Mas poder ponderar entre o direito à liberdade, autodeterminação,

autonomia das escolhas frente ao também direito fundamental, o direito à vida é

demasiadamente complicado. Tendo em vista que o direito à vida é bastante

difundido na legislação vigente e aos poucos supera a ideia do divino ou do

entendimento do direito a vida como algo intocável, faz-se necessário o

entendimento que o princípio da inviolabilidade à vida tornou-se insuficiente e o ser

humano cada vez mais governa sua vida com autodeterminação, sendo autor e

responsável de sua própria existência, dessa forma usufruindo do seu direito de

autonomia (JUNGES, 2005).

2 ABORTO: UMA VISÃO HISTÓRICA

A palavra aborto tem origem no latim abortacus, derivado de aboriri

(perecer), e oriri (nascer). Significa a interrupção do processo natural de gestação,

resultando em morte pré-natal da vida humana intra-uterina (SILVA , 2002).

Conforme ensina Hungria (1955), a prática do aborto nem sempre foi

criminalizada, pois era comum nas civilizações gregas e hebraicas. De acordo com a

lei das XII tábuas na Roma antiga, o produto da concepção era considerado somente

como parte integrante do corpo da mulher onde ela poderia dispor conforme sua

vontade. Após, com os imperadores Adriano, Constantino, e Teodósio, a partir do

cristianismo é que o aborto passou a ser reprovado por ser uma lesão ao direito do

marido em que pese sua descendência.

Na idade média o teólogo Santo Agostinho com base na doutrina de

Aristóteles datada do século XIII, que considerava o aborto justificável, o considerava

crime apenas quando o feto tivesse recebido alma, o que se julgava correr quarenta

ou oitenta dias após a concepção segundo se tratasse de varão ou mulher “quod

hominem e quod feminam”, não considerando criminoso o aborto praticado antes do

decurso de tais períodos. A Igreja católica passou a adotar tal tese, mas após com os

conhecimentos biológicos e falta de certezas oferecida pela ciência, passa-se a

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considerar aborto a destruição do embrião, pois era já considerado sagrado

(WARNOCK , 2004).

Muito embora essa prática fosse corroborada na Grécia antiga pela grande

maioria de pensadores, sendo utilizado em grande escala, Hipócrates 460 a.C,

considerado o pai da medicina era severamente contra a qualquer médico ensinar

ou fornecer ajuda para práticas abortivas (ALMEIDA, 2000), legado esse deixado em

seu juramento difundido até os dias atuais.

Assim, com o passar dos tempos, o aborto foi sendo muito discutido na

sociedade contemporânea, onde diversas nações optaram por sua regulamentação

cada qual com suas peculiaridades, tais como os Estados Unidos, França, Itália,

Alemanha, Portugal, Espanha entre diversos outros enquanto outros se mantêm

terminantemente contra como o Chile (SARMENTO, 2007).

Roxin aduz sobre o fato de países como a Alemanha ser favorável a prática

do aborto em fetos que apresentam severas lesões hereditárias, dessa forma não

obrigando coercitivamente a genitora a suportar os encargos devidos aos problemas

ocasionados pelas deficiências do feto. O Brasil por sua vez é severamente contrário

a essa perspectiva (ROXIN, 2008).

Apesar de figurar entre as nações contrárias a prática, admite algumas

exceções, muito embora possua uma das legislações mais severas do mundo, sendo

tratado na legislação brasileira desde o Código Criminal de 1830. O auto-aborto não

era previsto como crime nem se atribuía à mulher qualquer atitude criminosa pelo

consentimento para o aborto praticado por terceiros, sendo o bem tutelado a

segurança da pessoa e da vida. Dessa forma veio o código de 1890, derrogando o

anterior e trazendo como conduta tipificada o auto-aborto, mas somente em 1940

com atual Código que nos rege que o legislador deixou o tema mais claro e

específico (SARMENTO, 2007).

O referido Código Penal do Império de 1890 então ampliou a imputabilidade

do crime de aborto punindo o auto-aborto, embora nos casos de desonra não fosse

tão rígido, pois ainda era visto como meio de ocultar desonra própria. A grande

importância desse código foi à introdução da noção de aborto legal ou necessário,

usado em casos onde não houvesse outro meio de salvar a vida da gestante.

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As espécies de aborto permitidas no ordenamento jurídico brasileiro,

previstas como excludente de ilicitude são o aborto intitulado terapêutico que

ocorre quando a vida da gestante corre risco de morte e o Aborto Humanitário,

também chamado de sentimental sendo outro caso de excludente de ilicitude. Essa

modalidade de aborto surgiu quando alguns países da Europa, na Primeira Guerra

Mundial tiveram suas mulheres violentadas por invasores, diante da indignação

patriota, criou-se a figura do aborto sentimental, para que essas mulheres não

fossem obrigadas a carregar no ventre os filhos de seus agressores.

Nos casos previstos como excludentes de ilicitude a mulher pode optar pelo

aborto ou não, somente nos casos de aborto por motivo de estupro que são exigidos

alguns requisitos tal como se a progenitora for menor de idade ou incapaz o

consentimento dar-se-á por seu representante legal. Nos casos de violência sexual, a

realização do aborto é praticada pela rede pública de saúde com a apresentação do

boletim de ocorrência juntamente com a declaração da gestante (BRAUNER, 2003).

Recentemente pacificado pelo Supremo Tribunal Federal por meio da ADPF-

Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54 que alega ofensa à

dignidade humana da mãe, que se vê obrigada a carregar no ventre um feto que não

teria condições de sobreviver após o parto, pois a tese adotada pelo relator consiste

na má formação do tubo neural, caracterizando-se pela ausência parcial do encéfalo

e do crânio, resultante de defeito no fechamento do tubo neural durante a formação

embrionária. Dessa forma, segundo a ciência médica, causa-se morte em 100% dos

casos, o feto se alcançar o final da gestação, sobrevive minutos ou dias no máximo,

visto que para o direito é um natimorto cerebral (STF, 2012).

O voto do relator trouxe como dado relevante o fato do Brasil figurar em

quarto colocado em que pese casos de fetos anencefálicos, ficando atrás apenas do

Chile, do México e do Paraguai, alem de trazer o direito à vida não como um direito

intocável e absoluto, mas sim, ganhando contornos mais amplos e atraindo proteção

estatal de forma mais intensa, a medida que ocorre o seu desenvolvimento (STF,

2012).

Visto que não se coaduna com o princípio da proporcionalidade proteger

apenas um dos seres da relação, privilegiar aquele que, no caso da anencefalia, não

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tem sequer expectativa de vida extra-uterina, aniquilando, em contrapartida, os

direitos da mulher, sendo que o resultado final será a morte do feto, indo de

encontro aos princípios basilares do sistema constitucional, mais precisamente à

dignidade da pessoa humana, à liberdade, à autodeterminação, à saúde, ao direito

de privacidade, ao reconhecimento pleno dos direitos sexuais e reprodutivos de

milhares de mulheres (STF, 2012).

O ato de obrigar a mulher a manter a gestação, colocando-a em uma

espécie de cárcere privado em seu próprio corpo, desprovida do mínimo essencial de

autodeterminação e liberdade, assemelha-se à tortura ou a um sacrifício que não

pode ser pedido a qualquer pessoa ou dela exigido (STF, 2012).

Em 1994, na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento

realizada no Cairo o aborto foi considerado como um grave problema de saúde

pública, e em 1995 na Quarta Conferência Mundial sobre a Mulher realizada em

Beijing, adotou-se a recomendação que fosse revista às leis que punem as mulheres

que recorrem à interrupção voluntária da gravidez, sendo importante frisar que o

Brasil é signatário sem reservas de ambos os programas implantados nas

conferências. Dessa forma é nítido que o Brasil está violando direitos humanos

internacionalmente protegidos (PIOVESAN, 2007).

Visto que devido a estas conferências a comunidade internacional por meio

dos comitês da ONU sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, sobre a

Eliminação da Discriminação contra a Mulher e sobre Direitos Humanos

recomendaram ao Brasil uma revisão na legislação vigente para que possam garantir

os direitos inerentes às mulheres e que principalmente passem a tratar a entidade

do aborto como um grave problema de saúde pública (PIOVESAN, 2007).

Visto isso, é propício que se discorra sobre a tutela jurídica do direito

fundamental à vida e do princípio da autonomia da vontade diante das práticas

abortivas, analisando os aspectos tanto dos direitos dados as mulheres quanto o

direito a vida do embrião/feto, onde busca-se enfim encontrar alternativas para que

todos os interessados tenham seus direitos assegurados.

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3 A TUTELA JURÍDICA DO DIREITO FUNDAMENTAL À VIDA E OS LIMITES DO

PRINCÍPIO DA AUTONOMIA DA VONTADE DIANTE DAS PRÁTICAS ABORTIVAS

A vida é tratada e entendida por diversas perspectivas nas mais diversas

civilizações, bem como divergente dentro de uma mesma sociedade ao ponto de

proteger o embrião fecundado no corpo da genitora com extrema rigidez ou

simplesmente ser favorável ao aborto até o momento do nascimento. Ocorre, que a

simbiose no corpo da mãe pode vir a gerar colisões de interesse que somente serão

resolvidas por meio de ponderações (ROXIN, 2008).

Embora a vida intrauterina goze de proteção constitucional o grau de sua

intensidade é menor em comparação ao nascituro, mas é percebido que a proteção

dada desde o embrião aumenta consubstancialmente ao passo de seu

desenvolvimento, portanto não se equipara a vida intrauterina e a extrauterina

(SARMENTO, 2007).

O Código Penal Brasileiro não se preocupou necessariamente com uma

expressa posição referente ao início da vida, portanto é possível sustentar em tese

diversos posicionamentos, tais como o entendimento que o embrião não pode gozar

da mesma proteção que um homem já nascido, bem como nos casos de embriões

que se encontram extra uterinamente, casos esses crescentes hodiernamente

(ROXIN, 2008).

Ó Catão (2004) diz que o direito a vida propriamente dito está condicionado

ao nascimento com vida, sendo que o nascituro apenas possui uma mera expectativa

de direito à vida. Dessa forma ao analisar a diferença entre “vida humana e pessoa

humana” ao passo que são dois institutos diferentes, vê-se que o embrião é humano,

pois pertence à espécie homo sapiens sendo dotado de identidade própria e mesmo

dentro da gestante é um ser único, mas ainda não é pessoa, somente em potencial,

com seus direitos tutelados, mas não podendo ser equiparado ao tratamento dado à

pessoa (SARMENTO, 2007).

Sarmento (2007) acrescenta que esta visão intermediária que reconhece os

direitos dados à vida intrauterina atribuindo a ela proporção ligeiramente inferior à

dada a extra-uterina é amplamente aceita em que pese às demais Nações, sendo

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praticado por diversos tribunais inclusive estando em harmonia com a ordem

constitucional brasileira, visto que acima de tudo possui respaldo científico.

Importante ressaltar que esta é a análise de apenas um dos lados em suas

diversas perspectivas, mas quando entra-se no mérito do direito à vida em si, é

perceptível que inúmeros outros direitos fundamentais são afetados. Feriria o direito

a saúde da mulher, obrigá-la a conviver com o fruto traumático de um estupro ou

com a gravidez de anencéfalo que não teria chances de sobrevivência pós-útero,

seria um natimorto visto do ponto de vista jurídico.

A grande questão versa sobre se o feto tem direito intrínseco a vida ou não

e se a mulher grávida possui direitos menos relevantes em comparação, pergunta

esta extremamente complicada, tendo em vista o fato de ter-se interiorizado a ideia

de que tirar uma vida é algo ruim ou mau, mesmo embora no caso concreto não seja

ruim. Assim, acredita-se que mesmo que o feto não tenha direitos ou interesses eles

não podem de forma alguma ser violados, ou seja, acredita-se verdadeiramente na

ideia que a vida é sagrada independentemente de qualquer coisa (DWORKIN, 2009).

Para uma possível resolução desse impasse, Roxim admite duas hipóteses

que denomina como "solução de indicações" e "solução de prazo". Em princípio as

"solução de indicações" são entendidas como havendo punibilidade para o aborto,

contudo, pode vir a ser justificado e impunível desde que realizado por um médico a

requerimento da gestante baseado em situações como perigo de vida à gestante,

gravidez decorrente de abuso sexual entre outros. Enquanto, a "solução de prazo"

permite dentro de determinado prazo, geralmente um lapso temporal de três meses

a requerimento da mãe interromper a gestação sem qualquer justificativa, muito

embora após esse prazo somente com prescrição médica (ROXIN, 2008).

Cabe mencionar que as divergências entre a proibição e a liberação do

aborto basicamente são fundadas em valores morais, filosóficos e, sobretudo

religiosos e no que se refere ao direito à vida, necessário se faz questionar os direitos

do indivíduo de forma ampla, pois todos de forma geral são tutelados igualmente

pelo Estado, mas ao passo que exista uma busca de obrigar este sem considerar os

demais vieses, perde-se o princípio basilar da igualdade, isto levando em

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consideração o que move tal conduta, se é exclusivamente por razões públicas ou se

deixar ser afetada por questões externas como a religiosa (SARMENTO, 2007).

Na Alemanha, por exemplo, o aborto deve ser realizado por médico a

requerimento da gestante no lapso temporal de 12 semanas desde a concepção,

tendo sido submetida a orientação da "repartição de aconselhamento em casos de

conflitos na gravidez" em pelo menos três dias anteriores a cirurgia. Esse

aconselhamento tem um viés de encorajamento a gestante com o propósito de

manter a gestação responsável e consciente, entendendo que a decisão final só cabe

a ela (ROXIN, 2008).

Roxim (2008) assevera que os interesses vitais da mulher devem prevalecer

sobre os do embrião,mas que de qualquer forma o Tribunal constitucional alemão

peca no mundo dos conceitos jurídicos, pois admitir um aborto até os três primeiros

meses de gestação trata-se de unilateralidade, além de fazer referência apenas a

realidade do ponto de vista social, embora a solução do aconselhamento traga do

ponto de vista prático maior efetividade, muito embora uma mulher decidida a um

aborto possivelmente não retroagirá.

O embrião tanto do ponto de vista brasileiro quanto do alemão é similar,

pois é protegido somente contra o homicídio doloso, por meio da incriminação do

aborto. Tendo em vista que o momento específico do nascimento não é tratado com

exclusividade pelo direito brasileiro sendo apenas registrado no Código Civil com a

menção ao nascimento com vida, enquanto a Alemanha aduz já no início do

nascimento com as dores do parto, com isso, entende-se que lesões provocadas

esporadicamente durante o processo de nascimento deixariam de ser puníveis caso

fossem entendidas como conduta culposa (ROXIN, 2008).

Em que pese os direitos encontra-se de um lado a sociedade buscando

proteger a todos que nela façam parte, independente se for de forma subjetiva com

mera expectativa de vida ou de outros direitos das mulheres e seus interesses reais

devendo ser respeitada sua dignidade. Dessa forma encontra-se o conflito de

inúmeros direitos fundamentais envolvendo a dignidade humana, o usufruto da vida,

a liberdade, a autodeterminação, a saúde e o reconhecimento pleno de direitos

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individuais, especificamente, os direitos sexuais e reprodutivos de milhares de

mulheres (STF, 2012).

Dessa forma se faz necessário o entendimento que em nenhuma hipótese

um direito fundamental deve suprimir outro numa colisão, isso porque os princípios

não são eliminados como as normas que estão em desacordo com o ordenamento

jurídico. E com base nisso se entende que se deve sacrificar o mínimo para que o

máximo de direitos fundamentais possa vigorar (FREITAS, 2005).

Portanto, a liberdade e a igualdade, direitos estes tidos como fundamentais

são condições de convivência dos demais valores inexistindo hierarquia entre eles,

dessa forma devem ser vistos e usados como vetores para uma vida digna para todos

e não somente para os que compartilham dos mesmos pressupostos (STF, 2012).

Com isso, nota-se que o direito a vida e o direito a autonomia do corpo da

mulher dentre os outros princípios atingidos entram em colisão quando o tema do

aborto é iniciado, mas visto que esses princípios podem ser sopesados aplicando o

princípio da proporcionalidade buscando uma ponderação em que o resultado possa

ser visto em análise ao caso fático e jurídico trazendo uma maior justiça para os

interessados, visto que na seara da vida tudo está em constante desenvolvimento e

ocorrem mudanças instantâneas não podendo permanecer reféns de um direito ou

reféns de um direito estático.

Com isso o direito de forma alguma deve manter-se engessado visto a

medida da complexidade da sociedade que diverge muito da estabelecida pelo

código penal de 1940. Logo, não se aconselha manter o direito à vida como um

direito intocável, mas admitir a harmonização dos direitos fundamentais de acordo

com o princípio da dignidade humana.

CONCLUSÃO

Embora a Constituição Federal ratifique a posição nacional no que tange ao

direito à vida como direito fundamental, nota-se que o direito a liberdade e em

consequência a autonomia da vontade também direito fundamental mantém-se em

constante colisão ferindo o princípio da dignidade da pessoa humana, sendo este

norteador da legislação brasileira.

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A sociedade de forma geral continua sofrendo modificações, mudando

valores, o que é percebido claramente em que pese à entidade do aborto que

deveras foram às alterações sobre suas possibilidades, tanto de cunho filosófico,

religioso, social ou jurídico. E não pode-se deixar de mencionar que o Código Penal

vigente é datado do ano de 1940, deixando assim a letra da lei mais dura e em

descompasso com a realidade social. Bem como, considerando o fato do aborto não

ser novidade na contemporaneidade possuindo registros de sua prática nas mais

longínquas civilizações.

Ressalta-se ainda o fato do Brasil ser signatário de tratados internacionais

de proteção às mulheres e violá-los constantemente, apesar das recomendações dos

órgãos competentes que solicitaram uma legislação mais branda e adequada de

acordo com a realidade atual que levasse em consideração o problema social

vivenciado.

Logo, não se trata de ser favorável ou estar em desacordo com a prática do

aborto, se trata da possibilidade de ponderação entre os princípios fundamentais em

que passe a ser analisado e respeitado o direito de todos os envolvidos de acordo

com sua relevância, sem negligenciar o princípio da dignidade humana em favor de

tabus ou preceitos religiosos, entendendo que ter direito a uma vida digna é não a

proteção concedida à vida do embrião, mas também os direitos das mulheres em

todas as suas concepções respeitando o ideário de um Estado laico e pluralista.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, A. M de. Bioética e Biodireito. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2000. BAEZ, N. L. X. Direitos Humanos, Direitos Do Homem e a Morfologia dos Direitos Fundamentais. In; BAEZ, N. L.X.; LEAL. R. G.; MEZZAROBA, O. (Coord). –Dimensões Materiais e Eficaciais dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Conceito, 2010. BERLIM, I. Quatro Ensaios sobre a Liberdade. Tradução de Wamberto Hudson Ferreira-Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1981. BOBBIO, N. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. – Rio de Janeiro: Campus, 1992. BRAUNER, M. C. C. Direito, Sexualidade e Reprodução Humana: Conquistas médicas e o debate bioético. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. COMPARATO, F. K. A Afirmação histórica dos Direito Humanos. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2001.

