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DISTRIBUIÇÃO GRATUITA • #59 • 4.ª SÉRIE • EDIÇÃO ESPECIAL CCC • JUNHO 2010 MARÉS – REVISTA PARA OS SECTORES DO MAR E DA ECONOMIA SOCIAL

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DISTRIBUIÇÃO GRATUITA • #59 • 4. ª SÉRIE • EDIÇÃO ESPECIAL CCC • JUNHO 2010

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forço conjugado de muitas pessoas que contribuíram na sua diferença e com-plementaridade para os resultados alcançados e que aqui salientamos eque queremos honrar para memóriafutura.

Por fim é necessária uma liderançaque desde sempre existiu e que a Dra.Cristina Moço como Directora de AcçãoSocial e Cooperativa da Mútua coorde-nou, em ligação permanente com aDra. Maria do Céu Batista, museólogae Dr. Luís Martins, antropólo go. Nãotemos dúvida que a qualidade do pro-jecto está intimamente ligada à quali-dade desta equipa.À Mútua competedivulgar os resultados deste Projecto.Esta publicação acompanha a exposi-ção itinerante, que difunde os seteprincípios que norteiam a atitude doinventariante CCC e espera captar maisinventariantes que queiram celebrar acultura costeira connosco. A DirecçãoGeral da Pescas e Aquicultura, onde oDirector Geral, Dr. José Apolinário nosacolheu juntamente com os mais repre-sentativos dirigentes das outras Insti-tuições públicas ligadas ao Sector daPesca, dirigentes associativos e qua-dros da DGPA foi o primeiro porto dechamada e de reconhecimento. Esta foiuma boa forma agradecer e de relem-brar que há precisamente 10 anos, aMútua foi homenageada pelo MADRP--Capoulas Santos e SEP-José Apoli-nário, com a Medalha de Honra dasPescas.

Este é um número especial da “Ma-rés”, dedicado em exclusivo ao Pro-jecto Celebração da Cultura Costeira(CCC) de que a Mútua dos Pescadoresé o promotor. Há que registar algunsaspectos essenciais, numa ocasiãocomo esta. O primeiro é porque é queuma cooperativa de seguros se envolvenum projecto cultural com os objecti-vos e a dimensão do CCC.

Como é natural uma cooperativade utentes de seguros tem como mis-são oferecer aos seus cooperadores osmelhores serviços na área dos seguros,quer na qualidade das coberturas,quer na regularização dos sinistros,quer no preço. E tudo isto acompa-nhado de um tratamento humanista,já que para uma cooperativa são aspessoas que contam e a sua missão éservi-las. Na Mútua entendemos a responsabilidade social das organiza-ções e das empresas como algo intrín-seco à natureza cooperativa, quetemos que garantir em todas as áreas,actos e decisões (para outros bastará omarketing). Um dos princípios coope-rativos é o “interesse pela comuni-dade – as cooperativas trabalham parao desenvolvimento sustentável das suascomunidades, através de políticasaprovadas pelos membros”. A culturaé a argamassa que estrutura as comu-nidades, e na cultura são os actoresculturais e os actos culturais que im-porta valorizar e desenvolver.

Ora o CCC parte do reconheci-mento de que há uma cultura costeira(marítimo-fluvial) que importa tratar,identificando práticas diversificadas,histórias e tradições, lugares e trajec-tos, organizações e eventos, cons-truído, em suma formas diversas deconhecimento levado à prática. Comovemos estamos no domínio do imate-rial, já que os museus e outras entida-des têm tratado das recolhas dosmateriais, objectos, artes que são tam-bém essenciais para a compreensãodesta cultura costeira. É a activaçãolocal destas heranças culturais, tam-bém vista como factor de coesão so-cial e de desenvolvimento que esteveno centro deste Projecto.

Neste Projecto a metodologiaadoptada foi a entrevista semi-aberta,em que o entrevistador e o entrevis-tado (o par mínimo ou inventariantes)vão caminhando lado a lado e fixandopara a base de dados, a disponibilizara todos os interessados, a experiência,vivência, conhecimento relativo a umacomunidade específica, que ocupauma região, guiados por uma determi-nada problemática. Foram pois diver-sas as comunidades e as problemáticasabrangidas, desde Viana do Castelo aRabo de Peixe em S. Miguel, Açores. Oinventariante é alguém que se quer daprópria comunidade, alguém que sedisponibilizou para aprender a meto-dologia, e a pôs depois em prática, per-manecendo na comunidade como umactor cultural mais atento e despertono futuro.

Mas um projecto que leva 3 anos detrabalho no terreno, que desenvolveumuitas acções, que envolveu muitasdezenas de actores, só foi possível como financiamento do Mecanismo Finan-ceiro do Espaço Europeu/EEA Grantse o co-financiamento da Câmara Muni-cipal de Sines, a quem estamos gratos.À entidade que acompanhou e fiscali-zou todo este dossier, pela forma inde-pendente e séria como o fez, fica onosso público reconhecimento.

Por outro lado as parcerias que ti-veram que se formar, foram por si sóum desafio, tal é a diversidade. Aquise regista o nosso agradecimento pelacolaboração dos seguintes parceiros:Associação de Barcos do Norte, Vianado Castelo; Museu Marítimo de Ílhavo;ADEPE/Associação para o Desenvol-vimento de Peniche; Câmara Muni-cipal de Sines; ADPM/Associação deDefesa do Património de Mértola;Cooperativa Porto de Abrigo, Açores;Rede Portuguesa de Mulheres da Pes -ca/AKTEA; e ainda E-GEO da Univer-sidade Nova de Lisboa; Univer si dadeLusófona/ Centro de Estudos de Só-cio-Museologia; Museu Maritimo deBar celona; Universidade de Tromsø/Departement of Community Studies eMuseum Nord, Melbu, ambos da Noruega. Um Projecto resulta do es-

Editorial: Jerónimo Teixeira

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p r o p r i e d a d e

e d i ç ã o

Propriedade: Mútua dos Pescadores – Mútua de Seguros, C.R.L., Avenida Santos Dumont, 57, 6.º, 1050-202 Lisboa,tel.: 213 936 300, Fax: 213 936 310, www.mutuapescadores.pt, [email protected], NIPC 500 726 477

Director: José António Amador • Conselho editorial: Jerónimo Teixeira, Cristina Moço, Adelino Cardoso e Marta Pita Edição, Produção e Publicidade: Bleed, Sociedade Editorial e Organização de Eventos, Lda., Campo Grande, 30-9.º C,

1700-093, Lisboa, tel.: 217 957 045/6, Fax: 217 957 047, [email protected]ão: Jorge Fernandes, Lda. • Tiragem: 8.000 exemplares • N.º Registo: 124498 • Depósito Legal: 209498/04Para este número especial a edição esteve a cargo de Maria do Céu Baptista e Luís Martins Design Gráfico: Maria da Graça MantaNa capa: Fotografias de trabalho nos territórios dos vários parceiros locais

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3Celebração da Cultura Costeira

Trazemos na exposição que estapublicação complementa notícias doprojecto Celebração da Cultura Cos-teira/EEAgrants (CCC) que procuraaproximar os habitantes da beira deágua das respectivas heranças cultu-rais e criar, em cada território, con-dições para o seu estudo e posteriordivulgação (portal e base de dados).

1. Que competências chave se de-senvolvem no conjunto das activida-des CCC e como se incrementam,quer no território, quer no trabalhoposterior à recolha de informação?

O inventariante que celebra a cul-tura costeira e cujo perfil estará sem-pre em construção, transformousituações de excepção em atitudesdiárias, ao valorizar o meio em quevive, e ao observar as acções que be-neficiam a natureza e a cultura doseu habitat:

– Convocou um conhecimento com-petitivo;

– Enalteceu o que cada sociedadee pessoa têm;

– Promoveu a atenção ao que lheestá próximo;

– Incitou a atenção ao que se en-contra distante e é social e cultu-ralmente diferente, e

– Fomentou a criatividade ao tomarconsciência do valor que têm ospequenos passos da vida diária.

E fê-lo, ouvindo, reconhecendo eaceitando diferenças. Compreen-dendo e interpretando os argumentosdos outros enquanto aprendia a argu-mentar em defesa dos seus própriospontos de vista. Isto levou-o obrigato-riamente a considerar alternativas e apropor escolhas, submetendo-as aanálises de diversa ordem, incluindoas éticas. Assim se vão estabelecendorelações e se podem assumir respon-sabilidades partilhadas (a co-autoriada informação disponibilizada).

Produziu um conhecimento de si eda sua própria cultura, contribuindopara o reforço da coesão social e eco-nómica local e regional: conheceu as-

pectos das questões e dos interesseslocais e regiões tão distintos como olitoral de Caminha ao Douro, a ria deAveiro, Peniche, também de redeirase sardinheiros, Sines, Rabo de Peixee beira rio de Mértola e a complexi-dade dos desafios actuais dos residen-tes da Ilha da Culatra.

2. Na prática da inventariaçãopôde trabalhar organizações, relatos,artes dapesca e da terra, hábitos deconservação e cuidados para com a natureza, transformações paisa-gísticas e modos de fazer, realizando entrevistas, registando técnicas ou inventariando e produzindo docu-mentos.

Discutiu, sustentada e sensata-mente, porque com a ajuda de infor-mações, as práticas e conhecimentosde outras culturas, concorrendo parao reforço da coesão entre povos e so-ciedades no espaço europeu. Acedeu aexperiências variadas, que lhe permi-tiram trocar saberes, comunicar eusar as linguagens de outras profis-sões, e reconhecer paisagens e costu-mes diferentes dos conhecidos por si.Por isso o inventariante da Celebra-ção da Cultura Costeira aperfeiçoou asua capacidade de compartilhar deci-sões e poderes (contactou e conviveucom parceiros e grupos internacio-nais, visitou e trabalhou na Noruega,reuniu e intercambiou experiênciascom elementos da vasta rede europeiadas mulheres da pesca, AKTEA; re-cebeu e trocou ideias com pessoas deoutros continentes (Brasil e Japão);pôde observar como se ultrapassa di-ficuldades de língua, comportamen-tais e da timidez com que se abordamnovas práticas.

Os trabalhos foram-se tornandoinstrumentos de consciência comunitá-ria e vão mostrando como as comuni-dades se podem organizar em gruposem torno de problemáticas e temas quelhe dizem respeito ou que interessamaos outros. Houve actividades e pro-fissões que ganharam visibilidade,pessoas e extractos sociais que se sen-tiram encorajados a assumir um pa-

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pel nas responsabilidades individuaise colectivas. Numa altura em que ascomunidades se encontram muitovulneráveis ganhar um capital deconfiança não é de menosprezar.

3. Na base do perfil do inventa-riante local da cultura costeira há o in-teresse de se implementar um trabalhosistemático e regular que envolva dife-rentes gerações e classes profissionaise sociais distintas. Para debater ques-tões que são essenciais às populaçõesque vivem à beira da água. Para seconstruir um acesso justo e igualitárioà educação. Para envolver pessoas emassuntos que lhes dizem respeito e tra-zer esta atitude, e informação e conhe-cimento, para um lugar virtual, ondetudo pode ser partilhado e reapro-priado de diferentes maneiras, se-gundo as entidades: uma associação,uma escola, o departamento de pla-neamento de um município… Paraminimizar barreiras e favorecer umaeducação em comunidade. Este é umprocesso e deve ser visto como um con-tinuado no tempo e no espaço.

Esta é uma razão forte para que uminventariante siga princípios e métodosestruturantes, que se apresentam nestaexposição e publicação, em que a pro-blemática de cada parceiro contribuipara a definição de um painel.

A dimensão territorial e presen-cial a que este projecto obriga dá-lheum estatuto diferente do e-learning ouda utilização da internet pelas redessociais.

Objectivos do projecto: Criar uma rede de inven-tariantes locais da cultura costeira, fazer uma ex-posição e publicações que difundam a necessidadee o perfil deste trabalho, uma base de dados e umaunidade de validação, que assegurem a sustentabi-lidade do processo findo o projecto.

Parceria: Mútua dos Pescadores (Promotor),Câ-mara Municipal de Sines (Co-financiador), Asso-ciação Barcos do Norte, Museu Marítimo deÍlhavo, Associação para o Desenvolvimento dePeniche – ADEPE, Associação para a Defesa doPatrimónio de Mértola – ADPM, CooperativaPorto de Abrigo, OP, Rede Portuguesa das Mu-lheres da Pesca / AKTEA, Centro de Estudos deSócio-Museologia da Universidade Lusófona deHumanidades e Tecnologia de Lisboa, EGEO-Centro de Estudos de Geografia e PlaneamentoRegional FCSH da Universidade Nova de Lisboa,Museo Marítim de Barcelona, Espanha, Depart-ment of Community Planning, University ofTromsø, Nord Museum, Melbu, Noruega

Artigos CCC foram publicados entre 2007 e 2010nos seguintes números da Mútua e estão disponí-veis no portal: http://ccc.mutuapescadores.pt

2007 (Julho) n.49 – Celebração da Cultura Cos-teira está no terreno

2008 (Janeiro) n. 51 – Um Momento de Inventa-riação(Julho) n. 52 – Mulheres que vão ao mar,mulheres de coragem(Agosto) n. 53 – Os sistemas de Informa-ção Geográfica e a “Celebração da CulturaCosteira” (Novembro) n. 54 – Protagonistas do patri-mónio local

2009 (Janeiro) n. 55 – O sistema de informação(Junho) n. 56 – Inventariação da CulturaCosteira: Uma reflexão e V Seminário emViana do Castelo

2009 (Dezembro) n. 57-58 - Dar a conhecer ostrabalhos e lançar desafios

2010 (Maio) n. 59 – Conhecer, socializar, comu-nicar a herança cultural costeira

2010 (Maio) n. 60 – A exposição e os princípiosdo inventariante CCC estão na rua

© CCC, entrevistados e respectivos entrevistadores (textos)

© CCC e respectivos autores (imagens)

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EU SEI QUE TU SABES E PODES TRABALHAR EM REDE

São princípios que respondem à necessidade de reforçar a dignidade e o reconhecimento da diversidade so-cial que estão na origem da discriminação. O inventariante é incentivado a reconhecer isto antes das saídasde terreno e a desenvolver esta consciência durante os trabalhos.

REFLECTIR SOBRE A NATUREZA DESAFIADAVALORIZAR A EXPERIENCIA E OS RECURSOS DO MAR

EVITAR QUE O VAZIO SE INSTALE NO RIOSão princípios que estão subjacentes à luta digna por um equilíbrio económico no seio das comunidades cos-teiras, no contexto das discussões do século XXI. O inventariante é incentivado a ter uma atitude pró-activae reflectida sobre si, as questões ambientais e económicas do seu território e de como ele se vai alterando.

ESTIMAR E DAR VALOR AOS SABERES INTUITIVOSABRIGAR O DESEJO DE IGUALDADE

São princípios que estimulam o diálogo social e a partilha destas responsabilidades na comunidade. O in-ventariante respeita e valoriza a herança cultural de modo a que a cultura generalista do país deixe mani-festar a cultura específica e minoritária, que são as culturas costeiras. Parte do presente e pacientementedescobre as linguagens que lhes são próprias e a partir da qual estas culturas podem expressar a sua par-ticipação numa Europa justa social e culturalmente.

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Celebração da Cultura Costeira 5

Problemática: Um museu nascido da pesca lon-gínqua tenta renovar o seu destino olhandopara as comunidades vizinhas da ria de Aveiro

Território: Canais e áreas inundáveis da ria deAveiro

Herança cultural activada: Sítios e actividadesnas margens da ria importantes para a suacompreensão cultural, (construção e constru-tores navais, organizações, pesca e artes dapesca, gastronomia)

Inventariantes: Anabela Valente, António JoséMacedo (1964-2010), Francisco Ferreira, OdeteSantos, Plácido Nenos; assistiram a algunstrabalhos Fernando João, Isabel Branco, Ma-nuel Oliveira

Exercícios realizados: marcações GPS, entre-vistas, trabalho em grupo e individual

O Museu de Ílhavo ofereceu à partilhados parceiros deste projecto a vontade de seaproximar das comunidades da ria, procurandopara isso identificar instituições, pessoas eactividades, e a forma como se apropriaramda sua complexa diversidade territorial. Osinventariantes CCC puseram mãos à obra eem poucas sessões navegaram nos canais eespaços amplos da ria, revelando um territó-rio que se define a partir da sua própria experiência de itinerários e trabalhos, umterritório de todos mas que cada um conhecee mostra à sua maneira. Partindo do seu lu-gar de marítimos cartografaram, também, algumas das manifestações da cultura ribei-rinha regional: orientação na água, cabeços,uso dos canais, cais, pequenos armazéns, lu-gares de passagem, de pesca e de apanha,edifícios de apoio e de associações, essa escalamiudinha da actividade humana costeira.Mas também se revelou uma ria a necessi-tar de urgente assistência à sobrevivência do ecossistema, onde se inclui a dimensão humana, marcada pelas transformações ma-teriais: desactivação dos estaleiros, empo-brecimento da importância do sal, enfim daprópria vida da ria. A ria gratificou as popu-lações que dela se ocuparam, uma activi-dade menos atenta a esta permuta esgota aria e os seus equilíbrios.

Posições GPS importantes num dia de inventariação

P 3 Cais do Miradouro e fábrica de FrançaMorte

P 5 Limite dos viveiros da Gafanha deAquém

P 8 Estaleiro da CARNAVE P 9 Marina da EPA

P 12 Quinta do inglês, onde no passadohavia muita pesca à enguia

P 14 Lugar onde pescava o Zé Broa P 17 Cais das embarcações de pesca da

Costa Nova P 18 A paragem de transportes públicos,

nes ta imagem vista de uma embarcaçãojunto à margem da ria, situa-se no lugaronde atracava a barca de passagem

P 20 Cabeço do Relógio P 21 No local onde se encontra uma embar-

cação, galera, naufragada, que terá pe-ças de olaria

P 22 Frente à curva da Biarritz P 23 Marina Clube da Gafanha P 30 Canto da Cagueira, Torrão do Lameiro,

Ovar P 34 Porto de Abrigo da Torreira P 35 Plataformas de mexilhão P 38 Forte da Barra, Instituto de Socorros a

NáufragosP 39 Igreja de N. Srª da Saúde, Largo das

CapelasP 40 Igreja de N. Srª da Saúde, Largo das

CapelasP 41 Cais do Puxadouro e sede da CenárioP 42 Entrada do cais do Puxadouro e foz

do Caster P 43 Entroncamento das entradas dos ca-

nais da Ribeira P 44 Entrada do Canal da Ribeira P 45 Sal, Cais da Ribeira de OvarP 47 Cais da Ribeira de Pardelha e sede

da Associação dos Amigos da Ria eBarco Moliceiro

P 50 Praia da TorreiraP 51 Posto de vendagem e carrinha do con-

cessionário da lota P 53 Bairro social dos pescadores da Tor-

reira P 59 Cais das Pirâmides, entrada do canal

central da ria e edifícios da lota velha P 58 Cabeço do Quintino. No passado fazia-

-se nesta área criação de ostras. E apa-nhava-se muita enguia.

Percursos: Quando ia com a minha mãesaíamos aqui no Chegado. Atravessávamos oBaixo Vouga, até chegar a Cacia. Mas destelado de cá, do lado Norte da ponte. E depoisíamos a pé ao comprido. Ela vendia o peixesempre, sempre, até não ter nenhum na ca-nastra. Vinha para baixo e amanhava-o. Eamanhava, e sempre vinha, um naco de pão,e uma tigelinha de sopa. Trazia a barriguinhacheia. Íamos sempre ao comprido na 109,que vai para Aveiro. Ela não é de Cacia. De-pois cortávamos. Ainda não havia aquela variantezinha que eles fizeram, porque a 109atravessava mesmo o centro de Angeja, e aminha avó vendia já lá em Angeja, e a minha

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Museu Marítimo de Ílhavo

mãe ia mais longe vender peixe. Esse cami-nho está ali ainda. Sempre a pé. Para lá epara cá. Pela estrada e aqui pelos campos.Não havia transporte. Às vezes era água, aatravessar aqui o Chegado, até à cintura oumais. Tinha para aí uns nove anos. Fiz essecaminho até aos onze anos, quase. Até fazero exame da quarta classe. Uma vez a minhamãe levou trinta quilos de peixe e um filhono ventre. Vendeu o peixe e trouxe o filho nacanastra. O meu irmão. José Caneira, Murtosa

Aprender com a vida da ria: Eu tinhaaprendido de pequenito. Porque eu cá fuiservir dois anos, quando o meu pai morreu, efui servir dois anos para Lisboa. Lá tirei aminha cédula marítima. Foi lá que fui pesca-dor. À pesca do camarão nas canoas. Servirdois anos só pela cédula marítima e comer.Dos doze aos catorze.

Depois de ter tirado a minha cédula marí-tima é que vim aqui para a Murtosa. Já traba-lhar aqui nos barcos. Já não ia clandestino.Porque quando eu andei ao moliço com o meupai, o cabo do mar andava sempre a espreitar--nos para ver se trazia crianças. Eu metia-meali debaixo do cavalão do rolado do moliço en-quanto o cabo do mar andava a ver. Eu che-gava todo molhado. Seis anos, sete anos, sei lá.JC, Murtosa

Apanhar o moliço com o pai: Quando foi aprova oral, fiz lá qualquer coisa, não sei, umafrase em português, eles perguntaram-mequal era o sujeito, o predicado, o comple-mento directo, o complemento indirecto, ocomplemento circunstancial de fim. E eu res-pondia. Mas eu estava todo enfaixado com aminha roupa nova. Deus deu-me aquele dom.Foi Deus que me deu. No fim a professoradisse-nos – isto foi uma Terça-feira – Orabem, daqui avante (poucos eram os que fa-ziam a 3ª classe) daqui avante alguns de nósnão nos veremos mais. Mas eu precisava que agente se reunisse na Quinta-feira. E depois euqueria dar-vos uma lembrançazinha. Princi-palmente tu. Disse-me a mim.

Mas às cinco horas da manhã de Quinta--feira o meu pai levantou-me para apanharmoliço. E eu fui ajudá-lo a acarretar moliço.Que era um moliço que aboiava depois com oarrolado. E quando dava uma aragem daqui edali, encostava aqui. Precisamente aqui nestesítio. Aqui onde está esta doca. Tirou-se aquimuitas toneladas de areia. Centenas de tone-ladas de areia. Era uma praia, e criava umaespécie de fretê, a gente chamava-lhe fretê,uma junça. Até está em vias de extinção, isso.Não há água doce, a água doce é pouca na ria.

E eu, à frente com uma padiola, e o meupai atrás, e fomos ali para baixo apanhar mo-liço. Para juntar moliço, que aboiava, e comlama preta, fazia o tal moliço bom. Para irvender a Salreu. Quando íamos por aqui à

vela, ao chegar acolá ao Chegado, que é paraaí uns oitocentos metros à minha casa,chama-se Porto do Chegado, eu disse: – Ohpai, eu queria ir à escola agora, às três horasda tarde. A professora está lá até às cinco.Vou receber um prémio.

E diz ele: – Oh, prémio. Os prémios sãoaqui. Aqui é que se ganham os prémios.E não me deixou ir receber o que a profes-sora… JC, Murtosa

Junça, castanhó ou fretê e o arrolado:Fretê, ou junça. Aos carregamentos. Tam-bém se chamava castanhó. Fretê, castanhó,junça. Junça é lá em terra, mas aqui também.Mas a gente chamava-lhe castanhó, que éuma coisa diferente de junco. Junco é um bi-quinho. E o castanhó era outra coisa, quenascia através da água doce. Quanto maiságua doce desse, melhor.

O arrolado era moliço que, depois de ma-duro, submergia. Era o moliço que aboiava demaduro, como a fruta que cai da árvore de ma-dura, e depois ficava aboiado e juntava-se todoconforme a corrente. Juntava-se todo e faziaentão, o arrolado, por andar à róla. Ia para ondea água fosse, e para onde o vento fosse. Paraonde o vento dava, ia contra as bordas. Contraas beiradas. E apanhavam lá. E se não hou-vesse vento, andavam água abaixo, águaacima, como ainda andam hoje. JC, Murtosa

Um invento: Vou fazer 79 anos no dia 10 deJunho, dia de Camões. Nasci na Murtosa eestou a viver no Lugar do Pinheiro. Andei naescola só três anos. Depois de fazer a 3ª classefui para o rio ajudar o meu pai. Com umpasse. Até aos doze anos. Escoar a água. Omoliço trazia a água para dentro. O meu paiera o arrais. Andava ali. Para andar na com-panhia dele.

Depois comecei a sério, eu sozinho maisele, com onze anos. Não posso dizer que medesenrascava, porque já não me recordo detudo muito bem. Quando era para comer, de-senrascava-me.

O meu avô dizia que antigamente o moliçovinha ter à borda com uma arrolada. Encos-tava à borda e apanhava-o, para levar para asterras. Mas depois começaram a fazer um bar-quito para ir para o meio, apanhar algum me-lhor. Depois, dizia o meu avô, tinha eu onze edoze anos, que os primeiros barcos que vie-ram, que eram barcos mal feitos, íam à varapara o lado de cima do vento e largavam àpopa. Largavam à popa com os ancinhos para avara arrancar o moliço. Chegavam ao fim do ar-rasto arriavam a vela e tornava a vir à vara parao lado de cima do vento. Para tornar a arrastar.

Depois diz que veio um homem qualquerque disse Então a gente vai à vara? Começoua botar, a través para um lado, a través paraoutro, a alcançar um bocadinho de cada vez.

Houve outro que disse: – E se botasseuma tábua ali amarrada?

Então começaram a botar uma tábua amar-rada ao mastaréu ali da frente. Mas depoishouve outro mais inteligente que resolveu bo-tar um traste e botar ao meio, e fazer uma tosta.E começou a malta a brincar uns com os ou-tros. Às vezes até a fazer pouco uns dos outros.

Apanhávamos o moliço para estrumar asterras. E também vendíamos. Todos os lavra-dores tinham que estrumar as terras. Lá vi-nha um que encomendava duas ou trêsmarés. Outro que encomendava duas ou três.E o meu pai ia à banca, a Murão, às enco-mendas, e receber o dinheiro da maré que láestava. Da carga do barco.

Os moliceiros tinham de andar lá otempo que fosse preciso até findar a maré.Andar tanto tempo até carregar o barco. Obarco estava carregado quando estivessecom os bordos na água. Dizia-se estar ao rés.

Vendíamos também em Quintães, Vagos,Souza. João da Silva Santos, Murtosa

Bolinar: Lembro-me dessas pessoas, aqui doBunheiro, só do Bunheiro, porque os da Mur-tosa já eram mais espertos nisso, aqueles queandavam a apanhar moliço para eles pró-prios. Alguns ainda iam vender. A essas pes-soas que navegavam assim. Os Unhuras.Eram aqueles que navegavam à vela a arras-tar o moliço. E depois iam à vara até aomesmo sítio, para voltar outra vez a arrastar àvela. Porque eles não sabiam bolinar. É comoele está a dizer, tal e qual. Começaram aaprender e começaram a bordejar. JC, Murtosa

Bolear: Nós na nossa zona, em vez de dizer-mos bolinar, que é navegar contra o vento,utiliza-se bolear. Manuel Oliveira, Murtosa

O moliço e o peixe: Eu lembro-me que nosanos cinquenta a água enchia meio metro, esecava outro meio metro. Agora enche trêsmetros, três metros e vinte, três metros e se-tenta, e ao secar deixa tudo em seco. Estão areclamar que a ria está assoreada. O que sepassa é que a água seca tanto que vai pelabarra fora, porque a barra está muito funda.

Antigamente o caranguejo desovava. De-pois de desovar, as crias eram como as carra-ças. A solha e a enguia comiam-no. E nãohavia o caranguejo. Mas havia muita solha emuita enguia, e a ria estava cheia de peixe.Porque tinha o moliço para se esconder. E es-tavam à espreita dos caranguejos para os co-mer. Actualmente não há moliço nenhum,não há onde o peixe se esconder. Não há mo-liço porque a corrente de água arrasta tudo. Opeixe entra, vem para desovar, o sável paradesovar, a lampreia para desovar, a solha vemdesovar, a tainha vem desovar, o choco vemdesovar. O que é que acontece? O caranguejoanda ali perto, come logo as ovas.

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Daqui por seis ou sete anos não há peixena ria de Aveiro. Acabou. Cada vez há menos,menos. JC, Murtosa

Remar: Remei sempre durante dez anos. Háuma técnica da ria. Tiram aqui cédulas marí-timas. E têm que vir aqui à doca aprender aremar.

Remam todos da mesma maneira. Obarco, remar, tem de ser sempre a remar paraa frente. Muitos aprendem a remar. Tambémjá conheci pessoas a remar, que arranhavamas mãos todas aqui, porque batiam com oscanos dos remos uns contra os outros. Re-mar, acerta-se. Se o remo for um bocadinhomais comprido, uma mão para cima e outrapara baixo. Quanto mais estender o corpopara trás, mais a vogada é maior. E se quiserfazer uma manobra qualquer, rema com um,cia com outro, dá a volta ao barco.

A minha postura de mãos é assim. Se poracaso os remos tiverem os canos mais com-pridos, a mão direita é naquele da esquerda.E o outro encruza-se e rema-se. Se os remosé, como normalmente, só até aqui, cada um éna sua mão. Ou anda para trás um. Ou an-dam para trás os dois. Ou se quer andar comum para trás, e outro para a frente, anda queé para dar a volta ao barco. Para atracar obarco. Toda a gente sabe remar, quase. Euandei sempre a remos e à vela. No bacalhau,andei sempre a remos e à vela. Aliás, antiga-mente, aqui, estes barcos, eram todos à vela.À vela, a remos e com uma vara. Agora é quetemos um motor. JC, Murtosa

Regata: Temos uma regata que a gente fazaqui. Três vezes por ano. No dia dezanovevamos numa regata da Torreira a Aveiro. Demoliceiro. E no outro dia há um concurso depainéis, pinturas, destas pinturas típicas. Es-tas pinturas têm algo de político, brejeiro ecultural.

Dá trabalho conservar um barco. Todos osanos, perto de Setembro, eram todos encalha-dos, para dar uma pintura ao fundo, para nãocriar aquela coisa. Porque convém que eu váàs corridas, à regata, pintadinho e arranjado.

A corrida aqui é no dia sete de Agosto.Mas, este barco já não está preparado paracorrer como os outros. As velas são pequenas.E, além disso, está ali cortado à ré, porque émais fácil para eu fazer a manobra. JC, Murtosa

Caldeirada: Ganhei um prémio de culiná-ria. Foi quando eles fizeram uma corrida paraa Costa Nova. Para a festa. Além da corrida,eles promoveram, uma caldeirada à arrais, àmoliceiro. Porque antigamente cozinhávamosa bordo.

Então eles davam-nos vinte e cinco euros,para a gente comprar peixe. Seja de que quali-dade for. Tínhamos de fazer uma caldeirada.Deram-nos as batatas, o azeite e a lenha.

Eu pensei assim: Vou fazer uma caldei-rada como a minha mãe fazia. E fui pescarumas enguias. Depois levei as batatas decasa. Porque nós semeamos as batatas.

Éramos dezassete. Eu ganhei o 1º Pré-mio. Caldeirada das Enguias. Já tem mais deseis ou sete anos. Em dois mil, parece-me.Foi em 2002.

Uma caldeirada normal. As enguias, bemlavadinhas, tudo em frio. Eu cá, quando vouàs enguias, gosto sempre de dar [muito] aquem vai comer comigo as enguias. Nem queeu as vá comprar.

Uma camada de enguias, batatas, depoisuma camada de enguias, cebola, ervas aro-máticas, que são hortelã, salsa. Até estarcheio. Tudo em cru. Azeite virgem e um póamarelo que se chama açafrão. Depois deixa--se ferver bem. Depois de ferver bem tira-se--lhe a água. Sabe às enguias. Pode-se fazerumas sopas. Faz-se uma moira, quer dizer,uma mão cheiinha de sal numa tigelinha, ebota-se um pouco da água do cozido. E der-rete-se aquilo que é para botar duas ou trêsvezes por cima. Porque a enguia é como obacalhau. Tem de saber a sal. Faz-se entãouma moirazinha, que é sal com água do co-zido, depois de derretida é autêntica moirasalgada. Passa depois duas ou três vezes pelamoira. Tempera. Bota-se outra vez no lume,agora só com o molho, lume médio. Bota-se-lhe um pouco mais de azeite, com uns denti-nhos de alho em cru. Bota-se uma pitadazinhade pimenta, dá-lhe uma voltinha, comer echorar por mais.

Quem come comigo tem de comer meioquilo de enguias. Se não pesco num dia, voupescar noutro, e noutro, nem que seja umasemana. Deixo-as na água vivinhas, e depoisamanho-as.

Quando vai à moira já está cozida. Voltaa ir ao lume para aí dois ou três minutos, só.Para receber os condimentos, agora. Que sãoo alho, o azeite, e a pimenta. Que só se co-loca no fim. Porque antes só tem o açafrão,para ficar amarelo.

A enguia também tem de estar cozidinha,que a gente bota ali, tira-lhe a espinha, fica acarne na boca. E a batata fina. JC, Murtosa

O boato da galeota: Faz-se uns pastelões ede caldeirada. Mas é preciso saber cozer. A caldeirada de galeota nem toda a gentesabe cozer. Só de Aveiro, Ílhavo, Gafanhas, etambém Vagos, é que compravam. Começoua correr o boato que era bom, de umas paraas outras, e também já em Vagos compravam.A gente ia pelas portas vender. Mas era ven-dido ao pires, com água. Já cheguei a apa-nhar em Janeiro.

A primeira galeota que o meu maridoapanhou, fui levá-la à Gafanha, à esposa fa-lecida do Toni Vieira. Chamada Milu. E elaencheu-me uma maleta, dessas de rafa,

Celebração da Cultura Costeira 7

1. Barco moliceiro com carga completa2. Refeição a bordo de moliceiro

(in Aveiro – moliceiro, tomo I, 1943)3. Sessão de inventariação a bordo do moliceiro da

Câmara Municipal de Ovar, durante entrevista ao arrais José Caneira (Cais do Bico da Murtosa

40º 43’ 44.89’’ N 8º 38’ 55.23’’ W)

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Museu Marítimo de Ílhavo

cheia de bacalhau. Naquela altura, em Ja-neiro, era novidade.

Apanha-se a galeota com o pano de noiva.É o tal cortinado. Tirilene. Tinha aqueles bu-raquinhos. Para a galeota não furar. Davam olanço, coavam. A galeota vinha, a gente via,fazíamos assim ao pé para ela ir para o saco.

Tiraram muitas fotografias, a fazer olanço, a galeota a saltar na rede. Levavam--nas. Nunca me deram nenhuma. Diolinda da

Rocha Fidalgo, Costa Nova

A caldeirada: A receita é pelas coisas quese põem numa caldeirada. Se for mista, cal-deirada mista, quanto mais peixe de caldea-ções, melhor. Quanto mais caldeação depeixe tiver, mais variedades de peixe, melhorfica a caldeirada. Raia, lula, tainha se forboa, pata-roxa – também esfolada, que se es-fola, corta-se aos bocadinhos e põe – pronto,fica a caldeirada assim. Não gosto muito desafio. Tudo ao mesmo tempo. Tudo junto coma batata.

Os temperos. Se for enguia, não leva to-mates. Porque tira o gosto à enguia. Se for ou-tro peixe, então leva. Leva um bocadinho depimento, aos bocadinhos, quem quiser botar.Leva um tomatinho maduro. Leva camada depeixe, camada de batata. Ou até pode agarrare depois mexer com uma colher, para ficartudo junto. E é pôr uma de azeite, e é pôr asalsa, uma folhinha de louro ou duas. Con-forme for a caldeirada. Se for pouca, bota sóuma folhinha de louro. Porque o louro largamuito cheiro e não fica tão bom. É salsa. Éum bocadinho de piripiri. É o sal. Ainda te-nho o sal de unto, para botar as enguias. E éum dentinho de alho, muito picadinho.Quanto mais picadinho, melhor. Para dar ogosto à caldeirada. E é cebola, às rodelas. Nofundo do tacho bota-se uma coisa de cebola, ebota-se um bocadinho de alho. No fundo dotacho. E bota-se então o peixe e as batatas.

Quem quiser fazer uma moirinha porfora, faz. A gente chama-lhe a moura, que ébotar depois um bocadinho de vinagre. Umbocadinho de azeite em cru, e um bocadinhode salsa em cru, e um bocadinho de alho emcru, e despejar um bocadinho daquela águae depois mexer. Depois botar por cima do ta-cho da caldeirada. DRF, Costa Nova

Enguias de ensopado, sopas, mourinha,pevidinha e pontinha: Quem quiser fazer en-sopado, também faz ensopado. Em pouca água,só a cobrir o peixe e a batata, e faz o ensopado.

Quem quiser uma mourinha à parte, faz.Para aproveitar aquela aguinha do caldo dacaldeirada.

Quem quiser fazer sopas de pão, faz.Quem quiser fazer uma massinha de co-

tovelinho, faz. Quem quiser fazer daquela pevidinha,

faz. Há a pontinha, e há a pevidinha. A pon-

tinha é melhor que a pevide. A pevide é paraa canja. E a pontinha é aquela que tem o bi-quinho, de um lado e do outro.

As enguais amanho com uma faca. Umanavalha. Na barriga, chegar ao umbigo daenguia, botamos lá a faca. Para tirar aquelatripinha que está de roda do umbigo, tem desair para fora, senão amarga. Tem de terciência para preparar a enguia. Se deixaraquela tripa, amarga. O comer estraga-setodo. Tem de ripar, muito bem ripinho, atéficar a espinha, a branquinha. Tira-se a tripada enguia para fora. Corta-se a cabeça para aenguia perder a força, para nós a amanhar-mos mais depressa. Senão, não agarramos aenguia. E amanhamos com areia. Com areiada praia. Quanto mais branquinha, melhor.

Mistura-se na enguia, para a gente poderagarrá-la. Para amanhar. Senão, não conse-guimos. E há quem faça, pôr em farinha. Masestar a enguia escorridinha, em seco. Não écom água. Se for com água começa a ganharcaroços, a farinha.

Mas eu nunca amanhei com farinha.Gosto mais de areia. Mas é preciso tirar muitobem a areia. Senão estamos a trincar areia. Épreciso lavar com muitas águas. Uma vez emseco – mas é como quem amassava pão anti-gamente, agora amassam pão com os apare-lhos; com os nossos punhos é que se amassavao pão na masseira – e com a enguia, é igual.Uma vez em seco, outra vez na água. Outravez em seco, outra vez na água. Até fazermosassim à enguia, e ficar no dedo. Agarrarmosassim a enguia, e ela não sair do dedo [com odedo indicador, segurá-la em equilíbrio].

Fica lavadinha. Com muitas águas. Corta--se às postinhas. Lava-as bem lavadinhas.Uma vez na água. Outra vez em seco. Até ficarao branco. Não tirar tudo senão tira o gosto àenguia. Depois botamo-la no tacho. Só não sebota tomate. Nem se põe pimento. Porquenão dá o gosto. Pimento corta logo o gosto.Quanto mais cebolinha, melhor. Cebola àsrodelas. Depois bota-se alho. Depois põe-seuma folhinha de louro. Salsa. E bota-se umpó, açafrão. Mas é depois, quando o tachocomeçar a ferver. Para ajudar a corar a ba-tata. Para a batatinha ficar amarelinha. E de-pois faz-se a moura à parte. A tal moura queeu disse. DRF, Costa Nova

Celebrar as pessoas da ria: alcunhasAdília BitataAlbino da Piz

Alfredo LitambasArrais Patriarca

Ascensão CarochoAmélia das Solhas

Ana Peixeira António Mole

Arlinda Mimalha Arminda Aguça Augusto Marrô

Aurora Queimada Belo MaçaricoBina do Kikas

CasotoCarlos Mijão

Céu do Algarvio Chico Latas

Deolinda BaixinhoErmelinda Borrada Família Bizabárra

Fernando Meio QuiloFernando Patadas

Gata Brava Guino Ratunfo

João BotasJoão José Buçaco João Mata Burros

João da MilliJoão Pataneco João TarecoJosé Foguete

Laurinha da Torreira Luís Palão

Luísa de MassarelosLuísa Sim Senhora

Manuel BelezaManuel Cagalhão

Manuel Cai a SolhaManuel Pai Adão Manuel Papafigos

Manuel Polícia Manuel da Quinta

Manuel das TrémulasMárcio Liro

Maria CatarroMaria Drácula

Maria EsparrelaMaria Gorda

Maria Júlia Barbasse Maria MarujoMaria Papuda Maria Perna

Maria das Putas Mariazinha do Zuca Márito Charamaneco

Máximo Micas Calcona

Mila SemasNela da Capeloa

Raúl PenicoRaúl Trabulu

Rei dos HomensRosa Faxina Rosa LalanesRosa do Pão

Rosa Pintainha Saudade Moleque

Tónio Areias Tónio FugitivoTónio Cagarúto

Tónio ChiguinhasTónio Cigano Tóino Credo

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Tónio MaguçaTónio Muge

Tónio VintémTónio XisXincalhãoZé da Bina

Zé Cafeteira Zé Carramão

Zé ChetaZé Coto

Zé Fum Fum Zé Furrica Zé Laranas

Zé Manuel Piscas Zé MilitarZé da Mió

Zé Moleque Zé Quarenta Dentes

Zé RessacaZé Sarapolo

Recolha de Francisco Ferreira, Ílhavo

As embarcações tradicionais: O que apa-rece mais e o que tenho feito mais são batei-ras de sete metros para a pesca. E a seguir éo moliceiro.

Quer dizer, eu faço tudo. Aparecem aquimuitas pessoas, para bateiras – bateiras que éum barquinho pequeno, que dão o nome debateiras – mas o que eu tenho feito muito sãoumas bateiras de sete metros. É a tal que es-tou a querer mudar para fibra. Porque tenhodesgosto de elas estarem a apodrecer rapida-mente. São as que estão mais paradas. Há asque trabalham todos os dias – há aí pescado-res profissionais – e elas duram. Tenho batei-ras, as primeiras feitas quando vim, com 15,16 anos, e estão impecáveis. Os moliceirosestão a parar um bocadito, por isso mesmo.Por apodrecerem muito rapidamente.

Quem agora manda fazer isto são pessoasque andaram fora. Emigrantes. Filhos de mo-liceiros e que trabalhavam aqui no moliçomuitos deles. Emigraram, agora regressamcom a vida melhor, e pensam fazer um moli-ceiro. Mas chegam aqui e vêm Que diabo,isto é um dinheiro estragado. É para [a festa]do Sampaio da Torreira e para fazer as taiscorridas. É aquele vício de matar a saudade,de se sentarem ali à ré.

Houve aqui um ano que eu fiz sete bar-cos. Tinha um rapaz a trabalhar comigo, oArménio. Num ano fizemos sete barcos. Masestá a acabar de todas as maneiras. Está aacabar quem o faça, e está a acabar quem osmande fazer. Temos aí um rio também queestá estragado. Isso está aí a ficar um pân-tano. Os juncais estão a apodrecer todos. Háquem diga que foi de abrirem a barra. Que aágua começou a vir acima – e vem – vemacima dos juncais, apodrecendo tudo. Os la-vradores acabaram. Porque haviam estes la-vradores pequenitos, que tinham a sua juntade vacas, umas para dar leite, outras para

isto, para aquilo, e precisavam do junco parafazer a cama ao gado. E também estrumepara as terras. A água ao vir acima dos jun-cais fez com que aquilo apodrecesse, porquenão o cortavam. Não o cortam, ele não re-benta, e apodrece. Está a ficar aí um pân-tano. António Esteves, Pardilhó

Fazer a vela: [Junto ao mestre João do An-dré temos uma vela de moliceiro, que temmais de 150 anos. É uma vela de linho, e queele conseguiu para a Associação]

Antigamente, dizem, havia muitos moli-ceiros. Consegui esta vela porque estava emcasa de um tio da minha mãe. Ele comproupara um filho trabalhar. Esta vela foi compradaa um tio Manuel Luís Pulgo, e nós fomos lá, eas sobrinhas encontraram um livro, que diziaque esse Manuel Luís tinha escrito, que acomprou em Pardilhó no ano não sei quantos.Daí para cá não sou capaz de dizer mais nada.

Esta vela usava-se quando não havia alona. É de linho. Criado na nossa terra. E de-pois é curado. Depois de cozido, era ripada asemente, para cair. Depois era moído no moi-nho. Depois era fervido em panelas, que sechamava uma barrolada. Depois fiava-se comuma roca e com um fuso. Depois de fiado erapreciso urdir a teia no tear, depois tecer. Depoisera preciso fazer costuras para não estripar.

É o cosido à estreita. O cosido à estreita,é uma de um lado e outra do outro. João do

André, Murtosa

Descrição da vela moliceira: Chama-seenvergues. É para amarrar à verga. E aqui éa impena – para amarrar à impena, que sechama o punho. Portanto o punho é sempreum bico. Este é o punho da boca (todos os bi-cos são punhos), aí é a calcadeira, que é anossa linguagem, que será o punho da amurano vocabulário geral. Asa da escota ou pu-nho da escota, porque punho é o que está noslivros. Eu sei as duas coisas, porque estudei,tenho a carta de arrais, e tive a prática aqui.Mas também sei tudo quanto o meu pai meensinou, como aqui o senhor João.

E aqui está o punho da boca, e aqui o pu-nho da pena ou da impena. Chama-se punhoda impena porque a impena é aquele que vaiimpenado mais em cima. É o que leva maisacima. Vai impenar mais acima.

A vela tem sempre este cabo à volta, naorla. E este aqui é mais grosso. Entre o punhoda boca e o punho da amura é mais grosso.Que é onde vai fazer mais força. Visto que vaiser calcada, através de um aparelho que sechama a talha. Que é com dois moitões, ouseja, dois cadernais, um dobrado e outro sin-gelo. Um com uma roldana e o outro com duasroldanas. Que é para ser mais leve. Fazer me-nos força e puxar isto para ficar. Quanto elamais ficar impena, impenada, mais anda paraa bolina. Também é conforme o vento.

Celebração da Cultura Costeira 9

1. Cabeço do Quintino (40º 38’ 42.15’’ N 8º 39’ 49.42’’ W)

2. Quinta do Inglês(40º 33’ 57.73’’ N 8º 47’ 20.72’’ W)

3. Desenho de uma vela de moliceiro por João doAndré e José Caneira durante a entrevista

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Museu Marítimo de Ílhavo

O mastro fica aqui. A vela é envergada,tem três partes para aqui, e uma para aqui. Evem assim por aqui, vem por aqui fora, poraqui fora, até chegar aqui [desenha]. Este é omastro.

Aqui tem o bolinão. Que é o que faz cin-gir, que é o que faz esticar mais a vela paranavegar à bolina. Ou seja, com o vento.

Tem aqui um, tem aqui outro, tem aquimais um outro. Esta corda vai assim, amar-rada a este punho – ela deve estar aí, ora cáestá ele, cá está ele – o tal desenho, agoraaqui as três coisinhas…

Bolinão no punho da boca. Essa pernadaé as pernas do bolinão. Que são três. Mas po-dem ser quatro. Conforme o tamanho da vela.

Aqui tem uma outra cordinha que sechama o finéu. Dá a volta toda à vela. Que é oque faz resistência no pano. Para estes pontosque estão aqui que se chamam as moscas: Ospontos que seguram a vela aos cabos que lhetornam, que lhe dão uma moldura.

Isto aqui é o grutil. A parte de cima é ogrutil, entre a impena e o punho da boca. Istoaqui é a esteira, a de baixo, entre a asa e acalcadeira. Aqui é a testa, entre a boca e acalcadeira. Aqui é a valuma, entre a impenae a asa. JA, Murtosa

As velas moliceiras: Comecei com sete anos,a coser, mais o meu pai. O meu pai cortava avela, e cosia, à frente. E o pano era cosido deoutra maneira. O meu pai cosia à frente e de-pois eu cosia do outro lado. Tinha duas cose-duras. Tinha e tem. Ele nunca me deixoucortar nenhuma vela. Só quando foi para fa-zer uma para mim, depois dos vinte e doisanos, depois que me casei, é que lhe disse: –Esta quem a corta sou eu. Cortei-a e saiuuma vela tão boa.

Esta vela [a de linho, doada à associa-ção], quando eu a encontrei, o meu pai tinhacortado uma vela apenas da impena. E de-pois eu aparei da frente um bocadito, com-pus isto aqui mais ou menos, mas já não éuma vela grande como estava. Chegou a an-dar neste barco, o Tiaguinho.

Quantas velas fiz até hoje? Isso agora éque não chego lá. Sei lá se fiz algumas du-zentas. Não sei. A última está para nascer.Está feita. Já foi puxada a ver se estava boa.

Naquele tempo não havia mais pano ne-nhum senão linho. Até as camisas. As mu-lheres faziam as camisas de linho.

Cortava as velas. Umas maiores e outrasmais pequenas. Cada barco devia ter duas,uma grande e outra pequena. Com mautempo puxava a mais pequena. E com tempobom puxava a grande. Porque a mais pe-quena fazia menos força. O barco, com vento,não é nenhum pinheiro que está na estrada.Com a vela grande, com vento, o barco es-tava sujeito a afundar-se. A vela maior cha-mava-se vela grande. E a mais pequena era o

traquete. Quando tinha dois mastros e duasvelas ao mesmo tempo era a vela e o mastaréu.Ou seja, o mastro e o mastaréu. Se houvessemau tempo puxava só uma. O traquete é quevinha para o mastro principal.

Havia velas com sete metros, ou sete emeio, e havia outras maiores com oito. Essasde oito já não eram muito boas para arrastarcom todo o tempo. Para andar sempre nomastro. Já se puxava a outra. A de sete metrosou de sete e meio. Sete metros ou sete e meio,pela valuma acima. Em cima eram sete panose meio. Sete panos de cinquenta e seis centí-metros. E em baixo são onze panos e meio. Decinquenta e seis centímetros. JSS, Murtosa

Desenho de vela: Aqui a valuma. Aqui opunho da pena. Que chamam a empena. Queé aquilo que tem na mão. Depois isto temuma guinda, e aqui é o punho da boca. Quedepois aqui tem uns panos às tiras, depoisaqui vai aumentando, aqui já leva um quevai para aqui, aqui com certeza levará outro,o que faz assim à vela. Este tipo de vela as-sim. Aqui punho da boca, punho da pena,punho da escota e punho da amura. O tra-quete é assim em toda a vela quadrangular.Das bateiras é a mesma coisa, mas mais pe-quenina. Quando dizemos a vela já foi pu-xada, quer dizer já foi vista se está bem ounão. Içada.Uma costura é feita para um lado,e outra é feita para outro, para segurança dopróprio pano. JC, Murtosa

Quem faz velas na ria: No Torrão do La-meiro havia um senhor que fazia. Nas Quin-tas do Norte. Estou a falar da vela tradicional.De lona. Como este é turista – o barco em fi-bra – é capaz de mandar fazer uma vela maisleve. Metendo num saco, mesmo húmida,não fica encardida. Não fica preta. A vela ti-nha de ter cuidado em estendê-la quando amolhavam, e agora não. Dava muito traba-lho. As velas novas, não é preciso estender.António Conde, Gafanha da Encarnação

Lugares de pesca no passado e hoje: Eu,num dos sítios onde costumava pescar, ondeera chegar e já estava o peixe à nossa espera,era no Laranjo. Por isso chamava o Viveirodo Laranjo. E hoje está contaminado comsessenta centímetros de metais pesados. Dalique não se pode tirar.

Também agora por causa da falta depeixe, falta de enguias, não vou pescar aoEstreito da Varela. Era um bom sítio para en-guias, mas agora já lá não há nada. Um sítioonde antes não pescava era no Rio Novo doPríncipe. Porque aqui na Murtosa não tinhamconhecimento de que a lampreia entrava aquicom tanta abundância. Nós aqui não tínhamosconhecimento da lampreia na ria de Aveiro.

Mas também era natural que a lampreianão viesse com tanta abundância. Porque

agora, com o porto comercial, com a dragagemda barra, o peixe pode ter começado a entrarem maior quantidade. O peixe migrante. Sóque afectou a ria no que respeita à criação. Asareias, as lamas, os lodos, arrastaram-se todospela barra fora. Deixou a areia limpa. Não criaalgas, não cria ervas, não cria moliço, não crianada. Fica tudo em seco. Não é por a ria estarassoreada. A ria ainda está mais funda do queestava aqui há quarenta anos ou cinquentaanos. Porque hoje vêem-se estacas metidas,por vedação, que elas estão lá há centenas deanos. Aqui para cima vê-se. Vedavam para oarroz, para conservar a água doce. Nos anosquarentas e cinquentas a água ainda estavaaqui doce. Com uma cheia destas, a água es-tava aqui doce dentro da ria até Agosto quase.Até vir os lançamentos de Agosto, os lança-mentos de São Bartolomeu. Agora desaparecetudo imediatamente. JC, Murtosa

Artes de pesca: Utilizo a savara, que é arede do sável. A lampreeira, que é a rede dalampreia. Portanto, são redes de tresmalho,têm três panos, e andam à deriva.

O tamanho da savara. Olhe, é conformepode ser. Cem metros, cento e vinte metros,quanto mais ocupar a ria, mais tem possibili-dades de apanhar. Mas não posso tapar a riacompletamente. É preciso deixar o canal. Dealtura, estou trabalhando com três metros dealtura. As malhas é conforme o pano. O panode dentro tem de ter três vezes mais que ospanos de fora. Que se chamam as albitanas.Aquilo tem três metros, o de dentro tem novemetros. Mas fica encolhido, porque quando opeixe mete a malha grande, entra para dentroe fica envolvido no pequeno. E já não sai.

O entralhe das bóias é referente a metadeda malha da albitana. Ou metade das malhasque a gente apanha no entralhe. Uma bóia,vá lá, de três em três entralhos. Para a savarae também para a lampreeira. E cada entralholeva na rede da lampreia sete malhas vezessetenta milímetros.

Na savara são cinco malhas vezes cemmilímetros. O chumbo, leva uma corda dechumbo conforme o peso. Para as bóias fica-rem mais para cima ou mais para baixo.Também não pode ser muito pesado, porquequanto mais pesado mais fecha a malha. En-tão o peixe, para enfiar, para não hesitar, nãoter medo. O cálculo. É feito para que nãopuxe, porque senão a malha fecha. Eu façoas contas conforme a bóia for mais forte, façoas contas e tiro-lhe aí assim uma média de60%. Eu faço as minhas redes.

Antigamente as bóias eram de cortiça.Agora já são de plástico. São bóias pequenas.São uma espécie de barrica, e têm um com-primento de doze centímetros, por um diâme-tro de sete. Enfia dentro da corda. E depoisde três em três entralhos, neste caso para alampreia, sete vezes três, vinte e uma malhas.

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No entralhe, cada malha da albitanaconta sete malhas do miúdo. Cada malha daalbitana, que vai para aí os seus vinte centí-metros, vinte e cinco centímetros, leva setemalhas da outra de dentro. Depois conta trêsvãos, uma cortiça. Três em vão, uma cortiça.A albitana é que manda. Uma albitana, umentralho. A outra albitana, é outro entralho.Mas entre uma malha da albitana e a outra,sete malhas do miúdo.

Na savara, como a malha é mais larga, jáé quase o dobro, ou pouco menos, leva me-tade das malhas. Leva cinco malhas.

Pesco também com os galrichos, às en-guias. Proibido não é. É proibido na minha ba-teira porque não tenho licença para isso. JC,

Murtosa

Navegar pelos canais da ria – os nomes dossítios: “Todos têm nomes. São tantos. Parti-mos, por exemplo, vou agora sair para Aveiro.E vou direito ao Gramatal. Saio do Bico. Pri-meiro canal, chama-se A Vage. À minha es-querda encontra-se um cabeço. Cabeço doCunha. Depois temos as Cabeças do Bico. De-pois entramos na Regueira do Gramatal. À es-querda, antes de chegar à Regueira doGramatal, temos a Regueira do Gonçalo Antó-nio. Temos a Regueira do Moisés, depois a se-guir temos a ilha de Atestada à esquerda, e ailha do outro lado do Gramatal, da Gaga, dolado Norte. Depois em frente temos A Carreira,que é uma cala que vai da Torreira, de Ovar, eque só pára na cala dos Pinheiros, direito àGafanha. Depois temos à direita O Amoroso, eao Bico do Amoroso temos o Sequio. Que de-pois temos do outro lado a Matadoiça, e depoistemos a seguir – eu vou para Aveiro – Parra-chil. E depois temos a Cala dos Espinheiros,que vai direito à Sacor. Para Sama, que fica nopontal do Canal Central, que vamos para abarra, para São Jacinto, e entra para a Gafa-nha, para Aveiro. Que é na parte da casa doRebocho. Conhece você perfeitamente.

Mas antes deixamos, os Esteiro dos Gra-matos, que vai directamente a Aveiro, vai de-saguar à Marinha Soleira, que enfrenta nacala de Aveiro.

Porque depois temos, Esteiro da Nor-tada, Esteiro da Andorinha e depois temos oEsteiro dos Frades. Que também vai encanarem Aveiro, na lota antiga. Vai sair mesmo aí.

Se for pelo Esteiro dos Gramatos, à saídaencontramos a cala de Aveiro, porque do ou-tro lado temos o Esteiro das Levas, o Esteirodas Almas, o Esteiro da Moça, o Esteiro deEsgueira…

Cá para o interior da ria, era nunca maisacabar de esteiros.

E se formos aqui para o Laranjo, aqui naMurtosa, temos aqui o Laranjo, e entre eles,depois de sairmos do Bico, temos a Cova doChegado de um lado, à esquerda, e temos à di-reita, a Boca do Rio Velho, porque aí é que vi-

nha desaguar o rio Vouga. Mas o Infante DomPedro, o irmão de Santa Joana, quis fazer umapista de guigas, uma pista de remo, e cons-truiu o Rio Novo do Príncipe. Que vem lá deSarrasola, até aqui à foz do Vouga, que antiga-mente se chamava as Cavas do Vouga, queeram umas pequenas regueiras que a correnteé que fez – actualmente estão muito fundas –o Rio Novo do Príncipe. Que foi ele que man-dou abrir aquilo direitinho, semeou aquilo deum lado e do outro, tem centenas de anosaqueles eucaliptos – agora alguns estão a mor-rer – porque o rio velho vinha desaguar aqui àMurtosa. Em frente à Cova do Chegado.

E depois lá dentro temos o Laranjo – queera o viveiro da ria; ali era peixe pousado nofundo, peixe mais acima, e o grande maisacima, mas foi tudo afectado com os produtosquímicos da indústria de Estarreja. E hoje temsessenta centímetros de materiais pesados, quenão se pode mexer nem sequer naquela lama.

Lá dentro temos o Laranjeiro, é o viveiroda ria. Foi assassinado pela indústria. Come-çou em quarentas e tais. Quando se cons-truiu a primeira fábrica de adubos químicos,SAPEC – Nitrato do Chile. Aí nasceu a proi-bição do moliço. Porque havia só uma fá-brica no Barreiro. De adubos químicos. NaCUF. E depois quiseram trazê-la cá para onorte do país. Para obrigar os senhores la-vradores a gastarem adubo químico, e acabarcom o moliço. E o senhor ministro do interiornaquele tempo, que mereceu uma grande es-tátua aqui na Murtosa.

Continuação dos esteiros lá para dentro.Temos então na Boca do Ribeiro, lá à frente,temos a Regueira do Jarim, temos a Regueirado Manuel João – agora atravessou uma es-trada que vem lá de Salreu, de Canelas, e ta-param-na – temos a Regueira da Acabana.No fundo. Temos o esteiro que vai para Sal-reu, para Canelas, lá dentro temos a Baía daRainha. É à boca do esteiro de Salreu e deCanelas. À direita a Baía da Rainha, emfrente o de Canelas e à esquerda o de Salreu.Esteiros onde a gente ia vender o moliço,para os lavradores comprarem. Para Estar-reja, lá os grandes lavradores de Loureiroque lhes pagavam melhor.

E então temos o Esteiro de Estarreja, o Es-teiro de Veiros, e o Esteiro da Cambeia. Tudodentro do Laranjo. Todos estes esteiros estãoescritos na Junta Autónoma do Porto de Aveiro.Uma vez fui lá, e até estava lá um senhor enge-nheiro, que tomou umas notas, de coisas queele não conhecia. Dentro do rio Velho, lá para oPoupinho, que era onde antigamente vedavamo rio, no Verão, para conservarem a água para aalimentação do arroz. Actualmente é vedada àmesma. Mas agora não é por causa do arroz. Épara a água salgada não ofender a maquinariada fábrica de Cacia.

Dentro do Rio Velho, à esquerda existe aCova do Loureiro. Isso para mim é famoso.

Celebração da Cultura Costeira 11

1. Rede de deriva de três panos(in Estado Actual das Pescas,

Baldaque da Silva, 1890)2. Entrada do Canal do Puxadouro

(40º 50’ 52.95’’ N 8º 38’ 23.60’’ W))3. Canto da Cagueira

(40º 47’ 52.15’’ N 8º 40’ 24.95’’ W)

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Museu Marítimo de Ílhavo

Daquilo que ouvi falar quando era pequeno,porque a minha mãe era camarada do meupai no barco moliceiro, de nova, e então láouviu-se dizer que eu fui lá construído. NaCova do Loureiro. Agora está toda aterradacom lamas. Nunca mais foi limpa. Ninguémmais foi para lá.

No meu tempo era navegável até Águeda.Mas eu nunca passei de Sarrasola. Cheguei air a Sarrasola, buscar pedra e burgau paraajudar a construir a estrada de São Jacinto àTorreira. Íamos à vela e à vara. E também àsirga. Quando a água era demasiada, era apuxar pelos salgueiros, a puxar o barco. Ren-tinho com os salgueiros. E havia depois mui-tos lá, que a gente chamava os Serranos.Hoje existe uma Regueira dos Serranos den-tro do rio. Mas eu nunca passei de Sarrasola.Já havia camionetas. Nos anos cinquenta. JC,

Murtosa

Quem fala do moliceiro, também haviade falar de moliceiros, pessoas: Eu achoque quem fala de moliceiro, também haviade falar de moliceiros, pessoas. É importantesaber o que eles faziam. O barco moliceiro émuito bonito com a vela puxada. Hoje em diajá nem são bonitos porque eles fazem a velamuito maior do que o que era natural. Elesfazem as velas para ganharem corridas. Osamericanos, os turistas que vêm lá da Tor-reira para aqui, aquilo são tudo turistas. Eleschegam a ter três a quatro velas dentro daproa, conforme a aragem é que eles puxam avela. Isso devia ser proibido. Porque o moli-ceiro tinha um tamanho de vela certo.

O moliceiro servia para a apanha do mo-liço. Aqui nesta zona também usavam carre-gar lenha de São Jacinto. Os moliceirostinham a bica cortada, revirada com uma do-bradiça, para passar em baixo das pontes.Era um sacrifício ser moliceiro. Lembro-meque os moliceiros vinham para cá, às sema-nas inteiras trabalhar aqui para a bacia emfrente à Costa Nova, e aqui o Carmo, e ven-diam o moliço aqui nas quintas da Vagueira.O moliço era descarregado à mão, em padio-las. O barco descarregava para uns três ouquatro metros acima da maré-cheia. E àSexta-feira, com vento Norte, levavam obarco à mão, a puxar com uma corda, quechamavam a sirga, pela beira da praia fora.Aquilo é que era sacrifício. E o moliço era…O barco arrastava com uns ancinhos, quandotinha vento, quando tinha um poço de água,tinha uns ancinhos, um de cada lado aqui àpopa. O barco tinha encaixado no bordo umapeça que vinha cá fora, que chamavam a ta-manca. E à frente aqui tinha uma peça quechamavam o forcado. Um homem andavacom a vara para empurrar o barco. E o outrometia aqui o ancinho, encostado ao chão, ecom o andamento do barco o ancinho faziapressão aqui na forcada, e aqui na tamanca,

e ia arrastando. Um de cada lado. Andavaum pouquinho, levantava o ancinho, sacudiano meio do barco.

Era assim que apanhavam o moliço,quando era a arrastar. Ou então apanhavam-no à gadanha. Faziam uns montes, aqui namorraceira, e o barco encalhado. Faziam ummonte aqui, outro acolá, outro acolá, depoisempurravam com o ancinho. O monte feito,por cima da lama. O barco era baixinho. Car-regavam o barco de moliço. Era um sacrifíciomuito grande. AC, Gafanha da Encarnação

História de Rosa Pinto: Eu tenho a 4ªclasse. Fiz a 3ª classe, mas eu tinha que aju-dar os meus pais. Mas nessa altura, já na 2ªclasse, eu andava com uma canastra à cabeça.Com oito anos. Eu tenho fotografias no meuescritório no Furadouro que são vividas.Quando esta estrada, que a senhora vê aqui,começou a ser feita, há cinquenta e dois anos,eu fazia o caminho do Furadouro para Ovar apé, com oito anos, e vinha do mercado de Ovara pé, por estes caminhos fora até às Quintãsvender a canastrinha do peixe que trazia. Paracá vinha carregada de peixe, para lá ia carre-gada de esmolas, de batatas, de feijão, disto,daquilo. Que nós éramos muito pobres e vi-víamos do que calhava. Então a minha mãenão me deixou fazer a 4ª classe. Eu vinha a pée à noite. A minha mãe, que está viva e sã epode confirmar, tirava-me a brita dos pés. Nósandávamos descalços. A minha mãe botava--me tafulhinhos de algodão nos pés e no outrodia lá voltava eu com a canastrinha à cabeça.De manhã ia vender e à tarde ia para a escola.Eu saí da escola com nove anos e meio, com a3ª classe feita. A minha professora, chamava-se D. Angélica, foi pedir à minha mãe – ali naquinta Velaz Pinto, eu ia lá vender o peixe etrazia o folar, que eles muitas vezes nos mata-ram a fome – para me deixar fazer a 4ª classe,que davam os livros e não sei o quê. Mas a mi-nha mãe, como eu andava com a canastrinha àcabeça para ganhar alguma coisa, porque éra-mos muito pobres, mesmo muito pobres, a mi-nha mãe não me deixou fazer a 4ª classe.

Casei com dezanove anos e tirei a cartacom vinte anos. Tive que fazer a 4ª classepara tirar a carta de condução. Fiz a 4ª classee já tinha a minha filha mais velha, a Olívia.Aí é que eu fiz a 4ª classe. O meu pai erapescador. A minha mãe andava a trabalharcom ele, era peixeira. Era varina. Já nessetempo era assim, uma varinazita. E depoisnasci eu, para completar a família, que agoratodas as minhas irmãs vendem peixe. Masnão vendiam. Era só eu. Éramos cinco, qua-tro raparigas e um rapaz.

