19
GILBERTO FREIRE Casa-grande & senzala Elide Rugai Bastos

BASTOS, Elide. Gilberto Freyre; Casa-Grande & Senzala

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: BASTOS, Elide. Gilberto Freyre; Casa-Grande & Senzala

GILBERTO FREIRE

Casa-grande & senzala

Elide Rugai Bastos

Page 2: BASTOS, Elide. Gilberto Freyre; Casa-Grande & Senzala
Page 3: BASTOS, Elide. Gilberto Freyre; Casa-Grande & Senzala

Publicado em 1933, Casa-grande & senzala compõe, com Sobrados e mucambos e Ordem & Progresso, o conjunto denominado por Gilberto Freire "Introdução à história da sociedade patriarcal no Bra~il". Os subtítulos dos livros já definem os temas desenvolvidos: o primeiro volu~e dedica-se ao estu­do da formação da família brasileira no regime de economia patriarcal; o se­gundo, à decadência do patriarcado rural e ao desenvolvimento das cidades; o terceiro, à desintegração da sociedade patriarcal no quadro da transição do trabalho escravo para o trabalho livre. Os textos enfocam períodos diferentes

da história brasileira- Co!ôn~~!__!!!l.Pi~!2.~-~~QllQHç_a, respectivamente. Escrito três anos depois das alterações políticas de 1930, Casa-grande

& senzala se insere num quadro em que o debate sobre a formação nacional compõe um cenário político em que a centralização administrativa altera o, lugar não ape!las 4as regiões como dos grupos que exercem o poder local e !egjori-à1:-:Naquele momento, o desenho de políticas gerais demanda uma defi­nição do público a que serão aplicadas. Nesse cenário, o livro responde a questões tais como: quem é o povo brasileiro? Podemos falar de uma unidade nacional? Podemos pressupor a existência de uma cultura brasileira? Esse perfil corresponde às exigências da civilização ocidental e, portanto, o Brasil pode figurar no concerto geral das nações?

Com Casa grande & senzala, Gilberto Freire penetra no âmago dessa discussão. Embora enfocando a formação nacional a partir do desenvolvimen­to da região Nordeste, em especial Pernambuco, a explicação freiriana ganha espaço nacional. Q.!t!?S!() r{!~gata o diálogo com autores do passado e_do pr~:

_sente_, -~~tabelecendo uma polêmica a respeitÔ da questão racial, do determinismo geográfico e sobre o papel desempenhado pelo patriarcado na configuração da sociedade brasileira, temas sempre presentes nessa bibliografia. As interpre­tações mais visadas são as de Oliveira Viana e Paulo Prado, autores de livros bastante celebrados na década anterior.

Nascido em Pernambuco em 1900, tendo estudado nos Estados Unidos e posteriormente na Europa, onde se muniu de uma impecável formação em Sociologia, realizada nos cursos da Universidade de Colúmbia e com complementação em Oxford, Gilbe1to Freire se beneficia de novos instrumen­tos analíticos fornecidos principalmente por Simmel e Boas, além de uma rica temática desenvolvida por autores espanhóis: Ganivet, Unamuno, Pio Baroja e Ortega y Gasset. Com esse perfil, o autor pode, ein Casa-grande & senzala, inovar metodologicamente, buscando um ponto de partida diverso se compara­do com os autores anteriore_s. Assim, utilizará base documental diferente das convencionais utilizadas por historiadores, arrolando dados colhidos em diários

217

deborah
Realce
deborah
Realce
Page 4: BASTOS, Elide. Gilberto Freyre; Casa-Grande & Senzala

CASA-GRANDE & SENZALA

íntimos, cartas, livros de viagens, folhetins, autobiografias, confissões, depoi­mentos pessoais escritos e orais~ livros de modinhas e versos, cadernos de receitas, romances, notícias e artigos de jornais. Por meio deles reconstituirá a vida íntima dos componentes da s0ciedade patriarcal, via estudo do cotidiano vivido no complexo agrário-industrial do açúcar.

De leitura aparentemente fácil, Casa-grande & senzala não é texto que· entrega imediatamente à compreensão sua temática nuclear. Trata-se de um livro volumoso- na primeira edição, 44 páginas de prefácio mais 520 de expo­sição -, com inúmeras notas sustentando a argumentação por meio de docu­mentos e indicação bibliográfica, além de ilustrações significativas. O estilo ao mesmo tempo vivo, espontâneo, vigoroso e acre, o cuidadoso emprego das palavras, a utilização de expressões populares, a ironia, a ineverência conqu1s-_ tam o leitor, que se prende inemediavelmente aos vaivéns da argumentação elo autor. Em narrativa construída em forma de espiral, o autor expõe suas teses desenhando círculos que não se coclpletam, abrindo passo para uma nova argumentação, que novamente·coloca outro aspecto do argumento ... ad infinitum. De certo modo, a forma muitas vezes encobre a tese, quase que impondo a concordância com ela.

Sua concepção sobre a sociedade brasileira funda-se na artic_ulação de três elementos: o patriarcado, a interpenetração de etnias e culturas e o trópico. Esses marcos definidores da formação nacional conelacionam-se, de modo que cada um,deles encontra sua explicação no cruzamento com os dois outros. Da combinação resultam as diferentes teses que fundamentam a expli­cação da sociedade brasileira.

CASAS-GRANDES E CONTINUIDADE SOCIAL

Muitas vezes apontado como um escritor de tradição ibérica, que não separa a arte da vida, Gilberto Freire afirma essa característica já no prefácio de Casa-grande & senzala. Ao contar como se gestou a escritura do livro, refere-se à importância simultânea das experiências acadêmicas e das de lazer: em Portugal, os trabalhos na Biblioteca Nacional e no Museu Etnológico acom­panhados da familiaridade com o vinho do Porto, o bacalhau e os doces de freiras; na Bahia, o conhecimento das coleções do ~u Afro-baia_n_g __ :r;~"ina

_ Jf~<!ii_gy_~s e da arte do trajo das negras quituteiras, da decoração dos bolos, da cozinha e doçaria baiana; nos Estados Unidos, os cursos na Universidade de Stanford e as viagens pelo deeP' South. Essa combinação demonstra-se rica

218

deborah
Realce
deborah
Realce
Page 5: BASTOS, Elide. Gilberto Freyre; Casa-Grande & Senzala

ELIDE RUGAI BASTOS

no decorrer dos capítulos seguintes, pois um dos elementos que estruturam a pesquisa empreendida é a recuperação d?s usos. e costumes do :eo_~o, para encontrar neles as raízes culturais e sua relação com os grupos f()~adores da sociedade brasil~ira. Do mesmo modo, ao referir-se à inflúência de Franz Boas, mestre em Colúmbia, assinala não apenas o quanto suas foi111ulações a respei­to da diferença entre raça e cultura orientaram seus estudos e sua interpreta­ção - levando-o a refletir sobre a questão da miscigenação -, mas, também, como o . clima criado no curso o levou a preocupar-se intensamente com os destinos do Brasil. E como desse ambiente emerge um compromisso de busca de soluções para "questões seculares".

