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8/7/2019 Beauvoir-Literat e Metafisica http://slidepdf.com/reader/full/beauvoir-literat-e-metafisica 1/10 Tit ulo d a e diçã o f ra nc es a : L'existencialisme e t I a Sa ge sse d es Na ti on s © Le s Ed lt lo ns Na ge l, Pa ri s Re se rv ado s o s d ir ei tos pe la l egi sl aç ão e m v igor par a a Editorial M inolauro Rua D. Estefânl a 46 B-C-O Lisboa 1 Traduç1l.o Manuel de Lima Bruno da Ponte Orientação gráfica Correia Fernandes José G rada Se está interessa do em receber onoss o . boletim de novi dad es nac ionais e es tr an- geiras remeta-nos o post al junto cuj a fran qui a ser á paga por' s. er -- \ , , \ \ \ , l , . Co le cç ão Ensaio I I .. " , . o EX ISTENCIALISMO E A SABEDORIA DAS NAÇÕES Simone de Beauvolr ?o ~"t'rO !Ifl 66 ' , t . Minotauro ; ' ' ' . . -';~~ . " . .. ." . .• ' . , ; . J . , . \ . ' "1 1" . , \ ; --- 1 1. f~"'" ~ l .Q" ' t . ~.Â#l i ' - 'H . , ~;: . : .,\\ 3( .tt58

Beauvoir-Literat e Metafisica

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Titulo da edição francesa:

L'existencialisme

et Ia Sagesse des Nations© Les Edlt lons Nagel, Paris

Reservados os direitos pela legislação em vigor

para a Editorial M inolauro

Rua D. Estefânla 46 B-C-O Lisboa 1

Traduç1l.o

Manuel de LimaBruno da Ponte

Orientação gráfica

Correia Fernandes

José Grada

Se está interessado em receber o nosso

. boletim de novidades nacionais e estran-

geiras remeta-nos o postal junto cuja

franquia será paga por' nós.

er-- \,, \

\ \, l , .

Colecção EnsaioI I . . •" , .

o EX ISTENCIAL ISMOE A SABEDORIADAS NAÇÕES

Simone de Beauvolr

?o~"t'rO !Ifl6 6',

t . Minotauro

;''' . . -';~~." ... ." ..• ' .,;. J .

,.\ . '" 11 ". , \ ; --- 1 1.

f~"'"~l.Q"'t . ~.Â#li

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11 1 . L ITERATURA E M E TA FlS IC A

Eu lia muito quando tinha dezoito anos; liacomo

só nessa idade se lê, com ingenu'idade ecom paixão. Abrlr um romance era, verdadeira-mente, entrar num mundo, um mundo concreto,temporal, povoado de figuras e de aconteci-mentos sinquleres: um tratado de filosofi'a con-duzia-me para além das aparências terrestresna serenidade de um céu lntemporal. Num ounoutro caso, recordo-me ainda do espanto ver-tlqlnoso que me possuía no momento em quefechava o livro. Depois de ter pensado o uni-verso através de(Spi'no~ ouc&!!!.o perguntava--me: «Como se pode ser suficientemente fútil

para escrever romances?» Mas quando abando-.nava(1ulien ~ ou ct;s;~'U~e~ill:~ parecia--me vão-pe-rder tempo a fabricar sistemas. Ondese situava a verdade? Sobre a terr·a ou na eter-nidade? Sentia-me dividida.

Penso que todos os espíritos que são sensÍ-veis, ao mesmo tempo, às seduções da ficção e

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80 LITERATURA E METAFlSIOA

ao rigor do pensamento filosófico conheceram

mais ou menos esta perturbação; pois, ao fim

e 8'0 cabo, só há uma realidade; . L !: ! . 0 _ seio ~o

_ mundo que p~nsamos o mundo. Se alguns escri-

r

teres escolheram reter apenas um desses dois

aspectos da nossa condição, ergu~doa'Ssim. bar-

1 relras entre a literatura e a filosofia, outros,

I pelo contrário, procuraram desde há muito ex-

primi-Io na sua totalidade. O esforço de con-

ciliação a que hoje se assiste situ;;e na sequên-

~ia de uma longa tradição, responde a uma exl-gênci'a profunda do espírito. Porque suscita,então, tanta desconfiança? ~--

I: necessário recon hecê-lo, as ~~P.le'ssões:

