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 Beccaria (250 anos) e o drama do castigo penal  Autor: Luiz Flávio Gomes Depois de oito meses de intensa pesquisa e ávida exploração de um manancial bibliográfico profícuo, revisitei inteiramente a clássica e reverenciada obra de Beccaria, Dos delitos e das penas, que está completando 250 anos. Pode parecer estranho escrever um livro sobre outro já publicado há tanto tempo. Mas não é. Tratando-se do insuperável Beccaria, ontem, hoje e amanhã sempre será oportuno revisitá-lo, porque o estado de polícia (inquisitivo e medieval) que ele criticou duramente em sua obra continua mais vivo do que nunca (aliás, jamais existiu Estado de direito sem a sombra do estado de polícia – Zaffaroni, Eugenio Raúl. El enemigoenelderecho penal. Buenos Aires: Ediar, 2012, p. 165 e ss.). Sob a ótica das ciências penais no terceiro milênio comentamos todas as ideias reformistas (para muitos, revolucionárias) defendidas por Beccaria em 1764, de forma anônima. Beccaria foi o mais contundente crítico do sistema penal medieval do Antigo Regime, que confundia o delito com o pecado e processava todos os acusados de qualquer delito consoante as aberrantes formas inquisitivas fundadas na denúncia anônima, prisão cautelar imediata e tortura para confessar e delatar. A pena frequente era a de morte, imposta pelo mesmo “juiz” que investigava de maneira secreta e sem direito de defesa. Contra todas essas inomináveis arbitrariedades se insurgiu Beccaria, baseando-se no Iluminismo dos séculos XVII e XVIII assim como nas lições de eméritos filósofos (Voltaire, Montesquieu, Diderot, D’Alambert, Locke, Hume, Rousseau etc.), que contestavam o estágio retrógrado em que se encontrava a Justiça daquela época. Beccaria expôs criticamente os fundamentos do direito de castigar, os princípios estruturantes que o limitam, os requisitos mínimos da imputação penal, alguns aspectos dos crimes mais graves do seu tempo, as sanções cruéis aplicadas e o procedimento desumano e degradante que se adotava. Por ser filho de uma família nobre, escapou da pena de morte, mas não da perseguição da Igreja, que colocou seu livro no Index das obras proibidas. Ele foi mais um político criminal que penalista, mais filósofo que jurista, mas, sobretudo, um economista. Viveu uma vida conturbada com seu pai, com os irmãos Verri (que o ajudaram muito na elaboração da obra) assim como com sua primeira esposa (Beccaria era extremamente ciumento, melancólico, tímido e preguiçoso, como dizem seus biógrafos). Escreveu, no entanto, um livro genial (maravilhoso “opúsculo”, disse Calamandrei), adotando estilo direto e sem muita erudição, que continua mais atual que nunca, sobretudo nesta era de tantas violações dos direitos fundamentais, recordando a Justiça (do século XXI), em vários momentos, o mundo da Inquisição dos séculos XV-XVIII.  A leitura do nosso livro colocará o leitor em contato com muitos “Beccarias”: o iluminista, que criticou duramente o poder monárquico e sua justiça inquisitiva;

Beccaria (250 Anos) e o Drama Do Castigo Penal

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Beccaria (250 anos) e o drama do castigo penal

Autor: Luiz Flvio Gomes

Depois de oito meses de intensa pesquisa e vida explorao de um manancial bibliogrfico profcuo, revisitei inteiramente a clssica e reverenciada obra de Beccaria, Dos delitos e das penas, que est completando 250 anos. Pode parecer estranho escrever um livro sobre outro j publicado h tanto tempo. Mas no . Tratando-se do insupervel Beccaria, ontem, hoje e amanh sempre ser oportuno revisit-lo, porque o estado de polcia (inquisitivo e medieval) que ele criticou duramente em sua obra continua mais vivo do que nunca (alis, jamais existiu Estado de direito sem a sombra do estado de polcia Zaffaroni, Eugenio Ral. El enemigoenelderecho penal. Buenos Aires: Ediar, 2012, p. 165 e ss.).