Dois eixos explicativos se definem: de um lado, a discriminação entre os . efeitos da herança racial e_ os_ de. influên~J~ so~_i~l~ ~ultuiâT~--2ie-1Tiéio; d:e outro, ~~p~~() do sistema qe produção ~<;Qnôlllicª ~o]~re a ~sJu~t\(ra da S()ciegade. A partir deles, ao examinar a sociedade brasileira, aponta para o fato de serem a monocultura latifundiária do açúcar e a escassez de mulheres brancas

· condicionantes fundamentais da~ relações existentes entre brancos e não-bran­

cos. Duas forças operam: -ª.2. m~~~J~~-~9~ª!1:~-~<?_!~s~!~~,~l!l~ c!.2~!?-_ê_Ç~9. .. Q~­triarcalnão ape~~s_sobr~ __ afamíli~ ~-os e~cravgs, __ P!.ª§_J~up.pém __ s()b!e. os -~gregadôi'ê'"ü's 'hq#iétis"lív-res; ~a esc~~s-~~ d~;··~l111:leres prancª~ r~~l1lta a possibilidade de "confratemizaçao entre vencedores e v~ncido_~,''1 gerªp.d_o~se

·-filhos. '{lü'seiiliõfcõm'ã''esctavª·;:pp~erand6."ã iUíscigenáÇãü. c~~o corretor da

_qL~tância ~p~~~I, :'entre a casa:grande e. (l mat(l tropical; entre a casa-grande e __ a s_enzala,. Em outros termos, as possibilidades de a sociedade brasileira, em sua estrutura, extremar-se entre senhores e escravos foi contrariada pelos

efeitos sociais da miscigenação, agindo es!~-~-º ~~.!!!i:_q_() c::l~ ~'g~_Jil()~fªtização .... -~-§9_çi'ª'l'' _no Brasil. ----

A casa-grande figura o sistema patriarcal de colonização portuguesa do Brasil, sistema de contemporização entre tendências aparentemente conflitantes -o colonizador tentando impor as formas européias à vida nacional, o coloni­zado funcionando como adaptador dessas formas ao meio. ~esse sentido, a

-~é_i_sª::-grande opera como. centro d~ coesão social, representa todo~m~sl:Siema··-·· econômico, social e político e age çomo ponto de apoio para a organização -

___ nacional. Mais que isso, é o modo pelo qual se realiza o caráter estável da colonização portuguesa de marca agrária, sedentária, plástica e harmoniosa. Por isso, na formação nacional, representou papel marcante vencendo a Igreja e, em certos momentos, até mesmo o Estado.

O estudo da casa~g_rª11de._acctha.por .. ser"a história íntima de quase todo . b_m~_H~i!()'_'.:_foi aÍ "que seexpri@~() C(lJá.~~f._l?.!~~ileiro: a nossa continuidade

219

11':

deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
Page 6: BASTOS, Elide. Gilberto Freyre; Casa-Grande & Senzala

CASA-GRANDE & SENZALA

-~~-~_:~.DªLoJ.ítJJJo. Casa-grande é o símbolo de um status- o de dominação; senzala -- o de subordinação ou submissão. O & entre as duas palavras é símbolo de interpenetração, mostra a "dinâmica democratizante como correti­vo à estabelecida hierarquia". Em ou,tras palavras, no Brasil não se realizam as formas tradicionais de dominação, havendo uma inversão do processo, mu­dando-se os sinais que alocam socialmente os indivíduos. ,

UMA SOCIEDADE AGRÁRIA, ESCRAVOCRATA E HíBRIDA

No primeiro capítulo do livro encontram-se expostas as teses principais

do texto. 02-QY1tos apresentam o desenvolvimento delas, re~~~~~~~~_pap~l e_ o legado das três raças formadoras d~ população nª~ional. Gilberto Freire ~ter-se orgairlzadoci~ilme~t~·~-s~cleaaae-br~Ü~ir~-sõmente em 1532, na

medida em que se alterou o caráter exclusivamente mercantil da colonização portuguesa e se estabeleceu, no Brasil, uma exploração de raiz agrícola. Com isso definiu-se a singularidade do processo brasileiro, diferente da atuação de Portugal na Índia e na África.· ' .. " ,·v' ( i('.-.~~--" bi-'"'--:of- .. 1; .

· ; if 7 c~,-~-t ct:tv A aptidão do português pàra esse desenvolvimento estável, possível·gra..: i!

•1.:'· .. Çâsà_e_8c;~~id'ão, primeiramente indígena, posteriormente negra, deve-se ao

·' ' hibridismo resultante de seu passado histórico de "povo ind.~f!!!!Q._o entre a Eu-ropa ~ ~Áf:P.ca". Es,sa bicontinentalidade, dualis1;1o de cultura e de raça, mar-ca:seu caráter. De um lado, permite um "bambo equilíbrio de antagonismos", refl~tmdo.~se.em u:n;tçpmportamento flexível; de outro, possibilita a mobilidade, a miscibilidade e a aclimatabilidade, elementos fundamentais para o triunfo do empreendimento português no Brasil, compensando a deficiência de volume humano para a colonização em tão amplo território. Tais traços levam a que se forme "a primeira sociedade moderna constituída nos trópicos com caracterís-ticas nacionais e qualidades de permanência".