«romance metafísico», «teatro de ideias», podem

dêspertar'alguma inquiétação. Cert~mente uma

obra significa sempre alguma coisa: mesmo

aquele que procure mais dellberademenre re-

cusar todo o sentido, manifesta 'ainda essa

recusa; mes os adversários da literatura filo-

s6fica sustentam com razão que a significação

d; um romance ou de uma peça de teatro não

deve, mais que a de um poema, poder tradu-zir-se em conceitos abstractos; senão, para quê

construir uma aparelhagem fictíóa à volta de

ideias que seriam expressas com maior econo-

mia e clareza numa linguagem directa? O ro-

mance s6 se [ustlflca se é um modo de comu-

nicação irredutível a qualquer outro. Enquanto

LITERATURA E METAFlSIOA 81

o filósofo, o ensaísta, comunicam ao leitor uma

reconstrução lntelectuai da sua experiência, é

essa própria axperlência, tal como se apresenta

antes de qualquer elucidação, que o romancista

pretende reconstltulr num plano imaginário~

mundo real, o sentido~ yrrLobje<;to-'!.§2 é 'Jm

co,n~~reensív~_ pel~ ~~endime!'to puro:é_o oºJectQ.~nqu'ant-o ~~ nos desvela na rela-

ção global que mantemos com ele e que é---- . -1!cção, emoção, sentimento; pede-se aos roman-

cistas para evocarem essa presença de carne eosso cuja complexidade, cuja riqueza sinqular

e infinita, ultrapassa qualquer interpretação

subjectlva. O teórico quer constranger-nos a

aderir às ideias que a coisa, o acontecimento,

lhe sugeriram. Esta docilidade intelectual re-pugna a muitos espírltos. Querem salvaguardar

a liberdade do seu pensamento: pelo contrério,

agrada-Ihes que uma ficção imite a opacldede,

a ambiguidade, a imparcialidade da vida; sub-

jugado pela história que lhe é contada, o leltor

reage aqui como perante os acontecimentos vivi-

dos. Comove-se, aprova, indigna-se, por um mo-vimento de todo o seu ser, antes de formular

j u ízos que arranca de si mesmo sem que tenha-

mos a presunção de lhos ditarmos. ~ isso queconfere valor a um bom romance. E J;p ê; m it e lefectua-; expe;iê~cj;;-tã~ completas, tão inquieJ J

tanteCOmo as experiências vivides. O leitor6 - - -

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82 LITERATURA E METAFlSlCA

interroga-se, duvida, toma partido e essa ela-

boração hesitante do seu pensamento constitui

um enriquecimento que nenhum ensino doutri-

nal pode da substituir.

Um verdadeiro romance não se <jeix·a, por-

tanto, reduzir a fórmulas, nem mesmo relatar;

não poderMs d'est~~a~ o seu sentido como não

podemos isolar um sorri·so de um roStõ:Em b-ora~f€Üo de paIa~-ex'i s te como os c l ; jec-tos do mundo que ultrapassam tudo o que se

possa dizer com palavras. E , sem dúvida, aqueleobjecto foi construfdo pelo homem e esse ho-

mem tinha um desfgnio; mas a sua presença

deve estar bem escondida, senão essa operação

mágic·a que é a subjugação romanesca não

poderie cumprir-se; do mesmo modo que. '0

sonho se desfaz em pedaços se a menor percep-

ção se revela como tal ao que dorme, do mes-

mo modo a crença 'imaginária desvanece-se

quando se pensa em confronté-le com a reali-

dade: não se pode admitir a existência do ro-

mancista sem negar a dos seus heróis.

Ser-se-é então tentado a levantar uma pri-meira objecção contra o que se chama comfrequê;;cra-;-i,~trusão da filosofia no romance:

qualquer ideia cmuito clara, qualquer t ; ; e , qual-quer doutrina que se tentasse elaborar através

de uma ficção destruírlem nela imediatamente

o seu efeito, pois denunciariam o autor e fariam-

LITERATURA E METAFlSlCA 8~

-na aparecer, ao mesmo tempo, como ficção.

Mas este argumento não é lntelramente deci-

sivo; é tudo urna questão de destreza, de tacto,

de arte. De qualquer modo, fingindo eliminar-

-se, o autor trapacei'a, mente; quando mente

suficientemente bem, dissimulará as suas teo-

rias, os seus planos; permanecerá invisível, o

leitor deixar-se-é apanhar, a trapaça resultará.