O meu pai trabalhava nas traineiras, emMatosinhos. O meu pai foi sempre pescador.Sempre por conta de outros, nunca teve barcos.

Estabeleci-me aos vinte anos. Tirei acarta de condução precisamente para com-

prar um carrinho, que comprei por seis con-tos, a pagar às prestações. Eu era muito luta-dora, para tudo, para tudo o que fosse, egraças a Deus sempre me saiu bem. Depoismais tarde comecei a vender uns berbigõezi-nhos, a vender em Matosinhos que nessa al-tura não era preciso depuradoras. A gentecomprava e vendia. Mais tarde tive de desis-tir porque era apanhada hoje, amanhã e de-pois a vender a mercadoria em Matosinhos.Já tinha saído esse projecto e o marisco tinhade passar a depuradora.

Antigamente não morria ninguém, co-mia-se e pronto, não morria ninguém. Mastambém não havia a poluição que há agora.Havia muito menos. Quando parei com osberbigões e com as amêijoas, porque já tinhaque passar por uma depuradora, e não tinhahipótese, nunca tinha trabalhado com os es-panhóis. Senão fazia como os outros. Levavapara lá e trazia para cá. Mas não interessa.Interessa é que daí nasceu o sonho de fazer adepuradora, um sonho que talvez hoje não ofizesse. Mas como eu queria ir para a frente enão depender de ninguém, nasceu este so-nho, que me tem dado muitas preocupaçõese muitos problemas. Rosa da Conceição Pereira

Pinto, Furadouro

História de Diolinda Fidalgo: Nascidaaqui. Aqui me criei. Aqui me baptizei. Aquinão, mas foi na Gafanha da Encarnação. Ecasei. Na Gafanha da Encarnação. Que nospertence.

Eu só andei um dia na escola. Não é nãoter gostado. Nós, antigamente, os nossospais, quando a gente chegava aos oito ani-nhos, aos nove, aos dez anos, já andávamos apescar. E eu fui pescar para a rede da batei-rinha, colher a rede, a corda, a rede da batei-rinha. Não era obrigatório ir para a escola. Sóandava quem queria. O meu pai precisavade camaradas, companha, para trabalhar.Andava eu e uma irmã minha. E era o meuirmãozinho que morreu afogado, e era o meupai. Era a companha aqui de casa. A compa-nha era toda de casa. E eu com a idade deoito aninhos já fui para a rede da bateirinhacolher a corda, adiantar. E eu estava já aadiantar o serviço. Conforme eu podia.

Muitas vezes os regatos eram um bocadi-nho fundos e eu começava: – Eh pai, é fundo.E ele dizia assim: – Eh filha, anda mais paracima, que é mais seco. E eu, com oito anos,lá vinha conforme podia. E depois ele vinhacom a bateira buscar-me onde eu estava: – Eh pai, eu não apeio, eu não apeio. Porqueera fundo. Botava assim os pés, e estavafundo.

E até que andei. Fui para a seca do baca-lhau com dez anos. Que era aqui a Seca doLutador. E eu andava a acarretar à cabeça.Fui para a seca do bacalhau já com dez ani-nhos. A acarretar o bacalhau. Que os barcos

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atracavam à beirinha da ria, ou na areia,aqueles barcos saleiros, aqueles que andamagora no recreio em Aveiro. Acarretávamos obacalhau à cabeça para as prensas, lá paradentro, para os armazéns.

Já comecei de pequenina a trabalhar.Trabalhei sempre. DRF, Costa Nova

A pesca e a rede do chinchorro: Trabalhá-vamos nesta zona aqui da Costa, aqui na ria,e mais vezes íamos apara o areão. Para a Va-gueira. Antes de Mira. Nunca para o mar.Era sempre na ria. Depois os meus meninosforam crescendo, e andava mais o meu ho-mem, que Deus tem. O meu homem andou19 viagens ao bacalhau.

Quando andava na bateira com ele erachincha também. Quando os meus meninoscomeçaram a crescer, levava-os mais eu, paraajudar a gente. No princípio andavam aqui àsarradela, aqui na lama, para vender a pes-soas que precisassem para a pesca. Era isca.Apanha-se na lama. Íamos com uma latazi-nha na mão – aquelas latazinhas de atum – edepois eles botavam a sarradelazinha nas la-tas e diziam: – Eh meus senhores, queremsarradela? Carregavam vinte e cinco tostões,três mil e quinhentos. Naquela altura já agente ficava contente. Lá vinham eles todossujos, cheios de lama, lambuzados na lama. Éaqui perto, onde está o cais. Tinha umas pe-dras, a pessoa levantava as pedras, e depoisandava com um engaço, daqueles que têmquatro dentes.

Tenho saudades desse tempo. Tenho sau-dades de andar na ribeira à pesca. E de venderas enguias. As enguias eram ao quilo. E era àdúzia. Primeiro era por dúzia. Contava-se umadúzia, duas dúzias, três dúzias. Era vendidonos largos, andávamos por aí a vender.

Eu também passei uns bons bocados. Osnossos maridos atravessavam a gente na ba-teirinha para o lado da Bruxa, Cais da Bruxa,pela Gafanha da Encarnação, e a gente de-pois vínhamos a pé pela mota fora paraÍlhavo.

Daqui da Gafanha, do Cais da Bruxa,onde atracavam antigamente os barcos, paraa travessia, da Costa Nova para o outro ladoda Gafanha. Era um barco de passagem. Eraum barco como esses saleiros, que estão emAveiro. Era à vela.

Íamos daqui até à Gafanha. E depois daGafanha íamos a pé até Ílhavo vender o pei-xinho na praça. DRF, Costa Nova

Apanhar a isca: O isco eram os meus meni-nos. Nunca andei. Não tinha vida para andar aisso. Eram os meus meninos, quando erammais pequenos. Quando às vezes estavam porcasa, quando eu não ia vender o peixe, elesiam. Agarravam na cestazinha, lá iam para aria. Mas em seco. Era na lama. Quando a marévaza. Não era com a maré-cheia.

Era a sarradela. Há o casulo. Mas apa-nham-se de maneira diferente. O casulo apa-nha-se com uma enxada. Uma enxada decavar a terra. Porque o casulo era num terrenomais rijo. E a sarradela estava em terrenosmais moles, que eram de lama. E a enxada ti-nha de fazer mais força para baixo, que erapara levantar o casulo, que está mais nofundo. Está o casulo aqui e eles vão ao largo, evão levantar junto com a pá, levantar para viro casulo. Porque depois eles vão com as mãos,e abrem a lama assim pela banda, e trazem ocasulo. O casulo vem dentro de um cano. Têmde ficar juntos, que é para se conservarem. Ocasulo tem de ir dentro do cano. Porque temum cano. E o casulo está dentro daquele cano.Só se tira quando se vai preparar o anzol.

A minhoca é mais nas terras de lavrador.Nessas terras de agricultura. Iam para os la-dos da Vagueira apanhar. Mas era nas terras.Terras que semeavam, e depois ficassem depousio. E de Inverno, quando estava chuva,criava as minhocas. E depois eles iam comuma enxada ou com um engaço. Para apa-nhar a minhoca.

Apanhava a isca aqui na nossa ria, nanossa praia. Aqui não há nomes. O casulo éapanhado no meio do rio, nas cabeças. Quandoficam as cabeças em seco. Porque aí o terrenoe mais duro. E a sarradela é na lama, em ter-reno mais mole. Aquelas lamas mais levadas.Elas aparecem aqui onde estão os palheiri-nhos, os arrumos. Agora fizeram aquilo denovo. Dantes aquilo era uma praia. Atracavamos bateirinhos à areia, e à praia. Muitas vezesficavam na lama, outras vezes até ficavam emseco. Se queriam ir para a ria pescar as en-guias, tinham de pôr a bateirinha para baixo,para a lama. E a lama levava. Eles faziammuita força. A vida era assim. DRF, Costa Nova

Engaço e felga: Apanhávamos a sarradelacom um engaço. É com o engaço que os agri-cultores trabalham nas terras. Como aquelesengaços de esfelgar as terras, de esfelgaraquela felga que está nas terra, e eles iam comum engacito. Era pequenito. Com uns dentesde ferro. Uns quatro dentes, cinco dentes. Ca-vavam, levantavam assim aquela lama, apa-nhavam a sarradela que estava metida nalama, botavam numa lata, para vender. DRF,

Costa Nova

Uma ria cheia de estacas: A gente íamospara o lado da Gafanha. Também erampraias. Até a Vagueira. Outras vezes pescá-vamos nessa zona, onde fizeram agora as se-menteiras de amêijoa. Com a idade quetenho, nunca vi venderem-se terrenos para botar a amêijoa, a ostra. Nunca. Nós apanhá-vamos à mugiganga. A gente largava então obalão e apanhávamos novamente o balão, eíamos sempre pelo meio da ria. Era engra-çado. Tornava-se engraçado. Fui pratica-

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1. Ílhavo, Lugar onde pescava o Zé Broa(40º 35’ 41.10’’ N 8º 45’ 6.88’’ W)

2. Engaço ou ancinho(in Estado Actual das Pescas,

Baldaque da Silva, 1890)3. Plataforma para criação de mexilhão

(40º 40’ 15.68’’ N 8º 42’ 49.07’’ W)

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Museu Marítimo de Ílhavo

mente com oito aninhos, que é o que eu fazia,para a rede da bateira. Mas gostava.

Agora está tudo cercado. O rio está ven-dido. Para fazerem uns viveiros. Para estar lásempre. Vão apanhar à volta, às vezes para olado da lota, e depois aquela miudinha botampara lá para se criar. Cada pessoa arrematouo seu bocado. Botam uma cerca com estacasde madeira, e botam para lá as amêijoas.

Antigamente não havia estas coisas. Aria era livre. Podíamos andar por qualquerbanda, íamos acolá para o lado da ponte, na-quelas cabeças, dávamos por lá lanço. Temuma ilha do lado Norte da ponte. Do ladoNorte da ponte é onde está o Santo André.Nós íamos para lá pescar. Para as cabeças.Chamavam-lhe a Quinta do Quintino. Era oQuintino. Agora tem lá uns prédios. E eraentão a Seca do Lutador, da pesca do baca-lhau. Que secava lá o peixe. Dávamos lançospor lá, contra as praias. E outras vezes nomeio da ria. Chamávamos a mugiganga.Agora é só estacas aqui na ria. Só se vêm es-tacas. Ninguém pode trabalhar.

Tenho setenta e três anos, não me lembrode alguma vez venderem o rio. Vender o rio.E depois não há peixe. O peixe não se cria.Agora para o choco – a partir de Março apa-rece já algum choquito – não sabem ondelargar as redes. Não têm sítio para largar asredes. Na lota não se pode largar, porque éproibido. Para o lado de São Jacinto tambémé proibido, porque estão os barcos a passar eas lanchas. Agora também há o ferry-boatpara São Jacinto. Tem a lota, com os barcos aatracar. Não se pode aqui pescar.

E agora estão a proibir tudo. Agora que-rem que desmanchem as redes. Que as redesestão muito altas. Querem botar as redesmais baixas. É uma caldeação que andam afazer. Ainda aqui há dias, a um senhor, foramapanhar 4 redes, os marinheiros, e levaramas 4 redes. E os pescadores. Não sei o quehá-de ser deles.

Na Costa Nova é tudo pescadores. Nãotemos aqui agricultura. Começam a crescer,vão logo para a pesca. DRF, Costa Nova

Folgar o rio: “Folgar o rio, isto é, não irhoje, porque o rio ficava embalado. Se fosselá outra vez, já não dava. Tinham que deixarajuntar aquelas tainhas, ao outro dia, ou pas-sado um dia ou dois. E tornavam a ir para láoutra vez. Porque a tainha juntava-se. As tai-nhas também fogem. Apanham o rumo e fo-gem. E depois, no mesmo sítio, elas voltam ajuntar-se. Apanham aquela comedoria.

A tainha também se apanhava muita lá aoSul, no areão. Porque andavam a tirar lamapara as terras. Com enxadas. Lama do meio dorio, para pôr nas terras. No tempo da rega domilho, punham nas regueiras, aquela lama, edepois a água corria, e depois regavam o mi-lho e aquela lama fazia muito bem ao milho. E

as tainhas iam atrás daquela sarradela que ti-ravam da lama. Aquele comedorio.

O meu marido sabia muito bem os sítios.Cercava às vezes lá umas cabeçazinhas, istoé, aquelas bajunças que estão no meio da ria.E eles lá botavam uma vara, e depois bota-vam outra na bajunça do outro lado, e cerca-vam de uma bajunça à outra, que é daquelesregatozinhos de água, que era para as tainhasirem, baterem nas redes e já não saírem de lá.

A bajunça tinha o gramão. Aquilo é comoo junco da praia. Era junco da praia. Aquelejunco da ria. DRF, Costa Nova

Pescar: Pescava por aqui, mais ou menos alijunto à barra. Íamos até à Vaguélica. Era àsenguias, que era mais sul abaixo, aos chocosque era mais para norte. Em São Jacinto, nasGafanhas, ali pela barra aos chocos.

Temos a Cabeça da Ostra, o Relógio, oQuintino. Na Cabeça da Ostra pescávamoschocos, linguados, solhas, enguias. Nas Pa-tas, no Venceslau, toda a gente pescava lá.Toda a gente pescava isso. Eles trabalhavamde Inverno no Inglês, às enguias, à chincha,faziam aquelas campanhas. Era desde aponte, do Inglês, da Vagueira, do Venceslau,do Patas, e aqui nesta zona, no Canal daVolta, no Quintino. Este era um sitio bompara pesca ao fundo, onde se apanhavamuito peixe. Agora não, porque está todo as-soreado. Tinha todo o tipo de peixe. Aquiloera um viveiro, porque era fundo e o peixeentrava e ficava. Quando a maré baixava,como aquilo era fundo, fazia ali uma revessae o peixe ficava ali. Fazia uma revessa querdizer a água ficava parada, ali dentro, com amaré baixa tapava por lá e ficava fundo ládentro. E o peixe aguentava-se ali. Era umarevessa. O meu pai também andou lá ao ca-marão puche. É um peixinho. O nome épeixe-rei. Pescava-se com a rede de emalhar,de um pano, aboiada.

Quando não trabalho no mar vou para aRia, com a minha esposa. Os dois corremostudo, desde São Jacinto ao Porto Comercial.Marcar as prisões, marcar as entradas. Eucorro tudo. Hoje deu aqui, se não deu vamospara outro sítio. Podemos ir para S. Jacinto.Chegamos a ir às vezes quase até à Torreira,e depois sabe-se uns pelos outros: – Olha,aquele apanhou peixe acolá. A gente no ou-tro dia vai também para lá.

Usamos a solheira. É uma rede de tres-malho, uma rede baixinha para apanhar so-lhas, mas também apanha linguado e outrospeixes. Antigamente havia muito e eram me-nos pescadores. Até à carreira se apanhavasolha com um pau. O rio também era maisfundo. Há muito assoreamento. Aquela ilhaque está para cá da ponte era três vezesmaior. Agora está só esse bocadinho. Paraonde é que vai essa areia? Vai aqui para aspraias, aqui para a borda, que a gente chama

a borda a essa areia. Depois nasce o moliço,do moliço vem a lama, e assoreia.

Também pescávamos com a rede das tai-nhas, a singeleira. Na altura vendia-se. Masagora ninguém dá valor. Com o meu pai, ía-mos às tainhas, a cinquenta nortadas, aquiacima da praia. A minha mãe com a canastra.O meu pai atravessava-a no barco, ali para olado de lá, ia para as Gafanhas, e ela ia ven-der com a canastra pelas porta. Depois re-gressava às horas que o meu pai marcava. Àsvezes vinha de camioneta, trazia couves, tra-zia batatas, cebolas, que a malta lá pelas Ga-fanhas dava. Trocava peixe pelas batatas,cebolas. Ela ia vender mas havia aquelas queela dava mais uma tainha e davam-lhe umasbatatas. Joaquim Oliveira Santos, Costa Nova.

A criação da Associação dos Amigos daRia e do Barco Moliceiro: Participei nafundação da Associação dos Amigos da Ria edo Barco Moliceiro em 1990, mais ou menosno ano em que conheci o primeiro moliceiro.Porque vi o moliceiro e fiquei apaixonado.Era uma coisa perfeitamente fascinante. An-tes, na minha relação com a ria, eu ia apanharsó uns caranguejos, ia para o mar. Mas, de re-pente, eu vi uma réplica, que se chama Tia-guinho, que tem cerca de seis metros e tal,que depois comprei. E foi o motivo da minhapaixão.

Procurámos instalações para a sede. Alu-gámos um pequeno espaço, e o meu grandesonho era o estaleiro naval. Sonhava que haviade construir um estaleiro naval. E como tivede fazer obras em minha casa, montei umacarpintaria em casa e comprei as máquinas. Equando acabaram as obras, as máquinas fo-ram para a Associação, para o estaleiro. Con-corremos a uma série de projectos, o últimodos quais foi o Empresa de Inserção.

A associação foi formada por mestresconstrutores navais, pescadores e amantes daria. Tem actualmente cerca de mil sócios, to-dos marinheiros. Porque na altura da forma-ção é-lhes oferecida a inscrição na associação.Há também sócios que são pescadores profis-sionais, e sócios com interesse na gastrono-mia, o que se explica por ter sido criada aConfraria Gastronómica O Moliceiro, que de-pois se autonomizou da Associação, e cujo objectivo é a promoção das espécies da ria.

A Associação organiza [desde 2000] emparceria com a Região de Turismo da Rotada Luz e o Município de Aveiro um eventoanual, A Regata das Festas da Ria.

Conforme a maré, a regata realiza-se naúltima semana de Julho, ou na primeira se-mana de Agosto. Tem de estar integrada nasfestas da ria. Na Associação dão também for-mação para desportistas náuticos, marinhei-ros e patrões locais. Os associados podemtambém utilizar o espaço quando precisam,onde existe uma cozinha com um fogão in-

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dustrial, com capacidade para duzentas pes-soas Manuel de Oliveira, Murtosa

A Associação dos Amigos da Ria e doBarco Moliceiro, Cais da Ribeira de Par-delhas, 3870-168 Murtosa:

Telefone 351 234 86 81 34Fax 351 234 86 81 36Criada em Março de 1990, com o propó-

sito geral de defender os interesses da Ria eem particular de preservar as embarcaçõestradicionais, foi fundada a “Associação dosAmigos da Ria e do Barco Moliceiro”, comsede na Murtosa.

A Associação, sem fins lucrativos, reúneum grupo muito alargado de pessoas em tornodo ideal de valorização da Ria. O seu corposocial é representado por pessoas das maisdiversas origens geográficas da Ria, de Ovaraté Mira, das mais diversas faixas profissio-nais, do pescador ao médico, e de diferentesquadrantes políticos religiosas ou sociais. Porum lado a diversidade social, por outro lado aunidade em torno dos valores da Ria, tornama Associação especialmente rica e mobiliza-dora, o que se reflecte no vasto conjunto deactividades que vem desenvolvendo nestesúltimos anos.

A Associação desenvolve a sua activi-dade em três frentes fundamentais: Defesado Património Cultural: essencialmente asactividades de preservação e defesa do patri-mónio náutico, da etnografia específica daRia, das tradições da Ria, da Gastronomia,das artes tradicionais de pesca, dos jogos tradicionais da região da Ria, o arquivo deimagens da Ria, a colecção de artefactos tra-dicionais da Ria, promovendo os seus valo-res, dando a conhecer e valorizando todosesses recursos de inegável importância.

Actividades de Animação: Compreende asactividades culturais, desportivas e turísticasda Associação, sempre em torno das questõesda Ria (exposições, o núcleo museológico, en-contros, Festival de Gastronomia da Ria, cam-pos de férias para jovens, Regata dosMoliceiros, Passeios Culturais, Palestras te-máticas, O Jornal Ondas da Ria, etc.). Estasactividades são em geral promovidas em par-ceria com outras instituições, ou com Autar-quias. Recentemente foi também constituída,no seio da Associação, uma Confraria Gastro-nómica para promover a gastronomia típica daRia e algumas das suas espécies mais desco-nhecidas mas de grande interesse culinário.

Educação Ambiental: Valorizando o vastopatrimónio natural da Ria, a Associação vemdesenvolvendo um conjunto de acções desensibilização e educação ambiental, promo-vendo jornadas pedagógicas junto das popu-lações em geral e da juventude em particular.São exemplo disso: a campanha de recolhade pilhas nos molhes, o Moliceiro-Aventura,Passeios nos trilhos da Ria, o ciclo-turismo

na zona da Ria, as sessões de educação am-biental em escolas e associações juvenis, acolaboração em campanhas oficiais de edu-cação e sensibilização ambiental. Documento

oficial da Associação

Criação da Associação CENÁRIO, Ria deOvar:

www.cenariovar.blogspot.comEste edifício era um antigo armazém de

sal. Toda esta área geográfica que vai daquiaté Arouca vinha aqui buscar o sal.

Isto começou assim. O meu sonho erapraticar vela. Ter um barquinho para andar afazer vela na ria. E decidimos comprar umbarco de madeira. Há aqui uma componente,em termos náuticos, de carpintaria naval. Eusou arquitecto e através da construção –desde muito cedo gosto da construção em ma-deira, e do trabalho em madeira – começarama cruzar aqui uma série de interesses, antesda fundação (2004). E entretanto juntámo--nos aqui para recuperar um barco. E come-çámos a ver que havia este património todofantástico dos barcos de recreio a morrer.

Este armazém era um pavilhão. Entre-tanto convenci o meu pai a comprá-lo. Eneste momento está alugado à Associaçãopor um preço bastante acessível.

Os nossos objectivos são, em primeiro lu-gar, fazer a identificação e a preservaçãodesse património náutico, relacioná-lo com osítio no contexto da socialização para a pre-servação do ambiente e prática da vela.

Mas sobretudo a identificação e a preser-vação deste património, chamado PatrimónioNáutico de Recreio, que é dentro da cultura náu-tica relacionada com a ria um património quesurgiu no século XX. A partir dos anos trinta.

Escolhemos essa data porque é quandocomeça uma política do Estado Novo que tema ver com o incremento da vela de recreio. Apolítica do António Ferro, o mar, a mocidadeportuguesa. Neste contexto de democratiza-ção da vela – a vela é um desporto aristocrá-tico até ao século XIX e início do século XX– e a partir dos Jogos Olímpicos começa umaevolução no sentido da democratização destedesporto. E aí nos anos trinta surgem algunsclubes náuticos com a finalidade da práticado desporto. Os barcos à vela desaparecemenquanto força motriz, mas resistem na áreado lazer. Da descoberta do lazer no séculoXX, e do desporto, o que permite que a velanão desapareça totalmente.

Entre os trabalho que fazemos temos oregisto dos barcos existentes, fazemos o de-senho deles – porque não existem projectos– e sempre que possível fazemos a recupera-ção dos que ainda sobram.

Aqui em Ovar houve, por via de algumascircunstâncias felizes, o surgimento de umClube Náutico, que potenciou a relação deOvar com a cultura náutica que existia antes,

Celebração da Cultura Costeira 15

1. Sede da Associação dos Amigos da Ria e do Barco Moliceiro

(40º 44’ 19.49’’ N 8º 39’ 42.16’’ W)2. Sede da CENÁRIO

(40º 49’ 58.09’’ N 8º 37’ 26.57’’ W)3. António Esteves e companheiro reparando

a embarcação moliceira no estaleiro, Pardilhó

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Museu Marítimo de Ílhavo

através das actividades tradicionais: a carpin-taria naval, as bateiras, os moliceiros, etc. Ehouve aqui uma junção, digamos. A tradiçãonáutica não morreu completamente. Como emÍlhavo. Não morreu completamente por causado desporto. O relacionamento das pessoascom a ria deixou de ser o moliço e essas acti-vidades de transporte. Houve um período detransição onde se misturavam as duas. Eleainda existe agora, porque ainda vemos as ba-teiras aí na pesca Hélder Ventura, Ovar

O lugar da CENÁRIO: Cais do Puxadou -ro, no extremo Norte da Ria de Aveiro.Freguesia de Valga, Concelho de Ovar:Estamos no canal de Ovar. Que é o braçoNorte da Ria. A ria está a oitocentos metrosdaqui. Este canal é artificial. Num dos braçosdo canal de Ovar. Mesmo no estremo Norte daria. Há aqui três braços. Que é o Carregal,onde está a marina. Há a ribeira de Ovar e aRibeira de Valga, onde nós estamos. E todoseles terminam com cais. O Cais do Carregal,o Cais da Ribeira e o Cais do Puxadouro. Poressa ordem, de poente para nascente. Elessão praticamente paralelos à costa de poentepara nascente. O da Ribeira, em termos his-tóricos, é mais importante porque era paramercadorias. A ria servia de meio de comuni-cação para um transporte regular. A barcapertencia à Misericórdia de Aveiro, que faziao transporte regular entre Ovar e Aveiro. Eera arrematado todos os anos.

O cais da Ribeira de Ovar era mais im-portante como ligação Aveiro a Porto, Aveiroa Régua.

Este cais era importante para a mobili-dade relacionada com a ria. E sobretudo paraa Vista Alegre. Porque as minas de caulinoem São Vicente de Pereira, a matéria-primavinha de lá em carros de bois, e era carre-gada aqui, e ia direitinho para a fábrica.

Este local, para além da importância paraa indústria, era importante para os locais. Omoliço, a pesca, etc. Sobretudo moliço e a re-colha dos juncos das praias. Era um cais commuito movimento. HV, Ovar

Os estatutos da CENÁRIO: Temos estatu-tos e regulamento interno. Somos uma asso-ciação que funciona regularmente como estáinstituído em termos do que é uma associa-ção. Temos uma direcção de cinco elemen-tos. Há um presidente, que sou eu. Massomos muito colegiais. É eleita, em lista.Ainda somos muito poucos. Não temos aque-las duzentas pessoas.

Os estatutos dizem também que o presi-dente da direcção não pode ter dois manda-tos seguidos. Para instituir a rotatividade.Cada mandato tem três anos.

Há o Conselho Fiscal, com três elemen-tos. E a Mesa da Assembleia-geral, tambémcom três elementos. Até são quatro. Há umsuplente.

Para divulgação das actividades temos umsítio na Net, mas que está um bocado cristali-zado, porque fizemos uma parceria com aUniversidade de Aveiro e estamos ali presos:

Estão lá os estatutos, estão lá os objecti-vos da Associação, uma galeria de imagens.

Neste momento somos vinte e oito sócios(2008). HV, Ovar

Expectativas em relação ao futuro: Gos-távamos que, primeiro, a ria fosse navegável.Isso não depende de nós. É preciso que asentidades que gerem a ria se entendam. Épreciso que haja uma estratégia que venhade cima, seja definida, e que obrigue, entreaspas, todas as entidades que giram à voltada ria a trabalharem no mesmo sentido. Nãosei se isto é realista, mas estou a colocar asquestões em termos de hierarquias, de fun-cionamento das instituições, ligadas ao am-biente, ao ordenamento do território. Quemtutela a ria são nove ou dez entidades. Querdizer, ninguém.

Ministério do Ambiente, Instituto daÁgua, Capitania também, Porto de Aveirotambém, as Câmaras Municipais, as associa-ções, nomeadamente a Associação de Muni-cípios da Ria. Dizer que a ria é um espaçonatural, é um bocado forçado. Há bocadi-nhos que são naturais. A ria é um espaço su-per transformado pelo homem. Já que éassim, há que continuar essa transformação.Portanto, temos de definir um plano de nave-gabilidade para a ria.

A bandeira de toda esta região devia serum Plano de Navegabilidade da Ria. Ponto.Um plano de navegabilidade que defina aslinhas de água, as ribeiras, a manutenção, oque é navegável e o que não é – não vamospensar que toda a ria vai ser navegável por-que isso é impossível, a ria é imensa, paradragar isso tudo é um disparate. Agora, defi-nir um plano de navegabilidade para a ria, éfundamental. A ria está transformada numpântano que nós contemplamos, mas não po-demos pôr lá o pé. Porque é perigoso, porquenão tem viabilidade.

Uma expectativa que dependa da Asso-ciação. A nossa associação quer manter aquiuma estrutura que cada vez mais potencieeste património, que crie novos patrimónios,que construa novos barcos, dentro deste espí-rito, e que seja um pólo de encontro. Sobre-tudo para pessoas que estejam em trânsito,que criem aqui também uma estadia. Gostá-vamos que aqui houvesse um ou dois pontosde estadia aqui perto, que pudesse permitir apessoas como vocês por exemplo que nos vi-sitaram hoje virem pernoitar, continuar a via-gem, este seria um aspecto interessante parapodermos… Porque esta questão da relaçãodo homem com a natureza precisa de tempo.E sobretudo a náutica.

Nós não nos sobrepomos às condiçõesnaturais, nós dependemos delas. E há por-

tanto aqui também um aspecto pedagógicoque gostaríamos de explorar com essa esta-dia. HV, Ovar

Museu e pessoas: Ajudei o Capitão Fran-cisco Marques. Fiz-lhe o mastro, que eu nãosei se ainda existe, e fiz-lhe as camaratas e oporão do peixe. Aí estava na FRACOM ainda.Uma vez também fiz aqui umas coisas paraele. Para lá.

Fui à inauguração da Faina Maior, masagora ultimamente não tenho ido muito. De vezem quando recebo aquele bilhetinho da Câ-mara. Todos os meses.

Está bem. Aquilo está muito bem. Eu acho que se devia fazer alguma coisa

ligada às pessoas que trabalharam no moliço,que viveram da apanha do moliço. Acho queseria uma coisa interessante. O moliceiro émuito lindo, com a vela a puxar e a passar ali.Mas o que as pessoas faziam, a vida daquilo,os que viviam do moliço… Porque moliceirosaqui da Gafanha eram praticamente turistas.Iam lá na hora da maré, o resto eram lavrado-res. Mas os murtoseiros – chamavam-se as-sim, não é tratar mal ninguém – esses sofriammuito. Aquilo era um inferno. Porque eles vi-nham de lá à Segunda-feira, passavam poraqui a semana, dormiam dentro da proa dobarco, às vezes todo encharcado, depois àSexta-feira iam ara casa com o barco às cos-tas. A reboque, com a corda, a puxar por terra,e outros com aquela vara a afastar o barco dapraia, e eles a caminhar para levar o barcopara o Norte para ir para casa. E descarregar obarco todo – o barco é baixinho – descarrega-vam o barco à padiola, e a carregar aqui o mo-liço, que eu vi muitas vezes ali na borda daria, onde temos lá o terreno – o terreno ondetrabalhávamos ainda lá está – a água chegavaaos nossos pés no Verão. Eles andavam a 50metros a apanhar o moliço.

Muita gente não sabia, mas eu sei porque é que eles têm a proa baixa. Era parapassarem a ponte. Porque aqueles barcoseram de pessoal do Seixo. Porque os habi-tantes da Encarnação são do Seixo, de Gal-vão e de Vagos. Não são nascidos aqui. Aterra aqui é nova. AC, Gafanha da Encarnação

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Problemática: Regras e leis que governam aexistência e o uso de barcos de madeira

Território: Litoral e bacias hidrográficas entreos rios Minho e Douro

Herança cultural activada: Barcas de passagem,construção naval, indústria conserveira, apa-nha e comércio do isco, festas, organizações

Inventariantes: Alberto Magalhães, Albino Go-mes, Ivone Baptista Magalhães, João Vila ChãEsteves; participaram em actividades AnaBettencourt e João Paulo Baptista

Exercícios realizados: Entrevistas, marcaçõesGPS; trabalho em pares, individual e em grupo.

A Associação Barcos do Norte ofereceu àpartilha dos parceiros deste projecto a ne-cessidade de despertar o legislador para osvalores da embarcação tradicional e para leisque os possam promover.

As embarcações tradicionais represen-tam um desafio nacional e são, caso a caso,não só um repositório de formas e funções,mas também de memórias e saberes ances-trais transmitidos entre famílias de sangue ede profissão.

Os esforços realizados por pessoas e or-ganizações, que se empenham na salva-guarda deste conhecimento, não se têmmostrado suficientes para esta tarefa. Nospróximos anos continuarão a desaparecermuitas embarcações e os conhecimentos as-sociados. Importa preservar o que temos, eaccionar todos os mecanismos de protecção eincentivo à salvaguarda, ao mesmo tempoque se deve a todo o custo manter em activi-dade os construtores vivos.

Com esta orientação está programada aconstrução de uma embarcação tradicionalde pesca (cópia) por dois carpinteiros navais:Benjamim Moreira (Portugal) e Gunnar Eldjarn(Noruega). Este workshop irá inspirar um se-gundo painel sobre esta temática.

Este capítulo e também o painel expositivoreúnem material territorialmente diverso, aten-dendo ao carácter nacional da problemáticadeste parceiro.

Bloco expositivo 1Há obstáculos de ordem técnica, finan-

ceira e de espaço que dificultam a acção des-tas organizações, que fazem parte do roteirocultural português. E há também, muitas ve-zes, a dificuldade em reconhecer a sabedoriae o conhecimento que as embarcações alber-gam. Isso dificulta o planeamento da activi-dade com artesãos, em situação mista detrabalho e transmissão de conhecimento.

Uma embarcação na CENÁRIO / Erapreciso ter gente interessada: “Tabela comas características do barco Brisa:

Classe: DragãoComprimento total: 8.56Boca máxima: 1.70Pontal: 1.90Ano de construção: —-Construtor: (Brites?)Material do casco: tola e carvalhoAparelho vélico: sloop grande, estai (e balão)Notas: embarcação possivelmente cons-

truída pelo estaleiro Brites em Algés, paraPhilipe Mournier aí pelos anos 60. Navegouem Cascais e depois em Leixões, pertençade um industrial das empresas do grupoRAR. Encontrado na barragem de Cres-tuma-Lever e adquirido por Hélder Venturaem 2003. Aguarda propostas de parceriapara recuperação, no âmbito dos objectivosda Cenário.

Pretendemos recuperar este iate daclasse Dragão para navegar na ria. Na Tor-reira, em São Jacinto, na Costa Nova. A fun-ção deste barco é ser um barco bandeira. Eletem umas linhas e é de tal forma elegante econta uma história, que pode estar aqui, as-sim não, mas arranjadinho. E de vez emquando servir como bandeira, de qualquerevento, de qualquer coisa. Era o barco parapegar nele, pô-lo na água e integrá-lo nas co-memorações dos duzentos anos da Barra.

Também já pensei num projecto. Pegarno texto do Júlio Verne, Cinco Semanas numBalão, fazer Cinco Semanas em Dragão, e fa-zer a costa neste barco.

Mas, fazer um projecto assim, de docu-mentação, era preciso ter gente interessadaHélder Ventura, Ovar.

Encontrar um estaleiro e um mestre / As-sociação dos Amigos da Ria e do BarcoMoliceiro: Temos cerca de 12 barcos, entrebateiras, alguns botes, moliceiros, réplicasde moliceiros. Temos alguns para recuperar.

Encontram-se todos na área da Associa-ção. Temos algumas preciosidades. Umavela em linho, com cerca de cento e trintaanos, e que havia de ser intervencionada. Etemos um moliceiro, também original, compinturas originais, daquele que dizem tersido um dos grandes inovadores na pintura.Tem cinquenta e tal anos e o mestre que fezesta réplica ainda é vivo. Tem agora para aísessenta e tal, setenta anos.

Temos só o registo do mestre e coisas es-senciais. São pequenos registos, mas não sis-temáticos, nem exaustivos, nem rigorosos.Como não temos o estaleiro a funcionar nãotemos mestre. Como não temos mestre nãotemos o responsável pelo estaleiro que foi

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Associação Barcos do Norte18

despedido. Mas penso que em breve teremosuma nova dinâmica.

Com a construção naval eles podiam ver omestre a recuperar embarcações. Com o mo-liço tínhamos um dos barcos moliceiros dispo-nível para fazermos uma sessão interpretativaprática, em que grupos podiam experimentara arte de apanhar o moliço. Julgo que são pro-jectos viáveis e íamos, não ter um espaço, master um território. Mas o estaleiro tinha de dei-xar de estar onde está. Comprámos há meiadúzia de anos um espaço, e faríamos um esta-leiro ao lado. Manuel Oliveira, Murtosa

Para evitar que desaparecesse, apesar dovazio legislativo: Esse barco está nas mi-nhas mãos há dez anos. Comprei-o em 98.Conjuntamente com o meu irmão Pedro. Eraum barco característico daqui. O tipo queriavendê-lo. Apercebi-me que, se ele o ven-desse a quem o ia vender, passados dois outrês anos ia para o lixo. E como tal adquiri-o.E também porque gosto do barco.

O antigo dono era lavrador e pescador.Portanto, tinha uma actividade agro-marí-tima. Grande parte dos proprietários destesbarcos era lavradores. Ele é casado cá emFão, mas é de Fonte Boa. Trabalhava com obarco aqui na praia de Fão.

Há um vazio de legislação. Não existembarcos clássicos, ou barcos tradicionais fora do

âmbito do trabalho. É a questão das réplicas,dos históricos e… João Vila-Chã Esteves, Fão

Modos-de-fazer que preservam ou contra-riam a estrutura da madeira: Uma pessoaia à bouça e, diante do carvalho, escolhia-se acurva do carvalho, os galhos. Tinha o tronco, edepois tinha um galho que entrava ali, a pes-soa tinha de aproveitar. Cortar e deixar ficar aponta. Para poder fazer determinadas curvas.A madeira vinha para o estaleiro em bruto. Eserrava-se com aqueles serradores, dois ho-mens, um em baixo e outro em cima.

Não há máquina nenhuma que substituao serrador. Uma peça que saía dos serradores,se estivesse bem alinhada, ao sítio, chegáva-mos ali e encostava. E aproveitava-se ma-deira porque, o de cima levava por uma linha,e o de baixo levava por outra. Começava aprumo, e acabava assim, enviesado. Portanto,a tábua, quando acabava de serrar, já vinhacom a curvatura. O de cima leva por uma li-nha, o de baixo leva pela outra, conforme iacaindo a serra eles iam mudando. Chegava aotopo, largava. Saía uma tábua com aquelacurvatura. Chegava-se ali e encaixava.

Eles agora nas serrações, como é tudoautomático, vão ali e cortam as curvas todas.Os paus vêm direitos para eles poderem ir arolar para a serração. Uma pessoa vai agora auma serração, dificilmente apanha peças tor-

tas à feição. As máquinas não deixam as cur-vas. Tem que se deixar muita madeira, e depoisde plaina desbastar até que fique… Há maisdesperdício e mais trabalho. António Jorge Ne-

ves Costa, Vila do Conde.

Riscos de esquecermos o conhecimento: Osmestres de agora são novos. Ainda vão duraralgum tempo. Depois há sempre carpinteirosnovos. Há sempre uma luz. Se uma pessoa ti-ver alguma dificuldade, ainda dá uma mão. Edepois, é como tudo. Cai no esquecimento. De-pois improvisa-se. Vai-se vendo um velho efaz-se. Nós também, nunca tínhamos feito bar-cos rabelos, e fomos dar uma espreitadela lá aver como se fazia, e fez-se barcos rabelos aí.

O que é que é mais importante na cons-trução tradicional, é a madeira. Se é a ma-deira, é preciso florestas. É preciso cuidardas florestas para que tenham qualidade. Co-meça a haver dificuldade na madeira. Os eu-caliptos, que aquecem mais rapidamente, e jánão servem para a construção naval, os pi-nheiros, é cada vez mais difícil ir buscá-los,sobretudo aqueles que eles querem, e onde oshá. E já se está a construir muito em madeirade fora. Madeira exótica. É mais caro.

Dizem que há madeira para baixo da linhade água que também é boa. Isto é uma coisaque se experimentou agora. Só se vai ver da-qui a uns anos.

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1. 2. e 3. Madeira empilhada e peças tortas no estaleiro de mestres António Melo e Paulino França,

Vila Franca do Campo, Açores(37º 42’ 52.31’’ N 25º 25’ 50.41’’ W)

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19Celebração da Cultura Costeira

Quando começaram a fazer os primeirosbarcos com madeira exótica, nas obras vivas,abaixo da linha de água, punham o pinho.Que era o melhor. E acima da linha de água éque punham madeira exótica porque era me-nos sensível à intempérie.

E depois há o armador que diz, Querotudo. Sem conhecimento de causa, Eu querotudo em madeira de fora. Ninguém o con-testa. Porque ele paga, se calhar paga mais.AJNC, Vila do Conde.

Actos que valorizam ou desvalorizam oconhecimento: Fui convidado a visitar oParlamento Europeu e a participar em ses-sões trabalho, com outros empresários daconstrução naval. Para adoptarmos a fibra devidro para as embarcações. Eu vim com estaideia de lá: - Que a fibra era melhor. Eu nãotinha essa ideia. E eles queriam ver se, len-tamente, não se cortava tanta madeira. E elestambém subsidiavam os pescadores paramodernizarem as embarcações. E de facto éum êxito. A fibra. É mais leve, mais dura-doura, e com uma pequena explicação o pes-cador faz o serviço no barco dele.

Há um rombo. Com uma explicação opescador já o conserta. Não precisa de seruma pessoa como eu, que aprendi de peque-nino uma arte, a construção naval. Se for umbarco em madeira tem de ser um artista. Sefor em fibra basta uma pequena explicação eo proprietário faz o serviço. Benjamim Moreira,

Vila Chã.

Acabar por não haver barcos para cons-truir: A gente normalmente fazia aí doisbarcos por ano. Entre o começar e o acabar.Porque havia fases em que podiam estar seteou oito homens a trabalhar num barco, e ha-via outras que não dava para estar tanto. Tí-nhamos que ter sempre mais de um emconstrução. E, para ser franco, pensei sem-pre que a construção de madeira acabava pornão haver quem desse continuidade ao tra-balho. Nunca me passou pela cabeça queacabava por não haver barcos para construir.Nem era a fibra de vidro, nem era o aço, nemera o alumínio. Já havia tão pouca gente atrabalhar naquilo que não pensei que issoviesse a fazer alguma diferença. Mas fez.Acabou. Ainda tinha um barco para fazerpara Sines. O homem andou, faz, não faz.Ainda estivemos um mês, tudo sentado lá napraia, à espera que aparecesse, porque tí-nhamos esse projecto. O homem, depois: – Ah, afinal vou desistir. Uns meses depoisde parar, vem ter comigo, se lhe fazia obarco. Não, agora não, agora é tarde.

Gostei muito da minha profissão. Mas játenho dito a alguns armadores, que paraalém de serem clientes, eram amigos, que fi-caram sempre amizades:

– Ah, ainda fazias alguma coisa. – Não. Se o barco estivesse à muralha, e

precisasse de um prego para ir para o mar,que eu pregasse, se calhar ficava na mura-lha, que eu não ia. José Maria Malheiros, Peniche

Não prestar atenção à experiência: Nósnão medimos a humidade da madeira. É umaexperiência própria, de quem constrói. Põe--se a secar. Mas sei que vem chuva amanhã. Aminha obrigação é guardá-la logo. Não a dei-xar apanhar chuva. E depois parou a chuva.Vai ter meia dúzia de dias de sol: – Oh pes-soal, vamos botar a madeira toda lá fora outravez. Põe-se lá fora outra vez. É um dom nosso.

Nós notamos porque a resina deixa denos pegar nas mãos. E ela fica mais seca.Fica melhor para trabalhar. Por exemplo, aserra não empapa. Trabalha livre.

E nunca se deve fazer verde. A peçaverde vai para o lugar e nunca mais apanhauma resistência que lhe permita conservar--se, por mais anos que a pessoa deseje.Morre mais cedo. Duas peças, verdes não seentendem. Porque a peça verde vai tentar se-car. Diminuir. E a peça seca aguenta-se sem-pre. Só que, se apanhar muita humidade,aumenta um bocadinho. E quando apanha osol diminui um bocadito. E uma peça seca,que foi para o lugar seca, é mais duradourado que a peça que foi verde.

E depois, para uma construção destas,que é puxada à mão, queremo-la o mais levepossível. E é por isso que a madeira deve se-car como deve ser.

Se, por exemplo, dá chuva. Não fiz caso edeixei-a apanhar chuva. A peça nunca maisé perfeita. Começa a ter umas manchas pre-tas de longe a longe. Eu aplaino-a, limpo-a,lixo-a, mas lá aparece uma mancha pretaaqui e acolá.

Recebi uma encomenda e a pessoa pro-pôs-se fornecer a madeira. Não o conseguiconvencer que devia ser eu a escolher. Elenão entendeu e trouxe-me a madeira. Trouxe--me a madeira e botei-a aí. Eu chamei-o edisse-lhe: – Olhe, vou fazer a embarcação,mas é contra os meus princípios. Faço-lhe aembarcação, vou-lha entregar, mas não meresponsabilizo pela sua duração. Porque elavai-lhe apodrecer em poucos anos.

Trouxe-me madeira já sem resina. Estavasangrada. Em certas bouças aproveitam-lhe aresina. Dão-lhe um corte e recolhem num reci-piente de caco a resina. Isso tira a resistência àmadeira. Aquilo que a protege. Ela fica de talmaneira que, entretanto, fica em farinha. E foio que aconteceu no barco. O barco começou aapodrecer e a ficar como a farinha. Em pó.

Eu fui lá vê-lo, disse-lhe: – Olhe, eu nemgosto de vir cá. Isto, eu nunca o deveria ter feito.Como lhe disse. Agora, muita gente vai mistu-rar o nome do Benjamim aqui. E isto não temmistura. Mas não devia ter feito. BM, Vila Chã.

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Associação Barcos do Norte20

Respeitar o tempo, manter a qualidadeda madeira: A construção naval está muitoligada aos ribeiros. Onde se guardava a ma-deira. Temos uma presa que, ainda há poucotempo, o lavrador que a tinha veio ter comigopara ver se eu queria as peças que estavamlá, em sobreiro, que encontrou. Tinha peçasainda virgens. Sem se cortar nada. Estavamduras. Aquela madeira em fresco.

O lavrador não se importava que se pu-sesse lá a madeira porque ela ia ao fundo.Essas peças ainda são do meu tempo. Era euque, de carrinho de mão, ou com um carri-nho de vacas, de uma vaca só, que tinha umfamiliar, que a ia lá buscar. Mas quase sem-pre iam mais dois comigo. Quando era paraisso ele punha jornaleiros a dias, chamavam--se jornaleiros, dois ou três. Eu ia com eles,eu dizia como queria e eles botavam no lu-gar. Que eu não tinha força.

Nós vamos à bouça escolher. Vamos falarcom o lavrador. E escolhemos. E não quere-mos cortar quando ela está a medrar. A me-drar é quase sempre quando ela puxa. Vemaquele pó de pinheiro, Agosto, Julho, e assimpode-se cortar. Hoje não se respeita, mas nósrespeitávamos. Não se pode cortar quandoela está a rebentar. Só se for muito preciso éque fazemos uma coisa diferente do que nosensinaram.

Mas a madeira já não tem qualidade. BM,

Vila Chã.

A ilusão da fibra: Sendo de fibra não perdeporque leva todos os detalhes de um barco demadeira. Se alguém lhe tirar uma fotografiadepois dele feito, é igualzinho. Se tirar uma fo-tografia a esse de fibra e a um de madeira, éigualzinho. Mas se lhe começarem a tirar de-talhes, a ficarem redondos os bordos, aí jáperde a graça.

É como um barco fibrado. Se fibrar umbarco moliceiro, ou um barco qualquer fi-brado, já perde a graça toda. Fica todo arre-dondado. Mas se mantiver os detalhes, osbordos, a parte de dentro do bordo separadada parte de fora, tudo com os detalhes todos,nunca perde a graça. O material não influi. Sehouver um turista que lhe tire uma fotografianão vai saber. Se não entrar lá dentro, se nãoo examinar, não sabe se é de madeira ou não.

Já não compensa usar a madeira. Já nãoexiste. Há uns anos tive para construir umÍlhavo para o Clube de Vela da Costa Nova.Mas eles tinham umas fotografias muito va-gas, muito vagas. Eu ainda fui comprar umpinheiro, que na altura custou cento e talcontos. Ainda era antes do euro. Em Monte-mor-o-Velho. Tirei, trouxe-o para cá, aindacortei. Mas não havia detalhes que dessemseguimento àquilo, e para fazer uma coisaque depois não se parecesse nada comaquilo – o Ílhavo nem é um moliceiro, nem éum mercantel, nem é um saleiro, é um barco

meio camuflado – e a fotografia que me trou-xeram era uma série de barcos amarrados,que ninguém sabia qual deles era.

Mas, veja, um barco moliceiro, se for dequinze metros, a tábua tem de ter quinze me-tros. E um pinheiro de quinze metros é difí-cil. Antigamente havia serradores que faziamas tábuas. Comprava-se o pinheiro e serrava--se no local. Fazia-se as tábuas no local. Ti-nha gente só para serradores. E agora já nãohá nada disto. Uma serração corta no má-ximo até nove metros, dez metros. António

Conde, Gafanha da Encarnação

Bloco expositivo 2Tal como antes se ia ao bosque escolher a

madeira para o barco que se ia construir,também hoje é necessário planificar passosde uma acção que queremos levar a cabo nodomínio da preservação do conhecimento.Mais uma vez é imprescindível a presençade quem sabe. Desenhar a partir do originale de um ponto de vista estrutural (à mão oucom o auxílio de tecnologia, pode servir pararegistar informação contida em embarcaçõesque não podemos preservar. Fazê-lo antes edepois de uma desmontagem assegura aindamais informação e pode até levar a uma pre-servação por mais tempo das peças originais.

Depois do tronco estar todo serrado: Tirá-vamos e metíamos no sítio. Não escolhíamosmadeira que fosse muito seca. Escolhíamosmadeira mesmo verde, porque a madeira depinho verde, é essencial, tem mais durabili-dade. Se for seca para debaixo de água, chupaa água e às tantas está tudo podre. Perdeu tal-vez a resina e aquela água que um pinheirolarga quando se corta, a seiva.

Vinham os pinheiros inteiros, com a casca,e aqui é que eram descascados, no estaleiro,com um machado, e só depois é que eram ser-rados. Cheios de resina. A gente punha a mão eficava com elas todas sujas. Quanto mais re-sina fosse, melhor. Mais flexibilidade.

Depois fazia-se a selecção da madeirapara as peças. Para dentro, dormentes, escoase tudo, pinho manso, para fora pinho bravo. Eas cavernas de carvalho para cobrir, porque opinho manso é um bocado ingrato, porquetem muitos nós. E não havia peças assim tãograndes, porque o pinho manso em princípioé toros pequenos. Roda de proa pinho manso,contra-roda, a peça que leva por dentro, car-valho. Cadaste carvalho, e todas as peças à récarvalho. A quilha pinho manso. Sobrequilhapinho bravo, para dar mais ou menos para irum pau direito para ter um comprimento to-tal. Cavernas carvalho. Braços carvalho. Eratudo em carvalho, até cá acima tudo em car-valho. Cabeços também.

O carvalho é rijo e de bastante duração. As tábuas do costado era em pinho

bravo. Tem menos nós e tem comprimentos

que o pinho manso não tem. Além disso, opinho manso é uma madeira que anda comfacilidade.

De um terço para a proa em pinho, de umterço para a ré em carvalho. Porque antiga-mente a parte da ré é que andava sempremais baixo da água. AJNC, Vila do Conde.

O conhecimento tem uma progressão eum tempo para se manifestar: Tive apren-dizes. Depois comecei a riscar a madeira, co-mecei a não trabalhar na construção dobarco. Comecei só a fazer cavername. Ris-car. Andar no risco. Quando vinham, porexemplo, os planos geométricos para riscar,riscávamos ali na seca do bacalhau, ali embaixo, e passávamos de uma escala de 1/25,para real, fazíamos as formas que era paradepois fazermos o cavername para a coisa.

Toda a gente que trabalhou comigo se-guiu os meus passos. Foram sempre sucesso-res. Eu fui sucessor de um filho do meumestre que é o Samuel. Era o Francisco. Ga-libava a madeira, eu fui para ajudante dele,depois ele entregou-me o serviço, começou aver que eu já fazia, e eu continuei aquilomais ou menos até aos trinta e tal anos. De-pois é que fui trabalhar mesmo de ferra-menta. Porque aquilo era riscar. Só seutilizava martelo, virotes para riscar a ma-deira, e os outros carpinteiros faziam o ca-vername. AJNC, Vila do Conde

Histórias sobre escolhas de árvores: Te-nho uma passagem também. Já agora, engra-çada. Fiz duas traineiras para Sagres. Não foihá muitos anos. Foi há uns dez anos. Barcoscom vinte e três metros. E o armador é quedizia se queria as balizas em carvalho –usou-se muito o carvalho – outros queriam opinho manso. Lá para o Sul gostam mais dopinho manso. E eu fui comprar. Antes dechegar a Alcácer há uma herdade que sechama Condado de Palma. Quando vamos nanacional, aquilo é uma coisa de perder devista. Andava aflito para comprar pinhomanso, para fazer cavername. O manso da-quela zona é muito bom. E arranjei um for-necedor que era de Alcácer. Andava a cortarmadeira para queimar. Para moer e paraqueimar. Fui ter com o homem. Precisava aíde umas duzentas e tal toneladas de pinho eo homem chamou o encarregado, e disse-me:- Pode atirar uma árvore abaixo para apro-veitar uma peça. A gente aproveitava as pe-ças curvas, não é?

– Se quiser deitar uma árvore abaixo, sópara aproveitar uma peça, pode atirar queisto tem saída.

E eu fui para lá cortar. Aquilo é engra-çado porque, eles a trabalhar no pinhal, é porcasais. Trabalham marido e mulher. Têm umamoto-serra e trabalham ao dia. O homemcorta e a mulher vai afastando os ramos. E

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21Celebração da Cultura Costeira

então ele chamou dois casais e disse: - As pe-ças que ele mandar atirar abaixo ponhamabaixo. E depois o senhor diz por onde e quequer que cortem, e façam esse trabalho.

Andei lá mais de uma semana. Ia e vinhatodos os dias. Porque não gosto de ficar forade casa. Levantava-me de madrugada parair para lá. Eles pegavam às sete e meia. Euàs sete e meia estava com eles no pinhal.Largavam às quatro e meia. Eu ficava sem-pre lá mais um bocadinho. E depois vinhapara Peniche. Andei assim uma semana. Eentão, um dia – andávamos pelo pinhal, àprocura de madeira, eu mandava tirar umapeça, depois mandava tirar outra – íamos as-sim a andar para o pé de uma árvore e ouçoas duas senhoras que vinham atrás, íamos aconversar, e elas vinham as duas a conversar,mesmo assim:

– Raios parta o homem. Com tanta árvorebonita que está aí, tão jeitosinhas, tão direiti-nhas, só manda cortar estas árvores muitofeias. Tudo torto. Tudo torcido.

Eu não disse nada. Ouvi e não disse nada.Num outro dia – não andei a semana toda deseguida, pois um dia ficava cá para orientar otrabalho – levei a planta de um barco.

– Sabe por que é que escolho as peças tor-tas? Para mim, as direitas não me fazem estasvoltas assim, por causa do veio da madeira.

– Ah, pois. Fazia muita confusão. Comtanta árvore bonita que estava aí, só man-dava cortar tortas.

Eu olho para uma peça no pinhal e sei oque vou fazer dela. Preciso de uma roda deproa. Tem uma configuração. Eu olho para aárvore, Esta dá uma peça. Desde que saiba oque vou fazer, eu vou ao pinhal e escolho: –Isto é para fazer isto, isto é para fazer aquilo.

Também tenho uma árvore, que foi para oMestre Malheiros, que era um barco grande.É aqui, a seguir a Aljubarrota, estão ali as fá-bricas de tijolo. Havia um senhor que tinhauma serração, e tinha uma árvore à portadele, um pinheiro manso, que dava precisa-mente aquela peça que a gente queria para aroda de proa de um barco daquele tamanho:– Que é enorme, não é! Tem de ser uma peçamuito forte para depois tirar aquilo. Andá-mos à procura de uma árvore para dar aquelapeça. Não encontrávamos. A gente olhavapara a árvore que ele tinha mesmo lá à portadele. E o homem dizia assim: – Se não arran-jarmos a peça, eu corto este pinheiro. Mas sóse não arranjar. Vocês fazem o barco. Nãodeixam de fazer o barco por causa da peça.Mas eu só corto a árvore se não arranjarmosmesmo nada. Eu fui com o meu tio mais queduas e três vezes ter com o homem e andar-mos um dia inteiro por aqui e por ali à pro-cura de uma árvore daquelas. Bem.Arranjámos uma árvore e essa ainda se man-tém lá de pé. O homem dizia: – Eu quandovou a qualquer lado, quando venho, sei que a

minha casa está ali porque aquela árvore éum ponto de referência. JMM, Peniche

Ao cair da folha: Para escolher a madeira,por vezes costumo ir à mata. E outras vezes játemos companhias com que se trabalha. É pes-soal que está dentro da construção naval. Jásabe seleccionar madeiras. Poucos. Mas há.

Há uma altura certa para ir à mata. Nós,aqui, a acácia, principalmente, é perigosa.Esse tipo de madeira, na força da rebentaçãoestala muito. Perde-se muita madeira. Esco-lhe-se a estação certa para a cortar. Ao cairda folha. É a melhor altura para o corte daacácia. Na força da rebentação a madeira es-tala. A madeira fica muito viçosa. Como te-mos é um clima muito húmido, a madeira émuito viçosa. Quando está a florir, mesmo acortar madeira é perigosa. Ela estala. Quandose corta ao cair da folha já não empena.

Na força da rebentação ela está-se atransformar. Está a ficar verde. A madeira émais tenra.

Aqui, nos Açores, para uma árvore estarem bom estado, mesmo a nível florestal, étrinta anos. António Melo, Paulino França, Vila

Franca do Campo, São Miguel, Açores

Quando está a rebentar: Nesta era nãoconvém irmos às bouças. Hoje ninguém res-peita. Mas nós respeitávamos. Porque nósvamos à bouça escolher. Vamos falar com olavrador. E escolhemos. E não queremos cor-tar quando ela está a medrar. A medrar équase sempre quando ela puxa. Vem aquelepó de pinheiro. Em Julho e Agosto pode-secortar. Não se pode cortar é quando ela está arebentar. Só se for muito preciso é que faze-mos uma coisa diferente do que nos ensina-ram. Mas a madeira já não tem qualidade.BM, Vila Chã

Fazer um moliceiro: A construção do moli-ceiro inicia-se pelo fundo. Não tem quilha. Aprimeira tábua vai da proa à popa. Por exem-plo, queria um moliceiro de dez metros, ouquinze ou vinte. Fazia-se a primeira tábua.

Depois via-se a largura do barco quequeríamos. Deitava-se uma tábua assim, aolado da primeira tábua, até aqui, e deitava-seoutra aqui, do outro lado.

Depois tirava-se uma linha daqui atéaqui – estendia-se uma linha – e media-se ofundo. Da linha para cá, as larguras que agente queria. Depois cortava-se.

E depois era riscado com uns preguinhos.Marcava-se as cavernas todas, dava-se unspreguinhos, um virote, e cortavam lá. Depoistirava-se a medida para o outro lado e fazia-seo outro lado. Um lado é igual ao outro.

O picadeiro eram umas estacas na terra.Espetava-se umas estacas na terra quando sefazia o barco, mais ou menos de dois em doismetros, ou de metro em metro, e depois con-

1. Mestre António Conde explica, desenhando, durante uma entrevista

2. Mestre António Costa, Vila do Conde, mostra o seucaderno ao mestre Francisco Cesta, Rabo de Peixe

3. Pormenor do caderno de mestre António Costa

N.B. As fotografias 2 e 3 ilustram uma pausa, antes de jantar, durante o V Workshop CCC

em Viana do Castelo, para os quais foram convidadosvários contrutores navais portugueses e estrangeiros

(41º 41’ 49.85’’ N 8º 49’ 33.81’’ W)

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forme o arqueado que a gente queria dobarco, dava umas pancadinhas nas estacaspara o barco subir. Para ela ficar com o fundoem arcado. Depois botava-se uns pesos den-tro, amarrava-se para a primeira tábua já fi-car com o feitio do fundo.

Na frente o barco moliceiro era revirado.Aquilo aquecia-se com um pouco de óleo, eia-se virando a tábua.

Mas o picadeiro já tinha o feitio do fundo.E dos lados também. Depois passava-se umarégua para ver se as estacas estavam a ficariguaizinhas.

As cavernas eram praticamente todasiguais. Só aqui na proa e na popa é que fe-cham um pouquinho por cima. As cavernasvão fechando em cima. Mas o ângulo agudo ésempre igual.

A caverna era feita da curva de um pi-nheiro. Só se faz de galhos. Antigamente fa-zia-se das raízes dos pinheiros mansos. Nósdesenterrávamos o pinheiro manso, a raiztoda. Cortava-se o pinheiro aí uns dois me-tros da terra. Depois era desenterrado o cepo.Para aproveitar as curvas da caverna. AC, Ga-

fanha da Encarnação

A teoria de fazer um desenho, a práticade construir um barco: Com o velho Cestaaprendi uma determinada forma de traba-lhar. A prática de trabalhar dele. Não foi amaneira de construir. Nem de saber o que éque está fazendo. Aquilo era um trabalhar,trabalhar à séria.

Mas quando uma pessoa faz um barcodesses, quando faz um risco, já sabe o que éque vai sair. Com o velho Cesta aprendi aprática de trabalhar madeira. A experiênciade trabalhar com a madeira. Cortar madeira,limpar, planar…

Se eu tiver só teoria, a teoria de fazer umdesenho, não vou construir um barco. Asduas coisas juntas servem melhor que umasó. Então quando tem a prática de trabalharmadeira, chega aqui com o serrote, corta, fazuma coisa, faz outra, isso é o principal. É otrabalhar. Depois então temos a teoria. Sabercomo é que se risca, como é que se faz. Issoeu não aprendi lá. Gabriel Costa, Rabo de Peixe,

São Miguel, Açores

Bloco expositivo 3As embarcações tradicionais são geral-

mente em madeira de uma certa qualidade.O conhecimento exacto do que usar é adqui-rido na experiência da observação e contactona natureza, que é também feito por erro ecorrecção. Se queremos manter o conheci-mento percebe-se porque vai ser necessárioplanear, até os bosques, onde só então o queé “boa madeira” poderá ser reconhecida porquem quer saber.

Jangada de São Torpes: As canas têm dese apanhar logo secas. Como estão agora aísecas é que é. Vou fazer uma amanhã. Voucomeçar a apanhar mais logo aí umas. Apa-nho as canas. Limpo as canas todas. Depoisé que faço.

A gente é que fazia. Os outros não sa-biam recolher a cana. Não sabiam escolher acana. Depois, pessoas que não tinham prá-tica de trabalhar, não sabiam apanhar, nemcoisa nenhuma, voltavam-se e desistiam.Mas nunca morreu ninguém. Antes pelo con-trário. Salvaram-se pessoas com isto. A gentetem provas em todo o sítio de que salvámospessoas com esta jangada. Eugénio Presas e

Ramiro Presas, São Topes, Sines

Solo pobre boa madeira: A madeira dosolo pobre é melhor. Mais dura. O cresci-mento é menor. Nós usamos na acácia a ca-gadiça. O melro é que a planta. O canário éque planta a árvore. Come a semente e deixacair e nasce. É a acácia da cagadiça. Que éuma madeira mais brancal. Há várias quali-dades. Tanto dá a branca, como dá a preta,como dá a castanha. O melro semeia tudo.Mas há uma que a gente chama cagadiça,que é a mais branca. Não quer dizer que sejaa melhor. É dura, mas em termos de visual…

Para as peças curvas do barco, as melho-res árvores são as que crescem nas escarpas.Mata limpa nunca dá madeira torta. Umamata que é plantada nunca dá madeira torta.Só dá nas escarpas. Naqueles espaços degrotas, rochas. Quando é numa grota ela ge-ralmente inclina-se sempre, quase sempre,para o lado da ribeira. É a melhor. Para oscavernames.

A madeira quando é muito seca perdeum bocado viscosidade. Mantê-la 75% seca.É suficiente no acto de trabalhar. E mesmo a50%. Para o forro estar completamente seco.

Mas já vi cortar da mata, abater a árvore,serrar e montar no outro dia a seguir. E a águaa pingar. É um desenrasque. Não faço isso,mas já vi fazer. Para o barco o problema é quea madeira apodrece rapidamente. Porque asduas faces aquecem e aquilo é rápido. A hu-midade com humidade aquece, e apodreceem três, quatro meses. O aquecimento entreas duas faces. Vê-se que depois fica comouma zebra. E nota-se o encolhimento como acortiça. Começa logo a crespar como a cortiça.AM, PF, Vila Franca do Campo, São Miguel, Açores

História de um pinheiro torto: Compa-rando os materiais de construção, há evolu-ção, mas, eu prefiro um barco destes feitosem madeira, feitos com boa madeira do queum barco de contraplacado marítimo. A ma-nutenção ainda é maior no contraplacadomarítimo, porque, para já, tem de ser dobom. E se não for do bom, aquilo, um arrom-bozinho, se você não o tratar, começa-se a in-

filtrar e ainda vai mais depressa ao ar. Temde ser pintado todos os anos.

Tenho uma história interessante, que foium colega meu, que pescava comigo, e tinhaum bouça onde tinha o pinheiro torto, edisse-me assim:

– Ó pá, não queres fazer um barco?– Faço.– Tenho um pinheiro ali numa bouça que

é torto e já está lá o feitio do barco e tudo.– Pronto, está bem.E eu, naquela altura tinha feito dois ou

três barcos com madeira direita. Então fomosao monte, cortamos o pinheiro. Tínhamos umaserração que era de um cunhado dele, fomosuns quatro lá e cortamos o pinheiro. Fomospara fazer o barco, eu para fazer o barco, queele só me ajudava, e então cortei as tábuas tor-tas, que também se cortam tortas, e pu-las to-das no mesmo sentido. Que é o caso quetambém está aqui, que também é com um pi-nheiro torto, e eu com o tempo fui aprendendoe pus uma para cada lado. Tanto é que a tábuacentral, vocês viram que esta é toda rectangu-lar, do princípio ao fim, e eu pu-la assim parater acesso às fendas, senão não lhes tinhaacesso. Porque eu meti as tábuas, como eramtortas, uma para cada lado e no fim tive de fa-zer uma tábua central para o meio.

Nesse dito barco, pus as tábuas todas nomesmo sentido e quando fui para dobrar,para lhe dar a dobra, ela em vez de me do-brar direita, dobrava de lado. Não conseguia.Então foi cordas, mais cordas, mais ferros,para conseguir meter aquilo e, nunca ficoudireito. Ficou-me uma borda mais inclinadado que a outra. Pelo pinheiro ser torto eupensei que ia dar aquilo que eu queria. Maso pior foi depois. Quando comecei a meter aprimeira tábua da borda preguei-a acolá notalhe da proa. E a tábua ficava-me de esqua-dria com o barco. Então, quanto mais bordaeu queria dar, mais o bico me levantava e apopa. Quer dizer, o barco ficou uma caravela.Ainda bem que veio uma cheia muito grandee o levou para o mar. Depois dali, nuncamais. Pinheiro torto sim, mas pronto, já te-nho de fazer desta maneira. Já as tábuas do-bram bem e já se consegue dar.