Analisando a adaptabilidade do colonizador português às condições tropi­cais, assinala que isso foi possível pela assimilação de elementos provindos dos outros povos - os indígenas nativos e os negros africanos - que constituirão

_ ç_om ele a população nacional, via mestiçagem racial e cultural. Esse é o pri­meiro ponto em que a análise freiriana se confronta com as reflexões anterio­res sobre a formação nacional. O tema do trópico introduz um diálogo crí~ico com os cultores da tese do determinismo geográfico. Gilberto Freire relativiza a argumentação destes afirmando a possibilidade do domínio ou da influência modificadora do homem sobre a natureza e o clima. Trata-se de uma das

220

deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
Page 7: BASTOS, Elide. Gilberto Freyre; Casa-Grande & Senzala

ELIDE RUGAI BASTOS

perspectivas componentes da tese culturalista que adota a partir da proposta

de Franz Boas, ~que mQS1Ll:l_ª--ª!!t~ri9r!clªgeç1g_~-~~~1.7:!~12~2~.4~.ç~!t~!fJ!liY::.M ral sobre os raciais e climáticos. As~im, mesmo num clima "irregular, palustre, perturbãdÕr-d~ ~};t~~a dig~sti~-~;,, desfavorável ao homem agrícola europeu, o

português estabelece uma sociedade estáv~~!~~~-~~~"~uak ad~_p.,!~~,[!,~.€SD. Modifica seus hábitos alimentares, altera suas técnicas agrícolas, muda seus hábitos de higiene, sua vestimenta, seu modo de vida. Em lugar de deixar-se levar pelo clima contentando-se com uma colonização baseada na pura.__~ra-: ção de riqueza mineral, vegetal ou animal, desloca seus esforços para a cria-

<-------_/_ç-ã_o-_lo ____ cal de._r __ i-q-u_ e_z __ a, ____ c __ n_ ·a_ ndo u __ m __ --~-_ ~~---ci~~-~~e_ .. ~-~~~~!~~~ ~~-~~ti~.?ltura, r~~~!~-~~~?K)-_na p~:rmªnençjª·-Ào.c.o_lonoJl.a..noyaJerra.Assim, a sociedade colonial no Brasil "desenvolveu-se patriarcal e aristocraticamente à sombra das grandes planta-

- ções de açúcar, não em grupos a esmo e instáveis". Trata-se de uma coloniza­

ção qüe não é obra do Estado mas d~ ~J?.iFtatiya P'\-rtipl),lar, que promove a: \li

mistura de_raças, a_agricultura la~if?n~iária e aescrayid_ªo. - ;!! · -- ------ E~;;--f~r~a--~~gend;~"-~;- l~g~r p~rticular àtf~~íli~~na constituição da :;!

~ ::: sociedade brasileira: é ela, e não o indivíduo, o Estado ou as companhias de ::: comércio, o grande fator de colon~Qaís. Assume funções sociais, __ ;:: econômicas e políticas. Essa combinação, que se desdobra em oligarquismo ou I \l;

I ,1

nepotismo, garantirá nossa unidade política e operará como impedimento ao~e ___ -r,~_ ..... ,..--

separatismo, ao lado da religião e da ação dos jesuítas, que também exercerãq"'~, um papel unionista.

A esse modo de estruturação social corresponde a monocultura canavieira. Para Gilberto Freire, a monocultura, embora atuando positivamente no proces­so de constil!liÇ.ãQ_çla_s_Q'Çiedade, acaba por ag'ir neg-ativamente no desenvolvi­niêirto -fí~~o dos habita~~a região, provocando a subnutrição. Escapam

dela os brancos da casa-grande e o escravo negro. A subnutrição, ao lado da sífilis, opera como depauperadora da energia econômica da população. Nova­mente a argumentação desenvolve-se em confronto com a interpretação cor­

rente sobre o caráter do povo brasileiro. Para a maioria dos aUtores, este, t resultante da mestiçagem, define-se pela tristeza, preguiça, luxúria, herança

.das_ "r_ aças __ i __ n ___ f; __ e __ r_i_o_ re_s __ ". A-__ tes_ e_ -f-rei_ ria ____ na._d_-~~-s--~-__ n __ h __ a_-s ___ e ____ co--m___ p-re ___ c __ 1_. sã-_o_·_; __ -_ o- s_-~ ___ t_J __ aç __ º __ -__ s ___ .d __ e .... fraqu~za físic~,_ a çleqmdad~_d!.-ªP.-ªr~:gte J?reguiça têm origem social e cultural e não racial; ex1:1licam.-s-~ pela subnutr-içã~ ~ .. pela--doença: -f,rifrentâ; -às sim,

diretamente as posições do racismo científico, explicação que fundamenta muitas daquelas reflexões.

Gilberto Freire amplia esse debate aplicando-o à organização política. As bases culturalistas justificam que construa sua explicação sobre o autoritarismo

221

li I !!! "'

deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
Page 8: BASTOS, Elide. Gilberto Freyre; Casa-Grande & Senzala

CASA-GRANDE & SENZALA

assentado em razões de caráter cultural e não político. Reconstruindo as rela­ções entre senhor branco/negra escrava, sinhozinho/moleque, sinhá!mucama, mostra que são marcadas pelo· sadismo dos primeiros e o masoquismo dos segundos. O sadismo desenvolver-se-ia para "o simples e puro gosto de man­do, característico de todo brasileiro nascido ou criado em casa-grande de en­genho", tese que acaba por ganhar um patamar político. O masoquismo tend'e ao gosto pela dominação, pois, "no íntimo, o que o grosso do que se pode chamar 'povo brasileiro' ainda goza é a pressão sobre ele de um governo másculo e corajosamente autocrático".

Aqui se explícita outro dos pontos principais do texto: a vida política bra-

1

sileira se equilibra entre duas místicas; de um lado, a ordem e a autoridade !(decorrentes da tradição patriarcal; de outro, a liberdade e a democracia, désa­ll: fios da sociedade moderna. Trata-se de uma "dualidade não de todo prejudicial

à nossa cultura em formação, enriquecida de um lado pela espontaneidade, pelo frescor de imaginação e emoção. do grande número e, de outro lado, pelo contato, através das elites, com a ciência, com a técnica e com o pensamento adiantado da Europa~'. Essa dualidade, segundo o autor, não deveria criar opo­

sições, pois a formação brasileira tem sido ·~~~-ta­~~ Creio ser possível afirmar que Gilberto Freire quer demonstrar, em um momento de transformação da sociedade brasileira, quando se promovem mudanças que afetam a própria configuração do Estado, que os velhos setores da sociedade detên;t uma sabedoria que lhes perrpitiu organizar a sociedade de modo a evitar rupturas que afetassem o equilíbrio social. Portanto, naquela ocasião- década de 30 -,os grupos tradicionais, momentaneamente alijados da direção política, deveriam estar presentes na nova configuração do poder.