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BAEZ, N. F. X. | STEFFEN, S. E. – Direito Fundamental à vida e o Princípio da... BIODIREITO

Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2016. ID 24691. 272

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Exceto onde especificado diferentemente, a matéria publicada neste periódico é licenciada sob forma de uma licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.

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DIREITO E LINGUAGEM: OS ENTRAVES LINGUÍSTICOS E SUA REPERCUSSÃO NO

TEXTO JURÍDICO PROCESSUAL

Daniel Roepke Viana*

Valdeciliana Da Silva Ramos Andrade**

Resumo: A pesquisa aborda a relação entre Direito e Linguagem, visto que a linguagem se materializa por meio da palavra que é a ferramenta mor do profissional da área jurídica. Observa como os entraves linguístico-gramaticais interferem na compreensão textual e dificultam o andamento processual, busca-se também diagnosticar em que medida tais entraves interferem na construção da comunicação jurídica, produzida em textos processuais, além de se observar qual a responsabilidade do profissional de direito nesta área. Assim, foram verificados os problemas mais correntes, por meio da análise de peças processuais, e foram verificados problemas tanto da perspectiva gramatical quanto da perspectiva estrutural de construção de sentidos do texto jurídico.

Palavras-chave: Linguagem Jurídica. Juridiquês. Advogado.

* Advogado, Especialista em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, ex-aluno da FDV, bolsista de iniciação científica. E-mail: [email protected].

** Doutora em Língua Portuguesa pela UERJ, mestre em Linguística e Filologia pela UNESP.

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Direito e linguagem: os entraves linguísticos e sua repercussão no texto jurídico processual

Revista de Direitos e Garantias Fundamentais - n° 5, 201138

Abstract: The research deals with the relationship between Law and Language, because the language is materialized through the word which is the main tool of the Law professionals. It observes how the linguistic and grammatical obstacles affect the reading comprehension and hinder the procedural progress, It also seeks to diagnose to what extent these barriers affect the legal communication, produced in procedural texts, in addition to observe what is the responsibility of the Law professional in this area. Therefore, the most common problems were checked, through the analysis of procedural documents, and problems were observed both from the perspective of structural and grammatical construction of meanings of legal text.

Keywords: Legal Text. Juridiquês. Lawyer.

INTRODUÇÃO

A linguagem é o instrumento de trabalho do operador do Direito. Logo, o profissional da área jurídica deve dominar

o seu instrumento de trabalho – a língua portuguesa, neste estudo especificamente, a modalidade escrita. Além dos conhecimentos gramaticais, é importante saber articular as palavras e materializar argumentos em um texto de forma coerente, além de ser capaz de transmitir a mensagem ao receptor de forma clara e concisa.

Assim, Direito e linguagem são indissociáveis, mantém uma relação de interdependência, visto que o direito se concretiza efetivamente por meio da linguagem, neste sentido Calmon de Passos (2001, p.63-64) declara que:

[...] o Direito, mais que qualquer outro saber, é servo da linguagem. Como Direito posto é linguagem, sendo em nossos dias de evidência palmar constituir-se de quanto editado e comunicado, mediante a linguagem escrita, por quem com poderes para tanto. Também linguagem é o Direito aplicado ao caso concreto, sob a forma de decisão judicial ou administrativa. Dissociar o Direito da Linguagem será privá-lo de sua própria existência, porque, ontologicamente, ele é linguagem e somente linguagem.

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Revista de Direitos e Garantias Fundamentais - n° 5, 2011 39

Importante esclarecer que o texto jurídico sempre foi marcado por construções fraseológicas complexas e por um elevado grau de conhecimento da língua, não só no processo de estruturação textual, mas também no conhecimento profundo da gramática da língua portuguesa. Em virtude disso, o profissional do Direito destacou-se, por séculos, como referência na tradição de produzir bons textos e na tradição de ter amplo domínio da norma culta, no entanto essa imagem positiva tem sido depreciada por uma vasta quantidade de erros básicos referentes à utilização da língua e à estruturação da linguagem. Não bastassem os percalços decorrentes dos vícios de linguagem, eles estão sendo potencializados devido ao uso indiscriminado de arcaísmos e de latinismos.

Na verdade, os textos jurídicos têm sido afetados pela “fraseomania” dos operadores do direito, que possuem o vício de formular frases rebuscadas sem conteúdo relevante. Isso remete ao tão falado “juridiquês” que, ao invés de aproximar o jurisdicionado, cria um abismo entre quem busca seus direitos e a concretização do direito em si. Na verdade, esse prejuízo não é só para o cidadão comum que se vê distante do direito almejado, mas também é para o profissional do direito, visto que há o descrédito da justiça e, por consequência, do próprio operador jurídico.

Essas falhas inviabilizam destroem a estrutura textual e, consequentemente, a coerência no texto. Logo, ao se empregar entraves gramaticais e linguísticos, o profissional do Direito inviabiliza a compreensão textual, ou permite uma versão às avessas do que foi enunciado.

Esta pesquisa, financiada pela Faculdade de Direito de Vitória, como atividade de Iniciação Científica, averigua a relação entre Direito e linguagem, neste processo, busca vislumbrar se há entraves linguísticos no texto jurídico. Para tanto, emprega o método de abordagem hipotético-dedutivo (LAKATOS, 1991, p. 95), pois pressupõe um problema – os textos jurídicos processuais apresentam entraves linguísticos e gramaticais – para o qual se ofereceu uma solução provisória – nos textos jurídicos processuais, há determinadas construções que são exigidas pela linguagem jurídica clara, objetiva e bem estruturada –, disso produzimos um falseamento – como deve ser a estrutura textual da linguagem jurídica em textos processuais e qual é o papel do advogado no processo de produção de um texto jurídico-processual. Isso é o que se pretende averiguar por meio da pesquisa documental.

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Nesse sentido, a pesquisa documental é constituída por petições e contestações, as quais formam um corpus de análise. Neste, foram catalogadas 138 ocorrências, que foram selecionadas a partir da análise dos entraves gramaticais e dos casos de transgressão à coerência.

A PALAVRA

A palavra é um signo linguístico artificial que é um representante. Para cumprir essa sua função, o signo se compõe de duas

partes, quais sejam, significante e significado. O primeiro diz respeito à forma como o signo se materializa (que pode ser sonora, visual, olfativa, dentre outras) e o segundo refere-se à imagem mental que se forma a partir deste significante e essa imagem é uma convenção. Assim, as palavras são signos linguísticos e, como expõe José Carlos de Azevedo (2004, p. 139), são “[...] o mais elaborado, o mais versátil, o mais abrangente instrumento de criação, circulação e assimilação de representações do conjunto de nossas experiências da realidade” e, em sua peculiaridade, permite aos homens materializar conceitos que povoam as suas mentes e vestir de significados e características os objetos que os cercam. Além disso, elas são capazes de retratar todos os demais signos, revestindo-os de conceitos.

A palavra, como signo, seja na forma escrita ou na falada, evoca em nossa mente, quando a lemos ou ouvimos, um conceito, ou seja, um significado. Um mesmo vocábulo, no entanto, pode ter vários significados convencionados em dicionário. Um exemplo típico e oportuno de se mencionar é a palavra justiça. Manifestamente polissêmico, o termo pode, dentre as suas diversas acepções, significar equidade, honestidade e até mesmo o próprio poder judiciário.

Da mesma forma, um significado pode ser representado por mais de um significante. Nesse caso, está-se diante de palavras sinônimas, ou quase sinônimas. Embora sejam palavras fisicamente diferentes, podem, em determinado casos, evocar a mesma ideia, como ocorre com os vocábulos pensar, arrazoar, refletir, raciocinar e ponderar.

Para sabermos qual o significado pretendido pelo escritor do texto, ao escrever a palavra, é imprescindível considerar o contexto em que ela se encontra inserida. Levar em consideração o contexto

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implica, necessariamente, compreender as demais palavras com as quais a palavra em questão se relaciona no texto, pois umas fornecem elementos para a compreensão das outras e todas unidas formam o texto. Com isso, também se pretende dizer que o significado do texto é depreendido do todo, levando em consideração todas as palavras que o constroem. Assim, o texto só pode ser compreendido em sua plenitude, quando todas as palavras que o compõem interligam seus significados, formando uma rede, enfim, um todo significativo.

Como uma única palavra pode ensejar diversos significados, é de suma importância que o escritor seja prudente ao escrever seu texto. Ele deve tomar todas as precauções necessárias para que as palavras sejam compreendidas. Isso significa que o texto deve ser o mais claro possível para que as palavras contidas no mesmo sejam claras. Na verdade, isso é o que possibilita ao destinatário alcançar a mensagem transmitida pelo texto, na forma mais próxima da que foi concebida pelo emissor.

Desta forma, é imprescindível que o receptor conheça as palavras utilizadas pelo emissor e tenha possibilidade de aferir-lhes os significados que lhes são apropriados, a fim de que a mensagem seja apreendida adequadamente. Do contrário, haverá significante, uma vez que as palavras estão postas no texto, no entanto o outro não abstrairá delas o significado ou, então, poderá conferir-lhes significado diverso do idealizado pelo produtor do texto.

Tendo em vista que o texto é um todo significativo, construído pelos significados entrelaçados das palavras que o compõem, a presença de termos desconhecidos do leitor ou inadequados torna a compreensão do texto lenta e incompleta. Em determinados casos, tais palavras mal empregadas são capazes de tornar o texto incompreensível por completo para o leitor.

O advogado e a palavra

O profissional do Direito é, por excelência, o profissional da palavra. Ela é o seu instrumento de trabalho, conforme se depreende da própria Lei, no artigo 156 do Código de Processo Civil Brasileiro: “Em

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todos os atos e termos do processo é obrigatório o uso do vernáculo”. O termo vernáculo, utilizado no referido dispositivo legal, alude à pureza idiomática, à clareza e à correição no falar e no escrever pertinentes ao texto jurídico processual.

O art. 156 do Código de Processo Civil, por si só, já é suficiente para justificar o zelo que profissional do Direito deve ter pelo uso correto das palavras. Além disso, soma-se a essa exigência legal a própria realidade vivida por esses profissionais, uma vez que, em seu cotidiano, lidam com interpretação de textos, problemas de linguagem e polissemia de palavras.

Ao advogado, destaque-se, é devido um esmero maior ao lidar com as palavras, pois ele tem por dever legal e ético defender o(s) direito(s) de seu(s) cliente(s). Assim, a produção textual, além de fazer parte essencial de seu dia a dia, é um instrumento de se fazer justiça, na medida em que os seus textos visam garantir à pessoa por ele defendida em juízo a proteção/reivindicação de seu(s) direito(s).

Nesse ponto, é importante ressaltar que a própria Constituição confere às pessoas direitos que lhes são fundamentais e que, devido a isso, não são passíveis de disposição. Tais direitos, como a liberdade, a vida e a dignidade do indivíduo são oponíveis contra qualquer pessoa que os infrinja.

O advogado, como procurador de seu cliente, é responsável por impedir que o direito de seu cliente seja ameaçado ou, em caso de já haver ameaça, que esta cesse de imediato para que, na medida do possível, não agrave mais o seu cliente. Para tanto, o advogado deve utilizar todo o seu conhecimento jurídico e legal, bem como de sua desenvoltura linguística, para que possa produzir um texto apto a atingir aos objetivos pretendidos. Dessa forma, apenas conhecimento do Direito não é o bastante para refutar os argumentos contrários aos seus e convencer o magistrado de que o direito pertence ao seu cliente. Pode haver diversas provas e argumentos que defendam o direito ameaçado, porém só há um meio de se convencer o juiz de que o seu posicionamento está correto. Essa via é a palavra.

As palavras são, portanto, imprescindíveis ao advogado, na medida em que elas, bem selecionadas e devidamente agrupadas, interligam seus significados e transmitem ao magistrado a narração

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dos fatos, as provas e os argumentos capazes de possibilitar ao juiz a compreensão dos fatos e dos motivos pelos quais ele alega ter o seu cliente o direito. Elas conferem ao advogado poder de persuasão, de convencimento e, de certa forma, até mesmo de sedução no processo, a partir do momento em que ele consegue tornar o seu texto aceitável e aprazível ao seu destinatário. Enfim, o saber jurídico aliado ao bom manejo do vernáculo, por parte do advogado, são instrumentos capazes de transpor a barreira da imparcialidade do juiz, conduzindo-o ao convencimento de que há um direito e de que esse direito pertence ao seu cliente.

O MAU USO DA PALAVRA PELO ADVOGADO

“Ai, palavras, ai, palavras, Que estranha potência, a vossa!”. Este é um verso de Cecília Meireles (1967, p.560), em seu poema Romance das Palavras Aéreas, o qual trata da importância das palavras no contexto da Inconfidência Mineira, de como elas são poderosas, sendo capazes de determinar o destino de um homem. Na conjuntura da Inconfidência, foram suficientes para levar Tiradentes à forca. O mesmo poema, trazido ao mundo jurídico, serve de base para justificar a prudência, imprescindível ao advogado, no momento de elaborar um texto jurídico processual. Palavras são armas. Bem manejadas levam à vitória, mal empregadas à derrota. O advogado hábil no seu manejo é capaz de defender seu cliente com eficácia. Todavia, o advogado desleixado, que negligencia o cuidado devido com a linguagem, prejudica por completo a defesa de seu cliente e terá, por consequência, a ruína e o descrédito de suas alegações.

Desta forma, o advogado deve primar pela linguagem que utiliza, pois ele exerce uma função pública essencial à administração da Justiça, nos termos do artigo 2° da Lei 8906/94 (Estatuto da Advocacia e da OAB) – “O advogado é indispensável à administração da Justiça” – e do art. 2° do Código de Ética e disciplina da OAB:

O advogado, indispensável á administração da justiça, é defensor do estado democrático de direito, da cidadania, da moralidade pública, da justiça e da paz social, subordinando a atividade do seu ministério privado à elevada função pública que exerce.

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Consciente da relevância da atividade que exerce, o advogado deve saber manusear adequadamente o seu instrumento de trabalho, ou seja, a palavra, e empenhar-se no seu aperfeiçoamento. Neste sentido, dispõe o Código de Ética e Disciplina da OAB, no art. 2°, parágrafo único, IV: “São deveres do advogado: [...] empenhar-se, permanentemente, em seu aperfeiçoamento pessoal e profissional.”

Destaca-se que o referido dispositivo legal não faz referência apenas ao aperfeiçoamento jurídico. O artigo utiliza o termo aperfeiçoamento profissional, de modo que abrange também o aprimoramento linguístico e a prudência na produção do texto adequado ao ato processual. Tal zelo é indispensável, visto que a palavra, no cenário de tessitura textual, possibilita ao advogado defender, acusar, afirmar, instigar, indagar, sugerir, persuadir e convencer. Enfim, é o seu instrumento de trabalho, de modo que a sua má utilização pode depreciar consideravelmente o seu trabalho.

Vale frisar que a Lei impõe determinados deveres, como o aprimoramento e o esmero linguístico, em virtude disso também estabelece sanções em caso de descumprimento. Nesse sentido, dispõe o art. 32 do Estatuto da Advocacia e da OAB: “O advogado é responsável pelos atos que, no exercício profissional, pratica com dolo ou culpa.” O referido artigo faz alusão à responsabilidade do advogado pelos atos por ele praticado, com dolo ou culpa, que resultem em dano para o cliente ou para o processo. Isso significa que a responsabilidade do advogado é subjetiva, de modo que depende de verificação de culpa, conforme dispõe o art. 14, §4º, do Código de Defesa do Consumidor: “A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação da culpa.”

Portanto, para que o advogado seja responsabilizado, é necessária a comprovação de que a sua conduta lesiva esteve eivada de culpa. Cumpre esclarecer que a culpa, em seu sentido amplo, pode se manifestar na forma de dolo ou de culpa em sentido estrito. O ato lesivo praticado com dolo é aquele que se comete tencionando o dano ou simplesmente assumindo o risco de que ele pode vir a ocorrer. Por sua vez, o ato perpetrado com culpa no sentido estrito não tem por finalidade ocasionar o dano. Este ocorre involuntariamente devido

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à conduta viciosa do agente e pode ser praticado nas modalidades: negligência (quando se omite a praticar um ato que deveria, a fim de evitar a ocorrência do dano); imprudência (ocasião em que se age precipitadamente, sem as devidas cautelas, ocasionando o dano) ou imperícia (quando o dano é provocado em virtude da inabilidade técnica do profissional na realização do ato).

A responsabilidade do advogado se dá, deste modo, mediante a comprovação de existência de culpa, haja vista que a sua obrigação para com o cliente é de meio, via de regra. Nesse sentido, entendem Gagliano e Pamplona Filho (2003, p. 252):

A prestação de serviços de serviços advocatícios é, em regra, uma obrigação de meio, uma vez que o advogado não tem como assegurar o resultado da atividade ao seu cliente.

Assim, da mesma forma como o ofício do médico, demanda uma responsabilidade civil subjetiva, com fundo contratual que, no caso do processo judicial, decorre do mandato.

Afirmar que o advogado exerce atividade-meio implica dizer que ele não tem o compromisso de obter o êxito da causa, até mesmo porque a decisão final acerca do provimento dos pedidos formulados é atribuição exclusiva do magistrado. A sua obrigação é ser diligente na utilização dos expedientes para alcançar o objetivo final, ou seja, a vitória em prol do seu cliente no pleito judicial, que não necessariamente acontecerá. Portanto, a obrigação do advogado é fazer uso adequado dos instrumentos judiciais, sob pena de, se comprovado o seu agir com culpa, ser responsabilizado na esfera civil e ser condenado a pagar indenização ao seu cliente. Soma-se a isso o dever do operador do Direito de manejar adequadamente a linguagem, pois, conforme já explicitado, a palavra é o instrumento profissional do advogado, sem a qual seria impossível a realização de qualquer atividade jurídica.

No caso de falha grotesca relativa á utilização da palavra por parte do advogado, que ocasiona lesão à administração da justiça, está-se diante de manifesta imperícia1, visto que se trata de deficiência no aperfeiçoamento técnico-linguístico do profissional, que torna deficitária a prestação de seu serviço.

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Vale dizer que se trata de imperícia e não de simples negligência, decorrente de omissão, pois o advogado, no seu exercício profissional, necessita de uma habilidade específica no que concerne à linguagem, tal qual o domínio da gramática pátria e de técnicas de argumentação, o que o diferencia dos profissionais de outras áreas. Logo, assim como um cirurgião plástico necessita de aptidão para o manejo de um bisturi, analogicamente, o advogado precisa dominar a palavra, que é o seu instrumento de trabalho, sem o qual o seu serviço não pode ser prestado. O manejo inadequado da palavra, desta maneira, é a exteriorização da falta de habilidade técnica do profissional do Direito, ou seja, manifesta imperícia.