E fiz outras asneiritas nos barcos. Fuiaprendendo porque praticamente ninguémme ensinou. Eu punha, depois via. Há bar-cos aí no rio, por exemplo, já disse ali ao Pre-sidente, tem ali um barco na foto, queescolheu o pior barco que tem no rio para lhetirar uma foto. Porque é direito, daqui até láacima é direito. Não lhe deram dobra ne-nhuma. É tudo da mesma altura. Manuel José

Rocha, Lanheses, Viana do Castelo

Quando compro um pinheiro gosto de over no pinhal: Escolhíamos a madeira.Ainda hoje eu faço isso. Quando compro umpinheiro gosto de o ver no pinhal. Nem todo o

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23Celebração da Cultura Costeira

pinheiro dá. Eu tenho aprendido muito.Chego a um pinhal, vejo um pinheiro e digoassim: Diacho, serve, mas não é perfeito. Edepois ao obrá-lo noto que a minha ideia es-tava bem. Não fez o que eu queria. Isso émuito importante também.

Eu, por exemplo, neste barco. O barcoestá muito perfeito. Eu sei porque, como mo-liceiro, pode haver quem faça igual. Mas me-lhor não há. Eu sei.

E porquê? Estas cintas que os senhoresvêem, isto, é que faz o barco. E quando essespaus são mal jeitosos – às vezes a gente nãoencontra o que a gente quer – a gente vai re-mediando e, muita vezes, força, e pensa queestá o bordo a ir para o sítio e está o barco adesmudar. Mas se não encontrou melhor oque a gente há-de fazer!

Eu sei que este está perfeito porque eufui à procura dos bordos. Às vezes percomuito tempo por aí, e muitas das vezes vou, eeles vão aos pinhais e não têm aquilo que euquero. E este, eu vou ali direito à Minhoteirae encontro um camião a carregar madeira. Edigo assim: - Eh diacho, vamos a ver onde ogajo anda. Eles, muitas das vezes, têm o ca-mião na estrada, mas andam longe, no meiodos matos. Vejo o tractor, vou atrás do tractore entro no pinhal e eles andavam a tirar eu-calipto. E eu entro no pinhal e vejo muitospinheiros, Tão jeitosinhos, será que é dele?Eu a pensar.

Vou ter com ele: – Ouça lá, você dis-pensa-me aqui uns pinheiros?

“– Dispenso-os todos;Eu disse, Eu só quero dois.Ora, tirei ali o que eu queria. Está a per-

ceber. Por isso o barco está perfeito. E en-contrei ali o que eu queria. Tinha ali centosde bordos. Eu é que não podia comprar maisporque não tenho outro barco a seguir. Por-que às vezes vejo-me aflitinho mesmo paraencontrar esses pinheiros.

As cavernas são muito importantes. E não as encontro aqui agora na zona. Por-quê? A construção naval deu cabo de tudo.Foram tirando.

Já usei o carvalho para cavername, mas ocarvalho é uma coisa que racha. Esfuseiamuito ao secar. Esfuseia. Abre bichas. Abreranhuras. A palavra é esfusear. Quando estárachada, esfuseou. E depois não é bom paraisso. António Esteves, Pardilhó

Fala um calafate: Em 1978. Fazia tudo. Eraaprendiz no Jeremias Martins Novais. Come-cei por lixar os barcos.

A madeira era tratada com gasóleo, nascavernas, e às vezes também nas tábuas.Misturava-se um pouco de óleo, para entrarnela e não ganhar bicho. Essencialmente nascavernas e parte interior das tábuas. Que di-ficilmente passaria para fora Não havia in-conveniente para a tinta porque estava ali ao

tempo, e o próprio tempo acabava por quei-mar o gasóleo. Mas geralmente era semprepor dentro. Por fora é que era a pintura paraimpermeabilização. Que era o zarcão.

Antes de emassar era lixado com máqui-nas. Acertar o barco todo. Pô-lo lisinho. Nofim era tudo espanado, pegava-se em zarcãopreparado por nós. Ele já vinha feito, só quedepois metiam um bocado de óleo de linhaçae um bocado de aguarás. Que era para teróleo. Dava-se no barco todo o zarcão, mesmonas frinchas, para entranhar o óleo. No outrodia betumava-se frincha por frincha – que nonorte se diz friesta, as emendas –, da proa àré, tudo, depois tornava-se a lixar com umalixa de mão para tirar aquele betume. Depoisera lixado com uma lixa de mão, depois deestar tudo betumado, que era para tirar o bri-lho ao zarcão, que era para, ao fazermos amassa, emassar o barco todo, para agarrar,para não estourar. Nós fazíamos a massa,chegávamos ali, estendíamos a massa pelobarco todo, deixava-se secar, depois era li-xado para ficar tudo lisinho. O barco eraemassado. A madeira toda emassada.

Era gesso cré, alvaiade, aguarrás, óleo delinhaça um bocado, e uma pinga de água.Para unir. Para deslizar. Nós fazíamos aquiloatravés de facas de emassar. Não sei explicarbem. Pegávamos numa lata de 5 quilos, ía-mos ao saco do gesso cré tirávamos 4 facas.Que representassem, por exemplo, 1 quilo degesso. Depois pegávamos em alvaiade, ¼ dequilo. Uma faca. Pegávamos em aguarrás –agora não sei, botávamos sempre a olho, me-tíamos, sei lá um quartilho – e depois um bo-cado de óleo de linhaça, um bocado desecante para ajudar a secar, e uma gota deágua, para unir a própria massa. Uma coisi-nha mínima, duas ou três gotas, para traba-lhar melhor a massa. Para unir a massa toda,com o óleo, para não se esfarelar.

Fazia-se isso em todo o casco, menos dalinha de água para baixo. Da linha de águapara baixo não se emassava. Só da linha deágua para cima, para a borda. Era tudo emas-sado: caras, bordo, tudo emassado. Dentronunca é emassado. Era só o exterior. Que erapara não abafar. O barco, quando viesse àcarreira ao fim de um ano, tirava-se aquelamassa, já não levava mais massa. Para poderrespirar. Porque ao levar a massa, já abafava.E andava um ano com aquela massa para fi-car bonito. Na altura que saía do estaleiro fi-cava todo bonito. Brilhante, bonitinho,polidinho. A partir daí, vinha à carreira, ti-rava-se, lixava-se aquilo tudo, já não se davamassa. Era só tinta. Porque a massa era sópara boniteza e para compor qualquer imper-feição da madeira, qualquer irregularidade.Se ficasse com a massa, ou continuasse a le-var massa, o barco não respirava. Já estavaisolado por esmalte, e estava isolado por forapela massa e esmalte. Não respirava e apo-

1. Eugénio Presas explica como se escolhe uma boa cana para uma embarcação

2. Gunnar Eldjarn observa cuidadosamente as canascortadas depois da explicação de Eugénio Presas

(37º 53’ 56.42’’ N 8º 47’ 52.96’’ W)

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drecia muito mais rápido. Então tinha ten-dência, ao navegar, no mar, cair pedaços demassa. Que aquilo é um betume que está ali.Uma pancada cai. Ficava aquela emenda,aquela roseta. Então, quando chegava à terra,nas reparações, no verão, lixava-se o barcotodo, tirava-se a massa fora, o barco ficava alia secar dois ou três dias, pegava-se no apare-lho, dava-se no barco, esmalte em cima, pu-nha-se as letras e ia para a água.

Quando estava tudo lixado levava umamão, novamente, de esmalte, mais fina – jánão levava primária, era o esmalte, e a pri-meira de mão era mais fina, com um bocadi-nho de óleo. Era mais fina porque, além deter a massa, ele entranhava melhor na ma-deira e conservava muito mais. Depois le-vava a segunda de mão, já praticamentenormal, já levava um bocado de aguarás, e aterceira então era grossinha. Que era paranão ganhar muita altura, muita grossura detinta, para não acabar por esfarelar, ou desfa-zer. Já levava as três mãos de tinta. Depoiseram as faixas, e as letras. Levava as faixas,que era a falca – depende –, o bigode, tantoem cima como em baixo, o emblema, e as le-tras e a matrícula.

O bigode era aquela espécie de faixa,que era mais grossa no vértice, juntava-se naroda de proa, mais grosso no vértice, e a afi-nar cá para baixo. Porque era mais grossomesmo na roda de proa, depois vinha a mor-

rer como as pontas de um bigode, fininhas.Em baixo. Também havia os bigodes emcima, na parte das obras mortas. Ou entãoera um triângulo ao comprido, com a formade um bigode, é um desenho, uma bandeira.Nós chamamos bigode aqui. Mas são bandei-ras. Álvaro Cândido da Silva Reis, Vila do Conde

Tintas artesanais e tintas industriais: Atinta que era feita era muito melhor paramanter a qualidade da madeira e preservá--la. Demorava é muito mais tempo. O zarcãoera muito mais resistente do que é agora. Nósdávamos o zarcão que era feito na altura,pelo pintor, nós dávamos na madeira, e elaaguentava anos e anos e anos. Mesmo a lixarele estava entranhado no barco, na madeira.Hoje não. Hoje o zarcão vem feito, ganhauma película à face, não penetra na madeira.Fica ali uma película e ele sai fora.

E muitas vezes os próprios pescadorespara ganharem dinheiro, para não pagaremao estaleiro, em vez de virem encalhar ao es-taleiro, encalham no areal, a madeira atéainda mal seca – enquanto a maré descia esubia – eles achavam que estava suficiente-mente seca e pintavam eles. Era um erro. Amadeira estava encharcada, dava-se a tinta,a madeira não aceitava a tinta porque estavacheia de água e expulsava a tinta para fora.Não sei como é que eles faziam esses óleos.Antigamente utilizava-se era muito breu

para dar dentro dos barcos. Geralmente erampequeninos. Mais nos pequenos.

Para fezer o breu eles compravam resinajá própria. Chegava ali tudo em pedra, sómetíamos dentro do caldeirão, levava um bo-cado de óleo para ficar líquido, e acendíamosa fogueira e aquilo estava ali a derreter. De-pois arranjava-se um pau, com bastantesdesperdícios à volta – uma maçaroca de des-perdícios – dentro do barco toca a borraraquilo. Era óleo de linhaça. Com aguarás émelhor para trabalhar que com diluente, por-que é mais macio e desliza.

Devemos ter cuidado se a tinta é sinté-tica ou celulósica. Com aguarás tem de serequivalente. Também aguarás sintética oucelulósica. Se for a misturar o celuloso natinta sintética fica granulado. Estragou.ACSR, Vila do Conde

A calafetagem do canote de Fão: A calafeta-gem destes barcos era com estopa. Até haviaalguns que punham um farrapo que tivessemem casa. Um bocado de pano velho. E era feitotambém pelo próprio breu. Estes barcos eramembebidos, ou digamos, pintados com breu,por dentro. E os de Fonte Boa pintavam-nospor fora também. Davam breu por dentro e porfora. Os pescadores davam breu por dentro, epintavam-nos por fora. E o próprio breu serviatambém de calafetagem. É outro brio. É umaquestão de gosto. De alindamento. A madeiranão era afectada.

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25Celebração da Cultura Costeira

A tinta dá mais conservação ao breu.Porque a tinta penetra mais na madeira. Obreu por qualquer coisa sai. E a tinta não.Este tem breu por dentro. Enquanto a tintaainda se mantém, o breu esfarelou todo.

A tinta deixa respirar a madeira. Estatinta que vês aqui não é esmalte. É uma tintade óleo. Enquanto que esta tinta respira,deixa respirar, a tinta de esmalte, que é atinta convencional, que vês ali naquelaporta, não deixa respirar a madeira. E os bar-cos apodrecem mais depressa.

Breu com óxido de ferro. Para ficar maisbonito. Fica vermelho. O breu tem uma coramarelada. Se lhe adicionares óxido, nestecaso óxido de ferro, fica vermelho. E botava-se também um bocadinho de óleo de linhaça.

Comprava-se o breu, punha-se dentro deum pote, deitava-se um bocado de óleo de li-nhaça. Punha-se por baixo lenha. Quandocomeçasse a ferver é que se dava. Junta-seum bocado de óleo, que é para ficar lisinho,para ficar a correr. Um quilo de breu levavaum quarteirão de óleo. Comprava-se o breuaí na loja, na drogaria. O óleo também. Com-prava-se aos litros.

Aqui também se utilizava outra coisa,que chamavam graxa. Que eram as tripas daraia e o fígado, da raia, fervidos, que depoisadicionavam ao breu. Era uma forma maispobre de utilizar. Derretiam isso tudo numapanela, e o resultado disso ficava uma gor-dura. Ficava mais gordo.

[Salvador] O fígado de óleo de bacalhautambém se punha. Ainda tenho óleo de baca-lhau em casa. Feito por mim. Desde 1996.Eu trouxe-o. Dei-o ao Carlos Maia, dei aoJoão do Café, que está casado com a Neusa.Dei a muita gente. Dei ao Gustavo para aspombas. Só de uma vez trouxe dezoito litros.Feito todo por mim.

Pega-se numa lata, daquelas latas de sal-sicha, grandes, lava-se o fígado do bacalhauno primeiro dia e deixa-se escorrer. A genteescorre-o bem escorridinho, mete-o dentrodessa lata, sem água nenhuma. E vai-se me-xendo conforme ele começa a ganhar molhar,para não pegar no fundo. Fica amarelinho alique é uma pinta do caraças. Depois é coado.Côa-se e bota-se dentro das garrafas.

[João Esteves] Quando se lhe juntava agraxa, que era o nome que eles chamavam,era para o breu ficar menos sólido. Ficarmais elástico. Ficar mais macio. Para a trin-cha correr mais. Fazer graxa ficava muitomais barato porque eles tinham o fígado dospeixes quando limpavam os peixes. Não pre-cisavam de comprar o óleo. Era uma matériaque vinha a custo zero. E o óleo de linhaça épreciso comprá-lo.

Para extrair o óleo a partir dos fígados pu-nha-se tudo a ferver, e chegava a um pontoque tudo aquilo derretia. Depois vazavampara outro recipiente e ficava uma pasta. Uma

gordura. Que era aquilo que chamavam graxa.Agora já ninguém faz isso. A graxa é um pro-duto que vai tornar o breu menos quebradiço.Porque o breu é uma pedra. Estilhaça-se. Pa-rece vidro. E portanto, quando se adicionava oóleo de linhaça ou a graxa, o breu ficava maisplástico. Não ficava quebradiço.

Punham a ferver e metiam-lhe, por exem-plo, um bocado de pano. E a seguir puxavam--no e deixavam-no arrefecer. Se o pano nãoquebrasse, estava pronto a ser aplicado. Se opano quebrasse, depois de secar o breu, aindaera preciso pôr mais um bocadinho. Eraquando ficava elástico é que estava prontopara ser aplicado. Era assim que muitas pes-soas faziam, Eu, inclusive, também fiz assim.

É indiferente a maneira de se fazer para agraxa e para o óleo de linhaça. É completa-mente indiferente. Utilizar graxa, ou utilizaróleo, é a mesma coisa. Pode-se pôr maisgraxa, ou menos óleo, depois a percentagempode variar. O óxido de ferro era posto quandoestava a ferver. Adicionava-se óxido de ferroque era para ficar mais bonito. Tem a ver como mais bonito. Não tem a ver com mais nada.Via-se a quantidade olhando para o breu e vê--lo ficar vermelho. Mais vermelho ou menosvermelho, à vontade do cliente. JVCE, Fão

Bloco expositivo 4Para uma obra bem planeada os passos

iniciais dão-se começando pelo que é funda-mento, porque neste domínio, sendo a estru-tura o que define a obra, também é o que lhedá carácter diverso. Planear a preservaçãodo conhecimento, ser capaz de permanecerem observação, sem julgar, implica umamente inquisitiva e o respeito pelo acto defazer, que é de índole diversa do puramenteintelectual. Manter indivisível o conjunto deferramentas e peças de um carpinteiro ouconstrutor naval é assegurar acções de repa-ração, restauro e cópia genuínas.

Aqueles braços, cavernas, ali ao alto:Aprendi a arte com o meu tio-avô. Tinha oapelido Caseira. António Caseira. Era onome de família. O meu pai foi agricultor. Edepois de casar é que foi para a pesca.

Eu andava na escola e no regresso a casapassava sempre pelo estaleiro do meu tio--avô. E chamava-me a atenção e punha-meencostado à porta a ver aquilo. Gostava dever. Aqueles braços, cavernas, ali ao alto. Eentretanto aparecia um barco e ele vinha-otrazer cá abaixo à praia e eu vivia aquilo. Ecomecei a gostar. Quando saí da escola pri-mária, prontos. Optei por ir para lá. Fui lápara ir trabalhar e disse-me: – Ainda nãopreciso. Tenho aqui o Dário, e quando ele forpara a tropa, vens para cá. E nesse espaçoandei ao mar com o meu pai.

Depois quando precisou mandou um re-cado pela neta dele. A casa da minha mãe. A

1. Albino Gomes e Miguel Moreira comparam dois modelos de roda de proa, um de traça

antiga (atrás) e outra nela inspirada mas ligeiramente alterada, Vila Chã(41º 17’ 37.48’’ N 8º 43’ 29.16’’ W)

2. Obra no estaleiro de José Francisco Cesta, Rabo de Peixe

(Estaleiros: 37º 48’ 54.49’’ N 25º 34’ 34.68’’ W)(Porto e Armazéns de pescadores:

37º 49’ 2.40’’ N 25º 34’ 55.56’’ W)

Página anterior:A jangada de São Torpes encomendada por Francisco

Chaínho, pescador e inventariante CCC, aos irmãosPresa durante o trabalho de inventariação em Sines

(37º 57’ 19.36’’ N 8º 52’ 16.14’’ W)

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Associação Barcos do Norte26

minha mãe era sobrinha dele. Lá fui e comeceia trabalhar, talvez com treze anos, mais ou me-nos. Depois andava lá, gostava da arte. Só nãogostava porque ele era muito bera. Um homemmuito exigente, muito rigoroso. Como artista,que saiba, ainda não vi mais ninguém. Aque-las mãos, e o saber dele, era muito profissional.Resolvia fazer uma lancha, fazia uma lancha.Resolvia fazer um móvel, uma cama, moldurasfeitas à mão, ele fazia tudo com uma belezaenorme. Por isso apanhei muita porrada dele.Fazia umas socas com um bocado de madeirae um bocadinho de couro. Solipas. E eu pegavanas solipas e punha-me a andar. E depois,quando chegava a casa, já tinha lá a minhaprima, a neta dele: – Oh tia Verónica, o Benja-mim fugiu do trabalho. E no outro dia lá ia tra-balhar. A vida era assim mesmo.

O primeiro trabalho que fiz foi tirar a fer-ramenta toda da caixa que ele tinha, váriasvezes, quase todos os dias, quase todos osdias – ele tinha uma grande caixa de ferra-menta – toda para fora, limpar a caixinha,limpar peça a peça e untá-la. Logo de manhã,ou à noite, porque era quando ele largava aspeças e ficava tudo limpinho. Como devia deser. Ele tinha muita estimação que se fizesseisso. Ele tinha a ferramenta de tal maneiraque cortava como uma navalha de barba.Nunca vi em lado nenhum. As peças de ferra-menta tão limpinhas, e tão briosas, a cortarembem, como ele as tinha. BM, Vila Chã

Pensar a obra: A roda de proa já podia serde carvalho ou de pinho manso. Mas de pre-ferência pinho manso, que é mais leve umbocadito. O carvalho é mais pesado. O sal-gueiro também é leve. Sempre torto. Nãopode ter o veio, senão parte. Ter a tortura,mas ser sempre o mesmo veio. Como no pi-nho manso. Como no pinho manso. A pan-cada do mar dá na embarcação e ele dá-se. Enão parte. Uma vaga de mar bate aqui. Obarco dá-se. Dá-se um bocadito e não parte obraço. E se eu for a uma peça de madeira, ese cortar a direito, apanhar o veio direito, eque faça a curva por ali, parte facilmente.Até com o estremecer do martelo a meter ospregos ele parte. BM, Vila Chã

Sobre as linhas de água: São as entradas deágua que distinguem os barcos e os construto-

res. Um barco tem entradas de água, e temsaídas de água. Os meus barcos vão para aágua com o mesmo motor, e o barco dá duas atrês milhas de maior velocidade que o outros.Eu mantenho as mesmas linhas de água. Quero barco tenha sete metros, tenha dez metros,eu mantenho sempre o mesmo sistema de en-trada de água.

Foi o Mestre Aldeia que o ensinou sobreas linhas de água. Foi o Aldeia. Veio dos de-senhos dele. Que eu não sabia o que era umalinha de água. Nem fazia ideia. Nem me ca-pacitava o que era uma amura de um barco.A amura de um barco é o relevo onde a águase transforma. A água entra a linha de água eresborda para fora. Um barco deve soltarágua. E não embrulhar água. É o que eu faço.Ela entra na linha de água e despede parafora. Não nas amuras. A amura deve ser feitade maneira a despedir a água. A água, comovem é de frente, convém que faça o relevo edespeça assim. Se for direito, ela respingapara cima, e basta um bocadinho de ventoou coisa assim, e ela entra logo. GC, Rabo de

Peixe, São Miguel, Açores

Nós é que tínhamos que ir aprendendoalguma coisa: “Tinha onze anos. Foi a pri-meira vez que trabalhei em madeira. Nessedia foi só ajudar. E carregar. Era aprendiz.Eu servia era para ajudar: Passa-me isto,passa-me aquilo. Nós é que tínhamos que iraprendendo alguma coisa. Há tipos que po-diam andar lá vinte ou trinta anos e não evo-luíam. Não sei. O gosto por aprender, ouqualquer coisa.

Mais ou menos aos 18 anos passei à 4ªcategoria. Naquele tempo era preciso fazerexames. Vinham mestres de fora. Perguntardeterminadas coisas mediante a categoriaque íamos entrar. Era a 4ª, 3ª, 2ª, e 1ª. A 4ªcategoria era a mais baixa. E mediante essascategorias eles iam perguntando. Conformemais alto, mais difícil a pergunta. O aprendiz,4ª, 3ª, 2ª e 1ª. A 1ª era o topo. Depois haviamestre. Mas isso, para ser mestre, tinha quefazer exame. Agora acabou isso dos exames.

Os examinadores perguntavam pelos co-nhecimentos dos candidatos. Na passagempara a 4ª categoria podiam pedir para alinharum pau, por exemplo, quando vinha em rolo.Como é que se fazia para alinhar. Como é

que se faz. Tirar um tento e fazer a linha paraalinhar uma peça para um barco, de um rolo.É um tronco. Como já andava no traçado deriscar cavernas com o filho do meu patrão, eudisse-lhes que andava a galivar. E ele disse:- Pronto, então já não é preciso mais nada. Jáera um serviço um bocadinho mais acima,que nem toda a gente sabia fazer. Galivar épassar de umas grades, que temos, para o de-senho das cavernas.

Eles perguntavam e nós respondíamos.Viam a ferramenta que a pessoa tinha, que nãotinha. Se era um carpinteiro que tinha muitaferramenta, se muito pouca. Se a ferramenta erafraca ou boa. Para esse exame levei uns for-mões, serrote, martelo, compasso, sutas e umaenxó. Que já utilizava. Naquele tempo utili-zava-se as nossas ferramentas. As ferramentasainda hoje pertencem todas aos carpinteirosnavais. Quando se precisa de uma peça de fer-ramenta tem de se comprar. Cada carpinteirotem a sua ferramenta. AJNC, Vila Do Conde

Continuar a construir é manter vivo o co-nhecimento tradicional: O meu marido foio último barqueiro de Porto de Rei, freguesiade S. João de Fontoura. As barcas passavamas pessoas para os comboios e para a partede lá. Era a única passagem e o único cami-nho que tínhamos. Naquele tempo não haviaestradas. Pois vinham a pé lá de cima de SãoMartinho de Mouros. Vinham a pé por estescaminhos abaixo. E no tempo das cerejas eratudo às costas. Vinha tudo para a barca.

A barca mais pequena era para passagei-ros. Tínhamos uma grande, do tipo destesbarcos rabelos que passam aí, onde despa-chava os cavalos e as vacas, qualquer ani-mal. Os negociantes iam comprar a Baião epara aquelas serras os animais e depois atra-vessavam-nos aqui.

A barca grande foi destruída. Porqueagora temos as barcas mas não há passagens.O meu marido destruiu-a para aí há quatro oucinco anos. Agora temos as barcas mas nãoautorizam as passagens. Era do tamanho dosbarcos rabelos. Dava três da barca pequena.

Eram a remos. De verão o barco até erapuxado a arame. Não havia barragens. Bo-tava-se um arame daqui a atravessar o rio àparte de lá e depois a barca entrava naquelearame e eles puxavam à mão. No inverno era

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27Celebração da Cultura Costeira

a pás. Ultimamente o meu marido até tinhamotor. Quando o rio ameaçasse perigo, queandasse bravo, com vento, assim com o riogrande, já era a motor. Usava-se remos por-que o rio enchia. E depois dava muita pressãono arame e ele arrebentava. Não aguentava.O arame enterrava na água. Vinha à tonaquando a gente o puxava, e o barco andava.

Éramos nós que arranjávamos madeira,que comprávamos as árvores, que mandáva-mos botar abaixo, para mandar fazer as bar-cas. Madeira de carvalho e de castanho. Maso sago do barco era de pinho. Essa madeiratinha de ser em pinho porque se aguenta naágua mais tempo. A do castanho de vez emquanto tem que ser composta, porque racha eficam aquelas águas abertas. Entra a água etem que ser consertado. Depois, naquelasfrinchas do unimento da madeira, leva to-mento. É tipo um algodão como a lã, mas aquichamamos-lhe o tomento. Era breu, uma es-pécie de cola que era derretida num pote emágua a ferver, em lume, e aquilo derretia edepois, chamamos-lhe nós os sopeiros, eraum bocado de pele das ovelhas, enroladanuns paus, e a gente metia naquele líquido eficava tudo briado com aquele produto.

“Juntava-se ainda óleo ao breu. Costu-mava-se pôr a gordura dos anhos, e quandonão conseguíamos arranjar era óleo familiar,do que a gente come. Maria Alice Monteiro,

Porto de Rei, freguesia de São João da Fontoura

Bloco expositivo 5Manter formas artesanais de construir,

hoje, deve passar pela construção conti-nuada de oportunidades de formação aolongo de toda a costa portuguesa. Essas opor-tunidades incluem a cópia de embarcações,que é sempre a construção de mais uma em-barcação, e/ou a reparação das existentes,acções que se querem continuadas, e quenunca se terminam. Estas operações, se le-vadas a cabo com outros artesãos – incenti-vados a documentar o que se encontra e oque se faz – enriquecem arquivos, impulsio-nam a aprendizagem e activam métodos emodos de pensar-saber-fazer tradicional.

Fazer o remo para a embarcação: A ma-deira para os remos é o calibre. O pinho émuito pesado. Não é bom para o remo. O pinhoé bom para remos pequeninos, de dois metrose meio, que não faz muita força. Aquilo é re-mos com dez metros.

Aqui isso não falha. Está aos montes poraí. Ninguém usa aquilo. É só para remos.Trabalhei aqui com pinho, acácia, cedro. Ocedro, é um milagre haver cedro. Há naque-les montes por aí, em sítios espalhados.

A pá do remo, quando está na água, agente tem de fazer força no remo. E aquiloajuda a virar. Os cabos ajudam a manobrar oremo. E o Chamaço é para o remo ficar mais

leve no trabalho. Sem chamaço a gente nãoconseguia trabalhar. Leonardo, Rabo de Peixe,

São Miguel, Açores

Fazer o barco: Há treze anos que construobarcos. Quer dizer, tinha o bichinho porque omeu pai tinha barcos, era pescador e eu vifazer dois barcos para o meu pai. Eu deviater oito anos no primeiro e no segundo deviater doze ou treze anos. Era um senhor ali dolugar do rio que vinha fazer os barcos à casado meu avô.

Depois andei sempre com o meu pai àpesca e depois imigrei e disse que quandoviesse queria ter duas coisas: um carro e umbarco. E consegui. Vim para cá e fiz o pri-meiro barquinho, ajudaram-me a o fazer. Edepois, daí fui fazendo. O velhote que me en-sinou, que me deu as primeiras dicas, aindaestá aí hoje. Veio o segundo barquinho parafazer e disse: – Não, este és tu quem o vai fa-zer. E eu fui fazer. A partir daí comecei a fazeros barquinhos, de borla, para toda a gente. Sóhouve um que eu levei dinheiro. Foi um se-nhor de Bertiandos, eu não o conhecia de ladonenhum. Este é o décimo barco. Fiz tambémum de chapa. É uma voadora. Tem dez anos.

Eu tenho toda a ferramenta. Tanto de car-pinteiro como de serralheiro e não exerço,actualmente, nenhuma profissão dessas.Faço as coisas só para mim.

Algumas tive de adaptar. Estes coisinhospara meter o breu. Eu já adaptei muitas fer-ramentas para mim, mas agora compro-as. Apeça com que dou o breu é uma peça muitoantiga. Foi um sócio meu, que trabalha emViana comigo na pesca, que tinha uma que jáera do avô dele. Tinha aquilo para dar obreu. Eu fiz uma sem ninguém me dizer.

O breu é resina do pinheiro, extraída dopinheiro. Depois é endurecida e depois évendida assim aos quilos. Antigamente iambuscá-la directamente aos pinheiros, não secomprava. Aquecemos o breu a uma tempe-ratura a que ferva bem. Misturamos um bo-cado de óleo para ficar um bocadinho elásticopara quando o barco for à água. Incha e vaifazer com que as tábuas se unam uma à outra.

Agora vou pôr o alcatrão vegetal e o gasó-leo a aquecer, para entranhar melhor na ma-deira, que é o produto que melhor vai com onosso pinho daqui, o que vai fora de água. Édado por dentro e por fora. A mistura é meiopor meio.

Neste barco, que é uma réplica histórica,usei ferramentas modernas. Teve de ser. Elemede doze metros e noventa e três de com-prido, de boca tem dois metros e cinquenta ecinco e de pontal tem sessenta centímetros,ao meio, porque à frente tem oitenta e cincocentímetros e na popa tem sessenta e cincocentímetros.

Vai fazer uns passeiozitos aqui com asescolas, com os miúdos. Não vai ser para tu-

1. Manuel José Rocha dá o breu num barco trincado, Lanheses, Viana do Castelo

(41°43’55.71” N 8°40’38.29” W)2. Leonardo afeiçoando um remo para a sua

embarcação, Rabo de Peixe, Açores(Estaleiros: 37º 48’ 54.49’’ N 25º 34’ 34.68’’ W)

(Porto e Armazéns de pescadores:37º 49’ 2.40’’ N 25º 34’ 55.56’’ W)

Página anterior:Ferramentas (enxós) e obra no estaleiro

de mestres António Melo e Paulino França, Vila Franca do Campo, Açores

(37º 42’ 52.31’’ N 25º 25’ 50.41’’ W)

Pag. Revista CCC:Layout 1 6/18/10 5:28 PM Page 27

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Associação Barcos do Norte28

rismo nem para carregar cargas, embora agente vá fazer um teste a isto a ver quanto éque carrega. Já sabemos mais ou menos mastemos de fazer um teste. MJR, Lanheses, Viana

do Castelo

Bloco expositivo 6Reconhecemos as práticas pela sua per-

manência e pelo modo como se interligam numcontexto de acção. Quando rompemos cadeiasde conhecimentos e de acções concertadas va-mos reduzindo as oportunidades de transmis-são de saber. Manter e criar oportunidades decontinuar a fazer, registar, comparar feitos e re-gistos e dar valor ao transmitido, é prolongar adiversidade cultural da humanidade. Para issoa nossa atenção a este assunto deve ser como ade um artesão à sua obra: respeitar o sabertransmitido e resolver com ele os desafios queela vai colocando.

Tudo em cima da jangada: Uma pessoa porano podia fazer umas duas ou três jangadas.Era só para esta gente. Fazíamos umas duasou três. Para a gente. Temos uma aqui. Te-mos outra lá no Burrinho: Outra… Uma emcada sítio. Pronto. Para não andar a mudaruma de um lado para o outro.

Eu cheguei a levar, daqui lá para o In-fante Dom Henrique, estava lá no Infante,que era à do meu cunhado, levava tudo emcima. A bicicleta, o avio, levava tudo. Ia da-qui de São Torpes para lá e levava a trouxatoda que fazia falta. Levava a bicicleta, le-vava as botas para me calçar, levava o tachopara fazer lá o caldo. Tudo em cima da jan-gada. EP, RP, São Torpes, Sines

Porque nasci aqui, aprendi o ofício debarqueira: Aprendi com a minha mãe. Estebarco fi-lo há três anos. Um senhor da fre-guesia de Vila Nova de Muía, concelho dePonte da Barca. É carpinteiro. O meu pai,derivado à idade que tem, já não tinha força.E eu então contratei o outro senhor para fazereste que é idêntico ao outro que acabou. Temestas pecinhas do outro barco. São peçasainda muito duras e eu vi, que realmente,ainda davam para eu aplicar neste. São aschumaceiras.

Foi feito no mesmo tipo de madeira doque os barcos anteriores. Até porque tenhoali a fotografia do outro. É madeira de pinho.Todo, todo. Eu tinha ali um senhor que tinhaa madeira serrada, que era para fazer ele umbarco, e depois vendeu-ma a mim.

Tenho o barco só mesmo para passearaqui ao fins-de-semana com os meus sobri-nhos quando vêm e a família. Todos aí a pas-sear. E se houver uma pessoa que me peçaque quer passar para o outro lado eu tam-bém, de boa vontade, também a paço.

Nesta passagem passava-se da freguesiade Touvedo, Ponte da Barca, para a freguesia

de São Jorge, Arcos de Valdevez. O caminhoda margem norte era daqueles caminhos anti-gos empedrados. Ia dar acima ao centro dafreguesia de S. Jorge. Depois, de lá seguiapara o resto da freguesia de S. Jorge. Depoisentão lá em cima é que havia a estrada princi-pal, que era a única estrada que havia, que iapara Garção, que é a última freguesia. Do ladode Ponte da Barca dava acesso a Touvedo e àestrada principal que ia para o Lindoso.

Passava aqui muito gente. Muita gente!Aqui nas festas – isso é uma coisa que às ve-zes até me choca –, nas festas de Santo Antó-nio, isto aqui era uma festa, porque vinhammuitas pessoas ver passar os animais nobarco porque achavam estranho. No talbarco grande que o meu pai tinha. E vinhamver os animais a passar porque era curiosoverem-nos a entrar, a sair. Às vezes os ani-mais caíam ao rio e as pessoas gostavam dever. E então vinham aqui muitas pessoas ver.Ajuntava-se aqui muita gente à volta. Vi-nham as concertinas a tocar. Rosalina do

Carmo Ribeiro da Silva, Touvedo, Ponte da Barca (Lo-

calização por GPS do lugar de Passagem da freguesia de

Touvedo, Ponte da Barca: Latitude: 41º 48’593’’ N; Lon-

gitude. 8º 22’ 193’’W.)

Barqueiro entre Mesão Frio e Resende:Fui barqueiro em Mesão Frio e Resende. Domeio do rio para cá é Mesão Frio, Vila Real.Do meio do rio para lá é Resende, Viseu.

Tínhamos que ter dois barcos porque en-quanto se compunha um ficava o outro a traba-lhar. Tínhamos que ter um para passageiros eoutro quando vinha o gado. Quando vinham,por exemplo, pipas de vinho e o gado namesma, o barco passava o gado e o carro coma pipa de vinho dentro do barco. E trazia pes-soal porque era próprio para isso, foi feitopara isso, um barco seguro que se aguentavanas cheias do rio.

Havia muito trânsito aqui. Aqui eramuito trânsito, porque havia uma estação decomboio que tinha um trânsito enormíssimo.Havia mais barqueiros, mas eram particula-res. Só se podiam passar a eles próprios. Nãopodiam passar mais ninguém.

Para barqueiros profissionais fazia-seuma arrematação em Resende. Depois divi-diam o dinheiro pela Câmara de Mesão Frioe Câmara de Resende.

Usávamos um barco Rabelo. O pequeno.Mas havia um que tinha a quase vinte me-tros. Só havia uma diferençazita no casco.Era só meter a espadela. A diferença eraessa. O mais, o tipo de barco era o mesmo, obarco pequeno, o barco maior. Como no trân-sito do rio havia o barco das pipas. Tambémhavia uns grandes e outros mais pequenos.

Eu filo-os novos. O barco que eu tenhoassim ali, na margem norte, deve ter uns ses-senta anos. Eu comprei-o, devia ter aí unstreze ou catorze anos. E depois não foi pre-

ciso ninguém compô-lo. Compunha-os eu.Os meus e os dos outros.

O meu pai já era barqueiro. Adérito Gue-des de Sá. Eu era criança quando o meu paificou viúvo. E então eu, é claro, tinha o meupai e eu ia para o pé dele. Lá dormíamos,rente ao rio, numa barraquinha. Pronto, eunão tinha mais ninguém em casa e ficavacom ele. Ficava com ele e andávamos lá, na-quela vida de barqueiro. Custódio Guedes de

Sá, Porto de Rei, Barqueiros, Mesão Frio

Bloco expositivo 7O mundo das relações entre a cultura

costeira e as embarcações não se resume àembarcação enquanto objecto construído.Abarca um sem número de actividades algu-mas em extinção, outras em florescimento.

A contracção económica afecta muito directamente as pescas e o abandono da acti-vidade regular tende a acabar com as embar-cações resistentes. O turismo exige barcosmaiores e mais seguros ou mais espectacularesou menos trabalhosos de manter. O museu di-ficilmente tem condições para albergar maisdo que um pequeno número de embarcações.Mas um barco, cada barco, pode ser um lugarde experiência e usufruto de saber.

Registo da barca de Rosalina do CarmoRibeiro da Silva:Nome local: barco pequeno.Data da construção: em 2005.Autor: carpinteiro não especializado em

construção naval da freguesia de VilaNova de Muía, concelho de Ponte daBarca.

Descrição Material: Madeira de pinho, na totalidadeForma: Embarcação de navegação fluvial, de

boca aberta, com proa, popa cortada esem quilha.

Medidas: Comprimento – 4.40m;Boca – 1.57m;Pontal – 0.60m;Largura da popa – 1.41m;Comprimento da bancada da proa – 0.77m;Largura da bancada da proa – 0.71m;Largura de remo a remo – 1.47m;Largura da bancada da popa – 0.29m;Largura do talabardão – 0.10m;Altura da forquilha do talabardão ao topo

– 0.23m;Altura da forquilha ao eixo do remo – 0.15m;Altura do encaixe do tolete ao talabardão

– 0.30m.Dimensões dos remos/pás:Comprimento – 2.25m;Comprimento do punho do remo à forqueta

– 0.66m;Largura da pá do remo – 0.13m.Roda de proa: roda de proa para vante. Proa: na zona da proa existe um banco.

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29Celebração da Cultura Costeira

Número de balizas: seis. Processo de armar as balizas: as balizas

foram colocadas após a construção dofundo e do “costado”.

Vãos das balizas: irregulares.Modo de construir uma baliza: as balizas

foram colocadas após a construção dofundo e do “costado”.

Formas de encavilhamento: foram usadospregos de ferro sem qualquer meio paraevitar a oxidação.

Popa: quadrada.Processo de revestimento interior ou ex-

terior do costado: o tabuado foi feitocom tábuas “corridas”, sobrepostas (ta-buado trincado simples). Em cada bordoexistem apenas duas tábuas.

Verdugo: existente.Banco da ré: a embarcação tinha uma ban-

cada de popa (recadem).Paneiros: existentes.Cores: cor da madeira de pinho, a cru. Impermeabilização: sem pinturas, orna-

mentos ou qualquer impermeabilizaçãoexterior e interior.

Calafetagem: apenas nas juntas das tábuascom tirinhas de serapilheira e breu.

Remos/pás: simples tábua afeiçoada no punho.

Forqueta: encaixa-se na borda e no fundodo barco.

Pormenores funcionais: tem uma sub-proaabaixo da linha de água para evitar queproteger a proa do choque.

Elemento simbólico representativo: con-sultar o site onde se poderá ver um filmeque pretende recriar historicamente apas-sagem de pessoas e bens, na fregue-sia de Touvedo. Glossário:Forquilha – forquetaPajeiro – parte lateral do barcoRecadem – bancada de popa

Ana Bettencourt e João Vila Chã Esteves, inventaria-

ção na freguesia de Touvedo (S. Lourenço), Ponte da Barca

Descrição da barca de passagem de Cus-tódio Guedes de Sá: Essas tábuas são empinheiro. E a tábua do fundo também é empinheiro. Porque aguenta mais tempo naágua. O carvalho é só por fora.

Pertence quatro corridas de cada bordodo barco: duas de pinheiro e duas em casta-nho ou em carvalho, que é as que estavamfora da água. Para fora de água se houvessecastanho era o ideal. O carvalho racha muito.O castanho dura mais. É o aço da madeira!Não há madeira que bata o castanho.

Depois, para tratamento, dávamos breu.Usava-se uma pintura para embelezar mais eaguentava mais a madeira. Depois aquilo eraenvernizado com breu. Tinha a estopa paracalafetar.

A estopa tinha um banho com qualqueróleo. Já se comprava a estopa assim. E aindacontinua na mesma.

Os pregos eram à medida, para se esco-lher o tamanho, a pregar em qualquer pau.Chamamos-lhe as dragas. Chamamos-lhe osverdugos. Aí já tinha que levar uns pregosmais fortes. Nos verdugos, nas cavernas. Nãotinham nenhum tratamento. Era ferro, ferropuro. Hoje já há pregos que não ganham fer-rugem, mas antigamente não havia.

A actividade de barqueiro era mais lu-crativa no verão. Vou explicar. Nas vindimas,nas podas e nas cerejas. Esta era o maiorforte, mas acabavam num instante. Era sem-pre um mês, mês e meio. Nas vindimas ospodadores vinham dalém para cá – que aquinão havia pessoal em condições –, vinhamdas serras para aqui. Hoje já vêm as camio-netas buscá-los à porta. Antigamente tinhamque descer da serra cá para baixo e passá-vamo-los na barca. A serra de Paus. Nóschamamos tudo da parte de além, margemsul, a serra. Vinham a quase de perto de VilaNova de Paiva, por cima de Paus, Bigorne.

A passagem acabou depois que começoua barragem. Quando a barragem encheu.Mas não é só isso. Os donos das quintas têmcarros. E a estação de comboio também fe-chou. CGS, Porto de Rei, Barqueiros, Mesão Frio

Participação na regata do moliceiro queestá serviço da Câmara Municipal daMurtosa: Porque também convém que eu váàs corridas com ele. À regata. Pintadinho earranjado. Porque estou sujeito a ganhar al-guma coisa. Quando vamos à corrida, ganha-mos uma medalha, ou ganhamos uma taça,ou conforme. E ganhamos o prémio. Paramim e para o colega. O colega que eu arran-jar. Porque quem leva o trabalho sou eu. Soueu que tenho de escoar aqui a água, quandosão noites de chuva.

A corrida aqui, no dia sete de Agosto, sãoduzentos euros que a gente ganha. É cempara cada um. Se for para o São Paio da Tor-reira, são duzentos e cinquenta, salvo erro.Agora ali aquele, para as festas da cidade deAveiro, é que dá mais qualquer coisa.

Mas, este barco já não está preparadopara correr como os outros. As velas são pe-quenas. E, além disso, está ali cortado à ré,porque é mais fácil para eu fazer a manobra.Porque se for a um passeio de uma escola, deum rancho folclórico, ou de gente que vemde fora. José Caneira, Murtosa

A cesta do mar: A gente chamava a istouma cesta do mar. Esta era minha. Mandeifazer. É de verga e madeira. Foi feita em Pe-niche. Nos anos setenta e nove, oitenta, ia lámandar fazer redes. A Ribamar. E nessazona eles faziam cestas de verga. Esta cestadeve ser de oitenta e dois, por aí, talvez. Masjá tinha utilizado mais. Porque as cestas do

1. Transporte da jangada de São Torpes(37º 53’ 56.42’’ N 8º 47’ 52.96’’ W)

2. Rosalina do Carmo Ribeiro da Silva, barqueira na sua barca, Porto de Rei,

São João da Fontoura, Mesão Frio(41° 6’22.67” N 7°54’58.88” W)

(A posição do ancoradouro:41° 7’7.95” N 7°54’43.01” W)

3. Barca de passagem de Custódio Guedes de Sá,Porto de Rei, Barqueiros, Mesão Frio

(41° 8’2.68” N 7°54’1.82” W)

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mar estragam-se muito. Estragavam-se mui -to. Se fosse bem estimada, havia quem aspintasse para elas aguentarem mais. Se fos-sem do Benfica pintavam de vermelho. Sefossem do Sporting pintavam de verde. Sefossem do Belenenses pintavam de azul.

Isto mais ou menos custava aí à volta de,talvez trezentos escudos. Trezentos a quatro-centos escudos.

Andei com ela no mar muitos anos. Mui-tos, como quem diz, talvez seis, sete anos.Deixei de usar. Vamos lá, a vida do mar dei-xou de ser aquilo que era. Antigamente agente saía para o mar às três da manhã e che-gávamos às dez da noite para a lota. Agoranão. Ontem, quando era três e meia já tinhaacabado a lota. A gente chegava ali às oitohoras, ou às nove, ou às dez. A lota duravaaté à meia-noite, uma, duas, três, quatro ho-ras da manhã. Se chegasse às cinco da tarde,durava das cinco, seis, sete, oito, nove, dez,até às dez horas. Ou até à meia-noite. A lotaestava sempre aberta porque havia peixe.Sempre a chegar para vender.

Hoje é que não há peixe. A gente, as horasde mar já são tão poucas, que nem compensalevar uma cesta para o mar. Levamos uma gar-rafa de vinho de litro, levamos uma marmitacheia de bacalhau cozido ou de peixe cozido,ou uma coisa qualquer, ou de peixe frito, e ou-tras coisas mais, metade de um pão, e era parao dia todo. Fruta. Comia-se mesmo frio.

Eu, há uma série de anos a esta parte,vou para o mar, levo um saquinho de plás-tico, com uma peça de fruta, um pêro ou doislá dentro, e pronto, ou vai num balde dessespretos, esse saquinho de plástico vai ali den-tro, e acabou. FC, Sines

Aprestos auxiliares de uma embarcação:sonda, GPS, bóia sinalizador salva-vi-das, guincho, óculos de protecção: Temmotor do guincho, tem GPS, tem sonda, etem motor de popa.

Meti o GPS aí uns três anos depois decomprar o barco. Os meus apontamentos GPSsão, chegar ao mar da pesca e anotar, pela nu-meração, num papel, a latitude e a longitude.A sonda comprei-a logo. Esta sonda custou--me trezentos e tal contos. O motor do guinchocomprei-o há quinze anos. Quando comprei obarco. O motor do guincho, e o motor fora deborda, têm a mesma idade que o barco. O GPSé que é mais novo. A sonda, instalação eléc-trica e isso tudo, é tudo da mesma idade.

Isto é uma bóia de salva-vidas. A bóiaquando cai na água, fica acesa. Estás a ver.Está assim. As pilhas estão aqui. A parte pe-sada é esta. Assim, está apagada. Eu, porexemplo, tenho um naufrágio. Pego na bóia,que tenho aqui, jogo-me ao mar e levo isto.Levo isto. Isto vai para a água. Isto flutua. Efica assim. Fica aceso como está. Quando te-

nho aqui a bordo, fica assim que é para nãogastar as pilhas.

Tenho também aqui um par de óculos desoldar. Isto é para quando vêm as medusasnas redes, para proteger os olhos. Isso é ter-rível. Já tive vários acidentes. Usamos sem-pre aqueles pingos, aí das nossas farmácias,que é anestesia, para pôr. Governava um bo-cadinho a dor, mas um gajo tinha de ir aohospital. FC, Sines

Lição a bordo de um moliceiro: Na pescado bacalhau, a vela, decidíamos conformeaquela que nós gostávamos. Eu gostei sempreda latina, e foi sempre essa com que andei.Outros botavam aquela vela quadrangular deespicha, e outros botavam outra vela, que seusava nos barquitos do Algarve. Escolhíamosaquela com que estávamos mais habituados aandar. Cada um habituava-se àquilo. Aquelavela a que se habituava. Era a vela com queandava. Pelo menos, aqui para o Norte, eraquase sempre a vela latina. Póvoa de Varzim,Vila do Conde, Vila Praia de Âncora, Viana,Castelo do Neiva, era sempre com vela latina.Para o Sul é que começavam a fazer outraqualidade de velas.

A gente já tinha mais ou menos as medi-das. Isto aqui é um metro (estica um braço,levando a mão do outro ao meio do lábio).Primeiro, a nossa braça é a nossa altura. Voudar-lhe um fio. Primeiro, a nossa braça é anossa altura. Em segundo lugar, aqui desde apontinha do nariz ao chão tenho um metro.Não é em toda a gente. Quem tem os braçosmais compridos, é mais alto. Para aqui é ummetro. E a minha braça é totalmente a minhaaltura. E a de toda a gente. E porquê? Eu voumostrar-lhe aqui um fiozinho. [Pega num fioe exemplifica]. JC, Murtosa

Barcos de transporte entre ilhas: Era oNossa Senhora da Guia, o Santo António,eles chegavam a descarregar ai nesse porto.

Essas embarcações eram feitas pelo se-nhor José da Costa. Morava na Almagreira. OMariense também fazia. Faziam esses bate-lões grandes para descarregar os navios. Fa-zia também umas lanchinhas de pesca.

Para a faina do bonito, em 1960 – qual-quer um ia ao bonito nesse tempo, era umapesca feita com canoas – apanhava-se a isca.O chicharro andava aos montes aí. Apa-nhava-se com rede de borda. Muitos tinhamuma tina, que enchiam de água para mantero peixe vivo.

Já havia lanchinhas com motor nessetempo. Não eram motores de engata, desen-gata. Era sempre pá frente. Naquele tempoapanhava-se muito peixe.

A vela era só para ir e para vir para casa.A pesca era sempre de remos. José Manuel

Massaroco, São Miguel / Terceira, Açores

Associação Barcos do Norte – uma de-manda para a preservação do conheci-mento: Fundada em 2002 em Viana doCastelo a Associação Barcos do Norte tempor objectivos a Preservação, a Defesa e oEstudo do Património Marítimo.

Cada comunidade humana gerou a suaprópria arquitectura dos lugares ribeirinhos,organizados entre a igreja paroquial e aborda de água.

A arquitectura dos sítios, os modos devestir, a gastronomia, os ritos do quotidiano,a arquitectura e o mobiliário das suas casas,as suas tecnologias com as ferramentas e al-faias, os seus barcos e as suas artes de pesca,a sua religiosidade e fé, os ritos do namoro,casamento e luto, a forma de transmissão deconhecimentos pela oralidade e pela experi-mentação, em resumo, a forma de pensar, defazer, usar e sentir de cada comunidade, sejapiscatória, marinheira ou agro-piscatória,dão ao território ribeirinho, fluvial ou atlân-tico, uma autenticidade genuína e única.

No norte de Portugal, entre o rio Douro eMinho, num território com pouco mais de80Km de costa, é ainda possível seguir o per-curso das antigas comunidades humanas quefizeram da água, afinal o seu modo de vida,trabalhando como embarcadiços, moços debordo, marinheiros, pilotos, pescadores,construtores navais, calafates, pintores, sali-neiros, sargaceiros, vendedores de peixe, re-deiros, cesteiros, artesãos, peixeiras, varinas,rematadeiras, rendilheiras, comerciantes evendedores de mercadorias várias que oramentram num porto ora sobem ou descem umrio, a bordo de embarcações cuja tipologianaval se perde nos tempos da nossa próprianacionalidade.

Todos eles, afinal, homens e mulheresque cimentaram o nosso passado e construí-ram com as suas tradições ao longo da histó-ria um legado único: a nossa identidadecomo povo. É em busca desse legado que de-manda a Barcos do Norte.

30 Associação Barcos do Norte

Passagem no Rio Lima. Actividade promovida pela Associação Barcos

do Norte (41°43’55.71” N 8°40’38.29” W)

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Celebração da Cultura Costeira 31

Problemática: Reflectir sobre progresso e de-senvolvimento, indústria e pesca, poluições eecossistema sustentável.

Território: Limites do município de Sines e ex-tensão costeira até à Lagoa de Santo André esuas margens.

Herança cultural activada: Comércio tradicio-nal, pesca e artes de pesca, carpinteiros na-vais, construção naval, usos de materiaistradicionais na construção, modos de fazer eprocedimentos tradicionais, transformaçõesna área urbana e na paisagem, indústria con-serveira, gastronomia.

Inventariantes: António Campos, FranciscoChaínho, Luísa Bruno, Rui Santos; assistirama alguns trabalhos António Correia, CarlosEspadinha, Sandra Patrício

Exercícios realizados: Marcações GPS, entre-vistas, trabalho em grupo e individual. Cola-boração na organização, recolha de peças edocumentos de arquivo e montagem da expo-sição “Pescas: a natureza desafiada”

A Câmara Municipal de Sines ofereceu àpartilha dos parceiros deste projecto o desafiode reflectir acerca dos obstáculos que o mu-nicípio e as populações têm defrontado e su-perado, até agora, através de consensos eprotocolos com o Gabinete da Área de Sines ea investigação. Há em Sines claramente umprojecto industrial que se impôs sem recuo ehá também, do ponto de vista dos seus habi-tantes, alterações ambientais que decorremdesta situação, reflexo de uma conjunturamuito mais complexa, que no século XXI nãose pode ignorar. Que podemos construir semfazer tábua rasa, sem estigmatizar o passado?

Bloco expositivo 1Na costa portuguesa há muitas povoações

abertas para o mar que no passado se fecha-ram e permitiram poucas comunicações coma terra. Este é o caso de Sines, cujas casascaiadas na vertente da arriba sempre chama-ram a atenção dos navegantes, que do exte-rior a costeavam, transportando mercadoriase víveres, correio e pessoas. Esta imagem quea literatura foi fixando (artigos de jornais epequenas memórias) tem ainda eco nos habi-tantes que recordam o que já não pode servisto, por estar sob o construído. Onde a terranão está construída subsiste ainda o gostopelo cultivo, horta ou jardim, pela manuten-ção de formas simples e utilização de mate-riais naturais, como é o caso da cana. Fomostambém em busca de sítios a que só o si-neense dá importância, nomes de pedras, decantos de praias, lugares de ancoradouros, aaberta, ou ligação da Lagoa ao mar, que noano de 2010 se realizou no dia 28 de Março.

Escolher as canas, fazer a jangada: Aquié que é o vidro. Tem logo lustro e a cana estácriada. Tendo este vidro como está aqui. Asoutras não têm este vidro, este coiso verde,não está criada a cana. Só começa a espelharquando tem o vidro. Daqui morre. Daquiseca. Já não cresce mais. Já não rebentamais. Dura um ano só. O máximo um ano emeio. Ao fim de um ano espiga, como estãoagora estes espigos todos verdes, depois mor-rem. Os espigos morrem e a cana morre. A mãe morre também. Primeiro morrem osfilhos. Depois morre a mãe.

Se for ali mais perto do mar não cria tãobom vidro como estando aqui abrigada. A ma-resia do mar queima isto. A cana melhor é aque está abrigada do mar.

Para canas de pesca, há alturas para apa-nhar canas. No escuro de Janeiro. Para apa-nhar uma cana vidrada. No fim do mês deJaneiro, mais ou menos. Depende das luas. É na Lua Nova. Todo o mês tem escuro. Maseste é que dá, porque a cana em Janeiro nãotem vício. Está a cana só vidrada. E de Janeiroem diante já começa a tomar aquelas pernadas,aquelas folhas. Já a cana tem aquela casquinha.E ao apanhar a cana, ela murcha depois. E as-sim neste escuro a cana não murcha.

A cana que tem vício é a cana verde. Temaquele líquido, aquela aguadilha. Eugénio

Presas e Ramiro Presas, S. Torpes

O Mar da Benvinda: Nós estamos aqui ondeera o canto enorme onde o mar chegava. O marchegava a esta zona. Era bastante fundo, e ha-via um viveiro de lagostas que já está aterrado.E a gente largava as redes mesmo na escarpa eao olhar para cima víamos o viveiro lá em cima.Isto foi aterrado, tudo aterrado. Começaram aaterrar de lá para cá. Onde está isto tudo, istoera mar. O mar batia de encontro à parede doForte. Aqui fazia este canto, apanhava a re-vessa da Perceveira, que mesmo assim guar-dava muito mar. A Perceveira guardava muitomar aqui à gente. Não tinha praia. Era escarpa.Era o mar a bater contra a rocha.

Estamos aqui nesta enseada que era enor-míssima e funda, muito funda mesmo. Tantoque é aqui que eles vão aproveitar a profundi-dade para fazer o molhe. Por causa do termi-nal petrolífero. E a parte funda, mesmo funda,era esta, que tinha uma profundidade enor-míssima, mesmo até à escarpa. Isto era muitoalto. Isto foi tudo mexido.

Este canto era bom. Tinha muita lagosta.Isto era uma bacia enorme, que é onde elespartem com o molhe para aproveitar estafundura, esta enseada. Este canto aqui eramuito fértil em lagosta.

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Para lá da ponte um bocado, está debaixoda ponte, era o Cu da Maria Palma, que agente passava por terra e por fora. O Cu daMaria Palma, que é ali frente ao Forte maisou menos. É um bocadinho mais abaixo doForte. Era uma pedra muito lisa.

Aqui é o Mar da Benvinda. Porque todoeste canto era mar. Todo este canto que estáaqui, onde estão estes tanques, isto era mar.Onde estão estes edifícios todos, isto era mar.Onde está a estrada também. Francisco Chaínho,

Lagoa de Santo André

O Cabo de Sines e o Ninho da Cegonha:Isto era o Cabo. “Isto tinha aqui uma Rosa-dos-ventos. Estava aí no cimento. E isso foidevassado. Estás virado a sul, estás virado anorte. Aqui estás a oeste. Estás a caminhodos Açores. E aqui é a leste. Isto rodava como Sol. Eles tinham isto mecanizado e ia ro-dando. Até com os ventos, para dizer se ovento estava noroeste, se estava sudoeste.

O mar aqui no Cabo é o que tu vês. Isto nãofoi mexido. É igual como está. Embora nãoviesse com grande intensidade porque tem es-tes marrachos todos pela frente. Eu cheguei avir aqui ao Pião do Chico Chapa – é aquelepião onde aquele moço está lá, mas não é o queestá à vista, é o que está já submerso, porque amaré está cheia, só se vê com a maré bem des-cascada – apanhar percebes. Mas vínhamos debarco. Trazíamos a chata, fundeávamos o barcoe vínhamos a remos e saltávamos ali em cima epronto apanhávamos ali.

A Pombeira é aquela pedra enorme queestá além, no primeiro enrocamento antes dosdolos. A gente passava por terra dela, por nor-deste, ou por fora. Aqui, onde está a estrada,havia a pedra alta que era o Ninho da Cegonha.Onde uma cegonha tinha ali o ninho, numa pe-dra que foi devassada. O molhe ficou por cima.Até apareceu no Carnaval, no Carnaval se-guinte, quando eles derrubaram aquilo, a pedracom o ninho da cegonha lá em cima.

A Pedra Nau é aquela ali. Aquela é aPercebeira. Tem aquela pedra que está porfora, que é o Pião Leste. O Pião Oeste está aoeste da Percebeira. O outro que a gente vêpara cá é os Piões Norte. Depois, onde a Per-cebeira baixa logo, onde ela morre, é a PontaGorda da Percebeira. FC, Lagoa de Santo André

A aberta na Lagoa de Santo André: A aber-tura era a 15 de Março. Mas começava-se atrabalhar nela antes de 15 de Março, para a

15 ou 16 de Março pô-la a correr. O pessoalera contratado entre os trabalhadores das ter-ras de arroz. Porque aí os mandatários da la-goa não tinham qualquer palavra a dizer. Sótinham uma coisa: era proteger a lagoa.

Quando a lagoa corria com uma certaforça – chamava-se quando dava pancada –ouvia-se o barulho a quilómetros. O barulhodela metia medo.

Essa força, que a lagoa tinha, a força daágua era tanta que cortava uns metros atrás,e esbarrandava, e ia para o mar. Era assimque ela fazia essa abertura enorme. Eu co-nhecia a aberta aqui onde estamos. E con-soante as águas corriam, ou para Norte oupara Sul, ela encostava-se a um lado. Está aver, o mar a correr para Sul fazia-a encostarpara Sul. Se a água vem para Norte, a abertarasgava para Norte. FC, Lagoa de Santo André

Bloco expositivo 2As saídas para marcação de pontos reali-

zaram-se em pequenos grupos. Os elementosda equipa CCC incitaram-se mutuamentepara a descoberta dos lugares de referênciacruzada entre mar e terra, na vila. Os mais ve-lhos mostraram aos mais novos onde ficava omercado, a loja e mercearia e mesmo antigosrestaurantes ou a ex-alfandega, hoje fachadade azulejo. E os poucos objectos desse quoti-diano desaparecido dão-se a ver na exposiçãopatente ao público no castelo, que então sepreparava. Percorreram também a beira daágua e marcaram locais – hoje desaparecidos– de especial significado no quotidiano dos li-gados ao mar: os banhos quentes, a bica daágua, o armazém das redes e a ‘casa das espa-nholas’, redeiras sazonais. Também as pedras,ou o lugar das pedras que marcavam enfia-mentos foram enumerados.

A Ribeira e a Praia: O que diferenciava a Ri-beira e a Praia? As armações não tinham campopara estender artes de armações na Calheta. Asarmações tinham que ter as barcas encalhadasna praia Vasco da Gama. Tinham que estenderas redes em cima daquelas pedras ao alto, deSão Rafael para baixo. Com as redes de ema-lhar, sardinheiras, branqueiras, era a mesmacoisa. Quando se dava tinta, tinha que ser ali.

Aqui na Ribeira trabalhavam os pesca-dores com covos, aparelho, redes também.Mas a maior quantidade de pescadores erada Ribeira.

Depois havia outras diferenças. Muitagente veio da Costa. Eu vim da Costa deSanto André. Esses normalmente vinhampara a Praia. Fundeavam aqui na baía. Enca-lhava-se as chatas na praia, por na costa sera mesma coisa.

Dos edifícios que existiam na Praia só melembro daquele onde está hoje a casa do pa-dre. Que era um armazém, um armazémgrande das armações. Mas já não funcionavacomo armazém de armações. Funcionava comtrês ou quatro indivíduos de pesca de redes,que remendavam e faziam redes lá dentro.Ainda remendei lá dentro daquele armazém.

E havia, ao lado desse armazém, haviauma casa de primeiro andar, onde moravamalgumas pessoas. O Inácio Carroceiro. Um ra-paz que a gente chamava Jaime Babão. E ha-via mais ao lado outra casa. Era da tia Ricarda,que era do tio António João. O tio António Joãojá não conheci. A velhota ainda conheci.

Isto aqui também era um armazém depescadores. Isto é um tunelzinho, faz um tú-nel. Eu conheci aqui três ou quatro pessoasque tinham a chave disto. Tinha uma se-nhora que era a tia Sofia. Morava ali ao lado,e alugava toldos aqui. Tinha uma chavedeste armazém. Ela guardava aqui os toldos.O neto e o filho também trabalhavam aqui aremendar rede. Trabalhava um senhor queera o Salgado, que foi empregado aí da lota.E o Jacinto José também. Isto é pequeno,mas como as embarcações tinham poucarede, dava para eles todos. Porque se remen-dava aqui na rua. Jogámos à bola aqui. Istoera um pelado que era uma maravilha.

A tia Sofia morava em cima com a porta vi-rada para ali. Também vendia renda. A genteontem marcou lá, na Costa de Santo André, acasa que foi desta senhora e do marido, que erao tio Zé Padeiro, o avô da mulher do Valentim,que tem a taberna. Esta era a avó. FC, Lagoa de

Santo André

Moradores do Bairro Azul: Morou aquimuita gente. Isto era o Bairro Azul. Começa-ram a dizer que era o Bairro Azul, e ficou. NoBairro Azul morava, à entrada, logo no ladodireito o tio Raul Calceteiro, que era o pai damulher do Durval. Era a Fernanda, a Regina,a Coralina, o António Miguel e a Ti Deolinda.

Depois, no outro lado, moravam os tiosCarraus. Acho que já morreram todos. E de-pois, a seguir, lá na outra esquina, morava eu.

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33Celebração da Cultura Costeira

Aqui morava o António Latas. Lá aofundo morava o Carlos Manafaia. Moravanão. Tinha lá um armazém. E depois maispara cá morava o Custódio Padeiro, que era oPai da Maria Custódia.

A malta que morava aqui era tudo maltado mar. E na praia vinha para cá morar maltadali da Costa de Santo André. Vinham emAbril, Maio, começavam a trabalhar ali atéSetembro. Depois mais tarde é que começa-ram a ficar cá.

Ficavam quase todos lá dentro. O ChicoFerreira vinha da Costa. O António Latastambém vinha da Costa. O Chico Pau d’Água.Quando eu vim para cá morar moravam to-dos ali.” Manuel Ablum, Sines

Moradores e cenários na Praia e na Ribeira:Os Banhos Quentes era uma casa muito bonita.Mobilada de camas para os doentes, quando vi-nham tomar os banhos quentes. E vinha muitagente tomar banhos quentes. E era água sal-gada. Tinha uns tubos grandes debaixo da areiaque iam ligar aos Banhos Quentes.

Tinham à porta, assim dentro de casa,mas à porta, tinham um aparelho muito lindoque tocava. O nome daquilo não sei, não melembra, mas o mar levou isso tudo. Fez umvendaval muito grande, levou as casas todas,levou a minha e a das outras pessoas. Pordentro eram banheiras de pedra, forradas deazulejo, mas era banheirazinhas de quartospequenos, para as pessoas tomarem banhos.Cada quarto tinha uma banheira, tinha umastorneiras, vinha água salgada e arrefecia jun-tamente com a doce.

Fez um vendaval tão grande, tão grande,que levou os Banhos Quentes, levou tudoquanto havia ali na praia. Levou a minhacasa, levou a máquina, as malas, arcas – quenão haviam malas de roupa, eram as arcasdas mesas – que a minha mãe tinha dentrode casa, máquinas de costura, levou tudo. Agente estava lá em cima ao pé do hospital. Agente fugiu assim que vimos a primeira ondagrande. Fugimos, mesmo os homens, leva-ram a gente lá para cima, para o pé do hospi-tal, para aquele muro. Daí é que a gente via.Mesmo assim às vezes chegava lá o mar. Foidia 17 de Fevereiro, foi no dia dos meusanos. Já eu estava casada, já eu morava lá narua onde é que havia o forno, que a gente iaao pão, no Largo da Boavista, onde está asFinanças.” Maria Delmira Ferreira, Sines.