Ü INDÍGENA E A FAMÍLIA

Refletindo sobre o papel desempenhado pelo indígena na formação nacio­nal, Gilberto Freire encaminha a análise no sentido de demonstrar que~

ç.~-çiais....!lQ.. Brasil, ..@sde os pJ:in::teü:.o.Lmnm.en~ colonização, constituíram-se harmonicamente, sem conflitos de caráter violento. Híbrida e han~;;~~~qu~nt~~à~"rei*7Cfe raç-a; a sociedade brasileira teria se formado em um ambiente "de quase reciprocidade cultural", aproveitando ao máx~mo os valores e experiências dos povos nativos, contemporizando com sua cultu­ra. A mulher indígena foi incorporada à sociedade cristã, tomando-se esposa e mãe de família, transmitindo suas tradições à famHia do colonizador. As ten-

222

deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
Page 9: BASTOS, Elide. Gilberto Freyre; Casa-Grande & Senzala

ELIDE RUGAI BASTOS

sões resultantes dos choques entre as duas culturas - européia e indígena ·-, ao se explicitarem em conflitos, encontram o caminho da integração, do equi­

l~r~o. dos element~s antagôniCos. Aponta dois caminhos, aparentemente ~nta-) gomcos, pelos quais o processo se-desenvolveu: de um lado, a degradaçao da "raça atrasadá"; de outro, a assimilação pela "raça adiantada" da cultura do­minada. Da combinação das duas vias resulta uma expressiva harmonia sociªl. --0 português, ao chegar ao Brasil, não encontrou um sistema vigoroso de cultura moral e material, mas uma população culturalmente inferior à maior parte das áreas africanas. Os homens dedicavam-se à caça, pesca e guerra; o trabalho agrícola era tarefa das mulheres. Ambos os papéis não se adequa­riam às exigências de mão-de-obra necessárias ao colonizador. Porém, alguns pontos levam à aproximação dos_~ois segmentos raciais no início da ~lo:ii!Zã=. ção brasileira: a es~sez de mulheres brancas e a necessidade de OCUQ_ação

cJs> território. Isso ~~plica a tr~sigênc~_~E_!iscigenação e a in~orporação do

homem ind.!$~~~~-EE,?Ce~~E...~~-4~fj_~iS_~?-~e espaço. Assim, "a luxúria dos indivíduos, soltos sem famHia, no meio da indiada nua, vinha servir a poderosas razões de Estado no sentido de rápido povoamento mestiço da nova terra". Desse modo, a índia passa a ser base da família, multiplicando e robustecendo o pequeno número de povoadores europeus. Mais ainda, opera como valioso elemento de cultura na formação nacional. O índio será o guia na conquista dos sertões. ~--------···-···-~-- ~

. ·s-e-~ssa necessidade leva a que as relações sejam amenas - o português\ tolerando ou assimilando os costumes indígenas -, o contato europeu funcio- 1

nou como elemento dissolvente das culturas nativas. Assim, mesmo salvando- / se formas ou acessórios de cultura, perde-se seu potencial, sua capacidade· construtora.

O mais forte desse~~§eiir.Qs-c!es!~~~~~~:s_ ~ a imp~~ição pelos jesuít~s da moral católica, que toma, no Brasil, rumo puritano, sufocando a esponta­rÍ~id~de nativa: A isso soma-se a destruição das diferentes línguas regi~;;~is e a definição, pelos padres, de uma língua geral, o tupi-guarani. Com isso pode ser d~struída toda manifestação artística ou religiosa que não estivesse de acordo com a moral católica e com as convenções européias.LP_a c_ate,q~_se,

~anização social.e"g_iy_~_S.~<?-~~~~~-~hgi!P:Postas_p_~!~ Companhia de Jesus res~tiüill,--pi()cesso dedesR_<_:>_y~~o, degeneraçã.~-~degrãdãÇaõct]_[gru­P~~-~~E.!!:Y!-ª:~j!!ª!g~J}_ª-.s.,As principais foíinas queass;~~;;-essa;-interven­ções diretas ou indiretas foram: a concentração dos índios em grandes aldeias, a imposição de um vestuário à européia afetando os costumes de higiene, a segregação dos nativos às plantações, a colocação de obstáculos a casamen-

223

deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
Page 10: BASTOS, Elide. Gilberto Freyre; Casa-Grande & Senzala

CASA-GRANDE & SENZALA

tos à moda indígena, a aplicação de legislação européia a supostos crimes de fornicação, a abolição das guerras entre tribos, as guerras de repressão, a abolição da poligamia, os castigos impostos à não-adaptação ao trabalho, as doenças disseminadas pelos brancos, a modificação do sistema alimentar, a alteração das condições de vida levando ao aumento da mortalidade infantil, a_

,-1 quebra da relaçª-o homem-natureza, a abolição do sistema comunal e da auto-' ridade dos chefe;~-pri~c-ipalmente a dos pajés. .

Essas transformações operam-se por meio do ensino e da técnica econô­

mica, que resultam na conservação_ "da raç_!_ indí~~ seiil_.l:lJ?!~§~~ de sua '~!!lJ.!!I-ª~'. Assim, GÜlJérto:Ffei!e--p;~a mostrar que os padres se utiliza­m~ do sistema ped~g.Qg!_ço-moral como uma forma de controle social. Isso ) impediu que se p;?a~assem os índios pa~a ~;;·~~;d;deira integração na socie~ ~ dade, "a transição da vida selvag~mpara a civilizada'>--

Se a adequação ao trabalho, concebido à moda européia, era um ponto a ser alcançado, o outro era a transformação da noção indígena de propriedade, apoiada numa concepção coletiv~. A má resolução dessa questão explica, se:. gundo o autor, por que no Brasil a propriedade acaba por ser um campo de conflito entre- antagonismo_s violentos. Assinale-se que, novamente,~

t~~::E.~-~am~~niçe~~·- . ·· Operando com a educação como elemento transformador, o jesuíta elege como objeto privilegiado de sua ação o menino indígena, modo pelo qual afeta diretamente os val9res nativos•que não se coad~nam com os da doutrina e da moral católicas.

O autor procura mostrar que nos dois primeiros séculos d~ colonização existe um contraste e certo confronto entre a política jesuítica, protetora dos índios, em que pesem os erros na condução do processo, e as int~nções práti­cas dos colonos que visam escravizá-los. Esse conjunto de~õe~_mra_djtó-

. rias ~ar~~--? destino das culturas indígenas que ou são destruídas ou se mantêm amargem da população colonial. A soma desses elementos e a não-adaptação ao empreendimento agrícola ;fazem com que o índio, primeiro "capital de insta­

- lação do colono na terra'-:clesapareça como trabalhadqr. ç-----------_./......__......__/ . ...., __ ...___/\, __ / --

Gilberto Freire mostra que, embora sejãm marcantes a degeneração e a degradação das culturas indígenas, o processo não ocorreu de forma abrupta como aconteceu na América do Norte. Aqui, o tempo permitiu a permanência de várias sobrevivências. Estas dotaram a sociedade brasileira de "traços sim­páticos~'. Restou a confraternização das raças, iniciada pelos jesuítas, que: tra­taram com igualdade em suas escolas os filhos de portugueses, de índios e mestiços. Restaram os mestiços, produto do intercurso sexual de índias e por-

224

deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
Page 11: BASTOS, Elide. Gilberto Freyre; Casa-Grande & Senzala

ELIDE RUGAI BASTOS

tugueses. Permaneceram os costumes de seu povo, que elas trouxeram ao seio da farm1ia: a cozinha, a higiene, o banho, as danças, a religiosidade. Restou -a língua tupi-guarani, que, embora artificialmente criad~, serviu de instrumento de intercomunjcação dos dois universos culturais, cuja pr~sença percebemos até hoje.