Um exemplo incontroverso de imperícia decorrente de inabilidade linguística é a peça processual que se segue, redigida abaixo em sua íntegra2:

MAXLENE DOS SANTOSE WARLEY DOS SANTOS, SÃO FILHOS DE GEDALVA M DOS SANTOS BRASILEIRA, VIÚVA, DO LAR, RESIDENTE da DOMICILIADA A RUA GUARAPES NUMERO 258 ALECRIM VILA VELHA por sua advogada abaixo assinada inscrita na OAB/ES sob o n. ___ com escritório na rua _________________________ Vila Velha, onde receberá as intimação.A requerente IRMÃ do WARLEY DOS SANTOSCARLOS ,falecido no dia 11 DE NOVEMBRO DE 2003, nesta cidade Vila Velha.2- Entretanto GERDALVA É PENSIONISTA CVRD, ENTÃO MAXLENE DOS TEM O DIREITO DE RECBER O IMPOSTOS DE RENDA QUE ESTADEPOSITADO NO BANCO DO BRASIL DE VILA VELHA., PODENDO VERIFICADO DOCUMENTO ANEXO..QUE REQUERENTE ESTA PASANDO POR DIFICULDADE FINANCEIRAENTÃO RAZÃO DO EXOSTOREQUERA VOSSA EXCELENCIA QUE APÓS DE OUVISUA FILHA MAXLENE DOS SANTOS, A REQUERENTE MINISTÉRIO PÚBLICO PETICIONARÁ AUTORIZAÇÃO , VIA DE ALVARÁ JUDICIAL E LEVANTAR A IMPORTÃNCIA R$484,33..ASSIM DOCUMENTO A TRI BUIDO PARA E FEITO.

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Revista de Direitos e Garantias Fundamentais - n° 5, 2011 47

QUE A REQUERENTE VEM PEDIR AUXILIO ASSSISTENCIA JUDICIARIA BASEADA NA LEI NUMERO 1060/50 .

VALOR DASCUSTA R $100,00

VILA VELHA , 29 DE JANEIRO DE 2005.

Com a leitura desta peça processual, percebe-se o quanto um texto mal redigido pode atravancar a atividade jurídica e prejudicar o cliente. O texto encontra-se de tal modo mal redigido, que é plausível questionar se o profissional responsável pelo escrito acima de fato cursou cinco anos de Direito e foi aprovado no exame da OAB. Pela leitura, é praticamente impossível identificar com clareza o autor da ação, os fatos, os argumentos jurídicos e os pedidos.

Logo de início, percebe-se a imprecisão quanto ao requerente que figura na peça. Primeiramente, o advogado posta no sentido de que Maxlene dos Santos e Warley dos Santos são os autores. Depois, no segundo parágrafo, é dado a entender que Warley (que já não é mais apenas Warley dos Santos, mas Warley dos Santos Carlos) é falecido e que a sua irmã seria a requerente.

Mas não é só isso, o texto segue num processo desenfreado de erros em todos os níveis gramaticais – regência, concordância, ortografia, etc. Além disso, parecer que a própria inabilidade não atinge só a parte gramatical e a parte estrutural, que abarca a coesão e a coerência, mas também atinge a própria apresentação do texto, uma vez que, o autor do texto prossegue num processo descomedido de engolir letras – recber (“receber”), pasando (“passando”) e velh (“velha”) – e de espaços entre as palavras – Santose (“Santos e”), SantosCarlos (“Santos Carlos”), estadepositado (“está depositado”), exostorequera (presume-se significar “pelo exposto requer a”), ouvisua (“ouvir sua”), dascusta (“das custas”). Em alguns desses casos, a compreensão da expressão resulta prejudicada, como é o caso da sequência de letras exostorequera. Não bastasse o advogado ter juntado três palavras (“exposto” e “requer a”), também omitiu duas letras (“p” e “i”).

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Direito e linguagem: os entraves linguísticos e sua repercussão no texto jurídico processual

Revista de Direitos e Garantias Fundamentais - n° 5, 201148

A peça processual acima constitui aglomerado de palavras e de frases desconexas. O fragmento seguinte é um claro exemplo disso: “A REQUERENTE MINISTÉRIO PÚBLICO PETICIONARÁ AUTORIZAÇÃO , VIA DE ALVARÁ JUDICIAL E LEVANTAR A IMPORTÃNCIA R$484,33”. Ante a leitura do seguimento acima, é difícil (se não impossível) extrair um significado.

Erros crassos concernentes à linguagem, como os cometidos pelo advogado acima, infelizmente não são tão raros como se pode imaginar. Eles acontecem com frequência e ocasionam dano para o cliente e para o processo. Tal inabilidade linguística, além de gerar responsabilização civil por parte do advogado junto ao cliente, pode resultar em responsabilização junto à Ordem dos Advogados do Brasil, conforme foi notícia no Fantástico, programa dominical da Rede Globo, do dia 20 de outubro de 2002. Na reportagem foi relatado o caso de um advogado que, devido à inadequação gramatical de suas petições, teve seu registro suspenso pela OAB, sendo obrigado a fazer outro exame da Ordem para recuperar o direito de advogar.

Um dos problemas mais frequentes referente ao uso inadequado da linguagem, diz respeito a termos e a expressões ambíguas e vagas. As palavras, como signos, evocam um ou diversos conceitos. A multiplicidade de significados que cada palavra possibilita deve ser restringida no texto em concreto para evitar ambiguidades e a vagueza de sentidos. Há de se destacar que essas duas palavras não são sinônimas. A vagueza é caracterizada pela imprecisão de sentido deixado por uma palavra ou expressão.

A ambiguidade, por sua vez, está contida na vagueza, porém com ela não se confunde. Enquanto uma palavra vaga traz um número de significados indeterminados, uma palavra ou expressão ambígua evoca significados determinados, passíveis de aplicação no texto. Na realidade, enquanto na vagueza é impossível assegurar se a postura de A ou de B é que está correta; na ambiguidade, é possível dizer que A está correta do mesmo modo que B também está.

É importante ressaltar que a utilização de palavras vagas e ambíguas pode prejudicar por completo a peça processual, desvirtuando a narração dos fatos, retirando as forças dos argumentos e deixando os pedidos imprecisos. No caso de petições iniciais, pode

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ensejar a inépcia da peça e seu consequente indeferimento, neste sentido dispõe o art. 295, inc. I, do CPC.

ANÁLISE: O TEXTO JURÍDICO PROCESSUAL

Cabe alertar os advogados sobre o descaso para com a linguagem jurídica, despertando-os para os problemas decorrentes

dessa negligência, que, ao afetar a compreensão do texto, desencadeia diversos prejuízos: o fracasso no pleito do cliente, a mácula na imagem do advogado e a contribuição para a lentidão do trâmite processual.

É necessário que a imagem distorcida, que muitas pessoas trazem consigo, acerca do advogado, seja desfeita. O caminho propício a desmistificar essa má impressão é a linguagem. Em outras palavras, ao invés de buscar palavras bonitas e pomposas para impressionar o leitor da peça processual, o advogado deve procurar empregar as palavras adequadas ao que ele pretende comunicar. A linguagem ostentosa pode atravancar a compreensão textual e denotar arrogância, enquanto que a linguagem clara e acessível favorece a comunicação e é mais atrativa ao leitor.

Diante disso, a análise dos textos jurídico-processuais contempla problemas linguístico-gramaticais e de coerência, que podem levar à alteração do sentido da informação a ser transmitida ou à completa inviabilidade da comunicação.

OS ENTRAVES LINGUÍSTICO-GRAMATICAIS

Eles correspondem a 69% dos entraves vistos e são diversos: grafia errada; má disposição de palavras na frase; omissão de termos; imprecisão vocabular; pontuação incorreta; excesso de intercalações; ambiguidades, etc. – por isso serão abordados apenas alguns que foram mais frequentes.

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Ortografia

A ortografia é um elemento gramatical básico da língua, sendo objeto de estudo, nas escolas primárias, logo no início, antes de se aprender a formar e a pontuar as frases. Em virtude disso, cometer deslizes graves concernentes à grafia das palavras manifesta o reduzido conhecimento lexical do advogado, o que é inaceitável para um profissional do Direito, que cursou a disciplina de língua portuguesa por, pelo menos, oito anos no ensino fundamental e três anos no ensino médio, além, obviamente, de ter cursado cinco anos do curso de Direito.

Apesar de todos esses anos de estudo, palavras escritas com grafia errada nos textos processuais são mais comuns do que se esperava, o que demonstra despreparo técnico do advogado, como podemos ver em:

Brasileiro, casada de fato, garson, CTPS [...] (Reclamação trabalhista, proc. n° 0420.2005.013.1700-2, grifo nosso)

Esses entraves, quando permeiam o texto jurídico-processual, mesmo que não atrapalhem a compreensão do texto, maculam a imagem do advogado e comprometem seus argumentos.

Regência

Um dos problemas mais usuais, concernentes à regência verbal, no texto forense, é escrever “residente à”. Das dez peças processuais examinadas, oito foram perpassadas por esse equívoco. O verbo residir pede o uso da preposição “em”, pois essa preposição serve para indicar localizações exatas. Em contrapartida, a preposição “a” indica localização aproximada. Assim, este tipo de regência, com a preposição “a”, indica que a localização não é precisa, ou seja, que fica nas imediações do endereço dado e não é essa a intenção pretendida pelo advogado ao redigir a peça.

A importância da regência se deve ao fato de ela ser responsável por estabelecer a relação de dependência gramatical entre os termos de uma sequência frásica. Por essa razão, nas frases com problemas de

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regência, em diversas ocasiões, as palavras ficam desconectadas, o que pode gerar a incompreensão do texto.

Concordância

Assim como a regência, a concordância é de grande essencial ao texto, pois auxilia, em sua organização, sentido e clareza. Com relação a esse item, a gramática especifica diversos casos de concordância, de maneira que o elevado número de hipóteses dificulta a assimilação das regras. Cumpre advertir, todavia, que os problemas averiguados na presente análise não são de grande complexidade, mas de conhecimento primário, como a concordância entre sujeito e verbo ou substantivo e adjetivo, tal qual o exemplo a seguir:

[...] pois o que levou a empresa nessa situação foi concorrências acirradas supermercados [...] (Contestação, proc. n° 00736.2003.006.17.0-4, grifo nosso)

Neste caso, o correto seria que estivesse escrito “foram concorrências”, desta forma o verbo concordaria com o sujeito “concorrências”.

Pontuação

A pontuação é fundamental para que o autor expresse suas ideias de forma correta e precisa. Em virtude disso, erros desta natureza são responsáveis por causar graves entraves na redação forense, como mistura de ideias, períodos muito complexos devido ao tamanho da frase, quebra de encadeamento lógico, dificuldade no ritmo de leitura, dentre outros.

É oportuno fixar que o emprego de vírgulas não deve seguir a respiração, como preconizam algumas pessoas. Este é um dos equívocos mais comuns e que acarretam, algumas vezes, na separação entre sujeito e verbo pela vírgula, como neste exemplo:

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A empresa-ré, possui no Estado do Espírito Santo, 02 (duas) gerências INDIVIDUALIZADAS [...]. (Contestação, proc. n° 0029.2002.005.17.00-8, grifo nosso)

Importante deixar claro que nunca se deve separar o sujeito “Empresa-ré” do verbo “possui”. Na dúvida, é sempre conveniente consultar as regras gramaticais.

Latinismo

O discurso jurídico, por se tratar de um discurso técnico, exige um acervo terminológico próprio. Sendo assim, algumas palavras e expressões estrangeiras, especialmente em latim, são úteis ao texto jurídico, em virtude de não haver, na língua portuguesa, vocábulos que exprimam os significados de tais termos com a perfeição e com a concisão das palavras latinas. São exemplos de expressões latinas úteis: erga omnes, corpus, habeas corpus, habeas data, ex nunc, ex tunc e outras. A utilidade dessas expressões/termos é evidente, pois tais vocábulos estão presentes nos bons dicionários de língua portuguesa não só com a definição desses termos, mas também com a transcrição fonética que permite a pronúncia adequada.

Contudo, muitos advogados têm cometido excessos no uso de termos em latim. No corpus em análise, foram encontradas vinte e nove ocorrências desnecessárias de expressões latinas, como ad argumentandum tantum, in casu, in fine, ad cautelan, ab ovo. Não há motivo real para usá-las no texto jurídico, pois tais expressões possuem equivalentes na língua portuguesa, que exprimem o mesmo sentido com perfeição. Veja que muito distinto das demais expressões aduzidas anteriormente estas expressões não trazem nenhuma informação nova ou mesmo técnica para o texto, possuem somente o objetivo de obscurecer o que se está proferindo no texto.

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OS ENTRAVES NA COERÊNCIA

No universo discursivo-textual, o qual é construído pelo produtor e reconstruído pelo receptor, a coerência é um elemento basilar, pois é ela que permite a percepção adequada do texto por parte do receptor. Daí advir a afirmação de que a coerência como um princípio básico de textualidade se constitui num elemento fundamental para a interpretabilidade do texto.

Neste sentido, a coerência ultrapassa a mera junção de frases corretas do ponto de vista da língua, ela ultrapassa a noção gramatical e mesmo a noção coesiva de um texto, pois a função dela é justamente transformar as sequências frasais em texto com unidade de sentido, por isso que ela é um pilar fundamental em um texto.

Com vistas a isso, Mira Mateus (2003, p.115) aduz que a coerência é “um factor de textualidade que resulta da interacção entre os elementos cognitivos apresentados pelas ocorrências textuais e o nosso conhecimento do mundo. Assim, uma condição cognitiva sobre a coerência de um texto é a suposição da normalidade do(s) mundo(s) criado(s) por esse texto”.

Além disso, Costa Val (1994, p.5) também a vê como um fator fundamental da textualidade, visto que ela determina o sentido do texto. Além disso, ela envolve não somente “aspectos lógicos e semânticos, mas também cognitivos, na medida em que depende do partilhar de conhecimento entre os interlocutores”.

Assim, é necessário que se ressalte que a coerência não é um mero traço presente nos textos, mas, sim, o resultado de processos cognitivos entre produtor e receptor. Isso ocorre porque ela é construída por uma operação de inferência, uma vez que o texto não tem sentido em si, mas faz sentido pela interação entre os conhecimentos que apresenta e o conhecimento de mundo de seus usuários.

Desta forma, a coerência é imprescindível ao texto, pois todo leitor espera que o texto se desenvolva, mantenha uma continuidade temática e apresente uma sequência de ideias, de forma a atingir um objetivo pré-estabelecido. Ela se manifesta no texto por meio dessas características e é exatamente isso que proporciona a unidade de sentido no texto.

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Na realidade, quando um texto atinge este propósito de tornar claros os objetivos a que se propôs, ele caminha no sentido de se tornar mais acessível para o receptor. Em suma, a coerência é, de fato, um princípio de interpretabilidade, uma vez que o texto incoerente impede a adequada reconstrução dos sentidos por parte do receptor.

Concernente à existência da coerência em textos, Charolles (2002, p. 49 e seguintes) menciona quatro metarregras que revelam os traços de coerência em uma realidade textual. Assim, para que um texto seja considerado coerente, o mesmo deve conter:

a) REPETIÇÃO: elementos de recorrência estrita (pronominali-zações, referências dêiticas, substituições lexicais, etc.)

b) PROGRESSÃO: contribuição semântica constantemente ren-ovada.

c) NÃO-CONTRADIÇÃO: ausência de elemento semântico que contradiga o conteúdo posto ou pressuposto por uma ocorrên-cia anterior.

d) RELAÇÃO: fatos que se denotam no mundo representado de-vem estar relacionados com aquilo que nos cerca.

Notamos que tais metarregras trazem em si todos os aspectos pragmáticos que abarcam a construção do discurso. Por isso, é possível dizer que a coerência não pertence ao texto, mas aos usuários do texto, visto que ela pode estar pautada na adequação do que é comunicado em cada fragmento do texto associado à intenção comunicativa. Assim, quando há falha na coerência do texto, podemos ter obras totalmente incompreensíveis.

O número de trechos incoerentes constatados nas peças processuais examinadas corresponde a 31% do total das ocorrências que compõem a presente análise. Isso evidencia que o texto jurídico-processual dos advogados tem sido severamente prejudicado pela deficiência na construção de sentidos. Ao se considerar a coerência um fator essencial para a interpretabilidade do enunciado, sem a qual não há veiculação de sentido, tem-se que a quantidade de incoerências levantada evidencia que 31% das petições são impróprias à comunicação eficiente, em

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outras palavras, 31% desses textos é descartável. Vale esclarecer que os problemas referentes à coerência foram separados de acordo com a proposta de análise preconizada por Charolles, a saber: relação, não contradição, progressão, repetição.

Assim, pautados nestes princípios de análise, podemos vislumbrar o seguinte quadro, que será visto especificamente nos itens a seguir:

Relação

Das metarregras de coerência apresentadas por Charolles, a que apresentou mais problemas foi a relação, representando 59% do total das ocorrências referentes aos problemas de coerência. Tal fato demonstra que os advogados encontram dificuldades para expor as ideias e articular os argumentos, conforme destaca o exemplo a seguir:

HORÁRIO : Cumpria horário das 15:00 AS 22,30 de 2ªfeira a sábado, Domingo das 11 hs as 23hs., recebia Adc Noturno com 25%., teve folga 07 de setembro.Pra efeito de horário de descanso, tinha que assinar ponto das 19hs as 20hs, sem gozar de tal horário integral, porem subia para fazer as refeições no piso superior da loja,setor de produção, em 10 a 15 minutos, sem o devido descanso, continuando a trabalhar, atento ao atendimento da clientela, reclamando nos termos do art 71 as horas de descanso a serem apuradas em todo o período trabalhado, assi como as horas extras trabalhadas com 50%, a serem apuradas.

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- Que os pagamentos eram efetuados sempre com atraso de 5 dias ou mais, tendo que assinar a data de lei, concluindo que o Rte. pagava suas dívidas com atraso. (Reclamação trabalhista, RT 0420.2005.013.1700-2)

O texto apresentado deixa claro que a falta de relação nem sempre é fruto do pequeno conteúdo informativo a ser comunicado. Muitas vezes, como ocorre nesse caso, existem diversas informações a serem repassadas, no entanto o advogado não é capaz de organizá-las estabelecendo, entre elas, um elo que as disponham em forma de texto inteligível. Nem mesmo que tenham relação coerente com o mundo externo.