Os cartuchos no comércio tradicional:A gente é que fazia os cartuchos, os cartu-chinhos de papel pardo.

Eu recordo-me de vender muita vez, doistostões de café, três tostões de açúcar, centoe vinte e cinco gramas de arroz, que era trin-que e não era arroz como é agora, que é umavaidade, e meio decilitro de azeite e assimsucessivamente. Os mais pobres, é que en-

travam nessa zona dessas coisas. Que os quetinham, os pedreiros, esses compravam porexemplo meio quilo ou duzentas cinquentaou um quilo de produto. Os que compravamao quilo eram muito raros. Era meio litro deazeite, meio litro de petróleo. António Costa

Beja, Sines

As medidas no comércio tradicional: Me-dia-se com as medidas. Haviam as medidaspróprias, que eram aferidas, que o aferidorera o João Barbosa. Aferidor da Câmara. E,todos os anos, as medidas eram aferidas. Tí-nhamos que ter um conjunto de medidas devidro, um conjunto de medidas de madeira apartir dos dez litros até aos dez decilitros:dez litros, cinco, dois litros, litro, meio litro,um oitavo, um decilitro e meio decilitro, emmadeira, e a rasoura. Tudo isso era aferido.Tudo isso levava lá a martelada com as letrasdo ano a que isso dizia respeito. E havia asmedidas de lata, de folha, para o azeite. Ehavia as medidas de folha para o vinho, e as-sim sucessivamente. Havia de folha, que eraa folha-de-flandres. Havia as de vidro, quepouca utilidade tinham, era só um pró-forma,que isso não tinham utilidade. E eram as me-didas de madeira. As de folha-de-flandreseram para os líquidos e as de madeira para ofeijão, o grão, essas coisas. E havia a balançaque era para os artigos pesados”. ACB, Sines

O Rio do Ouro: “Isto é o Rio do Ouro. Istotem aqui um emissário. Foi feito para drenarresíduos de afluência aqui da APS, quecomo não têm sistema de tratamento, vêmpara aqui derrames, que a água parecechumbo. Esteve a céu aberto alguns anos.Aquela pedra é a Guião. Depois é Alagada.Esta onde o mar está agora a rebentar emcima, que está a desaparecer, é a Alagada deFora. E a outra é a Alagada de Terra. FC, Lagoa

de Santo André

A Poça da Maria Claudina: É a Poça daMaria Claudina. Isto aqui era tudo cavado,onde lavavam roupa. Olha lá água a correraqui que é uma maravilha. Olha lá para estaspoças de água. Vem lá de cima. Aguínhadoce. Haviam várias poças onde lavavam aroupa. Vinham tomar banho aqui à poça daMaria Claudina. Onde está este juncal erauma poça enorme. Era um tanque onde seteou oito mulheres podiam lavar aqui. Jorraágua doce aqui por todo o lado. A vegetação,vê lá se encontras aqui um agrião. Nem um!Isto, são plantas que se dão com o salgadiço.Que apanham o sal do mar. Como é que istoresiste aqui! FC, Lagoa de Santo André

Bloco expositivo 3Viver à beira da água é conviver com uma

multiplicidade de actividades que se vão so-brepondo, umas crescendo, outras desapare-

1. Carregadores de peixe do Porto de Sines com chapéus de metal

(37°57’8.37” N 8°52’24.59” W)(Arquivo Câmara Municipal de Sines)

2. Rui Santos marcando pontos de interesse(Antiga Delegação da Alfândega:

37°57’8.17” N 8°52’27.88” W)

Página anterior:1. Porque todo este canto era mar, Francisco Chaínho

inventariando onde havia muito mar:Cu da Maria Palma e Mar da Benvinda

(37°57’22.43” N 8°53’8.62” W)2. Banhos quentes

(37°57’15.15” N 8°51’56.85” W)(Arquivo Câmara Municipal de Sines)

3. António Beja fotografado por detrás do balcão, no Museu de Sines, para onde foi tansladada

parte da mercearia de que foi proprietário(37°57’19.89” N 8°51’59.61” W)

(Arquivo Câmara Municipal de Sines)

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cendo. Algumas têm existência centenar,mesmo que se tenha alterado a forma dosseus lugares ou o modo de se praticar. Outrasvão aparecendo de acordo com as necessida-des e marcam uma época em que o transportede pessoas e mercadorias não era fácil.Quando este se vulgariza a beira mar acolheas grandes indústrias alimentares ligadas aomar, por exemplo (entre outras), a conserva-ção pelo frio.

Na natureza também descobrimos os si-nais do que implica construir e viver em ci-dades junto ao mar…

As escadas da bica, o salva-vidas e o tem-poral de 8 de Maio de 1970: Estas escadassó davam acesso às bicas e ao salva-vidas.Para lá era mar. O mar batia aqui nesta, nessaparede. Batia nessa parede aí. Não havia maisacesso. Só havia acesso ao salva-vidas e às bi-cas, para quem vinha à água ali. Por este ca-minho das bicas é que era o acesso aosalva-vidas. O salva vidas muitas vezes saía sópara estar fundeado na baía. Chegava a estarsemanas, quando estava tempo bom, fundeadona baía. Saía quando estava tempo mau parafazer algum salvamento – que chegou a fazer –e saía daqui com maresia. O mar arrebentado eele a sair daqui. FC, Lagoa de Santo André

Pedras Amarelas: Aquilo ali são as Amare-las. Não foi este esgoto que dizimou a pescacosteira. Doméstico. Não foi este que deucabo da nossa costa, o outro é que deu. Estenão, este sempre existiu. Está bem que a po-pulação cresce. Tinha dois ou três mil habi-tantes e agora tem, eu não sei quantos é quetem Sines, dez ou doze mil. E está anulado.Isto já está a ser levado para a ETAR. FC, La-

goa de Santo André

Lavar roupa no Rio do Ouro: Lembro-mede ir lavar a roupa ao Rio do Ouro. Agora jánão existe. Agora está tudo mudado. Eramuns nascentes de água com uma força, era aágua a entrar por um lado e a sair por outro ecom água muito limpinha. Eu sei que o rio fi-cava em frente daquela rocha onde é queapanhavam muitos percebes. A Percebeira.A gente lavava a roupa, estendia, púnhamos aroupa à cora. A gente estendia a roupa naareia, que secava num instante, depois do-brávamos. Trazíamos a roupa já dobradinha,parecia ela que estava passada a ferro. Haviaum rio, que só elas – a minha tia Irene, aClaudina, a Paixão e a Maria Jacinta – lá la-vavam. Era o rio da Maria Claudina. Se elaschegavam lá e já estava alguém a lavar, des-pejavam o rio. Tinham umas cabanas, ondefaziam café e onde comiam e ninguém seaproximava das cabanas. Eu também chegueia ir lá beber café, porque a minha tia Irenesempre gostou muito de mim e convidava-mepara ir beber café. Só que o rio onde eu la-

vava ficava cá na ponta, era o Rio do Ouro. Aminha tia via-me andar às camarinhas, eugostava muito de camarinhas, e ela chamavapor mim para ir beber café. Havia muitas ca-marinhas, agora já não há nada disso.

“Tínhamos era que lavar de joelhos. A rou -pa ficava tão bonita. Quando era roupa que lar-gava tinta a gente ia passar na água do mar.Descíamos lá abaixo e íamos passar por águasalgada e ficava muito boa. Custódia Maria

Patrício Rocha, Sines

Camarinhas: – A camarinha (Corema al-bum) ou camarinheira é um arbusto da famí-lia das Empetraceae; é endémico em Portugal.Frequente em sistemas dunares ou em matasbaixas dos pinheirais. Produz um fruto co-mestível e a sua rama liberta um cheiro se-melhante ao mel.

Leilão, carregamento e transporte do peixe:Ia-se à Ribeira buscar o peixe. O compradorera o próprio gerente da fábrica. Na altura. Ialá à Ribeira, comprava, pronto. O peixe eraposto à lota. O homem ia fazendo a contagemdecrescente. Começava por cima e vai bai-xando, e depois quando chegasse ao preçoque a pessoa via, estão ali e davam o chui. Apessoa que ele via que tinha dado primeiro,era a pessoa que ficava com o peixe. Depoisele chamava a gente. Telefonava para a fá-brica para chamar a gente. Tínhamos umchauffer. Íamos lá buscar o peixe. Mas na al-tura que eu entrei o peixe ainda era carre-gado com uma carroça. A fábrica tinha umacarroça e duas mulas para esse fim, e paraoutros trabalhos mais. Tinha uma camionetamuito velha, mas às vezes ficava parada nocaminho da Ribeira. O radiador deitavaágua. Os animais eram melhor. Puxavam me-lhor. De caminho mais ou menos meia horaou coisa assim. O trajecto está ali todo. A fá-brica era logo ali por detrás. Os carregadorescarregavam o peixe na carroça. Tinham unschapéus, metálicos, que carregavam o peixe.E nós estávamos em cima da carroça, tiráva-mos a caixa de cima e púnhamos as caixasempilhadas. Havia os carregadores própriosaqui da lota. Quando se descarregava o peixeda carroça, ou da camioneta, mesmo velhi-nha ela ia dando, cada um pegava numacaixa. Tínhamos uns chapéus desses antigos,pintados, para se tornarem duros. Desseschapéus como usam os lavradores, mas sóque se pintava, então o chapéu ficava duro.Ficavam duros, que era para depois a caixa,quando assentasse em cima desse chapéu –estavam duas pessoas no carro que a metiamem cima da cabeça dessa pessoa – como eraduro não a deixava mexer. Quando a gentechegávamos lá, despejávamos em cima deumas mesas que havia. Umas mesas duplas,que levavam mulheres deste lado e deste, eao meio tinha uma travessazinha, onde des-carregava o peixe. E depois elas iam desca-

beçar o peixe. Francisco José Conceição Correia,

Sines

Produção de buano (guano): A sardinha ra-ramente se estragava. Agora a cavala… A ca-vala, a gente não ia na corrida. Porque a cavalaera cozida hoje e trabalhada amanhã, para en-xugar. Se não houvesse sardinha íamos para acavala e aquilo seguia. Se houvesse sardinha, acavala tinha espera. Esperava, mas quando agente ia trabalhar nela já tinha gadelha, bolor.Outras tinham já bicho da vareja. Outras vezeseram as ratazanas. Ia para o buano, porque nãoperdiam nada. O buano era espremido e aqueleóleo, que saía do peixe, corria por um cano e iapara dentro de uma fossa que estava aí a meiometro de água. E os homens depois tiravam epunham em bidões. Cada bidão era uma quan-tia de dinheiro que ia para a fábrica de tintas ede sabão. E o buano era seco, estendido numaeira. Andava um homem sempre dando voltas,sempre dando voltas, que ele ficava sequinhoque até se partia, sequinho! FJCC, Sines

Tempero da conserva: O Mestre tinhaumas panelas e fazia o tempero à vontadedele. Os temperos e a quantidade de azeiteou óleo e tomate eram tratados por ele. E naslatas éramos nós, as mulheres. Íamos sempretrês mulheres. Quando já tínhamos latas como fundo feito é que iam outras ajudar.

A ova era muito trabalhosa. Primeiro ti-nham de ser muito bem lavadas e tiradas aque-las peles. Limpar tudo e colocá-las em cima deuns panos para enxugar. Entretanto estava umamulher a descascar cebolas médias, que secompravam sempre naquela medida. Descas-cavam-se também as cenouras. Arranjava-seuns grandes ramos de salsa e lavava-se tudomuito bem. Depois estendia-se tudo sobre unspanos para não ficar com água. Tínhamos tam-bém umas latas com louro já cortado. Depoiscomeçávamos a colocar no fundo da lata arodela de cebola, a rodela de cenoura, as fo-lhas de salsa, um piripiri, um cravinho cabe-cinha. De seguida começávamos a compor asovas dentro da lata. Íamos pondo, pondo.

O Mestre trazia então o tempero que lhequeria pôr para se despejar na lata até estarcomposta. O fundo da lata é depois o que seabre. Por isso é que vai sempre o peixe maisbonito para o fundo. Quando se abria as latasde ova o que se via logo era a salsa a cebola e acenoura, tudo bonito. Ângela Corta Rabos, Sines.

Dias e trabalhos na fábrica: Havia técnicapara meter as sardinhas na lata. Havia o com-primento da lata, e a sardinha, se fosse grandedemais, tinham de cortar. Se fosse pequenademais, já não ia para essa lata. Tentavam es-colher a sardinha a compor, mais ou menos,com a lata, sem a sardinha ficar a bandear.

O peixe escamudo tinha de ser um peixetratado especificamente porque era maiscaro. Esse peixe ia sempre em azeite, era

34 Câmara Municipal de Sines

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1. Ângela Corta Rabos2. e 3. Interiores de uma fábrica de conservas

(Arquivo Municipal da Câmara de Sines)

Coordenadas Geográficas da área ocupada (polígono)pela Fábrica Júdice Fialho, de conserva da sardinha.

37°57'22.06" N / 8°52'23.94" W (vértice oeste, no cruzamento da Avenida 25 de Abril

com a Rua António Aleixo)37°57'23.41" N / 8°52'18.40" W (vértice mais a

norte, no cruzamento da Rua António Aleixo com a rua que vem do Largo Júdice Fialho)

37°57'19.89" N / 8°52'17.93" W (vértice mais a sul, na Rua Júdice Fialho)

37°57'20.30" N / 8°52'23.06" W (vértice oeste, no cruzamento da Rua Júdice Fialho

com a Avenida 25 de Abril)

sempre mais caro. Geralmente ia para Ingla-terra, que era o país que pagava melhor a sar-dinha. Que era a lata Maria Elisabete. Depoishavia o peixe com menos escama, que se fa-zia em tomate. Ou em óleo. Já era outro preço.

Na lata, a parte onde estava a cabeça –embora já não tivesse cabeça – era para umlado, a outra parte já era para o rabo da sardi-nha. Para que ficasse composta com o formatoda lata. Não podia ser duas partes largas parao mesmo sítio. Porque senão a outra parte fi-cava oca. Era sempre com o lombo para forada lata e a barriga para dentro. A lata estavaseca. Isso depois era oleada na mesa onde ha-via as máquinas que iam fechar a lata.

As mulheres enchiam a lata. Depois me-tiam uma lata aqui, outra aqui, em paralelo,depois atravessava. As latas ficavam cruzadas.As duas de baixo ficavam assim, as de cima jáficavam assim, e assim sucessivamente.

Depois havia aquela prática das aprendi-zas, e levantadeiras de latas, já mulherescom certos anos. As aprendizas andavamsempre com essas mulheres, que era para es-sas mulheres depois fazerem outro trabalhomais específico, e elas depois é que carrega-vam essas latas para as mesas. Para seremazeitadas e travadas. Chegava a haver pes-soas que levavam pilhas, se calhar com maisde um metro de altura ou dois metros. Nãodeixavam cair. Só com as unhazitas, a agar-rar ali no debrum da lata, que aquilo é umdebrunzinho pequeno.

As latas, que ainda não estavam fecha-das, que ainda não tinham óleo, iam paraumas mesas de mármore, eram depositadasem cima dessas mesas. Depois – no tempoem que entrei, pois ultimamente já tinhammáquinas automáticas que azeitavam elaspróprias – tinham umas panelas, feitas peloslatoeiros, cheias de azeite ou óleo, onde mer-gulhavam. Iam cortando as pilhas, quatro,cinco, seis latas, depois molhavam. Com pi-lhas de latas nas mãos, com quatro, cinco,seis latas de altura, mergulhavam-nas nos re-cipientes, mergulhando também os braços.Depois estavam ali um bocadinho. Quandoela deixasse de borbulhar, era sinal que alata estava cheia de azeite. Metiam na mesa.Depois a gente estava nas máquinas. Haviaduas mulheres. Uma no lado esquerdo e ou-tra no lado direito. E a gente ficava ali aomeio. Uma pegava nos tampos, metia emcima da lata, e metia num tabuleiro perto dagente. A gente pegava na lata, metíamosnuma placa de cravação e cravávamos.Aquilo tinha um tampo para a lata cair emcima de uma mesa. Com esta mão, como ti-nha prática, fazia assim, dava um toque nalata, que descaía para a mesa.

“As latas eram molhadas. Eram postassecas ali, as mulheres depois punham noazeite, depois tiravam a lata e metiam ali. Es-tava uma com uns tampos, metiam os tampos

em cima da lata, e davam-me a mim. Ou a ou-tro homem que fosse para a cravadeira. Nãoera só eu que cravava. Quando eu fui para lájá havia cravadores com uma certa e determi-nada idade. E depois, ao cravarmos a lata, agente punha, ao nosso lado direito, onde es-tava outra mulher, já com a lata cravada, me-tiam dentro de uns cabazes. Duns cestostambém feitos em arame. Que levavam tam-bém setenta e tal, oitenta latas. Já cravadas.Ainda sujas de óleo, ainda. Depois eram pos-tas numa mesa. Ia-se enchendo aquela mesa.Quando tivesse ali – por exemplo, a mesa le-vava sete cabazes de base – quando chegassea quatro de altura, sete vezes quatro, vinte eoito, mais ou menos, iam dois homens ouduas mulheres, conforme aquilo que elesmandassem, com uns carrinhos de mão, ecarregavam a lata para a esterilização. Lá es-tavam outros carros altos. A lata era lá arru-mada, e os cestos eram arrumados também,atravessados, para poderem criar base, paranão escorregarem, e depois iam para dentrode outro autoclave, grande, mas maiores queaqueles onde a gente cozia a sardinha, muitomaiores, gigantes, fundos, levavam três ouquatro carros logo, enquanto aqueles levavamum, que depois seria esterilizado. E só daí éque a conserva ficava feita. Apesar do peixeestar cozido.

A cravação fazia-se nas máquinas ma-nuais. Eu cá cravei nas máquinas manuais.Só havia máquinas manuais na altura em queeu fui. Era uma Sodri, a pedal. Punha atampa, tinha uma placa em baixo, e a gentecalcava no pedal, aquilo subia, e a lata iapara uma placa fixa, com o mesmo formatoda lata. Se fosse de Clube. Se fosse Vinte eDois era outro formato, tinha de mudar. Sefosse Americano tinha de se mudar também.Cada lata tinha a sua chapa de cravação.Tanto superior como inferior. A gente – agente como quem diz, o afinador, pois haviaum homem que afinava aquilo, que ultima-mente até era eu, tive de ficar, pois o outromorreu e eles acharam que tinha habilidadepara aquilo. E depois dela cravada, tinhadois rolamentos, que eram, o primeiro e o se-gundo passo, chamava-lhes a gente. O pri-meiro cravava e o segundo compunha. Faziacom que a lata, que a gente compra, ficassecom um boleadozinho. Sem ranhura ne-nhuma. O primeiro só cravava. Fazia isto.Fazia o gancho da tampo com a lata. Mas fi-cava feio. Se tirássemos uma lata com o pri-meiro passo aquilo estava feio. O segundo ia,compunha, e fazia a voltinha toda redondi-nha, toda redondinha.

A lata era colocada ao lado, dentro des-ses cestos, depois eram carregados nos car-ros para serem esterilizadas. Era a vaportambém. Como se cozia a sardinha, só comuns autoclaves muito maiores. Faziam três ouquatro daqueles e era esterilizada assim.

Celebração da Cultura Costeira 35

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A esterilização era feita consoante a qua-lidade de peixe que também lá estava. Sefosse um peixe era x tempo, se fosse outro ti-nha de se dar mais tempo. Francisco José Con-

ceição Correia, Sines

Empresa de Chávega: Era o chão da nossaempresa. O nome disto está aqui enterrado.Empresa Domingos. Fizemos uma barraca emcolmo, toda em colmo. Fomos apanhar do ou-tro lado do Lago. Depois, isto em 1975, 76, aCondotte vinha buscar água aqui ao Lago.Abastecia-se de água aqui no Lago. Houvegente que trabalhava para a Condotte, que ti-nha oportunidade de arranjar cimento, e dis-seram assim: – A gente arranja lá cimento,vocês compram o tijolo e fazem aqui umas pa-redes por dentro disto. Fazem aqui uma bar-raca em alvenaria. E assim fizemos. Eraminha, era do Fausto Domingos. Era do paidele, o Carlos Domingos. Era do tio, que era oJoão Domingos. Era de outro irmão doFausto, que também era Carlos Domingos. OFausto Domingos e o Carlos Domingos eramfilhos do Carlos Domingos pai. O João Do-mingos, que era irmão do Carlos Domingos eo Júlio Domingos, que por acaso também eraDomingos, mas pouco tinha haver com anossa família. Pessoas da família, menos esseJúlio Domingos. Poderia ainda ter algum pa-rentesco, mas assim um bocado afastado.

A empresa aqui era as artes chávegas, quenós trouxemos para aqui, em 1975, 76, por aí.

Veio um primo nosso, do Carvalhal paraaqui, com umas artes chávegas. A gente, for-mámos essa empresa. Quando ele veio paraaqui, formámos outra empresa, que era um ir-mão desse, que era o João Domingos, que es-tava no Carvalhal. Formámos uma empresaDomingos, que era a gente, que éramos, oraeu, o Júlio dois, o João três, o Carlos quatro,Fausto cinco e o Carlos Domingos seis. Éra-mos seis sócios. Tínhamos uma companha, tí-nhamos três artes chávegas, e a companhaera toda gente daqui, da área da Ribeira dosMoinhos, desta área, até de Santo André. Eentão pescávamos aqui, pescávamos na Ma-ria da Moita, que é à Fonte Cortiço, e pescá-vamos na Lagoa de Santo André.

E havia outra casa aqui ao lado que erade um parente meu. Foi também levada coma maresia. Depois acabou por fazer além,também já foi derrubada. A outra era do Ser-rão. Estavam aqui três empresas. E chega-ram a estar quatro. Havia uma, que era dosmeus primos do Carvalhal, depois foram-seembora. Ficou a do Custódio Palmiro e doJoaquim Andrade. Ficou a nossa, a Domin-gos. Essa foi a que durou mais. Nós estive-mos aqui sempre mais anos do que eles.Estivemos aqui dez a doze anos.

O edifício foi o mar que o levou. Foi umamaresia que arrasou isto tudo. Quando vie-mos aqui, mãezinha, não estava cá nada.

Perdemos aqui as artes. Fomos recuperar al-gumas que ficaram enterradas. Fomos bus-car uns barcos, e continuámos. Um dia,quando estávamos ali a preparar uma arte,onde o mar escavou, encontrámos umas moe-das. Tenho lá uma com a Cruz de Cristo, já adesfazer-se. FC, Lagoa de Santo André

Bloco expositivo 4Há modos de vida que despertaram com a

proximidade da água: pesca, navegação econstrução. O ser humano ao adaptar-se a umambiente que lhe ofereceu um complementode alimentação colocou-se o desafio de in-ventar meios de deslocação mar adentro,perto ou longe, cortar ondas, apanhar o peixeà distância da terra… Estes meios são hojeolhados como arcaísmos da história localquando na verdade são objectos de constantereinvenção de estruturas ou componentes.

A pesca na praia de Sines: “Havia lá umabateira, que era do Zé dos Santos, da chin-cha. Íamos largá-la e depois puxávamos asredes para a praia. Cheguei a remendar tam-bém na areia, redes sardinheira. Estendíamosas redes para ver algum buraquinho, porqueaquilo, para as sardinhas, passava o peixe. É malha quarenta e quatro, ou coisa assim.

Depois quando se largava as redes, isto é oque ficava por cima de água, uns boiréis, umasbóias, assim maiores, com uma braça de cordaatada, já não lembro da distância que era e fi-cava à tona de água. As bóias eram de cortiça.Naquele tempo não era as redes que andavamaqui. Panasqueira. Eram umas redes baixi-nhas. Havia a Sequeira, nesse tempo. Só nãohavia a Vinheira.

Com 17 anos ia para o mar com o meupai. Ia à murgeira. Chamava-se murgeira.Era uma rede de um pano só. Largava-se aina baía para apanhar pampos. Apanhava ou-tras qualidades de peixe, mais os pampos. Eera a sardinheira. Estas redes que pescavamno barco eram redes de algodão. Depois éque vieram as redes de nylon. Depois maistarde é que veio a rede de seda. MA, Sines

A jangada: “Vamos lá experimentar a fazer.Isto é só para fazer uma imitação. É só para fa-zer uma imitação. Não é para ficar nada feito.

Uma jangada nas nossas mãos dava paraum ano. Todos os anos temos de fazer janga-das. Uma para cada um da gente. Tínhamosoito irmãos, eram oito jangadas. Cada qual ti-nha a sua. Às vezes tínhamos mais. Duas outrês. Aqui na Pegada tínhamos uma. Onde agente esteve. Na Pedra da Casca tínhamosoutra. Aquela pedra grande que está aqui emfrente. E a outra que é lá no sítio, chama-lhea gente o Cozinhadouro, é a Pedra do Burri-nho. Tínhamos outra. Sim senhora. Assim éque a gente governava a vida. Porque umasvezes a gente, quando isto estava mais ex-

plorado do marisco, a gente governava a vidanaquilo, e então nessa altura íamos paraaquele sítio. Quando estava mais exploradoali, íamos para aquele sítio lá. Acabava-se láa coisa, voltávamos outra vez ao marisco cá.Foi assim que governámos a vida uns anosbem largos.

Se é para levar mais peso, tem de levarmais canas de lado. Dez, doze, e depende daespessura da cana. A gente faz o compri-mento que a malta quer. Mais larga, mais es-treita. Mais estreita, tem de levar mais canas.Com mais largura, tem mais estabilidade,tem mais segurança.

Isto é a bordazinha do barco. Isto é só paraum exemplo. Esta não é para ficar a valer.

A outra leva umas dez. A normal é aí dezcanas. Cana grossa. Não é cana assim comoisto. Isso é pouco mais ou menos para vocêsverem como é que é. Não é preciso doze ca-nas. Dez, é o normal.

Isto depois leva a travessa ao meio. As ca-nas são todas cosidas à travessa. Leva três tra-vessinhas. Uma jangada daquelas leva oitentacanas. Normais. Dez canas para uma borda,dez canas para outra, e o resto a fazer o fundo.O fundo é de canas, depois leva as bóias.

Esta cana é que manda. Para dar a queda àembarcação. Vai ser colocada ao meio. É a pri-meira cana que se coloca depois das bordas.

Essas são as travessas. É a travessa domeio, a travessa da proa e a travessa da popa.Leva depois uma mais à frente e outra maisatrás. Que é para segurar depois aqui. As tra-vessas costumam ser em madeira. Porque émais rijo que a cana. Usa-se para não escor-regar daqui. Para não abrir e não fecharmais. Pinho. Pode ser eucalipto também.

Agora estou a fazer o molde da jangada.Seja o fecho, seja o molde, é igual. A popaestava toda aberta. Com esse fecho já se fez o molde. Uma queda é um molde. Uns cha-mam-lhe uma queda, outros chamam-lhe ummolde. Fazer o molde. Já fica além a proa, e aqui é onde a pessoa vai. Fica com o talhotodo como aquelas que estão além. Esta tábua é a principal, para dar a queda à jangada.

Depois de se arranjar a travessa do meio,as outras ainda se cortam à medida que ficar omolde. Isto é o fixe da jangada. Depois leva ascanas por cima. As canas apoiam-se aqui. Ofixe é o principal disto. Um barco dos outrosem madeira tem os braços, que fazem as ca-vernas, etc. Está aqui a mesma coisa. Faz deconta que era isso, só que não é. A segurançadisto, é isto. Estes molhes, de lado. Quantomais canas tiver, de lado, mais segurança tem.As canas de lado é que dão a segurança. Estaaqui é para fazer o fixe destas canas que levaagora assim. EP e RP, S. Torpes

Pescar nas Coroas: Antigamente ia para as co-roas. Apanhava chernes. Cheguei apanhar seis

Câmara Municipal de Sines36

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37Celebração da Cultura Costeira

chernes, um em cada anzol. As Coroas, começaali onde a gente chama as Quatro e Meia. De-pois é as Cinco e Meia, e a Ramagem. É tudo asCoroas. É o que a gente chama as coroas. De-pois há o Vapor, que está a mais ou menos oitomilhas. Chamamos-lhe assim porque está lá umbarco no fundo, mais ou menos a uma hora emeia de caminho, cerca de oito milhas. Nas Co-roas a parte mais baixa tem 120 braças e depoiscomeça a subir, a subir, a subir e faz assim umbocado a direito. E depois começa outra vez asubir, a subir e vai para as 94 braças. E depoisquando vai outra vez para sudoeste vai outra vezpara as 120 braças. Mas agora já não me deixamir para lá. João Duarte Louzeiro, Sines

Bloco expositivo 5O gesto é parte da comunicação presen-

cial e desdobra-se para ir ao encontro do ou-tro, que por sua vez o pode receber ou não.Um gesto obriga a ver algo que pode passardespercebido, facilita o entendimento de ex-plicações complexas e mantêm presente osinterlocutores; por vezes serve para certificarde vários modos que a mensagem está a pas-sar e pode sem intenção prévia transmitir umconhecimento que apenas emerge na acção.

Painel Sines. Maio de 2008O núcleo duro da equipa que deu expres-

são a esta exposição – recolheu as peças, dia-logou com as pessoas, fotografou, participouem mil e uma acções – beneficiou, de mododecisivo, do facto de integrar um projecto in-ternacional de formação em estudo e inventa-riação de patrimónios, apoiado pela CâmaraMunicipal de Sines, cuja instituição de abrigoé a Mútua dos Pescadores. Utilizámos os mé-todos, o espírito e os instrumentos de estudo einquérito pensados no âmbito deste projecto.(Catalágo Exposição Pescas Natureza Desafiada, 2008)

Compreender o Pranchal: …está relacio-nado com acontecimentos e pessoas, comoacontece com “Pião Barroso”, “Pião Coelho”ou o “Pião do Chico Chapa”… O hábito de no-mear sítios será tão antigo quanto a capacidadehumana para fazer uso da oralidade. Mais doque um exercício linguístico, esta aptidão cor-responde a uma necessidade de criar referên-cias mentais e culturais que sejam capazes deidentificar e localizar lugares, individualizando--os com um nome. Tais lugares correspondemnormalmente a marcos geográficos notáveis ousão pontos importantes na vida quotidiana,como ruas, caminhos, locais de caça ou pesca.

Os pesqueiros inserem-se em ambas ascategorias anteriormente referidas. Por umlado, são elementos que sobressaem da pai-sagem, como sejam rochedos que emergemdas águas, pontas de terra que se estendempara o Oceano, ou enseadas. Por outro, taisconstruções notáveis da natureza constituemfrequentemente portos de abrigo para uma

miríade de formas de vida, que aí encontramas condições ideais para se alimentarem,procriarem e viverem.

Desde cedo que o Homem tomou cons-ciência da riqueza de tais locais, e utilizou azona costeira como fonte de sustento para sie para os seus. Estas zonas, pesqueiros, ouempostas como também são chamadas, fo-ram até há relativamente bem pouco tempo,um elemento extremamente importante naseconomias familiares. Em pleno séc. XXcontinuavam a ser utilizados como forma desuprir necessidades alimentares básicas e decomplemento ao rendimento das famílias.

Falamos aqui de áreas que não irão paraalém dos 100/150 milhas da costa. Isto nãoquer dizer que não existam zonas de pes-queiro para além deste limite. Aliás, o termopesqueiro remete-nos exactamente para umazona rica em espécies marinhas, independen-temente da distância da costa. No entanto, arealidade que aqui interessa é aquela queestá bem mais perto de terra.

Em Sines, várias pessoas recorriam a es-tas zonas – pescadores, corticeiros, peque-nos rendeiros, trabalhadores agrícolas, entreoutros –, procurando complementar os seusrendimentos em tempos de carestia. Estaprática era já bastante antiga, tanto que oRei D. Manuel I, na Carta de Foral dada a Si-nes em 1512, refere a propósito da pesca: “Eos moradores da dita villa se / matarem pes-cado sem barca nem Rede pera / seu comer,somente nam pagaram ninhuma dízima/ nemdireito (…)” (Soledade, p.15, 2002). Vemosque já então se reconhecia a importânciadestas zonas para a sobrevivência dos povos.

Neste contexto, é especialmente impor-tante esta zona, conhecida como Pranchal.Esta é a área que durante a maré baixa fica adescoberto, permitindo a recolha de marisco(percebes, búzios, navalheiras, polvos, etc.), eonde, durante a enchente, se pesca à cana, aqual foi praticada durante muito tempo a ní-vel profissional. Estes pescadores, bastantehabilidosos e conhecedores do seu ofício, ba-tiam a costa de lés a lés para pescar espéciescomo o sargo, o robalo, as safias, os bodiões,as salemas, corvinas e uma grande quanti-dade de espécies mais pequenas. Existiamfamílias inteiras que, se dedicavam inteira-mente a este tipo de pesca, de entre as quaisdestacamos os Louzeiros, os Chapas e osBoga Relaça, embora muitos mais existissem.

Não será pois de estranhar que a atribui-ção de nomes a tais locais se tenha tornadoessencial. Era necessário criar a memória daexistência destes sítios, de modo a permitir asua identificação para fruição própria e destemodo deixar também o testemunho para asgerações futuras. Este conhecimento foisendo elaborado e transmitido de boca emboca numa corrente oral que acabou por le-var à consolidação da toponímia costeira.

1. Armação de pesca à valenciana (fixa)(in Estado Actual das Pescas,

Baldaque da Silva, 1890)2. Saída das duas últimas argolas da calha

da rede de cerco de uma traineira, Sines3. Zé Salvador ata as aranhas ao findar

a recolha da rede4. e 5. Armar a jangada de São Torpes

(37º 53’ 56.42’’ N 8º 47’ 52.96’’ W)

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Foi a esta tradição oral que o Dr. Fran-cisco Luís Lopes recorreu em meados do séc.XIX, ele próprio o afirma, quando procurouelaborar uma lista dos pesqueiros conhecidosnas zonas da Ribeira e da Costa do Norte parao seu livro Breve notícia de Sines (1850). Em1950 a FNAT (Federação Nacional para aAlegria no Trabalho) apoiou-se também nosconhecimentos de um velho pescador, o TioLuís da Barroca, de modo a construir umaCarta dos Pesqueiros da Costa de Sines.

É interessante verificar que cerca de50% das denominações dos pesqueiros no-meados na Breve notícia de Sines se man-têm inalteradas. Outras, porém, parecem tersofrido mutações com o tempo. Por exemplo,o “Pião de Fernão Callado”, indicado poreste autor, surge em 1925 numa Carta doInstituto Hidrográfico como “Francalado”.Mais a Norte, a praia do “Ninho do Guincho”também nomeada na Breve notícia de Sines,cujo nome é ainda utilizado na região, é de-formada para “Linguincho” na Carta daFNAT, e surge como “Lindo Guincho” noPlano Hidrográfico da Baía de Sines, elabo-rado pelo Ministério da Marinha em 1925.Isto coloca-nos perante a questão de saberse tais casos derivam de erros na transcriçãoda tradição oral ou correspondem a denomi-nações alternativas.

Outra questão interessante ao nível datoponímia liga-se ao estudo da origem dosnomes. Os locais são designados tendo emconta a mais variada ordem de factores. Po-derão estar ligados a características físicasdo local, como nos casos do “Pontal”, “PontaSaída” ou das “Pedras Negras”. Ou estar re-lacionados a acontecimentos e pessoas,como acontece com “Pião Barroso”, “PiãoCoelho” ou o “Pião do Chico Chapa”, reme-tendo-nos este para o local onde o pescadorreferido viria a falecer por acidente. Existetambém a tendência para traduzir uma ca-racterística cultural enraizada no nosso povo,que se reflecte na criação de nomes de pen-dor jocoso, brincalhão, tal como as conversasde “escárnio e maldizer” da Idade Média. Aítemos o exemplo do “Cu da Maria Palma” oua “Pedra da Noiva” que deixa à nossa imagi-nação qual seria o “feitio” da mesma.

Em outros casos permanecem desconhe-cidas as razões da atribuição dos topónimos.Por exemplo, o “Salto Palrão” (qual o signifi-cado de palrão?), o “Pé Piolho” ou o “PiãoOfendido”.

Apesar das grandes obras dos anos 1970,que ditaram a destruição de número signifi-cativo de pesqueiros, nomeadamente na zonados molhes, muitas destas áreas subsistemainda e continuam a ser utilizadas como zo-nas de pesca, embora já sobretudo de lazer.Estamos perante um património riquíssimo,quer do ponto de vista natural, quer da pers-pectiva cultural. Importa salvaguardá-lo,

tanto como memória do passado, como maisvalia para o futuro. António Correia em conversa

com António Campos

Alcunhas como forma de memória:As alcunhas são formas de referência atri-buídas pelos membros de uma determinadacomunidade a elementos que a compõem.Geralmente, as alcunhas, mais do que um re-trato, pretendem ser uma caricatura quecapte aspectos essenciais daqueles que as-sim passam a ser conhecidos. Por essa razão,assentam na maior parte das vezes em parti-cularidades quer físicas quer relacionadascom determinados características do com-portamento ou da linguagem do indivíduo,que se destacam particularmente e que inte-ressa evidenciar de forma exagerada.

Na maior parte dos casos, as alcunhas, sãoconstruídas com intenções depreciativas quetantas vezes desprestigiam aquele que referem.Em muitos casos, a construção das alcunhas,possui até contornos perfeitamente cruéis.

Não é por isso de estranhar a quantidadesignificativa de alcunhas baseadas em ter-mos de calão com referências sexuais ou es-catológicas, sendo muitas, completamenteexplícitas.

Inúmeras vezes, o verdadeiro nome doindivíduo é desconhecido e apenas se co-nhece a sua alcunha.

Muitas alcunhas passam de pais para filhose permanecem na família durante gerações,chegando por vezes a serem confundidas com osobrenome de família. A alcunha é um poderosomecanismo. António Correia e Luísa Bruno, Sines

AdivinhãoÁgua MelAlbarramAlgarvioAlhinho

António da AdrianaAntónio do Porto

AnjolaAntónio Didinho

Apaga a LuzAranha

Arrebenta LeõesArrifanaA Pátria

A CenouraA EsculateiraA PintelhudaAqui Há Gato

BabãoBabela

BacorinhoBadanudo

BadocaBaixelaBajão

BajinhaBala-Bala

BaldoregaBalecas

BandarraBarão

BarrancaBarba AzulBarriguinha

BatateiroBatatinha

Bate OrelhasBazarucoBelinho

BicaBicha

Bicho AlhoBiga

BigodesBimbareque

BléBoca à Banda

BochaBocarras

Boga RelaçaBoguinha

BóiaBóia Luminosa

BojigaBolhi

BorranaBorrachoBota Alta

Brandy MendesBuérBurra

Cabeça de AzinhoCabeça de Lata

Cabeça de MelãoCabecinhaCabeçudo

CabideCabouclaCabo Zé

Cabo EsquadraCadeireirosCafeteira

Caga ArrozCaga na Pá

CagadoCaganitaCaixoteCálau

Calça ViradaCalifaCalete

CalhandraCalhau

CalhordasCalifa

ChaputaCanhonha

CasaquinhoCapinha

CarenguinhoCarago

Câmara Municipal de Sines38

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CarolasCarrau

CarroceiroCasquinha

CatônioCavala

CazajeiraCerca Velha

ChanéChapas

ChibinhaChico Agulha

Chico da CotoviaChico da ModaChico Nervo

Chico da PraiaChico dos Pneus

Chico TesoChinês

ChouricinhoChucha Matola

CizenatoCochinhoConanas

CoréCorre Costas Cu de Alcofa

Cuca MalandrãoDa Arrifana

Da AvóDa BarrocaDa Boina

Da BrízidaDa Cola

Da Férrea Da Moda

DelgadinhoDentinho D´Ouro

DiaboDiniz Gaiola

DipasseDjango

Do FornoDona Branca

Do NicDr. Martelo

DuqueEncarnadinhoEngº Povide

ErvilhasEsbirra ?

Escalda VergalhosEscaldinhaEscalrrachoEscumalhaEsquimó

EstragadinhoEstulanoFachinaFacholasFaísca

Fala BaratoFalico

Fan- FanFanchãoFanga

Fanha-FanhaFeio

Fiozinho de Azeite Foca

Fode OsgasFormigaFortunío

Frasquinho de VenenoGaiys?Galaio

GalegosGalote

GambilhaGarrafãoGaroupaGatolaGina

GirafaGordo

Governa a VidaGué-guéHavanezaHenricão

Jacinto da Tia Javardo

JavardinhoJeirinhas

João da Aurora Jóinha

João da GataJoão do Gelo

Jó JóJorjeca

Juiz da FomeLagartixa

LagemLã Branca

LancãoLanzudo

LapaLaranjinha

LaróLelinhoLidoroLifonso

LiraLisboaLolaLula

Má OlhoMama na Burra

Mama NelaMamnuchaMantinhas

Manuel da BaíaMaria Betoneira

Mário TatintaMário Pó-PóMassa Azeda

Mascote

Mata OsgasMata PretosMata Sete

Mata VingançasMecharraMeia FodaMentirosoMercúrio

MicasMilagens

(trabalhava em terra)Milho

MineiroMirra-teMiséria

MituMoca

MojicaMoleirosMoquila

NêtaNinguémNózinho

O AbróteaO Alagoa

O AljustrelO Ameixa

O AgulhetaO AlemãoO ArrastãoO AvoadorO Banana

O BananeiraO BacalhauO BarroteO Batata

O BigodesO Boguinha

O BolasO Bolacha

O BufaO Buzinas

O CamarinhaO CalhotaO Cansado O CarochoO Catorze

O Cem à HoraO Ciência

O CientificoO Chaôvo?

O DudaO Espanhol

O GalhéO Galinhas

O GatoO Jimgarelho

O LabregoO LaruçaO Latucha

O Linguinha D´OuroO Linguinha de Prata

O Lírio

O MancoO Manja

O MargaridaO ManhosoO Marreco

O MergulhãoO Meu Menino

O MigalhaO NavalheiraO Nosso Cabo

O Notinha de cemO Olho de Polvo

O ParrichonO PassaradasO Passarinho

O PatinhoOs Pazudo

O PeléO PerigosoO PinginhaO Piriquito

O PiscoO Toureiro

O VelhoO Varetas

O Zé da PencaOs Esplanadas

Os FanhosoOs Latas

O s LériasOs MacacosOs Paneiras

PadartePadeiroPai AvôPalancaPantanas

PapaPapa –BolosPapa LéguasPapa Talos

PapelhaPapo SecoPaparaziPapuça

PardalinhoPapudoParola

Pata LargaPatarilasPátinha

Pau DuroPé DescalçoPé- de -FerroPeceguinha

PeixeiroPeixeirinhos

PestanaPeladinhos

PetrarcaPeleiraPé-leve

Perna de Lata

Perna MarotaPernicha

Pica LimasPica Miolos

PicansoPimentinhaPinga AmorPintassilgo

PirraçaPiririu

PodernidePonta Esquerda

PonasPôpaPorro

Prega SaltosPretoPuga

PurrinhaQuintanilhaRabaneta

RachadinhoRamboia

Rasga a MantaRatinho

RatoRato Branco

Rebenta CilhasReboque

Rei Repa

Salta PocinhasSalto à Peixe

SamirroSapo

SarongaSeca AdegasSeringonhoSetubalão

SineiroSopapos

Tá CozidoTacho- Tacho

TalhadasTaínha

TanganhãoTarrinca Espinhas

TravessoTá Louco

Tempo Volta P´ra TrásTendeirosTerrívelTérinho

Ti Luís da BarrocaTita

Tira PelesTi Piegas

TocaToca o BichoToca o Burro

TolanTom e JerryTorradinhas

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40 Câmara Municipal de Sines

TotilereTótó

TotobolaTouguiaToureiro

Treme – TremeTrinta CabelosVai à Bolacha

Vai à ÔtaVale BoiVareirosVelhinha

Verga D´açoVinagrinhos

XauZarra

Zé BeicinhoZé do BenficaZé CinquentaZé ChapinhaZé CoxinhoZé GalholhaZé da GuilaZeme- ZemeZé do MachoZé do Nabo

Zé GagoZé GuinchoZé da Peça

Zé das PessancasZé PequenoZé PixotaZé Rema

Zé SopapoZip ZipZona ZorroZumbiZuta

Pedra do Homem Pião da Praia

Pedra AltaPião da Zona

Praia Debaixo da vinhaPoça dos Carreiros

LagoaPiões da Lagoa

Debaixo da PeçaPedras do Sal

Carreiro do ConcelhoSalto Palrão

Peso dos PiaisPiais

Boca da FurnaCestas do Linguincho

LinguinchoAssenhas

Praia de BarroPraia do Linguincho

Praia das BruxasParede das Assenhas

Pião CoelhoPedras Negras

Manjedouras das PedrasNegras

Lombão das Pedras Negras

Poça das Pedras NegrasPoça da Biquinha

Pião PretoPaciênciaAmarelas

Ponta das Amarelas

Poça da Maria ClaudinaLaje do AguiãoLaje Alagada

Laje RasaPonta das Lajens

Corredoura do Rio deOuro

PedraisPião do Chico ChapaPraia Fernão Calado

AltiaPedra Nau

Gaviões da PombeiraPombeira

Laje da PassagemPraia do Balhão

Gaviões da Esturdi-nheira

Laje GrandePraia da Esturdinheira

Piões NortePerceveira

Pião do MarcoPonta dos CastelosCu da Maria Palma

Pedra do Lombo de Sargo

Ponta da GralheiraCarreiro dos Clérigos

Ponta SeladaPedra Avarga

Rodas do PontalPedra Santa Maria

Pé PiolhoTrês Pedras

Praia das BicasPedra RedondaPraia Grande

Mesa RampaPontalLajinha

SaltoEspigão

Praia de Santa CatarinaPapa Anzóis

Praia da MouraPonta Saída

Praia do ConventoCozinha

Rosto PretoCadeirinha

CaniçalPraia da Silveira

SilveiraPraia do Fundo da Sil-

veiraSão Geraldo

Carreiro de São GeraldoPião OfendidoPião Barroso

Praia do CurralinhoCurralinho

Curral SecadoPião do Curral Secado

Salto da Lebre

AssobiadorCarreiros

Praia da ZimbeiraPião Amarelo

Praia dos Piões BomSalvador

Piões Bom SalvadorEsproeira

TopoPraia da Laje Quadrada

Laje QuadradaEscorregadio

Piões dos MergulhõesBuraco das Pipas

SaltinhosPião Quebra Cruz

Monte BatistaPiões Amarelos

Pião do Brejo RedondoEsgalho dos Ruazes

GalésPião das Porcas

Piões do Vale MarimLagoa do Vale Marim

PederneirasCarreiro dos Sargos

Pião da Bica da AmeiraRebolos

Carreiro das TaliscasCarreiro das Amarelas

Cavalo da PraiaPraia do Carreiro dos

LinguadosPedra da NoivaCabo da Praia

Praia da São Torpes

Segundo o livro de Francisco LuizLopes, Breve Notícia de Sines(1850), actualização da FNAT naCarta dos Pesqueiros de Sines,com informações de Luís da Bar-roca, pescador, e nova actualiza-ção de António Correia (2008).

Chinchorro / Chinça (in Estado Actual da Pesca, Baldaque da Silva, 1890)

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Celebração da Cultura Costeira 41

Problemática: Dignificação de uma cultura ba-seada num recurso marítimo – a sardinha eactividades associadas, indústria conserveira,turismo e renda de bilros

Território: Concelho de PenicheHerança cultural activada: Construtores navais,

redeiras e rendeiras de bilros, associativismo,pesca e artes de pesca, lojas e tradições

Inventariantes: Maria Alzira e Maria Eugénia,Sandra Costa; assistiram a alguns trabalhosAndré Amador, Emanuel Brás, Hilário Brás,Sandra Farinha, Teresa Serpa

Exercícios realizados: Marcações GPS, entre-vistas, trabalho em grupo e individual

A Associação para o Desenvolvimento dePeniche ofereceu à partilha dos parceirosdeste projecto a necessidade de investir naconstrução de uma prática cultural, alargadae regular, que identificando e articulandoformas de actuar hoje, valorizem o concelhoe os seus habitantes e lhes vá permitindo to-mar iniciativas culturais sustentáveis, anco-radas nos recursos e inspirações vindas domar. O desafio inicial de inquirir sobre a sar-dinha versus identidade local concorreu paraa descoberta de alguns documentos antigosque falam da povoação, da praia, da indús-tria conserveira, da pesca e migrações inter-nas. As entrevistas trazem para os nossosdias a presença dessa trama quer nas memó-rias quer no construído.

Bloco expositivo 1O mar de Peniche colocou ao longo dos

tempos inúmeros desafios aos habitantes des-tas costas. Desde logo a abundância e a quali-dade das espécies marítimas. Depois, umanatureza muito marcada pela presença daBerlenga e dos Farilhões, provavelmente umadas causas das fortes correntes que se fazemsentir, e que impactaram na necessidade deum bom conhecimento dos fundos – que aspopulações vindas de fora como os nazarenose algarvios, sobretudo, e os habitantes locais,tiveram de aprender. Dessa experiência eaprendizagem surgiram nomes de fundoscomo “mar dos algarvios” ou “mar dos naza-renos” a par de outros mais correntes e as-sociáveis à navegação “Pedras Ruivas”, “Pe-dras Muitas”. Também a intensidade da pescaera tal que a Capitania, empresários e mes-tres, chegaram a acordo para compartimentara área de exploração segundo utilizadores eartes de pesca. Hoje o arco da sardinha –expressão cara ao Hilário Brás – inclui tudoisto e define os limites até onde as traineirasdo cerco à sardinha navegam para lançar asartes.

Recordar um acto histórico – 1894: De-creto de 27 de Dezembro de 1894, apro-vando o regulamento para a pesca pormeio de redes ou aparelhos volantes nomar da Berlenga, Estela e Farilhões:

Artigo 1º Na Corte dos Farilhões será ex-pressamente proibido o lançamento de redesfixas de pesca, por isso que este espaço é ex-clusivamente destinado para refúgio e surgi-douro das embarcações, e para a pesca doanzol.

Artigo 2º As artes de sacada poderão uni-camente pescar no mar da Berlenga, Estelase Farilhões, nos postos designados no pre-sente regulamento e no serro Nordeste doFarilhão.

Artigo 3º Os postos a que se refere o ar-tigo antecedente serão os seguintes:

Mar dos Farilhões:1º Cova do Farilhão do Nordeste;2º Ponta da Mesa;3º Mesa;4º Corredor do Norte de Barlavento;5º Corredor do Norte de Sotavento;6º Cova da Raposa;7º Baixas;8º Carreiro entre os Ilhéus;9º Corredor do Sul;

10º Farilhão da Cova;11º Rabo do Asno;12º Balhadeiras;13º Forcadas.Mar das Estelas:

Entre a Estela e o Estalão.Mar da Berlenga:

O da Velha e costa da Berlenga desde aChapada do Norte até ao Pesqueiro doCapitão.Artigo 4º A pesca com artes de sacada

nos dez primeiros postos do Mar dos Fari-lhões, indicados no artigo antecedente, é re-gulada pelas disposições seguintes:

1º No dia 1 de Julho de cada ano será afi-xado um aviso da Delegação de Marinha dePeniche, prevenindo os mestres das embar-cações de pesca do alto do dia em que co-meça a temporada de pesca com sacadasnaquele mar e convocando-os para a distri-buição dos postos;

2º A primeira distribuição dos postosserá feita por meio da sorte entre os mestresdas companhas representadas neste acto, aque preside o Delegado da Marinha;

3º Havendo número de mestres de artesde sacada igual ao número de postos, serãotodos estes distribuídos à sorte pelas compa-nhas representadas;

4º Havendo menor número de mestres deartes de sacada do que o dos postos, serão

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Associação para o Desenvolvimento de Peniche42

distribuídos de entre estes aqueles que osmestres presentes por maioria preferirem,procedendo-se então ao sorteio só destes;

5º Havendo maior número de mestres deartes de sacada do que o dos postos, serão to-dos estes distribuídos pela sorte entre igualnúmero de companhas e as que ficarem defora entrarão sucessivamente nos primeirospostos que semanalmente vagarem, ficandoos que saem também de fora até que lhespertença novamente entrar nos primeiros;

6º De oito em oito dias mudarão todas asartes de sacada de posto para posto, fazendo-se esta mudança de Leste para Oeste, se-gundo a ordem numérica dos postos indicadano Artigo 3º deste regulamento.

Artigo 5º A pesca sem artes de sacadanos outros postos do Mar dos Farilhões, nãoincluídos no artigo antecedente, a no mar dasEstelas e da Berlenga, não carecerá de dis-tribuição de postos podendo cada arte de sa-cada ocupar lugar, observadas as disposiçõesdo presente regulamento.

Artigo 6º Em cada posto só poderá fun-cionar uma arte de sacada, salvo no Carreiroentre os Ilhéus e nas Baixas, que podem ar-mar duas; Entre a Estela e o Estalão, que po-dem deitar até três, e no Mar da Berlenga.

Artigo 7º É proibida a pesca, com artesde sacada, não tendo estas cabo passado àterra, e não estando a uma distância dela in-ferior a 100 metros.

§ Único. Quando o estado do mar nãopermita passar cabo à terra, poderão as artesde sacada deitar a poita junto dela, contantoque observem a distância marcada no pre-sente artigo.

Artigo 8º Exceptuam-se do disposto noartigo antecedente as artes de sacada que ar-marem sobre o ferro Nordeste do Farilhão.

Artigo 9º As artes de sacada deverão dar àrede no serro Nordeste do Farilhão com umaúnica poita no fundo em cada embarcação.

§ Único. Quando houver calma poderácada embarcação deitar mais outra poita.

Artigo 10º A arte de sacada que ocupar oposto da Mesa não poderá passar cabo ao Ca-beço do Farilhão do Nordeste.

(…)Artigo 15º As artes de sacada poderão

funcionar em qualquer época no Lago de Pe-niche de Cima.

Artigo 16º Quando não estiverem no marnenhuma das armações fixas de pesca da en-seada de Peniche de Baixo, poderão as artesde sacada armar no mar do serro do MedãoGrande.

Artigo 17º É expressamente proibido emqualquer época armar as artes de sacada nomar do Alto da Ilha, por isso que esta zonamarítima é exclusivamente destinada àpesca por meio de cana e anzol.

Artigo 18º As artes de sacada que arma-rem na costa da Berlenga ou do O da Velha

deverão dar resguardo às que já estiveremem posição, de modo que os cabos das poitasse não embaracem, nem a posição que toma-rem lhes desvie a afluência do peixe àquelelocal.

Artigo 19º Todas as vezes que um oumais batéis de pesca ao anzol estiverem pes-cando em um determinado local, que nãoseja nenhum dos permitidos pelo presenteregulamento para armarem as artes de sa-cada, será expressamente proibido que estasdeitem nas proximidades e a distância talque afugentem o peixe que aqueles batéisestejam apanhando.

Artigo 20º As redes de emalhar bogasnão serão permitidas em todos os carreirosdos Farilhões, contando que não formem pa-rede que desvie ou impeça o peixe de seguirpara os postos das artes de sacada, quandoestejam armadas.

Artigo 21º Para o lançamento das redesde que trata o artigo antecedente terão prefe-rência os batéis que chegarem primeiro,quando navegarem para esta paragem, ouque a sorte designar, quando já estejam fun-deados, aguardando a afluência do peixe.

Artigo 22º As redes de cerco volante se-rão permitidas em todos os carreiros da Ber-lenga, contanto que não embaracem aentrada do peixe para quaisquer outras artesjá estabelecidas, ou para o acesso das em-barcações ao Carreiro do Mosteiro.

1. Pedras Ruivas; 2. Ancoradouro do Baleal; 3. Ponta da Papôa; 4. Porto da Areia de Peniche de Cima; 5. Nau dos Corvos; 6. Porto da Areia de Peniche deBaixo; 7. Lago; 8. Ingueiro; 9. Serra; 10. Medão Grande; 11. Cova; 12. Mar Novo; 13. Mar dos Pipis; 14. Mar da Bóia; 15. Fora do Mar da Bóia; 16. Cova doFarilhão; 17. Ponta da Mesa; 18. Mesa; 19. Corredor Norte do Barlavento; 20. Corredor Norte do Sotavento; 21. Cova da Raposa; 22. Baixas; 23. Carreiro en-tre os Ilhéus; 24. Corredor do Sul; 25. Farilhão da Cova; 26. Rabo do Asno; 27. Badalheiras; 28. Forcadas; 29. O Homem; 30. Carreiro dos Cações; 31. Car-reiro do Mosteiro; 32. Mar do Alto da Ilha; 33. O da Velha; 34. Sueste da Ilha da Berlenga

Ligar a História ao presente – Mapa de Peniche identificando posições e áreas de pesca referidas em documentos históricos. Documento CCC feito com o apoio de Francisco Catarino Cardoso

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Artigo 23º Para o lançamento das redesde que trata o artigo antecedente serão prefe-ridos os batéis que chegarem primeiro ao lo-cal, no caso de entrar peixe, ou os que a sortedesignar, quando estejam fundeados e quese note a afluência do peixe.

Artigo 24º A cana e linha de pesca poderáser empregada em qualquer paragem do marda Berlenga, Estelas e Farilhões, observadasas disposições do presente regulamento.

Migrações. A minha mãe é de Tavira: Opai nasceu em Peniche, mas também tem fa-mília no Algarve… O meu avô pescava lá.Depois entretanto foi para o bacalhau, para apesca do bacalhau em Aveiro. Viveu emÍlhavo, e depois voltou… vieram para Peni-che. O meu avô comprou cá um barco. Lar-gou a pesca do bacalhau, ficou cá e fizeramaqui vida. Teresa Santos Serpa, Peniche

Migrações. Sou da Nazaré: O meu pai, aminha mãe e os meus irmãos também. Vimpara Peniche quando tinha três anos deidade. Ele veio para cá também. Pela pri-meira vez. Aliás, Peniche é uma terra de emi-grantes. Há poucas pessoas de Peniche. Aspessoas de Peniche, aqui há uns anos, eramda Nazaré, do Algarve, da Figueira da Foz ede Viana do Castelo. Depois vieram para cá,que havia fábricas de peixe, os maridos vi-nham para aqui descarregar. As pessoas tra-balhavam no peixe, casavam. Portanto, aproveniência de Peniche. Peniche, pratica-mente, os habitantes de Peniche são poucos.Noventa por cento, oitenta por cento, não sãode Peniche. Da Nazaré, do Algarve, da Fi-gueira, do Algarve, de Viana do Castelo, enão sei quê. E eu vim para cá nessa altura.

Ficámos cá. Em Peniche de Baixo. Peni-che, normalmente, denomina-se Peniche deBaixo está área. Peniche de Cima raramentese fala. Peniche de Cima, há um ou outro quepergunta Peniche de Cima. Também, lá está,os habitantes de Peniche de Cima, pratica-mente, vieram todos do Algarve. Porque ha-via uma fábrica de conservas de peixe queera a Algarve Pescador, em que os barcos tra-balhavam quando havia sardinha, quandopermitiam. Elas vinham para cá e estabele-ciam-se a viver ali na zona de Peniche deCima. A zona de Peniche de Baixo, tambémera. Mas era mais outra arte de pesca, queera a pesca do peixe grosso. Peniche deCima, pesca da sardinha. E Peniche de Baixomais peixe grosso. Albino Massagão, Peniche

Migrações sazonais: Eu e o meu maridochegámos primeiro a vir para Peniche no in-verno, e irmos para a Nazaré no verão. E de-pois o meu marido disse: – Então, isto não évida para a gente. Ou cá ou lá.

Ele depois pensou em cá ficar. Haviamuito peixe. Porque se não houvesse, tambémnunca vinha para cá. O que é, é que ele tam-

bém teve dois acidentes lá. E São Martinho doPorto. Aquela barra era muito perigosa. E che-garam quase a virar-se e a ir ao mar. Georgina

Formiga Soares, Peniche

O casamento. Fui vestida de nazarena: Aminha casa tinha dois quartos. Ele levou oquarto dele. Eu levei a sala e o quarto. Leveio quarto das saias, bem dobradas, e as cami-solas, todas bem passadinhas e em cima dasmalas. Ele levou a mala dele, eu levei a mi-nha, e as camisolas em cima. E as saias, bemdobradas, com uma cortina. Com uma cortinaa tapar. As saias por baixo, e as outras em plis-sado por cima. Depois levei a minha sala, leveio meu quarto muito bonito. Ele levou o quartodele, que naquele tempo custou quinhentosescudos. As noivas tinham de comprar as mo-bílias. Eles só levavam o quarto deles. Levavaa mala dele. E quinhentos escudos. E disse: – Estão ali quinhentos escudos dentro damala. Mas quinhentos escudos, nesse tempo,era muito dinheiro. E depois a minha casa fi-cou com os vidros todos abertos, os reposteirosabertos, e as pessoas iam todas lá ver.

O meu vestido de noiva. Fui vestida à na-zarena. E o meu marido também. Casei-me,levei uma casa muito bonita, mas não fizboda, nem nada. O comer, comemos em casa.

O meu marido estava lá seis meses, seis esete meses, na pesca do bacalhau. E depoisandávamos todas vestidas de escuro. Não ía-mos a banda nenhuma. Uma capa pela ca-beça. E depois quando vinha, aí ao fim deseis meses, nós íamos à chegada deles. Iasempre toda bonita à chegada do meu ma-rido. Tirávamos o escuro nesse dia. Vestía-mos outras roupas. GFS, Peniche

Bloco expositivo 2A grande referência para a navegação

que se aproximava do porto de Peniche era oForte, que marcava também a divisão emterra entre Peniche de Cima e de Baixo, comos seus modos diferentes de pescar e viver.Hoje alberga o Museu Municipal e já foi pre-sídio municipal e político, além de ponto devigilância costeira. Se queremos falar de umconjunto imponente, teremos de referir os ar-mazéns de pesca no porto, que têm vindo acrescer e a modificar o aspecto dessa linhacosteira. Adentro são os hotéis que marcampelo volume o crescimento da cidade.

Recordar momentos da história:1884

João Rosa pediu a 1 de Agosto de 1884para estabelecer uma armação na costa sul dapenínsula de Peniche, em frente do Porto deAreia, num sítio com profundidade de vinte edois metros, confrontando a norte com o Portode Areia, a Sul, Leste e Oeste com o oceano.

Os proprietários das armações de pescanos mares de Peniche consideraram que esta

Celebração da Cultura Costeira 43

1. “Ir para Peniche de Inverno vir para a Nazaré no Verão”. Aspecto da praia da Nazaré,

in Trip Through Portugal, SNI, s/d2. Rede da sacada, muito praticada em Peniche, que

depois se vulgarizou noutros portos 3. Caíque de pesca do alto

2. e 3. in Estado Actual da Pesca, Baldaque da Silva, 1890

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autorização os prejudicava, argumentandoque não se devia lançar armações valencia-nas defronte do Porto da Areia porque daí resultavam circunstâncias altamente agra-vantes para esta Povoação. Lembraram oproblema da escassez da sardinha nestacosta, que tinha levado os empresários a as-sociarem-se dois a dois, passando de dozeempresas para seis, solução encontrada paramanter a indústria na localidade e a subsis-tência de empresários e de cento e cinquentafamílias que dela viviam. As artes eram lan-çadas no mês de Fevereiro, para pescar oscardumes que migravam na direcção donorte, capturando nos meses de Junho a Se-tembro sobretudo as pescarias que de su-doeste se dirigiam em direcção a terra. Umaparelho defronte do Porto de Areia apanha-ria a maior parte destes peixes nos meses deJunho a Setembro, e os rendimentos ganhosentre Fevereiro e Maio não pagariam as des-pesas, fazendo ainda cair as famílias na mi-séria: Ainda mais os produtos da indústriaexercida em tais armações são produtosabençoados; vão á choupana dos miseráveispor diferentes formas, e vão auxiliar uma cor-poração de beneficência, chamada Montepiodo Corpo Santo, com um quinhão e meio, embeneficio de mais de três mil pessoas, e queeste produto é o primeiro sustentáculo dessatão importante associação de piedade, fun-dada nesta terra pelos pescadores à mais de

duzentos anos e que com o desequilíbrio dasactuais armações é impossível sustentar-se.

Dizem que os Batéis da pesca do altotambém serão prejudicados pela armaçãoquando, o que ocorria com frequência, vindoacossados com o tempo mau e escuridão... fi-cassem presos nas amarrações do aparelho,assim como os navios à vela que demandas-sem a área.

A Câmara Municipal defendia a conces-são, pois em sua opinião só traria vantagem àspopulações: ...para onde serão transportadasas pescarias em caíques e barcos picadeirosque podem auferir com a concessão de armartal arte que está permanente no mar, o que nãoacontece com as existentes, pois simplesmentefuncionam de Março a Setembro... do que re-sultará grande aumento de contribuição para oEstado e para esta Câmara, emprego de muitosbraços e diminuição no preço daquele género,único mais conveniente para a classe menosabastada... (Representação da Câmara Muni-cipal do Concelho, 1 de Novembro de 1884)

José Maria Monteiro, José das NevesCêa, João da Cruz Monteiro e António Mariada Costa pediram em 1 de Agosto de 1884para lançar três aparelhos na costa sul de Pe-niche, com as seguintes confrontações: umno sítio da Covada do monte da Consolação,outro no sítio da Covada do Sul em frente deS. Bernardino (norte com a Consolação, sul epoente com o oceano, nascente com o sítio de

S. Bernardino), e outro defronte do Carreirodo Cabo, confrontando a norte com o Car-reiro do Cabo, a sul e poente com o oceano, ea nascente com o Porto da Areia).

1888Um cidadão de origem francesa candida-

tou-se em 1888 à exploração do sítio de Portode Areia, para aí lançar uma armação valen-ciana de pesca: “...qui vaudrait être auctoriséá établir une appareil de pêche sur lá côte dePeniche, au lieu appelé Porto d’Areia, nonloin de Cap Carvoeiro...” (Nota do ministrode França na corte portuguesa à Secretariade Estado, de 23 de Outubros de 1888; Ofíciodo Ministério dos Negócios Estrangeiros –Direcção dos Consulados e dos Negócios Co-merciais, 24 de Outubro de 1888).

José Maria Monteiro, Joaquim MariaMonteiro, José das Neves Céa, João da CruzMonteiro e António Ferreira Machado, pedi-ram em 25 de Novembro de 1888 para colo-car uma armação fixa para a pesca na costasul da península de Peniche, em frente dosítio chamado Pedra dos Corvos. Os peritosforam de opinião que nessa posição qualquerarmação fixa de pesca prejudicava a navega-ção que entrava no fundeadouro de Penicheou se dirigia à baía.