Acima de tudo, dessa interpenetração racial e cultural restam traços psicossociais que se somarão àqueles de influência africana e que mar~ êaráternacional. Primeiramente, o~~!P-e do~~-~~~~'!~~-/" a própria mística revolucionária brasilei­ra percebe-se "o laivo ou resíduo masoquista: menos a vontade de reformar ou corrigir determinados vícios de organização política ou econômica que o puro gosto de sofrer, de ser vítima ou de sacrificar-se". Um segundo traço psicossocial legado pelo indígena, resultante da intimidade com a floresta, é o medo e o furor que o acompanha, expressando-se em ocorrências políticas ou cívicas, em "assanhamentos desordeiros", movimentos que nada mais são do que "pre-._____ ___________ -------texto de reg~essão à cultl1fa primitiva, recalcada porém não destruída;;./ Gilber-to Freire assinala ser rara a emergência desses traços destruidores, pois a

~~fg;.:gg-:no~~~~~.!:~2~~g~~~~-~~~2n.i§mos_:_ Mais uma_v_ez, __ Q§ __

elementos culturais explicam o político. Em resumo, a cultura indígena assimi-lada·emvaríosde seus aspeetos"pela"cultura brâsildra" é presenÇa viva, útil, ativ~ ~:~ri;d~-;-uo deieiiYQJ.Y.t~i:llo--=-rtacinnab-Além disso~ "oõíeo l~brico da

( P!gJ:un~~~~-~igenação" marcou as relações sociais, qt!~-se desenvolvem harmonicamer}te-atingindo não apenas o nível individual como o institucional./

________ .1 .• ______ . "'--.___ ____ .. / , ___ / 1.....____------

Ü PORTUGUÊS NA FORMAÇÃO DA SOCIEDADE

Conforme vimos, para Gilberto Freire, o processo de acomodação no campo cultural ao mesmo tempo requer e é produto do amalgamento biológico e étnico. No Brasil isso foi realizado pela miscigenação: primeiramente, ante­rior à colonização do Brasil, dos portugueses com os árabes e judeus; poste­riormente, desses mestiços com índios e negros. Assim, dedica parte de Casa-grande & senzala a construir o perfil psicológico do português, resul­tante daquele processo. Compreendê-lo é capacitar-se à compreensão do Brasil, porque, como povo, som?s a extensão da população ibérica, assimilados os elementos indígenas e africanos. O marco mais geral da análise é a caracteri­z~_Q do ~!,!~g~~s, de um l~do, como povo ~o originário de uma s~dade organizada em moldes-Üpic~m1eilfereudãís; de àütr;. tendo "ã'Vallçãdo nõCãmi------~--------------------·------~-- . --------~~..,~-~._....._.y, _____ _

225

deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
Page 12: BASTOS, Elide. Gilberto Freyre; Casa-Grande & Senzala

CASA-GRANDE & SENZALA

nho d~ um burguesi_~~9_pr_ec_Q~~· Es~pru:ente-contra_d_içãn_JI!~rc_~-lhe a fei­

,--ǪQ~~ ~9i~_i!~~~4Qi= P-or_~_~c~lênc~~· do~ado da plasticidade exigid~~p~Iim~~~o · mode~_<?: ·

A primeira ocorrência se ex;pli~a pelo fato de em Portugal a Igreja não ter assumido apenas o papel de sustentáculo de uma sociedade dominada pela aristocracia agrária. Mais que isso, constituiu-se no cerne da estrutura social.· Apoiada no direito canônico, exerceu sobre a sociedade um domínio efetiv<;> por meio da autoridade conferida aos bispos de decidirem em causas civis. 'A esse prestígio de ordem moral e jurídica acresc~ntem-se 6 intelectual, o políti­co e o militar. O conjunto de forças levou a Igreja a deter o domínio da terra. Disso resultou uma nobreza fraca, pressionada pelo clero e que precisou aliar­se às classes médias como garantia de sobrevivência. Tal aproximação, muitas vezes via ricos casamentos, levou a que se mesclasse à população já impreg~ nada de sangue mouro. A aliança favoreceu a ascendência das classes marí­timas e comerciais na economia e política portuguesas, caracterizando um burguesismo precoce, que levará_posteriormente a um antagonismo entre os interesses dos setores rural e comercial. A oscilação do poder real entre a nobreza enfraquecida, a burguesia mercantil e o povo das cidades é indicativá da "constituição social vulcânica" de Portugal, que "se· reflete no quente e plástico do seu caráter nacional, das suas classes e instituições, nunca endure­cida§_n_~.rp._c!_~fi~!~!!J)_te __ estratifiç_ad_~s". Desse processo emerge uma socie­dade estruturada e~ classes que não detêm pr~vilégios exclusivos, rígidos, portanto caracterizada J?_~la _ll_l<?'l?.ilidade_s_º~~· Os fluxos e refluxos de poder não permitiram que se estabelecesse em Pmtugal qualquer hegemonia, a não ser momentânea, "nenhum exclusivismo de raça ou cultura". Por esse motivo, apresenta-se em sua cultura uma grande variedade de antagonismos, uns em equilíbrio, outros em conflíto. No entanto, prevalece o equilíbrio, '_'_~y~e Il1_í;lÍOI/ se mostra harmoniosa nos seus contrastes, formando um todo social plástico".