Progressão

Um texto processual, para ser bem sucedido, deve apresentar uma introdução, um desenvolvimento e uma conclusão. Trazendo para o contexto processual, deve apresentar os fatos, progredir na argumentação e finalizar com a formulação de pedidos. Para tanto, é necessário que o texto evolua em seu conteúdo, com a adição de informações novas. Não basta que sejam acrescentadas palavras novas, essas palavras devem servir com uma contribuição semântica nova. Na ocorrência seguinte, não bastasse a ausência de renovação semântica, o advogado reproduz as mesmas palavras:

O horário contratual do reclamante é de 12:00 às 18:00 hs, todavia na realidade chega em média às 11:30 e sai por volta das 18:30 hs.Todavia, trabalha diariamente de 11:30 hs às 18:30 hs... (Reclamação trabalhista, proc. n° 109.2005.013.17.0-3).

Neste caso, o segundo fragmento repete as mesmas palavras contidas no primeiro e não acrescenta nenhum dado novo que contribua para a progressão textual. Assim sendo, o referido segmento é completamente dispensável.

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Não-contradição

Esse tipo de entrave consiste em permear o texto com elementos que contradigam um conteúdo posto pressuposto ou dedutível. É preciso que se diga que o ato de se contradizer revela despreparo argumentativo – capacidade que se pressupõe que qualquer profissional do direito deva possuir, afinal a linguagem jurídica é, por excelência, o campo da argumentação, da dialética. Ora, se o operador jurídico é incapaz de construir uma proposição e depois desconstruir o que ele mesmo enunciou, isso se avulta como uma incapacidade notória de ser representante de alguém. Este realidade pode ser vista no exemplo seguinte:

No que respeita ainda ao dano moral, temos por fim que autor teria sido caluniado, o que também se repele e nega com vigor”. (Contestação, proc. 0029.2002.005.17.00-8)

Inicialmente, o advogado diz que o autor foi caluniado, no momento seguinte, nega o que acabou de afirmar. Assim, o advogado levanta uma proposição e a desmente na mesma frase. Como não pode haver, no texto, uma proposição que seja ao mesmo tempo verdadeira e falsa, está-se diante de um vício.

Repetição

Um dos casos encontrados é o que se segue:

Venia concessa, tal comportamento não reflete aquele do ser humano normal.Que se resista à investidas e insinuações, segundo o autor, “com medo de ser demitido”, ainda é plausível.Mas que com elas aquiesça e sabe-se lá por quanto tempo, posto que não informado na inicial, vai de encontro ao comportamento normal de qualquer pessoa... (contestação, proc. n° 0029.2002.005.17.00-8).

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Direito e linguagem: os entraves linguísticos e sua repercussão no texto jurídico processual

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Acima, encontram-se três parágrafos curtos subsequentes, mas que não apresentam elementos de recorrência restrita que estabeleçam uma sequência entre eles. Está-se diante, portanto de três parágrafos soltos, desconectados, sem a existência de uma unidade temática que garanta a continuidade do que se está discutindo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo confirma o imprescindível papel que a linguagem exerce no Direito. Para o advogado exercer sua profissão

adequadamente, não basta o conhecimento técnico para produzir uma peça processual. Ele deve ter o conhecimento das estruturas linguístico-gramaticais para a produção de um texto coerente.

A deficiência na linguagem do advogado foi confirmada pela quantidade exorbitante de entraves que permeiam as peças processuais que foram o objeto do diagnóstico realizado. Essa carência denota o descaso do advogado com a linguagem, o que constitui um desrespeito ao magistrado, que terá que ler um texto escrito de forma lamentável, e ao cliente, que sofrerá as consequências do despreparo linguístico de seu patrono. Na verdade há um abismo linguístico que coíbe o processo comunicacional pleno, impede o acesso à justiça e desqualifica os profissionais envolvidos no ato de comunicação.

Consoante os dados desta análise, nenhuma das peças processuais saiu ilesa aos problemas linguísticos e gramaticais. Tal realidade é inaceitável, pois não se trata de produções realizadas por amadores, mas por profissionais da palavra.

Esse diagnóstico deve servir de alerta à OAB e às faculdades de Direito em geral. Na tentativa de reverter esse quadro, a OAB deve tomar providências para aperfeiçoar os seus filiados e também para evitar que bacharéis despreparados linguisticamente adentrem ao rol de advogados. As faculdades, ao visar à qualidade dos profissionais, precisam reformular o ensino da linguagem, firmando a disciplina de linguagem jurídica como uma das prioridades do curso.

Sobretudo, deve haver um repensar do profissional acerca da necessidade de aprimoramento da linguagem, numa busca incessante

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Revista de Direitos e Garantias Fundamentais - n° 5, 2011 59

de sempre atualizar-se. É preciso que o profissional do direito entenda que o processo de produção e de correção gramatical é inesgotável e que o conhecimento obtido pelo operador jurídico nunca é demais para a consolidação do conhecimento e de maturidade na linguagem.

REFERÊNCIAS

AZEREDO, J. C. S.. Texto, sentido e ensino de português. In: Claudio Cezar Henriques; Darcília Simões. (Org.). Língua e cidadania: novas perspectivas para o ensino. 1 ed. Rio de Janeiro: Europa, 2004,

CALMON DE PASSOS, J. J. Instrumentalidade do processo e devido processo legal. Revista de processo, v. 102, São Paulo, 2001.

COSTA VAL, Maria das Graças. Redação e Textualidade. São Paulo: Martins Fontes, 1994.

CHAROLLES, Michel. Introdução aos problemas da coerência dos textos. In: ______. O texto: leitura e escrita. 3. ed. Campinas: Pontes, 2002.

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 3.

LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Fundamentos de metodologia científica. 3. ed. São Paulo: Atlas, 1991.

MEIRELES, Cecília. Obra Poética. 2 ed. Rio de Janeiro: José Aguilar Editora, 1967.

MIRA MATEUS, Maria Helena et. al. Gramática da Língua Portuguesa. 5.ed. rev. e aument. Lisboa: Editorial Caminho, 2003.

KOCH, Ingedore Villaça; TRAVAGLIA, Luiz Carlos. A Coerência Textual. 11. ed. São Paulo: Contexto, 2001.

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Direito e linguagem: os entraves linguísticos e sua repercussão no texto jurídico processual

Revista de Direitos e Garantias Fundamentais - n° 5, 201160

NOTAS

1 De acordo com Gagliano e Pamplona Filho, a imperícia “[...] decorre da falta de aptidão ou habilidade específica para a realização de uma atividade técnica ou científica.” (2003, p. 144)

2 O nome, o endereço, o número da OAB do advogado, bem como o número da petição foram omitidos por questões éticas.

Artigo recebido em: 02/06/2009

Aprovado para publicação em: 10/06/2009

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Organização Comitê Científico

Double Blind Review pelo SEER/OJS

Recebido em: 09.07.2018

Aprovado em: 11.08.2018

Revista de Direito de Família e Sucessão

Revista de Direito de Família e Sucessão | e-ISSN: 2526-0227 | Salvador | v. 4 | n. 1 | p. 71 – 93 | Jan/Jun. 2018

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O REGIME DE SEPARAÇÃO CONVENCIONAL DE BENS E A NÃO CONCORRÊNCIA DO CÔNJUGE SUPÉRSTITE COM OS

DESCENDENTES DO “DE CUJUS”

Ilton Garcia Da Costa1 Marcos Paulo dos Santos Bahig Merheb2

Resumo: O escopo deste trabalho é apresentar os entendimentos do Superior Tribunal de Justiça sobre o regime de separação convencional de bens. Referido Tribunal, em 2009, entendeu pela não concorrência em tal regime, com alteração oposta em 2015. A primeira parte do artigo apresenta conhecimentos sobre os regimes de bens. A segunda parte apresenta o regime de separação convencional de bens e as decisões do Superior Tribunal de Justiça e seu atual posicionamento criticado a luz da autonomia da vontade. Como fonte de pesquisa utilizou-se da doutrina, jurisprudência, legislação e periódicos na internet.

Palavras-chave: Regime de bensseparação convencional de bensSuperior Tribuna de justiçaautonomia da vontade

THE REGIME OF CONVENTIONAL SEPARATION OF GOODS AND THE NON-COMPETITION OF THE SUPÉRSTITE SPOUSE WITH THE

DESCENDANTS OF "DE CUJUS" Abstract: The scope of this work is the understandings of the Superior Court of Justice on the regime of conventional separation of goods. Referred Court in 2009, understood by non-competition in such a scheme, with opposite view in 2015. The first part of the article presents knowledge about the regimes of goods. The second part presents the regime of conventional separation of assets and the decisions of the Superior Court of Justice and its current position criticized in the light of the autonomy of the will. As a source of research was used doctrine, jurisprudence, legislation and periodicals on the internet.

Keywords: Regime of goods conventional separation of goodsSuperior Court of justiceautonomy of the will

1 Doutor e mestre em Direito pela PUC-SP. Professor do programa de mestrado e doutorado da UENP-PR. 2 Mestrando em Ciência Jurídica pela UENP-PR.

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Ilton Garcia Da Costa & Marcos Paulo dos Santos Bahig Merheb

Revista de Direito de Família e Sucessão | e-ISSN: 2526-0227 | Salvador | v. 4 | n. 1 | p. 71 – 93 | Jan/Jun. 2018

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1. INTRODUÇÃO

No Brasil há quatro regimes típicos de bens, quais sejam: o regime de separação de

bens, que se divide em separação obrigatória e convencional; regime de participação final nos

aquestos; regime de comunhão universal de bens e; regime de comunhão parcial de bens.

Excetuado o regime de comunhão parcial de bens e o de separação obrigatória de bens, todos

os demais regimes devem ser escolhidos por meio de pacto antenupcial. Cada um desses

regimes de bens possuem regras diferenciadas no momento da dissolução da sociedade

conjugal, seja pelo divórcio, seja pela morte, sendo o estudo desta última modalidade a proposta

do presente trabalho.

A atual interpretação da doutrina e da jurisprudência, sob a análise da simples

literalidade do artigo 1.829, inciso I, combinado com o artigo 1.845 do Código Civil, não

restringe a concorrência do cônjuge sobrevivente com os descendentes do “de cujus” em

determinados regimes de bens do casamento, tendo em vista a consideração de que o mesmo

foi alçado a herdeiro necessário.

A discussão doutrinária e jurisprudencial em relação aos efeitos patrimoniais do

casamento após a morte reside na possibilidade ou não da concorrência do cônjuge sobrevivente

com os descendentes do falecido.

O Superior Tribunal de Justiça, no ano de 2009, interpretando os dispositivos da

matéria, entendeu que o cônjuge sobrevivente casado no regime de separação convencional de

bens não concorre com os descendentes do falecido. No entanto, referido Tribunal no ano de

2015 proferiu entendimento em sentido oposto, afirmando que no regime de separação

convencional de bens o cônjuge deve concorrer com os herdeiros do “de cujus”.

Os entendimentos do Superior Tribunal de Justiça recebem criticas a favor e contra

por parte da doutrina, diante da polêmica causada. É que a interpretação conferida pelo Superior

Tribunal de Justiça, doravante influenciará nas decisões das cortes inferiores, repercurtindo na

vida daqueles que convolarem núpcias pelo regime de separação convencional de bens.

Não fosse a falta de técnica legislativa, não haveria margem para interpretações

divergentes, o que conferiria maior segurança jurídica.

Como informado, o Código Civil de 2002 elevou o cônjuge a qualidade de herdeiro

necessário de terceira classe, porém a disciplina conferida ao mesmo no art. 1.829, inciso I,

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O REGIME DE SEPARAÇÃO CONVENCIONAL DE BENS E A NÃO CONCORRÊNCIA DO

CÔNJUGE SUPÉRSTITE COM OS DESCENDENTES DO “DE CUJUS”

Revista de Direito de Família e Sucessão | e-ISSN: 2526-0227 | Salvador | v. 4 | n. 1 | p. 71 – 93 | Jan/Jun. 2018

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deu-lhe tratamento vantajoso, posto que é chamado a concorrer com os herdeiros de primeira e

de segunda classe, a depender do regime de bens estabelecido.

O objetivo geral do presente trabalho é discutir os aspectos patrimoniais sucessórios

do cônjuge sobrevivente em concorrência com os descendentes do “de cujus” nos diversos

regimes de bens, sendo o objetivo específico demonstrar que o cônjuge casado no regime de

separação convencional de bens não deve concorrer com os descentes do falecido, posto que

esta não foi a intenção da norma, sendo este também a problematização do tema proposto.

Volta-se particular atenção de que o regime da separação convencional de bens é

escolhido por meio de pacto antenupcial voluntaria e livremente entre os nubentes, a qual a lei

não deve contrariar o que em vida optaram deixar separado. Entendimento diverso certamente

viola o princípio da autonomia da vontade.

Para a elaboração e conclusão deste trabalho, optou-se como método de pesquisa o

dedutivo, pois por meio da análise da doutrinária e jurisprudência, bem como da legislação

pertinente, foi possível teorizar o entendimento quanto a concorrência do cônjuge supérstite nos

diversos regimes de bens. A técnica de pesquisa utilizada foi a bibliográfica, legislativa e de

decisões judiciais.

2. DA SUCESSÃO DO CÔNJUGE EM CONCORRÊNCIA COM OS DESCENDENTES

NOS DIVERSOS REGIMES DE BENS

Sabe-se que o atual Código Civil abordou a concorrência do cônjuge sobrevivente

tanto com os descendentes quanto com os ascendentes do “de cujus”. No entanto, o presente

trabalho tem como finalidade abordar a concorrência do cônjuge apenas com os descendentes

do “de cujus”, superficialmente nos diversos regimes de bens, conferindo maior ênfase ao

regime de separação convencional de bens, posto este ser o objeto central do tema.

“A concorrência com o descendente permite ao cônjuge receber uma parte de herança

que na época do Código Civil de 1916 era destinada exclusivamente ao descendente,

independentemente da sua meação” (NETO, 2008, p. 106).

O art. 1.829 do Código Civil afirma que o cônjuge concorrerá com os descendentes do

“de cujus”, a depender do regime de bens estabelecido.

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Pela nova disposição legal, o cônjuge herda juntamente com os descendentes, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens, ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares. Ou seja, herda o cônjuge se for casado com o regime de separação total (convencional) de bens, participação final nos aquestos ou, não havendo bens particulares, comunhão parcial de bens. (NETO, 2008, p. 128).

“Não é sempre que o sobrevivente recebe um naco do quinhão dos descendentes.

Depende do regime de bens que os cônjuges elegeram antes do casamento” (DIAS, 2008, p.

154).

O ordenamento jurídico brasileiro estabeleceu como regimes de bens o regime da

comunhão universal, da comunhão parcial, da separação convencional, da separação obrigatória

e da participação final nos aquestos.

No que se refere ao regime de comunhão universal de bens, afirma o Código Civil que

os bens presentes e futuros serão comunicáveis entre os nubentes, salvo hipóteses especificas

de não comunicabilidade. (art. 1.667 e 1.671)

Em tal regime, quando da ocorrência da morte de um dos nubentes, “inexiste direito

de concorrência, isso porque o sobrevivente tem o direito de meação sobre todo o acervo

patrimonial” (DIAS, 2008, p. 154). A regra é a meação da totalidade dos bens.

A meação em nada tem haver com o direito das sucessões, pois este instituto pertence

ao direito de família, posto decorrer do regime de bens escolhido pelos nubentes no momento

do matrimonio.

Dentre os direitos patrimoniais do cônjuge, distinguem-se a meação e a herança. Uma coisa é a meação, que decorre do regime de bens e preexiste ao óbito do outro cônjuge, devendo ser apurada sempre que dissolvida a sociedade conjugal. Diversamente, herança é a parte do patrimônio que pertencia ao cônjuge falecido, transmitindo-se aos seus sucessores legítimos ou testamentários (AMORIM, p. 94).

“Meação não é herança, pois os bens comuns são divididos, visto que a porção ideal

deles já lhe pertencia” (DINIZ, 2008, p. 124)

O cônjuge supérstite já terá direito à meação e, por essa razão, o legislador entendeu que não haverá o direito à concorrência, já que o sobrevivente terá bens próprios suficientes para garantir o seu sustento.

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O REGIME DE SEPARAÇÃO CONVENCIONAL DE BENS E A NÃO CONCORRÊNCIA DO

CÔNJUGE SUPÉRSTITE COM OS DESCENDENTES DO “DE CUJUS”

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Note-se que, pela comunhão universal, os bens que pertencem ao marido em regra, também pertencem à esposa e vice-versa. Assim, estará garantida ao sobrevivente sua meação e seu amparo (TARTUCE, SIMÃO, p. 167).

Portanto, no regime de comunhão universal de bens, o cônjuge sobrevivente não

herdará em concorrência com os descendentes do “de cujus”, posto que já terá direito a metade

dos bens a título de meação, estando economicamente amparado.

“Entretanto, um aspecto interessante de ressaltar é que mesmo no regime de comunhão

universal podem existir bens que não são comuns, mas que pertencem a apenas um dos

cônjuges, sendo, portanto, bens particulares” (TARTUCE, SIMÃO, p. 168).

A esse respeito, a doutrina tem afirmado que o cônjuge terá direito a concorrência com

os descendentes em relação aos bens particulares, caso não haja patrimônio comum. Assim, em

sendo o matrimônio contraído sob o regime de comunhão universal de bens e não havendo bens

em comum, havendo somente bens particulares com clausula de incomunicabilidade, como as

do art. 1.668 do Código Civil, o cônjuge sobrevivente tocará parte desses bens a título de

herança.

Não é outra a opinião de Francisco José Cahali, para quem “haverá de se questionar se terá o viúvo direito sucessório, quando casado no regime da comunhão universal de bens, ou qualquer outro regime convencional, e o falecido possuir apenas bens particulares (p. ex. gravados por cláusula de incomunicabilidade na doação ou por testamento). A coerência recomenda seja deferida a sucessão ao cônjuge sobre os bens particulares, se a estes for restrita a herança do viúvo, a despeito da literalidade do texto ser de diverso conteúdo (TARTUCE, SIMÃO, apud CAHALI, p. 168).

Com este entendimento, mesmo em havendo clausula de incomunicabilidade dos bens

particulares do “de cujus”, tal condição não possui validade quando a divisão decorrer da

morte, posto que a incomunicabilidade deve ser aplicada apenas quando houver o fim do

vinculo matrimonial pelo divórcio.

Verifica-se, portanto, a possibilidade de ocorrência de duas situações quando o regime

patrimonial do casamento for o da comunhão universal de bens. Primeiro quando houver bens

comuns, hipótese em que não haverá concorrência do cônjuge sobrevivente, tendo este direito

apenas a meação; segundo quando não houver bens comuns, sendo que o cônjuge sobrevivente

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terá direito a concorrência sobre os bens particulares do “de cujus”, ainda que gravados com

clausula de incomunicabilidade.

Em relação ao regime de comunhão parcial de bens, verifica-se uma maior gama de

divisão do patrimônio entre os nubentes, posto que há possiblidade da existência de bens

comuns, de bens apenas do marido e bens apenas da mulher. Neste regime, comunicam-se

entre os cônjuges os bens adquiridos onerosamente na constância do casamento, excluindo da

comunhão os bens particulares, considerando estes como os que cada cônjuge possuía ao se

casar e os incomunicáveis constantes no art. 1.659 do Código Civil.