Sob a tica das cincias penais no terceiro milnio comentamos todas as ideias reformistas (para muitos, revolucionrias) defendidas por Beccaria em 1764, de forma annima. Beccaria foi o mais contundente crtico do sistema penal medieval do Antigo Regime, que confundia o delito com o pecado e processava todos os acusados de qualquer delito consoante as aberrantes formas inquisitivas fundadas na denncia annima, priso cautelar imediata e tortura para confessar e delatar. A pena frequente era a de morte, imposta pelo mesmo juiz que investigava de maneira secreta e sem direito de defesa. Contra todas essas inominveis arbitrariedades se insurgiu Beccaria, baseando-se no Iluminismo dos sculos XVII e XVIII assim como nas lies de emritos filsofos (Voltaire, Montesquieu, Diderot, DAlambert, Locke, Hume, Rousseau etc.), que contestavam o estgio retrgrado em que se encontrava a Justia daquela poca.

Beccaria exps criticamente os fundamentos do direito de castigar, os princpios estruturantes que o limitam, os requisitos mnimos da imputao penal, alguns aspectos dos crimes mais graves do seu tempo, as sanes cruis aplicadas e o procedimento desumano e degradante que se adotava. Por ser filho de uma famlia nobre, escapou da pena de morte, mas no da perseguio da Igreja, que colocou seu livro no Index das obras proibidas.

Ele foi mais um poltico criminal que penalista, mais filsofo que jurista, mas, sobretudo, um economista. Viveu uma vida conturbada com seu pai, com os irmos Verri (que o ajudaram muito na elaborao da obra) assim como com sua primeira esposa (Beccaria era extremamente ciumento, melanclico, tmido e preguioso, como dizem seus bigrafos). Escreveu, no entanto, um livro genial (maravilhoso opsculo, disse Calamandrei), adotando estilo direto e sem muita erudio, que continua mais atual que nunca, sobretudo nesta era de tantas violaes dos direitos fundamentais, recordando a Justia (do sculo XXI), em vrios momentos, o mundo da Inquisio dos sculos XV-XVIII.

A leitura do nosso livro colocar o leitor em contato com muitos Beccarias: o iluminista, que criticou duramente o poder monrquico e sua justia inquisitiva; o secular, que pugnou pela separao entre a Igreja e o Estado, a religio e o direito e o delito e o pecado; o racionalista, que partia da premissa de que o humano deveria fazer uso da razo e se libertar das crenas e supersties, das religies estabelecidas assim como dos costumes autoritrios; o contratualista (o poder poltico fruto de um mitolgico acordo, de um pacto entre as pessoas, consoante lies de John Locke, Hobbes e Rousseau); o crtico do sistema medieval, que pregava, com Montesquieu, que toda pena desnecessria tirnica; o garantista e sistematizador dos princpios orientadores do moderno sistema penal; o humanista, que censurava a tortura e a pena de morte assim como as arbitrariedades judiciais, reivindicando um sistema punitivo mais suave, mas certo e infalvel; o utilitarista, que aceitava a ideia de que a pena tem por finalidade a preveno de crimes; o socialista, que postulava reformas socioeconmicas e educacionais; o burgus, porque acabou contribuindo para a construo do novo poder punitivo comandado pela burguesia ascendente aps a Revoluo Francesa de 1789.

Em pleno terceiro milnio, Beccaria continua muito atual, porque ainda no foi resolvido o drama do castigo entre a barbrie e a civilizao. Beccaria recebeu crticas dos conservadores (da Igreja, sobretudo) assim como dos progressistas (que contestavam sua posio diante do direito de propriedade). Sua doutrina, especialmente na Amrica Latina, no entanto, sempre foi muito bem recepcionada. Na Europa no so poucos os seus crticos, destacando-se o professor alemo Naucke, que nega que Beccaria fosse um humanista (na medida em que ele defendeu a pena de priso junto com a pena de servido, a impossibilidade de recurso contra as sentenas condenatrias, a discriminao dos condenados pobres etc.). Beccaria tambm severamente criticado por ter admitido a finalidade preventiva da pena (que est na base de todos os excessos punitivos do atual populismo penal, que acredita na severidade da pena como soluo para a criminalidade). De todas as crticas, devidamente analisadas no nosso livro, a mais desconcertante a que imputa a Beccaria o surgimento do novo poder punitivo burgus, que extremamente injusto e desigual.

No nosso livro ainda procuramos evidenciar o que surgiu depois de Beccaria, realando no somente o novo Direito Penal (fundado em regras muito mais civilizadas bem como nos princpios garantistas da legalidade, proporcionalidade, necessidade da pena etc.) assim como a nova dogmtica penal, alinhada com a ideia de que o poder punitivo deve ter limites (e que no pode ser exercido arbitrariamente). A dialtica existente entre o poder de polcia e o Estado de direito foi devidamente enfrentada pelos doutrinadores do final do sculo XVIII e primeira metade do sculo XIX (Pagano, Feuerbach, Carrara, Lardizval, Melo Freire etc.).

