BELTING_Arte Universal e Minorias

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  • Hans Belting

    O FIM DA HISTORIA DA ARTEuma reviso dez anos depois

    Traduco Rodnei Nascimento

    COSACNAIFY

  • PREFCO

    PARTE I A MODERNIDADE NO ESPELHO DO PRESENTESOBRE MDIAS, TFORIAS E VUSEUS

    7 Eplogo da arte ou da histria da arte?23 0 fim da histra da arte e a cultura atuall5 0 comentrio de arte como problema da histrla da arte4r A herana indesejada da modernidade: estiLo e histria5r 0 cutto tardio da modernidade: Documenta e Arte Ocdental59 Arte ocidentat: a interveno dos Estados Unidos na modernidade do ps-guerra85 Europa:0cidente e 0riente na dviso da histria da arte95 Arte universate minorias: uma nova geografia da histria da arte

    ro5 No espetho da cuttura de massas: a rebelio da arte contra a histra da artea7 0 tempo na arte muttimdia e o tempo da histrrar j j A histria da arte no novo museu:a busca por uma fisionomia prpria

    PARTE II "O FI DA HISTORIA DAARTE?''

    t7r Experincia artstica atuaI e pesquisa histrica da artet75 A histria da arte na arte atual; despedidas e encontrosr l r A histria da arte como esquema narrativot87 Vasari e Heget; incio e fim da velha historiografia da arter 9,5 Cincia da arte e vanguardazol Antigos e novos mtodos da pesquisa em arte: regras de uma disciptinaz I S Histria da arte ou obra de arte?L4t Histria das mdias e histria da arte149 A "histria da arte moderna como inveno59 Modernidade e presente na ps-histria17 1 "0s livros de Prspero'

    r.8r l:lll-lUtRAFIAtttT (,)lill l)AlJl)r{I r r I ON ll I)A', lN4Aol N',rrr Nltlr;l rrNoM,,tllrr

  • WARTE UNIVERSAL E MINORIAS:UMA NOVA GEOGRAFIA DA HISTORIA DA ARTE

    A rnetfora da imagem e do quadro com a qual a histria da arte,,' rrno lugar de identidade, se deixa circunscrever apropriada tam-brn para compreender problemas que hoje desempenham um papelrrrrportante dentro dessa temtica. A chamada arte universal no serr justa a esse quadro que foi inventado para determinada cultura, masnio para todas: portanto, ela adequada apenas a uma cultura quepossuiu uma histria comum. Por outro lado, as minorias que pedem;r palavra no interior de uma mesma cultura no se sentem repesen-t:rclas corretamente em sua prpria cultura, a qual no mais percebidaP'r elas no interior de uma histria comum. Por isso ganha importn-t iir crescente nos Estados unidos a political correctness) como grito delucrra das minorias ou daqueles que se consideram como tal. A cone-rro entre cultura e histria, assim como a compreenso da histria da:rtc como imagem da prpra cultura, tona-se evidente to logo es-tt'jrr em jogo o consenso e o dissenso. Houve um tempo em que o dis-st'nso partia da vanguarda artstica que atacava a cultura e, com isso,,ssustava a burguesia cultivada. Desse ataque aos quadros originou-se,r r.oderrriclade, Hojc o dissenso surge muito mais do prprio pblico,.1,r rrtc, cluc cxigc clo artisti'r o rcconhccirncnto das reivindicaes dostlivtrrsos grtrP()s (: ('sp(rl clos historirrclorcs cluc rc(rscr(vll. a histria.A irrllrgt'ltt oficilrl tlrt trtltttlrt lrt'rtlrrtllr t()nri-s('clrtlrr vt.z rrrcrr

  • E?