No regime de comunhão parcial de bens, segundo o art. 1.829, I, do Código Civil, o

cônjuge concorre com os descendentes quando houver bens particulares. Sob este prisma, a

doutrina debate se o cônjuge concorre sobre todo o acervo hereditário ou se apenas em relação

aos bens particulares.

Quando não houver bens particulares de cada cônjuge, o sobrevivente não herdará,

possuindo direito apenas a meação, sendo este o entendimento consolidado na doutrina e

jurisprudência.

Isso porque se não há bens particulares de cada cônjuge, o cônjuge sobrevivente será

meeiro da totalidade do que houver, já que a partilha ocorrerá apenas em relação aos bens

comuns. A interpretação do art. 1.829, inciso I, do Código Civil, é no sentido de que se o autor

da herança não deixou bens particulares, o cônjuge sobrevivente terá direito a sua meação,

sendo que a meação do “de cujus” será partilhada exclusivamente entre seus descendentes.

Assim, não há que se falar em concorrência sucessória do cônjuge sobrevivente quando o autor

da herança não houver deixado bens particulares no regime de comunhão parcial de bens.

No entanto, a questão polêmica que suscita debate na doutrina é em relação à

concorrência do cônjuge no regime de comunhão parcial de bens quando o autor da herança

houver deixado bens particulares. Atualmente há três correntes doutrinárias a respeito.

Para a primeira corrente, em havendo meação o cônjuge só concorrerá em relação aos

bens particulares.

Essa parece ser a mais correta interpretação do dispositivo na opinião dos coautores Flávio Tartuce e José Fernando Simão. Se o regime da comunhão universal de bens não há concorrência em razão da meação existente, com relação à comunhão parcial de bens a concorrência só pode se verificar quanto aos bens particulares, mas jamais com relação aos bens comuns (TARTUCE, SIMÃO, 2008, p. 179).

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O REGIME DE SEPARAÇÃO CONVENCIONAL DE BENS E A NÃO CONCORRÊNCIA DO

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Para este entendimento, o cônjuge só concorrerá quanto aos bens particulares, posto

que os bens comuns o mesmo é meeiro.

Importante destacar que esta corrente deriva do Enunciado 270, da III Jornada de

Direito Civil, organizada pela Justiça Federal, que assim dispõe:

Enunciado 270: Art. 1.829, inc. I, só assegura ao cônjuge sobrevivente o direito a concorrência com os descendentes do autor da herança quando casados no regime da separação convencional de bens, ou, se casados nos regime da comunhão parcial ou participação final nos aquestos, o falecido possuísse bens particulares, hipóteses em que a concorrência se restringe a tais bens devendo os bens comuns (meação) ser partilhados exclusivamente entre os descendentes.

Portanto, pelo enunciado 270, a concorrência do cônjuge sobrevivente restringe-se

apenas aos bens particulares do autor da herança, sendo que os bens comuns serão partilhados

entre os descendentes.

São adeptos desta corrente Flávio Monteiro de barros, Eduardo de Oliveira Leite, Christiano Cassettari, Francisco José Cahali, Gustavo Rene Nicolau, Jorge Shiguemitsu Fujita, Mario Delgado, Euclides de Oliveira, Sebastião Amorim, Rodrigo da Cunha Pereira, Rolf Madaleno e Zeno Veloso (TARTUCE, SIMÃO, 2008, p. 179).

Se o falecido deixou bens particulares, o cônjuge participa da herança somente a estes

bens, excluindo-se os adquiridos na constância do casamento, posto que estes são objetos de

meação, em decorrência do regime do matrimonio, e não sucessório. De modo diverso, quando

não houver bens particulares deixados pelo “de cujus”, o cônjuge sobrevivente terá direito

apenas a meação.

Questão diversa é a hipótese daqueles que defendem que o cônjuge sobrevivente

herdará não apenas os bens particulares, mas sim todo o acervo hereditário, fazendo, portanto,

com que surja a segunda corrente.

“A posição majoritária, entretanto, não é pacifica e há argumentos favoráveis à ideia

de que o cônjuge participaria da sucessão no tocante à totalidade da herança, surgindo aqui a

segunda corrente” (TARTUCE, SIMÃO, 2008, p. 180). Para este entendimento, o cônjuge

casado sob o regime de comunhão parcial de bens onde houver bens particulares, não recebe

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apenas a sua meação e parte dos bens particulares, mas sim sua meação e parte de todo o acervo

hereditário.

Havendo patrimônio particular, o cônjuge sobrevivente receberá sua meação, se casado sob o regime de comunhão parcial de bens, e uma parcela sobre todo o acervo hereditário. Concorre, no nosso entender, em regra, em igualdade de condições com os descendentes do falecido, e tem direito à meação em face do regime matrimonial de bens. Como ocorre, no de comunhão parcial, pois além de receber sua meação, terá um aparte sobre toda a herança. (DINIZ, 2008, p. 124).

Assim, pela segunda corrente, o cônjuge sobrevivente herdará todo o acervo

hereditário. Portanto, receberia a meação dos bens comuns, mais uma parcela dos bens

particulares e uma parcela da meação que cabia ao “de cujus”.

Ao que parece, esta segunda corrente não é a mais acertada, já que o cônjuge

sobrevivente sairia com vantagem excessiva em desfavor dos herdeiros que, muitas vezes,

sequer é herdeiro comum de ambos os cônjuges.

Ainda, nítido é o bis in idem nesta segunda corrente, tendo em vista que o cônjuge

sobrevivente a ele tocará metade do que já tem, e ainda concorrerá com os descentes na metade

dos bens comum pertencente ao “de cujus”. Apenas para frisar, está segunda corrente defende

tal forma de entendimento quando houver bens particulares pelo “de cujus”, de modo que

ausente estes bens, ao cônjuge sobrevivente tocará apenas a sua meação, em nada tendo que

falar em concorrência com os descendentes.

Há quem faça a interpretação invertida das duas correntes anteriores, fazendo,

portanto, com que nasça a terceira corrente. Quem defende a interpretação invertida, sustenta

que o cônjuge sobrevivente não concorrerá com os descendentes do “de cujus” quando houver

bens particulares do morto.

Não se pode olvidar que a regra é a concorrência. Esse direito se sujeita a exceções, limitações de caráter restritivo. O legislador identifica as hipóteses em que o direito é afastado: (1) no regime da comunhão universal de bens e (2) no regime da separação obrigatória. No regime da comunhão parcial, a lei aponta a hipótese em que o direito é assegurado (3): quando houver bens particulares. A ressalva última decorre da duplicidade de situações que este regime contém (existência ou não de bens exclusivos), o que impõe tratamento diferenciado a cada modalidade. Em respeito à natureza mesma do

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O REGIME DE SEPARAÇÃO CONVENCIONAL DE BENS E A NÃO CONCORRÊNCIA DO

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regime legal, o direito à concorrência só pode ser deferido se não houver bens particulares no acervo hereditário. (DIAS, 2010).

“Por essa terceira corrente, a concorrência sucessória entre cônjuge e descendentes só

ocorre com relação aos bens comuns e não com relação aos bens particulares” (TARTUCE,

SIMÃO, 2008, p. 182).

Enquanto os defensores da primeira e da segunda correntes apenas reconheciam, ao cônjuge casado pelo regime de comunhão parcial de bens, o direito á sucessão na hipótese de o falecido ter deixado bens particulares, esta terceira linha de pensamento defende que só há sucessão na hipótese em que ele não os deixou, concorrendo o cônjuge sobrevivente com os descendentes, na herança dos bens comuns. (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, 2009).

Deste modo, no que se refere ao regime de comunhão parcial de bens, há três

posicionamentos, sendo que o mais vantajoso ao cônjuge sobrevivente é o da segunda corrente,

posto que receberá sua meação e parte de todo o restante do acervo hereditário.

No entanto, no regime de comunhão parcial de bens, entendemos que o

posicionamento que traz maior justiça aos descentes é o da primeira corrente, na qual o cônjuge

sobrevivente terá a sua meação e concorrerá com os descendentes apenas em relação aos bens

particulares, sendo que a meação pertencente aos “de cujus” será partilhada apenas entre os

descendentes deste.

Em relação ao regime de participação final nos aquestos, haverá comunicação dos bens

apenas no momento da dissolução da sociedade conjugal, sendo que, na constância do

casamento, haverá uma separação de bens. Conforme o art. 1.673 do CC, integram o patrimônio

próprio os bens que cada cônjuge possuía ao casar e os por ele adquiridos, a qualquer título, na

constância do casamento. (TARTUCE, SIMÃO, 2008, p. 184)

A regra de que o cônjuge é herdeiro (CC 1830 e 1845), para os fins do CC 1829 I, se aplica ao cônjuge sobrevivente casado sob o regime da participação final nos aquestos. Morto seu par, o sobrevivente continua titular de seu patrimônio próprio, recebe a meação verificada em virtude do regime de bens adotado (CC 1674 a 1684) e participa como herdeiro necessário da herança deixada pelo morto (CC 1685 c/c 1829 I a III, 1832 a 1835). (JUNIOR, NERY, 2006, p. 987).

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“Como o regime de participação final nos aquestos não esta referido entre as exceções

que afastam o direito de concorrência, ao cônjuge sobrevivente é assegurada parcela da

herança” (DIAS, 2008, 159).

No entanto, como no regime de participação final dos aquestos existem três massas de

bens (bens comuns, bens particular da mulher e bens particular do marido), poderão ocorrer

diversas situações na concorrência do cônjuge.

A primeira situação é aquela em que todos os bens deixados pelo cônjuge falecido são bens particulares. Nessa hipótese o cônjuge supérstite não terá direito à participação sobre eles, mas apenas direito sucessório em concorrência com os descendentes. A segunda esta presente quando todos os bens deixados pelo falecido são bens aquestos. Nessa hipótese o cônjuge supérstite terá direito à participação sobre todos eles em decorrência do regime, mas não terá direito sucessório em concorrência com os descendentes. Havendo participação em vida, não haverá concorrência quando da morte. Por fim, pode-se falar da situação em que o falecido deixa aquestos em que há participação do cônjuge viúvo e bens particulares em que não há participação. Nesse caso, quanto aos aquestos, em que há participação em razão do regime, não terá o viúvo direito sucessório em concorrência com os descendentes; quanto aos demais bens, como não tem direito á participação, terá a concorrência sucessória (TARTUCE, SIMÃO, 2008, p. 185).

Ademais, importante destacar que o exposto entendimento decorre do já citado

Enunciado 270 da III Jornada de Direito Civil da Justiça Federal.

Assim, ocorrendo a situação de haver apenas bens particulares do falecido, o cônjuge

terá direito a concorrência com os descendentes, e jamais direito a meação; de outro modo

ocorre quando houver apenas bens comuns deixados pelo falecido, nesta hipótese o cônjuge

terá direito a meação destes bens, não concorrendo os descendentes quanto a outra parte; no

mais, se houver bens comuns e bens particulares deixados pelo “de cujus”, o cônjuge concorrerá

quanto a estes bens e terá direito a meação quanto aqueles.

Outro regime adotado pelo Código Civil é o da separação de bens, que pode ser o

convencional e a obrigatória. O regime da separação convencional decorre única e

exclusivamente da vontade das partes, ao passo que o obrigatório decorre da vontade da Lei

(BRASIL, Código Civil, 2002). Para a maioria da doutrina, cada qual desses regimes terão

efeitos diferentes no momento da dissolução da sociedade conjugal pela morte.

O regime de separação obrigatória de bens é aquele que decorre da Lei quando os

nubentes se encontrarem em uma das situações previstas no art. 1.641, I, II e III, do Código

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O REGIME DE SEPARAÇÃO CONVENCIONAL DE BENS E A NÃO CONCORRÊNCIA DO

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Civil. Assim, impõe-se este regime àqueles que convolarem núpcias pendendo causas

suspensivas, com pessoa maior de setenta anos e de todos que dependerem para casar de

suprimento judicial (BRASIL, Código Civil, 2002).

O regime de separação obrigatória de bens, o cônjuge sobrevivente, em regra, não terá

direito a concorrência com os descendentes do “de cujus”.

Não se aplica ao cônjuge sobrevivente, casado sob o regime da separação obrigatória, a regra geral sobre sucessão legítima do cônjuge (CC 180 e 1845), mas sim a exceção do CC 1829 I. Havendo herdeiros descendentes, o cônjuge sobrevivente casado sob o regime de separação obrigatória de bens não é herdeiro necessário. No caso de haver apenas herdeiro ascendente, o cônjuge sobrevivente casado sob o regime de separação obrigatória é herdeiro em concorrência com os mesmos ascendentes do de cujus (CC 1829 II) (JUNIOR, NERY, 2006, p. 987).

No entanto, embora o cônjuge sobrevivente casado sobre o regime de separação

obrigatória de bens não tenha direito a concorrência, a Súmula 377 do Supremo Tribunal

Federal veio abrandar o dispositivo que impõe este regime. Pela citada súmula, o regime de

separação obrigatória de bens transmuda-se para o regime de comunhão parcial de bens. É que

no regime de separação obrigatória de bens, comunicam-se os bens adquiridos onerosamente

na constância do casamento. “Ainda bem que Súmula do STF alterou este perverso regime para

o da comunhão parcial, e a jurisprudência vem declarando a inconstitucionalidade do malsinado

dispositivo legal” (DIAS, 2008, p. 156).

Em suma, verifica-se que no ordenamento jurídico brasileiro os efeitos sucessórios em

face do cônjuge sobrevivente, quando em concorrência com os descendentes do falecido, terão

repercussões diversas, a depender do regime de bens adotado, ora lhe conferindo direito a

concorrência, ora denegando este direito. Questão de maior atenção, e que é o tema central do

presente trabalho, é a concorrência ou não dos cônjuges casados no regime de separação

convencional de bens, a qual merece tópico em separado.

3. A SUCESSÃO DO CÔNJUGE SOBREVIVENTE NO REGIME DE SEPARAÇÃO

CONVENCIONAL DE BENS, DECISÕES DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

E CRITICAS A LUZ DA AUTONOMIA DA VONTADE

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O último regime pesquisado e que é o ponto central do presente artigo é o regime de

separação convencional de bens, merecendo tópico próprio, para melhor elucidação.

Pela única e exclusiva interpretação do art. 1.829, I do Código Civil, as exceções a

concorrência do cônjuge com os descendentes do “de cujus” são quando o casamento se der

pelo regime de comunhão universal de bens, separação obrigatória de bens e comunhão parcial

de bens, sendo este quando não houver bens particulares. Nestes citados regimes, o cônjuge ora

é apenas meeiro, ora nada recebe.

Para a maioria da doutrina, o cônjuge casado no regime de separação convencional de

bens terá direito a concorrência com os descendentes do “de cujus”.

Fica definitivamente superada a questão e não haverá a comunicação de nenhum bem adquirido durante o casamento, se os cônjuges optarem pelo regime de separação convencional de bens. Consequentemente, ao final do casamento, o cônjuge sobrevivente pode ficar desamparado. Não havendo meação, haverá sucessão com os descendentes. (TARTUCE, SIMÃO, 2008, p. 174).

Pensando em proteger o cônjuge sobrevivente, acreditando que o mesmo pode ficar

desamparado, alguns doutrinadores são coniventes com o entendimento de que o mesmo deve

ser herdeiro em concorrência com os descendentes do “de cujus”, mesmo se casado no regime

de separação convencional de bens.

“Havendo herdeiros descendentes, o cônjuge sobrevivente casado sob o regime da

separação convencional de bens é herdeiro em concorrência com os mesmos descendentes do

de cujus” (JUNIOR, NERY, 2006, p. 987).

Pode-se dizer, portanto, que haverá concorrência do cônjuge sobrevivente com os

descendentes do “de cujus” quando o casamento se der pelo regime de participação final nos

aquestos, separação convencional de bens e comunhão parcial de bens quando houver bens

particulares; por outro lado, não haverá concorrência quando o regime de bens for o de

comunhão universal, separação obrigatória e comunhão parcial de bens quando não houver bens

particulares.

No entanto, em dezembro de 2009, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça,

no Recurso Especial n. 992.749/MS, sob a relatoria da Ministra Nancy Andrighi, proferiu

entendimento diverso do da doutrina majoritária em relação ao casamento contraído no regime

de separação convencional de bens (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, 2009).

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O REGIME DE SEPARAÇÃO CONVENCIONAL DE BENS E A NÃO CONCORRÊNCIA DO

CÔNJUGE SUPÉRSTITE COM OS DESCENDENTES DO “DE CUJUS”

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Ao julgar um caso que envolvia herdeiros, cônjuge sobrevivente e regime de bens, o referido Tribunal atendeu os anseios de uma sensata maioria ao determinar não subsistir ao cônjuge casado sob o regime da separação convencional de bens, direito à concorrência sucessória, privilegiando assim a autonomia da vontade privada em detrimento da ordem de vocação hereditária imposta pelo novo diploma civil. (GEROTI, 2010).

Como informado, o casamento sob o regime de separação convencional de bens,

segundo a doutrina majoritária, o cônjuge sobrevivente concorre com os descendentes do “de

cujus”. No entanto, com o Recurso Especial nº. 992.749/MS, da Terceira Turma do Superior

Tribunal de Justiça, no ano de 2009 proferiu entendimento no sentido de que, sob pena de acabar

com a função do regime de separação convencional de bens, bem como violentar o princípio da

dignidade da pessoa humana, sob a ótica da autonomia da vontade, o cônjuge não deveria

concorrer em referido regime.

O Tribunal de Justiça de São Paulo (BRASIL, Tribunal de Justiça de São Paulo, 2007)

e o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná também se pronunciaram no sentido de que o

cônjuge sobrevivente casado sob o regime de separação convencional de bens não é herdeiro,

portando não deve concorrer. (BRASIL, Tribunal de Justiça do Paraná, 2007).

Porém, a mesma Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça esboçou o

entendimento divergente do proferido no Recurso Especial nº. 992.749/MS, pois no ano de

2015 decidiu que o cônjuge sobrevivente deveria ser herdeiro e concorrer com os descentes nos

bens deixados pelo “de cujus”, quando casado no regime de separação convencional de bens,

conforme Agravo Regimental no Recurso Especial nº. 1.334.340/MG, de relatoria do Ministro

Marco Aurélio Bellizze. (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, 2015).

Ao que se observa, no interior da mesma Turma do Superior Tribunal de Justiça

haviam entendimentos em sentido totalmente opostos, o que somente veio a ser pacificado por

meio do Recurso Especial n. 1.382.170/SP, de relatoria do Ministro Mauro Ribeiro (BRASIL,

Superior Tribunal de Justiça, 2015) . Neste julgado, parece ter ocorrido a pacificação do

entendimento, ao afirmar que o cônjuge casado sob o regime de separação convencional de

bens é herdeiro, apenas sendo afastando se o regime for o da separação obrigatória de bens, na

forma do artigo 1.640 do Código Civil.