José Maria Monteiro, proprietário, resi-dente na vila, pediu em 7 de Dezembro de1888 para lançar uma armação fixa para a

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pesca de sardinha no sítio da Berlenga: no lo-cal do felante, que confronta do norte comCarreiro do Mosteiro; a sul com Carreiro daFortaleza e Mochinga; a nascente com oceano,e poente com a referida ilha da Berlenga.

Carlos José da Costa Carinhas & Filhos eJosé Maria Monteiro pediram em 7 de De-zembro de 1888 uma vistoria ao sítio dos Fa-rilhões, no sítio da Corte, para aí lançaremuma armação fixa para a pesca de sardinha.Confrontava a norte com o Farilhão de Nor-deste, a sul com o Farilhão da Cova, a nas-cente com o oceano e a poente com oFarilhão Grande.

Em 24 de Dezembro de 1888 os mestresdos barcos de pesca do porto de Peniche Re-presentaram, “por si e em nome de suas com-panhas, em número superior a doze pessoaspor cada uma”, pedindo que não fosse conce-dida licença para serem armadas artes depesca na Berlenga e Farilhões: “A populaçãode Peniche composta de marítimos na suamaior parte, empregados em batéis de pesca,vai buscar a sua alimentação, de suas mulhe-res e filhos ao soberbo elemento a que os maisaudazes se curvam perante as altaneiras mon-tanhas de água, mal dizendo a sua sorte, sendona maior parte do ano os pontos da sua pesca aparte de leste das Berlengas e Farilhões.

A classe marítima, chorada por todas,pois entre seis tábuas vão muitas vidas pro-curar um pão para seu alimento e daquelesque lhe são caros, acontecendo muitas vezesvoltarem sem ganharem um real, não foi es-quecida pelo actual nobre Ministro da Fa-zenda, que lhe reduziu o imposto dopescado. Com estabelecimento naqueles sí-tios de uma arte qualquer, fica aquela classesem porto de pesca...

Berlenga e Farilhões, colocadas pela na-tureza em frente de Peniche, é como senti-nela vigilante no alto mar que tem salvadoinúmeras vidas daqueles que acossados pelomar e tempo buscam o seu abrigo, livrando-se desse dragão tenebroso, cemitério de mui-tas vidas.

Representação da firma comercial CarlosJosé da Costa Carinha & Filhos, residente emLisboa, e José Maria Monteiro, casado, sui ju-vis, proprietário, residente na vila de Peni-che, datada de 28 de Dezembro de 1888,onde dizem não existir no ilhéu dos Farilhõesqualquer abrigo para navios ou outro tipo deembarcações: 1º Os suplicantes necessitamde empregar a sua actividade utilmente, exer-cendo a indústria da pesca e organizandopara isso uma armação à valenciana, proxi-mamente à rocha denominada Farilhões, quedista talvez cinco quilómetros da Berlenga,de que faz parte e toma o nome genérico... 2º Como se afigurem de interesse e muito lu-crativos os frutos de tal indústria exercida na-quele sítio e se empenhem alguns indivíduos,instigados pela inveja, em levar ao conheci-

mento de Vossa Majestade informações me-nos exactas...

3º... com a implantação da referida ar-mação à Valenciana, não se prejudica a na-vegação, nem se impede o exercício dapesca...

4º A vantagem resultante da criaçãoduma armação à valenciana é evidentíssimae profundamente indiscutível, pois que talarmação deverá tornar abundantíssima aVila de Peniche, tornando-se baratíssimo opescado, provocando mais transacções co-merciais...”

1889Auto de Vistoria, datado de 10 de Feve-

reiro de 1889, ao sítio dos Farilhões pedidopor Carlos José da Costa Carinhas & Filhos eJosé Maria Monteiro, para nele lançaremuma armação de pesca à sardinha. A posiçãodesejada localizava-se entre o Farilhão doNordeste e o Farilhão da Cova, mas não tinhasido possível aos peritos vistoriarem-na de-vido à forte nortada que fazia na ocasião. De-fendiam que um aparelho de pesca nessaposição não estorvava os navios de alto bordode pesca, mas tornava acanhado, ou deixariade existir, o espaço para as pequenas embar-cações que procurassem aí abrigo á aproxi-mação do temporal.

Representação de 12 de Março de 1889,dos proprietários das armações valencianas,que se mostram surpreendidos pelas notíciasque lhes seria recusada licença para armarartes de pesca valencianas por prejudicarema navegação e a pesca, quando um sistemado mesmo tipo tinha sido autorizado a JoãoRosa, apesar de opiniões contrárias que di-ziam prejudicar a pesca do antigo sistema.Pretendiam explorar sítios aonde se largamas armações até aqui usadas, ponto sempreconsiderado independente do fundeadouro;e mais duas a leste do porto, no covão do marda Consolação, por onde apenas os batéisdas pescas nocturnas passam...

Acusam as comissões de leviandade eincoerência, falta de seriedade nas decisões,...ou cederam às sugestões desse arrojadomilionário para ser somente ele o único quetenha poder de explorar a pesca nesta costa,cujo monopólio exclusivo para ele é alta-mente odioso, e importa a total ruína dos sig-natários, por que desejando sair do seumarasmo lhes é tolhido inteiramente o de-senvolvimento...

1894 Armações fixas na Costa de Peniche

João Rosa tinha um aparelho na Enseadade Peniche, no sítio chamado Porto da Areia,fundeando a uma profundidade de 20 me-tros. O fundo era pedregoso. Lançava desdeDezembro de 1889, em substituição de umaoutra concessão que explorava, localizada

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Descarga do Filipa de Lencastre, reportagem fotográfica no Jornal do Pescador, 1955

Página anterior:Descarga do Princesa, 2007

(Cais de Peniche: 39°21’17.53” N 9°22’19.51” W)

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Associação para o Desenvolvimento de Peniche

mais à terra, e que não tinha licença. Posi-ção: Farol a Santa Cruz (52º30’); Santa Cruzao farolim (41º).

José Maria Monteiro lançava um apare-lho desde Setembro de 1890 a Sueste da IlhaBerlenga. Esta concessão foi dada na condi-ção da arte não permanecer no mar duranteos quatro meses de inverno. Em 27 de No-vembro de 1890 foi revogado este despacho,e em substituição foi autorizado a lançar umaarmação à valenciana no sítio do Forninho,na enseada de Peniche. Entretanto, em 21 deJaneiro de 1893 foi indeferido um requeri-mento deste concessionário para lhe ser con-firmada a concessão junto à ilha da Berlenga.

José Maria Monteiro era concessionáriodesde 27 de Novembro de 1890 de uma ar-mação valenciana situada na enseada de Pe-niche, sítio do Forninho. Era-lhe aindapermitido 1ª) armar no rabo da armação umcopo ou armação redonda e 2ª) o cabo grossoda armação valenciana, em vez de amarrar àterra, podia terminar a 150 metros da costa,amarrando a um ferro especial (dali para aterra a tralha da rede que se estendesse seriade cabo de bitola não superior ao usado nasdalas das armações redondas de Peniche). Ofundo era de areia e pedra, a 18 metros deprofundidade. Posição: Carreiro de Joana aoCabo Carvoeiro (90º); Carreiro de Joana aoredondo da Fortaleza (28º); redondo da For-taleza à Consolação (43º).

José Maria Monteiro lançava uma arma-ção redonda em frente à Pedra dos Corvos,num fundo de pedra, a cerca de 12 braças deprofundidade. Este aparelho mudava de po-sição ao fi de 8 dias (o local era dividido emnove pontos). Posição angular: 1.350 metrosem linha recta para o Sul das Pedras dos Cor-vos. Segundo os documentos, esta concessãodata do reinado de Dom Manuel.

José Maria Monteiro, José das NevesCêa, João da Cruz Monteiro e António Mariada Costa, tinham, desde Dezembro de 1889,autorização para explorar três sítios, masnunca lançaram neles qualquer aparelho:

1º Na Cova, a norte da Consolação, aoSul do Forte de Peniche e a Oeste do Forteda Consolação, à distância de 1 milha daterra e a 12 braças de profundidade. O fundoera de pedra.

2º No Cavado Sul da Consolação, a milhae meia da terra, em frente de São Bernardino,a 13 braças de profundidade e em fundo depedra. Posição: Situava-se a sudoeste doForte da Consolação.

3º Em frente do Carreiro do Cabo, onde ofundo era de pedra, a 12 braças de profundi-dade. Posição angular: ao sul do Carreiro doCabo e a oeste do Forte de Peniche.

Augusto Simões Ferreira da Cunha ex-plorava desde Julho de 1891 o sítio do Marde Paimogo, situado a 34 metros de profun-didade na preia-mar. O fundo era de pedra e

areia. Posição: Cabo Carvoeiro à Consolação(18º20’); Consolação a Paimogo (54º40’).

Marcelino da Silva Gonçalves lançavauma armação num sítio a 1.350 metros em li-nha recta para sul das Pedras dos Corvos, emfundo de pedra (situação idêntica à de JoséMaria Monteiro), explorando-o em rotaçãocom outros concessionários. Concessões da-tadas do tempo do Rei Dom Manuel.Francisco Maria Monteiro, idem.Joaquim Maria Monteiro, idem.José das Neves Cêa & Cª., idem.Angélica da Silva Gonçalves, idem.José Acúrcio Nunes Rego de Carvalho, idem.Viúva de João Cordeiro, idem.Dionísio António Nunes de Carvalho, idem.

1903Armações valencianas e redondas nosmares de Peniche. Decreto aprovando oregulamento da pesca da sardinha, 14 deMaio de 1903

Art. 141º Na enseada de Peniche, entre oCabo Carvoeiro e o Forte da Consolação, nãoé permitido o lançamento de armações à va-lenciana ou correntezas de armações redon-das, à excepção da correnteza da Pedra dosCorvos, que poderá continuar a ser exploradanas condições do artigo seguinte.

Art. 142º Na linha determinada pela gua-rita Nordeste da cidadela e torre da Igreja deSão Pedro, que passa pela Pedra dos Corvos,só poderá ser concedido o lançamento de ar-mações redondas em correnteza até à distân-cia máxima de 1:300 metros da referidaPedra e nas condições seguintes:

1ª O número de armações na correntezanão poderá exceder a 12, sendo numeradaspor sua ordem de terra para o mar;

2ª A dala que liga a armação nº 1 com aterra não poderá ter comprimento inferior a150 metros e deverá estar mergulhada pelomenos 1 metro abaixo da superfície daságuas em qualquer estado da maré e em todaa sua extensão; (…)

4ª As armações mudarão de posição deoito em oito dias, indo a primeira da terrapara o extremo da correnteza e tocando todaspara a terra…

1904Relatório sobre a pesca em Peniche, 20 deDezembro de 1904, Alfredo GuilhermeHowel

1º Segundo a minha opinião, não se develançar armação alguma desde o Cabo Car-voeiro até à Papôa, porque muito à terra osfundos predominantes são de pedra e portantoimpróprios, e mais ao largo é enorme a quan-tidade de navios de todas as nacionalidadesque a diversas distâncias da terra passam en-tre a Ilha Berlenga e a Península de Peniche,por ficar na derrota de toda a navegação doNorte da Europa para o Sul, aproximando-se

uma grande parte dos navios do semáforo doCabo Carvoeiro para transmitirem despachos.

2ª Na enseada de Peniche de Cima não de-vem ser concedidas mais armações além dastrês já existentes, para não prejudicar o in-gresso dos barcos de pesca no Ingueiro e Lago,onde muitas vezes se refugiam, quando sur-preendidos no mar por temporais de Sudoeste.

3ª Na costa para o Norte do Baleal só sedevem conceder armações para Nordeste danormal à costa do ponto denominado PedrasRuivas, visto o fundo ser geralmente arenosonessa direcção, e não me parecer que hajarazões que obstem a qualquer lançamento;porém, entre o ancoradouro do Baleal e a re-ferida linha, o fundo predominante é pedre-goso e portanto impróprio para o emprego dearmações fixas, pois embora se encontremalgumas clareiras de areia nivelando o fundoentre as pedras, os ferros das armações te-riam que ser lançados em pedra, do que re-sultaria alguns não se poderem suspenderquando a armação tivesse que levantar oucaso deixasse de funcionar, e isso seria uminconveniente para as cachoeiras e redes dalagosta que os pescadores de Peniche lan-çam naquela zona e se poderiam embaraçarnos ferros que ficasse no fundo. Além disso,deve-se conservar livre o ingresso ao ancora-douro do Baleal, não só por dar algum abrigoao mar do quadrante Sudoeste, mas porqueexistem a Este do Baleal quatro barcos depesca e um barco salva-vidas, cujos movi-mentos de saída e entrada não se devem tolher; sendo também para atender a circuns-tância dos barcos de pesca de Peniche quevão pescar aos Farilhões, em determinadascondições de vento despejarem até ali as suasbordadas, e bem assim os barcos da Nazaréque navegam muito entre estes dois portos depesca…

Sobre a concessão de armações na costasão diversas as opiniões dos pescadores; po-rém contra a armação da Berlenga era quasegeral o clamor por os impedir de pescar nacosta Este da ilha com as artes de sacada,usadas pelos pescadores de Peniche, asquais atribuem grande parte da sua misériaàquela armação, que lhes empacha um dosmelhores locais da sua pesca, do que resultaandarem alguns sempre empenhados, aopasso que, quando ali podiam pescar, haviaépocas em que conseguiam desempenhar-secom o produto do peixe que colhiam.

Há portanto uma razão de ordem econó-mica para que se conserve livre de armaçõesa costa Este da ilha da Berlenga, afora a ra-zão de ordem moral e humanitária de ser ocarreiro do Mosteiro (único varadouro na-quela ilha), um refúgio para os pescadoresdo alto que o procuram quando, surpreendi-dos no mar por algum temporal, não podemalcançar os varadouros da costa, podendoacontecer que chegados ali encontrem com

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embarcações com as barcas das armaçõesesse abrigo, que é bastante acanhado…

1910Rufino Garcia Ferreira de Carvalho pe-

diu em 20 de Novembro de 1909 para explo-rar o sítio da Aventurosa, próximo de SantaCruz, a cerca de 1:700 metros da terra e longede qualquer outra posição concedida (autori-zado por Portaria nº 5 em 31 de Janeiro de1910). O local situava-se nas distâncias an-gulares Moinho da Póvoa e Forte da Foz77º50’ / Forte da Foz e ponta da Lamparoeira52º40’ / E enfiamentos Ao Norte: pelo Pe-nedo do Guincho prédio do Alfazema e Moi-nho da Póvoa da Penha Firme / Leste: peloForte do Paço com o meio da praia e cabeçosdo Norte / Sul: pelo casal do Gentio e as Agu-lhas. Profundidade 29 metros, fundo de areia.

Manuel Alves do Rio pediu em 4 de Ja-neiro de 1910 para lançar uma armação fixa àvalenciana no sítio do Baleal na costa Nortede Peniche. Foi autorizado em 21 de Outubrode 1910. O sítio era determinado pelas dis-tâncias angulares Farol da Berlenga pelo Fa-rol do Cabo Carvoeiro 38º00’ / Farol do CaboCarvoeiro pela Vigia da fortaleza 17º28’ / Vi-gia da Fortaleza pelo Moinho de Ferrel73º30’. E pelos seguintes enfiamentos: pontade Frei Rodrigo aberta pela Papôa / pontaNorte do ilhéu de fora do Baleal pela vigia daFortaleza. Ficava sobre a linha do enfiamentoda Torre de São Pedro pelo ilhéu de Fora, nãoultrapassando esta linha, a 18 Braças embaixa-mar, fundo de areia grossa. Foram peri-tos José Domingos e António Leitão.

José Correia Peixoto tinha feito idênticopedido e para o mesmo sítio, mas Manuel Al-ves do Rio tinha tido prioridade. No entanto aComissão Central de Pescarias discordava deuma armação nessa posição por estorvar os na-vios que navegassem aquele espaço, mas reco-nhecia já não existir naquele local um barcosalva-vidas, que tinha sido um dos argumentosanteriores para discordar com o lançamento deaparelhos fixos defronte do Baleal.

Ao contrário, a Comissão Local de Pesca-rias era favorável, havendo ainda um abaixo-assinado onde 25 marítimos, proprietários debarcos na localidade, diziam não provocartranstorno algum a presença de uma armação,não sendo a enseada frequentada por barcosestranhos a Peniche. Nem prejudicava a ins-talação de Socorros a náufragos ali instalada,que era um simples carro porta cabos, desti-nado a transportes de socorros ao ponto dacosta onde naufragar um navio.

1914O marítimo José do Carmo Serafim, mes-

tre de um dos batéis da arte de sacada, per-tencente à viúva Correia Fialho, queixou-sena delegação marítima de Peniche que acompanha do seu batel, que naquela arte

servia de enviadeira, desobedeceu às suasordens de ida ao mar. Chamados, “saíram dadelegação resmungando e protestando queem vista de ser amanhã dia festivo na terra(Senhora da Ajuda) deveriam ficar já hoje devéspera em terra”. Face a isto, e porque omestre se voltou a queixar, o delegado marí-timo considerava o seguinte: “A companhadeste batel, que além do mestre se compõede 13 indivíduos, carece ser punida, e muitoem especial os marítimos Primo de Jesus,Eduardo Vitorino, Miguel Vitorino, e Antó-nio Monteiro Júnior, considerados como osprincipais instigadores da greve havida. Es-tes 4 indivíduos, por ordem desta delegação,foram mandados recolher à cadeia civil destavila, como medida preventiva e nos termosdo artigo 196º do Regulamento Geral das Ca-pitanias de 1 de Dezembro de 1892, ficandoàs ordens dessa Capitania... Quanto aos res-tantes companheiros, não ordenou a delega-ção a sua captura para não levantar atritos,esperando contudo que essa capitania deli-bere se deve proceder no mesmo sentido(8 de Julho de 1914).

Auto de Notícia (4 de Outubro de 1914) deuma investigação sobre um conflito no marentre pescadores de traineiras de Peniche ede um buque pertencente a um cerco ameri-cano que pescava nesta área ultimamente. Odelegado marítimo considerava o conflitograve, pois nota-se que o caso foi premedi-tado, embora os arrais a quem inquiri neguema premeditação. A Delegação chamara ao in-quérito somente os mestres das traineiras,mas apresentaram-se também as 8 compa-nhas, o que foi interpretado como uma tenta-tiva de invasão da delegação: Sem contestaras alegações expostas pelos mestres, pois quepoderão ser ou não destituídas de funda-mento, é certo que, em caso de serem bemfundadas, não deveriam ser eles marítimos afazer justiça por suas mãos, mas sim comuni-car às autoridades competentes para provi-denciar ou reprimir abusos… O Delegado dizhaver um estado de exaltação e movimentodesusado, e recear conflitos.

Auto de Notícia (4 de Outubro de 1914)Tendo vindo particularmente ao conheci-mento do delegado marítimo... que no dia 3do corrente se havia dado um conflito entrepescadores de 8 traineiras e um cerco ameri-cano, que ultimamente tem exercido o seumister de pesca na área desta jurisdição, afim de investigar o ocorrido, o mesmo dele-gado marítimo fez comparecer na secretariada delegação marítima os mestres das referi-das 8 traineiras, que são: José Domingos,Tiago José, Jacinto Guio, José Maria Tor-menta, António Martins Cabana, ManuelFarto, Joaquim Nicolau e Bento Paquete,mestres respectivamente das traineiras deno-

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1. e 2. Armação redonda e lancha da armação(in Estado Actual da Pesca, Baldaque da Silva, 1890)

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minadas Elisa, Primeiro d’Agosto, Maria,Delmira, O Hespanhol, José Andrade, MariaMadalena e Ferrer, com os quais comparece-ram, quase na sua totalidade, as companhasrespectivas das mencionadas traineiras ebem assim demais marítimos doutras artes depesca, talvez dispostos a fazerem causa co-mum do ocorrido, e por tal motivo o delegadomarítimo entendeu por bem ouvir só os mes-tres sobre a ocorrência havida, declarandoum por cada vez o seguinte: que os pescado-res das traineiras da localidade têm tidopesca sofrível de sardinha antes de ter vindopara esta costa um cerco americano, arte estade mais altura que as traineiras; como o peixeandasse terreado, os do cerco empregavammatéria explosiva (dinamite) a fim de fazercorrer o mesmo para ponto mais fundo, ondeentão pudessem lançar o referido cerco ame-ricano, e isto não só prejudica as artes da trai-neira, como as outras artes da costa, pois queos explosivos não só destroem as diversas es-pécies de pescaria, como também as fazemafugentar, em prejuízo de todos em geral; queaqueles pescadores, quando lhes tem sido es-tranhada a sua forma de proceder no misterda pesca, têm ameaçado estes, dizendo queum só marítimo do cerco bastaria para 4 ma-rítimos dos de Peniche. Disse o mestre datraineira Elisa, José Domingos, que quandohá dias ia passando com o seu barco próximodo aludido cerco, um dos tripulantes domesmo barco levou a sua ameaça a ponto depuxar por uma navalha e com ela espica-çando a borda da embarcação em que estava,dizia para ele mestre da traineira, com ar deescárnio, que atracasse para a borda que lhefaria o mesmo. Andando pois com os ânimosexaltados, já por notarem o prejuízo queaquela arte causa ao pessoal das artes depesca de Peniche, como ainda por as descon-siderações e ameaças feitas por aqueles, sepode dizer dentro da sua casa, sucedeu entãona quinta feira, 3 do corrente, quando de ma-nhã iam para o mar cerca das seis horas, nota-ram que ao Norte do Baleal vinha caminho dePeniche, um buque pertencente ao mesmocerco, trazendo para a venda cerca de 7 ca-nastras de sardinha; que então os das oito trai-neiras se reuniram e seguindo em perseguiçãodo buque, atracaram a ele e lhe deitaram todoo peixe ao mar, sem ter havido mais qualqueralarde ou protesto da parte dos 5 tripulantesdo buque, entre os quais vinha o marítimo Mi-guel Farto, que no cerco exerce o cargo deprático da costa, natural desta vila e irmão deum dos arrais das traineiras. Tendo-lhe sidoestranhado o seu modo injusto de proceder,pois que não era a eles marítimos que compe-tia punir infracções doutros marítimos, se éque infracção houve da parte daqueles... De-claram unanimemente, tanto os mestres den-tro da repartição, como os marítimos que seencontravam no exterior, com bastante exalta-ção (sic): Se superiormente não for determi-

nado que aquele cerco ou outro que apareçade sistema americano, não for mandado retirardesta área, pois que prejudica os interessespessoais da localidade, não se admirem queno futuro se dêem conflitos mais graves doque este que agora se deu. Declararam maisque ainda hoje voltou o mesmo cerco e maisum outro a pescar na área de Peniche e impe-diram que os das traineiras pescassem, os queos fez estar em maior estado de exaltação...

1915Nota nº 225 da Delegação Marítima de

Peniche à Capitania do porto da Nazaré, em14 de Abril de 1915, informando que estavafundeado o barco a motor São João L61, deSão Martinho do Porto. Usava uma arte decerco americano e pretendia matricular nadelegação a respectiva companha, paranessa jurisdição poder exercer a pesca. Odelegado marítimo de Peniche lembrava queeste cerco era o mesmo que no ano anteriorestivera na origem de conflitos com os pesca-dores locais – Os marítimos daqui vêm commaus olhos semelhante arte, que, dizem eles,os prejudica nos seus interesses; porém,como a lei dá o direito da pesca livre, creioque não têm que se admirar de verem aquimatriculado o cerco ou cercos, pois estou porcerto que após esta virão mais alguns...

1929Indústria da Sardinha – Petição via tele-grama: Telegrama (reproduzido num con-junto de 8 folhas), com o selo da estação decorreios de Lisboa em 4 de Fevereiro de 1919,selo do Ministério da Marinha, Repartição doGabinete, em 4 de Março de 1929: Os abaixoassinados proprietários de fábricas de con-serva na vila de Peniche, alarmados com a no-tícia de que se pensa em cercear o direito àpesca da sardinha de noite pelas traineirasdesta vila nos meses de Verão, vêm muito res-peitosamente perante V. Exca. pedir em seunome e interpretando o sentir da enorme po-pulação operária que exclusivamente se man-tém custa da laboração das suas fábricas quesemelhante medida atentatória até da econo-mia nacional se não promulgue porquanto issorepresenta a ruína completa de valiosos capi-tais empregado nas ditas fábricas e a misériados seus operários. Acresce ainda a circuns-tância de que os signatários ficariam esmaga-dos debaixo do ponto de vista industrial pelosseus colegas industriais de conservas que sãoao mesmo tempo detentores de armações naárea da capitania deste porto e que dificil-mente deixariam aos signatários a possibili-dade de adquirirem o peixe necessário à sualaboração. Sem a pesca das armações das ar-mações a indústria da conserva vive toda elacomo os factos têm demonstrado alimentadapela pesca das traineiras, porém sem a pescadestas últimas uma grande parte das conser-

vas de peixe terão de encerrar as suas fábricasarruinando-se e aos seus operários...’ Pedemque às pequenas traineiras não sejam cercea-dos os direitos que têm, que traria a ruína dasindústrias da pesca e das conservas (9 fábri-cas em laboração) na vila. Tem junto uma fo-lha com a seguinte anotação manuscrita –Informou-se o signatário António Andrade emofício nº 145 / 6 - 3 - 1929.

Bloco expositivo 3A sardinha, tornada uma identidade de

uma população de origens tão diversas, defi-niu claramente a paisagem mental e materialdos Penicheiros diluindo a restante economiae cultura. Lê-se história nas fachadas de pe-quenos comércios encerrados, nos bairrosmarítimos construídos e recriados em novosvolumes, nos pormenores que fazem a pontecom outras artes – da madeira, da decoração– além da arte de estar ao serviço permanenteda vida de uma comunidade activa.

Entre terra e mar (anos 60): Nós chama-mos trato da luz porque o peixe era apanhadoatravés de uma lancha pequena, com 4 me-tros de comprimento, e aí metro e meio delargura. De boca aberta, sem cabine, e quetinha dois tripulantes: o contramestre, que iapara lá, e era o moço. Neste caso era eu, quefui lá muita vez.

Havia umas setente traineiras por voltados anos sessenta. Talvez aí 99,5% tinha alancha da luz. As traineiras pescavam comestas lanchas, ancoradas no Serro. Íamos da-qui às 10 horas da manhã, que era a ordemdo comandante, não se podia ir mais cedo, eancorávamos no Serro, e só se trabalhava ànoite. A partir das 10, 11 horas da noite. Atéao Serro a viagem era uma hora e um quarto.Chegávamos cedíssimo, mas era para apa-nhar as melhores poitadas. Quer dizer, o me-lhor sítio onde o peixe vinha à borda maisdepressa. Por exemplo, o Serro são dezasseisa dezassete milha de comprimento norte –sul. Mas as melhores poitadas eram no Bicodo Nordeste. Cabiam lá dois barcos a traba-lharem. Depois tinhas a Cabeça do Serro,mais por fora, onde trabalhavam oito barcosao mesmo tempo. E depois os outros queviessem atrás fechavam a loja. Ou passavamao que nós chamávamos poitada do sul, queera cá pelo sotavento abaixo. E depois as me-lhores poitadas em que se trabalhava, seapanhasse peixe, iam-se embora. Traziam aslanchas, metiam as lanchas dentro, vinhamvender à terra. E os que chegavam lá em úl-timo iam apanhar as poitadas que nós tínha-mos. E muitas vezes esses barcos jáchegavam tarde, não apanhavam nada, e de-pois ficavam lá para o outro dia, não vinhamà terra. Nós vínhamos à terra, levávamos osfarnéis para os colegas comer. Levava-separa eles comerem, e comer para eles come-

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rem, e vinho, e pão e o tabaco. E nós com achata, que é o motor auxiliar, chegávamos lá,eles estavam ancorados nas tais melhorespoitadas, e nós tínhamos que nos sujeitarcom o vice-versa do dia anterior.

Passávamos horas infinitas. Cheguei asaltar às dez horas da manhã para dentro dalancha, e saltar só no outro dia às seis, setehoras da manhã.

Chamávamos as amplias. Nós levávamosas amplias, que eram quatro. Iam logo dentroda lancha, cheias de gasóleo, que era para anoite toda. Vinte, quarenta, sessenta, oitentalitros por noite. As torcidas, éramos nós quefazíamos em viajem até ao Serro. É exacta-mente como uma trança do cabelo de uma se-nhora. Eram de tamiça. Comprávamos ali naloja dos Três Ases, ou nos Mamedes. Os TrêsAses e os Mamedes eram as lojas dos apetre-chos marítimos que havia em Peniche. Haviaa Promar também, mas nós 90% era nos TrêsAses e nos Mamedes. A murraça, compráva-mos onde é que é agora… Ao pé da pastela-ria, a fábrica da pastelaria, aí eram oslatoeiros que faziam. Hilário Brás, Peniche

É muito incerto: Em Peniche não há para-gem. A época do cerco é todo o ano. Há pa-ragem, mas é alternada. Cada barco pára 1mês para subir à carreira, em Janeiro um, emFevereiro dois, em Março três ou quatro. É afase mais fraca de existência de sardinha nacosta, aqui da Nazaré até à Roca. Os mesesde Fevereiro, Março e Abril. Os patrões emsi normalmente são mestres. Então, para cor-rer as redes, para a reparação da traineira,participam às companhas e põem-nas no de-semprego. Desde noventas.

Numa estimativa, no Verão pode-se sair– por norma, a pesca é sempre incerta – trêsvezes. Vamos à Segunda-feira às duas horas,vimos à terra às quatro e meia. Saímos nova-mente para apanhar o assejo da tarde. Re-gressamos por volta da meia-noite. Vamos àscinco da manhã. E regressamos às oito, novehoras da manhã.

No Inverno só se sai duas vezes: ao as-sejo da tarde, e ao assejo da manhã. Ao as-sejo da tarde: sai-se às seis horas da tarde, eregressa-se por volta das dez, onze horas.Depois sai-se às cinco da manhã, e regressa--se às nove, dez, onze horas. Os homens fi-cam no barco.

À saída do porto o mestre escolhe o rumopor experiência, pela experiência de dados.Nesta altura estão a trabalhar no Mar daBóia, ao sudoeste, a vinte e cinco minutosdaqui. Por vezes é em Porto Novo, a trinta ecinco minutos, quarenta minutos daqui. Porvezes vão um bocadinho mais abaixo, aoLimpo de Santa Cruz, que é a praia de SantaCruz. Se não tem aí, depois então só se tra-balha na Ericeira. Desde Santa Cruz até àEriceira, é tudo pedra.

É muito variado. Nunca há uma certezapara dizer assim: Nós vamos ali, vamos apa-nhar. É muito incerto. Muito incerto. Parecefácil para quem está em terra. Há sempresardinha em Peniche. Mas na realidade, nãoé bem assim.

Usamos o sonar. Normalmente aqui tra-balhamos com doze graus de fecho e duzen-tos metros de abertura de distância. Quemnão tiver sonar, actualmente, não vai ao mar.Ou então diz logo assim: Já estou derrotado.Psicologicamente, diz logo assim: Já estouderrotado. Não vale a pena. Tenho o sonaravariado. HB, Peniche

À sorte e à marcação: O lançamento darede é um momento fundamental. É precisoter sangue frio para tomar decisões, de quetudo depende dessa decisão. A partir dessadecisão vão comer catorze homens. Catorzehomens, multiplicando por dois, veja láquantas pessoas dependem dessa fracção desegundo. Estou na cabine. Estou em silêncio.Estou concentrado na pesca. Todos respeitamesse momento. Estou concentrado. Estou aver os aparelhos. Estamos à procura de peixe.Olho para a hora, olho para o sol, Ainda nãoestá na hora, mais 5 minutos, mais um mi-nuto ou dois. E por vezes por um minuto oudois o peixe desaparece. É um tiro no escuroem 99,5% das situações. Principalmente semsonda e sem sonar. Porque o relógio, por ex-periência, oscila, mais dois minutos, maistrês minutos. Uma pessoa controla-se: Ontema esta hora larguei e apanhei x de peixe…

Em tudo isto conta muito a experiência.Pela marcação. Tudo depende. Pode ser maisespalhada, mais aberta, mais carregada, temn de factores, que jogam dentro da cabinepara tomar a decisão certa. São coisas inex-plicáveis, que só estando lá é que a pessoa sehabitua a dar valor.

Eu digo 99% é um tiro no escuro porquesem sonda e sem sonar é como uma pessoa aandar de noite numa casa e não tem luz. Umapessoa vai largar, só se vai largar à água.Uma pessoa não sabe qual é a marcação quetem, como é que pode ter um cálculo, se apa-nha cem cabazes, se apanha cento e vinte ca-bazes, se apanha vinte, se apanha dez, seapanha setecentos. Mesmo nós a largar àmarcação, a ver a marcação, às vezes não seapanha. Quanto mais a largar à sorte. Issochama-se largar à sorte. Não pode funcionarassim. Nem deve funcionar assim.

Se o peixe se apanhasse com os olhosquando eu nasci já não havia peixe no mar.Mas o peixe não se apanha com os olhos. Arede é que o apanha. A rede é que o mata. Ea hora. Principalmente a rede e a hora. Sãoos dois factores essenciais para se apanhar opeixe. É a hora, que é a hora do assejo, e é arede. Tanto o assejo da tarde como o assejoda manhã. Nós costumamos dizer: É a hora

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1. Painel de azulejo identificando o armazém depescarias de José do Rosário Leitão

2. Albino Massagão, artesão de aprestos3. Fachada do edifício da Alfândega de Lisboa,

Posto de Despacho de Peniche com redes para os trabalhos de Albino Massagão

(39°21’23.16” N 9°22’42.83” W)

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Associação para o Desenvolvimento de Peniche

que o mata. Lá está a tal coisa do relógio.Não pode ser ao sol-posto. Aconteceu jámuita vez o sol estar posto, e largar a rede, eapanhar tanto como uma mão vazia. Um co-lega meu largar passado cinco minutos e en-cher o barco de sardinha.

Esta é a hora fatal, em que o peixe anda acomer. O peixe anda entretido com as come-dias – o plâncton, o fito plâncton –, anda al-vorado, junto. São n factores. HB, Peniche

Piqueniques no pinhal: Antes cá em Peni-che faziam-se muitos Piqueniques. Aos fins--de-semana as pessoas iam para o pinhal. To-dos os fins-de-semana levava-se o coelho gui-sado ia-se para o pinhal e ficava-se ali o diainteiro. Ficávamos sempre no mesmo sítio.Numa árvore deitada. Só na Primavera e Ve-rão. Muitas vezes era o coelho guisado. Quel-mes secos também. Muitas vezes era o meupai que trazia o peixe que arranjava dos ho-mens que vinham das viagens. Outras vezesíamos comprar. É um peixe de viagens. Secá-vamos lá em casa: a pele mantém-se. Tira-se acabeça. Lasca-se e põe-se a secar. O meu paitinha uma moldura de madeira, com rede depesca, onde punha o peixe. Somos cinco. Eu,as minhas irmãs e os meus pais. Lá íamos apé, até ao pinhal, todos muito contentes. Osmeus pais tinham um fogão de petróleo, levá-vamos e cozíamos lá o peixe. Ou então o coe-lho já vinha feito de casa. Passávamos lá atarde toda. O meu pai sempre com o rádio. Fi-cava a dormir a sesta. Apanhávamos camari-nhas, umas bagas que há no pinhal, umasbagas brancas meio doces meio azedas. En-quanto o meu pai dormia nós íamos apanhar,mais perto do Cabo Carvoeiro. Nós íamos maispara a costa. Depois púnhamos açúcar e ía-mos para casa a comer as bagas. TSS, Peniche

Cada porto é uma recordação: Foram setesemanas de porto em porto. Foi uma expe-riência engraçada, foi o meu trabalho decampo. Comecei numa das pontas. Fiz Olhão,Portimão, Sines, Setúbal e Sesimbra namesma semana. Porque Sesimbra tem um bo-cadinho mais de força a nível de cerco. Tam-bém há cerco em Setúbal. E como a Sesibalestá em Setúbal, tive ali uma semana nosdois. Regressei a casa. Depois peguei outravez no meu carrito e fui para Matosinhos, Fi-gueira, e acabei em Peniche.

Cada porto é o ponto de recordação. É omeu carrinho cheio de coisas, era o meubloco de notas tipo diário. Antes deles che-garem tentava fazer um resumo do dia ante-rior, para não me esquecer de nada. Tinha dememorizar muito bem as coisas.

Os portos são todos diferentes uns dos ou-tros, É difícil escolher um. A Figueira se ca-lhar chama-me mais porque foi o primeiro.Não cheguei a ver os desembarques em Mato-

sinhos porque eles estavam na altura do de-feso. Mas falei com eles na O.P. No Algarve,como eles dizem, O Algarve é estrangeiro. Anível de cerco tem uma forma de funcionarcompletamente diferente. Enquanto cá emcima tentam prezar pela qualidade para subiro preço, lá em baixo tentam ser os primeiros achegar, não interessa a qualidade porque ven-dem sempre. Uma coisa que também recordoé a venda na lota em Sines. Que é o único sítioque é feito à voz. Sandra Farinha, Peniche

Bloco expositivo 4ISN, estaleiros sem uso, indústria de

conserva desactivada: o que vemos não é umpassado pujante, cheio de História de sabe-doria e de fórmulas económicas que fizeramsentido em determinada época. O progressoe a transformação não têm necessariamentede levar ao abandono do que deixa de ser útile lucrativo. Pode continuar a contribui parauma identidade local quando a sua funçãonão é esquecida e no processo de conserva-ção origina ou alimenta iniciativas. Mantermarcos pujantes é atrair a atenção de resi-dentes e visitantes; com pequenos gestos sevaloriza um espaço abandonado, se criampercursos no tecido urbano, se produzem es-pelhos que devolvem ao habitante de Peni-che uma imagem mais coetânea com as suasorigens (sejam elas referenciáveis à cana eanzol, à sacada, à armação fixa ou às artes eformas organizativas dos finais do séc. XX).

Estaleiros e carpinteiros navais: Eu meto--me na construção naval porque os meus tiostinham um estaleiro ao pé de onde eu morava.O meu tio tinha três estaleiros. Tinha um nacasa dele. Um armazém, que ainda hojeexiste. Que fica ali, quando se vai para a Ni-gel. E os barcos vinham puxados por juntas debois de lá até aqui. E eu morava ali ao pé. Fre-quentei o primeiro ano da escola industrial,mas todos os bocadinhos que tinha ia para oestaleiro. Eram três estaleiros de Manuel Ma-lheiros & Irmãos. Os três. O meu avô eraconstrutor naval. E trabalhava aqui encostadoao muro da fortaleza. Tinha um outro estaleiromesmo dentro da vila, aqui pertinho também.Morreu quase subitamente. Tinha um barcoem construção. O meu tio era novo, o irmãomais velho, era novo, mas teve de ficar àfrente do estaleiro. E os irmãos acabaram de-pois, mais tarde, por trabalhar por conta dele.Mas cada um montou um estaleiro.

Havia o carpinteiro naval ou carpinteiro demachado. E depois havia o calafate. Mas aquiem Peniche como nunca houve essa tradiçãode separar as profissões. O carpinteiro era poli-valente. Fazia de carpinteiro naval, fazia decarpinteiro de limpos, porque fazia o arranjointerior, e fazia de calafate e de pintor. Mas aprofissão é carpinteiro naval ou carpinteiro demachado. Carpinteiro de machado porque a

tradição era trabalhar com um machado. Nãocom uma enxó, como veio mais tarde. A ma-deira era toda aparelhada a machado.

No meu tempo já trabalhávamos com en-xós, a de cabo comprido, que chamamos umaenxó de ribeira. E a outra que é uma enxó da-quelas normais. Com que trabalham os ta-noeiros. Só que o carpinteiro naval trabalhacom a enxó ao contrário do tanoeiro. O carpin-teiro naval tem a enxó virada ao contrário.Nem o carpinteiro naval é capaz de trabalharcom a enxó do tanoeiro – não consegue, nãoestá habituado – e o tanoeiro não conseguetrabalhar com a enxó do carpinteiro.

Fazíamos tudo. Íamos serrar para cimade um toro. Tínhamos serradores só para fa-zer aquele trabalho. Não faziam outra coisa,nem sabiam. Nem eram pessoas daqui. Eramdaqui do pé da Figueira da Foz. Viviamnuma barraquita. mesmo lá no estaleiro, feitaem madeira. Depois o meu tio tinha um ar-mazém onde guardava umas coisas e eles ti-nham umas tarimbas onde ficavam. Só iam àterra – eles eram do pé da Figueira, doMonte Redondo, não sei se conhece – e sóiam à terra pelo Natal. E as mulheres vinhamcá em Agosto na altura da festa daqui, noDomingo da Festa.

Trabalhava-se Sábados. Tínhamos umbocadinho da uma da tarde ao Domingo, queera a folga. De resto trabalhávamos o diatodo. E pegava no estaleiro às oito, e vinha--me embora quando já era de noite.

Quatro dos estaleiros ficavam na zonafrente ao Intermarché, naquele bocadinho.Onde está a casa do salva-vidas, dali até àmuralha, havia dois. Havia o nosso, que era omaior, que era o Manuel Malheiros & Irmão,e mais tarde foi União da Gamboa. Encos-tado à muralha havia um que eu não chegueia conhecer. Ele esteve ali muito pouco tempoe eu era miúdo na altura. Que era o JoaquimCarneiro. Do outro lado havia o António Ma-lheiros, que era irmão destes meus tios, queera meu tio. Havia o Pompílio do Carmo Es-correga onde estão a fazer aquele barzinhode apoio de praia. Depois havia o João Prín-cipe, que trabalhou aqui na praia, e tambémlá em cima, onde fez uma traineira, no Que-brado, onde está aquele barzinho, que é OGrão. Depois veio para aqui para a praia.Havia o Alfredo Andrade, que ficava mesmoao pé da Igreja da Nossa Senhora da Concei-ção. Ainda lá estão o armazém e o portão.Havia o Zé Maria Carriço, que trabalhavaaqui na praia. Havia o Ramiro Salvador daCosta & Irmãos, a trabalhar também aqui napraia. Um estaleiro grande. Havia o Zé Ban-deira, que trabalhava aqui por detrás, nessesarmazéns, onde estão ali uns barzinhos, numquintalão, que ainda lá existe.

Havia, como é que se chamava o outro. Otipo depois foi para o Canadá. Mário Rapaz.Ficava aqui no Quintalão.

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Os meus tios tinham aquele lá em cima,tinham um em casa deles, e tinham um naRua Afonso de Albuquerque. A última pes-soa que lá trabalhou nesse estaleiro, fui eu.Um estaleiro ficava ali quando se vai para aNigel, a seguir a São Marcos, o outro ao pé doCapilé, uma taberna que é muita famosa emPeniche, que ainda lá está, e ainda outro napraia de Peniche de Cima, que era o maior.

“Ainda havia outro que era o Manuel Ri-cardo, detrás da Nigel, onde estão uns moinhosantigos, quando se vai ali para o bairro Camões.

Lá em cima há um espaço onde trabalhampai e filho, que faziam umas lanchinhas e algu-mas reparações. mas nunca construíram. Era sóumas embarcações miúdas, nunca fizeram ou-tra coisa, e era a reparação. Deslocavam-se àpraia. Mas como eles havia muita gente aí a tra-balhar, a fazerem reparações, biscates.

Em sessenta havia mais de duzentos ho-mens a trabalhar em Peniche. Mas na car-pintaria naval só. Os estaleiros aqui semprefizeram só a parte de carpintaria. Depois ha-via oficinas a fazerem a parte de motores eferragens. Também havia para aí uma quan-tidade enorme de oficinas que empregavam,se calhar, mais cem ou cento e cinquenta ho-mens. Só ligado ao ramo da construção navalhavia em Peniche, de certeza, nessa altura,mais de trezentos homens a trabalhar. Entrecarpinteiros, serralheiros, electricistas. Emsetenta e um já houve muita emigração. E noramo da gente foi muita gente embora. Masera capaz de ainda haver cem, para mais.

Em setenta e quatro, quando se dá a revo-lução, ainda havia mais de sessenta ou se-tenta homens a trabalhar.

Carpinteiros navais em Peniche neste mo-mento, a trabalhar, é capaz de haver para aícinco ou seis. Quatro ou cinco ali no estaleiro. Emais esse rapazito que vêem ali, que é o Carlos,que vai trabalhando por fora. De resto não hámais ninguém. E a construir, estou convencidoque já não se constrói mais em Peniche. Em ma-deira já não se volta a construir. Pelo menos nostempos próximos. José Maria Marreiros, Peniche

Bloco expositivo 5Para criar a partir do que existe e tem

força são precisas pessoas de coragem, per-sistentes, que não desistam aos primeiroscontratempos. Experiências, quer sejam po-sitivas quer negativas, trazem consigo lição eé com ela que se pode ligar a economia dopassado ao futuro.

Em Peniche encontrámos criadores dassuas próprias profissões, mulheres e homensque se envolveram com os seus ofícios e ossouberam respeitar e valorizar no que tinhame têm de promissor.

Formar a Cooperativa: Formámos a Coope-rativa em Janeiro de setenta e sete. O estaleiro

nunca parou. Acordámos com o meu tio. O tra-balho que ele tinha lá ficou para acabar. Ele,no dia 31 de Dezembro, cessou a actividadedele, e passou a União da Gamboa, que era onosso estaleiro. União da Gamboa, EstaleirosNavais de Peniche. Claro que depois ainda fi-cou o meu tio. Eu já tinha algumas luzes, masse tem experiência… Não se assumia a res-ponsabilidade da construção de um barco as-sim. Ele ficou ali ainda dois anos a trabalharcom a gente. Depois acontece-lhe aquilo. Naaltura eram dezoito homens lá naquele espaço.E então fizeram uma reunião, na altura, A pes-soa capaz de ficar ai à frente és tu. Era quemsabia traçar, era quem sabia marcar, era quemjá estava habituado a ir ao pinhal comprar ma-deira com o meu tio, escolher e não sei quê, demaneira que fiquei. E fiquei até acabar. Aca-bámos em 2005, mas construímos muitobarco. Ainda andam aí uma série de barcos.Com trinta anos. Fruto da Liberdade, Rumo àPesca. Depois quer dizer… Em setenta ecinco, setenta e seis, havia aquela fase que atése pensava que ia mesmo parar. A partir de se-tenta e sete, não fazíamos mais porque não po-díamos. Não tínhamos capacidade de resposta.Foram muitas traineiras feitas em… Umas emAveiro, outras em Vila do Conde, porque nãoconseguíamos responder ao trabalho. Porqueninguém queria esperar. Queriam o barco equeriam andar JMM, Peniche

Na altura não senti dor: Um acidente. Estáaqui. Aconteceu-me no dia 5 de Novembro demil novecentos e setenta e três fiquei sem es-tas quatro pontas dos dedos. Numa máquina.

Sei que estava a passar numa Garlopaeléctrica um bocadinho de madeira. E eumeto aquilo à máquina, por cima, e passouum bocadinho para o outro lado. E quandodeixo de empurrar com esta mão para ir aooutro lado, a madeira saltou e eu pus os de-dos em cima do rolo. Mas não dei por me cor-tar. Quando a madeira caiu nas aparas quetínhamos ali, vou para ir segurar o bocaditoda madeira, é que vejo pingar sangue. Eu ti-nha 28 anos na altura.

Na altura não senti dor. Quando fui parao Hospital a minha preocupação era se pode-ria voltar a trabalhar na minha profissão. Játinha um filho.

Aqui em Peniche não havia cirurgião. Equando cheguei ao Hospital – era aqui embaixo ainda – o enfermeiro fez-me o penso,chamou uma ambulância para me mandarempara Lisboa. Estava a ambulância à porta, apreencherem os papéis para eu seguir paraLisboa, veio um médico, que era das Caldas,que fazia aqui o serviço, perguntou o que era.Olhe, é isto assim, assim.

– Então destape lá para eu ver.O enfermeiro destapou e ele disse assim:

– Mandem a ambulância embora, preparemuma mesa, que eu vou operá-lo.

Celebração da Cultura Costeira 51

1. José Maria Malheiros conta-nos um acidente de trabalho

2. e 3. Ruínas do antigo estaleiro, sendo visível na segunda foto a fábrica de conservas

(39°21’53.07” N 9°22’24.99” W)4. Por perto o edifício do ex-Instituto

de Socorros a Náufragos

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Associação para o Desenvolvimento de Peniche

Eu só dizia, Oh senhor doutor, aproveite--me o que puder. E realmente ele aproveitoutudo. Depois é que tive dores, e dores e dores.

Quando melhorei fui para Lisboa. Passa-dos dois meses e tal. Fui a Lisboa à Compa-nhia de Seguros. E o médico perguntouQuem é que tinha perdido tempo a fazer-meisso. A aproveitar-me os dedos assim. Tantoque as unhas vão crescendo. Porque se eutenho a pouca sorte de ter ido na ambulân-cia, ele tinha-me cortado os dedos todos. Eeu não podia ter voltado a trabalhar.

Comecei a trabalhar em meados de Ja-neiro. Mas não foi por que tivesse bom. Foiporque precisava de trabalhar. Eu ganhava naaltura sessenta e quatro escudos por dia de se-guro. Casado, com um filho, renda de casa, nãotinha mais de onde me viesse. A minha mulhertrabalhava de costura em casa. E eu fui traba-lhar antes porque precisava JMM, Peniche

Fazer sacos de rede: Por vezes compramos.Por vezes oferecem-nos. Em vez de manda-rem fora, nós aproveitamos. E eu que soumuito curioso, e sei trabalhar com isto, corto eaproveito. Isto, em princípio, é tara perdidapara os pescadores. Mas eu como tenho muitapaciência, vou aproveitar estas coisas e servepara isto. Em vez de deitar fora. Não tenhomedidas certas. É conforme a rede dá. Nor-malmente, quando é por fases, eu tenho umaquantidade, faço, por exemplo, um metro emeio de largura por oitenta de altura. E depoisse tiver setenta, também não vou tirar fora. Háum que quer um mais pequeno, há outro quequer um maior. O que a rede dá, é aquilo queeu aproveito. Faço estes trabalhos há mais detrinta anos. Se calhar. Por influência do meupai. O meu pai aproveitava muito este tipo decoisas e eu dei seguimento. AM, Peniche

Empresária e guardiã da família: Os meusfilhos quando foram para o mar com o pai. Jánão podia estar a vender peixe. Tinha de lhesestar a fazer os farnéis para eles irem para omar com o pai. Porque era muita gente. Muitaroupa a lavar. Muita roupa a passar. Eu le-vava noites inteiras aqui dentro deste quintal– que isto era um quintal – a lavar carradasde roupa dos filhos. GFS, Peniche

Nesse tempo o peixe era abundante: Nessetempo ganhava-se um bom dinheiro. Tanto ga-nhava o patrão, como ganhavam os camara-das. A nossa costa de Peniche dava para tudoe para todos. Havia muito peixe. Muito para oinverno. Vendiam aquelas celhas de peixesnas alagens. Peixe fresquinho que era umamaravilha. Mais barato que o povo compravapara vender. Ficávamos fornecidas para umasemana inteira. Mas era peixe bom. Fresco.Só não ia para a lota porque estava ali um bo-cadinho ruído deste ou do outro peixe, ou doanzol. Tinha aquela aparência, já não ia para a

lota. Mas era muito fresco. Muito bom. E davapara toda a gente. Hoje não. Hoje está tudomuito, muito, degradado. Maria Eugénia, Peniche

Os paleques na economia local: Chamáva-mos paleques aos turistas porque vinham deoutras terras para as praias. Agora é que lheschamam turistas. Agora é tudo turistas. E ospaleques antigamente tinham mais dinheiroque têm hoje. Às vezes ficavam por quinzedias e por um mês. Oito dias. Era mais portu-gueses que eram estrangeiros. Era das aldeias.

Nós ainda hoje chamamos paleques. Pa-leque e saloio. GFS, ME, Maria Alzira, Peniche

As costureiras: Antigamente haviam pessoas,bacalhoeiras, que tinham uma costureira.Aquela senhora era costureira. Trabalhava nacasa dela. Mas essa senhora tinha o marido nobacalhau e falava à costureira para tantos dias,para o mês tal: - Fazes conta tantos dias para aminha casa. Essa costureira ia trabalhar atempo inteiro para casa dela. Ganhava e dava--lhe de comer. Umas era com comer, e outraseram sem comer. Era conforme elas faziam.

E nós estávamos a arrematar a roupa.Para a costureira não perder tanto tempo. Senão tinham de pagar mais. E óleo na roupa deoleado. Cheguei também a dar óleo na roupade oleado. Outras eram os maridos. A roupavinha em branco. Pano cru. Era um óleomesmo preparado, mesmo para a roupa.Comprava-se avulso o óleo. Para dar no pano.Às latas. Estendia-se no chão. G, ME, Peniche

Bloco expositivo 6Artes e ofícios, quiosques e pensões,

peixe seco e souvenirs: Ao lado da grandeeconomia permanece uma outra que podeser bem integrada, se houver visão, sentidode oportunidade e ousadia. O contrário é queconduz ao desaparecimento sem história,mesmo daquilo que tem história e um pas-sado forte.

Com as mãos para baixo: Dos seis para ossete. Foi na mesma altura de entrar para aescola. Quando eu saía da escola ia para o péda madrinha. Ela ensinou-me a fazer. A mi-nha mãe também sabia, mas já não fazia.Porque eu sou uma filha de uma mãe de cin-quenta anos. Portanto, quando eu tinhaidade de fazer alguma coisa a minha mãe jáestava velha. Com quinze anos já a minhamãe era velha, velhinha.

A renda mais difícil é o casar. Já fiz hámuitos anos.

Só ensinei a minha neta e a minha filha,mais nada. Aqui vão para a escola, ali para aescola da câmara. Na aldeia, como nósaprendíamos umas com as outras não, nin-guém vai aprender. No verão, nas férias, asmeninas vão para ali. Agora nos arredores,Geraldes, Lugar da Estrada, São Bernardino,

Casais do Júlio, Atouguia, Ferrel, toda agente trabalhava em rendas. Mas ensinavamumas às outras. As meninas, quando saíamda escola, ou iam aprender a costura, ou iamaprender a fazer renda para não irem para ocampo. Se não tinham de ir para o campo.

Nós trabalhamos, cá em Peniche, trabalha-mos com as mãos para cima, em Vila do Condetrabalham com as mãos para baixo. Sempre as-sim, que eu não sei como é, não sou capaz. Agente aqui tem uma prática, mas só visto paracima. As de Vila do Conde têm uma práticacom as mãos para baixo, que a gente nem vê asmãos delas a trabalhar. Só que a renda de Peni-che é muito mais bonita. Não tem nada a ver.As rendas delas, é todas parecidas com aquelasque estão ali naquele livro, linha muito grossa,as pastilhas muito laças, porque elas não põemtantos bilros como a gente. Fazem uma trançacom três bilros, fazem uma pastilha com três bil ros, ao passo que a gente é com quatro. Sem-pre com quatro. E estas, assim pequeninas, têmque vir dois bilros ali, e dois ali, para fazer asquatro. São uma pastilha quadrada, mas é qua-tro bilros na mesma. Elas já têm levado daquimuitos desenhos. Mas elas não são capazes defazer. As Espanholas, é a mesma coisa. As nos-sas, é a que leva mais bilros. Se vierem à expo-sição de rendas, quando é no verão, ali noJardim, vêem as Espanholas, as Francesas. Asalmofadas mais cheias de bilros são as nossas.No entanto, elas também fazem trabalhos lin-dos, mas é com outra técnica. Aqui em Penichefaz-se com a linha mais fininha e com maiornúmero de bilros. Mas também se faz com a li-nha mais grossa. Mas com a linha mais fina otrabalho fica mais fino. Mas para aplicar agoranos vestidos estão a fazer com linha grossa. Ben-

vinda Pedro, Peniche

Aprender e gostar da renda de bilros:Aprendi a fazer renda com a minha mãe. Ti-nha sete anos.

Primeiro vejo realmente se gosto, se nãogosto não faço. Escolho o pique, o desenho.Se não tenho mando picar a senhora que picaos piques. Há pessoas que fazem o desenho.Depois prendo o pique que já tem o desenhoà almofada e encho os bilros. E depois co-meço a renda. Então é sempre andar.

Antigamente as rendas eram tudo comflores, com abertas, umas tapadas, meioponto, fazia assim.

Sou cá de Peniche, nasci cá, levei muitotempo que não trabalhei. Três anos que nãotrabalhei, porque tive gosto do balcão, de-pois fui para a escola. Fui para a escola, masdepois chamaram-me para aqui outra vezGraciete Farto, Peniche

Uma moura: Para fazer o início da mourapõe-se água e sal.

Para saber se a moura está em condições,põe-se um único peixe na moura. Se o peixe,

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abóia, a moura está correcta. Se não abóia,tem de se pôr mais sal para a segunda expe-riência. Quanto tempo é necessário para opeixe estar na moura, isso não sei.

Volta-se a experimentar logo na altura.Volta-se a pôr mais sal se o peixe não abóia,mexe-se o sal, e torna-se a pôr o peixe. Se opeixe abóia, muito bem.

Tem de se continuar a pôr sal até que opeixe abóie. É assim que se vê se a moura estáem condições. Até na nossa casa, para se fri-tar peixe, eu, não salgo. É sempre na moura.Vou trabalhar fica o peixe na moura. Ponhoum bocado de sal num alguidar. Mexo. Umafaneca, um carapau, seja o que for. Se eleaboiou, está em condições. Se não aboiou, nãoestá. A moura não está suficiente para o peixe.

Utilizo a moura para fritar o peixe. Gostomais que salpicar. Tenho muito medo que fi-que salgado, pois estou a a trabalhar, a lavar,estou a provar o peixe a ver se está bom. Eassim na moura, se está boa, escorro, passopor uma auguinha, pronto está em condiçõesde grelhar. Dou o tempo, vou para o trabalho,faço a moura mais fraca. Se for na hora, amoura é mais forte. Qualquer peixe.

E o peixe para as conservas é a mesmacoisa. Vai para a moura, mas tem de haveruma pessoa responsável para saber se amoura está ou não em condições ME, Peniche

Bloco expositivo 7O processo de certificação da sardinha,

que a Associação Nacional das Organizaçõesdos Produtores da Pesca do Cerco iniciou em2008 – terminando em Outubro de 2009 –, eenvolveu o IPIMAR e a Associação Nacionaldas Indústrias de Conserva de Peixe, entreoutras instituições, garante ao consumidorque a pesca desta espécie é realizada demodo sustentável. Pode em consequência sercomercializado com o símbolo do “MarineStewardship Council” (MSC), tal como aspescarias do salmão no Alasca, da sardinhano México, do arenque na Escócia e Mar doNorte norueguês. A sardinha capturada nacosta portuguesa é também a primeira espé-cie de peixe certificada na Península Ibérica.

Primeira Pescaria Portuguesa a ganharCertificação Sustentável MSC 14 January2010 (http://www.msc.org/newsroom/news/pri-meira-pescaria-portuguesa-a-ganhar-certificacao-sustentavel):

“O Marine Stewardship Council (MSC)atribuiu à a certificação de sustentabilidade eboa gestão da actividade piscatória, sendoesta a primeira pescaria portuguesa a obtercertificação ao abrigo do programa interna-cional. Com o objectivo de celebrar estemarco, realizar-se-á amanhã um evento na ci-dade piscatória de Peniche.

As capturas da Associação Nacional dasOrganizações de Produtores da Pesca do Cerco

(ANPOCERCO) – que representam 95% daprodução de sardinha em Portugal (com um ní-vel de captura anual superior a 50 000 tonela-das) – podem agora ser portadoras doeco-rótulo azul do MSC, que é reconhecido in-ternacionalmente. A certificação abrange todasas embarcações de pesca costeira da Associa-ção (com mais de 9 metros de comprimento),cuja actividade principal é a pesca do cerco.

Acerca da ANOPCERCO: A ANOPCERCO(Associação Nacional das Organizações dosProdutores da Pesca do Cerco) foi criada em1997. O seu principal objectivo é assegurar agestão sustentável dos seus recursos naturais.

O que diz a ANOPCERCO: HumbertoJorge, Presidente da Direcção da ANOP-CERCO declarou: A nossa experiência nosúltimos 17 meses tem sido claramente posi-tiva. O processo de avaliação do MSC permi-tiu-nos retomar o debate, no que respeita àgestão sustentável dos recursos da pesca,não só no seio da indústria pesqueira, mastambém a nível externo. Os pescadores e osparceiros comerciais têm-se mostrado bas-tante interessados ao longo de todo o pro-cesso. Compreenderam o que está em jogo,bem como os benefícios que a certificaçãoMSC lhes pode trazer. É uma situação emque todos ganhamos. O MSC dá-nos a opor-tunidade de mostrar ao mundo o nosso claroempenho em matéria de sustentabilidade. Acredibilidade do sector da pesca como umtodo irá ser beneficiada com esta certificaçãodo MSC e estamos confiantes de que irá con-tribuir no sentido de sensibilizar os consumi-dores portugueses para o facto de que asescolhas que fazem no mercado têm um im-pacto no futuro dos oceanos.

Humberto Jorge acrescentou: A avalia-ção do MSC proporcionou-nos uma oportuni-dade única de rever os nossos sistemas degestão, de detectar falhas e de perceberquais são os nossos pontos fortes. Além dacertificação, este processo ajudou-nos a re-considerar o futuro da nossa pesca e a esta-belecer metas para a melhoria da cooperaçãono seio da indústria pesqueira portuguesa ecom os nossos parceiros.

O que diz o MSC: Rupert Howes, DirectorExecutivo do MSC afirmou: “Quero felicitar ospescadores da arte do cerco pela obtençãodesta certificação, que constitui um testemu-nho do seu sentido de oportunidade e do seuempenho no que se refere à sustentabilidade.A sardinha é um ícone, com um enorme signi-ficado cultural para a população portuguesa eos actuais pescadores de sardinha estão a con-tinuar uma velha tradição de boa gestão desteimportante recurso. Este empenho por umapesca sustentável permite garantir um futurolongo e proveitoso para a sua indústria e estou

Celebração da Cultura Costeira 53

1. Benvinda Pedro, escola de rendas, Peniche2. Leitão do mar do Tio Zé do Pio

3. Lata comemorativa da certificação da sardinha, editada pela Câmara Municipal de Peniche

4. Sardinha Portuguesa certificada para exportaçãopor firma inglesa (fotografia de Vítor Garcia)

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Associação para o Desenvolvimento de Peniche

certo de que, com a atribuição do eco-rótuloMSC e com aumento da procura de pescadocertificado sustentável, os pescadores irão en-contrar novos mercados para o seu pescado.”

E o artigo do site termina assim: Uma pescamuito antiga. A pesca da sardinha é uma dasactividades mais antigas da Península Ibérica.A pesca portuguesa remonta aos tempos roma-nos e tem estado em contínua actividade, pelomenos, desde o século XIV. A pesca opera naplataforma ao largo da costa portuguesa (nor-malmente entre 15-70 metros de profundidade).Os três principais portos de desembarque si-

tuam-se a norte de Lisboa-Matosinhos, Peni-che e Figueira da Foz.

Há mais de um século que os desembar-ques anuais de sardinha registam quantida-des superiores a 50.000 toneladas métricas.O período mais alto destes desembarquesocorreu nos anos 60, registando-se mais de300 embarcações de pesca com desembar-ques que excederam as 150.000 toneladasmétricas. Desde essa altura os desembarquestêm vindo a decrescer, registando-se umamédia de 64.600 toneladas métricas no pe-ríodo entre 1998 e 2007. Nos últimos anos,assistimos à introdução de limites no esforço

de pesca, com uma consequente redução gra-dual do tamanho da frota, que conduziu aosnúmeros actuais de cerca de 130 embarca-ções de pesca do cerco.

Na sequência de um período de 17 mesesde avaliação rigorosa, ficou determinado que apescaria se encontra dentro dos limites biológi-cos de segurança. A Equipa de avaliação estásatisfeita porquanto a pesca está a ser levada acabo de forma a proteger a produtividade dosstocks e também porque os seus impactos noecossistema marinho são mínimos.

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Atadeiras, 2009 (fotografia de Gundula Frieze, que também é autora de quatro retratos de peixeiras nos dois painéis expositivos de Sines)

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Problemática: Metamorfoses na vida de um rio:poluição do rio, pesca, indústria mineira e tu-rismo no vale do Guadiana, Baixo Alentejo

Território: Vale do Guadiana, do Pulo do Loboao Pomarão

Herança cultural activada: Pesca e artes depesca fluvial, indústria mineira, comércio evenda do peixe, gastronomia, lugares no rio,uso do rio por gentes do interior, organizações

Inventariantes: Patrícia Turra; assistiu e partici-pou em alguns trabalhos Luís Pardal

Exercícios realizados: Entrevistas; trabalho emgrupo e individual

A Associação de Defesa do Património deMértola ofereceu à partilha dos parceiros desteprojecto a necessidade de estudar em pormenor

cada curso de água, ou mesmo determinadostraçados. A costa portuguesa é extensa e o atra-vessamento do território por cursos de água éconstante. Eles tiveram um uso intensivo ser-vindo de via para o transporte de pessoas emercadorias e de recurso para alimentação, for-necimento de água, transformação de energia elazer. O rio, caído em desuso, leva ao aban-dono. Ir ao encontro de formas amigáveis de li-dar com esta realidade é o modo de conservar ariqueza que tem e proporcionou.

A partir da experiência recolhida traz-separa esta exposição a estrutura de uma fichaCCC com apontamentos recolhidos do Pulodo Lobo ao Pomarão, como exemplo de umainventariação que se deve e tem de fazer empartilha com quem conhece e usa o rio.

IDENTIFICAÇÃONome (obrigatório)Outras formas do nome: (Outras designações pelas quais é conhecido)Descrição do percurso

Origem (local e região onde se situa a nascente / País)Sítio por onde entra no território a que pertence o inventarianteSítios por onde passa nesse percursoSítio onde desaguaAfluentes que recebe e nome de cada um dos sítios de afluência

Perfil do caudalPermanenteSazonalIrregularConsiderando que 1 – o caudal permanente indica um curso de água que corre ao longo do ano, 2 – sazonal as-sinala um curso de água cujo regime engrossa nas épocas de Inverno e Primavera, e 3 – irregular, um caudal comdébito escasso e inconstante.