. ..--~:c.::-:-::--:-:-:_----

(' Mas, se o país não conheceu um feudalismo típico, também naõ"se(íe: Q_ senvolveu em termos de uma sociedade tipicamente burguesa. Em outros ter-'-')nos, o povo português não se aburguesou, ficando como população intermediária

entre a Europa e a África. O não-burguesismo assumido pela sociedade se exprime em caracteres psicossociais na figura do português. Ela é marcada por uma rusticidade constitutiva, produto_<I.:a socialização resulta11t_~ ~!l_p~ssa­gem de uma sociedade não totalmentetr~9-!<;i9naX__a llJ.lJ.a &oci~dasl~n~J!P.iÇ.ª­mente-módén.ia.Essãrusticidáde, forma de recusa do processo homogeneizador a que levam âs transformações -burguesas, é o patamar sobre o qual se tomou possível o tratamento dos escravos como se fossem agregados ou pessoas da

226

deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
Page 13: BASTOS, Elide. Gilberto Freyre; Casa-Grande & Senzala

ELIDE RUGAI BASTOS

família. A ru~dade que ~~_E~s~um:.s_i~~~ur_~B~u é a mar_ca4e seu bom senso-;Ievou-o a ter u~a visão prática e·não teóriCa. do munao, visão que será transferida aos seus empreendimentos colonizadores. Esse traço tonm precária sua]igação com a civilizaÇão oci ~m.~roximaJ?.do-se mais da miental. ---- . . ~----------0 sentido e ação, aliado a seu passado racial; abrjua_Q_QQrtuguês a possibilida-de de roi§_gg~ção racial eCiilrurar:Niâi;;i~(i~,possibilitc;AAue..._no momento

de decadênciade-se~s _ _e~p-~~~~_9:!IDentQ~~~l}timos,_~~__ynlffi_~s-e_~ª-socie­d~9.:~_de base agrária~ Esse conjunto de traços faz do português o colonizador

/por ~~~~iê~ci~~-A vitória da cultura lusitana sobre as outras, no Brasil, dar-se-1 á sem rupturas e sem violenta imposição.

Ao discutir as bases da sociedade portuguesa, Gilberto Freire levanta uma tese fundamental para a compreensão de Casa-grande & senzala: o

~s~~~~~~§~p~ne/~~~~'!t0~/Em Portugal, esse papel é des~~­penhado pelos mouros.· Sob o dommio mouro acentuara-se nesse país a dualidade na cultura e no caráter da população. Quando vencidos, "persistiu sua influência através de uma série de efeitos da ação e do trabalho dos escra­vos sobre os senhores". Essa influência "não só particular do mouro, do maometano, do africano, mas geral, do escravo", predispõe o luso para a colo­nização de base agrária, bem executada devido à experiência daqueles. Com esses escravos tem um aprendizado técnico que possibilita a instalação dos engenhos- máquinas de retirar água, moinhos de vento, instrumentos de moa­gem. Essa dependência explícita-se em vários aspectos da vida social: na vestimenta- uso do algodão, do bicho-da-seda; na alimentação- desenvolvi­mento da oliveira, cultivo dos cítricos, cultura da cana-de-açúcar; nos diferen­tes ofícios - ferreiros, sapateiros, peleteiros, pedreiros, ourives, moedeiros, tanoeiros; e, ainda, na medicina, na arquitetura, na higiene, nas matemáticas, nas artes decorativas. Mais que nos àspectos materiais, essa influência se faz ver na moral e na religião, transformando o cristianismo rígido do português numa religião mais humana e mais lírica.

Todavia, se o escravo mouro alterou afacies da cultura portuguesa, afe­tou também o eixo que estrutura a sociedadet~-~.t!:zE.~--~o tr~9· Acostuma­dos à escravidão, os portugueses no século anterior à colonização da América já haviam transformado o verbo trabalhar em mourejar; isso antecipa as for­mas que tomará essa visão no Brasil dos séculos seguintes: de que "trabalho é só pra negro".

227

deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
Page 14: BASTOS, Elide. Gilberto Freyre; Casa-Grande & Senzala

CASA-GRANDE & SENZALA

Ü ESCRAVO NEGRO E A FORMAÇÃO DA SOCIEDADE

Na definição do papel do escravo negro na formação brasileira, Gilberto Freire dialoga com os autores de sua época e com alguns que o precedem, principalmente os racistas e os que superestimam o papel do indígena na forma­ção nacional. Quatro são os pontos principais desse debate. Primeiramente, Ie..: vanta os traços psicossociais do negro, apontando para a sua adaptabilidade aÇ> trópico, um dos indicativos da não-inferioridade da raça negra em relação à branca. Em segundo lugar, procura demonstrar que na formação nacional existe uma marca profunda, menos racial do que cultural, do estoque africano no Bra­sil; e como resultado disso, a partir da interpenetração das culturas lusa e africa­na, origina-se um processo que aproxima os antagonismos decorrentes da oposiÇão senhor/escravo. Em terceiro lugar, atribui uma função social diferente da con­vencionalmente atribuída ao negro na formação brasileira, a partir da qualifica­ção dele como colonizador, isto é, dando ênfase ao papel civilizador por ele representado. E, como resultado dps pontos levantados anteriormente, indica a sociedade brasileira como caracterizada pela democracia racial.

Parte da tese de que a população brasileira tem raízes nas três raças -branca, índia, negra- e não apenas nas duas primeiras, como ressaltam alguns autores. Afirma que os tipos eugênicos provêm antes do africano do que do indígena, indicando que são de origem africana "muitas das melhores expres­sões de vigor ou d~ beleza física em nosso país~·. Mostra ser· anticientífica a afirmação da superioridade ou da inferioridade de uma raça sobre outra, cons­truindo sua reflexão sobre a anterioridade explicativa da cultura. Busca mos­trar que o perfil da formação social nacional deve-se ao africano e que todo brasileiro é racial ou culturalmente negro. Dá seqüência à idéia afirmando que o negro é culturalmente superior ao indígena e inclusive, em certos pontos, ao português, contrapondo-se a algumas interpretações consideradas oficiais. O fundamento para a discussão, principalmente com Oliveira Viana, é a constatação da diferenciação interna, em termos de complexidade, das cultu­ras africanas; mais ainda, de que foram os estoques culturais mais adiantados aqueles transplantados, beneficiando-se o Brasil com "o melhor da cultura ne­gra da África, absorvendo elementos por assim dizer de elite que faltaram na mesma proporção ao Sul dos Estados Unidos". Há, na translação África­Brasil, certa seleção racial e cultural. O objetivo não foi trazer escravos que operassem apenas como força bruta, ao modo das colônias inglesas, pois aqui se visavam outros objetivos: a solução da falta de mulheres brancas e a reso­lução da necessidade de técnicos em metal para os engenhos e para as minas.

228

deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
Page 15: BASTOS, Elide. Gilberto Freyre; Casa-Grande & Senzala

ELIDE RUGAI BASTOS

Seriam essas duas. poderosas forças de seleção que se estenderam à miscigenação. Os negros que convivem com··os brancos não são os degrada­dos pelo serviço da lavoura e sim os escrav-os domésticos. Os pajens e mucamas são escolhidos na senzala a partír do tipo físico mais a,traente e de aptidões mais próximas das do "setor civilizado". Dessa maneira selecionam-se negros com traços culturais e raciais mais semelhantes aos brancos.

Gilberto Freire levanta mais uma crítica aos racistas apontando os limites da aplicação do critério estatístico como fonte científica indiscutível. Falando a respeito dos testes de inteligência, os quais indicariam para os racistas a infe­rioridade do negro, aponta-lhes as bases culturais.