Constata-se que, atualmente, prevalece na doutrina e na jurisprudência do Superior

Tribunal de Justiça que no regime de separação convencional de bens o cônjuge sobrevivente

deve sim ser herdeiro necessário e concorrer com os descendentes do “de cujus”.

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Este entendimento supostamente pacificado pelo Superior Tribunal de Justiça viola

frontalmente o princípio da dignidade da pessoa humana e da autonomia da vontade, posto que

se em vida os cônjuges optaram pela não comunicabilidade de bens, a lei não deveria na morte

interferir em tal escolha.

De fato, a opção paternalista do legislador em equiparar o cônjuge a herdeiro independentemente de ele, no exercício de sua autonomia de vontade, ter optado pela separação absoluta de bens, ocasionou o extermínio do regime da separação convencional de bens na hipótese de falecimento de um dos cônjuges (GEROTI, 2010)

A primeira posição do Superior Tribunal de Justiça, do ano de 2009, de relatoria da

Ministra Nancy, parece ser a mais acertada, posto que coaduna com a autonomia da vontade no

momento do casamento e nas relação privadas.

Se este entendimento não prevalecer, temos que o legislador, ao mesmo tempo em que

“concede com a mão direita o direito de livre escolha sobre o patrimônio no casamento, com a

mão esquerda retira a sua eficácia no momento da morte”. (FARIAS, ROSENVALD, 2017, p.

317).

“O legislador, numa demonstração inequívoca de invasão dos limites da autonomia

individual por parte da norma jurídica, desvirtuou por completo a essência do regime da

separação absoluta”. (GEROTI, 2010).

O grande empecilho encontrado pela doutrina e pelos Tribunais era a respeito da

interpretação isolada do indigitado art. 1.829, I, do Código Civil de 2002. O cerne da questão

está na interpretação dos dispositivos legais do Código Civil que tratam da ordem de vocação

hereditária (artigo 1.829), e do regime da separação de bens entre os cônjuges (artigo 1.687).

O legislador, no art. 1.829, I c/c com art. 1.845 do Código Civil, ao fazer com que o

cônjuge sobrevivente seja herdeiro necessário, mesmo casado no regime de separação

convencional de bens, contrariou norma que vem desde a época do reinado no Brasil, pois,

naquela época, todos os casamentos eram feitos por carta de ametade, salvo quando entre as

partes outra coisa for acordada. (MIRANDA, 2001, p. 148). Assim, hodiernamente, parece que

o legislador ignorou a vontade das partes, destoando o regime da separação convencional de

bens.

Para se chegar à conclusão de que o cônjuge casado no regime de separação

convencional de bens não concorre com os descendentes do falecido, deve-se realizar a

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interpretação sistemática dos art. 1.829, I, e do art. 1.687 do Código Civil, conforme asseverou

Miguel Reali, bem lembrado por Celina Goes, em artigo publicado pelo IBDFAM.

Assim, somente a análise dos dispositivos legais referente à matéria colocada poderia conduzir à correta interpretação do dispositivo no art. 1.829, I, do Código Civil. Assim, o Professor Miguel Reale, em artigo publicado no jornal “O Estado de São Paulo”, em 12 de abril de 2003, analisou o disposto no art. 1.829, inciso I, do Novo Código Civil, entendendo que tanto o cônjuge casado pelo regime de separação convencional de bens, quanto aquele casado pelo regime de separação obrigatória de bens, não são herdeiros necessários na hipótese de concorrência com os descendentes. A análise do Prof. Reale é baseada no princípio primordial de hermenêutica jurídica, que consiste na interpretação de um artigo em harmonia com os demais contidos naquela codificação. Assim, a análise isolada do art. 1829, I, do Código Civil, pode levar a uma conclusão equivocada; devendo, ao contrário, situar o referido dispositivo no contexto do conjunto das regras relativas à questão examinada. (GOES, 2007).

Para o professor Reali, a interpretação para chegar a conclusão deve ser feita entre os

dispositivos da matéria examinada, quais sejam: o de que trata da concorrência do cônjuge e o

de que dispõe sobre o regime de separação convencional de bens. Assim, conclui:

Nessa ordem de ideias, duas são as hipóteses de separação obrigatória: uma delas é a prevista no parágrafo único do art. 1.641, abrangendo vários casos; a outra resulta da estipulação feita pelos nubentes, antes do casamento, optando pela separação de bens. A obrigatoriedade da separação de bens é uma consequência necessária do pacto concluído pelos nubentes, não sendo a expressão “separação obrigatória” aplicável somente nos casos relacionados no parágrafo único do art. 1.641. Essa minha conclusão ainda mais se impõe ao verificarmos que – se o cônjuge casado no regime de separação de bens fosse considerado herdeiro necessário do autor da herança – estaríamos ferindo substancialmente o disposto no art. 1.687, sem o qual desapareceria todo o regime separação de bens em razão do conflito inadmissível entre esse artigo e o de n. 1.828, I, fato que jamais poderá ocorrer numa codificação à qual é inerente o princípio da unidade sistemática. (REALI, p. 2).

Ao verificar a obrigatoriedade do regime de separação de bens, deve se ter em mente

que esta obrigatoriedade deve ocorrer tanto no regime de separação de bens convencionada por

meio de pacto antenupcial, quanto para o regime de separação imposto pela Lei. É que a

obrigatoriedade da separação de bens ora decorre da Lei, ora decorre da vontade das partes.

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Esta é a melhor interpretação e a mais justa solução para aqueles que se casam pelo regime da separação total pactuada já que, se as partes pactuaram a separação de bens, muito provavelmente não gostariam que o cônjuge supérstite fosse seu herdeiro em concorrência com os descendentes e, se às partes interessar tal concorrência, poderão fazer doação em vida ao cônjuge ou testamento deixando o disponível para o cônjuge. (GOES, 2007)

Caso o cônjuge casado sob o regime convencional de bens queira assegurar certa parte

de seu patrimônio a seu consorte, que faça doação ou testamento da parte disponível da herança.

Cabe ao cônjuge utilizar-se desses institutos para deixar bens a seu consorte, quando casado no

regime de separação convencional de bens. Não deve o Estado interferir e impor que o cônjuge

seja herdeiro necessário no regime de separação convencional, eis que evidente violação a

autonomia da vontade.

Se em vida os cônjuges resolveram, de forma voluntaria e livre, adotar o regime de

separação total de bens, certamente na morte pretendem que assim seja mantido.

O Código Civil decidiu que os cônjuges casados pelo regime de separação

convencional de bens possuem total liberdade na administração de seus bens e separação do

patrimônio em vida. Portanto, não cabe ao legislador contrariar o disposto no art. 1.687 do

referido diploma legal, afirmando que o cônjuge sobrevivente é herdeiro necessário no regime

de separação convencional de bens, ou seja, não cabe ao mesmo misturar os bens no momento

da morte.

Ora, se o novo Código Civil, ao disciplinar o regime da separação legal e convencional de bens decidiu pelo total isolamento do patrimônio dos cônjuges, dispensando a outorga uxória e afastando inclusive a comunhão de aquestos, não se pode conceber o entendimento de que cônjuges casados sob o regime de separação voluntária ou convencional de bens seriam herdeiros necessários, concorrendo com os descendentes, sob pena de clara violação ao disposto no art. 1.687 do referido diploma legal (GOES, 2007).

Considerar que o cônjuge sobrevivente casado no regime de separação convencional

de bens concorre com os descendentes do falecido, viola o art. 1.687 do Código Civil. De mais

a mais, caso os cônjuges casados no regime de separação convencional de bens queiram que

um deles seja herdeiro necessário, basta alterar o regime de bens, posto que vigora no Brasil o

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princípio da mutabilidade do regime de bens. Logo, se em vida o morto não quis alterar o regime

de bens, nem fazer doações ou testamento a seu consorte, não cabe ao legislador impor o

cônjuge sobrevivente como herdeiro necessário em concorrência com os descendentes.

Ao Estado não é lícito interferir na vida exclusiva do casal, sob pena de violar o

disposto no art. 1.513 do Código Civil, que determina que é vedada a intervenção publica ou

privada na comunhão de vida instituída pela família. (BRASIL, Código Civil, 2002).

Além disso, contrariar a vontade dos nubentes no momento da morte viola também o

princípio da dignidade da pessoa humana, de onde decorre a autonomia da vontade. “Por tudo

isso, a melhor interpretação é aquela que prima pela valorização da vontade das partes na

escolha do regime de bens, mantendo-a intacta, assim na vida como na morte dos cônjuges”.

(BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, 2009).

Uma vez estipulado o regime de casamento como o de separação convencional de

bens, esta estipulação deve prevalecer na constância do casamento, bem como em sua

dissolução por divórcio ou por morte.

Dessa forma, não remanesce, para o cônjuge casado mediante separação de bens, direito á meação, salvo previsão diversa em pacto antenupcial, tampouco á concorrência sucessória, respeitando-se o regime de bens estipulado, que obriga as partes na vida e na morte. Nos dois casos, portanto, o cônjuge sobrevivente não é herdeiro necessário. Entendimento em sentido diverso suscitaria clara antinomia entre os arts. 1.829, inc. I, e 1.687, do CC/02, o que geraria uma quebra da unidade sistemática da lei codificada, e provocaria a morte do regime de separação de bens. Por isso, entre uma interpretação que torna complementares os citados dispositivos, não é crível que seja conferida preferência a primeira solução (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, 2009).

O ato de se convencionar o regime de separação convencional de bens é um ato

realizado a dois, o qual o direito sucessório não cabe impor limitações.

Assim, a regra que confere o direito hereditário de concorrência ao cônjuge sobrevivente não alcança nem pode alcançar os que têm e decidiram ter patrimônios totalmente distintos, sob pena de clara violação ao art. 1.687 do CC/02, notadamente quando a incomunicabilidade resulta da estipulação feita pelos nubentes, antes do casamento. (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, 2009)

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Portanto, não deve a Lei infringir a vontade livre estipulada por meio de pacto

antenupcial, sob pena de não conferir segurança jurídica aos atos dotados de publicidade

oponível “erga omnis”.

A intenção dos cônjuges que escolhem, livre e reciprocamente, o regime de separação

absoluta é de clareza solar: estabelecer uma relação afetiva sem interseções patrimoniais,

apenas afetiva e amorosa. (FARIAS, ROSENVALD, 2017, p. 316).

A gravidade do problema reside em situações na qual o falecido possui filhos

exclusivos que não é filho do cônjuge sobrevivente. Nesta situação, adotar que o cônjuge

sobrevivente deve concorrer com os filhos exclusivos do falecido, evidentemente altera toda a

lógica do sistema. Imagine-se que a viúva também tenha filhos exclusivos. Deste modo, os bens

que o cônjuge sobrevivente recebeu em concorrência com os descendentes do falecido será

posteriormente transmitido aos seus descendentes exclusivos, que nada tem haver com o

proprietário originário.

Veja que a situação certamente gera discórdia, pois que é incompreensível imaginar

que pessoa estranha ao afeto e a consanguinidade possa receber o patrimônio que deva pertencer

aos herdeiros verdadeiros.

O que causa maior estranheza ao entendimento de que o cônjuge sobrevivente casado

no regime de separação convencional de bens deve concorrer, é o fato de se estar diante de

relações privadas, na qual o Estado não deve intervir, sendo que toda e qualquer intervenção

torna-se absurda e excessiva.

O sentido lógico da existência do regime de separação convencional de bens é

justamente o de separar o patrimônio dos consortes, para que cada cônjuge tenha seus bens

exclusivamente. Assim, entender que neste regime o cônjuge sobrevivente deva concorrer

esvazia e torna inócua a sua adoção, principalmente quando o proprietário do patrimônio já

antevia nada deixar para seu consorte.

Com isso, o entendimento favorável a concorrência ignora o regime escolhido

voluntariamente pelo casal, afrontando a autonomia da vontade. (FARIAS, ROSENVALD,

2007, p. 322).

O Superior Tribunal de Justiça, no acórdão capitaneado pela Ministra Nancy Andrighi,

demonstrou a decisão mais acertada, ao decidir afastar o cônjuge sobrevivente casado sob o

regime de separação convencional de bens da concorrência com os descendentes do falecido,

posto que entendimento em sentido diverso contraria a sistemática da matéria. Assim, tal

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entendimento esta em consonância com os demais dispositivos legais e principiológicos,

merecendo criticas a decisão proferida no Recurso Especial n. 1.552.553/RJ/SP.

A par disto, embora supostamente o Superior Tribunal de Justiça tenha pacificado o

entendimento, espera-se que novos casos concretos cheguem em referida Corte, para que ao

final possa proferir julgamento coadunado com os princípios da autonomia da vontade,

dignidade da pessoa humana e intervenção mínima do Estado nas relação privadas.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O regime de comunhão parcial de bens traz discuções doutrinárias, sendo que alguns

defendem que o cônjuge sobrevivente herdará somente os bens particulares, outros dizem que

herdará os bens particulares e a meação do falecido e, ainda, há quem defenda que o cônjuge

sobrevivente não herdará caso haja bens particulares do “de cujus”.

No regime de participação final nos aquestos os bens se comunicarão somente no

momento da dissolução da sociedade conjugal, sendo que na constância desta vigora verdadeira

separação de bens. No entanto, como no regime de participação final dos aquestos existem três

massas de bens (bens comuns, bens particular da mulher e bens particular do marido), poderão

ocorrer diversas situações na concorrência do cônjuge.

O regime de separação de bens se subdivide em convencnional e obrigatório. O regime

de separação obrigatória de bens decorre da Lei quando os nubentes se enquadrarem nas

hipoteses do art. 1.641 e incisos, do Código Civil, sendo certo que, neste regime, o cônjuge

sobrevivente não receberá nada como herança, possuindo, pela súmula 377 do Supremo

Tribunal Federal, direito apenas a parte dos bens adquiridos na constância do casamento. Já o

regime de separação convencional de bens deve ser escolhido por meio de pacto antenupcial.

Neste regime, parte da doutrina, interpretando o art. 1.829, inciso I, do Código Civil, defende a

concorrência do cônjuge sobrevivente com os descendentes do falecido.

O Superior Trbunal de Justiça, no ano de 2009, proferiu entendimento de que cônjuge

sobrevivente não deve herdar no regime de separação convencional de bens. Porém, poucos

anos depois, o mesmo Tribunal decidiu de forma totalmente oposta ao entendimento anterior,

concedendo ao cônjuge sobrevivente o direito a herdar juntamente com os descendentes do “de

cujus” no regime de separação convencional de bens.

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O entendimento do Superior Tribunal de Justiça, proferido no Recurso Especial n.

992.749, no sentido de que aqueles que manusearam pacto antenupcial, fazendo a escolha pelo

regime de separação convencional de bens, não deverão concorrer com os descendentes do “de

cujus”, parece ser o mais acertado, a luz da autonomia da vontade e intervenção minima na

relações privadas. Deste modo, o melhor entendimento e que deve ser defendido é o de que o

cônjuge sobrevivente que optar pelo regime de separação convencional de bens, nada deve

herdar, sendo afastado de qualquer tipo de herança.

Ressalte-se que é o entendimento que se coaduna com a sociedade atual, posto que há

casamentos em que os nubentes possuem filhos exclusivos e patrimônio antes das nupcias.

Entendimento diverso viola evidentemente o princípio da dignidade da pessoa humana, posto

que entre suas vertentes encontra-se o principio da autonomia da vontade. Não cabe ao Estado

interferir em regramentos que dizem respeito apenas a vontade dos nubentes, notadamente em

se tratando de direitos disponíveis, como é o caso do patrimônio.

Incompreensivel seria a situação da pessoa que contrair nupcias, realizar pacto

antenupcial em que estipula o regime de separação convencional de bens e, ao final da vida, ver

sua escolha ser desrespeitada por vontade do legislador, o que acarreta verdadeira

desistimulação para muitos.

Conferir a concorrência do cônjuge sobrevivente com os descendentes do falecido fará

com que o regime de separação convencional de bens deixe de existir, fazendo com que a regra

do art. 1.687 e 1.688 se torne letra morta.

Importante ressaltar que, caso o falecido tenha a intenção de contemplar seu parceiro

com algum patrimonio, basta o mesmo realizar doações ou pactuar regime de bens diverso do

da separação obrigatória.

Há de se atentar que aqueles que pactuam pela separação de bens, terão mais

consciência da divisão do patrimônio do que aqueles que são levados a tal situação de forma

obrigatória.

Portanto, o que deve prevalecer, a luz da dignidade da pessoa humana, autonomia da

vontade e intervenção minima do Estado, é o entendimento de que no regime de separação

convencional de bens o cônjuge sobrevivente nada herda. Entendimento diverso deve ser

rechaçado.

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Organização Comitê Científico Double Blind Review pelo SEER/OJS Recebido em: 02.07.2018 Aprovado em: 11.07.2018

Revista de Direitos Sociais, Seguridade e Previdência Social

Revista de Direitos Sociais, Seguridade e Previdência Social | e-ISSN: 2525-9865 | Salvador | v. 4 | n. 1 | p.

01 – 17 | Jan/Jun. 2018 1

A INAPLICABILIDADE DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS PELO INSTITUTO NACIONAL DE SEGURIDADE SOCIAL (INSS) NA CONCESSÃO DO

BPC (BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA)

Vagner dos Santos Teixeira1 José Guilherme Ramos Fernandes Viana2

RESUMO Este artigo trata das questões atinentes ao BPC (Benefício de Prestação Continuada) previsto na Lei Orgânica da Assistência Social. No cerne desta análise, está a renda per capita familiar do requerente limitada a ¼ do salário mínimo que, por vezes, impede a concessão deste benefício, pois a autarquia (INSS) não analisa outros critérios sociais para auferir condição de hipossuficiência do necessitado, desprezando, as decisões dos Tribunais Superiores que vem adotando outros critérios sociais para a concessão do amparo estatal. Palavras-Chave: Direitos Humanos; Renda Familiar; BPC, Lei Orgânica Da Assistência Social.

THE INAPLICABILITY OF FUNDAMENTAL HUMAN RIGHTS BY THE NATIONAL INSTITUTE OF SOCIAL SECURITY (INSS) IN THE CONCESSION OF

THE BPC (CONTINUED BENEFIT OF SUPPLY)

ABSTRACT This article deals with the issues related to the BPC (Continuous Benefit Benefit) provided for in the Organic Law of Social Assistance. At the heart of this analysis is the per capita family income the applicant limited to ¼ the minimum wage, which sometimes prevents the grant this benefit, since the (INSS) does not analyze other social criteria to obtain a condition hyposufficiency the needy, despising, are the decisions of the High Courts that have adopted other social criteria allowing the granting state protection. Keywords: Human Rights; Family Income; BPC; Organizational Law Of Social Assistence

INTRODUÇÃO

Em um Estado Democrático de Direito, o princípio da igualdade e da dignidade da

pessoa humana são e devem ser indissociáveis, pois por meio deles é que se pode promover o

bem estar de todos os necessitados, o equilíbrio econômico e social para suplantar as

desigualdades.