Pontos notáveis no percurso do território de inventariação Sítios naturais (praias, portos em areal, penedos, fundões, pegos, locais lendários ou com história)Engenhos de represamento de água: barragens, diques, açudes, comportasEngenhos de moagemEngenhos industriais (outros)Engenhos ou armadilhas de pesca e caçaPontes, pontões, lugares de passagem pedonalPraias artificiaisPortos artificiaisLocais de barcas de passagem Locais de observação / miradouros Áreas protegidas

NavegabilidadeNão navegávelSó embarcações de boca aberta e fundo chatoEmbarcações de boca aberta, de pequeno caladoNavegável por embarcações com calado até 2 metrosOutras

ANIMAIS EM RESERVA, CINEGÉTICA, MALACOLOGIAEspécies cinegéticas, protegidas e criadas, no percurso do território de inventariação

Aquáticos (Nomes, aparecem de que sítio a que sítio no curso de água)Aves (Nomes, surgem em que sítios e áreas)Mamíferos (Nomes, aparecem de que sítio a que sítio no curso de água)

RépteisInsectos

Malacologia Moluscos comestíveis (Nomes, tipo de concha)Moluscos não comestíveis (Nomes, tipo de concha)[NB: Ver como se pode ligar a informação desta secção com usos que se fazem, por exemplo, das conchas, comoornamentos domésticos, corporais, e outros]

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Associação para a Defesa do Património de Mértola56

CARACTERÍSTICAS FÍSICAS DO RIO E VEGETAÇÃO Trajecto do curso de água no território de inventariação no território de inventariação

Parte do trajecto em que a corrente é rápida e com rápidosParte do trajecto em que a corrente é calma

Vegetação associada à presença das águas do rio no território de inventariaçãoNas margens Na área envolvente ao longo do percurso do rio

USOS DO RIOPesca: Número de barcos e pescadores profissionais; pesca praticada e capturasDesporto e Lazer

Competições com barcosPesca desportivaPráticas de lazer

Espaço que a Junta de Freguesia e a Associação Recreativa Pomarense animam

PARQUES, RESERVASDemarcação da área definida como Reserva

Por locais de referência, caminhos, estradas e cursos de águaPor coordenadas geográficas

Motivo de criação da ReservaPelo preâmbulo que a estabeleceNotícia (s) da imprensa localPonto de vista dos habitantes locais acerca da Reserva (extracto de entrevistas)

OUTRAS ESPECIFICIDADES (neste caso do Guadiana)

MENÇÃO E OUTRAS MENÇÕESA Base de Dados regista nestas secções informação que tem a ver com o modo como terceirosolham para determinado tipo de materiais e determinado tipo de informação, classificando-a. Noprimeiro caso, oficialmente, e no segundo a partir de um ponto de vista comum. (Classificação devalor cultural, Outra classificação)

OUTRAS MENÇÕESNesta secção registam-se memórias pessoais e o modo como a informação contida na Base de Dadosé transmitida. No primeiro caso trata-se da memória pessoal e no segundo, documentos, guardando-se aqui todas as referências de uso do material CCC. Que fica assim com a sua história.

INTERCEPÇÕESEsta secção serve para relacionar, de modo ordenado segundo certos tópicos, importantes na actua-lidade, o trabalho de inventariação anterior. Preparamo-nos para começar a tirar ilações, que já nãocabem na base de dados, mas podem dar origem a um texto, um artigo, uma notícia para o jornal.

Transmissão do conhecimentoNormas e legislaçãoQuestões e relações de géneroCuidadosExperiência da natureza, do meio ambiente e dos recursos

IDENTIFICAÇÃO

Nome: Rio Guadiana

Descrição do percurso: O rio Guadianapercorre uma extensão de 830 quilómetrosentre a nascente, junto às lagunas de La Rui-dera, na província espanhola de Albacete, ea foz, no Oceano Atlântico, entre Vila Realde Santo António e Ayamonte. Em dois tro-ços do seu percurso faz fronteira entre Portu-gal e Espanha: da confluência do rio Caia àconfluência com a ribeira de Cuncos; da reu-nião com o rio Chança à foz. São navegáveisos últimos 68 quilómetros, a partir de Mér-tola. Os afluentes mais importantes em terri-tório nacional são o Degebe e a ribeira doVastão na margem direita, e a ribeira doChança na margem esquerda.

Perfil do caudal: O caudal médio do rioGuadiana é relativamente baixo, sendo notroço entre o Pulo do Lobo e o Pomarão, emesmo até à foz, alimentado por afluentesque se formam por acção das chuvas.

Vejo tudo, porque para mim se não fosseo rio parece que não vejo nada. Estou atento,às correntes, à altura das marés, ao clima,por causa dos temporais. No Inverno é piorporque às vezes estamos com o coração nasmãos quando chove muito, por causa dascheias e dos destroços que há no rio. Às ve-zes até não dormimos e juntamo-nos todos aopé dos barcos, quando são noites de tempo-ral. Jorge José Cavaco Reis, Cais do Pomarão.

Pontos notáveis no percurso: O local maisinteressante para mim é o Pulo do Lobo. É nes -se local que eu e os meus amigos vamos passaro 1º de Maio. José Guerreiro Mestre, Mértola.

Cais do Guadiana: Em 1995 foram fei-tos os primeiros cais acostáveis no Pomarão,Alcoutim, Mértola. Um ano depois foram fei-tos os de Guerreiros do Rio, San Lucar doGuadiana, Laranjeiras e da Foz de Odeleite.E agora já temos também um na Penha daÁguia. Estes cais flutuantes são bons porquepodemos levar as pessoas às várias popula-ções, mas não tem vistoria, não tem manu-tenção. Fernando Palma Vargas (Zarak).

Roteiros e locais de interesse: Che-gando a Mértola com os turistas, levava-os aconhecer as coisas interessantes que estavila oferece. Museus, Castelo, Convento deSão Francisco, Mesquita, o Pulo do Lobo, oMonte do Vento e a Amendoeira da Serra,porque tem o Centro de Acolhimento e temainda o Centro de Interpretação da Paisa-gem, onde se pode ver coisas interessastes,que têm a ver com os animais e as plantas daregião. FPV (Zarak), Mértola.

Barca de passagem: O rio estava cheiode embarcações. Muitos navios grandes quevinham ao Pomarão, canoas de vela latina

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que vinham até Mértola, e o antigo barco quefazia a carreira de Mértola a Vila Real deSanto António, que era o Gasolina. Era umaembarcação grande talvez com vinte metros,que fazia todos os dias a travessia de Mértolaa Vila Real de Santo António com pessoas ecarros. Nessa altura o rio estava cheio degente, era um rio muito alegre. Para mim foieste rio que deu vida ao concelho de Mértola.

Esses barcos terminaram porque as mi-nas de São Domingos encerraram. Os naviosgrandes que vinham deixar adubos e outrotipo de carga e buscar o minério, deixaramde vir, porque não havia minério para trans-portar. As canoas à vela deixaram tambémde existir. Eram elas que faziam o transporteda carga dos grandes navios para Mértola,porque estes não passavam, e deixando deexistir mercadoria deixam de existir as ca-noas à vela.

O Gasolina deixou de existir porque aspessoas de dia para dia eram menos, por amina ter terminado, por em Mértola o grandecentro de moagem também ter terminado, epelo aparecimento da estrada que liga a VilaReal de Santo António. Assim, o movimentofluvial morreu por completo porque aparece-ram, os camiões, os carros, os transportes, epronto. FPV (Zarak), Mértola.

A Ponte da Barca: Havia a Ponte Barca,que atravessava o rio. Tinha duas correntes,uma de cada lado, com um homem de cadalado, que davam à manivela. Essa ponte erafeita com quatro caixas-de-ar e levava carroscarregados de toneladas de trigo e farinha.Não havia mais nenhuma passagem.

Ela deixou de existir porque tinha de serreparada todos os anos, e não era. Furou-seuma caixa daquelas, mas durou ainda muitosanos, porque encheu de água. Mas depois fu-rou outra que também encheu de água.Ainda se manteve a Ponte Barca, mas já comduas caixas furadas. Mas há um dia que veiouma carrinha carregada de cevada. Tinha eupara aí dezassete anos. Colocou-se na PonteBarca mas, quando chegou a meio do rio, ascaixas deram de si e a camioneta foi desli-zando para o lado em que as caixas estavamfuradas, até que se afundou.

Como para além da Ponte Barca, quepassava as camionetas e os carros de merca-dorias, havia também outro barco, o Até queEnfim, a remos, que passava só pessoas, essebarco conseguiu salvar as pessoas da PonteBarca. João Confeiteiro, Mértola

O bairro e os convívios: Existia a zonados pescadores. Uma do outro lado do rio euma na Vila Velha. Porque eram os espaçosonde havia mais pescadores. Não era umbairro. Agora está cada um no seu sítio, jánão existem muitos pescadores a viveremjuntos. Daquele lado, estão dois, o ManuelChico e o Chico Azevedo. Eu agora moro naVila Velha. Outro nos Canais, na Corte Gafo.

E outro na Corte Pequena. Já não há aquelaconvivência que a gente tinha uns com osoutros. JC, Mértola.

Cais do Pomarão: No Pomarão os pes-cadores têm um espaço onde se encontram.Na colectividade que é a Associação Recrea-tiva Pomarense, que fica na encosta junto aorio. Joga-se à malha nos finais de tarde, de-pois do trabalho, ou conversa-se.

Antigamente havia o cais novo e o cais ve-lho, que eram feitos com vigas em ferro e demadeira, e que em tempos de temporal eramdestruídos, e que se tinham que voltar a fazer.Agora foram feitos dois cais flutuantes, comuma plataforma e rampa de acesso em ma-deira e ferro e com equipamentos de acesso aágua e electricidade. Mas ainda sem ligação.

Atracam no cais, na época de verão e nade inverno, sete embarcações de pesca e setetripulantes todo o ano. Cinco embarcações derecreio e turismo, sendo três portuguesas eduas de nacionalidade espanhola. Os tripu-lantes variam de viagem para viagem, dosvinte aos cem, conforme a embarcação, todo oano, mas um pouco mais na época de verão.

Aparecem também veleiros e tripulantes,mas mais no verão do que de Inverno. Ale-mães, ingleses, espanhóis e franceses. JJCR,

Pomarão.

Refeições: Antigamente juntávamo-nos, ospescadores, em certos sítios em terra. Porquecomíamos sempre em terra, obrigados pelaGuarda-fiscal, e aí comíamos próximos uns dosoutros. Mas agora é cada um por si e não hágrandes convívios. JC, Mértola.

Moleiro e pescador: Estive ali quarentaanos. Muita da moagem era feita de noite. Dedia preparava-se o trigo, joeirava-se. Mo-lhava-se o trigo que tem sempre de levar umagotinha de água. Tinha um caixote grande quelevava trinta ou quarenta acres de trigo. Tinhade se molhar, dar a volta àquilo tudo porque afarinha saía melhor, saía mais aberta. Se nãolevasse água a farinha saía de lá que não sepodia comer tão pouco.

Levavam-me trigo ao monte. Havia genteque levava cinco alqueires de trigo numburro, cinco ou seis, em cima de um burro oude uma besta grande. E por cada alqueirepagavam uma maquia. A gente chamavauma maquia. Uma maquia não chegava a umlitro de trigo. Não chegava bem a um litro,mas pouco faltava. Eu nunca cheguei a me-dir isso. Enchia a rasoura a mais das vezes,tinha ali uma pazinha, ou fazia assim com amão, deixava fazer montinho.

Estava lá a minha mulher, vivendo nacasa cá em cima ao pé donde está o forno.Pescava lá no caneiro do moinho. O caneiroque lá estava, que eles derrubaram, foi feitopelos antigos. Ninguém se lembra daquiloser feito. Aquilo não devia ter sido derru-bado, aquilo era uma fartura que estava alihomem! Nunca faltou peixe aí no rio.

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1. Porto do Pomarão(37°33’19.68” N 7°31’28.70” W)

2. e 3. Perspectivas do sistema integrado de exploração do Guadiana (azenha de água e caneiros)

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Associação para a Defesa do Património de Mértola

Naquela parte debaixo fazia-se uma ca-bana no Verão. Porque o rio, durante dois outrês meses, de Maio a Agosto, como não cho-via, não havia água para se moer. Tapávamosa água que vai direito ao caniço, com unspaus, para termos água para moer. Não erapara se apanhar o peixe, nessa altura não seapanha peixe.

Havia ali dias que aquilo parecia umafeira, que excursões lá de cima, de Lisboa etudo, vinham ali umas tantas. Malta que co-nhecia malta amiga e faziam umas tantas ex-cursões. Nessas excursões fazia-se semprepeixe, uma caldeirada de peixe. Vinham aliquatro ou cinco companhias, depois cada umfazia a sua caldeirada. Depois provavam a verqual é que estava melhor. Davam-me a provara mim e eu é que dava a opinião. Joaquim Feli-

zardo, Corte Gafo de Baixo.

Navegabilidade: “O projecto que eu gostavaque se realizasse seria tornar o rio todo nave-gável. Para nós, pescadores, era importante.José Guerreiro, Mestre, Mértola

Alimentação e peixe: A sardinha che-gava porque vinham os pescadores do Algarve.Nós chamávamos-lhe marujos, marujos de pédescalço. Vinham desde o Pomarão com umacanastra às costas. Vinham de boleia de barcoou nos gasolinas. Eram quatro pessoas. De-pois começaram a vir de camioneta. Mas issojá foi nos anos cinquenta e tais. Não era ca-mioneta de carreira. Era camioneta própria..AC, Minas de S. Domingos

Embarcação da ADPM: De Mértola aoPomarão é a parte mais bonita porque é amais estreita. Daqui para baixo já a paisa-gem é diferente.

Derivado às marés, só podemos sair deMértola com água alta. Com água baixa jánão dá. E só podemos entrar com ela alta de-vido aos vaus que estão lá em cima. E temosque conhecer.

O donos dos veleiros perguntam, de vezem quando, sobre zonas, onde há baixios ounão, onde podem passar. E tiram aponta-mentos, marcam a profundidade na sonda.JR, Vendaval

Fado do Pomarão dito por Jorge Reis:

Que lindo é o PomarãoCom seu lindo panoramaTu tens um porto de embarqueTu tens um porto de embarqueNas margens do Guadiana

Nas margens do GuadianaTens linhas de navegaçãoCom teu lindo panoramaCom teu lindo panoramaQue lindo é o Pomarão

CARACTERÍSTICAS FÍSICAS DORIO E DA VEGETAÇÃO

Vegetação associada à presença das águas:O poejo e a hortelã são apanhadas à mão, nocampo ou nas margens das ribeiras ou do rio.Reconheço-as pela folha e pelo cheiro. Não épreciso guardá-las em conserva. Há muitaquantidade no campo. Colhe-se à medida quese vai querendo. Põem-se quase sempre noinício e são para dar aroma à comida. Naaçorda de poejo pisa-se o poejo no início como alho e o sal. No ensopado de borrego a hor-telã é logo no início, e coze com os restantesingredientes. No caso da canja a hortelã é co-locada no fim e no prato de cada pessoa JC.

Plantas: Aqui temos o poejo. Com quefazemos açorda. E também colocamos na fei-joada. Nesta, depois de feita, coloca-se ummolho de poejos e no final dá-se uma volta àpanela e deixa-se ferver. Faz-se também so-pas de bacalhau, sopas de toucinho, sopasde peixe.

Ao redor da Tapada das Minas de SãoDomingos temos a hortelã da ribeira. Anteshavia mais do que agora. A hortelã da ribeiradá todo o ano, desde que apanhe água.

Os cheiros devem ser colocados no final,na última fervura, porque é assim que se dápaladar à comida. Pode-se deitar um bocadoquando se começa a fazer, para ir apala-dando mas depois coloca-se sempre os pala-dares de ervas.

Havia também as tengarrinhas, as leitu-gas brancas e um cardo, à beira dos rios edas ribeiras. Também dava para fazer comfeijão Até o saramago a gente comia paraacompanhar com grão e feijão. Também ha-via as selgas, que se apanhavam no meio dostrigais. Há quem lhe chame catacuses. Haviano meio dos trigais e a gente pegava naque-las folhinhas mais limpas. Depois a folha eralavada, ripada e metida dentro da panela,depois do grão estar cozido. Também se faziacom ovos mexidos e ficava uma espécie depastelão. E a serralha. A serralha é do tipoamargo, quando se corta dá um produto queé o leite da serralha. Mas quando é comidocom salada nem se nota. Às vezes comia-seserralha só com sal. AC, Minas de S. Domingos

A erva-ursa, um cheiro longe da água:Dos cheiros alentejanos a erva-ursa é a que estámais longe da água. Esta quando uma pessoatem uma intoxicação alimentar e quer vomitar,agarra em três ou quatro pés da erva, põe commeio litro de água dentro de uma chaleira, oude uma cafeteira ou de um púcaro, e quando játiver a ferver tira para uma chávena, com umbocado de açúcar. AC, Minas de S. Domingos

USOS DO RIO

Pesca: “Aqui no Pomarão há cinco ou seispescadores. É o Sebastião, o António, o meu

irmão, o Paulo e eu. Está mais outro pesca-dor, que não é daqui, é do Monte dos Fer-nandes. É o José Rita. E eles respeitam oslocais uns dos outros. Quer dizer, cada umpõe lá um cabo e uma pedra, e conhecemo--nos uns aos outros, e respeitamos. JR.

Lugares de pesca: Nós pescamos maisao menos até uma terra espanhola que é oPorto da Laje. Cada sítio tem um nome. Alionde está aquela rede chama-se o Barrancoda Figueira. Ali mais abaixo está o Malacate.Ao pé do posto da Guarda-fiscal é o Posto doCanavial. A seguir é o Barranco do Alvão.Depois é a Ribeira do Vascão. Depois é a Ro-cha da Livraria. Parece mesmo uma livraria.E depois é o Porto da Laje. Dali para baixo jáé a parte de Alcoutim.

Do Pomarão para cima, onde está aqueleeucalipto grande, na margem direita, é o Bar-ranco do Cordovez. Depois é o Porto da For-moa. Depois é a Rocha Vermelha. Depoistemos a Cabra Assada, onde havia um posto daGuarda-fiscal. Depois temos o Barranco doAzeite, que é outro posto da Guarda-fiscal. De-pois temos a Penha de Águia, a Areia Gorda, oVau da Areia Gorda, que começa a ser um bo-cadinho mais mau para a gente passar. O Vauda Bombeira, o Vau da Pedra, o Vau de Va-queira, e depois é Mértola. JR, Mértola

Rede da saboga: Tem uma forma rectan-gular, composta por três panos com duas ma-lhas diferentes. O miúdo no meio e as duasalbitanas por fora. Leva também chumbos,corda e bóias no topo e nos pés. A rede é postaem cima dos baixos, de cascalho e vaus. É co-locada ao comprido, para evitar os ramos quevêm com as correntes. Um extremo da rede écolocado na água, na corrente, e o outroprende-se à embarcação. Depois bate-se comos ramos na água para o peixe vir para a rede.É usada em qualquer época do ano e servepara pescar saboga. JR, Mértola

Aparelho, palangre ou anzoleira: EmMértola é aparelho, em Vila Real de SantoAntónio é palangre, e se formos para o norteé anzoleira. Agora é só para a Eiró, mas anti-gamente pescava-se o barbo.

Cada pescador faz a sua arte. Trabalha-secom ela com o apoio do barco, rio abaixo ouatravessando o rio. Chama-lhe a gente pescade fundo, porque está sempre no fundo com aajuda de umas pedras. Para transportar aeiró uso um saco de rede miúda. Se forbarbo, é nas canastras, nas caixas.

A nassa espanhola: A nassa espanholaserve para apanhar a eiró. Mas não quer di-zer que não entrem outros peixes como o pi-cão, o robalinho, o robalo, o achigã, a boga.Estas artes são feitas em Espanha. Usa-se namargem do rio. Arreia-se uma pedra cá fora,presa no aparelho, estende-se rio abaixo, es-ticando bem para ficar direita, senão o peixenão entra. Ela trabalha nos baixos, mais naslamas, em sítios com cascalho e areia e por-

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tanto é em qualquer lado que haja estas con-dições. Deita-se, se não dá neste lado, tira-see põe-se noutro. É deitada de tarde e depoisvê-se de manhã.

Para transportar o peixe, eiroses, usa-seum saco de rede miúda. Mas não foi sempreassim. Depois de apanhar duas ou três lam-preias, metia-se dentro de uma saca, fechadasem água nenhuma e então elas morriam.Mais tarde começamos a pensar que numcovo já se aguentavam mais. E depois apare-ceram umas nassas feitas de verga, que leva-vam um nasso, e que servem para guardar alampreia dentro de água. JC, Mértola

O gorro: Iam ao Pulo do Lobo e apanha-vam muita lampreia. Apanhavam com o gorro,pendurados em cordas naquelas rochas.

O meu avô ia pescar ao Guadiana. Ia deburro. Até lá são uns dez, doze ou catorzequilómetros. Nem todas as pessoas lá iam. Iauma ou outra que gostava de pesca, porque omeu avô fazia redes. Fazia tresmalhos. Faziaa tarrafa. Fazia a rede dos pauzinhos, que eraum pauzinho de cada lado, pendurava aopescoço, e ia para os barrancos e para as la-pas. Odete Catarino, Vale de Romeiros.

Caneiros e ribeira do Chança: Íamossempre à pesca naquela ribeira do Chança.Eu nasci quase dentro de água. Fazíamosuns caneiros para pescar. Não se usava re-des. Era à mão. Isso era na época que elasdesovavam, que a água corria. A gente ar-mava uns caneiros numa queda de água, emcana. Armava-se o caneiro numa queda deágua e apanhávamos peixe. A água caía emcima das canas e safava-se por baixo e opeixe ficava em seco em cima do caneiro.Esses caneiros tinham de comprimentocerca de dois metros. De largura deviam teraí metro e meio de largura ou mais.

Quando apanhávamos muito metíamos opeixe em palha. Abria-se, cortava-se a ca-beça, sal e acamava-se em palha e deixava--se secar. Secávamos boga, peixe macho, eiró,pardelha. Secava-se todo o peixe aqui do bar-ranco. Até diziam que o avô da Hermínia co-mia sempre peixe. A pardelha era assada epunha-se numa água de sal e comia-se. Ti-rava-se da água e com pão comia-se.

Apanhava-se peixe também à mão e comtresmalho. Montavam o tresmalho e iam parao outro lado assustar os peixes para eles caí-rem na rede. As bogas, quando elas desova-vam, apanhavam-se à mão. Porque o peixeandava todo junto e é só mandar para dentroda canastra. Com a tarrafa então era enchersacas. Manuel João, Vale de Romeiros

Os pauzinhos: O meu pai fazia as redesde pesca. A tarrafa, o tresmalho e a de pauzi-nhos. Era do género do formato de um aven-tal, com um pau mais pequeno aí com unsdez centímetros de largura e os outros dois ti-nham mais de meio metro. Punha-se aquiloao pescoço e ia-se para zonas debaixo das

rochas. Ia-se por ali e depois levantava-se arede e os peixes ficavam presos. Tinha de serem lugares pouco fundos e o meu pai utili-zava aquilo nos sítios pouco fundos, em queos peixes se escondiam. Meu pai sabia nadarmuito bem, mesmo em lugares muitos fun-dos, ele ia lá e apanhava muito peixe. A redequando estava na água fazia um saco, porquelevava os paus e um cordão no final para firmar.

O meu pai no verão gostava muito de ir àRibeira de Limas, que fica de Santa Iria paracá. Aí ele apanhava com a tarrafa, jogava-a eapanhava o peixe, bogas e coisas assim. Elefazia as artes só para ele.

Ele poucas vezes ia ao rio Guadiana pes-car. Ainda ia ao Vale Covo, mas era com oAnzol. Ele ali não podia armar a rede de tres-malho, pois nem tinha barco nem nada. Ao RioGuadiana só me lembro dele ir ao anzol. Ele aínão usava a tarrafa. Usava-a na Ribeira porquea água era mais parada e menos funda. Porqueno Rio Guadiana é muita água e a rede nãodeve ir ao fundo. Manuel Luciano, Mértola.

Ensopado de lampreia: A gente com-pra a lampreia viva ao Zé Alfaiate. Que é umsenhor da Corte Sines que pesca no Gua-diana. A gente quase sempre gosta daquelasamarelinha, porque tem ovas de granitas, e émuito melhor, faz um molho grossinho.

Corta-se a cabeça. Aproveita-se o sanguetodo. Porque o sangue é que dá sabor à lam-preia. Tira-se a pele da cabeça para o rabo,limpa-se e corta-se às postas. Põe-se sal. Sótem uma tripa. A cabeça tem uns felezinhosque amargam, meio escuros. Tira-se.

A cabeça, geralmente a gente assa-asempre.

Tempera-se com folhas de alho e folhasde cebola, que se lavam bem e se picammuito miudinho, e um bocadinho de hortelãda ribeira e poejos. Tudo picadinho, miudi-nho, num tacho de barro. Põe-se poucoazeite porque a lampreia é um peixe que nãoquer muito azeite. Duas colheritas, mais não,porque enjoa.

Sal, coentros, salsa, vinho branco até ta-par a lampreia, e um bocadinho de água, maspouco e já está. Vai cozinhando. E as ovascomeçam a saltar e fica o molho grosso O ar-roz, eu cozo à parte. Eu gosto mais do arrozbranco. Depois ponho o molho da lampreiapor cima do arroz. OCJR, Vale de Romeiros

Caldeirada: Arranja-se o peixe e deita--se sal. Depois põe-se poejo, cebola, tomate,vinho branco, alho e outra coisa que dámuito sabor, que é a hortelã da ribeira. Ficatudo a cozer, com pouco molho. Não se deitamuita água. Há pessoas que lhe deitam sóvinho, mas eu deito-lhe sempre um bocadi-nho de água. Há vezes que também se comepeixe frito, grelhado, assado com a açorda.Mas geralmente o peixe da Ribeira, como aboga, tem muita espinha. Sendo frito corta-se

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1. Aparelho tipo anzoleira2. Xilréu ou xilrão

3. Pauzinhos4. Rede Gorro

1. e 2. in Estado Actual das Pescas, Baldaque da Silva, 1890

3. e 4. Desenhos de Luís Martins a partir de uma descrição

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Associação para a Defesa do Património de Mértola

o peixe fininho e já não se encontra pratica-mente espinha. A tainha ou muge não apanha-vam na ribeira. A pardelha apanhavam muito.Agora com a barragem até apanham carpas,mas esse peixe não é lá muito bom. ML, Mértola

Desporto e lazer: Nesta zona ainda há pes-soas que fazem pesca desportiva. Juntam-setrês ou quatro e lá vão. Estes pescadores le-vam normalmente um dia no rio. Ao final dodia vão para o café ou para a taberna para co-mer o peixe. JGM

Associação Recreativa Pomarense: AAssociação Recreativa Pomarense foi fun-dada em 1911. Tem estatutos. Temos uns duzentos e quarenta sócios, de vários pontosdo país, e temos estrangeiros, que vêm aí noverão de barco, ficam uns dias, querem ser sócios. E depois também temos os das cara-vanas. Temos também muitos sócios entre aspessoas das povoações e das freguesias.

Fazemos em Agosto um almoço de só-cios, em que ninguém paga nada, numa al-tura em que há aqui mais pessoas. Depoisfazemos em Junho o concurso de pesca. Tam-bém fazemos um almoço para os sócios a se-guir ao concurso de pesca.

No concurso participa quem quiser. Agen te assinala aqui uma área com um númeropróprio e pesca-se à cana. O deste ano (2007)é o 5º concurso. Não tem nada a ver com o Fes-tival Sabores do Mar.

Podíamos aproveitar aqui o rio para outrascoisas, canoagem por exemplo, mas isso o pes-soal para trabalhar é pouco. José Pinto, Pomarão

PARQUES E RESERVAS

Pega azul, pintassilgo, melro e abelharu-cos: Da Mina de S. Domingos até ao Pomarãoo caminho pode ser feito a pé ou de bicicleta.Começa-se com ruínas de minas e fábricas epouca vegetação onde predomina o eucalipto,passando por pequenas povoações e planíciesque depois vão dado lugar a vales de esteva,tojos e outras plantas. Quanto aos animais po-dem-se ir encontrando, pegas azuis, pintassil-gos, melros, abelharucos, entre outros. JJCR

Demarcação da área definida como re-serva: O Parque Natural do Vale do Guadianafoi criado em finais de 1995. A sua gestão é daresponsabilidade do Instituto de Conservaçãoda Natureza. Estende-se pelos concelhos deSerpa e Mértola, numa área de 69.600 hecta-res, seguindo a bacia do Guadiana entre oPulo do Lobo e a confluência com a ribeira doVascão, incluindo a zona ribeirinha deste rio,as construções tradicionais no seu leito (açu-des e moinhos), a Vila Museu de Mértola, oantigo complexo das Minas de São Domingose a plataforma da via-férrea para transporte dominério até ao porto fluvial do Pomarão.

Constituem os seus limites: Do ponto deintercepção com o caminho de Monte Bar-beiro – Azinhal, o limite inflecte no sentidosudoeste, seguindo o caminho Azinhal – Ba-lança até ao cruzamento próximo de Balança,segue no sentido sudeste pelo caminho exis-tente até ao entroncamento com o caminhoAlgodor – estrada nº 123. Toma-se o sentidosul em direcção à estrada nacional nº 123, atéao entroncamento com a mesma, seguindo aestrada nº 123 na direcção este até AlcariaRuiva, contornando o limite urbano até cru-zar com um caminho...

Objectivos (selecção): a) Gestão racionaldos recursos naturais e paisagísticos caracteri-zadores da região b) Salvaguarda do patrimó-nio histórico e tradicional da região, bem comoa promoção de uma arquitectura integrada napaisagem c) Promoção do desenvolvimentoeconómico e bem estar das populações AnexosI e II do Decreto Regulamentar nº 28 / 95 de18 Nov.

Descrição do Parque Natural do Valedo Guadiana: Criado 1995 e também no ter-reno, existindo já 1 administrativa, 1 directore 1 técnico. Emprega 7 pessoas: 1 Biólogo –Director adjunto; 1 bióloga – técnica superiorde 1ª; 5 vigilantes da Natureza. Ocupa cercade 70 mil hectares, com as seguintes unidadesde paisagem: o rio, a corredoura, o matagal, azona de montado, a peneplanície e as serras.

Descrição da restante área: Bacia Hidro-gráfica do Guadiana, considerada a que em Por-tugal apresenta maior diversidade de espéciespiscícolas autóctones, migradores e anádromes.Apoios logísticos, escritórios e laboratórios: A sede tem o Centro Polivalente de Interpreta-ção e Divulgação, escritórios, gabinetes, gabi-nete transformado em laboratório, um auditório,espaço para exposições e biblioteca.

Tecnologia existente para observaçãoe vigilância da Reserva ou Parque / obser-vação e vigilância da Fauna / observação evigilância da Flora: Faz-se uma monitoriza-ção das circunstâncias que podem causar si-tuações de fogo, usando-se para tal viaturas,telescópios, binóculos, GPS, Sistema de In-formação Geográfica (SIG), material de tele-metria. Neste contexto, quando uma equipa sedesloca a um local por uma razão concreta,procura verificar se está tudo em ordem.Leva-se a cabo observações, nas deslocaçõesao terreno, e recolhas de amostras de exem-plares de flora, que se enviam para o herbá-rio para análise. Em casos de dúvida pede-sea colaboração de especialistas, que levamum exemplar completo.

Como se avalia a situação das espéciesna Reserva ou Parque. Se há doenças ouinfecções/se é necessário intervir paraevitar a propagação de alguma espécie/seé necessário intervir para recuperar es-pécies em risco: Não se faz este tipo de avalia-ção. Em circunstâncias em que, por exemplo,

aparece um gato bravo morto, envia-se ocorpo para análise, porque existe sempre al-guém a fazer pesquisas, ou pretendendo pu-blicar um artigo sobre estes temas.

Não são funções do Parque verificar asdoenças e sua propagação. A Direcção Geralde Veterinária assume este cargo. Por exem-plo, no caso de infecções virais em coelhosbravos as associações de caça e outras têmum protocolo com o ICN. O Parque recolheamostras e envia para análise.

Observamos e cuidamos dos exemplaresao nosso cuidado: saramugo, e sisão. Nestescasos procedemos, em situações problemáti-cas, à sua recuperação. No caso das espéciesameaçadas (águia real, gato bravo), as acçõesa empreender devem ser protocoladas, poisnão temos laboratório nem veterinários.

Como se avalia e regula a qualidadedo solo e das águas da Reserva e do Par-que Natural. Que estudos se fazem paraavaliar os impactos no meio ambiente vi-zinho e na fauna e flora que o habitam:“Fazem-se monitorizações relativamente afontes poluidoras e de factores de ameaça emgeral. Quando estas ocorrem tentamos aler-tar os responsáveis e resolver a situação. Orio Guadiana é problemático. A principal fonteé a ETAR de Mértola. Verifica-se também queo Alqueva retém alguma poluição.

Formas de avaliar e medir os efeitosno meio ambiente vizinho. Sobre as res-tantes espécies de peixe, migrantes e se-dentárias. Sobre os fundos e a vegetação:Não é da competência do Parque avaliar aqualidade da água, do solo e as condiçõesdas espécies piscícolas. Esta função está acargo da CCDR Alentejo e da Direcção Ge-ral das Floresta. Actualmente somos ouvidosquando à monitorização da água, porque sa-bemos onde se encontram as estações de me-dição da CCDR nas ribeiras. Porém, até àsaída da lei da pesca, há duas semanas, oParque não era ouvido nas questões da ges-tão piscícola das águas interiores e exterio-res. Ou seja, não éramos ouvidos em termosde exploração comercial.

Projectos para o futuro. Introduçãode novas tecnologias; actualização doprograma de SIG. Introdução de novasespécies: O Parque não o faz, e existe umalei que regulamenta esta prática. Extensãoou diminuição da área ocupada: A área actualdo Parque vai manter-se.

Usos comerciais: Ao nível de publica-ções e merchandizing

Turismo: Práticas ligadas a actividadesturísticas (percursos pedestres, passeios debarco, canoagem).

Ecoturismo: Através da definição e sina-lização de percursos pedestres.

Motivo de criação da reserva: Foi criadacom o objectivo de assegurar a protecção do

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património natural e construído existentenesta área.

O vale do Guadiana é um corredor deaves migratórias, existindo concentrações deespécies como a águia-de-Bonelli, o abutredo Egipto, o bufo-real, cegonhas comuns ecegonhas negras.

Serviços disponíveis: Percursos pedes-tres: 1. Percurso da Bombeira, com uma ex-tensão de 6 km, duração de 2 horas e baixadificuldade (pontos de interesse: Ribeira deOeiras, Convento de São Francisco de Mér-tola, Horta dos Dois Irmãos, o Moinho do Vaue ruínas de um antigo posto da Guarda Fis-cal); 2. Percurso do Carvoeiro, Água Alta eCanais, com a extensão de 9 km, duração de2 horas e meia e nível de dificuldade médio;3. Percurso da Mina de S. Domingos (AntigoCaminho de Ferro), com 19 km, duração de 8horas e baixo nível de dificuldade (pontos deinteresse principais: Mina de S. Domingos,Palácio dos Ingleses, Ruínas da Mina, Esta-ção da Achada do Gamo, Estação dos Sal-gueiros e Aldeia do Pomarão); 4. Percurso daMesquita, de 3 km, duração de 1 hora ebaixo nível de dificuldade (passa pela Aldeiada Mesquita e pelas ruínas do antigo pombalcom vista para a Aldeia do Pomarão). Cris-

tina Cardoso, técnica do parque natural, entrevistada

por Patrícia Turra, para o preenchimento desta ficha

Sobre Animais em reserva: Por sugestãode: ADPM (Associação de Defesa do Patri-mónio de Mértola), para complementar osconhecimentos e dar a conhecer os peixes doGuadiana.

Os Peixes do Guadiana, Que futuro?, Guiade Peixes do Guadiana Português, Maria JoãoCollares Pereira, Ana Filipa Filipe e Luis Mo-reira da Costa. Edições Cosmos, 2007

Sinopse: É um trabalho de investigaçãocom 294 páginas, sobre as comunidades pis-cícolas da Bacia Hidrográfica do Guadiana.

O livro com uma linguagem simples pre-tende dar a conhecer as comunidades piscíco-las da Bacia Hidrográfica do Guadiana, queactualmente se confrontam com inúmerosproblemas decorrentes de vários tipos de in-tervenção humana sobre os habitats naturais.Tem uma intenção conservacionista, uma vezque esta é a bacia hidrográfica que apresentamaior diversidade piscícola em território na-cional e mais espécies consideradas sob risco.

O livro está estruturado em sete capítu-los, que situam o leitor, de um modo progres-sivo, nesta problemática: populaçõespiscícolas continentais (página 11 à 21), ba-cia hidrográfica do rio Guadiana (página 23à 58), espécies piscícolas da Bacia do Gua-diana (página 59 à 157), comunidades piscí-colas da bacia do Guadiana (página 159 à214), valor conservacionista da ictiofauna(página 215 à 226), principais problemas eopções – que estratégia? (página 227 à 261)

e que futuro para os peixes do Guadiana (pá-gina 263 à 269).

A obra dá-nos a conhecer os factores queafectam a distribuição dos peixes e justifi-cam a sua vulnerabilidade específica às alte-rações ambientais de carácter antrópico. PT,

Mértola

OUTRAS ESPECIFICIDADES

Mineiro. Nasci aqui nas Minas de S. Do-mingos em 1937: Trabalhei aqui desde os14 aos 24. Os primeiros 3 anos comecei atrabalhar duas semanas e descansava outrasduas. Depois, ao fim de pouco tempo, preci-saram do meu trabalho, que era o provisório.Trabalhava um mês, descansava um dia oudois. Em cinquenta e seis tornei-me efectivo,no dia 1 de Janeiro de cinquenta e seis. Pas-sei então por diversos sectores.

Primeiro fui aguadeiro, que era dar águacom um barril às costas, com dezassete litrosde água. Ia buscar aos poços que tinham águae levava para os homens dos caminhos-de-ferro. A minha secção começava lá em baixonas cortes carvoeiras onde terminava o cami-nho-de-ferro de Pomarão, que começava nasportas das oficinas, lá nas cortes carvoeiras,com uma distância de dois quilómetros, antesde chegar ao Pinheiro. Ali é que eu tinha decomeçar a trabalhar às oito horas da manhã.Vinha, descarregava ali o barril, agarravanoutro vazio, ia à mesma bomba e descarre-gava para outra quadrilha de homens, comonós os chamávamos. Depois agarrava noutrovazio para o registo e assim sucessivamente.E andava à volta de cinquenta km para ga-nhar quinze escudos, sempre com o barril àscostas. Cada barril da Fonte Preta pesavavinte e dois quilos. AC, Minas de S. Domingos

Alimentação e pesca na Tapada de SãoDomingos: Os marujos geralmente traziamsardinha, que vinha salgada, que era parapoder aguentar a viagem. Traziam ainda ca-rapau, chicharro, mas de resto era muito rarotrazer outro peixe. O barbo, por exemplo, eraapanhado aqui na Tapada. Quase todas aspessoas tinham meio de pescar. Era rara apessoa que não tinha tresmalho. Passava-sea corda de um lado, prendia-se do outro ladoe depois apedrejava-se a água para o peixevir para o tresmalho. Com o tresmalho apa-nhávamos boga. Mas era mais o bordalo, opeixe macho e o barbo.

Tínhamos outras maneiras de pescar. Asnassas, por exemplo, eram estruturas de ferro ecom uma rede com a malha mais larga que amosquiteira. O peixe entrava e já não saía. Anassa era iscada com cabeças de sardinha, ouum bocado de farinha, daquela de restos da fa-rinha da fábrica de moagem, que eles davam.

O peixe rochinha é um tipo de peixe quegosta de corrente. Sobe o rio para desovar.

Celebração da Cultura Costeira 61

1. e 2. Ruínas do edificado mineiro, S. Domingos3. Água pesada, S. Domingos

Tapada das Minas de S. Domingos: 37°40’18.22” N 7°30’23.51” W; Ruínas do complexo mineiro:

37°40’12.32” N 7°29’49.67” W; “Águas pesadas”: 37°40’8.70” N 7°29’35.35” W)

Pagina 63:1. e 2. Armação de uma tarrafa e ilustração

do seu lançamento no livro de Baldaque da Silva3. José Cardeira Alves e a mulher pescando com nassa

4. Maria do Rosário Ruivo com outro tipo de nassa, que servia para manter o peixe

capturado, vivo na água, Monte de S. Pedro

Pagina 64:José Cardeira Alves pescando lampreia com nassa,

Rio Guadiana

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Associação para a Defesa do Património de Mértola

Antes na Tapada de Minas de S. Domingoshavia mais água. E os peixes vinham desovarao Barranco.

As pessoas na Tapada pescavam só paraa sua alimentação, para os familiares e ami-gos. AC, Minas de S. Domingos

A pesca dos mineiros: Quando cá vivia pes-cava na cascalheira com uma tarrafa. É ondeo peixe vai desovar. A cascalheira é onde hácascalho trazido pelas águas, e o peixe aliabunda. No rio em sítios onde há uma cas-cata há cascalho. A esses sítios dá-se o nomede cascalheira.

Pescava no Guadiana, mas também noChança. Apanhámos muita boga, bordalo,enguia, que o Chança tinha muito bom peixe.Onde está ali a barragem agora. A gente pes-cava quase até à foz do Chança.

A boga começa a desovar na lua de Feve-reiro até à meada de Março, fim de Março. Àsvezes atrasa por causa do tempo. Se o tempo forbom aí quando vem a meada de Março, nummês desova toda. Era mais ou menos por alturada Quaresma. A primeira lua de Fevereiro,umas vezes calha ao princípio do mês, outrasnão. As pessoas iam para matar a fome, não erapor causa da Quaresma. AC, Minas de S. Domingos

A pesca dos pastores: “Nunca pesquei noGuadiana. Eu pesquei aqui nos pegos. Parapescar iludrava-se a água. Depois eles apa-reciam bebendo, e a gente com um pau,toma! Os peixes grandes, e as eiroses, agente matava-os assim. Iludrávamos os pe-gos, iludrávamos a água, o peixe vinha aocimo e a gente apanhava-os. Iludrar a água,para sujar a água. Era com as mãos, de qual-quer maneira. Se formos mexer lá com asmãos ao fundo iludra-se a água.

“Na altura da desova das bogas, no cas-calho, armavam-se os caneiros. Íamos lá comum cesto ou com uma canastra e o peixe lá iacair. A boga está quatro dias na água. Cinzasé lua nova. A Quarta-feira de cinzas. E asbogas vão sempre, dois ou três dias antes doCarnaval, pela lua nova. É quando elas co-meçam a desovar. MC, Vale de Romeiros

O sovadouro: Fazíamos sovadouros comaqueles restos de farinha da fábrica de moa-gens. Eles, em vez de deitarem fora, metiamdentro de um saco e a gente ia lá buscar. Em-brulhava-se aquilo num bocado de terra, quese apanhava ali perto, com um sacho ou comuma sachola, e fazia-se um amacilho com umbocado daquelas agulhas. Depois fazia-seumas bolas e lançava-se à água. Os peixes nosovadouro eram atraídos pelo comer. Chei-rava-lhes a farinha. Aos restos da farinha po-diam-se ainda misturar umas cabeças desardinha. Faziam-se umas bolas do tamanhode um punho e mandavam-se à água três ouquatro bolas, de maneira a ficarem os peixes

todos juntos, e a seguir lançavam a tarrafa. Osovadouro ia-se desfazendo à medida que ospeixes iam comendo. Fazia-se os sovadourospela hora do sol-posto e por volta das nove,dez horas da noite. Ia-se a pescar, apanhava-se boga, bordalo, pardelha, o peixe maismiúdo. Depois jantávamos e aí por volta dasduas íamos buscar o peixe mais grado. Le-vava-se à volta de meia hora à espera emcada sovadouro. Assim que víamos o rabo dospeixes a fazer onda, lá estavam a comer. Pri-meiro iam os mais pequenos e de madrugadaiam os maiores. E tinha que se esperar e nãofazer barulho com os pés para os peixes nãofugirem. AC, Minas de S. Domingos

A poluição não tem culpa: Há muitos pei-xes que se apanhavam aqui e agora já não sevêem. A saramuga já não existe. Era um pei-xinho pequenino, de limpeza. Era fácil depescar com uma caninha e com um anzol.Era um peixe que não tinha mais que cincoou seis centímetros. Enfiava-se pela guelrauma linha com dois pauzinhos ou num pedaçode junco e passava-se por uma salmoura, de-pois pela frigideira ou pelas brasas, e estavapronta para comer. Não tinha espinhas, nemtripa, nem nada. O peixe desapareceu porcausa do achigã e da carpa, que comem tudo.Agora a Tapada só tem achigã, carpa, boga,bordalo ou peixe macho. E pouco, porque oachigã não deixa criar filhos. A Tapada estámais suja do que no tempo que a gente pes-cava com a tarrafa. Tem um acento no verãoque deve ser dos excrementos do achigã. Temuma lima que parece caca. A poluição nãotem culpa. A culpa é do achigã.

O peixe que vem na Tapada, que saia peloladrão, quando vem muita água, acaba pormorrer. Também a água-forte da mina mata ospeixes. Fizeram um ladrão mais acima, comum nível mais ou menos pelo passeio da Ta-pada, para travar a água. Esta água-forte vaiter ao Chança, que vinha a desaguar a um sítioque está debaixo da barragem.

No tempo da Mina esta tinha uma li-cença. Só quando o rio ia mesmo a monte éque podiam mandar aquelas águas ao rio. Senão tinham que pagar os prejuízos a agricul-tores e pescadores. AC, Minas de S. Domingos

MENÇÃO E OUTRAS MENÇÕES

Decreto de criação do Parque Nacional: Azona denominada troço médio do Vale do Gua-diana tem vindo desde há alguns anos a ser ob-jecto de diversos estudos que revelam o seuelevado interesse faunístico, florístico, geomor-fológico, paisagístico e histórico-cultural.

Estes factores, conjugados com a circuns-tância de a identidade da paisagem destazona se encontrar ameaçada pelo progressivodesaparecimento dos sistemas tradicionaisde utilização do solo, justificam plenamente

a sua classificação, por forma a salvaguardaros valores naturais aí existentes e, simulta-neamente, promover o dsenvolvimento sus-tentado da região e a qualidade de vida daspopulações... Decreto Regulamentar nº 28 /95 de 18 de Novembro, criando o ParqueNatural do Vale do Guadiana

Falar sobre o rio: Quando estamos três ouquatro pescadores juntos é raro não falar dorio. Mas já não era aquilo de antigamente, por-que éramos mais, e só pescadores. Agora hávárias pessoas. Agora as conversas são dife-rentes porque dantes começava-se uma con-versa e acabava-se, mas agora não. Porque sea conversa é sobre a pesca, há um que já nãoquer saber disso e já está farto, troca a con-versa e acabou. O que eu gostava mais no rioera que ele voltasse a ter vida. É que aqui vi-nha o barco grande o Gasolina, vinha a canoacom o trigo, a canoa com a farinha, com aduboe com outras coisas. Era a coisa mais bonita. Eàs vezes ponho-me a pensar comigo mesmo,como eu conheci o rio com essa barcaria toda,com uma alegria tão grande. Eu gosto de veros iates no rio, sempre dão vida ao rio, mas sevisse uma canoa antiga de madeira aí sim erauma alegria. JC, Mértola

Ontem e hoje: A memória que tenho é sem-pre do homem ligado ao rio. Mas enquanto ovelho abala hoje para a pesca e já sabe quevai para a pesca, o novo não vai pensando napesca. Se vai lá e tem a pouca sorte de fazerdois ou três lances, e apanhar por exemplovinte ou trinta quilos de peixe: – Agora ir eapanhar dois ou três peixes, eu não venho cámais. JC, Mértola

INTERCEPÇÕES

Transmissão de conhecimentosFazer as redes: Aprendi com o meu pai a

fazê-las, porque antigamente não havia redesà venda, só havia era linha. Depois comigoaprenderam os que andaram comigo à pesca.Uns moços de fora. Já se foram embora, outrosemigraram. Há pouca gente nova aqui a pes-car. Gente nova aqui em Mértola só há já umefectivo. Manuel Gonçalves ou Manuel Chico

Ser pescador: Comecei a trabalhar aosonze anos, na pesca com o meu avó, que ti-nha 67 anos. Aos onze anos, o que é que sesabe fazer aí na pesca? Nada. Mas a gente àsvezes não é só os estudos que faz falta, a teo-ria é só de cabeça. Mas eu tive logo quedapara a pesca. Quem me ensinava era o meuavô. Mas sabia pouco da pesca.

Para ser pescador o que tem que saber éentralhar uma rede, remendar uma rede, tra-tar da rede e tratar do barco. Se a pessoa ti-ver cabeça aprende, vai aprendendo comaquilo que tiver à frente. Agora há pescado-res que têm queda para ser pescadores e há

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aqueles que nunca serão pescadores. Têm éque ter quem lhes ensine.

Agulha e bitola: Aprendi a utilizar a agu-lha quando comecei a andar à pesca aos onzeanos. Usava-a, e uso, para remendar e fazeras redes. Com as agulhas grandes fazem-se eremendam-se as albitanas. E com as peque-nas faz-se e remenda-se a rede miúda.

Aprendi a usar a bitola quando comeceia fazer redes aos onze anos. Quando se par-tem ou estragam fazem-se outras, não há cui-dados especiais. Usava-a e uso pouco, masainda uso para fazer algumas redes. Se forpara a saboga é a bitola menor porque é ma-lha pequena. Se for para o Barbo são as bito-las médias, porque a malha já não precisa deser tão pequena. E se for para fazer albitanasé a bitola maior. É feita de um bocado de tá-bua qualquer, geralmente das caixas dafruta. O seu tamanho, depende do tamanhoque se quer da malha, logo pode ser grande,média ou pequena. JC, Mértola

Normas e legislação: Decreto-Lei nº 19/93de 23 de Janeiro (art. 13º obrigatoriedade deconsulta ás entidades locais)

Decreto Regulamentar nº 28 / 95 de 18 deNovembro (Criação do Parque Natural dovale do Guadiana)

Questões e relações de género: As mulhe-res ligadas ao rio são uma boa recordação.Porque são os camaradas que os pescadoresarranjavam a custo zero. Mas actualmenteelas não querem nada com a pesca.

O meu pai andava com a mulher. O Ma-nuel Chico andava com a mulher. O Zé Gai-nha andava com a mulher. O Ti Pedro Gainhaandava com a mulher. O Emídio Gainha an-dava com a mulher. O Álvaro Raposo andavacom a mulher. O meu irmão andava com amulher. O Ti Chico Ribeiro andava com amulher. Elas coitadas trabalhavam de dia emcasa e à noite tinham de ir para a pesca.

Elas bugavam. A gente deitava as redes eelas agarradas ali aos remos, umas bugavame deitavam as redes às vezes. Não eram to-das. Remendavam as redes e entralhavamconforme a gente entralhava, mas como istocomeçou a melhorar um bocadinho elas co-meçavam a pensar assim: – O quê então agente a morrer aqui dentro de água! Não, vãovocês que a gente fica em terra. E agora an-damos sozinhos.

O homem desde sempre esteve ligado aorio e ainda hoje está. Mas a paciência e a de-dicação a esta actividade têm-se vindo a per-der, ficando apenas os mais velhos que não arecomendam aos seus filhos. Já viu agorauma mulher abalar daqui a pé para as aze-nhas, farta de trabalhar em casa e fazer anoite de pesca, andar para cá e para lá a pé.Por exemplo, levar a vida em casa até àtarde, deitar – deitava-se um pedacinho –,

mas já estava pensando que tinha que lavar atigela e à tarde toca de ir para pesca. Abalardaqui e levar lá quinze ou vinte dias ao pé deAlcoutim, dormindo debaixo daqueles mar-meleiros, daquelas árvores, não era fácil.Corria-se o Rio todo. O mais baixo que a mi-nha mulher chegou foi Almada de Ouro. Jáviu agora uma mulher dormindo lá debaixodas árvores, com os moços dentro do barcopequeninos? Tinham de levar a família toda,não tinham família com quem os deixar. O TiPedro Gainha chegou a andar com cinco ládentro do barco. O meu sogro, enquanto al-guns já tinham dez ou doze anos, ficavam jáali em casa com metade. Tinha sete ou oito elevava a outra metade. JC, Mértola

As mulheres ajudavam os homens: En-quanto eles lançavam as redes elas iam re-mando. Lembro-me de as ver nos barcos, eraa vida de muitas famílias, à pesca. Uma erada minha família, minha tia, e as restanteseram vizinhas. Estas lembranças são de há50 anos atrás, aqui mesmo neste cais do Po-marão. Hoje já não vale a pena as mulheres.O que ajuda é os motores. Contudo, elas tam-bém já não querem, porque acham uma vidamuito dura. Agora têm outras profissões,como trabalharem nos lares. JJCR, Mértola

Experiência da natureza, do meio am-biente e dos recursos: Quanto à paisagem eterrenos, junto ao rio continua tudo igual.Não houve intervenção humana. As espéciesde flora são as mesmas.

Quanto aos peixes, já não é bem assim.Antigamente, haviam mais peixes e outros quejá não existem. O rio Guadiana tinha esturjões.O meu pai apanhou um esturjão com 80 qui-los. Era um peixe muito apreciado. Este peixetornou-se histórico. Há livros que falam disto.

As águas do rio já estão mais limpasdesde a construção da barragem do Alqueva.Os peixes saem da água mais limpos. Anti-gamente havia mais poluição por causa dasuinicultura, mas agora já está melhor. Háanos largos, encontravam-se peixes mortos,mas agora não. A maior poluição, são as re-des que os pescadores utilizam para apanharo meixão, conhecido por angulas. Eles utili-zam redes mosquiteiras que são proibidaspor lei. Mata a criação toda. Estas redes sãoutilizadas onde a maré vira. Onde a maré fazforça de água.Antes a água tinha mau cheiro,agora não. JGM, Mértola

Poluições: Antigamente, no meu tempo, orio era uma água limpa, nada ia para dentrodesse rio. A gente tirava a água para beber,para lavar a roupa, não havia os esgotos parao rio, não havia lixo para o rio. Não havia es-sas poluições do rio. Água limpa, rio limpo.Hoje toda a gente suja a água, toda a gentefaz lixo e isto hoje vai tudo para o rio, pelos

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esgotos, pela ETAR. Ora como aquilo está acontaminar a água, o peixe não gosta daágua. E se não gostar da água não entra cápara dentro. E é isso que faz mal ao peixe. Eele deixa de existir, e nós não temos o queapanhar. JC

Enquanto a barragem não foi feita, a bar-ragem do Alqueva, a poluição vinha todaaqui, vinha de Badajoz, de Espanha, toda agente sabe. E então vinha tudo dar aqui.Desde que a barragem está feita nós nuncamais vimos aqui água poluída. Mas está po-luída. Aqui há anos atrás ela vinha desan-dando, vinha por aí abaixo, por aí abaixo atéque desandava, se calhar até ia ao mar, àbarra. Agora fez-se a barragem. A águachega ali está presa. A poluição vai para ofundo. Descarregam as comportas debaixo eo material, que está todo lá em baixo, vem.Há aqui um problema com o muge que aindanão se sabe. Porque se a água fizesse mal aomuge, fazia a todo o rio. Como é que o peixedos canais para cima está bom, e dos canaispara baixo não está. Não sei porquê! Agorahá aqui uma coisa. Se o muge chega aquimagro e não engorda, que ele entrava aquidentro do rio, passado uma semana estava opeixe que era uma maravilha. Agora estácada vez está mais magro, não tem gosto ne-nhum, dos canais para baixo. Já vem doentede lá, vem do mar. JC, Mértola

Soltar a água: Não desapareceram peixes.O peixe é o mesmo, mas o que há é em me-nos porção. Eu tenho para mim que, desdeque construíram o Alqueva, que é pior. Nãosei porquê. Desde que fizeram a barragem orio está mais profundo e a água traz menospeixe. Antes apanhava-se aqui muita sabogae agora apanha-se pouco. Com a lampreia é omesmo. Este foi um ano em que se apanha-ram poucas lampreias. A água está maislimpa, mas o peixe não gosta muito dela,tanto que não sobe como subia. Há um pro-blema qualquer, o que é eu não sei.

Tive tantas pescarias. Uma vez apanheisessenta e tal quilos de peixe. Agora quem éque vende setenta e tal quilos de peixe!

Cada vez há menos pescadores por causada poluição, de todas as químicas que exis-tem no campo. A água corre toda para o rio.Deitam uma química para matar a erva dani-nha, outra para matar a bicharada. Tudo issocorre depois para o rio. Eu tenho para mimque as químicas são das poluições piorespara o rio. Fábricas já não há. A pior fábricaque havia era a de Mourão, uma vez ou duasfaziam as descargas e a poluição apareciaaqui. Agora já acabou com a construção doAlqueva. Era uma fábrica de celulose, davacabo de tudo.

“No tempo da exploração das minas,nesse tempo, vinha um telegrama aqui para aCâmara para avisar os pescadores. As minasainda eram do tempo do meu pai. Vinha aágua das minas que ia matando os peixes to-dos. E depois davam o subsídio, que não eramuito, mas que nesse tempo davam. Unscem ou duzentos escudos. Mandavam entãoum telegrama para a Câmara, que era a Câ-mara do Concelho, a avisar que iam soltar aágua, porque a água quando era solta matavamuito peixe. Íamos apanhar peixe nesse diae cada um apanhava o que queria. Íamoscom uns galrichos desses, porque o peixe an-dava atordoado com a água da mina, e toda agente apanhava peixe da água como queria.MC, Mértola

Uma embarcação e uma narrativa

1. Embarcação:Nome: Ecoteca Fluvial SaramugoTipo de Ecossistema onde navega: Rio Gua-diana – Mértola a Vila Real de Santo AntónioSinopse de reparações e alterações feitas:alteração ao interior da embarcação para co-locação de barcos, modificação do nome daembarcação, colocação de sonda e rádio emodificação das janelas para lonas.

Material de que é feito o barco: Fibra (PRFV)Comprimento – 12,80 m Boca – 3,80 mPontal – 1,20 mTonelagem – T.R.B.: 8,61Motorização: Tipo de motor – dentro bordaPotência – 110 kw, 3800 RPMÉpocas em que navega: Todo o anoFunções para que é utilizada: actividadesmaritímo-turíticasReferência breve:Estaleiro de construção: DOVEQUE, SLAno de construção: 1997País de construção: EspanhaAno de compra: 2003 Estado actual: completamente remodelada etransformada para a execução de actividadesde educação ambiental e turísticas. Capaci-dade para 40 pessoas e 3 tripulantes – mes-tre da embarcação e 2 marinheiros. Jorge José

Cavaco Reis entrevistado por Patrícia Turra sobre a

embarcação/ ecoteca fluvial Saramugo

2. Uma narrativa: “A primeira vez que fuipescar era miúdo. O meu pai teve seis filhos.Dormíamos todos no barco nesse tempo. Aminha mãe andava sempre com o meu pai.Fazíamos uma cabana em baixo e ficávamospor lá, e ali estávamos.

“Um dia estávamos num sítio que era oEnxoval. Fazíamos o fogo dentro do barco,com uma bacia e uma terra. A minha mãe es-tava fazendo o café e o meu pai, de um ladopara o outro, toca num pau que estava emcima da braseira. Derrubou uma cafeteira deágua, que caiu em cima do meu irmão. Ficoutodo queimado. E o meu pai queimou um pé.

“Então a minha mãe teve que vir sozinhabugando, de lá até aqui a Mértola, e bugoutodo o dia até que se cansou. Aqui com o meuirmão para o hospital e o meu pai também. Eaí quem começou a trabalhar fui eu, com ca-torze anos, para ganhar alguma coisa paracasa. MC, Mértola

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Problemática: Formação profissional / vocacio-nal dos pescadores

Território: Rabo de Peixe (extensões a VilaFranca do Campo, Santa Maria, Mosteiros ePorto da Lagoa, Ponta Delgada)

Herança cultural activada: Transmissão dosmodos de fazer: construção e construtores na-vais arte de velejar, festa do Senhor SantoCristo em Rabo de Peixe e de S. Pedro Gon-çalves em Vila Franca do Campo, pequeno ar-tesanato, pesca e artes de pesca, agriculturade complemento à pesca

Inventariantes: José Octávio, Luís Rodrigues,Luís Roque

Exercícios realizados: Inquéritos, Entrevistasem grupo, em pares e individual.

A Cooperativa Porto de Abrigo, Organizaçãode Produtores, Açores ofereceu à partilhadeste projecto uma reflexão sobre as condi-ções em que actualmente se faz a formação depescadores em ambiente escolar, que por ve-zes não leva em conta os conhecimentos intui-tivos e a experiência do transmitido de famíliaem família, entre companheiros e vizinhos.

Encontramos em Rabo de Peixe uma po-pulação imersa num dia a dia onde lazer eaprendizagem, divertimento e trabalho árduonão têm fronteiras. Aprende-se em casa, narua e na escola e, por isso, quem fala tem umalinguagem, um vocabulário e uma expressivi-dade que herdou em família e em comuni-dade, marcas de uma diversidade vigorosaque atesta uma educação não passiva. Nestecapítulo e exemplificando a estrutura da basede dados CCC e como ela se relaciona com otrabalho no terreno.

PESSOAS E ORGANIZAÇÕESPessoas e organizações formam a comu-

nidade e são incontornáveis num trabalho deíndole cultural local. A atenção do inventa-riante, focada no modo como elas se mani-festam, vai apreender esta diversidade deatitudes e de saber estar que importa registare dar valor.

A Cooperativa Porto de Abrigo: Foi fun-dada como cooperativa em 1984, e o pro-cesso de conclusão finalizou-se em 1985.Por deliberação da Assembleia-Geral aindafoi em 84. O processo de conclusão jurídicajá data de 85, ainda antes da integração dePortugal na União Europeia, em 1 de Janeirode 1986; com o reconhecimento nas Comu-nidades, no Jornal Oficial, em 16 de Agostode 1993. Nós herdámos o sindicato com ossócios das Casas dos Pescadores. Onde o pe-queno armador também era sócio. E o sindi-

cato inicialmente representa toda a gente,pequenos patrões e pescadores. Depois veri-ficámos que as funções que muitos pescado-res e armadores pretendiam não eram denatureza sindical. No sentido de, as artes es-tão caras, o combustível está caro, a gentequer fazer o papel para as finanças e nãosabe como… No fundo eram serviços pró-prios de uma associação de pequenos arma-dores. Daí termos criado a Cooperativa paradar resposta a isto, numa assembleia do sin-dicato: – Para isso como é que vamos fazer?Se calhar criar uma cooperativa, ir buscar asredes e os aprestos directamente a Lisboa, esaía 20% a 30% mais barato, etc. Essa era aactividade inicial da Cooperativa.

Quer dizer, é inicialmente sobretudo umaCooperativa de Comercialização.

As Organizações de Produtores, são asso-ciações que têm um estatuto auto-regulador.E quando são maioritárias como é o caso daCooperativa Porto de Abrigo, também regu-lador. As decisões que tomam são obrigató-rias para os não membros se a associaçãoquiser. Com um problema, porque a gestão ésempre complexa, tem elementos que é deli-mitar capturas. Como direi, com outras van-tagens, por exemplo, impor preços mínimos.

Modelos de gestão: A função da Coopera-tiva Porto de Abrigo, na nossa estratégia dereorientação – que a gente tenha possibilida-des de aproveitamento, que se prova que tempossibilidades –, é o peixe-espada preto. Aprópria Cooperativa Porto de Abrigo está ainiciar a construção de dois barcos. Mas avocação da Cooperativa Porto de Abrigo nãoé armadora. É uma associação. A sua funçãoé experimentar e empurrar. Demonstrar, doponto de vista prático, aos pescadores, queaquilo tem futuro. Para o pessoal diminuir oesforço sobre as espécies de menor profundi-dade, e aumentar o esforço sobre aquelasque se julga que estão subaproveitadas.

A riqueza do mar: O aproveitamento dosrecursos biológicos do mar tenderá a ir paraalém da pesca. São, por exemplo, as hidro-termais de profundidade. Que foram desco-bertas ao largo dos Açores nos últimosquinze anos. A primeira foi em 1992. Sãodescobertas recentes, e ainda hoje é difícilquantificar, apesar de estar a ser feita umainvestigação dirigida para ali. Eles descobri-ram ali seres vivos que não dependem da luzsolar. No projecto Mudança de Maré a coo-perativa desenvolveu um programa para areorientação. Essencialmente para testar apossibilidade, do ponto de vista profissional,

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Cooperativa Porto de Abrigo66

do desenvolvimento de uma indústria depesca orientada para a captura de espéciesde grande profundidade, nomeadamentepara o peixe-espada preto e tubarões de pro-fundidade. O barroso. Liberato Fernandes,

Ponta Delgada

Transporte de peixe das comunidades eportos até à lota: Este carro sai aqui dosMosteiros e vai para Ponta Delgada. Se forpreciso mais vou a Rabo de Peixe buscarpeixe para Ponta Delgada. Se for preciso ir àRibeira Quente, eu vou. A gente tem telemó-veis para comunicar uns com os outros.

Os outros carros fazem trajectos entre Ri-beira Quente e Ponta Delgada, Porto For-moso e Ponta Delgada, Vila Franca e PontaDelgada. É sempre assim.

São os empregados da Porto de Abrigo eda Lota Açor que ajudam a meter o peixedentro do carro. O peixe que vem agora domar, fica metido dentro das arcas, no fresco.E depois quando chegar à hora para se ir em-bora é que a gente carrega para dentro docarro. José Pavão, Mosteiros

Sindicato Livre dos Pescadores, Maríti-mos e profissionais afins dos Açores: OSindicato Livre dos Pescadores, Marítimos eprofissionais afins dos Açores está ligado àUnião dos Sindicatos de São Miguel e deSanta Maria, e é um sindicato não filiado,afecto à CGTP. O sindicato inicialmente erasó São Miguel e Santa Maria. Fez-se uma fu-são por integração nos sindicatos da Horta,do Faial, do Pico, das Flores e do Corvo, ecriámos o Sindicato Livre dos Pescadoresdos Açores. Ainda ficaram 3 ilhas de fora:sindicato de pescas da Terceira, de São Jorgee Graciosa, que não aderiram. A sede é emPonta Delgada, e tem uma delegação abertana Horta. Essa vivência em comum é re-cente, tem menos de 1 ano – a fusão foi feitaa 3 de Março de 2007 – ainda não temos fi-cheiros actualizados, mas calculo oitocentose tal sócios. LF, Ponta Delgada

As mulheres: Aqui a mulher tem sobretudoum papel de apoio logístico ao pescador.Trata dos papéis, licenças de embarque.Tudo o que for papelada, a mulher do pesca-dor é que trata. Não é o pescador que vai àAssociação Marítima ter com o José Octávio,por causa deste ou daquele papel. Agora sur-giu a ideia de haver um envolvimento maiorna pesca, por exemplo, na feitura de gamelaspara a pesca. Em São Mateus há muitas mu-lheres que fazem gamelas. Há uma mini fá-brica de feitura de gamelas. Luís Carlos Brum,

Ponta Delgada

De manhã é que se faz o serviço: Eu levanto--me às seis horas da manhã. Faço a comidinhapara os meus filhos irem para a escola. É o

pão, a manteiga, o café, para levarem. Eu te-nho uma casa de filhos, quando é sete emeia, para irem para a escola. Oito pessoas.Tenho seis filhos, e comigo e com o meu ma-rido dá oito. Para o meu marido é conforme acomidinha que a gente temos. Hoje a gentecome muito peixe. Batata. Isso é ao meio-dia.Se tiver peixinho, a gente come sempre pei-xinho.