Numa direção mais positiva de seu diálogo, mostra a plasticidade do ne­gro, sua grande adaptabilidade. Ele é o verdadeiro filho do trópico, conservan­do, nesse ambiente, suas características eugênicas enquanto as outras raças se deterioram. Por esse motivo toma-se mais adequado às formas que assu­miu a exploração econômica no Brasil. Essa adaptação, que tem raízes fisioló­gicas e psíquicas, resulta em traços psicológicos. Assim, ao contrário do índio, o negro é um tipo extrovertido, alegre.

Em contraponto direto com Nina Rodrigues, discute a afirmação dos racistas que vêem a amoralidade como uma característica psíquica do negro, considerando absurdo não se ter "reconhecido no negro a condição absor­vente de escravo". A escravidão retirou o africano de seu meio social e de família, colocando-o em um ambiente em que imperavam forças dissolventes de sua organização social e sua cultura. Não há escravidão sem depravação sexual; portanto, a corrupção sexual de que é acusada não se realizou pela negra mas pela escrava. O que Gilberto Freire quer demonstrar é a superio­ridade da influência da estrutura social sobre a racial e do meio físico. Nova­mente, a tese de Boas.

Todavia, mesmo partindo desse ponto inovador, o autor não se atém ape­nas aos elementos culturais que, segundo ele, relativizariam a interpretação. Buscando uma visão mais ampla, encontra na interação raça-meio físico as características psicológicas que definem o povo. Inter-relacionam-se etnias/ culturas e trópico como elementos explicativos: é fundamental à análise apre­ender não apenas o grau como o momento de cultura que os diferentes povos nos comunicaram, além de sua adaptação ao trópico. Assim, a identificação de grande número de negros maometanos, de "cultura superior"; sabendo ler e escrever, ajuda a compreender algumas das revoltas de escravos no Brasil como uma erupção da cul~ura adiantada, oprimida por outra, menos nobre. Mas, ao lado do peso cultural, há um traço psicológico que se torna freio à

229

deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
Page 16: BASTOS, Elide. Gilberto Freyre; Casa-Grande & Senzala

CASA-GRANDE & SENZALA

revolta: a bondade - a bondade do negro que o impede de rebelar-se e o leva a aceitar tratamentos rudes.

O negro é, também, responsável pelo traço dionisíaco do caráter brasi­leiro; é ele quem ameniza o apolíneQ presente no ameríndio, marca tão paten­te em seus rituais. A dança, por exemplo, nos primeiros tem caráter sensual, enquanto nos segundos é puramente dramática. A alegria do africano contra:. balançou o caráter melancólico do português e a tristeza do indígena. A alegria e a bondade do africano ·são em grande parte responsáveis pela doçura que marca as relações senhor/escravo no Brasil.

Essas características definem o lugar social do negro na sociedade brasi­leira. Ele se toma parte da. família, sendo seu lugar "não o de escravo·s mas o de pessoas de casa. Espécie de parentes pobres nas fanu1ias européias". Tal situ~­ção se refere aos escravos domésticos, os cristianizados e já abrasileirados, que vivem nas casas-grandes, que têm possibilidade de constituir faim1ias, o que os retira do clima de luxúria e primitivismo que marca os que vivem na senzala, dedicados à lavoura, pagãos e comunicando-se por seus dialetos.

Esse conjunto ·de traços psicológicos, sociais e culturais permite que o negro exerça um papel colonizador, não apenas como colaborador do branco, mas exercendo também entre os índios uma missão civilizadora no sentido europeizante, atuando na mesma direção que o lusitano. Ao entrar como es­cravo na casa-grande, o negro, principalmente a mulher, impõe sua cultura como dominante. B verdade que já cristianizaqo, mas, se o catolicismo foi a forma de aproximar-se do senhor e de seus padrões de moralidade, o catolicis­mo místico aqui praticado foi a política de assimilação e ao mesmo tempo de contemporização seguida pelos senhores de escravos. Tal política consistiu em permitir aos negros a con$ervação, à sombra da doutrina católica, das formas e acessórios da cultura e da mítica africanas. Isso "dá bem a idéia do processo de aproximação das duas culturas". A religião foi o primeiro caldo em que se confraternizaram os valores e sentimentos negros e brancos.

O escravo negro formou o caráter brasileiro legando-nos sentimentos e valores. A ele devemos nossa sensibilidade, imaginação e uma doce e domés­tica religiosidade. São africanos vários dos hábitos considerados brasileiros -de higiene, de vestimenta, de alimentação -, bem como o são as crenças em um mundo mágico, os sortilégios de amor, as tradições musicais, a linguagem. A mucama exerceu uma forte ação na educação das crianças, incutindo-lhes hábitos de vida, crendices, alterando a língua tradicional portuguesa, tomando­a uma "fala sem ossos" que opera "um amolecimento de resultados às vezes deliciosos para o ouvido".

230

deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
Page 17: BASTOS, Elide. Gilberto Freyre; Casa-Grande & Senzala

ELIDE RUGAI BASTOS

A partir da língua, Gilberto Freire tenta captar ao mesmo tempo a interpenetração das culturas e a trama das relações sociais no Brasil. No pro­cesso de assimilação dos negros à sociedade de raiz portuguesa, as diferentes línguas africanas não persistiram; mas a língua portuguesa perdeu sua pureza, não se corrompendo totalmente e, também, não mantendo a rigidez das salas de aula.

A língua brasileira resulta da interpenetração de duas tendências: a es­trutura oficial e a fala popular. Todavia, mais do que uma forma cultural, ex­pressa conciliação na esfera social; é uma das maneiras pelas quais se amenizam os conflitos. Ilustra a tendência discutindo os modos de construção do impera­tivo. Um duro, português - diga-me, faça-me, espere-me -, outro ameno, brasileiro - me diga, me faça, me espere. São dois modos antagônicos e servimo-nos de ambos. "Faça-me, é o senhor falando, o pai, o patriarca; me dê,· é o escravo, a mulher, o menino, a mucama." A simples colocação dos pronomes pode mostrar que, como brasileiros, temos duas faces: a dura e antipática, do dominante, que se expressa no "faça-me"; a suave, simpática, pronta a obedecer, do dominado que pede "me faça". Segundo Gilberto Freire, as duas formas devem coexistir, porque a força da cultura brasileira reside "na riqueza dos antagonismos equilibrados". Se seguíssemos só um modo em de­trimento do outro, abafaríamos metade de nossa vida emotiva e nossas neces­sidades sentimentais, pois "somos duas metades confratemizantes que se vêm mutuamente enriquecendo de valores e experiências diversas". Essas duas faces do indivíduo estendem-se à sociedade. É isso que caracteriza nossa for­ma de nos relacionarmos socialmente. Somos uma democracia social porque somos uma democracia racial.