1Especialista em Direito Previdenciário pela Faculdade Legale. (2016). Especialista em Direito Penal pela Faculdade de Direito Professor Damásio de Jesus. (2017) . Graduado em Direito pelo Centro Universitário da Fundação de Ensino para Osasco – UNIFIEO. (2010). Advogado. – [email protected] 2Mestre em Direitos Humanos Fundamentais pelo Centro Universitário da Fundação de Ensino para Osasco- UNIFIEO. (2016). Especialista em Comércio Exterior Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas (UNIFMU). Graduado em Direito pelo Centro Universitário da Fundação de Ensino para Osasco -UNIFIEO. (2010). Advogado. – [email protected]

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Vagner dos Santos Teixeira & José Guilherme Ramos Fernandes Viana

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Desde a Revolução Francesa, ocorrida entre os anos de 1789 a 1799, já se apregoava

os princípios da Liberté, Égalité, Fraternité (liberdade, igualdade e fraternidade) que mais

tarde deram origem a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão que transformaram

tais princípios em direitos.

Estes princípios ganharam força e atuaram como verdadeiras molas propulsoras para

a afirmação da Revolução Americana, liderada por Thomas Jefferson em quatro de julho de

1779, que juntamente com os representantes dos trezes estados deram o esteio à igualdade

entre homens.

No âmbito dos Direitos Humanos, a Carta das Nações Unidas, promulgada no ano de

1945, reafirmou a fé nos direitos fundamentais, na dignidade e na igualdade de direitos dos

homens e das mulheres. O legislador brasileiro instituiu na Constituição da República

Federativa do Brasil, de 1988, o princípio da dignidade da pessoa humana previsto no artigo

1, inciso III e a igualdade de todos os cidadãos perante a lei sem distinção de qualquer

natureza no “caput” do artigo 5º.

Nesse diapasão, temos que a Constituição Federal Brasileira, de 1988, consagrou os

direitos sociais como uma prestação legal imposta ao Estado. O ônus estatal, por meio de

políticas sociais e participação privada, possibilita melhoria das condições de vida daqueles

que são considerados hipossuficientes, vez que, a estes atribui o direito à alimentação,

trabalho, saúde e a própria manutenção da vida, alicerces intrínsecos no princípio da

igualdade e da dignidade da pessoa humana.

Alicerçado nessas ideias, o presente trabalho foi dividido em três capítulos. No

primeiro capítulo abordamos a gênese da ideia de seguridade social, desde a história do

homem primitivo, que após dominar as técnicas de conservação de alimento, passou a estocá-

los na tentativa de prevenir eventos futuros e, por fim, as transformações após a Segunda

Guerra Mundial consolidadas pela OIT (Organização Internacional do Trabalho).

No segundo capítulo, analisamos os aspectos históricos da Seguridade Social no

Brasil. Ao longo de décadas, as caixas de assistência foram crescendo e abrangendo diversas

classes de trabalhadores até formarem um grande sistema de caixas assistenciais sem

conexões entre si e, por fim, a criação do Instituto Nacional de Seguridade Social – INSS no

ano de 1990.

No terceiro capítulo, destacamos o critério da renda per capita de ¼ do salário

mínimo utilizada pelo INSS e a posição dos Tribunais Superiores acerca deste parâmetro

como requisito para concessão do benefício de prestação continuada.

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No estudo utilizamos a pesquisa bibliográfica e jurisprudencial e o método dedutivo

para se chegar à conclusão de que limitar a concessão do benefício de prestação continuada

apenas com análise do requisito objetivo da lei, qual seja, a renda per capita igual ou inferior

a ¼ do salário mínimo é desprezar o preceito fundamental da dignidade humana insculpidos

em todos os dispositivos Constitucionais de garantia dos Diretos Fundamentais da Pessoa

Humana.

1 O SURGIMENTO E A EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE

SEGURIDADE SOCIAL. Narra a bíblia que o povo Hebreu quando se viu sem fé e sem acreditar nas

promessas divinas passou a guardar o maná (pães que caiam do céu) para satisfazer a fome

dos dias que viriam. As benesses ocorrem por longos seis dias, nas manhãs o povo recebia os

pães e pela tarde as carnes, contudo, Deus irado pela rebeldia de Seus escolhidos permitiu o

apodrecimento de todo o alimento estocado. (NOVA VERSÃO INTERNACIONAL, 2010,

pp. 75/77)

O instinto de sobrevivência é intrínseco a natureza humana, comportamento que

pode ser analisado também no mundo animal. Naturalmente, o instinto de sobrevivência do

homem foi aperfeiçoado na medida em que ao longo de sua existência descobriu e dominou

novas técnicas e habilidades, certamente, fatos que o diferenciam das demais espécies.

Nesse sentido, Ibrahim (2015, p.2), afirma:

A preocupação com infortúnios da vida tem sido uma constante da humanidade. Desde os tempos remotos, o homem tem se adaptado, no sentido de reduzir os efeitos das adversidades da vida, como fome, doença e velhice, etc.

O conceito de proteção social teve sua gênese no seio das famílias primitivas, pois no

passado era comum o aglomerado de pessoas de laços consanguíneos. Nestas comunidades

familiares, cada indivíduo possuía uma responsabilidade, ficando a cargo dos mais jovens em

pleno vigor físico, a missão de cuidar dos mais idosos e incapacitados. Nesse sentido, o

homem médio sempre procurou meios de garantir sua alimentação e de sua família quando

exposto a carência econômica, enfermidade, incapacidade laboral, diminuição ou perda de

renda. Tais fatores levaram a necessidade de criação de instrumentos de proteção para

confrontar as mazelas sociais, refletindo no mundo jurídico (IBRAHIM, 2015, p.2).

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O assistencialismo, por assim dizer, inicia-se com o conceito de caridade, movimento

criado pelas igrejas cujo objetivo era incentivar os mais abastados a socorrer aqueles que se

encontravam em estado de indigência (IBRAHIM, 2015, p.2)

Em sua obra, dos Santos (2013. p.34) afirma que:

Nessa fase, não havia direito subjetivo do necessitado à proteção social, mas mera expectativa de direito, uma vez que o auxílio da comunidade ficava condicionado à existência de recursos destinados à caridade.

O conceito de caridade e auxílio ao necessitado começou a perder o vínculo na

Inglaterra por volta do ano de 1601. A proteção aos necessitados ganhou maior dimensão com

a atuação do Poder Público, ou seja, o Estado criou mecanismos sociais que permitiram o

verdadeiro assistencialismo. O primeiro passo foi dado pela Rainha Isabel I, conhecida

também como a “Rainha Gloriana”, que editou o Act of Relief of the Poor – Lei dos Pobres,

imputando ao Estado a responsabilidade em amparar os comprovadamente necessitados. Com

essa lei origina-se a assistência social ou assistência pública, propriamente dita. (DOS

SANTOS, 2013,. p.35)

A lei dos pobres impôs a igreja a responsabilidade em administrar um fundo que era

formado pela arrecadação de uma taxa obrigatória oriunda da classe rica. Assim, o Poder

Público implantava o binômio da igualdade solidária. A partir desse conceito surgiram as

empresas de seguros de fins lucrativos garantidoras da proteção em situações de necessidades.

Uma das primeiras formas de seguro surgiu no século XII o chamado seguro marítimo -

reinvindicação promovida pelos italianos. O desenvolvimento das bases técnicas de seguro

deu origem a criação de novos segmentos tais como: seguro saúde, de vida, contra invalidez,

danos e acidentes, contudo, era privilégio de uma minoria que possuía subsídios para quitar os

prêmios, excluindo assim a proteção da grande massa de trabalhadores. A ausência de

proteção a grande classe de proletariados, bem como, a revolução industrial, nos séculos

XVIII e XIX impulsionaram a criação de um sistema de seguros cuja fiança da efetividade

estava atrelada a distribuição dos riscos dos segurados deu a ideia de Seguridade Social. (DOS

SANTOS, 2013, p.36)

Em 1883, nasce na Prússia, o seguro social fruto da proposta do Alemão Bismarck

conhecido também como “chanceler de ferro”. Esta proposta resultou na Lei do Seguro

Doença, que mais tarde deu origem ao Seguro Enfermidade, cujo objetivo principal era a

proteção dos trabalhadores com as mesmas bases tal e qual é o seguro privado. Por esta razão,

à classe operária era imposta a obrigatoriedade de contratação de um seguro que os

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protegessem dos “perigos sociais”, ou seja, dos riscos incertos e futuros, tais como: doença,

velhice, invalidez e morte. (KERTZAMAN, 2015, p.45)

Durante o século XX, a sistemática Bismarckiana estendeu-se pela Europa, contudo,

sucumbiu diante das consequências causadas pela Primeira Guerra Mundial. Naturalmente, o

número de órfãos, viúvas e combatentes feridos consumiram toda e qualquer reserva

financeira principalmente na Alemanha e Áustria. (DOS SANTOS, 2013, p.38).

Em 1919, com a assinatura do Tratado de Versalhes, surgiu o a primeira tentativa de

se implantar um regime universal de justiça social.Com a Fundação do Bureau International

Du Travia (BIT) – Repartição Internacional do Trabalho – realizou-se a 1ª Conferência

Internacional do Trabalho, que atribuiu o desenvolvimento da previdência social e a

implantação em todas as nações do mundo civilizado. Como resultado dessa conferência,

surgiu a primeira Recomendação para o seguro desemprego. A 3ª Conferência, realizada no

ano de 1921, recomendou a extensão do seguro social aos trabalhadores da agricultura. A 10ª

Conferência, realizada em 1927, estendeu as demais Convenções e Recomendações sobre o

seguro desemprego aos trabalhadores das indústrias do comércio e da agricultura. Em 1933 e

1934 foram realizadas a 17ª e 18ª Conferências respectivamente. Suas recomendações

consolidaram e regularam o seguro contra o desemprego. (DOS SANTOS, 2013, p.39)

A Segunda Guerra Mundial foi responsável por grandes transformações no conceito

de proteção social. Em 1941, o governo Inglês, empenhando na reconstrução do país, formou

uma Comissão liderada por Sir Willian Beveridge. ( BBC, 2018, p.1)

O plano analisou o seguro social e seus serviços abrangendo as necessidades dos

fundos e as previsões. Beveridge teve papel importante no desenvolvimento da legislação

social na Europa e na América. (DOS SANTOS, 2013, p.40)

Foi em 1944, que a OIT3 (Organização Internacional do Trabalho) adotou a

orientação para unificação dos sistemas de seguro social estendendo a todos os trabalhadores

rurais e urbanos, inclusive seus familiares. Somente em 1952, na 35ª Conferência

Internacional foi que a OIT aprovou a Convenção nº 102, denominada “Norma Mínima em

Matéria de Seguridade Social”, cuja aprovação ocorreu na 35ª reunião da Conferência

3 SITE OIT, disponível em: http://www.oitbrasil.org.br - OIT: foi criada em 1919, como parte do Tratado de Versalhes, que pôs fim à Primeira Guerra Mundial. Fundou-se sobre a convicção primordial de que a paz universal e permanente somente pode estar baseada na justiça social. É a única das agências do Sistema das Nações Unidas com uma estrutura tripartite, composta de representantes de governos e de organizações de empregadores e de trabalhadores. A OIT é responsável pela formulação e aplicação das normas internacionais do trabalho (convenções e recomendações) As convenções, uma vez ratificadas por decisão soberana de um país, passam a fazer parte de seu ordenamento jurídico. Acesso em: 14 de fevereiro de 2018.

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Internacional do Trabalho em Genebra 1952 e, entrou em vigor no plano internacional em 27

de abril de 1955. Foi Aprovado pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo nº

269 de 19 de setembro de 2008 e ratificado em 15 de Junho de 2009. ( BBC, 2018, p.1)

2 OS ASPECTOS HISTÓRICOS DA SEGURIDADE SOCIAL NO BRASIL.

Durante o período colonial, tiveram início as benesses assistenciais aos

necessitados. Em 1543, ocorreu o surgimento das Santas Casas de Misericórdia na cidade de

São Vicente e em 01 de outubro de 1821, O Príncipe Regente Dom Pedro de Alcântara

expediu Decreto que concedia aposentadoria aos mestres e professores após 30 de anos de

efetivo serviço, assegurando o abono de ¼ (um quarto) dos ganhos aos trabalhadores que

optassem pela continuidade laboral. (CASTRO, 2017, p.55)

No ano de 1888, o Decreto 9.912-A, de 26 de março, estabeleceu o direito de

aposentadoria aos empregados dos Correios que completassem 30 anos de efetivo trabalho e

idade mínima de 60 anos. (CASTRO,2017, p.55)

Os trabalhadores da Estrada de Ferro Central do Brasil também foram

contemplados com o direito de aposentadoria cujos termos estavam estabelecidos no Decreto

221, de 26 de fevereiro de 1890, sendo o mesmo direito, estendido aos demais trabalhadores

ferroviários do Estado em 12 de junho do mesmo ano, por meio do Decreto nº

565.(KERTZAMAN, 2017,p.47)

As aposentadorias concedidas a estes trabalhadores não tinham caráter contributivo,

ou seja, tais trabalhadores não contribuíam para o regime, vale dizer, que tais benesses eram

deliberadamente concedidas pelo Estado, sem a necessidade de contribuição do segurado.

(KERTZAMAN, 2017, p.47).

A obrigatoriedade das contribuições ganhou força com a publicação do Decreto

Legislativo nº 4.682 de 24 de Janeiro de 1923, mais conhecido como Lei Eloy Chaves que,

por meio deste Decreto, criou as Caixas de Aposentadorias e Pensões das empresas de

construção de estradas de ferro existentes, assegurando o direito de aposentadorias aos

trabalhadores e pensões aos seus dependentes, considerado pela doutrina majoritária o marco

inicial da Previdência Social no Brasil. (CASTRO, LAZZARI, 2017, p.55)

O sistema Eloy Chaves possuía semelhança ao modelo previdenciário alemão de

1883. Suas características essenciais eram a obrigatoriedade de contribuições dos

trabalhadores; a regulamentação e administração de competência do Estado e a cobertura dos

eventos prevista em lei, tais como as incapacidades, mortes e assistência a subsistência que,

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gradativamente, foram surgindo outras caixas de assistência de segmentos econômicos

diversos, merecendo destaque:

A Lei 5.109 /1926, estendeu os direitos aos trabalhadores portuários e marítimos.

Aos trabalhadores dos serviços telegráficos e radiotelegráficos foram estendidos os mesmos

benefícios por meio da Lei 5.485/1928. (CASTRO, LAZZARI, 2017, p.56)

Nesse diapasão, o Decreto 5.128, de 31 de Dezembro de 1926, criou o Instituto da

Previdência dos Funcionários Públicos da União; O Decreto 19.433, de 26 de Novembro de

1930, criou o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio com objetivo de fiscalizar e

orientar a Previdência Social, inclusive, como órgão de recursos das decisões das Caixas de

Aposentadorias e Pensões. (CASTRO, LAZZARI, 2017, p.56)

Em 1930, O governo Getúlio Vargas suspendeu por meio do Decreto nº 19.540 de

17 de dezembro a concessão de qualquer aposentadoria e determinou a revisão geral dos

benefícios face as inúmeras denúncias de corrupção nas concessões, marcando a primeira

crise no sistema previdenciário. (NETO, 2013, p.51)

Em 1960, foi criado o Ministério do Trabalho e Previdência Social e promulgada a

Lei nº 3.807 – LOPS - Lei Orgânica da Previdência Social, cujo projeto tramitava desde o ano

de 1947, contudo, não teve o condão de unificar as caixas existentes, todavia, estabeleceu

normas uniformes para o amparo a segurados e dependentes de vários Institutos existentes.

(CASTRO, LAZZARI, 2017, p.57)

Foi em 1º de Janeiro de 1967, que os Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs)

foi unificado por meio do Instituto Nacional da Previdência Social – INPS, criado pelo

Decreto – Lei nº 72, de 21 de Novembro de 1966 e, ao longo dos anos passou a incorporar

outros benefícios que foram sendo criados tais como: o auxílio desemprego (1967), o seguro

acidente de trabalho estabelecido pela Lei 5.316, de 14 de setembro do mesmo ano,

(CASTRO, LAZZARI, 2017, p.58)

A Lei nº 6.439/1977, trouxe importante transformação administrativa

organizacional ao modelo previdenciário por meio do SINPAS – Sistema Nacional de

Previdência e Assistência Social, que distribuiu as atribuições entre diversas autarquias,

surgindo assim, o IAPAS – Instituto de Administração Financeira da Previdência Social, cujo

objetivo era arrecadar e fiscalizar o contribuinte e o Instituto Nacional de Assistência Medica

da Previdência Social – INAMPS, cujo papel era de atender os segurados e seus dependentes

na área da saúde.(CASTRO, LAZZARI, 2017, p.59)

Ao instituto Nacional Previdência Social – INPS coube a responsabilidade pelos

pagamentos e manutenção dos benefícios previdenciários e à Fundação do Bem Estar do

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Menor - FUNABEM – o atendimento e amparo aos menores carentes infratores (CASTRO,

LAZZARI, 2017, p.60)

Em 1990, foi criado o Instituto Nacional de Seguridade Social – INSS para

substituir o INPS, IAPAS e, desde então, importantes alterações foram realizadas dentro da

seguridade social tais como: a publicação da Lei nº 8.212/1991 que disciplina o plano de

custeio da Seguridade Social, da Lei 8.213/1991 e Decreto 3.048/1999, ambos dispõem os

Planos de Benefícios da Previdência Social e, por fim, a Lei 8.742 de 07 de Dezembro de

1993 que dispõe sobre a organização da Assistência Social Nacional. (CASTRO, LAZZARI,

2017, p.61)

3 RENDA PER CAPITA x PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA

PESSOA HUMANA NA CONCESSÃO DO BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, também conhecida como

Constituição Cidadã, consagrou a seguridade social no campo dos direitos sociais.

Ensina Waleska Cariola Viana que:

A Previdência Social integra o grandioso sistema da Seguridade Social que reúne ações nas áreas da Saúde, Previdência Social e Assistência Social[...] A ideia é a proteção do trabalhador idoso em razão deste estar mais suscetível a sofrer com a incapacidade fisiológica, a doença, a invalidez e o desemprego, o que faz com que a “idade avançada” seja um fator de risco. (CARIOLA VIANA, 2015, p. 203).

Diferentemente das outras áreas do sistema, a assistência social não possui fonte de

custeio própria. O segurado não está submetido a regra da contrapartida, ou seja, não realiza

contribuições, contudo, possui o direito de ser amparado pelo sistema no caso de evento

futuro que o impeça de promover sua própria subsistência ou de tê-la por meio da família.