Mas é precisamente aqui que muitos leitores

se irritam com razão. Admitindo que a arte

implica o artifício, portanto uma parte de máfé e de mentire, repugna-Ihes a ideia v d e se

deixarem enganar. Se a leitura fosse apenas um

divertimento gratu'Íto poderia situar-se o debate

no plano técnico; m~s se se deseja ser «aea-

~~_uJ!l.._~ce, nã2--1.3l.E~..!l~....2:9t:,a

m~atar qJ.gWlJas~ho~s; espera-se, vlrno-]o, supe-

ra-r no plano imagi·nário os limites sempre muito

estreitos da experiência realmente vivida. Ora

isso exlqe que o romancista participe ele próprio

nessa investigação para a qual convida o leitor:

se prevê de antemão as conclusões a que ela

deve levar, se faz lndlscretarnente pressão sobre

ele para lhe arrencar a sua adesão a teses pre-

-estabelecidas, se apenas lhe concede uma ilusão

de liberdade, então a obra literária não passa

de uma mistificação lnconqruente: o romance Isó se reveste do seu valor e da sua dignidade

quando constitui para o autor como para o lei-

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84 LITERATURA E METAFlSICA

tor u~a descoberta viva. ~ essa exiqêncle que

se exprime de uma maneira romântica e um

tanto irritante querido se diz que o romance

deve escapar ao autor, que este não deve dispor

das personagens mas que, pelo contrário, estas

devem impor-se-lhe. De facto, mau Q'rado os

abusos de linguagem, todos sabem que as per-

sonagens não visitam o quarto do escritor para

lhe impor as suas vontades; mas não preten-

demos que elas sejam fabricadas, a priori, à

custa de teorias, fórmulas, etiquetas; não que-remos que a intriga seja uma pura maquinação

que se desenrola mecânicamente. Um romance

_n~2 é um objecto manu~cl~'[ª9.2 e é mesmopejor~tivo -dizer-;Ue é fabricado; -sem - dúvida,

no sentido llteral da palavra, é absurdo preten-

tender que um herói de romance é Iivre, as

suas reacções, irnprevisfvets e mister iosas ; mas,

na verdade, ~~ I~b..erdade _gy_e ~e admira naspersonagem de Dostoievskl, por exemplo, é

a~yr6prio romenclsta em rei-ação ao~ -~pr óprios pro [ectos: e a opacidade dos aconte-

cimentos que evoca manifesta a resistência queencontra no decurso do próprio acto criador.

Do mesmo modo que uma verdade científica

encontra o seu valor no conjunto de experiên-

cias que a fundam e que resume, do mesmo

modo a obr-a de arte envolve a experiência sin-

gular de que é o fruto. A experiência científica

LITERATURA E METAFlSICA 85

é a confrontação do facto, quer dizer da hipó-

tese considerada como verificada com a ideia

nova. De uma maneira análoga, o autor deve

sem cessar confrontar os seus desígnios com

a realização que esboça e que, prontamente,

reage sob-re eles; se quer que o leitor acredite

nas invenções que propõe, é necessário, em pri-

meiro lugar, qu-e o romancista creia nel-as com

suficiente força para Ihes descobrir um sentido

que se reflectirá na ideia primitiva, que sugerirá

problemas, saltos, desenvolvimentos imprevis-tos. Assim, no futu-ro e à medida que a história (se desenrola, vê surqir verdades de que não

conhecia antecipadamente o rosto, questões ele

que não possui a solução: int~C?ga-se, t~m2..

PaI!! 92, corre riscos; e é com espanto, que, 110

fim-da sua criação, consider-ará a obra reali-

zada, da qual ele próprio não poderá fornecer

a tradução abstracta pois, de um só golpe, ela

ganhará conjuntamente o sentido e a carne.

Então, o romance aparecerá como uma autên-

tica aventura espirltual. ~ essa autenticidade

que distingue uma obra ve-rdadeiramente gr;ande

de uma obra simplesmente hábil, e o maior

talento, a destreza mais consumada não pode-

r-iam substituí-Ia. Se o romance metafísico esti-

vesse reduzido a imitar de fora essa caminhada

viva, se trapaceasse o_lel!.2!~ em vez c ;t e . _ estabe-

lecer com ele uma comunicação verdadeira en-.--- -

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86 LITERATURA E l~ETAFISICA

volvendo-o numa lnvesflqação que o autor em-

preendeu por sua própria conta, então seria

com certeza necessário condené-lo.Certamente, não se satisfazem as exigências

da experiência romanesca se nos llmltermos a

mascerer com um revestimento flctíclo, mais ou

menos colorido, uma armadura ideológica pre-

viamente construída. Repudiar-se-é o romance

ilfilos6fico se definirmos a filosofia como um

sistema completamente constituído e bastando-

,-se a si próprio. Com efeito, é no decurso daedlficação do sistema que a aventura espiritual