Depois de 250 anos, o velho Direito Penal liberal est apresentando sinais de intensa confrontao, ganhando fora a ideia do sufocamento do Estado de Direito, sobretudo diante das ofensivas neopunitivistas, centradas no populismo penal (veja nosso livro Populismo penal miditico, Saraiva). O poder punitivo burgus desviado do Estado de Direito, desde o princpio, se lanou contra os proletrios perigosos (primeira metade do sculo XIX). A discriminao, assim como a negao do Estado de Direito, se agravou com a escola positiva italiana (final do sculo XIX) e se tornou irreversvel com os fascismos e o nazismo na primeira metade do sculo XX. Na segunda metade do sculo XX surgiram o neopunitivismo norte-americano (movimento da lei e da ordem etc.), a doutrina da sociedade de risco e do Direito Penal do risco, bem como o movimento internacional punitivista. Tudo isso se resume no populismo penal, de cunho destacadamente miditico. O velho Direito Penal liberal est cado sob destroos, depois de tantos ataques.

O quadro muito preocupante e desalentador, mas, ns, doutrinadores, professores ou juzes no temos o direito de nos sucumbir perante o estado de polcia nem tampouco degenerao moral generalizada. At o ltimo dia da nossa vida temos que lutar pelo Estado de Direito, porque ele civilizao, enquanto o estado de polcia e a degenerao moral so barbries, atrasos, opresso, violncia, extermnio e corrupo.

Como bem sublinha Zaffaroni, a cincia penal (o doutrinador, o professor e assim tambm o juiz) deve sempre empurrar em direo ao ideal do estado de direito; enquanto deixa de faz-lo, avana o estado de polcia. Se trata de uma dialtica que nunca se detm, de um movimento constante, com avanos e retrocessos. Na medida em que o direito penal (ou seja: a doutrina, o professor), como programador do poder jurdico de conteno do estado de polcia, deixe de cumprir essa funo, ou seja, na medida em que legitime o tratamento de inimigo a algumas pessoas, renuncia ao princpio do Estado de direito e com isso abre espaos de avano do poder punitivo sobre todos os cidados e ainda d ensejo ao estado de polcia, isto , cede terreno em sua funo de conteno ou de dique em permanente resistncia (Zaffaroni, 2012: p. 168-169).

Chamo a ateno tambm para a ltima parte do livro, em que analisei a brilhante contribuio emanada do Beccaria, fundador da Poltica criminal. Beccaria defendia (para a preveno do crime) a certeza da pena mais suave possvel, mais medidas extrapenais, que nunca foram implantadas pela burguesia dominante em vrias partes do planeta. De forma bastante original enfocamos os vrios modelos de capitalismo, para concluir que mais degenerados se encontram os pases de capitalismo selvagem (como o Brasil), cuja poltica criminal (penal, deveramos dizer), bastante equivocada, se caracteriza pela ausncia de medidas extrapenais (Estado reativo, no preventivo; governana da reao simblica, no dos riscos reais) assim como pela poltica da severidade da pena (intimidao por meio da pena prevista na lei, da aplicao e da execuo exemplares), pela falta da certeza do castigo, pelo clima de guerra e de medo, pela explorao da emocionalidade da sociedade de massas ressentidas (conforme doutrinava Durkheim); pela predisposio da sociedade para um Direito Penal autoritrio; pela edio de leis penais severas e alopradas (emergenciais); pelo encarceramento massivo sem critrios justos; pela frouxido no controle dos rgos repressivos; pela cultura da violao massiva dos direitos humanos das vtimas e dos rus e pelo desrespeito ao devido processo legal e proporcional.

Nosso livro tem o propsito de proporcionar ao acadmico, professor ou profissional de mltiplas reas (cincias jurdicas, criminologia, histria, filosofia, sociologia etc.) o proveitoso encontro ou reencontro, sob a tica do terceiro milnio, com centenas de ideias incrivelmente atuais, embora lanadas em 1764, por um autor genial, que tinha apenas 25 anos de idade quando as escrevera de forma lcida, clara e brilhante. Boa leitura!

Luiz Flvio GomesJurista.