(CASTRO, LAZZARI, 2017, p.574)

Prevê o artigo 203 da Constituição Federal Brasileira de 1988, que a assistência

social será custeada pela seguridade social. A seguridade Social, por sua vez, é financiada por

toda a sociedade direta e indiretamente mediante recursos oriundos dos orçamentos da União,

dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal, nos moldes do artigo 195 da Carta Magna.

(BRASIL, CF, 2018, p.78)

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O inciso V do artigo 203 da Constituição Federal Brasileira de 1988, garante o

pagamento de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao

idoso que fizerem prova de não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la

provida por sua família nos termos da Lei. (BRASIL, CF, 2018, p.79)

Nesse diapasão, em 07 de Dezembro de 1993, foi promulgada a Lei 8.742 que dispõe

sobre a organização da Assistência Social no Brasil. Como premissa, a referida lei estabeleceu

o dever do Estado de garantir a assistência aos hipossuficientes com o objetivo de Justiça

social. (CASTRO, LAZZARI, 2017, p.574)

Em seu texto original, a mencionada Lei, trazia estampado em seu artigo 20 o direito

de percepção de um salário mínimo ao idoso com 70 anos de idade e a pessoa com deficiência

incapaz de prover a sua própria manutenção ou de ser provida por sua família, desde que a

renda mensal familiar per capita fosse inferior a ¼ (um quarto) do salário mínimo,

entendimento que vigorou até o final de 1997. (BRASIL, 2018, p.28)

Entre 01/01/1998 até 31/12/2003, houve mudança na faixa etária, passando a idade

mínima de 70 para 67 anos. Em 2003, com a promulgação do Estatuto do Idoso por meio da

Lei 10.741/2003, a idade mínima foi reduzida de 67 anos para os atuais 65 anos,

permanecendo este requisito inalterado até os dias atuais. (KERTZAMAN, 2017, p.457)

Afirma Frederico Amado:

A redução da idade mínima para a concessão deste benefício assistencial decorre da concretização do Princípio da Universalidade de Cobertura e do Atendimento, pois apesar do crescimento da expectativa de vida dos brasileiros, houve uma extensão da proteção social em favor dos necessitados, na medida em que surgiram mais recursos públicos disponíveis. (AMADO, 2015, pp.45/46)

Já o conceito de deficiência foi amplamente consolidado por meio do Decreto

Legislativo nº 186/2008 – Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência cujo

protocolo facultativo foi assinado na cidade de Nova Iorque em 30/07/2007. (AMADO, 2015,

pp.48/49)

A lei 12.435, de 06 de Julho de 2011, após sua publicação alterou a Lei 8.742/1993

– Lei Orgânica da Assistência Social, estabeleceu ao conceito de incapacidade um limite

temporal de no mínimo 02 anos de natureza física, intelectual ou sensorial que impeça o

deficiente de participar e interagir plenamente com a sociedade. (BRASIL, LEI 12.435/2011,

2018, p.10)

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Fábio Zambitte Ibrahim, afirma:

Há clara intenção de adequar a legislação interna a Convenção de Nova Iorque, o que é acertado, embora desnecessário, pois o Decreto Legislativo nº 186/08, a previsão da LOAS já havia sido tacitamente derrogada. (IBRAHIM, 2015.p.15)

Em seu bojo, a lei 12.435 trouxe uma significativa alteração no tocante ao cálculo da

renda familiar apresentando um amplo rol de parentes que passou a considerar cônjuge ou

companheiro, pais e, na ausência destes, madrastas ou padrastos, irmãos solteiros, filhos e

enteados solteiros desde que estejam sob o mesmo teto. Embora a lei 8.213/1991, em seu

artigo 16 trouxesse a previsão similar, na prática, gerava divergências de entendimentos, por

exemplo quando o filho maior de 21 anos, mesmo ajudando no sustento da família não era

considerado no computo da renda familiar por não constar no rol de dependentes do regime

geral da previdência social RGPS. (IBRAHIM, 2015.p.15)

Em 31 de Agosto de 2011, foi sancionada a Lei 12.470, que alterou a recente regra

prevista na Lei 12.435 do mesmo ano. Pela nova legislação (Lei 12.470/2011) a restrição

temporal limitada a dois anos permaneceu, contudo, ocorreu a inserção do termo impedimento

o que permitiu uma ampliação na concessão do benefício a outros segurados, até pelo fato de

que o termo incapacidade é mais adequado à aptidão para o trabalho, o que não faria sentido

para as crianças. (IBRAHIM, 2015.p.15)

O Decreto 8.805, de 7 de Julho de 2016, em seus artigos 12 e seguintes, trouxeram

dois novos requisitos para a concessão do benefício de prestação continuada quais sejam: a

manutenção e a inscrição no Cadastro de Pessoa Física – CPF e no CadÚnico – cadastro único

para Programas Sociais do Governo Federal. (BRASIL, DECRETO 8.805/2016, 2018, p.05)

O CadÚnico é procedimento realizado pelo CRAS – Centro de Referência de

Assistência Social ligado as Secretarias de Assistências Sociais Municipais, destinadas

especificamente à articulação dos serviços socioassistencias, programas sociais e proteção

básicas as famílias com maior potencial de vulnerabilidade. (IBRAHIM, 2015.p.16)

Embora, todo o ordenamento jurídico pátrio ao longo dos anos tenha ampliado e

definido novos conceitos que possibilitaram contemplar o maior número de incapazes e

impedidos possíveis, o critério da renda per capita de ¼ de salário mínimo ainda é o principal

óbice na concessão do benefício assistencial no rito administrativo do INSS. (AMADO, 2015,

p.53)

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No ponto central do tema está a seguinte indagação: O critério da renda individual

dos membros familiares pode ser flexibilizado? Deve o julgador ficar restrito ao critério da

renda per capita na concessão do Benefício de Prestação Continuada?

O tema em questão foi pouco a pouco sendo enfrentado pelo Poder Judiciário. Nesse

sentido, a TNU – Turma Nacional de Uniformização editou a Súmula nº 79 com o seguinte

enunciado:

Nas ações em que se postula benefício assistencial, é necessária a comprovação das condições socioeconômicas do autor por laudo de assistente social, por auto de constatação lavrado por oficial de justiça ou, sendo inviabilizados os referidos meios, por prova testemunhal. (BRASIL, 2018, p.19) .

Diante da controvérsia que se estabeleceu, o Superior Tribunal de Justiça, firmou

entendimento de que os magistrados não estão sujeitos somente a apreciação da renda

familiar, pois a delimitação de valor da renda per capita do núcleo familiar não deve ser o

único meio de prova da condição de miserabilidade do requerente. (CASTRO, LAZZARI,

2017, p.578)

Relata Frederico Amado:

No dia 10 de Agosto de 2011, a 3º Seção do Superior Tribunal de Justiça – STJ, firmou entendimento no sentido de admitir que o benefício previdenciário no valor de um salário mínimo recebido por maior de 65 (sessenta e cinco) anos deve ser afastado para fins de apuração de renda mensal per capita objetivando a concessão de benefício de prestação continuada. Outrossim, em 25 de Fevereiro de 2015, no julgamento do RESp. 1.355.052, decidiu em repetitivo a 1ª Seção do STJ que aplica-se o parágrafo único do artigo 34 do Estatuto do Idoso (lei 10.741/2003), por analogia, a pedido de benefício assistencial feito por pessoa com deficiência a fim de que o benefício previdenciário recebido por idoso, no valor de um salário mínimo, não seja, computado no cálculo da renda per capita prevista no artigo 20 § 3º da Lei 8.742/1993. (AMADO, 2015, p.58)

Por ser um tema pra lá de polêmico, o Supremo Tribunal Federal já havia enfrentado

a questão de forma parcial. Em 27 de agosto de 1998, o STF julgou a ADI 1.232, trazia a baila

a questão do critério de ¼ de salário mínimo como requisito limitador de concessão do

benefício assistencial. Naquela época, o STF validou abstratamente o critério sob o

fundamento de que cabia ao legislador infraconstitucional a competência para fixar critérios

de concessão do referido benefício. Embora, a Suprema Corte tenha se pronunciado acerca do

critério objetivo, não houve a manifestação expressa sobre a possibilidade de se utilizar de

outros critérios para apuração do estado do segurado. (AMADO, 2015, p.58)

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A Suprema Corte só se pronunciou em abril de 2013, ao julgar os Recursos

Extraordinários 567.985 e 580.963 – Tema 27 (meios de comprovação do estado de

miserabilidade do idoso para fins de percepção de benefício de assistência continuada). Por

maioria dos votos, o STF decretou a inconstitucionalidade material incidental do § 3º do

artigo 20 da Lei 8.742/1993 (LOAS) que prevê o critério legal da renda per capita familiar

inferior a ¼ do salário mínimo para a caracterização da miserabilidade. (GOES, 2016, p.788)

Porém, o STF com objetivo de conceder um prazo razoável para que o Congresso

Nacional aprovasse novo regramento para concessão do benefício tentou buscar o efeito ex

nunc ou pro futuro fixando a data de 31/12/2015 para eficácia de sua decisão, todavia, não

alcançou o quórum de 2/3(oito votos) para aprovar a referida modulação. (AMADO, 2015,

p.59)

Fábio Zambitte Ibrahim afirma que:

Ainda que o legislador frequentemente utilize-se de parâmetros objetivos para a fixação de direitos, a restrição financeira pode e deve ser a ponderada característica do caso concreto, sob pena de condenar-se à morte o necessitado. Ainda que a extensão de benefício somente possa ser feita por lei, não deve o intérprete omitir-se à realidade social. A Concessão do benefício assistencial, nestas hipóteses, justifica-se a partir do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, o qual possui, com núcleo essencial, plenamente sindicável, o mínimo existencial, isto é, o fornecimento de recursos elementares para a sobrevivência digna do ser humano. (IBRAHIM, 2015, p.25)

Importante registrar que a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal não é

vinculante, ou seja, não proíbe a Autarquia (INSS) de utilizar o critério da renda per capita de

¼ do salário mínimo como requisito, motivo pelo qual, até hoje este critério vigora na

concessão realizada no âmbito administrativo. (IBRAHIM, 2015, p.25)

Nesse sentido, o Decreto 8.805, de 07 de Julho de 2016 em seu artigo 14 parágrafo 5º

estabelece que: Na hipótese de ser verificado que a renda familiar mensal per capita não atende aos requisitos de concessão de benefício, o pedido deverá ser indeferido pelo INSS, sendo desnecessária a avaliação da deficiência. (BRASIL, DECRETO 8.805/2016, 2018, p.07)

Em sentido contrário, Frederico Amado afirma:

Que se o INSS afastasse o critério legal invalidado pelo STF, não haveria outro critério legal a adotar, haja vista a sua não aprovação pelo Congresso

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Nacional, sendo válida a postura da autarquia previdenciária até que haja novidade legislativa sobre o tema. Para conferir um mínimo de segurança jurídica ao INSS ou ao Poder Judiciário na aferição concreta da Miserabilidade, é necessário que o Congresso atue rapidamente na votação de um novo critério para substituir o §3º do artigo 20, da lei 8.742/1993, observados os limites orçamentários da União à Luz do princípio da Precedência da Fonte de Custeio. (AMADO, 2017, p.55)

Acerca do tema Marisa Ferreira dos Santos ponderou:

A melhor forma de avaliar a situação de necessidade ainda é por meio do montante que dos ganhos do grupo familiar caberá a cada um de seus integrantes. Na linha desse entendimento, pensamos que o valor per capita a ser considerado, no caso, deverá ser o de um salário mínimo, pois esse é o valor escolhido pela Constituição para qualificar e quantificar o bem-estar social, assegurando os mínimos vitais à existência com dignidade. (DOS SANTOS, 2013, p.155)

A decisão do Supremo Tribunal Federal, bem como, do Superior Tribunal de Justiça

não obrigou o INSS a adotar os critérios de avaliação das condições sociais na concessão do

Benefício de Prestação Continuada, motivo pelo qual, segue a Autarquia na utilização do

critério da renda per capita fixada em ¼ do salário mínimo reforçada pelo recente Decreto nº

8.805, de 7 de Julho de 2016 que alterou o Decreto 6.214 de 26 de setembro de 2007

incluindo o parágrafo 5º no artigo 15 para estabelecer o critério da renda per capita familiar

mensal.

Assim, por falta de uma legislação capaz de alterar os pressupostos legais exigidos

na atual legislação, notadamente, na contramão do entendimento doutrinário e jurisprudencial

segue o INSS aplicando o critério da renda familiar estabelecidas nas Instruções Normativas e

Portaria conjuntas, motivo pelo qual, há considerável aumento das demandas no Poder

Judiciário que transformam esta Justiça Especializada quase que em uma extensão do balcão

de atendimento da Autarquia. (DOS SANTOS, 2013, p.155)

A proteção da dignidade da pessoa humana, insculpido como princípio fundamental

no artigo 1º da Constituição Federal Brasileira de 1988, é considero alicerce e fonte de todos

os direitos fundamentais, portanto, deve ser a luz norteadora da ordem social e política de um

Estado Democrático de Direito.

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Nesse sentido, Anna Cândida da Cunha Ferraz e Valdir dos Santos Pio dissertaram, em artigo publicado pela Revista Mestrado em Direito da Edifieo, sobre os aspectos históricos e atuais quanto a positivação dos direitos fundamentais, destacam que:

O constitucionalismo pode ser identificado em quatro modelos, em que o primeiro corresponde às declarações de direito que antecederam às próprias constituições dos Estados, citando por exemplo o caso da França, cuja Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, precede a constituição de 1971. O segundo modelo é caracterizado pela sucessão das declarações às constituições dos Estados, citando como exemplo o que ocorreu nos Estados Unidos da América, na ocasião da sua fundação, em que a Constituição é de 1787, a qual não afirmou, inicialmente, no seu contexto constitucional a declaração de direitos, mas esta veio a ser posteriormente, em 1791, com a aprovação das dez primeiras emendas à Constituição. O terceiro modelo, já no século XIX, é caracterizado em razão da declaração, a proclamação ou positivação dos direitos passar a integrar os textos constitucionais em forma de tópicos, ainda sob a ótica do Iluminismo do século XVIII, voltados aos direitos individuais, a exemplo das Constituições do Uruguai de 1830, Argentina 1853. No qual o modelo, que representa um desdobramento do anterior, verificado a partir do século XX, a característica está no fato de que as declarações de direitos vão se constituir como títulos ou capítulos iniciais ou mesmo preambulares das constituições a nortear a atuação e organização dos Poderes do Estado, com vista à consagração dos direitos, liberdades e garantias da pessoa humana positivados na carta política (FERRAZ, 2012, pp.251/252)

O envelhecimento e incapacidade física, intelectual e sensorial é direito

personalíssimo, devem ser interpretados de maneira extensiva e, em conjunto com o vasto

ordenamento jurídico pátrio que permitam a proteção, a igualdade, o acesso, a inclusão e

assistência a este grupo de desamparados, ou seja, deve o operador do direito interpretar o

conjunto de direitos positivados como instrumento capaz tutelar à dignidade e propiciar o

mínimo de vida e desenvolvimento da personalidade humana. (MORAES, 2000, p.39)

O maior desafio que se apresenta nos dias de hoje, não é fundamentar os direitos

intrínsecos ao ser humano, e sim de protegê-los.(BOBBIO, 2006, p.25) Trata-se de segurança

humana, conceito amplamente consolidado no Programa das Nações Unidas para o

Desenvolvimento (PNUD) que elegeu sete componentes centrais (Segurança Econômica,

Segurança Alimentar, Segurança Saúde, Segurança Ambiental, Segurança Cidadã, Segurança

Comunitária, Segurança Política Jurídica), que se interligam e viabilizam o desenvolvimento e

enriquecimento de indivíduos como pessoa. (OLIVEIRA, 2018, pp.131/133)

Este componentes devem ser norteadores na garantia dos direitos fundamentais,

portanto, o critério da renda per capita, a Luz destes componentes, deve permitir ao

necessitado capacidade de subsidiar alimentos, saúde e outros elementos fundamentais na

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garantia da sua sobrevivência e do seu bem estar social como o mínimo de dignidade, ou seja,

Segurança Humana. (OLIVEIRA, 2018, p.134)

Nesse sentido, a ONU – Organização das Nações Unidas definiu Segurança Humana

como a proteção contra ameaças sistêmicas que podem atingir o cerne de todas as vidas

humanas, cabendo ao Estado o ônus de fomentar tais condições por meio de políticas públicas

(OLIVEIRA, 2018, pp.135).

CONCLUSÃO.

Concluímos que os procedimentos adotados pela Previdência Social na análise

dos requisitos previsto na Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS, para concessão do

Benefício de Prestação Continuada, embora fundamentada na lei ordinária, não se coadunam

aos Princípios Constitucionais da Dignidade da Pessoa Humana.

Os Direitos Fundamentais e a Segurança Humana devem pautar o ônus estatal de

prestar a assistência social à aqueles que estão mais vulneráveis e suscetíveis aos malgrados

que a vida lhes reserva.

A Carta Magna positivou a proteção ao idoso e ao deficiente (físico e mental),

portanto, ao legislador infraconstitucional coube a missão de regulamentar os procedimentos

que viabilizem a concessão de tais amparos assistências.

Em um Estado Democrático de Direito, cujo ordenamento jurídico tem seu

aprimoramento no reconhecimento da igualdade, fraternidade, no exercício dos direitos

sociais individuais, no desenvolvimento da harmonia social e na busca de uma sociedade mais

justa, é essencial que critérios rígidos e ampliados como o da renda per capita sejam cada vez

mais flexibilizados sob a Luz dos Direitos Humanos Fundamentais.

O tratamento igualitário, digno da pessoa humana concernentes a verificação da

miserabilidade ou estado de vulnerabilidade não está atrelado a constitucionalidade ou

inconstitucionalidade da norma legal. Cabe ao operador do direito aplicar a hermenêutica

Constitucional ao caso concreto, ou seja, o operador do direito deve se pautar pelos princípios

fundamentais humanos e, levar em conta o objetivo que o legislador buscou atender quando

positivou a norma.

Dessa forma, não há outro meio de se analisar o critério da renda per capita senão

pela ótica da situação fática do jurisdicionado aferindo o grau de sua vulnerabilidade social,

ou seja, para concessão do benefício de prestação continuada é fundamental a análise mais

extensiva dos fatores subjetivos do hipossuficiente tais como: idade, nível de escolaridade,

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profissão, local da residência, além de outros fatores socioeconômicos e culturais que

resultam na sua incapacidade social valorizando, acima de tudo, a Dignidade Humana.

Como um dia mencionou Émile Durkheim: “É preciso sentir a necessidade da

experiência, da observação, ou seja, a necessidade de sair de nós próprios para aceder à escola

das coisas, se as queremos conhecer e compreender”.

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