será vivida. O romance que se prop'yj§l~ iJ ~-

tré-lo não fará mais do que explorar sem risco

e s~m verdadeira invenção as riquezas fixadas;

será Imposslvel introduzir essas rígidas teorias

na ficção sem prejudicar o seu livre desenvol-

vimento; e não se vê em que uma história

imaginária poderá servir ideias que já teriam

encontrado o seu modo próprio de expressão:

pelo contrário, só poderia dlmlnuf-las, empo-

brecê-Ias pois a ideia ultrapassa sempre, pela

sua complexidade e pela multiplkidade das suasaplicações, cada um dos exemplos singularesem que se pretenda encerrá-la.

Em primeiro lugar, notemos que, deste ponto

de vis~e':~se.ia íevado a repudiar o romance

psicol6gico de que, no entanto, ninguém p~

hoje-e;,; discutir a validade. Também existe

. .~tJ

LITERATURA E METAFISICA 87

uma psicologia teórica e soe o romance psicoló-

gico fosse dedicad~ustr~r. Ribot, Bergson ouFreud, seria, de facto, completamente inútil; fpoder-se-ia pretender que o~l?r:netidos

ao carácter que o autor escolheu para eles, às

leis psicolóqlcas que é obrigado a respeitar,Pe~de;'tõd-;-~ liberdade e toda a opacidade.

Se não se lhe levantam tais objecções é porque

se sabe que a psi,co logia não _ é _e~sencialmente

uma disclplíne especial e estranha à vida; toda

a-;;pe-;'iênci~a hu~a':;-a.-tem uma certa dim~são-- _ . ' ." ,----sicológica; e enquanto o teórico salienta e SiSO)tematiza num plano abstracto essas siqnifica-

ções, o romancista evoca-as na sua singularidade

concreta;;~quanto disdpulo de Ribot, Proust

aborrece, não nos ensina nada; mas Proust,

romancis ta autêntico, descobre verdades para

as quais nenhum teórico do seu tempo propôs

o equivalente abstracto.

!: de um modo análogo que importa conce-

ber a relação do romance e da rnetaffslca:

Em primeiro lugar, a metafísica não é um sis-

tema; não se «faz» metafíska como se «faz»

matemática ou física. Na realidade, «fazer»

metafísica é «ser» meteflsico, é reallzar em si

a atitude metafísica que consiste em pôr-se na

sua tota lidade em face da totelldade do mundo.

Todos os acontecimentos humanos possuem,

pera além dos seus contornos psicolóqlcos e

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88 LITERATURA E METAF'lSIOA

socrars, uma siqnlflceçêo metafíska pois que,

através de cada um deles, o homem empenhou-se

sempre inteiramente num mundo completo: e,

sem dúvida, não há ninguém que se não tenha

descoberto em qualquer momento da sua vida.

Em particular, acontece com frequência às crian-

ças que ainda não es\tã'Oancoradas no seu

pequeno universo experimentarem com espanto

o seu «estar-no-mundo» como experimentam o

seu corpo. Por exemplo, é uma experiência

metafísica essa descoberta da «ipseidade» des-crita por Lewis Carroíl em Alice no País das

Maravilhas, por Richard Hughes em Ciclone na

Jamalea: a criança descobre concretamente a

sua presença no mundo, o seu abandono, a sua

Iiberdade, a opacldsde das coisas, a resistência

das consciências estranhas; através das suas

alegrias, trlstezas, resignações, revoltas, os seus

medos e as suas esperanças, cada homem realiza

uma certa situação metafísica que o define

muito mais essencialmente do que qualquer das

suas aptidões psicológicas.