CoNSIDERAÇõEs FINAIS

A família é a categoria nuclear da explicação freiriana. É na família que se toma possível perceber os elementos que caracterizam as relações e os processos que envolvem os homens. É aí que encontramos as formas funda­mentais que a vida assume. Essa definição desenha o caminho da análise freiriana. Primeiramente, a escolha das instituições e dos personagens a serem estudados. O complexo agrário-industrial do açúcar visto como um microcosmo que se alarga e figura a sociedade. Os personagens - o patriarca, central na definição desse universo _social; o escravo, a mulher, o menino, secundários, gravitando em torno do primeiro. Mas os sinais se invertem. Os atores aparen-

231

deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
Page 18: BASTOS, Elide. Gilberto Freyre; Casa-Grande & Senzala

CASA-GRANDE & SENZALA

temente marginais ganham o centro do palco, mudam o rumo da história. São eles que recriam em outro patamar as relações sociais. Terminam por impor seu modo de vida, sua visão do mundo, seus costumes, sua estética, sua· fala~ Assim, altera-se a ordem social, mudam-se os papéis. O dominante acaba por ser dominado. E o dominado, por dominar, impondo sua cultura. Trata-se, para o autor, da figuração da democracia.

Sobre essa afirmação se assenta a principal crítica feita não apenas a Casa-grande & senzala, mas a vários textos posteriores _escritos por Gilberto

·Freire- O mundo que o português criou (1940), Interpretação do Brasil (1947), Novo mundo nos trópicos (1971), para citar alguns. Vários movimen­tos sociais e estudiosos da questão racial no Brasil têm denunciado a tese da democracia racial como mito que funda uma consciência falsa da realidade. Ou seja, a partir dela acredita-se que o negro não tem problemas de integração, já que não existem distinções raciais entre nós, e as oportunidades são iguais para brancos e negros. Aponta-se par'a o caráter hipócrita da formulação, uma vez que o mito se baseia na afirmação de que a ordem social é aberta a todos igualmente, forjando:.se a crença de que existe um paralelismo entre a estrutu-:­ra social e a estrutura racial na sociedade brasileira.

Outro aspecto da crítica diz respeito ao equívoco de se estabelecer uma ponte entre miscigenação e democratização- o primeiro um fato biológico e o outro um fato sociopolítico-, identificando-se como semelhantes dois proces­sos independentes entre si. Esse continuum falso permite que se deixe de lado a análise do modo como se ordenou a população descendente dos escravos e os mecanismos que impediram a mobilidade social vertical dela, criando-se urna estrutura social que discrimina grandes contingentes populacionais. O re­sultado desse descuido analítico é elidir a escala de valores sobre a qual se · assenta a discriminação e, portanto, a dominação. Em outras palavras, a partir da constatação da existência de um gradiente de aceitação social- o indivíduo é mais aceito socialmente na medida em que se aproxima dos padrões bran­cos, e menos, se próximo dos padrões negros -, denuncia-se a falsidade do mito da democracia racial. E, a partir disso, estudam-se as conseqüências do mito na consciência dos indivíduos.

DecotTeria desse processo uma tendência, por parte da população não­branca, de fuga à realidade e à consciência étnica, por meio da aceitaçã.o dos mitos que recobrem a discriminação. Ou seja, a identidade e a consciêpcia étnica são escamoteadas e busca-se, por parte da população negra, uma iden­tificação com os grupos brancos. Essa seria a única forma pela qual se alcan­çaria a integração social e poder-se-ia aspirar à mobilização vertical. Assim, a

232

deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
Page 19: BASTOS, Elide. Gilberto Freyre; Casa-Grande & Senzala

ELIDE RUGAI BASTOS

tese da democracia racial, tendo sido incorporada pelo conjunto da população brasileira, funciona como cultura política que se configura em obstáculo ao verdadeiro enfrentamento da questão racial no Brasil.

Reco~ecendo que a crítica·é de grande peso, lembramos, no entanto, o sentido pioneiro de Casa-grande & senzala. Trata-se, ein vários aspectos, de um livro inovador. Primeiramente, ao apresentar propostas que superam as ex­plicações sociobiológicas e aquelas fundadas no determinismo geográfico, re­presenta uma inegável ruptura com as explicações anteriores e coloca em novo patamar analítico as interpretações do Brasil. Nesse sentido, sua publicação re­presentou uma verdadeira revolução nos estudos sociais no país. Em segundo lugar, inova ao adotar o discurso sociológico como código competente para dar conta das questões sociais. Com isso, antecipa os trabalhos que serão produzi­dos nos novos cursos de ciências sociais- da Escola de Sociologia e Política, da Universidade de São Paulo, e da Universidade do Distrito Federal- fundados na década de 30. Percebe-se, no livro, o apelo à sociologia não só para desmontar as argumentações deterministas, como para apoiar a explicitação da nomencla­tura da sociedade e da cultura dos povos que compõem a formação nacional. Por esse motivo, a denominação de Grande Esclarecedor, que é conferida a Gilberto Freire por alguns dos críticos daquele momento, vem sempre acompa­nhada de sua qualificação como sociólogo. Em terceiro lugar, trata-se de uma novidade nos estudos históricos e sociológicos o emprego não só de fontes dife­rentes das convencionais, como já foi apontado anteriormente, mas de um méto­do ainda não utilizado nas reflexões sociológicas no Brasil: o estudo do cotidiano .

. A metodologia permitirá ao autor transferir a análise da formação nacional ao âmbíto privado e não ao das instituições públicas, prática usual nas análises ante­riores. Novamente, o procedimento e suas conseqüências são objeto de crítica, pois Gilberto Freire estabeleceria um continuum entre a farm1ia e o Estado, não reconhecendo entre eles uma diferença de natureza. Mas trata-se de uma longa discussão que não abordaremos neste curto espaço.

Apontar apenas para três aspectos indicados seria suficiente para a ca­racterização de Casa-grande & senzala como um livro revolucionário. Mas, além disso, o autor rotiniza uma linguagem de vanguarda presente em apenas alguns textos literários da década anterior, construindo frases com sabor e colorido, mostrando que a linguagem popular e a erudita podem coexistir sem atritos. É verdade que isso só é possível graças à elegância que caracteriza a escritura de Gilberto Freire. Inúmeros são os motivos que ancoram o resulta­do: Casa-grande & senzala é não apenas um grande livro da sociologia bra­sileira, mas, sem dúvida, um monumento da literatura nacional.

233

deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce
deborah
Realce