De manhã é que se faz o serviço. Casaarrumadinha, a roupa lavada. Eles vêm daescola, comem e vão para o atelier. Eu agoraestou a descansar aqui porque a gente já co-meu, já tem os pequenos na escola, fica aquià fresquinha um bocadinho. Passando o restoda tarde. Ao fim da tarde lavo os pequenos.Vejo a novela quando está tudo pronto. E de-pois vou para a caminha. Lá para as nove ho-ras, nove e tal. Eu tenho de dormir cedo porcausa dos pequenos irem para a escola. Com-

panha de São Leonel, Rabo de Peixe

Ensina-me meu menino, para a mamã teajudar: Em terra faço iscas de cavala. Metiaanzóis e ajudava a esticar linhas aos meus fi-lhos. Quando eram pequeninos trabalhavame eu tinha que ajudar.

Eu tenho uma filha. Ela foi agora à far-mácia buscar o leite do bebé, porque ela estácriando o bebé. Ela pega numa gamela põediante de si, como um homem, direita a tra-balhar a isco e tudo. Eu vou dizer à senhora,quando eu estava criando os meus pequenos,o meu marido andava nas canastas. E osmeus pequenos andavam com outras pessoasde fora. E por causa de não falarem de ne-nhum dos meus filhos eu levantava-me denoite, eu ajudava a fazer isca aos meus fi-lhos, ia ajudar a meter anzóis, para eles me-recerem aquele quinhão que faziam aosmeus filhos. Mas eu não ganhava. Ia fazeraquilo para ninguém lavar a cara dos meusfilhos. Acordava de noite e tudo. Às ordensdos meus filhos.

Eu também andava aos chicharros. Eucozia a batata. Eu lavava a rede. Às vezes agente tingia a rede. Fazia aquela tinta paratingir a rede. Eu ajudava o meu marido.Ainda ontem disse ao meu filho mais velho:Ensina-me meu menino, para a mamã te aju-dar. E vou para lá para ver como se remendauma rede. Mas para fazer rede é fácil. O meugenro está a fazendo uma tarrafa e eu ajudo afazer. Eu sei fazer rede. E sei fazer canastas.Mas para remendar ainda não aprendi muitobem. Dunália Maria Vieira, Rabo de Peixe

ARTES DA PESCAAs artes da pesca dão origem a um uni-

verso enorme de conhecimentos e práticasque vão de situações visíveis a quase toda agente até aos pequenos pormenores da in-venção e da adaptação à natureza local. Cadacomunidade soube, ao longo da sua história,

criar processos de interacção com o meioque muitas vezes e muitas vezes esses pro-cessos resultaram em adaptações bem con-seguidas. O que é perturbador dessa ordem éo que vem de fora quando exclui os modos deestar e ser. Por isso, aquilo que se aprendeuna tradição, deve ter reconhecimento.

Preparação da arte em terra, no arma-zém: O aparelho vai sendo safo. A gentemete uma celha. Quando a gente começa aandar para dentro, vai sendo safo. Anzóis etudo aqui para dentro. A gente a navegarpara ir para o porto, tiramos os anzóis parauma celha. Quando acabamos de tirar os an-zóis, juntamos com as mãos o aparelho, paradentro da celha, mas agora sem anzóis. Che-gamos ao porto, despejamos o aparelho nochão e esticamos para dentro. Para dentro dacelha outra vez. Que é depois para safar oaparelho. Para depois engamelar para as ga-melas outra vez.

A gente quando chega aqui ao porto,acaba de descarregar o peixe, lavar o barco.Pegamos depois nisso, despejamos no chão,e começamos a esticar, um dum lado e outrodo outro. Começam a esticar duas pessoas. Ea gente estica o aparelho lá para dentro. Equando é para trabalhar, a gente tira aindade dentro da celha. A gente tira, e vai enga-melar outra vez para dentro das gamelas. Ésempre a mesma coisa. Carlos Alberto e Or-

lando Miguel, Rabo de Peixe

Opção pela pesca: O gosto. Quando a gentetem gosto a gente aprende tudo e mais al-guma coisa. O gosto é que faz tudo. A gentetem vontade, e aprende. Eu não sabia fazernada. Era um analfabeto naquela vida. Masdepois fui aprendendo.

As companhas todas em Mosteiros usamo aparelho de anzol. Mas não é o mesmo apa-relho que a gente faz para pescar de caniçoou de corrico. Já é diferente. A maneira detrabalhar é diferente, de estrovar um anzol,de amanhar um anzol no aparelho, é tudo di-ferente. Olhar, ver e a seguir fazer. Tentar. Aprimeira vez não calha, tenta-se uma se-gunda, uma terceira, mas tem que dar.

Homens com 30 anos de mar, e eu queestou iniciando: – Esse cabreiro, vem paraaqui, não sabe nada e vai para o mar. Só paradizer que a gente aprende até morrer. Duarte

Amaral, Mosteiros

O peixe é que ensina o homem a pescar: Omeu pai levava-me para o mar e eu peguei emmim e ia. Muitas coisas que aprendi, o meu paidesistiu de ir para o mar, peguei no barco, atéagora. Sempre na mesma embarcação! Semprea aprender. E até agora estou sempre.

Inventei mares de pesca pela minha ca-beça, não foi pelos olhos de ninguém, nin-guém me ensinou. A gente pescava naqueles

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1. Paulo Miguel segura cuidadosamente a miniaturaacabada de retirar da vitrine da exposição da AMA

2. Fotografia ilustrando o início da fabricação de umcesto no Museu de Mosteiros

3. Artes da pesca no Museu de Mosteiros(37°53’34.11” N 25°49’13.96” W)

67Celebração da Cultura Costeira

sítios que usava. E depois dali o barco an-dava e a gente: – Oh pá, é pedra! A genteagora vai para tal sítio, é sempre de cabeça.

– Como é que se aprende a pescar! Apren -de-se a pescar. O peixe é que ensina o pes-cador. É sim senhor. O peixe é que está aensinar a gente a pescar. É sim senhor. Naescola a gente aprende, mas não é lá que estáo peixe. Na escola não tem peixe. Vai o ho-mem da terra para o mar, e hoje, amanhã, jáestá pescando. Ou lá aprende. O peixe é queo ensina a pescar. José Domingos, Rabo de Peixe

Dos mais experientes para os menos ex-perientes: Ganho conforme a lula que agente apanhar, e o peixe. Dez euros, cinco eu-ros. Por dia. Eu dou à minha mãe. João Paulo,

Rabo de Peixe

– Com quem é que aprendi? Com o meuirmão. A gente estava vendo, quando eracriança ele estava fazendo e estava a dizercomo é que se fazia. Fui para o mar, fui apren-dendo. É claro, eu gostei. Não custou nada.Eu sei que a minha vida é aquela. Tenho quegostar. Francisco Vieira Rebelo e José Sebastião da

Costa Andrade, Rabo de Peixe

No calhau, a gente já nasceu a saber pes-car. Ninguém sabe tudo, pois claro. A genteaprende até velhos. Sempre aprendendo atévelhos. José Sebastião da Costa Andrade, Rabo

de Peixe

As Luas na pesca: As Luas dão também paro mar. Para as águas. Quando é a Lua Cheia,as águas na vazante andam. As correntes an-dam muito. A Lua já é a descer. Quando a Luaestiver cheia, tem três dias aí que as águas sãoboas para pescar. Acabam esses três dia paracima já as águas não dão. Tornam a vir marésboas, águas boas, quando são marés das duasou um hora para cima da tarde. Águas da ma-nhã não prestam. Águas à noite não prestam.É do meio-dia até umas 3 horas da tarde. Sãoáguas boas de pescar. A Lua, quando é cheia,as marés secam pouco. Quando é o escuro asmarés secam mais. Fernando Viveiros, Mosteiros

ARTES DA TERRAAs artes da terra no contexto desta cele-

bração da cultura costeira ajudam a integraros usos da água e do solo, através da explora-ção de um mesmo universo de saberes. Ovento, a lua são tão importantes no mar comona terra, exigindo para cada meio conheci-mentos apropriados.

Influência da lua na qualidade da batata:Sabe porque é que esta batata está assimverde? Isso é a Lua. A Lua quando entra nabatata fica verde. Mas ela por dentro estábranca. A Lua quando entra na novidade, elafica verde, não presta. E assim. A gente fazestes bocados de terra para o consumo de

casa. Faço a couve, a cebola, tudo o que épreciso. Para não comprar nas lojas, paranão pedir a ninguém.

Eu tirei agora a batata no fim do mês deMaio. Eu fiz uma tulha na terra. Vou explicaro que é uma tulha. Umas costaneiras enfiadasna terra, por uns barrotes e um sobrado porbaixo. A gente mete aquilo na terra, pode en-trar sempre o ar, e a batata apodrece mais.Depois é tapada com plástico. Uns caniços,folhas de verdes, desses que a gente apanha,mete-se por cima da batata. Fica sempre fres-quinho. Depois cobre-se com plástico preto.Não foi o meu caso. No meu caso eu pus oplástico branco. Eu também era novo. Se erapara cobrir com plástico, qualquer plásticoservia. Mas a Lua entra no plástico branco. Aclaridade da Lua entra no plástico branco. Jáno plástico preto não entra.

Até folhas das bananeiras eu apanhei aqui.Que é para a Lua não entrar. Mas em lugar deplástico preto, eu pus branco. A camada decima ficou toda verde. Essa ficou verde porisso. A Lua já entrou, duas ou três Luas, estáverde já não presta para comer. Amarga.

O Sol não faz muito mal. A Lua é que fazmal. A Lua é um perigo para a novidade daterra. Principalmente para a batata e para ascebolas.

Eu semeio a batata no mês de Fevereiro.São três meses na terra. Na terra não inte-ressa a Lua. É quando se recolhe a novidade.Quando se recolhe é que a gente tem de aabrigar. Ela pode apanhar na terra a Lua quenão faz mal. Até às vezes faz encher. Que aLua faz encher as novidades. Mas quando agente recolhe o produto da terra, arruma umatulha, e se não soubermos tratar, a Lua entranela. Aí perde-se as novidades. A cebola é amesma coisa. Se não se tratar dela e se não acobrir da Lua fica perdida. Não presta, temoutro sabor, tem outro gosto. O resto das novi-dades. O feijão, é semeado, também vai parabaixo. É semeado para baixo. E aqui semeioem qualquer altura porque não tenho coe-lhos. Aí para cima, para o lado dessas roças,eles semeiam com a maré a secar. Quando se-meiam o feijão com a maré a secar, o feijão,amarga. O coelho tem a tendência de ir comeras folhas, e quando ele vai comer, elas amar-gam. E ele deixa. FV, Mosteiros

Os ventos e a agricultura: Os ventos deNoroeste para as novidades não prestam. Osventos Mareiros para as novidades não pres-tam: Norte, Noroeste, Oeste. Para as novida-des arrebentam com tudo. Os ventos trazemo salgado. O salgado, o rocio, e queima tudo.A gente às vezes não que semear as novida-des quando é nos meses de Outubro, Novem-bro e Dezembro, que são os piores dias deInverno. A alteração do mar é muito alta, edepois vem aquela força de vento, vem o sal-gado, o rocio, e queima tudo nas terras.

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Cooperativa Porto de Abrigo

No mar é a mesma coisa. Os ventos Ma-reiros são perigosos, o mar fica alteroso, ficamexido. É diferente do vento de Leste, dovento de Sudoeste, do vento de Sul. São bons.Amansam o mar. E na terra também são bons.Os ventos da terra empurram as alforras e es-sas coisas todas para o mar. O vento da terra,aqui do Nordeste ou Leste, vai empurrandotudo para baixo. Quando é Mareiros, traz paracima. Queima tudo. FV, Mosteiros

LUGARNo nosso projecto o lugar vai da dimensão

mais pequena à representação mental que umapessoa tem dos espeços que habita e conhece.

A sua caracterização é por isso impor-tante porque nele podemos ter a relação decada ser humano com o universo dos lugaresque lhe dizem mais.

Ser pescador e ter um bocado de terra: Aminha vida agora directamente é o mar. Euvou para o mar e depois no Inverno semeioaqui as novidades para casa. Não é nada paravender. É só para consumo de casa. Semeio asbatatas, semeio as favas, semeio pimento,como está vendo isto tudo aqui. Eu tirei a ba-tata, já pus estes feijões. Tenho aqui o meubocado de vinha, tenho aqui umas alfaces, te-nho aqui uns tomatitos. Pronto. Isto é tudo coi-sas para comer na casa. Não é nada paravender. No tempo em que eu venho do mar éque eu pego a mexer nestas coisas. É nas ho-ras já vagas, que eu não tenho nada para fazer,eu estou entretido aqui. Tenho aqui as cebo-las, tenho tudo.

Toda a gente do mar gostava de ter umbocado de terra. Antigamente muita gentepegava em terras de renda. Porque no marnão dava para sustentar. E faziam hortas,melancias, melões, a fava, a ervilha, a ba-tata, para fazer negócio, para ver se ajudavaa viver. Porque o mar não dava nada antiga-mente. Aquele que não tinha terras era umadesgraça. Passava muita fome. Se fizessecomo eu, tinha de comprar, mas não tinha di-nheiro para comprar, tinha de pedir a outro,bater à porta, pedir esmola.

De Inverno temos muitos dias que a gentenão vai ao mar. E a gente aproveita estes bo-cadinhos de terra. Mete as novidades na terraque é para criar que é para a gente comer emcasa. No mês de Fevereiro vamos poucas ve-

zes ao mar. Porque aqui é uma baía muitoruim. A gente vai dois ou três dias por mês, fu-gidos, que esta é uma baía muito baixa e ondequebra muito mar. A gente quando não vai aomar, com estes bocados de terra mete notempo das novidades: mete a batata; mete asfavas; mete o feijão. As favas que estão ali sãodo mês de Janeiro. A batata pus no mês deFevereiro e já a tirei nos fins do mês de Maio.Pus este feijão. Não gosto de ter uma terra semnada. Gosto de ter a terra sempre limpa.

Isto era para estar mais um bocadolimpo. Mas pronto, eu venho amanhar issoquando eu posso, porque eu já tenho a minhaidade. FV, Mosteiros

Os ventos Mareiros: Os ventos de Noroestepara as novidades não prestam. Os ventosMareiros para as novidades não prestam:Norte, Noroeste, Oeste. Para as novidades ar-rebentam com tudo. Os ventos trazem o sal-gado. O salgado, o rocio, e queima tudo. Agente às vezes não que semear as novidadesquando é nos meses de Outubro, Novembro eDezembro, que são os piores dias de Inverno.A alteração do mar é muito alta, e depois vemaquela força de vento, vem o salgado, o rocio,e queima tudo nas terras. FV, Mosteiros

Eu estou no meio do Oceano!: Nunca saídesta ilha. E ao fim de vinte e tal anos é queeu soube que isto era uma ilha. Que eu pen-sava na minha, juro por Deus, que eu pen-sava que isto era um país grande. E quandome disseram que isto tinha nove ilhas, osAçores, eu disse: – Eu estou no meio doOceano! Quase que veio um tremor de terra.Nunca saí dessa ilha, meu rico senhor. Eupensei que estava num paraíso. Nélia Amaral,

Rabo de Peixe

TÉCNICAS E MODOS DE FAZERAs técnicas e os modos de fazer são o

universo mais individualizado da actividadehumana. É a busca desta singularidade quedeve reger o nosso olhar de inventariante,porque no outro esse universo de informaçãoestá sempre disponível

Navegar: Andávamos em barquinhos aí denove a dez metros. Naquele tempo eles iamsempre era à vela. Não havia motor. Anoscinquenta, anos quarenta. Já tinha vinte e tal

anos. A pesca era só vela, vela e remos aliás.Quando estava calmo era só remo. Quandoestava arado andava à vela, sempre era me-lhor. Naquele tempo embarcavam sete, oitohomens. Era muito raro ter nove. Porquetambém não havia muitos pescadores.

Eu tenho uma história passada comigo. Agente estava aqui fora no baixo. Estávamosnos bonitos. O vento começou a crescer. Erao Corta d’Água. Tinha dez metros, e era a re-mos e à vela. O vento começou a crescer,vento de nordeste. E aqui por fora a remos agente nunca mais se safava. Foi com o meupai. E a gente costumava a dar o pano na ma-deira. Era assim um bocadinho de vela. Agente botava aquilo para cima. A quilha dobarco vinha aparecendo.

O comandante estava ali por cima da ro-cha e mandou chamar o Massaroco à Capita-nia. Era o pai do Manuel Massaroco. A gentevinha andar muito com a força da vela. Comaquele tempo a quilha vinha aparecendo:

– Senhor comandante a gente tem quedar a vela, se não nunca mais saía dali.

Mas ele também tinha razão. Ele dizia: – É, mas vocês deviam vir com o pano

mais curto. A gente estava vendo não era? Bastava só

no virar. Aquilo é rápido para revirar. Já es-tive quase revirando ali por fora da rocha docanto. Porque ali, com o pai do Norberto Ca-tana, a gente vinha ali pelo canto adiante. Agente vinha ali por conta duns trezentos ouquatrocentos quilos de bonito. Tínhamos ummotor. Mas, para chegarmos mais depressa,pusemos a vela. Junto ali à rocha do canto ovento vinha de um lado, vinha do outro. Agente quando foi cambar, a gente estevequase revirando, quase, quase, quase!Aquilo quando era o arriar da escota o barcovinha logo a si. Senão aquilo é um perigo.João Cesário Freitas Soares, São Miguel/ Terceira

Aprender na escola / Aprender no exercí-cio do trabalho: Tenho 24 anos. Eu tenhosó cédula marítima. Não tive escola. A mi-nha escola é isso. A minha vida foi essa.Nunca fui à escola. Gostava dessa vida detrabalhar. Também nunca aprendi a ler. Gos-tava de aprender. Mas agora não.

[E se houvesse aí um cursito à noite paraaprender a ler]. Mas não há. Agora só há paracrianças. Se soubesse ler ia tirar a carta de

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1. Companha do São Leonel, Rabo de Peixe2. Altar doméstico do Senhor Santo Cristo em casa de Dunália Maria Vieira, Rabo de Peixe

3. Pendão do Senhor Santo Cristo no altar da casa de Dunália Maria Vieira, Rabo de Peixe

Página anterior:1. e 2. Orlando Miguel e Carlos Alberto

no armazém, Rabo de Peixe 3. Banco com caixa adaptada para conter anzóis tirados do trole no armazém de Orlando Miguel,

Rabo de Peixe

Página seguinte:1. Preparação da festa de São Pedro Gonçalves,

Vila Franca do Campo2. e 3. Ex-voto e pendão de São Pedro Gonçalves,

Vila Franca do Campo

69Celebração da Cultura Costeira

mestre. Para tirar a carta de mestre a gentetem de saber os graus que o Sudoeste tem. Opai dele já o mandou ir para a escola, nãoquis. Orlando Miguel, Rabo de Peixe

Histórias de saberes: Isso aconteceu. Hámuitos anos atrás. A gente apanhava peixe,ninguém apanhava. E o que é que acontece?A gente tinha três petromaxes daquelesgrandes. A gente quando metia luz, o peixefugia. Qual é a razão? Quando havia lua,quando a lua estava clara, juntamente comos petromaxes, aquilo fazia claro muito claro.Estávamos na borda, e o peixe fugia todo. E ovelhote, o dono mestre da embarcação, diziaassim:

– Eh, não se acende as luzes. E a nossa companha toda:– Qual é a razão para não se acender as

luzes!– Aqui ninguém acende luz nenhuma.Aquilo foi uma experiência. Experimen-

tou fazer. A gente está a ver o peixe na água apassar. O barco vai andando mas o peixe vaipassando. A gente pára, mete uma luz para aborda, o peixe vem, vem, vem… Ele dissepara o filho Oh Artur, não se põe as luzes naborda. A gente pega no engodo, às escuras,mas com a lua clara é tudo de dia. Um gajocom a lua vê tudo bem. O peixe vem jun-tando, vem juntando, vem juntando, Eh, oque está ali de peixe!

A gente põe a rede para a água, aquiloestá a pescar, depois ao fim de um bocadi-nho, cinco minutos, puxámos a rede paracima. As varas de puxar a rede, tinha duasvaras assim, depois tinha três linhas detrásdo barco, para puxar a rede para cima, parafazer uma parede.

Apanhávamos setenta quilos, oitenta,cinquenta, sessenta. Isso é uma pescaria.Isso é uma linda pescaria. Tirámos, tirámos,tirámos, sim senhor.

Vamos para o porto. Os barcos, nenhumlargou as redes. Os barcos vieram secos, se-cos, secos, sem deitar nada à água. Por causada luz. E ninguém sabia. Houve um tripu-lante que estava para fumar. E o velhote: -Eh, aqui ninguém fuma. Se queres fumar,abaixa a cabeça. Que era para ninguém ver.Para os outros não verem. Se os outros barcosvissem, Eh pá, está um barco aí. O que essebarco está fazendo aí às escuras? Eh pá, esseestá pescando aí às escuras.

Andámos praticamente duas semanas as-sim. Os barcos não apanhavam peixe nenhum.E depois os tripulantes, os nossos colegas:

– Eh pá onde é que apanhas o chicharro,onde é que tu apanhas!

A gente sempre calada. José Octávio Vieira

Cabral, Rabo de Peixe

Dos mais experientes para os menos ex-perientes: Era o Urânia. Os mestres eram o

José Laureano Carreiro e o Manuel LaureanoCarreiro. Eram dois irmãos. Usavam vela. Agente ia aos chicharros e para não levarmuito tempo eles içavam a vela, que era paraa gente andar. Quando o vento estava de su-doeste. Quando o vento dava de norte e no-roeste já não andavam. Só com o mar chão.Era com o mar chão. Com alcancas de mar,aquilo podia partir tudo. A gente não dava avela. Conseguimos depois do porto de Rabode Peixe, a passar o Cinturão. Quando passa-vam o Cinturão içavam a vela. De repentedava mais de sudoeste, e mesmo assim ovento é como quem vem de um lado e do ou-tro. Às vezes a vela mexia assim, outras ve-zes pronto, rebentava com a vela. Para armara vela estendiam-na por baixo dos ians,amarravam o coice na vara e passavam nomastro. Depois botavam a escotilha na fitado mastro e amarravam na adraga. E depoisia-se vendo conforme o vento ia dando. Ia-sebotando mais cabo aqui na adraga. António

Manuel Cabral Andrade, São Miguel / Terceira

Guisado de favas na Festa do Irró: O queeu tenho feito é uma panela para as barracascom uns quatro quilos. A gente deita a favaseca de molho três dias antes. A gente vai to-dos os dias deitando águas novas. Para nãochocar, nem ficar com outro gosto. A gentevai pondo todos os dias água nova. São trêsdias de molho. Não é preciso tirar o olho. Por-que está de molho três dias. Quando as pes-soas não deitam três dias de molho, tira-se oolho à fava seca. Senão leva mais tempo a co-zer. Mas eu gosto muito da fava inteira. Trêsdias de molho. Vai-se mudando as águas.

Depois de molho, a gente tira da panaque está de molho, vai para a panela. Comágua a cobrir. E uma pimenta da terra. Umaou duas pimentas daquelas inteiras. Con-forme o paladar da pessoa. E uma cabeça dealho. Os dentes de alho esmagados. A gentetira aquela pinta branca da casca. Mas apinta vermelha, de dentro, é só esmagado.Os dentes de alho são esmagados e vão a co-zer com a pimenta inteira. E coze-se a fava.Quando a fava está quase cozida, a gentedeita o sal.

A gente corre por água aquela panela,lava-se, e depois põe-se umas boas três ce-bolas. A gente pica bem. Pica a cebola. Bas-tante azeite. Leva muito azeite. Quasemetade de uma garrafa de litro azeite. Quasemetade. E refoga-se. Eu costume deitar outravez uns dentinhos de alho, picadinhos, tam-bém com a cebola. E deito depois um boca-dinho de salsa, picada, depois da cebola jáestar quase estaladinha. Refoga ali um boca-dinho. Depois deito uma calda de pimenta.Eu também deito calda de pimentão. Um bo-cadinho de colorau. Mais um bocadinho depimenta da terra e um bocadinho de vinho decheiro. Não se põe muito para não azedar a

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Cooperativa Porto de Abrigo

fava. Eu costumo pôr naquela panela meiocopo de vinho de cheiro.

Faço aquele refogado, aquele molhobasto, com calda de pimentão, calda de to-mate, pimenta, um bocadinho de colorau.Faço aquele molho todo vermelho. E vou fa-zendo assim com a panela, baldeando as fa-vas. Se for preciso um bocadinho de molho,para não estarem muito secas, aquela águaque está reservada, a gente deita um bocadi-nho daquela água dentro da panela. Ferve alium bocadinho, para a gente ver o tempero.Se ela precisa mais pimenta, se precisa maissal, a gente ali rectifica o tempero. E cá estáa fava guisada. Ana Maria Madeira, Vila Franca

do Campo

Armar flores: Não havia essas esponjas to-das com que a gente trabalha hoje. Eram ospica-flores, que eram uma armação emmassa, com preguinhos, e a gente limitava-seàquela posição. Mas sempre dávamos umjeito. Hoje já temos as esponjas próprias,para fazer altos, baixos, de lado, não tem pro-blema nenhum. Hoje há toda a facilidade. Agente agora tem as nossas armações em esfe-rovite. Antigamente era um carpinteiro queme fazia as armações em madeira, da alturade um dedo só, e depois eu conseguia fazer,quase isto que está aí, na armação de ma-deira. Hoje não. Hoje já temos as armações,já nos alivia um bocado.

Eu trabalho é com a verga dezoito, e coma verga oito. Cada flor é trabalhada com estesdois tipos de verga. Se eu aplicar isto numarco, fica aquela coroa achatada. Não temgraça nenhuma. Isso é trabalhado, enfia esta,e depois com dois arames, a experimentar,para ficar toda alta. E depois é espetada. Afazer toda com simetria. Faça natural ou arti-ficial, é tudo às ondas, a combinar os tons. Omínimo é duas horas e meia, três horas. Parafazer uma coroa como deve ser.

A base inicial era feito em palha de aveia.Só se vendia no mercado do Bulhão, no Porto.A armação. Agora, para trabalhos destes, nãopode ser feita em palha de aveia. A palhasempre se vai deteriorando. Isto já não. Nosprimeiros anos era tudo em palha de aveia,tudo amarrado com arame. Mas eu não dei-xava o arco à mostra. Tapava. Na altura erapapel de prata. Agora já temos outro mate-

rial, que são umas fitas verdes que tenho ali.Luís Guilherme Cordeiro Cabral, Ponta Delgada

Escolher a matéria prima: Aqui, principal-mente a acácia, é perigosa. Esse tipo de ma-deira, na força da rebentação estala muito.Perde-se muita madeira. A madeira fica muitoviçosa. Como este é um clima muito húmido, amadeira é muito viçosa. Quando está a florir,mesmo a cortar madeira é perigosa. Ela estala.Para que não aconteça escolhe-se outra esta-ção. Ao cair da folha. No Outono e Inverno é amelhor altura para o corte da acácia. Aí é dife-rente. Já não empena. A força da rebentação. Équando ela começa a florir. Ela está-se a trans-formar, está a ficar verde. Aqui a gente chamaa força da rebentação. A madeira é mais tenra.

A madeira quando é muito seca perde umbocado viscosidade. Mantê-la 75% seca. Ésuficiente no acto de trabalhar. E mesmo a50%. Para o forro estar completamente seco.Paulino Gabriel Rebelo França, António José Vi-

cente de Melo, Vila Franca do Campo

EVENTOSOs eventos marcam as comunidades pela

cor e pela diversidade e introduzem nelas acompetição pelo melhor, pelo mais exube-rante, às vezes até pelos excessos (de fogo, deruído, de gastos). O negro do alcatrão cobre-sede flores, o interior de quartos de cetim e lu-zes, as embarcações de flores, o ar de gritos. Eno interior de cada um as emoções ganhampresença e afectam os comportamentos.

A festa do irró: O irró. Sempre se fez aquelafesta, acompanhada com a coroação… Por-tanto, fizeram a festa dos pescadores com a co-roação da coroa do Divino Espírito Santo. Acoroa do Divino Espírito Santo vai incorporadana Procissão. Porque é o irró. Antigamente nãohavia vimes para varar os barcos. Os barcoseram varados à mão. E para que toda a maltafizesse força ao mesmo tempo, um deles diziaassim: – Iiiirra. E a malta, irra, puxava tudo aomesmo tempo. Iiiiiiiirra. Quando se varava osbarcos para o irró. Uns diziam iirra e outros di-ziam iiiirró. E então a festa do São Pedro Gon-çalves, que é o padroeiro dos pescadores, ficouconhecida pela festa do irró. Precisamente porisso. Porque as pessoas quando varavam obarco à mão, para que todos fizessem a mesma

força ao mesmo tempo, diziam: iiiirróóóóó. José

Fernando Madeira, Vila Franca do Campo

Promessas e devoções: Isso é uma promessa.E outra pessoa que tem outra promessa a fazervai à Igreja. Já deu o seu nome, para o anoaquela pessoa que já deu primeiro o seu nomeé que recebe o Espírito Santo em sua casa. En-feita um quarto. Cada um tem o seu gosto. Àigreja vai-se buscar essa Coroa. Aquela Ban-deira com a pomba e o estandarte. Dá-se umnome. A pessoa que tem uma promessa a pa-gar, pega para a sua casa. Fica durante um anoconsigo. Depois quando entrar outra pessoa,choram, porque temos em casa durante umano, e a gente fica com o coração triste.

A pessoa é que vai buscar à Igreja àmeia-noite para meter cá. Já tem o quarto hádois dias preparado. Mas tudo fechado, nin-guém vê. À meia-noite é que tiram as corti-nas e vêem o quarto. A senhora põe a mesa,os aperitivos, para receber quem vem der osparabéns. Comem um petisco. Nessa noite.Para o ano, se Deus quiser, acabou a festa, éentregue à pessoa que já foi dar o nome àIgreja. Todos os anos a mesma coisa.

Está aqui durante um ano. A gente choramuito quando é para entregar Nosso Senhor.Dá um choque na gente. O Coração. Muitador. A gente chora muito quando tem que darNosso Senhor. É porque o Senhor vai. NA,

Rabo de Peixe

CONSTRUÍDOO construído (embarcação ou edificado)

dá-nos lugares no mar e em terra. É arte dedar forma a um espaço, erguendo lugaresnum lugar que nos abriga ou nos transporta.Não é por acaso que partilham ferramentas elinguagens, se dão a ver em pequenas esca-las, e ambos se deixaram tentar por novosmateriais e tecnologias.

Criar do mundo: Este Santo Cristo é feito emmadeira de acácia. Acácia para descavação émelhor que a madeira mais dura. O formãoquando entra na madeira consegue tirar umavolta de madeira e não repela muita a madeira.Aqui estou construindo uma carroça toda emmadeira. Uma carroça de carros de bois, da ca-pital, daqui da ilha. Aproveitei umas chapas decontraplacado para obras, para encher cimen-

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1. e 2. Luís Cabral, mestre em armar flores, Ponta Delgada

3. e 4. Mestres António Melo e Paulino França, Vila Franca do Campo

Página seguinte:Cavername no estaleiro de António Cesta,

Rabo de Peixe

71Celebração da Cultura Costeira

tos, betão. Essa madeira é casquinha, que éuma madeira boa para trabalhar.

Quando tinha o meu salão ali, tinha umbocadinho de garagem para trás. As criançasiam ter comigo lá, nem iam para cortar o ca-belo, iam mais para ver trabalhar o artesa-nato. Tinha lá também várias crianças quequeriam aprender a fazer barquinhos. Não ti-nha tempo porque às vezes aparecia umapessoa para cortar cabelo e eu parava. Eu te-nho um orgulho de fazer isto porque eu gostomuito de fazer esta arte. Eu não quero acabarcom isto. Emanuel Penacho, Rabo de Peixe

Aprender com os mais experientes: O ve-lho Cesta fazia um molde aqui, um molde ali,um molde ali. Depois ia fazendo a gosto. E osdonos pediam: – Eh pá, eu queria um maislarguinho. E ele o que fazia? Pegava nos mol-des, alargava mais um bocadinho, ia ajei-tando. De barco para barco ia aperfeiçoando.

O mestre Aldeia trabalhava em PontaDelgada. De uma maneira muito diferente dagente. A gente ia lá de um dia para o outro,via um barco já montado, de maneira dife-rente. Nunca quis explicar: - Um dia que eume for embora eu vou-te dar as coisas que eutenho, e vou-te explicar como é que se faz.

Em 1997 chamou-me, deu-me umas ma-quetezinhas, uns desenhos, maneiras comoé que se fazia, como é que se desenhava. Es-teve dois dias comigo aqui, explicando comoé que se fazia. Depois fui riscando, fui fa-zendo, já sozinho. Via a minha habilidade. Eeu ia vendo sempre mais.

Fui trabalhando sempre. Juntei o queaprendi no estaleiro do Cesta, com a tal teo-ria que o mestre Aldeia me tinha dado. Poroutras palavras, já tinha a prática, não tinhaera a teoria. Com o velho Cesta aprendi aprática de trabalhar madeira. A experiênciade trabalhar com a madeira. Cortar madeira,limpar, planar. Sem teoria ia trabalhandocomo ele ali. Ia trabalhando igual. Não haviaoutra maneira de fazer. O que eu aprendicom o Aldeia, é o que se chama construçãonaval. Quando uma pessoa faz um barco des-ses, quando faz um risco, já sabe o que é quevai sair. As marcações foram outras. Gabriel

Costa, Rabo de Peixe

Teoria e Prática: Se eu tiver só teoria, ateoria de fazer um desenho, não vou cons-truir um barco. As duas coisas juntas servemmelhor que uma só. Então quem tem a prá-tica de trabalhar madeira, chega aqui com oserrote, corta, faz uma coisa, faz outra, isso éo principal. É o trabalhar. Depois então te-mos a teoria. Saber como é que se risca,como é que se faz. GC, Rabo de Peixe

O primeiro barco que fiz: Para mimmesmo. Quatro metros. Esse barco está naLagoa ainda. Tem aí 27, 28 anos. Aí é que

principiei. Foi lá em cima ao pé da minhacasa, num quartinho. Tinha ideia que erapara esbugalhar a janela para sair, mas saípela porta. O tamanho do barco era o tama-nho do quarto. Nessa altura trabalhava naSOFOPEL. À noitinha saía do serviço, vinhapara casa, estava entretido ali até às 10, 11horas. Com petromax. Não tinha luz a casa.PF, Vila Franca do Campo

A resistência de um barco: Uma junção demateriais. Desde o prego, à cavilha, que é oparafuso de fixação. Mas mais o prego. Umarroxamento do prego. Todas as peças têm asmesmas forças.

A quilha é das peças ainda que faz menosforça. A quilha só serve é para varagens. Numbarco de doca, o travalete pega na lancha emete em cima do cais. No mar não faz forças.Tanto pode ter um barrote, como pode teruma peça. Se o barco bater, isso é o contráriode um vasilhame. Isso faz força é para dentro.O vasilhame é para fora. O tanoeiro, que faz ovasilhame, faz é de dentro para fora. Para nãoderramar de dentro para fora. E o calafate éde fora para dentro. Para não entrar de forapara dentro. Se isso fosse ao contrário, nãoresistia. A valentia de um barco é uma junçãode forças AM, Vila Franca do Campo

DOCUMENTOSOs documentos registam e são uma me-

mória. Num mundo em transformação o docu-mento tornou-se num objecto bem maisdurável do que aquilo que refere mesmoquando a sua presença é mais impactante:casa, barco/projecto, pessoa/cédula, pessoa/fotografia, acordo entre pessoas/contrato. Porisso é importante que neste projecto se criemconstantemente documentos que fixem co-nhecimentos e o uso que fazemos deles.

Lei de 26 de Maio de 1862 concedendocertos benefícios aos navios, utensílios eindivíduos que se empregarem na pescada baleia: Artigo 1º Todas as embarcaçõesestrangeiras que forem compradas para seempregarem na pesca da baleia como nacio-nais, dentro de dez anos, a contar da publi-cação da presente lei, ficam isentas dopagamento dos direitos a que, na conformi-dade da lei, se acham obrigadas.

§ 1º Esta concessão só será permitida pre-cedendo fiança idónea de que os navios na-cionalizados se empregarão exclusivamentena pesca da baleia por espaço de oito anos.

§ 2º O navio e o fiador ficam responsá-veis pelos direitos de tonelagem, no caso denão se verificar a disposição do § 1º

“Artigo 2º Ficam da mesma sorte e pelomesmo espaçoi de tempo isentos de quaisquerdireitos os utensílios e mais objectos necessá-rios para o armamento e equipamento dos na-vios empregados na referida pesca; e bem

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Cooperativa Porto de Abrigo

assim serão admitidos em depósito nas alfân-degas de Ponta Delgada, Angra do Heroísmoe Horta todos os sobressalentes indispensá-veis ao mesmo equipamento e armamento.

“Artigo 3º Os produtos da pesca nacionalda baleia ficam livres pelo tempo de dezanos, de todo e qualquer imposto, seja qualfor a sua natureza.

Artigo 4º As embarcações portuguezas ounacionalizadas empregadas na pesca da ba-leia, achando-se para isso competentementematriculadas, ficam isentas, durantes dezanos, de metade de quaisquer direitos ouemolumentos que, em qualquer parte do terri-tório português, as respectivas repartições porlei ou estilo, costumam receber, uma vez quepela visita de entrada ou saída conste que sótrazem e levam objectos relativos à pesca...

Decreto de 2 de Agosto de 1902 e Regula-mento para a pesca da baleia por embarca-ções costeiras nos mares dos Açores: “Doexercício da pesca: Capítulo I, Artigo 1º Para osefeitos deste regulamento dá-se o nome de ar-mação de baleia ao conjunto das embarcaçõese mais material necessário à pesca do cetáceose extracção dos seus produtos, pertencentes aomesmo indivíduo ou a colectividade.

Artigo 2º Nenhuma armação poderá fun-cionar com menos de duas canoas, conve-nientemente aparelhadas.

Artigo 3º Cada armação terá um nome euma marca especial, e as canoas das armaçõesserão numeradas nos termos do regulamento geral das capitanias para as embarca ções depesca.

Artigo 4º Os arpões empregados na pescada baleia serão marcados com o número daembarcação ou marca especial da armação aque pertençam.

§ único Tira todo o direito a reclamaçõeso emprego de arpões não marcados.

“Artigo 5º Só é permitido empregar napesca da baleia canoas de tonelagem supe-rior a 3 toneladas Moorsom, construídas se-gundo os modelos mandados a adoptar pelorespectivo departamento.

§ Único A autoridade marítima assegu-rar-se-á frequentes vezes, por exame directo,que as canoas baleeiras se acham em bomestado de conservação para poderem ser em-pregadas na pesca a que se destinam, de-vendo proibir o seu emprego quando elas nãose encontram nessas condições.

Artigo 6º É expressamente proibido arrearpara a pesca da baleia uma canoa que não sejaacompanhada de uma outra pelo menos.

Artigo 7º É igualmente proibido que ar-poe baleia a tripulação de uma canoa que seache de tal modo distanciada de outra canoaque não possa ser socorrida prontamente nocaso de sinistro.

Artigo 8º Nenhuma canoa de uma arma-ção pode, por qualquer forma, impedir a ma-nobra das canoas de outra armação, comoseja remando para a baleia na ocasião emque a outra a vai arpoar, fazendo ruído para aespantar, ou por qualquer outro modo.

Artigo 9º Quando os mestres de canoaspertencentes a diversas armações fizerem so-ciedade para arpoar uma ou mais baleias,quer seja por palavras, quer por bandeiras,como é de uso, será o produto da pesca divi-dido em partes iguais pelas armações a quepertencerem as canoas.

Artigo 10º Se o mestre de uma canoa,tendo arpoado uma baleia, pedir auxílio da ca-noa de outra armação para a segurar e matar, eeste lhe for prestado, será o produto da pescadividido em partes iguais pelas duas canoas.

Artigo 11º Quando uma canoa encontraruma baleia já arpoada por outra canoa per-tencente a diversa armação, que, por qual-quer circunstância a não pôde acompanharnessa ocasião, conservando, porém, ainda abaleia o respectivo arpão, será o produto dabaleia dividido em partes iguais entre a ca-noa que a arpoou e a canoa que a encontrou.

Artigo 12º Quando a bordo de uma canoa, em exercício da pesca, algum dos tri-pulantes cair ao mar, o mestre fará imediata-mente cessar o exercício da pesca por essacanoa, mandando cortar a linha se assim forpreciso, e ocupar-se-á exclusivamente de fazer recolher o tripulante caido ao mar, em-bora esteja próxima outra canoa.

§ Único Quando o tripulante caído aomar for o mestre, pertence ao arpoador o fazer executar o determinado acima, de-vendo toda a tripulação obedecer-lhe ao queele ordenar.

Artigo 13º Todas as canoas, embora per-tencentes a armações diferentes, devemprestar mútuo auxílio em caso de sinistro.

Artigo 14º O dono ou empresário de ar-mação para a pesca da baleia fornecerá, acada uma das canoas que forem ao mar, tan-tos cintos de salvação quantos sejam os tri-pulantes dessa canoa.

§ Único O mestre da canoa é o responsá-vel por que todos os tripulantes, inclusiveele, empreguem os cintos...

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Problemática: os três núcleos da Ilha da Cula-tra, e o papel das mulheres na organização deactividades socio económicas.

Território: A Ilha da Culatra, também conhecidapor Ilha do Farol, e os s eus três núcleos (Fa-rol, Hangares e Culatra)

Herança cultural activada: Construção local econstrutores de cabanas de colmo, culinária,pesca e artes de pesca, mariscadoras e maris-cadores, apanha de marisco, organizações,conservação de alimentos, festa religiosa,quotidiano, celebrações quotidianas, proce-dimentos tradicionais de cura, piscicultura eviveirismo.

Inventariantes: Dina Pereira e Vânia Mendonça.Assistiu a alguma sentrevistas Sílvia Padinha

Exercícios realizados: Inquéritos, entrevistasem grupo, em pares e individuais, marcaçãode pontos GPS

A Rede das Mulheres da Pesca/Comunidadeda Culatra ofereceu à partilha dos parceirosdeste projecto a experiência de uma partici-pação muito activa da mulher, não só na vidafamiliar e profissional, mas também na insti-tucional. Nos três núcleos homens e mulhe-res relembram uma história de quase-quasecolonização.

Os núcleos fixam e fixam-se a uma identi-dade: Farol, centrado na segurança marí-tima (hoje também no lazer), foi inicialmentehabitado por uma família oriunda do núcleoda Culatra que aí se estabeleceu construindoe habitando uma cabana de junco e madeira.Desta família ainda encontramos, com mui-tas memórias, Lurdes Buchinho, viúva, a fi-lha viva da família original. Hangares – cujaprimeira casa é construída por uma famíliaque trabalhava no Farol e que fazia tarefasde apoio à navegação das embarcações a va-por – era o local de abastecimento de carvãoe água às embarcações a vapor e apoio aaeronaves. É a esta família que se presta ho-menagem atribuindo à rua principal o nomede “Rua 1º Pioneiro, Manuel Lobisomem”.Culatra dos três núcleos o mais numeroso,destacando-se pela pesca, viveirismo e apoioaos turistas, que se servem do ancoradouroda povoação para se dirigirem à praia, que selocaliza no lado oposto da ilha. Entre as trêscomunidades houve sempre muitas ligaçõescomo podemos constatar pelas histórias dasfamílias Buchinho e Paciência e pelo facto,mais recente, da escola primária se situar nonúcleo da Culatra e ser frequentada pelascrianças da ilha, ainda que isso implicassegrandes deslocações a pé, Verão ou Inverno.

1/3 FarolO núcleo do Farol localiza-se junto a uma dasbarras de entrada de embarcações na RiaFormosa. Na sua origem terão estado certa-mente preocupações de apoio e sinalização ànavegação, o que implica desde logo a pre-sença humana regular neste sítio da ilha, tra-zendo outras construções complementares, osprimeiros habitantes e visitantes. O turista e ogrupo de visitas documentados nas fotogra-fias, e identificados como tal por Lurdes Bu-chinho, dão passado ao uso mais comumdeste local, hoje.

As origens (Farol): O meu pai veio da terra,veio para ali para a Culatra, por intermédiode um sobrinho. A minha mãe chamava-seAurora Mendonça Lopes. O meu pai AntónioPedro Buchinho.

Eu já nasci na Culatra. Os meus irmãosnasceram em Olhão. O meu irmão chamava--se António das Dores Buchinho. Faleceuaqui nesta casinha. Duas irmãs, como cá nãohavia escola, foram para Olhão. Virgilina Ro-mana Buchinho. E a outra é Olinda RomanaBuchinho. Maria de Lurdes Buchinho, Farol

Sobre fotografia antiga: Isto, eram pessoasque vinham de Estói para aqui. Para a da mi-nha irmã. São amigos que vinham de Estóipara aqui, passar connosco. E a gente ia lápara casa deles. MLB, Farol

A casa do Farol: A casa está aqui nas foto-grafias. Era de madeira. E depois o meu ma-rido é que fez assim por dentro as divisões,já em blocos, que se fez, de cimento. Depoisalteamos.

Isto era a casinha. Depois tinha uma di-visão assim. Aqui uma portinha e aqui outraportinha. Uma vinha aqui para este lado,mas isto era aberto. E tinha aqui assim outradivisão (desenhando). Dois quartos aqui eaqui. Mas não tinha divisão. Aqui era a cozi-nha. E aqui era uma casinha, que a minhamãe tinha, onde é que tinha a máquina decostura. Que ela fazia calças, fazia roupapara o meu pai e para o meu irmão. O meupai e a minha mãe dormiam no quarto aquideles. Eu dormia ao lado. Tinha um divãzi-nho que o meu pai tinha feito, e ficava aolado. Aqui está, duas janelinhas. A cama fi-cava ao pé da janela. O divã ficava aqui aolado, encostado à cama dela. O chão era emmadeira. Eram de tábuas que o meu pai ar-ranjava, e lhe ofereciam.

Para guardar os pratos, o meu pai faziauns armáriozinhos e ela punha os pratinhos eos tachinhos e a loiça. Pegados num canto,

73Celebração da Cultura Costeira

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Rede Portuguesa de Mulheres da Pesca74

na parede. Os talheres, punha junto à louci-nha. Tinha uma mesinha no meio, feita pelomeu pai, em madeira, compridinha. Os ban-quinhos, fazia também o meu pai. MLB, Farol

Olhando fotografias: A gente tirámos umafotografia além ao pé do Farol, das dunas.Isto era tudo cheio de piorros. Eu estou aqui,e aqui. Este vestidinho fez a minha mãe. Fa-zia vestidinhos para as filhas. MLB, Farol

Cédula marítima do pai de Lurdes Buchi-nho, António Pedro Buchinho

Nota manuscrita na folha inicial:“Mestre e dono da 0 – 300 – O” Departamento Marítimo do SulCapitania do Porto de Olhão

Livro nº 17, fl. 273, inscrito nº 6102(Sobre um selo fiscal a data do pagamento

da capitação: 22-11-926Nome: António Pedro Buchinho

Filho de Joaquim Fernando Buchinho e deMaria da Conceição

Natural da Freguesia de Olhão, Concelhode Olhão, Distrito de Faro

Nasceu em 27 de Abril de 1893Ocupação antes da inscrição: Soldador

Documentos apresentados para a sua inscri-ção: Ressalva do Serviço Militar

Vacinado em Junho de 1928, Foi revaci-nado em 10 de Fevereiro de 1945

Habilitações literárias: ler e escreverAltura: 1,675 Boca: Regular

Barba: CastanhaCabelos: Castanhos

Cor: NaturalNariz: Regular

Sinais particulares: —Inscrito em 22 de Novembro de 1926, data

desta cédula e do primeiro pagamento

Cédula marítima do irmão de Lurdes Buchinho, António das Dores Buchinho

Departamento Marítimo do SulCapitania do Porto de Olhão

Livro nº 18, fl. 170, inscrito nº 6297“…mp. da 0 – 61 – B” (a primeira palavraestá abreviada. Não se entende o sentido)A página inicial tem um selo, correspon-dente ao pagamento da capitação, com a

data 28-05-929Capitania do Porto de Olhão

Nome: António das Dores BuchinhoFilho de António Pedro Buchinho e de Au-

rora de Mendonça LopesNatural da Freguesia de Olhão

Concelho de OlhãoDistrito de Faro

Nasceu a 10 de Julho de 1913Ocupação antes da inscrição: marítimo

Sabe nadar e remarDocumentos apresentados para a sua inscri-ção: “Os constantes do artigo 4º do Decreto”

Foi revacinado em Maio de …Foi revacinado em 10-02-1945

Altura Boca Barba

Cabelos: CastanhosCor: Natural

Nariz Olhos: Castanhos

Sinais particulares A cédula tem a data de 28 de Maio de 1929.

Terá pago a última capitação em 1969.

2/3 HangaresHangares – um antigo posto de amaragem dehidroaviões – tem no moinho de elevação deágua, construído em ferro, e em outras ruínascircundantes, um símbolo bem marcante dasua identidade quando a modernização exi-giu assistência e recursos específicos (rea-bastecimentos de água e carvão). A históriaque os habitantes contam estabelecem rela-ções mútuas entre os de fora e os residentes,espécie de permuta que provavelmente seinicia com a construção e se desenvolve emestratégias regulares de apoio ao abasteci-mento. Na memória ficam a oferta de alimen-tos e tabaco pelos pilotos das aeronaves, mastambém os fenómenos do dia-a-dia que di-zem respeito à constante construção e repara-ção de cabanas, derrubadas pelos temporais,e aos eventos que pontuam o crescimento deuma comunidade, o casamento, a migração, olazer inventado (o jogo da petanca).

O presente das areias dos Hangares é in-certo, mas nas suas águas pratica-se a apa-nha da amêijoa e a produção, em viveiro, deostras para exportação.

Construção da casa de junco e barrão I:Nasci na Barrinha, e fui criado com três anose meio no Ilhote da Cobra. E quando passouo ciclone grande, há quase sessenta anos. Fi-cou só a do descansado do Posto da Guarda--fiscal. Tinha três pés, e aguentou-se no ar. Agente ia todos para lá. Mais ou menos oitentapessoas.

Nessa altura o meu pai foi à armação, ga-nhou uns pataquinhos, e disse:

– Agora vamos para os Hangars. Chegoucá e comprou uma ao meu sogro. Que é o paidos meus cunhados. Do Candinho e do Vito-rino:

– Arranjas por lá uma barraquinha paramim?

– Arranjo, arranjo. Olha, está aqui umaaí dentro. Dezoito escudos custou a casa. Eraem barrão. Por cima tinha as canas e depoislevava o junco abotoado com uns pontos debarrão. Havia quatro casas. Era só a do meupai. Francisco das Chagas Júnior. A do meusogro, Manuel Lobisomem. As outras casasestavam abandonadas, eram dos galeões. Albino José Paciência, Hangares

Olhando fotografia antiga: É um latão deágua. Estamos aguentando para tirar o re-trato. Era o meu sogro e eu. No meio era umrapaz que estava aí. AJP, Hangares

Construção da casa de junco e barrão II:As casas eram feitas com paus. Sempre commadeira pregada. Sempre com paus espeta-dos. Sempre com paus espetados. Fazia-se acasa nivelada, como este livro. Punha-se umpau aqui, outro pau aqui, na mesma altura.Outro pau aqui, da mesma altura. Punha-seeste pau mais alto, para depois levar o telhadoem cima. Os paus achavam-se na costa. Istoestava sempre aí em monte. Mesmo hojeainda se encontra.

Os paus mais fortes são estes. São osdois. Para aguentarem o peso todo que vemde cima. Que o barrão é muito pesado. Ojunco é muito pesado. Como é muito pesadoa casa pode dar e pode-se partir.

E para dividir os quartos tem de levar umpau aqui ao meio. Que vai à combreira. Isto éa combreira. A gente chama-lhe a combreira.O tal pau grande, comprido, daqui, que étrave, que aguenta a casa toda.

E aqui à rés põe-se as tábuas compridas,pregadas a estes três paus. Aqui está um.Aqui está outro. Aqui está outro. Depois vai--se pregando, as tábuas aqui, até fazer altura.As tábuas pregadas, sempre a estes três bar-rotes. Diz-se, as tábuas ficavam arrumadasumas às outras. Ficavam justas. Ficavamjustas umas às outras. Quando se fazia a casaficavam arrumadas umas às outras. Até fazera empena.

Para fazer as duas abas. Pronto, está umacasa feita. Pode vir um ciclone, pode vir ovendaval que vier, que não vai embora.

Ficava enterrada na areia talvez aí ummetro. Depois ainda levava outra coisa. De-pois ainda levava cimento. Levava umatromba de cimento lá em baixo, que era paraos paus secarem dentro daquilo. Mais tardepartia-se por ali, mas não levantava no ar.Fazia-se o buraco com uma pá. Punha-se en-tão o cimento, e depois metia-se o pau dentrodo cimento.

No telhado cada água levava aí talvez aíumas trinta ou quarenta canas. Canas boas.Canas grandes. Conforme o tamanho da casa.Mas vá lá, levava aí umas dez fiadas. Trintaou quarenta do lado para a combreira. E dezfiadas ao comprido. Que é para a gente co-meçar a coser assim, o barrão, para ali. Co-meça-se a coser o junco de baixo para cima.Que é para ficar sempre debaixo. Que a águaquando bater, leva a água para baixo. Faziacama. Fazia cabeceira. Tapava a cabeceirada outra. Era uma barraca, mas era umacoisa importante. AJP, Hangares

Construção da casa em junco e barrão III:Isto é o telhado. Isto aqui ainda leva uns

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1. e 2. António das Dores Buchinho e pai António Pedro Buchinho em fotografias

das cédulas marítimas, Farol3. Grupo de turistas na praia, Farol

75Celebração da Cultura Costeira

paus. Depois da combreira vão aqui unspaus, e estas canas vão em cima desses paus.Dá-se só um nó. A gente dá uma grande forçae o nó aperta. Aqui deve ter outra cana. Istovai subindo por aí acima sempre. De umacana para a de cima ia mais ou menos umpalmo. Aqui o nó, fica tapado pelos molhosde junco. Sempre assim. Sempre daqui paralá. De baixo para cima, de um extremo para ooutro do telhado. E vai sempre cosendo, des-via a cabeça do molho. Vai aqui à cana.Aperta este nó. Estas são umas canas que es-tão sempre firmes.

Pedia-se: Dá-me aí uma mão cheiinha.Eles vão dando às mãos cheiinhas.

“Isto é uma cabeça. Aqui é outra. Aqui éoutra e aqui é outra. É assim. O rabinho ficaassim. Toda a água que chega aqui, não vainenhuma a estes buracos.

A gente quando começa não pára mais. Agente primeiro faz uma carreira inteira. Deuma casa. Depois volta-se lá atrás outra vez.Desde a ponta, para além. Não se pode co-meçar de lá para cá. Porque é à canhota. Jápor aquele lado, já é ao contrário [Isto é, dámais jeito entrelaçar os molhos de junco se-guindo uma orientação da sua esquerda paraa sua direita]. Do outro lado da casa já é poraquele lado. Já se começa de lá para cá.

“Ata-se aí. Às cabeças só. Mais nada.Este junco fica assim. Vai sempre esticandopara além. Esta mão cheiinha só ata aqui emcima. Depois leva aqui outra cana. Esta vaicrescendo para lá atada. E esta, põe-se aquioutra cana, mais outra mão cheiinha. São to-das atadas. Até acabar ao final, lá em cima, étudo atado.

Vai tudo cosido nas primeiras e nas se-gundas. Vai tudo cosido. Se a casa levar vintecanas destas, tem de levar vinte carreiras.Que é para chegar além. AJP, Hangares

Espiar a costa, conhecer os ventos: Carre-gava os vendavais. E havia sempre barcosque até davam boas madeiras à costa paranós arranjarmos a casa e as coisas. E quandose encontrava uma garrafa de vidro, isso en-tão era quase um troféu. Era para, quandofosse à escola, trazer 1 decilitro de azeite.

Para espiar a costa. Saíamos daqui, ía-mos direitos ao posto da Guarda-fiscal. Masaí a cento e tal metros era a costa. E depoiscorríamos, conforme os ventos eram predo-minantes. Se o vento fosse predominante deSueste, não íamos correr do Posto para a Cu-latra. Corríamos do posto para o Farol. Por-que o vento empurra assim. De poente paranascente. Quando o vento era sul, empurravade nascente para poente. Fazíamos o per-curso ao contrário. Já então íamos do postopara a Culatra. Para a ponta da Culatra.

As madeiras eram madeiras de caixotes.Também tábuas de flandres, e barrotes, aícom quatro a cinco metros. O navio levava

aquilo mal acondicionado. O vendaval eramuito. E de maneira que, aquilo calhando omar, depois baldeava aquilo para dentro deágua. E as pessoas apanhavam. E às vezes,quando era muita quantidade, tinham departicipar à Alfândega. Vinha cá a Alfân-dega e depois levava.

Mas uma vez encontraram uma pipa devinha, e depois o meu pai falou com o cabo daGuarda-fiscal, com muita responsabilidade:– Então pá, a gente vai dar isso! Então, o queé que a gente bebe de inverno? Fizeram umacova e enterraram aquilo. E iam bebendo.

Uma vez o meu pai encontrou um pára-quedas. E fizeram muitas roupas. Fizeramsoutiens, fizeram combinações, fizeram es-sas coisas. Roupas interiores. Carlos Candi-

nho, Hangares

Percursos a pé e as marés: Ia aqui direito àponte dos Hangares quando a maré estavabaixa. E depois ia para a Culatra. Ia a pé.Isso faz-se muito rapidamente por aqui. Estepercurso só se podia fazer com a maré vazia.Com a maré-alta, se fossem marés mortas,alta mas morta, ia direito ao posto daGuarda-fiscal, depois ia direito à escola. Aescola, que era a antiga casa do salva-vidas.Onde é agora o infantário. O Centro Social.Passam-se uns regatos. E tinha muitas vezesque me despir para poder passar. Imagine,com o frio, o que é que uma criança passou.

Com a maré vazia ia ter até à Culatra, àponta da Culatra, onde está a Igreja. Dali de-pois é que me dirigia para a escola. CC, Hangares

As pontes primitivas e o dispositivo de for-necimento de água: Houve primeiro umaponte de madeira feita pela Junta Autónomados Portos. Depois uma de cimento, mais es-treitinha, construída pela Junta Autónoma dosPortos do Sotavento do Algarve. Que caiu porcausa da pressão dos navios grandes.

Depois da ponte ter ruído a Junta Autó-noma fez na praia um pontão em pedra, ondesaía um cano da água, e a barca da água daJunta dos Portos vinha ali abastecer água.Para levar para o Farol. Daqui é que ia aágua para o Farol. No Farol não havia água.A água era tirada por um moinho que estácaído, com um depósito, saindo daqui para aBarca da Água. Chamava-se Sousa Vaz.

O meu pai é que tinha a chave para parar omoinho. Quando o meu pai estava lá na barranós é que íamos dar à manivela e pôr o travãopara aquilo parar quando estivesse cheio. Ti-rava muita água. Era uma água maravilhosa. Eaqui havia poços, mas eram dos galeões. Cadagaleão tinha o seu poço VN, Hangares

Casamento: Esta fotografia foi em cin-quenta e seis, na Sé em Faro.

É o meu fato. Tinha uma madrinha queera empregada na Casa Verde, em Faro, que

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Rede Portuguesa de Mulheres da Pesca

é a casa mais velha que há na cidade deFaro. E eu tinha a minha madrinha de casa-mento, e eu disse-lhe:

– Então agora não tenho um vestido!O que é que a gente fez? A minha madri-

nha, que se ofereceu para ser minha madri-nha de casamento, como ela estava lá na loja,disse-me:

– Deixa estar que eu levo-te um vestido.Eu peço lá ao director um vestido. É precisoé não sujá-lo. Quando saíres da Igreja, tu,despes logo o vestido. Com muito cuidado,no carro, para não o enxovalhar.

E essas flores também foram oferecidaspor uma amiga minha. E depois levavaaquele chapéuzinho. Punha o véuzinho paraa frente. Mas depois, o meu marido quandome deu o beijinho – pois que é normal, não é–, ele levantou-me o chapéuzinho para cima.

Os sapatinhos foi o meu pai que me com-prou. O meu pai até é que me disse para aminha mãe:

– A moça já tem o vestido que lhe em-prestaram, mas agora tem de ter uns sapatos.Dá lá o dinheiro para a rapariga comprar ossapatos. Já eram uns sapatinhos jeitosos na-quela altura.

Aqui na Ilha não se andava com tacões.Andava de pés descalços na areia. E depoisquando fui calçar sapato de tacão alto, nãosabia a maneira de andar. Consegui andar lácom muita paciência. O meu pai era Paciên-cia. O meu irmão é Paciência.

O fato do meu marido. Foi o meu maridoque foi à loja. Era um costureiro, que faziafatos ali à Pontinha, em Faro, e então fomoscomprar a metros, na Casa Verde. O senhortirou-lhe as medidas, fez-lhe o fato. E o se-nhor ofereceu-lhe a camisa. Ele disse:

– Uma vez que te faço o fato, ofereço-te acamisa branca. E então, a Casa Verde em-prestou estas luvas que o meu marido levanas mãos, que tornaram a ser vendidas outravez. E emprestou o lencinho. E a gravata atéfui eu que comprei com um dinheiro que ti-nha das amêijoas.

Os sapatos do meu marido, eram uns sa-patos que ele tinha velhos. Maria João Cata-

rina das Chagas, Hangares

Os viveiros: Eu tinha comprado um viveiropara o meu sogro, para o descansado do meu

sogro se entreter, e fiquei com esse viveiroaté hoje.

Depois, vim de França, comecei a viversempre aqui. A bem dizer só vou daqui nofim do mês de Novembro. Vou passar as fes-tas do Natal lá.

Tenho um viveiro com amêijoas, que émeu. E tenho outro onde tenho ostras, que nãoé meu. Foi um amigo, que não precisa dele, eme deu para pôr lá as mesas com as ostras.

As mesas têm dois metros de comprido.É uma mesa rectangular, que tem dois me-tros de comprido e oitenta de largo. Eu estoua dizer o feitio: quatro pernas, com três va-rões. A mesa tem três varões, com três barrasde ferro, ferro dezasseis, soldadas assim.

Depois, há uns elásticos, com dois gan-chos, que prendem um saco de um lado, pas-sam por baixo do ferro, e engatam no outro.Cada saco tem cinquenta centímetros delado e um metro de comprido. Ficam emcima das mesas, deitados. Mas eu só prendode um lado. Do lado que vem o cachão. Cadaum tem que ver a posição que deve pôr emrelação ao viveiro, ao vento, ao cachão. Ficapreso na parte da frente. Quando as ostrasestão pequenas, com o cachão os sacos le-vantam, abanam. Mas não faz diferença. An-tes pelo contrário. Depois, quando elascomeçam a estar grandes e pesadas, já quaseque nem mexem. E só estão atados à frente.

A distância ao chão é de cinquenta centí-metros. Elas normalmente, as mesas, fazemcinquenta centímetros de altura. Meio metro.Para haver, segundo ele me disse, a circula-ção de água para o oxigénio. Aniceto dos Santos,

cujos viveiros se situam entre os Hangares e a Culatra

3/3 CulatraHá no núcleo da Culatra uma vibrante activi-dade organizadora e produtiva dos seus habi-tantes. Nele encontramos as manifestaçõeselementares e que pertencem às suas raízes(pesca e apanha), mas também assistimos àcriação de instituições que caracterizam avida social contemporânea e ao esforço de-senvolvido para agarrar uma história e pro-jectar um futuro. Este território traz aoprojecto CCC a problemática do papel damulher das comunidades costeiras, que naCulatra ganha uma expressão muito particu-lar, de força, empenhamento e motivação.

A Culatra é um paraíso…: A vida do marantes dava mais ousadia do que dá hoje. Apesca dava mais alegria. Dantes ia ao remo, àvela, a gente passava aí pelo areal: – Olha,aquele vai cheio de peixe, Aquele leva isto.As mulheres em cima do cerro, passavam asbarcas da armação do atum, do Cabo, passa-vam para Vila Real. As mulheres às vezes aí aarrastarem. Era uma ousadia a vida. As redesque nove ou dez homens levavam num barcosão as que usa agora um homem sozinho Antó-

nio Sebastião, Culatra

A povoação da Culatra e as cabanas: Em1974 habitavam aqui cerca de oitocentas pes-soas. As casas, algumas eram todas de barrão.Mas a maioria, o telhado era de barrão, e asparedes eram de madeira. Iam à serraçãocomprar tábuas de madeira, e ripas, para pôrnas casas. E depois veio isto, o madeirito, ma-deira prensada, que arranjavam na SerraçãoOlhanense. Em chapas. Aquilo é madeiramoída, ou o que é aquilo. E depois começa-ram a forrar as casas por dentro em tijolo. Edepois, então, começaram a tirar o madeirito ea fazer casas em tijolo. E depois começaramtambém a pôr o chão em mosaicos.

Isto começou a mudar para aí em... Em1965, quando eu vim do ultramar, eu fiz umacasa em esferovite. Importou em sete contos,e por sete contos vendi. Fez o meu sogro. Edepois fiz esta aqui em tijolo. Foi para aí emsetenta e tal. Começou a mudar nessa altura.

Agora, há ainda uma casa em madeira. Éda minha irmã. Foi uma das mulheres quecomprou tijolo, para fazer a casa, e tinha di-nheiro e não fez. Os tijolos desapareceramtodos. Comprou mil e quinhentos tijolos, e jánão tem nenhum. Foi quase das primeiras.Agora já não faz. AS, Culatra

Uma história da construção para a Cula-tra: Quando fui para lá comecei como ser-vente, e depois comecei a ser o empreiteiro.Eu era o servente do meu pai. O meu pai éque fazia as casas. Ao princípio era só casitasfeitas com tábuas de caixote. Antigamentehavia aquelas barras de sabão, aquelas barrasde sabão azul e branco, e vermelho. E entãoas pessoas tiravam as caixas, aproveitavam,punham nas paredes das casas. Faziam as ca-sas com aquelas tábuas. Depois apanhavam

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1. e 2. Casa do 1.º pioneiro Manuel Lobishomem, Hangares

(36°59’9.43” N 7°51’15.36” W)3. Moinho de água para fornecimento aos navios de

pesca [a necessitar de reparação], Hangares4. Casamento de Maria João Catarina das Chagas,

Hangares

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2. e 3. Albino Paciência demonstra como construir um telhado de colmo

77Celebração da Cultura Costeira

aquele, o barrão, tipo junco, secavam, pu-nham com canas, atado com cordas, e eramas paredes das casas, e o tecto.