Há uma tomada original da realidade meta-

ffslca e, tal como em ps'icologia, há duas manei-

ras d ivergentes de a explicitar. Pode fazer-se

um esforço pare elucidar o sentido universal

numa linguagem abstracta: assim se e laborarão

teorias em que a experiência metaffsica se e.n-

contrará descrita e mais ou menos sistemati-

LITERATURA E METAF'lSIOA 89

zada sob o seu aspecto essencial, portanto in-

temporal e objectivo. Se, para além disso, o

sistema assim construído afirma que esse

aspecto é o único real, se considera sem impor-

tância a subjectividade e a historlcidade da

experiência, exclui evidentemente qualquer outra

manifestação da verdade. Seria absurdo lma-

gi·nar um romance aristotélico, espinozista ou

mesmo leibnitziana, pois nem a subjectividade

nem a temporal idade têm um lugar real nessas

metafísicas. Mas se, pelo contrário, uma fHo-sofia retém o aspecto subjectivo, singular e

dramático da experiência, contesta-se a si mes-

ma na medida em que, enquanto sistema intem-

porei, não dá o lugar devido à sua verdade

temporal. Assim, enquanto afirma a realidade

suprema da Ideia de que este mundo não é

senão uma degradação enganosa, Pia tão não

sabe que fazer dos poetas, exclui-os da sua

repúbl ica; mas quando, descrevendo o movi-

mento dialéctico que conduz o homem para a

ideia, integra na realidade o homem e o mundo

sensível, Platão experimenta a necessidade de

se fazer ele próprio poeta. Situa nos campos

em flor, à volta de uma mesa, à cabeceira de

um moribundo, na terra, os diálogos que mos-

tram o caminho do céu inteligível. Do mesmo

modo, em Hegel, na medida em que o espfrito

ainda não se cumpriu mas está em vias de se

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90 LITERATURA E METAF1SIOA LITERATURA E METAF!SIOA

cumprir, é necessário, para contar adequada-

mente a sua aventura, conferir-lhe uma certa

espessura carnal; na Fenomenologia do Espírito,

Hegel recorre a mitos literários tais como Don

Juan e Fausto, pois o drama da consciência

Infeliz só encontra a sua verdade num mundo

concreto e histórico.

Quanto mais vivamente um filósofo sublinha

o papel e o valor da subjectividade, mais será

levado a descrever a experiência metafísica sob

a sua forma singular e temporal. Não só Kier-

kegaard recorre como Hegel a mitos literários,

mas em Temor e Tremor recriou a história do

saorlfício de Abraão sob uma forma que toca

a forma romanesca e no Jornal de um Sedutor,

revela, na sua singularidade dramática, a sua

experiência original. Encontraremos mesmo

pensamentos que 'não poderiam exprimir-se

sem contradição de uma manelra categórica;

assim, para Kafka que deseja pintar o drama

do homem encerrado na sua imanência, o ro-

mance é o único modo de comunicação pos-

sível. Falar do transcendente, mesmo que fossepara dizer que é inacessfvel , ser ia já pre tender

ascender até ele, uma vez que uma nerretlva

imaginária permite respeitar esse silêncio que

é o único adequado à nossa ignorância.

Não é por acaso que o pensamento existen-

cialista tenta exprimir-se hoje, ora por tratados

91

teóricos, ora por ficções: mas sim porque é um

esforço para conciliar o objectivo e o subjectivo,

o absoluto e o relativo, o intemporal e o his-

tórico; pretende encontrar a essência no cora-

ção da exis tência; e se a descrição da essência

releva da filosofia propriamente dita, só o ro-

mance permitirá evocar na sua verdade com-

pleta, sinqular, temporal, o brotar original da

existência. Não se trata aqui, para o escritor

de explorar no plano literário verdades previa-

mente estabelecidas no plano filosófico, mas

sim de manifestar um aspecto de experiência

metafíska que não pode manifestar-se de outro

modo: o seu carácter subjectlvo, singular, dra-

mático e também, a sua ambiguidade; pois que

a real idade ,não é definida como apreensfvel

apenas pela inteHgênda, nenhuma descrição in-

telectual poderia expressá-Ia adequadamente.

É necessário tentar apresentá-Ia na sua lnteqrl-

dade, tal como se revela na relação viva que é

acção e sentimento antes de se tornar pensa-

mento.

Mas vê-se agora que a preocupação filosó-fica está longe de ser incompatível com as exi-

gências do romance. Este não manterá menos

um carácter de aventura espiritual, por se ins-

crever numa vlsão metafísica do mundo. De

qualquer modo, já não duvidamos actualmente

da falsa objectividade naturalista, sabemos que

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92 LITERATURA E METAFlSIOA

todos os romancistas têm a sua visão do mundo,

e é até nessa medida que eles nos interessam

O ponto de vista metafíslco não é mais estreito

do que qualquer outro, pelo contrário, é mesmo

por seu intermédio que podem concilia-r-se os

pontos de vista psicológico e social que fracas-

sam tão frequentemente ao reunirem-se e que,

tomados isoladamente, são incompletos. Que

não se pretenda mais que uma personagem de-

fin-ida pela sua dimensão metafísica: angústia,

revolta, vontade de poder, medo da morte, fuga,s'ede de absoluto, sej-a necessàriamente mais

rígida, mais fabricada do que um avaro, um

poltrão, um ciumento, que traços psicológicos

car acter lzem. Tudo depende aqui da qualidade

de imaginação e do poder de invenção do autor.

Sobretudo, é necessário não pensar que .a luci-

dez intelectual do escritor o leve a perder a

densidade, a riqueza embíqua do mundo. Cer-

tamente, se se ju'lga que, através da massa

colorida e viva das coisas, ele apercebe essên-

cias dessecadas, pode recear-se que nos ofereça

um universo morto, tão estranho ao que nós

respiramos como uma fotografia de raio X é

diferente de um corpo humano. Mas esse receio

só é fundado em relação aos filósofos que ; sepa-

rando a essência da existência, desdenham da

aparência em benefício da realidade escondida:

mas estes não são tentados' a escrever roman-

LITERATURA E METAF1SIOA 95

ces; pelo contrário, quanto àqueles para quem

a aparência é realidade, a existência, suporte

da essência, o sorriso indiscernfvel de um rosto

sorridente, o sentido de um acontecimento do

próprio acontecimento, é só pela evocação sen-

sível, carnal do domínio terrestre, que a sua

visão pode exprimir-se. Muitos exemplos de-

monstram que nenhum destes argumentos é

válido a priori. Os Irmãos Karamazov o le

Soulier de Satin desenrolam-se no quadro deuma metafísica cristã. É o drama cristão do

bem e do mal que se enreda e desenreda. Sabe-

-s'e sobejamente que isso não entrava nem' as

reacções dos heróis nem o desenvolvimento da

lntrlça e que o mundo de Dostowievski como o

de Claudel são mundos car-nais, concretos; é

que o bem, o mal, não são noções abst ractas;

só. se co~cretizam nos actos bons ou maus que

os homens cumprem, e o amor de Dona Prou-

heze por Rodrigo não é menos sensual, menos

humano, menos perturbante porque ela põe emjogo, através dele, a salvação da sua alma,

Na verdade, são muito frequentes os l eitores

que se recusam a participar sinceremente na

experiência em que o autor tenta envolvê-Ios:

não lêem como exigem que se escreva, receiam

correr riscos, aventurarem-se; antes mesmo de

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94 LITERATURA E METAF18IOA

abrirem O livro, atribuem-lhe chaves e, em vez

de se deixarem prender pela histór!a, procuram

sem cessar traduzi-Ia; matam esse mundo ima-

ginário que deveriam vivificar e lamentam-se de

que lhe tenham dado um cadáver. Assim, um

crítico russo, contemporâneo de Dostoievski

acusava Os Karamazov de ser um tratado de

filosofia dialogado e não um romance. Blanchot

diz muito profundamente, a propósito d eKafka, que ao lê-Io se compreende sempre de-

masiado ou demasiado pouco. Creio que estanota pode aplicar-se a todos os romances meta-

flsicos em geral; mas essa hesitação, essa parte

de aventura, o leitor não deve tentar iludi-Ia;

que não esqueça que a sua colaboração é neces-

sária, pois o próprio do romance é preclsernente

apelar para a sua liberdade.

Honestemente lido, honestamente escrito,

~Im romance metaf lsico provoca uma descoberta

da existência de que nenhum outro modo de

expressão poderia fornecer o equivalente; longe

de ser, como se pretendeu por vezes, um desvioperigoso do género romanesco, parece-me, pelo

contrário, na medida em que é conseguido, a

realização mais perfeita pois se esforça por

apreender o homem e os acontecimentos huma-

nos nas suas relações com a totalidade do

mundo, pols só ele pode ter êxito no que fra-

LITERATURA E METAF1SIOA 95

cassa a pura literatura como a pura filosofia:

evocar. na sua unidade viva e na sua funda-

menta l ambiguidade viva, esse destino que é o

nosso e que se inscreve de uma s6 vez no tempo

e na eternidade.