O meu pai, como era pedreiro, começou adar a ideia às pessoas para forrarem por den-tro: Compara-se tijolos e tal, por dentro forra-se tudo, por dentro fica tudo bonito, não sepode fazer por fora, e a gente forra aquilo pordentro. E então começámos a trabalhar e eucomecei a ser servente. Depois é que come-cei a fazer uns tanquezitos, uns muros dequintal, que fazia ao Sábado e Domingo, efazia uns biscates sozinho. Eu comecei a sa-ber fazer desenhos. Os croquis das casas. Eentão começaram a dar-me mais trabalho, amim, que ao meu pai.

Passei a pedreiro. Foi assim que começou. Ao princípio começámos a fazer em ma-

deira, com placas de tábua pã. Tudo em ma-deira. O esqueleto em madeira. Com umasdivisórias feitas com umas tábuas por dentropara dividir os quartos. Por fora mantinha-sede pé. Fazia-se a fundação, metiam-se os ti-jolos. A fundação era feita com tijolos deita-dos, dois, três, de altura, deitados. Aquilotinha trinta. Punham-se deitados em volta.Onde é que se queria fazer os quartos, fazia-se tudo. A fundação era toda feita em tijolo.Depois fazia como é normal fazer agora. Deargamassa metíamos cimento e areia. Depoisdaí para cima levantava-se a parede ao alto.O tijolo ao alto. De dez, ou de quinze, ou dedoze. Em cima daquele tijolo. O de baixo eraigual. Só que, em vez de ser ao alto, era dei-tado. Fazia-se três fileiras daquelas, embaixo. Para fazer o cabouco, a fundação. Edepois é que levantava a parede em cima aomeio daquilo.

Ao princípio era tijolo de sete. Para nãoroubar muito espaço. Por dentro era tudo re-bocado. Só que por fora não podia, porqueestava encostado à madeira, estava tapadocom a tábua.

O telhado estava lá feito, e ficava aqueleque lá estava. Naquela altura era telha de ca-nudo. Ou telha Marselha. Deixávamos a es-trutura que lá estava.

Estava pronto por dentro. Estavam feitasas paredes. Estavam as divisórias feitas. Es-tava o chão metido. Estavam as portinhas to-das arranjadinhas e novas. O chão era feito àmesma com cimento e areia, e mosaicos. Ci-mento e areia, e depois mosaico por cima.

Por volta de 1967 talvez, começou-se a pôr os azulejos na cozinha, nas casas debanho.

Na altura ainda era o meu pai: – Eh pá,está assim, a madeira apodrece, estraga-se.A gente tira uma parede e reboca-se isso porfora, e caia-se e começa-se a caiar ou pintar,e fica para toda a vida.

Depois então foi aquela fase de tiraraquela parte de fora. Tinha dezassete, de-zoito anos. Foi antes de ir para a tropa.

A junta dos tijolos tem os borbotos do ci-mento. E vai ficar com um centímetro oudois. Enquanto um reboco pode levar umcentímetro ou dois, naquela altura, a gentepara não estar a partir aqueles borbotos to-dos, tinha de dar uma chapada de massa,varrer aquilo tudo com massa, para ir buscara altura daquele que lá estava. E depois en-tão é que se dava um reboco com mais um emeio, ou coisa assim.

Passou-se a meter telha de lusalite maisou menos em sessenta e nova. Se calhar atéantes. Modificar os telhados, telha de canudoe pôr lusalite.

Nunca fiz nada de placa. Nunca chegueià placa. Tirava-se a telha de canudo, tirava-sea estrutura do telhado, metia-se vigas. Oumadeira à mesma. Geralmente era mais ma-deiramento. E punha-se telha de lusalite.Usava-se madeira de pinho. Comprava-se asvigas. Tinha de se ir comprar à SerraçãoOlhanense. Eram vigas de dez, doze, con-forme o tamanho que a gente queria. Não le-vava ripas. Porque a telha é comprida, nãovai levar ripa. Quando era para a telha de ca-nudo ou para a telha Marselha é que se tinhade pôr os barrotes ao comprido, e atravessarcom ripas. Se fosse uma telha com dois me-tros, ou dois metros e pouco, tinha de se pôr aoutra viga ao meio. E geralmente utilizava,metro, metro e meio, porque ali, de metro emmetro e meio, levava uma viga. Mais ou me-nos. Depois era aparafusado com parafusos.

Não se fazia nada na cumeeira. Chegavacá acima, tinha duas vigas assim, a fazer ocume, e era aparafusado. Tinha a cumeeira,ou cubridora, como lhe quiserem chamar – agente é cumeeira, para tapar em cima –,mesmo próprio da lusalite, e depois era sóaparafusar.

Por dentro pintava-se. Em algumas fazia-se um tecto falso. Fazia-se com madeira, umripamento.

Depois de estar o telhado feito, de estartudo pronto. Metia-se madeiramento, ripas, efurava-se com as tais chapas. Florival Diógenes

dos Reis, Vila Franca de Xira

Xarém pobre, xarém rico: Antigamenteera o xarém pobre, com alguns torresmos depão frito, com algum bocadinho de azeite ouóleo, e o que deitava lá, toucinho. Coziam omilho na água. Depois do milho estar cozidofritavam o toucinho dentro de uma frigideira,depois deitavam dentro do milho. Levavaesse tempero. Era só assim.

Depois é que vem o Xarém rico. Levaamêijoa boa, leva camarão, leva conquilhas.Mete-se a água. Põe-se o milho. Está-se sem-pre a mexer o milho até ficar grosso.Aquilonão leva tempo nenhum a cozer. Aquiloquando ficar grossinho, já está cozido. Depoispõe-se as amêijoas, o camarão, as conquilhas.Depois é que se faz o tempero à parte para

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Rede Portuguesa de Mulheres da Pesca78

pôr dentro do milho, no tacho. O tempero éazeite, bocadinhos de pão frito, toucinho,tudo dentro do tacho, onde é que está o milhojá feito, e as amêijoas, e a gente mexe tudo.

O pexame: receita para peixes que se se-cam para petisco: A guelha é uma maravi-lha. Temperada com tomate, azeite, alho ecebola.

A gente apanha a guelha. Limpa-se e es-cala-se. Salga de um dia para o outro. Põe-seao sol a secar. Depois lava-se e está pronta.Em meia dúzia de dias está bom.

Peixe leitão também se salga.O peixe salgado e seco, às vezes, a maior

parte das vezes, era para o petisco. Íamos parauma taberna ali, sete ou oito homens. Para es-tes petiscos, para estes convívios, o anequim étambém um peixe bom. E cação, peixe-leitão,guelha, cornudas, pintarroxa, pernas-de-moças. Quanto é tubarão é tudo bom. O atumtambém é um bom peixe para fazer pexame.A melhor parte do atum para o pexame é as fa-ceiras. É a mais saborosa. Não é tão gordo.

A gente aqui, quando apanha o polvopara comer, bate para ficar mole. Em cimade uma tábua, mete-se o polvo ali, com umaspazadas boas, fica molinho. Depois, antes deser guisado, para ficar bom, dá-se uma fer-vura valente. Numa panela de pressão. De-pois é cortado e é guisado, com tomate,coentros, cebola, louro. Pode meter outrostemperos, se gostar.

Há quem goste mais com batata-doce.Nunca leva sal. Sal já eles têm demais.

Aquelas ventosas que eles têm, estão cheiasde água salgada. O polvo, o choco e a lula,nunca levam sal. Seca-se, mas nunca levasal. Há quem meta, mas estraga o polvo. Tirao gosto ao polvo. António Nunes Perruca, Culatra

Amêijoa aberta no sal: Este foi um prato tí-pico do Algarve. Comi-o pela primeira vez em1966, no restaurante Montenegro, em Faro.

Uma camada de sal (cerca de 5 centíme-tros de espessura). Colocam-se as amêijoas,uma a uma, carregando ligeiramente demodo a fazer uma covinha no sal. Amêijoaabre com o calor.

Quando a amêijoa abre, retira-se e co-loca-se outra nessa cova.

Ocasião em que se comeu: Uma socie-dade de vinte mulheres, que se juntam todasas Quintas-feiras para falarem e divertirem--se. No final do convívio apareceu uma caixacom uma lista de nomes de mulheres contri-buintes (24 de Maio 2007). José Júlio, Culatra

Receitas para peixe que se seca para con-vívio: Secava-se arraias, tremelgas, cações.Fazia-se um guisado daquilo. Depois de seco,punha-se de molho, para tirar assim algumascoisa, pois dantes, nesse tempo, havia muitamosca. Não tratavam do lixo. Até no inverno

havia moscas. Assim, alguma mosca que ti-vesse, saía tudo. Depois fazia-se guisado.

Não se seca o carapau. Vi na Nazaré asecar, carapau, cavalas. Aqui não, porque hámuito gato, os gatos vão lá e comem tudo.Naquela corda além, que tem aqueles gan-chos e alfinetes, é onde seco os chocos e ospolvos. Penduro pelos alfinetes. Jogo a ca-beça do choco fora. Mas, às vezes, quandosão cabeças de chocos grandes, aproveito acabeça. E depois penduro. Agora de Verãopenduro, e amanhã já está bom.

A moreia não é preciso tempo. É só es-correr. Pendura-se agora de manhã, ao al-moço já está boa. Mais tempo começa-se apôr amarela e não tem gosto.

O peixe-leitão, eles lá no mar, e emOlhão, secam sem pôr sal. Às vezes tem mos-cas, varejas, mas não faz mal. Limpa-se.

A gente põe sempre sal no outro peixe.Voadores, agulhas. Salga-se. E depois quandojá está bom de sal, lava-se e põe-se a secar.Às vezes basta duas a três horas. A tremelgabasta uma hora porque é um peixe mais fino.O peixe de cor, como o leitão, salga muito.Salga logo. A arraia e o pintarroxo, é que pre-cisa de mais tempo. António Sebastião, Culatra

Jogos e convívios de mulheres e homens:Olhe, ao Sábado, há aqui uns matraquilhos.Uns bonecos. Agora ao Sábado é para elasjogarem. E ao Domingo é que jogam os ho-mens. Dina Pereira, Culatra

Jogos de infância: Brincávamos à deserta.Fazíamos um coito, chamávamos um coito,uma redondela, grande, com sete ou oito pes-soas de cada lado, ou mais. Uns iam passear.Ao fim de um tempo tinham de entrar alidentro. Tinham de apanhar mais quantidadepara perder. Era uma espécie de uma guerra.Uns tentavam entrar. Outros tentavam impe-dir. Estavam a tomar conta daquele terreno.

Há sempre uns mais rápidos. Cadaequipa escolhia um, que era a mãe, que valiadois. Quando a mãe era apanhada, valiacomo dois. Tinham de apanhar 60% para ga-nhar. Quando se apanhava 60%, ia-se acima.Quer dizer, o grupo que estava de fora ia parao coito, para o lugar dos outros. E os outrosiam passear.

Jogava-se aqui muito era à bola. Bolasfeitas com meias, com sebas lá dentro, rou-pas. Mas aqui na areia era difícil jogar.

Jogava-se à Galinha. Era um risco, eralatas de um lado e latas do outro. Cada umtentava roubar as latas do outro lado. Apa-nhar e levar para o seu campo. Sem que al-gum do campo adversário tocasse.

De cada lado havia cinco, seis, sete ouoito jogadores. Conforme. Quanto mais hou-vesse, mais entusiasmo dava.

Jogava às cartas. Em lugar de pôr di-nheiro, porque não havia, punham-se botões.

Levavam-se os botões da mãe. As cartas fa-ziam-se dos maços de tabaco Provisório. De-senhava-se no papel o valete, o rei, o cinco.

Jogava-se também ao carolo, ao berlinde.Cada um punha o dinheiro num monte. Asquantidades que um punha, punham os ou-tros. Atiravam os berlindes. O que estivessemais perto da casola era o primeiro a jogarJosé Guerreiro Rosário, Culatra

Jogos de adultos: É mais comum os homensjogarem o dominó. Não se vêm mulheres afazê-lo. As mulheres jogam aos póquer, aonão te irrites (lodo). Isso é jogo de mulheres.São as mulheres que o jogam basicamente.

Os homens jogam ao Rami. Quando falta al-gum eles deixam as mulheres entrar. E ao Lique.Quando os homens ensinaram as mulheres a jo-gar, quatro mulheres contra quatro ho mens, acha-ram muito engraçado ganhar às mulheres. Masagora já não querem muito jogar. A gente ganhafacilmente uma cerveja. Clara Buchinho, Culatra

Cavalo Pelado: Um jogador apoia-se no troncode um colega, que se encontra de pé à suafrente. Os restantes jogadores vão saltando paraas costas uns dos outros. José do Carmo, Culatra

Tarde de Sábado, convívio de mulheresno Tavinho (matraquilhos): As mulheresprocuraram uma situação que lhes agra-dasse. Sentiam-se sozinhas. Os maridossaíam e conviviam. E acabaram por fazerigual. Os homens já faziam petiscos, junta-vam-se, e não levam a mal porque queremter também esse espaço que é deles. É para agente se divertir. Na ilha os passatempos sãopoucos, as diversões são poucas. O que agente pode fazer é jogar às cartas, ao snoo-ker, aos matraquilhos.

Há outros grupos que se juntam. No JoãoFarol, na passadeira, num café pequenino,junta-se um grupo. Está lá a Regina, a Con-ceição e outras. Esta, no Café Tavinho, quejoga matraquilhos, é a geração revolucioná-ria. Depois há a geração mais nova. Depois háa geração mas idosa. E há o grupo da Igreja.

Não têm nomes especiais. Há muitas no-vas que não estão cá. Não participam muitonos jogos e nestas actividades mais liberais.Simplesmente não gostam.

Há alguns anos formámos uma equipa deandebol. Aí por volta de 1975. Nós iniciá-mos. Eu, a Clara, a Dina… Depois as maisnovas retomaram este gosto.

A comida do grupo é sempre o marisco.Por ser fácil arranjar, e porque os maridostêm barcos de pesca e trazem uma santola,ou outra coisa que consigam. Por isso é fácilfazer um convívio com marisco.

Há trinta anos atrás quando começámosa aparecer nos cafés e a tentar fazer aquiloque gostávamos, não igual ou diferente oumelhor ou pior que os homens, mas aquilo

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1. Convívio entre mulheres(Café Tavinho: 36°59’41.47” N 7°50’22.24” W)

2. Convívio entre homens(36°59’40.99” N 7°50’20.27” W)

3. e 4. Regina Buchinho e a sua caldeirada muito rica(Jaques: 36°59’37.93” N 7°50’26.70” W)

79Celebração da Cultura Costeira

que gostávamos, houve uma certa crítica dehomens e mulheres. Hoje somos aceites comnaturalidade. O facto de se beber cerveja nãoera hábito aqui entre as mulheres. Ir para ospetiscos e começar a beber foi há mais oumenos vinte anos. Por volta de 1985, 84. Jáéramos diferentes. Matraquilhos, jogos deandebol, tínhamos actividades. Sair daqui econviver com gente de fora dava-nos estavontade de fazer diferente. E depois começá-mos a juntarmo-nos e a conviver.

Mas foram sobretudo os homens, os rapa-zes da nossa geração, que não aceitaram bemque as mulheres tomassem esta liberdade. De-pois com havia da nossa parte o desejo de estarlá fora, tínhamos à vontade para conviver comos de fora, os de Olhão. Havia aquela rivali-dade entre os de cá e os que chegavam. Os ho-mens daqui tinham ciúmes dos que vinhaminvadir o terreno que era deles e conquistar asmulheres que eram deles. A rejeição era maisem relação aos que vinham de fora e não tantoao facto de se jogar matraquilhos ou entrarmosnos cafés. Eles eram corridos daqui. A gentepassou um mau bocado Dina Pereira, Sílvia Padi-

nha e CB, Culatra

Mapeando terrenos de apanha de ma-risco: O caminho mais difícil é o mais com-prido. Ir pelo barro, seguir pelo caminho deareia, e ir para a costa. Porque é mais cansa-tivo. Tenho de ir por cima das dunas. Torna-se mais longo. Eu estou a fazer seguindo pelosítio que faço. Quando passo pelo Recovoapanho sempre água, mas baixa, porque vouquando há maré. Faço o mapa por mim, aorientar-me pela minha cabeça.

O Regato é uma zona da água por ondepassamos quando se vai à amêijoa e que ficaseca quando a maré vaza. Passamos aqui poruma casinha de madeira.

Conheci a Casinha das Ostras na ria,com os sacos. Estavam a fazer uma experiên-cia, que não parece ter resultado.

O Sítio do Zé Bruto, também dão o nomede Pontinha e Primeira Ponta.

Aquela zona do Zé Bruto, parte daqui.Isto é a Altura, só que a Altura está ali muitogrande. Agora é a Segunda Ponta e a Coroa. Étudo pegado, a Segunda Ponta e a Coroa. Agente diz Segunda Ponta porque cava naareia. E os homens dizem Coroa porque ca-vam na lama. Passas aqui um regatinho, pas-sas para a Segunda Ponta. Apanhas a Cabeçado Meio. Vês esta zona aqui? É areia. Daquiaté aqui é areia. Daqui para aqui é lama,onde os homens cavam. Aqui é a chamadasebarrinha. E aqui chamam a Coroa.

A Altura, também chamam Ponta Alta eBarreira. O Regato, que é um espaço aqui dacosta, tem duas poças grandes. Uma encon-tra-se aqui perto do Regato. É como se fosseuma lagoa. E outra aqui, nesta zona onde ter-mina o caminho de areia. As duas têm sem-

pre água. À volta encontram-se dunas e mur-raças verdes. Se eu estiver aqui na Altura, ea maré começar a encher aqui, eu não possopassar este regato da Chapadinha. Tenho dedar a volta para vir pelo Barro.

Isto é as dunas do lado da Última Ponta.Tu, como nunca vais a pé não estás a ver asposições, as direcções.

Eu vou daqui, da Altura, para a Cabeçado Meio.

[Pessoa que assiste à descrição]: Mas aCabeça do Meio está deste lado, não está emfrente. Tu vais aqui assim. Depois chegas ali,aqui está os Calhéus.

Dina – Não. Os Calhéus estão em frente.Tens de ver o tamanho que tenho o papel. Éassim, a Última Ponta aqui. O regato da Úl-tima Ponta para o Calhéu. Venho aqui daChapadinha, está aqui os Calhéus. Está aquia Cabeça do Meio, e isto tudo é a Altura. Istoé a Costa.

Isto é o Recovo, a zona da Baía onde es-tão os iates. Isto é o Barro, onde está o Mou-lin Rouge. Depois vêem as construções deseba, feitas pelos estrangeiros, e o caminhode areia que vai para a Costa, e por isso vaispor cima das dunas. Isto é a Última Ponta,onde se cava. E onde estão aquelas murraçastambém tem areia para cavar. Aqui dá poucaamêijoa. Somente quando a maré é muitocurta, que não haja muito espaço para cavar,é que as pessoas vêm para aqui. Quando asmarés são grandes, vazam logo muito. Mashá marés ditas redondas e pequenas, que jávaza menos. E como vaza menos, nas primei-ras marés, há muitas pessoas que ficam aquino Barro.

É a ideia que eu tenho. Não estão as dis-tâncias, não estão os pormenores, mas é aideia que eu tenho. É como eu acho que é.Tinha para aí 11 anos. Andava no 5º anos, iaà maré de manhã, a horas de chegar ao meio--dia. Porque depois do almoço tinha de irpara a escola. DP, Culatra

A amêijoa e a lei da natureza: Com vento,a água bate na terra e apaga os olhinhos daamêijoa. Diz-se que a terra fica areada. Comas formas da areia batida pelo vento. E porisso o olho da amêijoa não abre.

Nessas ocasiões procura-se a amêijoa àcavada. Tem de se fazer à cavada. Não seapanha nada. Torna-se mais difícil apanhar aamêijoa.

Há duas maneiras de cavar. Cavar à ras-pada, quando é na terra. Cavar à talhadaquando é na sebarrinha. Neste caso a faca pe-netra no lodo, na sebarrinha, e com um movi-mento para cima separa-se um talhão, umpedaço pequeno de sebarrinha. DP, Culatra

Pagelas: Chamamos pagelas. Quando não sevendem as amêijos nesse dia, ou porque opreço não compensa ou para esperarmos que

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cresça um pouco mais, guardamos na areia,onde chega a água. Não são bem viveiros. Aamêijoa alimenta-se naturalmente.

Marcamos esses lugares com cacos, tijo-los, caixotes, o que houver à mão. É o tama-nho que nós precisarmos. E a forma quequisermos. Não pode ser muito grande. Nemé preciso. Três passos, quatro passos, jáchega. DP, Culatra

Trabalhar de noite e de dia: Em Santa Lu-zia trabalhava na arte de arrastar. Eu, comdez anos, já andava à arte de arrastar. Cha-mavam a redinha. Aqui é a redinha, que écurta. É pequenina. Mas na costa é a arte dearrastar. Que era muito grande.

Com dez anos. Com dez a quinze anos.Que eu andei para lá, para cá, para lá, paracá. Dez a quinze anos. Durante esses cincoanos. Trabalhava na Arte. Era muito duropara mim, que ia ao pôr-do-sol, e só vinhapara casa ao nascer do sol. Sempre de pé.Sempre de pé. A noite inteira. Sempre de pé,a puxar a corda. Vinha para cá de madru-gada. E de tarde íamos outra vez para o mar.Mas como aquilo era um pouco duro paramim, fui para trabalhar no campo.

Trabalhar no campo também não davanada. Tinha de vir lá de Tavira, de Santa Lu-zia, trazer o que ganhava, mesmo pouco, tra-zer aos meus irmãos, que estavam cá. Aminha mãe estava cá na ilha. Eu estava lá comuma tia. Ganhava alguma coisinha. Vinte ecinco tostões. Três escudos. Vinha trazer parao meu pai ajudar à minha mãe a dar comer aosmeus irmãos. Depois a minha mãe compravaum quilo de milho, e fazia um tacho de milhopara todos. Uma refeição durante um dia. Ma-

ria Leontina Nunes Perruca, Culatra

As águas (influência das marés): A água égrande e é pequena. E tem a água menosgrande, que a gente chama águas redondas.

Quando a água é baixa a gente chamaáguas mortas. Mas tem a água redonda, quenão baixa muito nem enche muito. É uma águaredonda, uma água média. E tem a água muitogrande. Nessas raramente se vai ao mar. Por-que corre muito. Vaza muito e enche muito. Émuita corrente de água e dá muito lixo.

Primeiro vêm águas grandes. Depois dimi-nui, até chegar a águas mortas. E entremeia.

Entre uma e outra há águas redondas. Não cres -ce muito. Fica-se pela média. Não é muito alta.

Não há sempre águas redondas. De-pende. Porque há águas vivas, muito vivas. Ehá aquelas médias. E estas médias são asque a gente chama águas redondas. Quandoa ilha enche os regatos são águas vivas. Mashá aquelas que a água vem por aí abaixo,mesmo quando é cabeça de água – a gentechama cabeça de água quando é a águamaior –, e a água maior pode ser uma águamuito grande, que chegue às barracas, comopode ficar muito a em baixo. Se ficar muitocá em baixo é uma água redonda. É umaágua média.

Cabeça de água é quando a água atinge omáximo. Mas, cabeça de água também podeser aquela que é água redonda. Porque elaatinge o máximo, mas não vai muito acima.

A gente regula-se pela Tabela de Marés,e por número de altos. As águas vivas pas-sam dos cem. Chegam até aos cento e vinte.E quando a água está à volta dos oitenta e tal,noventa pontos, é água média. Cabeça deágua dá por volta dos oitenta pontos. É sóuma água média. Mesmo viva, não ultrapassaos oitenta e poucos pontos.

A gente regula-se pela Tabela de Marés.Mas pelo que ela enche aí a gente também seregula. A gente vê logo até onde ela chega.

A gente observa o que a água dá. Quandosão muito grandes, basta ela morrer três ou qua-tro dias, quando está a dar a quebra, dá umaquebra enorme. E a água média não dá umagrande quebra porque ela já não cresceu muito.

Normalmente com a lua cheia quasesempre é águas grandes. As águas maioresdo ano, normalmente, são com a lua cheia. Écabeça de água. Quarto minguante não dámuito cabeças de água. Dá águas mais pe-quenas. Edgar Buchinho, Culatra

Toponímias marítimas e terrestres: Char-nal: ao largo da Ilha da Armona, lá para fora,para a funduraMar dos Ursos: defronte de TaviraMar do Besouro: farol ao monte ao pequeno,é aqui pertoMar da Pulga: aqui de frentePedra do BesouroRoquete: defronte de Cacela, é a pedra maiscomprida, mas não é toda corrida. Chega

quase até Vila Real. Mas não é toda pegada,entre 12 a 14 braças

Pedra da Roda: para oeste do Roquete Mama Gorda: a marca em terraMatinhosVale Caranguejo: Lá vêm dois carangue-

jos, / Jogando ao jogo do pau. / A Lagosta deuuns socos, / Nas ventas do bacalhau (Quadrado Tio Abílio).

Rochedo: frente a QuarteiraGreta Pedra das Três Senhoras: Quando a água

está clara, em 12 braças, vê-se a pedra. Vejalá a altura dela. Faz bicos para cima

Pedra do BarrilZembral: aqui para penente da IlhaPedra do Rustigão: em sete braças e

meia: Já foi pecheiro sobrinho Manel, / Jásinto estalar a linha. / É o safio maior domundo, / Reza uma Salve Rainha. / Há-devir se Deus quiser, / Com uma grande conso-lação. / Para se ganhar pão a pão, / Paraamostrar às nossas mulheres. / Joaquim Ca-rolina apanhou, / O safio maior do mundo. /Numa pedra que está no fundo, / Lá no mardo Rustigão.

Marzinho: aí para penente

Lugares na ria e em terra: Canal da Ria: osde Olhão já dão outro nome

Os Areais: e eles não. Chamam a Ameixa,chamam isto, chamam aquilo

Ponta de Alecrão: a parte que enxugaGarganta: mais para Norte, frente a um

regatoBóia da Murtina Buano: diante a uns pinheiros, porque

antigamente havia um buano e o peixe ia lápara dentro. Estão lá as pedras ainda. Têmlevado para os viveiros, mas ainda há lá pe-dras. Era uma casa que era o Buano. Que sefazia lá farinha para o gado

Fortaleza: havia lá uma canhão. Agora amalta tem ido lá buscar as pedras para levarpara os viveiros. Para fazer muro

O RecovoA ChapadinhaA Pontinha: este mar, quando onde en-

xugaA Coroa: está um regatinho ao meio. Do

outro lado é a CoroaCabeça do Meio

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Calhéus: quando a maré vaza, isto ficatudo enxuto. Só fica um regatinho aí ao meio.Desse regato dos Calhéus para baixo fica a

Cabeça dos MortosCabeça da CruzE lá em baixo havia um balão alto, e a

gente chamava-o O CaralhudoMais para lá, estava lá uma cabeça, onde

havia lá sempre muitos patos Cabeça dos PatosCabeça do Baleca: apelido do pescador

que pescava muito nesse sítio, ele ia sempredeitar redes para lá

Espigão: da parte de fora, no mar. Umacabeça

Cabrestros: para penente da ponte, umbocado. O enfiamento da bóia à carnada,dois faróis que estão na Ilha

O RecovoO Barro: uma cabeça que enche logo

cedo. Aquilo tinha uma espécie de medo debarro, e puseram-lhe o Barro

Os HangaresO FarolO Lameirão: da parte Norte, onde estão

os viveirosOs Cações: O regato dos Cações vai ter

ao regato da GargantaOs Midos: o esteiro dos Midos, vai ter ao

pé da Garganta. António Nunes Perruca, Culatra

Em terra, na localidade e em redor, noslugares de mariscar: Penente, ou Ponente –Oeste Até ao farol é tudo Culatra. Na parteonde está o salão, o recinto desportivo, o Cu-latrense, a gente às vezes vai jogar à bola. É osdo leste contra os de penente. Jogam à bola,para ver quem paga, para petiscos. AS, Culatra

Pescadora: Aqui na ilha da Culatra toda amulher trabalha. Seja na maré ou a iscar osaparelhos.

Eu via como os outros faziam. A partirdos oito, nove anos de idade. Fazia bocadosde aparelho, com cerca de cem anzóis, ven-dia o pescado a uma vizinha e aquilo deu-meentusiasmo. Uma pessoa a vir com uma vasi-lha cheia de enguias. Os anzóis que usavaeram colocados a meia braça de estralho aestralho e feitos de rede tansa.

No verão arrumava o aparelho junto às pe-dras, na zona dos viveiros. Iscava o aparelhocom pontinhas de casulo que apanhava ao péda ponte. No Inverno ia ao marisco. Entregavasempre tudo à minha mãe que a gente era po-bre. A mais velha da casa era eu e era umaajuda. A minha irmã mais velha, a Orlanda es-tava a viver em Olhão com a minha avó.

O meu gosto pela pesca é que me faz an-dar aí. Depois aprende-se ainda mais rápido.

Eu trabalho no mar e em casa. Ainda hojeo Óscar perguntou-me onde íamos lançar arede. E fomos lançar ao pé da bóia vermelha.Amanhã vemos como é que dá. Agora os lin-guados andam sempre nos cabeços da areia.Como trabalho nos dois sítios não dá para an-dar à rede e ao aparelho. Tenho ainda de tra-tar do almoço e do jantar. Vanda Bonzinho

Os viveiros: Cada qual marcou e era dele.Ninguém pagava nada. Tudo se ocupou da-quelas terras. Precisamente o mesmo. Euquis construir uma casa, apanhei um sítio. Eno viveiro era o mesmo. Estava ali aquele sí-tio. As pessoas foram apanhando. O meu,que tenho hoje, comprei a outra pessoa. Masessa pessoa apanhou. As pessoas apanha-vam o que queriam. No início foi assim. EsseFaz Gosto e essa Lurdes têm áreas enormes,enormes. Na altura eles apanharam o quequiseram. Porque eles eram as pessoas quetinham essas tais ditas condições para com-prar as amêijoas e pôr lá dentro. Marcavamcom uns paus, umas estacas, pedras. A pes-soa sabia que aquela área era de alguém.Ninguém ia para lá.

O Faz Gosto, os filhos não quiseram, ven-deram a outras pessoas. A da Lurdes é queainda se mantém. Já vendeu algum terreno.Mas ainda tem áreas muito grandes. Eu te-nho viveiros. É para as minhas filhas. Se elasquiserem vender. Elas fazem o que quise-rem. Eu comprei. A gente aqui entende comocomprar a licença. Aquilo é uma concessão.Os terrenos são do Parque Natural da RiaFormosa. Não é da pessoa.

Antigamente era. A gente pensava queera. E agora a gente já tem a noção de que,quando esta a vender, não está a vender oterreno. Está a vender uma licença. Aquilo édo Parque. Hoje em dia as pessoas já vão

1. Domingos Pêra a safar redes2. A pescadora Vanda Bonzinho

3. Regato para escoar água dos viveiros4. e 5. A única casa, já com telha que ainda ilustra o

uso do contraplacado na construção6. Culatra vista em extensão

Pagina anterior:1. Maré Grande, Calhau e Coroas, onde as mulheres

vão mariscar em grupo 2. Mapa dos lugares de marisqueio de Dina Pereira

(Posição no perímetro desenhado:36°59’58.97” N 7°49’37.36” W)

3. Mesa para separar ostras do viveirista Aniceto dos Santos

(36°59’18.17” N 7°51’14.36” W)

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Rede Portuguesa de Mulheres da Pesca

tendo mais noção disso. Para a gente habi-tuar-se que aquilo não era nosso. Porqueaqui antigamente, quem mandava era agente. A gente pensava que não tinha nin-guém que mandasse aqui. Toda a gente pen-sava isso. Isto foi passando, de pais parafilhos. Regina Buchinho Rocha, Culatra

Porto de pesca: A ideia do porto de abrigoveio com a inauguração dos abrigos de pesca.Aqueles abrigos foram inaugurados no final doano de 2001. Antes, a preocupação era ondeguardar os aprestos de pesca. Foi quando nóscomeçámos a pensar que se tinham de dar ou-tras condições aos pescadores.

Começámos a ter contactos com a Direc-ção Regional das Pescas. O Dr. Dorilo Se-ruca e o Dr. Edgar, que era o DirectorRegional.

A Associação começou imediatamente atrabalhar nesse sentido. Aliás, quem fez omaior trabalho foi o Dr. Seruca, no sentido dadocumentação, e de ver onde se podia ir bus-car, e de como se podiam trabalhar as coisas,e marcando as reuniões com a Câmara, como Parque, que tinha essa experiência toda,que nós não tínhamos, e o Dr. Edgar, comoDirector Regional, sempre a dizer queapoiava, se tivéssemos vontade de fazer. Apartir desse momento há uma evolução nosentido de dar melhores condições aos pes-cadores. Silvia Padinha, Culatra

Organização: Mudança. Um Infantário. Comapoio domiciliário. Que é uma coisa das me-lhores que pode haver. Veio trazer a comida àcasa das pessoas. E aqueles que estão incapa-zes da higiene, vêem duas senhoras, ou três, asque forem necessárias. O Centro Social mandaduas pessoas a casa para lhes dar banho, paralimpar a casa. Leva a roupa para lavar lá emcima, e traz. Uma vez por dia, acho, dá duasrefeições. Tem o A.T.L., tem a Creche. Enfim.Eu, por exemplo, aqui. Estou só. Se quiser la-var a roupa, a rapariguinha passa aqui, levam osaco da roupa, trazem a roupa.

Depois temos as escolas, Dantes haviaum barracão, e nem sempre havia professo-res. Hoje, felizmente, há professores. Estãoaqui até ao 6º ano. Temos Correio. TemosJunta de Freguesia. Temos Associação deMoradores, que é bastante importante o tra-balho que faz. A todos os níveis. Mesmo a to-dos os níveis. Muitos dos documentos que ospescadores teriam de levar dias, e perder ho-ras, felizmente têm a Associação que seocupa disso tudo. Até, inclusivamente, lhespagar as vendas que eles fazem, as marés.Que dantes, vendiam, depois só iam recebernão sei quando era. Só duas vezes por se-mana é que podem receber na lota. E hoje,venderam, chegam aqui, trazem o papel davenda, recebem o seu dinheiro.

Depois temos um Polidesportivo, quetem uma equipa de futebol. E durante o pe-ríodo faz aqui animações, como bailes, aFesta da Senhora dos Navegantes, a Festa doDia da Ilha, que é o dia que fizemos todos oboicote para conseguirmos a luz.

Tudo quanto aqui se tem feito, é da popu-lação da Ilha que tem exigido. Todas estas coi-sas, que aí estão, são a luta dos habitantes daIlha. Ninguém veio cá fazer nada. Tudo temsido pedido, reclamado. Tivemos aqui um in-divíduo que, é bom falar nele, o José Júlio,que era uma pessoa muito influente. A ele sedeve o bom seguimento de muitas coisas. Foipena ir-se embora antes de ver concretizadoaquilo que ele queria. Aqui a única coisa quefaltou, para já, que ele adorava que fosse feito,era um pavilhão multiuso. AS, Culatra

A Obra: Uma parte do Centro Social é fi-nanciado pela Segurança Social, que dá umaverba em relação às crianças que lá estão, etambém paga os salários. Menos os subsídiosde Féria e de Natal. Paga a Associação deMoradores. E depois cada criança paga emrelação ao que os pais declaram.

As pessoas mandam lavar roupa. Pagamquatro ou cinco euros. E depois tem umasquotizações. Uma bagatela. Um euro por mêsou assim. Acho que ainda não aumentaram.E eles vão equilibrando assim as contas.Faz-se aqui uma festa no verão. Também setira algum dinheiro para a Associação. Assa-se frangos, carne, coisas. Vêm para aí as se-nhoras e vendem brinquedos, camisolas, queas crianças usaram, para se arranjar algum.Vai-se mantendo assim.

O Centro de Saúde. Em princípio o mé-dico vem aqui duas vezes por semana.

O Centro Social, o Clube e a Associaçãode Moradores. São as três entidades.

Eu Resolvi não fazer parte de associação ne-nhuma, na Direcção. Mas colaborar com as Di-recções que precisem de alguma coisa que estejaao meu alcance. Por exemplo, a Associação deMoradores. Toda a manutenção dos apoios depesca sou eu que faço. Não é remunerado. Se mepedem para pôr fechaduras, para pôr cadeados,pôr uma tábua que se partiu. Por exemplo, lá emcima no Infantário. Uma torneira que está a cor-rer água. Havia lá um bocado do chão partido.Eu, mais um colega meu, fomos lá arranjar ochão ao fim de semana. AS, Culatra1. Porto da Culatra (36°59’43.86” N 7°50’29.12” W)

2. Correio, na Associação de Moradores(36°59’38.12” N 7°50’21.95” W)3. e 4. Recolha do lixo na ilha e transporte para Faro5. Vitral da Capela da Culatra

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Debate em torno de uma embarcação, su-postamente cópia de uma barca auxiliar daarmação,a da “pinta branca” realizada (nosanos 80/90) para recordar as barcas de arma-ção da sardinha que operavam em Sines.

Francisco Chaínho: Pregos novos. Estáa ver os pregos que estão novos. Tal e qual.Não sei porque este barco chegou aqui. Viu-o na praia. Na areia. As cavernas estão boas.A roda de proa também está, estes braçosaqui… Estes braços [bate com os nós dos de-dos na madeira]. Este está partido. Mas logoa seguir estão bons. Os topos apodrecemmais depressa porque apanham mais intem-périe. Apanham mais sol. Apanham maiságua. Estás a ver as cavernas. As cavernasestão boas. Aqui o talabardão, a talaborda,aqui o forro da borda, está tudo destruído. Aquilha está nova. A quilha está boa …

As maiores, que eram os batelões dasportas, esses tinham à volta de dezassete me-tros. Quinze, dezasseis, dezassete. E tinhamquatro vezes mais largura do que isto. Os ba-telões das portas. Que eram aqueles que es-tavam lá fixos o ano inteiro.

Carlos Carvalho: Os batéis. Isto, parabarca de armação, é muito pequeno.

Francisco Chaínho: Foi a Câmara Mu-nicipal que mandou fazer. Isto foi feito notempo do Francisco Maria do Ó. E ele man-dou fazer isto porque as duas armações queexistiam, a Borboleta e a Senhora das Salvas…

Carlos Carvalho: Esta qual é que era.Esta tem uma bola branca.

Francisco Chaínho: É a Senhora dasSalvas. As embarcações – talvez aí por voltade umas vinte e cinco ou trinta entre as duasarmações – foram para um eucaliptal. Juntoà Escola Secundária. Que é agora a EscolaSecundária. E pronto. Ali desapareceram…Ao fim de uns quantos anos, sei lá, quinzeanos, depois do 25 de Abril, o Francisco Ma-ria do Ó lembrou-se do mestre Armando Ro-cha [que tinha vindo de Setúbal e tinhatrabalhado na praia consertando barcas].Que nunca tinha feito barcas de armação.Esses construtores navais nunca fizeram bar-cas de armação. Eram feitas cá, mas poraqueles senhores. O Alberto Elias disse àgente quem eram os indivíduos que as fa-ziam. Porque os construtores navais de Sinesnunca fizeram barcas de armação. Eu agoranão me lembro de onde eram. Para o Al-garve, talvez. Agora não sei. Eram eles quefaziam as barcas das armações. Os Rochas, oAlberto Elias. Como, normalmente, a praiaera desabrigada, encalhava-se em Outubro,

fins de Setembro, já com maresias. Por ve-zes, barcas muito pesadas, a tirar para aterra, o mar rebentava lá fora, elas iam para ofundo, mesmo ali ao bater na areia. E par-tiam-se. Isto a bater com a quilha no fundo,carregadas com ferros e isto, partiam-se. Eentão esses reparavam. Os Rochas repara-vam. E o Alberto Elias da Cruz reparavatambém. Mas fazer de origem, não faziam.Fez este homem esta réplica, o tio Armando,que já faleceu. Fez isto para a Câmara teristo guardado em Museu.

O Alberto Elias da Cruz consertava. O Alberto reparava. Calafetava-as. Que elas,às vezes, ali na praia, embora não se partis-sem, mas o mar rebentava em cima … e aareia … Elas davam e as costuras iam-se aoar. Tinham de ser todas calafetadas. Não épreciso fazer um barco novo. Não é, porqueos braços ficam todos. Os braços, algum que esteja mais fraco… Estes estão fortes.Onde eles estão… Onde eles estão… Foiaqui nos pregos. Aqui leva uma emenda. Da-qui para aqui. Junto a este. Que é paraaguentar a tábua de cima. Que esta já estáfrágil. Mas, como madeira, esta madeira aíestá escapatória …

Carlos Carvalho: Estas madeiras estãohá tanto tempo fora de água, assim que apa-nharem água, não sei como é que isto vaireagir.

Francisco Chaínho: Reagem bem. Areacção da madeira na água salgada, isso éum espectáculo. As cavernas estão boas. E ofundo também. De inverno aperta. Aperta,porque a água chega aqui. Quando começa aabrir, começa a desaparecer pelas costuras.

Gunnar Eldjarn: Quanto tempo levavaa fazer uma embarcação destas, ó Francisco,de raiz. Tem alguma ideia? Um mês

Francisco Chaínho: Leva mais. Levamais. Um carpinteiro, como o Alberto, sozi-nho a trabalhar, tem de arranjar a madeiratoda. Tem de arranjar a madeira toda nova. Ira um pinhal, onde autorizem a cortar. Que é aparte difícil de encontrar, são as cavernas eos braços. Estas curvas. Todas estas curvassão difíceis de arranjar. Agora é uma alturaboa, que estão a cortar pinheiros com fartura.Não há aí nenhuma serração em Sines. Que éoutro problema.

Em outro dia a discussão continua, comnovo interveniente, o mestre Alberto Elias:

Alberto Elias: Tínhamos além as barcastodas das armações, dentro do eucaliptal. Amelhor solução era deixar pelo menos duas,de cada armação, com tanto campo que háaqui para guardar aquilo. E assim se foi a

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tradição embora. Agora, ouve-se falar nas ar-mações, do tipo de embarcações e do feitiodelas. O formato delas. Agora acabou-se. Es-sas coisas já não existem.

Eu trabalhava nelas. Trabalhei em todas.Aquilo eram barcos destroncados. Não ti-nham cá mais nada. Era só unicamente obarco. Não tinham convés, não tinham nada.Eu ajudei a fazer uma, com o tio, que era opai do Durval. A arte de copiar. E então ti-rava-se o molde a uma caverna, a outra, a ou-

tra, a outra, e fizemos aquela barquinha. Sóque, onde estão elas para copiar? Nem ascinzas já existem. Havia uma na União Fa-bril, mas grande. Não condizia nada com oformato das outras.

Francisco Chaínho: Tio Alberto, vamosao que interessa. Está além essa barca quefez o tio Armando Rocha.

Alberto Elias: Essa barca não condizcom o feitio das outras. Mesmo essa minia-tura não condiz com o formato das outras.

[Desenha] O formato que o tio Armando látem é mais ou menos assim. Isso é a quilha.Mais ou menos assim. Era barca cheia defundo. E as barcas das armações não eramassim. Eram mais ou menos assim. Compouco fundo. Está a perceber. Mais ou menosassim com pouco fundo. E o que o tio Ar-mando é isto assim mais ou menos. Com umfundo valente. A armação tinha um fundo emforma de V. E este faz assim. Essas miniatu-ras não condizem com o real.

1. Fadista de Sines construído por Armando Rocha, o carpinteiro que terá construído a barca da armação (a da “pinta branca”) à volta do qual se realiza este debate2. 3. e 4. Mestre Alberto Elias de Sines, durante uma conversa sobre as diferenças de forma das barcas de armação original e a da “pinta branca”5. e 6. A embarcação da “pinta branca”

Página 86:Os intervenientes no debate que deu origem ao compromisso de que se publica um extracto (Local: Cabedelo; Coordenadas: 41º 40’ 54.47’’ N 8º 50’ 1.07’’ W)

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Durante o V Workshop em Viana do Cas-telo observou-se e discutiu-se detalhada-mente uma embarcação tradicional de pescado acervo da Associação Barcos do Norte. Oobjectivo deste exercício foi sensibilizar ospresentes para as oportunidades que seabrem quando reflectimos sobre as diferen-ças entre reparar / manter e reabilitar. Estadiscussão permitiu a realização de umworkshop que terá lugar em Setembro de2010, onde um construtor português e umnorueguês trocarão saberes enquanto cons-troem um barco de pesca tradicional (cópiadaquele que analisámos).

[… Temos aqui um objecto, temos aquium parceiro com uma determinada proble-mática, que faz vibrar, também, mais doisparceiros dentro da nossa parceria, e tem ca-pacidade de fazer vibrar provavelmente mui-tos potenciais parceiros ao longo da costa.De modo que, o que nós temos para pergun-tar neste momento, é se seria aceitável assu-mirmos um compromisso pelo período de umano, de nada fazer a este barco? (E as pes-soas de Sines, e as pessoas da Culatra, vãopensar exactamente na mesma questão. Se-rão capazes de, durante um ano, não fazerabsolutamente nada, nas embarcações, queos têm preocupado até agora)?]

João Paulo: A embarcação da Culatra,mais um ano, preocupa-me muito. Se calhardaqui a um ano não temos embarcação. Te-mos um pedaço como o que está ali.

[Insisto, somos capazes de responder po-sitivamente a este desafio: durante um anonão vamos fazer nada a esta embarcação]

Hélder Ventura: A questão também é oque vamos fazendo a nós próprios…

João Paulo: É que, por este andar, da-qui a um ano pode não haver estaleiros. Nãoé verdade, Marçal?

José Octávio: Fica com mais um ano devida.

Maria Eugénia: Se tiver guardado aindase aguenta algum tempo. Mas à chuva e aosol, da maneira como está…

[Podemos viver mais um ano com estaembarcação sem lhe tocarmos à luz daquiloque discutimos esta manhã? Há duas hipóte-ses. Ou sim ou não … Portanto, vamos tentartomar a decisão entre duas hipóteses. Hámuita coisa que está em jogo de acordo como Sim, e de acordo com o Não. Somos capa-zes, sem saber o que temos à frente, e só ba-seados na discussão da manhã, de dar a estaembarcação no estado em que está, um anomais de vida. Somos capazes? Sim ou Não?de considerar a hipótese de dar a esta em-barcação um ano mais de vida]

João Paulo: Um ano mais de vida, não.Nós, aqui, somos directamente implicados.Quando adquirimos a embarcação não erapara lhe darmos mais um ano de vida. Erapara lhe darmos todos os anos possíveis.Para além de nós. Tê-la mais um ano nestascondições… possível é. Arrumo-a para lá,esqueço-a, guardo-a, escondida para nãoolhar para ela, E fica para lá… Mas eu já te-nho uma embarcação nesta situação há dezanos… Há nove anos.

[João Paulo, somos capazes, sou capaz detomar o compromisso, sem saber o conteúdoda pergunta seguinte, de dar a esta embarca-ção, à luz da discussão da manhã, mais umano de vida no estado em que se encontra?]

João Paulo: Somos capazes, de um ano,ou dois, ou três ou quatro, de a manter namesma situação, sem lhe mexer

[Ainda não estou a ouvir o sim…]João Paulo: Isso é quase uma pescadi-

nha de rabo na boca. Se calhar com isso euvou hipotecar o projecto que tínhamos de -seintervencionássemos a embarcação - conse-guir recolher, quer fotograficamente, querdocumentalmente, a informação, para o talManual de Boas Práticas que, eu queria ter,quando este projecto em 2010 se encerrasse,se não completo, um esboço. Se vou pegar naembarcação e a vou esquecer a hibernarmais um ano, sou capaz de não poder fazernado disso. A não ser que a segunda respostaseja o resto da pescadinha.

[Ouça a minha pergunta, porque não fuieu que utilizei a palavra esquecer. Sois capa-zes, Associação Barcos do Norte, de vivermais um ano com esta embarcação no estadoem que se encontra à luz da discussão que ti-vemos esta manhã. Sim ou Não]

João Paulo: Sim, aceitamos.Ivone Magalhães: Se a contrapartida for

em benefício disto tudo…[Não há contrapartidas neste momento.

À luz da discussão que tivemos de manhã,somos capazes de viver um ano mais comesta embarcação neste estado]

Ivone: Assim sem nada, não. Vou expli-car porquê. Porque então, tudo o que andá-mos a fazer ontem e hoje, foi para nada.

[Mas acha que isso é típico deste pro-jecto?]

Ivone Magalhães: Acho que não.[Então retiramos essa frase, que não per-

tence ao texto que estamos a escrever. A po-sição é Sim. Podemos ouvir esse sim,perfeitamente]

Ivone Magalhães: Sim…

85Celebração da Cultura Costeira

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[Agora é assim: Conseguimos, à luz dadiscussão que tivemos esta manhã, vivercom a hipótese de termos réplica/s desta em-barcação. Podemos conceber, à luz daquiloque discutimos esta manhã, e do projectoonde temos estado inseridos, conceber essahipótese?]

Ivone Magalhães: A filosofia dele. Umaexactamente como ela está. A réplica da obracomo chega às nossas mãos, e depois a ré-plica de como ela devia ser.

[Eu não disse isso. Eu disse, Somos ca-pazes de conceber a feliz hipótese – acres-centando um adjectivo, que o Luís não gosta– de conseguir viver, com a hipótese de ter-mos à nossa disponibilidade duas réplicasdesta embarcação até ao final deste projecto]

João Paulo: Se houver financiamento, épossível. Porque temos aqui a embarcaçãopara se poder copiar, para se poder reprodu-zir fielmente uma embarcação. Temos aqui oestaleiro. Temos o construtor naval que,como toda a gente sabe, neste momento todaa construção naval atravessa uma crise fan-tástica de falta de mão-de-obra. Tudo isso te-mos. Animação para a embarcação, pois issoé aquilo que mais sabemos fazer. Estas em-barcações não precisam de grande… Repa-rem. Sobrevivem as embarcações pequenas.Que são aquelas que dão menos mão-de-obra de manutenção. Transporta-se numcarro, facilmente, uma ou duas pessoas, tudo

isso… Tenho atravessado, com aquela em-barcação [mostrando a outra embarcação, alipresente, pronta a navegar] e com outras, aPenínsula Ibérica. Para cima e para baixo,para baixo e para cima, n vezes.

[Conseguimos conceber a hipótese, agoraque respondemos positivamente a duasquestões, de aceitar a possibilidade de ter-mos um workshop de um mês à volta destasembarcações, que não dão trabalho nenhuma transportar, que são fáceis de conceber…]

João Paulo: Num mês! Num mês, não seconsegue construir um barcos destes nummês, pois não Marçal

Cristina Moço: Workshop, João Paulo.Não é construir barco nenhum

João Paulo: Workshop sim. Um mês atéé tempo a mais

[Sim ou Não]João Paulo: Sim, somos capazes.[Somos capazes de conceber que esse

workshop tenha a participação de dois cons-trutores navais noruegueses, comandandocada um, em conjunto com artesãos portu-gueses, a documentação, o processo deaprendizagem, e a realização destas duasembarcações]

Ivone Magalhães, João Paulo: Sim,aceitamos.

Ivone Magalhães: Assim já estamos aver luz ao fundo do túnel. Já está feito o ca-sório. Isso sim. Ficamos com tudo em um.

[Sois capazes, perante todos os sins quedissesteis até aqui, de compartir essa alegreexperiência, com parte do poder político,com parte das outras associações, com partede parceiros que tenham a ver com a futuracapacidade de usar, legislar…]

João Paulo: De manhã surgiu-me aideia de pegar nele e pô-lo à frente da As-sembleia da República em protesto pela faltade legislação.

[Atenção, que acabaram de se compro-meter no primeiro ponto, a não fazer comesta embarcação qualquer acção que ponhao futuro deste projecto em risco…]

[Então a pergunta final. Antes de nos ir-mos embora. E são quatro menos cinco. Eentão este workshop terminaria na alturacerta. Somos capazes de deixar em suspensoo modo como isto se vai fazer – de nos dartempo a organizá-lo, e não fazer mais ne-nhuma pergunta hoje? Temos o Ok da gestãodo projecto. Temos o Ok do promotor. E te-mos, essencialmente, o Ok dos construtoresnavais noruegueses ..]

Em Setembro de 2010, em Vila Chã en-tre Gunnar Eldjarn (Tromso) e BenjamimMoreira (Vila Chã) iniciar-se-á um processoque não sabemos como irá acabar. Será do-cumentado e dará origem a um novo painelda exposição CCC.

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Abel de Almeida, vendedor de peixe, pescador, barqueiro assalariado, agricultor, Porto de Rei, Barqueiros, Mesão FrioAgostinho Martins, salva-vidas, Apúlia, Esposende

Alberto Assunção Pinto, pescador, Torrão do LameiroAlberto Elias da Cruz, carpinteiro naval, Sines

Albino Fernandes, barqueiro, Lugar da Passagem, Santa Marinha de Moreira de Geraz do Lima, Viana do CasteloAlbino José Paciência, pescador, Hangares, Ilha da Culatra

Albino Massagão, artesão e lojista, PenicheAlcino Pereira, Vila do Conde

Almerinda Macário, empresária, vendedora ambulante, Hangares, Ilha da CulatraÁlvaro Cândido Reis, artesão da construção naval, Vila do Conde

Amélia do Cambola, sargaceira, Cachinas, Vila do CondeAmérico Gomes, Lugar de Lamas, Lanheses, Viana do Castelo

Ana Madeira, Vila Franca do Campo, São MiguelÂngela Corta Rabos, operária da indústria conserveira, Sines

Aniceto dos Santos, viveirista, empresário, Culatra, Ilha da CulatraAntónio Andrade, pescador, São Miguel

António Cavaco, operário mineiro, Minas de São Domingos, MértolaAntónio Conceição Stéro, empreiteiro, carpinteiro de limpos, Sines

António Conde, carpinteiro naval, Gafanha da EncarnaçãoAntónio da Costa Beja, lojista e empresário, Sines

António Esteves, carpinteiro naval, PardilhóAntónio Isolino, carpinteiro naval, Esposende

António Jesus, pescador, SinesAntónio Jorge Costa, carpinteiro naval, Vila do Conde

António José Amador, director da Mútua dos Pescadores, PenicheAntónio José Perruca, pescador, armador, Núcleo da Culatra

António Manuel da Estrela Andrade, pescador, Rabo de Peixe, São MiguelAntónio Melo, carpineiro naval, empresário, Vila Franca do Campo, São Miguel

António Mendes, operário da indústria conserveira, NoruegaAntónio Miquelino, patrão do salva-vidas, EsposendeAntónio Sebastião, pescador, Culatra, Ilha da Culatra

António Vilaça, pescador, Viana do CasteloArménio Silva, pescador, Castelo do Neiva, Viana do Castelo

Arnaldo Passos, pescador, CaminhaArtur Bonfim, jornalista e cronista, Vila do Conde

Augusto Carneiro, pescador, presidente da Associação Profissional de Pescadores, EsposendeAugusto Silva, Esposende

Benjamim Moreira, carpinteiro naval, presidente da Junta de Freguesia de Vila ChãBenvinda Pedro, rendeira de bilros, Peniche

Carlos Alberto, pescador, Rabo de Peixe, São MiguelCarlos Alexandre, mecânico, Hangares, Ilha da CulatraCarlos Cândido, marítimo, Hangares, Ilha da Culatra

Carlos Espadinha, pescador, redeiro, SinesClara Buchinho, mariscadora, Hangares, Ilha da Culatra

Companha da embarcação do São Leonel, Rabo de Peixe, São MiguelCorina Felicidade Guerreiro Buchinho, auxiliar de acção educativa, Culatra, Ilha da Culatra

Cristina Cardoso, bióloga, MértolaCustódia Rocha, operária da indústria conserveira, Sines

Custódio da Assunção do Ó, pescador, Hangares, Ilha da CulatraCustódio Guedes de Sá, pescador, barqueiro, agricultor, carpinteiro e miniaturista, Porto de Rei, Barqueiros, Mesão Frio

Dália Rosário, mariscadora, Culatra, Ilha da CulatraDeolinda Fidalgo, pescadora, vendedeira de peixe, Costa Nova do Prado, Ílhavo

Dina Pereira, mariscadora, Culatra, Ilha da CulatraDomingos Vieira, pescador, Rabo de Peixe, São Miguel

Duarte Amaral, condutor da Cooperativa Porto de Abrigo, Mosteiros, São MiguelDunália Vieira, pescadora e doméstica, Rabo de Peixe, São Miguel

Edgar Buchinho, pescador, Culatra, Ilha da CulatraEdmar Oliveira, chefe de oficinas da Câmara Municipal de Viana do Castelo

Elisabete Gavinho, doméstica, Viana do CasteloElsa Pereira, empregada de restauração, Viana do Castelo

Emanuel Penacho, miniaturista e cabeleireiro, Rabo de Peixe, São MiguelEstrela Maria Guerreiro da Costa, auxiliar do Centro de Saúde, Culatra, Ilha da Culatra

Eugénio Presas, artesão, pescador e agricultor, São Torpes, SinesEzequiel Basto, barqueiro, Vila do Conde

Felismina Coentrão Balé, sargaceira, Cachinas, Vila do CondeFernanda Venturinha, empresária de restauração, Sines

Fernando Alexandre Paciência, pescador e mariscador, Hangares, Ilha da CulatraFernando Bandarra, pescador, Rabo de Peixe, São Miguel

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Fernando Castro, carpinteiro naval, Vila do CondeFernando Marreiros, construtor de salinas, Tavira

Fernando Vargas Zarak, mestre de embarcação fluvial, Mértola Fernando Viveiros, pescador, Mosteiros, São Miguel

Francisco Antunes Artífice, pescador, Culatra, Ilha da CulatraFrancisco Camarão, pescador e armador, Sines

Francisco Cardoso, pescador, instrutor do FORMAR, PenicheFrancisco Ferreira, pescador, Costa Nova do Prado, Ílhavo

Francisco José, pescador, CascaisFrancisco José, operário da indústria conserveira, Sines

Francisco Vieira Rebelo, pescador, Rabo de Peixe, São MiguelGabriel Costa, carpinteiro naval, empresário, Rabo de Peixe, São Miguel

Georgina Formiga Soares, vendedeira de peixe e armadora, PenicheGina Carrilho, Rabo de Peixe, São Miguel

Gonçalo Silva, pescador, armador, Porto Covo, SinesGraciete Farto, rendeira de bilros, Peniche

Hélder Ventura, arquitecto, presidente da associação CENÁRIO, OvarHermínia Pastor, pastora, Vale de Romeiros, Mértola

Hilário Brás, pescador, PenicheJacinto da Palma Dias, empresário de agricultura e sal, Castro Marim

Jaime Malheiro, secretário da Casa dos Pescadores, Vila do CondeJoão Bom Pastor, pescador, patrão do salva-vidas, Vila do Conde

João Confeiteiro, pescador, MértolaJoão do André, pescador, moliceiro e construtor de velas, Murtosa

João Louzeiro, pescador e armador, Sines João Paciência, pescador e mariscador, Hangares, Ilha da Culatra

João Paulo, pescador, Rabo de Peixe, São MiguelJoão Rocha, barqueiro, areeiro, Lugar do Seixo, Lanheses, Viana do Castelo

João Soares, pescador, Rabo de Peixe, São MiguelJoaquim Felizardo, moleiro, Corte de Gafo de Baixo, Mértola

Joaquim Gorgulho, empresário de restauração, TaviraJoaquim Marcelino da Encarnação, carpinteiro naval, Sines

Joaquim Santos, pescador, Costa Nova do Prado, ÍlhavoJorge Reis, mestre de embarcação fluvial, Pomarão, Mértola

José Andrade, pescador, Rabo de Peixe, São MiguelJosé Broas, pescador, Costa Nova do Prado, Ílhavo

José Caneira, marítimo, MurtosaJosé Cardeira Alves, pescador, Vale do Poço e Moinho dos Cais, Mértola

José da Estrela, pescador, Rabo de Peixe, São MiguelJosé do Carmo, pescador, Culatra, Ilha da Culatra

José Domingos, pescador, Rabo de Peixe, São MiguelJosé Eduardo Quintas, carpinteiro naval, Esteiró, Vilarelho, Caminha

José Guerreiro Mestre, pescador, MértolaJosé Guerreiro Rosário, pescador, Culatra, Ilha da Culatra

José Guia, pescador, Viana do CasteloJosé Júlio da Cunha, pescador, armador, Sines

José Madeira, mordomo da Comissão de Festas de São Pedro Gonçalves, São MiguelJosé Manuel Massaroco, pescador, Vila do Porto, Santa Maria

José Maria Malheiros, carpinteiro naval, PenicheJosé Neves, lojista, empresário, Sines

José Pavão, pescador, segurança, Mosteiros, São MiguelJosé Penacho Vieira, pescador, Rabo de Peixe, São Miguel

José Pimenta, carpinteiro naval, empresário, Rabo de Peixe, São MiguelJosé Pinto, guarda-fiscal, Pomarão, Mértola

José Ramiro de Abreu Brás, banheiro, São Bartolomeu do Mar, EsposendeJosé Vicente Fradoca, pescador, Costa Nova do Prado, Ílhavo

José Vila Cova, empresário e cronista local, Vila do CondeJosé Vilhena, carpinteiro de limpos, poeta local, Sines

Laureano Maltês, pescador, Castelo do Neiva, Esposende Leonardo, pescador, Rabo de Peixe, São Miguel

Liberato Fernandes, dirigente associativo, Ponta Delgada, São MiguelLuciano Abreu, dirigente dos Estaleiros Navais, Viana do Castelo

Lucília Maria Conceição Mendonça, ajudante de enfermeira, Culatra, Ilha da Culatra

Luís Carlos Brum, sindicalista, Ponta Delgada, São Miguel

Luís Ranha Marrocos, estocador, Lanhelas, Caminha

Luísa Coentrão, sargaceira, Cachinas, Vila do Conde

Manuel Ablum, pescador, Sines

Manuel Afonso Nónó, marinheiro e barqueiro, Caminha

Manuel Afonso Pezinho, pescador, apanhador de isca, Esposende

Manuel Agonia Marafona, pescador, Vila do Conde

Manuel Catarino, pastor, Vale de Romeiros, Mértola

Manuel Chico, pescador, Mértola

Manuel Eiras Afonso, Esposende

Manuel Fernandes, barqueiro, agricultor, pescador, Ludeira e Pedra Furada, Monção

Manuel João, lavrador, Vale de Romeiros, Mértola

Manuel José Rocha, carpinteiro naval, Lanheses

Manuel Luciano, pescador, Mértola

Manuel Martins, sargaceiro, Apúlia, Esposende

Manuel Oliveira, docente do ensino liceal, Murtosa

Manuel Ribeiro, serrador e carpinteiro de ribeira, S. Jorge, Arcos de Valdevez

Maria Alice Monteiro, barqueira, empresária, Porto de Rei, S. João de Fontoura, Resende

Maria Alzira Maia, redeira, Peniche

Maria Araújo do Carmo, barqueira, S. Jorge, Arcos de Valdevez

Maria Cândida Marques, doméstica, apanhadora de minhoca, Esposende

Maria de Lurdes Buchinho, mariscadora, Hangares, Ilha da Culatra

Maria de Lurdes, operária da indústria corticeira e conserveira, Sines

Maria Delmira Ferreira, descarregadora de peixe, operária, Sines

Maria do Rosário Ruivo, pastora, Monte Dom Pedro, Mértola

Maria Domingas Vito Carvalho, mariscadora, Culatra, Ilha da Culatra

Maria dos Anjos Fernandes Lopes, Esteiró, Vilarelho, Caminha

Maria Eugénia Cardoso, redeira, Peniche

Maria Helena Lúcio, funcionária pública, Hangares, Ilha da Culatra

Maria João, doméstica, Hangares, Ilha da Culatra

Maria Leontina Nunes Perruca, mariscadora, Culatra, Ilha da Culatra

Maria Liliana, redeira, Peniche

Maria Madalena Buchinho, mariscadora, Culatra, Ilha da Culatra

Maria Regina da Cruz Buchinho, mariscadora, Culatra, Ilha da Culatra

Marília Patrícia Custódio, pescadora, operária da indústria transformadora, Sines

Maurício Venturinha, empresário de restauração, Sines

Miguel Moreira, empresário, carpinteiro naval, Vila Chã, Vila do Conde

Narciso Rodrigues Maio, pescador, Azurara, Vila do Conde

Nélia Amaral, doméstica, Rabo de Peixe, São Miguel

Nuno Manuel Marques de Almeida, pescador, Peniche

Orlando Miguel, pescador, Rabo de Peixe, São Miguel

Paulino França, carpinteiro naval, empresário, Vila Franca do Campo, São Miguel

Paulo Casaca, político, Rabo de Peixe, São Miguel

Paulo Faria, pescador, Rabo de Peixe, São Miguel

Paulo Moniz, pescador, Rabo de Peixe, São Miguel

Ramiro Presas, artesão, pescador e agricultor, São Torpes, Sines

Regina Buchinho, mariscadora, Culatra, Ilha da Culatra

Rosa Araújo, funcionária da Junta de Freguesia, Culatra, Ilha da Culatra

Rosa Gonçalves Lima, barqueira, doméstica, Sassoeiros, Carcavelos, Cascais

Rosa Neves, analista, Hangares, Ilha da Culatra

Rosa Pereira Pinto, varina, empresária, Furadouro, Ovar

Rosalina do Carmo Ribeiro, auxiliar de educação, Touvedo, Ponte da Barca

Rui Simeão, empresário do sal, Salinas de Tavira, Tavira

Saevar Mendes, operário da indústria conserveira, Noruega

Sílvia Padinha, empresária do sector turístico, Culatra, Ilha da Culatra

Teresa Serpa, ex-funcionária da Mútua dos Pescadores, Peniche

Tiago, estudante, marnoto sazonal, Escola Secundária de Tavira

Valdemar Pereira, pescador Sesimbra

Vanda Bonzinho, pescadora, Culatra, Ilha da Culatra

Victor Ferreira, pescador, Mosteiros, São Miguel

Vítor Raimundo, pescador e formador, Sesimbra

Vitorino Neves, empresário de restauração, Hangares, Ilha da Culatra

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