    ARTE UNIVERSAL E MINORI,AS:UMA NOVA GEOGRAFIA DA HISTORIA DA ARTE

    A metfora da imagem e do quadro com a qual a histria da arte,como lugar de identidade, se deixa circunscrever apropriada tam-bm para compreender problemas que hoje desempenham um papelimportante dentro dessa temtica. A chamada ate univesal no seajusta a esse quadro que foi inventado para determinada cultura, masno para todas: portanto, ela adequada apenas a uma cultura quepossuiu uma histria comum. Por outro lado, as minorias que pedema palavra no interior de uma mesma cultura no se sentem represen-tadas corretamente em sua prpria cultura, a qual no mais percebidapor elas no interior de uma histria comum. Por isso ganha importn-cia crescente nos Estados Unidos a political correctness, como grito deguerra das minorias ou daqueles que se consideram como tal. A cone-xo entre cultura e histria, assim como a compreenso da histria daarte como imagem da prpria cultura, torna-se evidente to logo es-tcja em jogo o consenso e o dissenso. Houve um tempo em que o dis-senso partia da vanguarda artstica que atacava a cultura e, com isso,issustava a burguesia cultivada. Desse ataque aos quadros originou-sea modernidade. Hoje o dissenso surge muito mais do prprio pblicoclir arte, que exige do artista o reconhecimento das reivindicaes dosrlivcrsos jrup()s c csp(rir clos historiadores que reescrevam a histria.A irnagt:rtr oficilrl tlrt trrltrrr';r lrt'rrlrtrl:r t()nra-sc cacla vcz, rncnos accita

  • quanto mais os grupos da sociedade atual no a reconhecem comosua prpria cultura.

    A assim chamada histria da arte oi sempre uma histria da arteeuropia, na qual, apesar de todas as identidades nacionais, a hege-monia da Europa permanecia incontestada. Mas essa bela imagemprovoca hoje o protesto de todos aqueles que no se consideram maisrepresentados por ela. O protesto veio primeiro dos Estados Unidos,que nesse nterim dominaram o cenrio artstico. Muito tempo sepassou desde que se podia ver no Museu de Arte Moderna de NovaYork uma "exibio de histria da arte" dividida paritariamente nassalas de exposio entre a arte europia antes de ry45 eaarte norte-americana aps 1945. Passou-se ainda mais tempo desde que AlfredH. Barr Jr. escreveu, nos anos 3o, aqueles catlogos lendrios do seumuseu, nos quais diagramas panormicos representavam a histria daarte moderna de r89o at 1935 [fig. S]. Tratava-se naturalmente deuma histria da afte europia, que detinha aqui o monoplio e quefoi descrita cronologicamente segundo o esquema das descobertas einvenes das cincias naturais.

    Desde ento no somente foi reescrita a arte norte-americana an-terior a r 945 mas surgiu como tema novo tambm a arte das minoriase sobretudo a arte das mulheres. Uma histria "desprezada" lanava aacusao de que a histria oficial da arte teria sido simplesmente "in-ventada" e reivindicavapara si a "reviso" dessa histria. Na Europa,onde a sociedade multicultural apenas comea a surgir, ainda no che-gamos to longe. Mas o feminismo j reclama aqui a sua participaonuma imagem da histri a da afte em que se quer reconhecer a prpriaidentidade. Em todo lugar onde se descobre arte feminina, a histria daarte rapidamente ampliada ou reescrita de modo a finalmente atri-buir a esse tema suficiente importncia. Nos Estados Unidos so agoratambm os interesses regionais que foram a uma reviso da histriada arte: o oeste ou noroeste americanol so esses os novos temas dasexposies de arte e j se mostra que os artistas colaboram com afinccrna inveno de tradies regionais. De resto, a clispr-rta em torno da

    "verdadeira" histria da arte deciclicla crl t

  • existncia e significao. Quanto mais e mais rpido absorve algonovo, tanto menos pode garantir a hierarquia sob a antiga existncia,questionada no somente pela abrangncia, mas tambm pela peculia-ridade de cada novidade. A proteo diante do novo consistia numaresistncia coerente, visto que s admitia o novo quando sua categoriacorrespondia antiga ordem de valores no arquivo. O mecanismode inovao constante ainda no assegura a conservao da memriacultural. A expanso do arquivo para a memria de todas as cultu-ras do mundo no pode ser isenta de conseqncias. As reaes con-trrias j so experimentadas hoje no mundo das naes: as antigascomunidades se decompem em portadoras de imagens da histriacompreendidas estreitamente e em culturas tnicas, com as quais gru-pos ou regies isolados querem identificar-se.

    Entramos aqui em questes que fazem parte de um contexto maisamplo. Numa civilizao planetra, o projeto ocidental de moder-nizao tecnolgica do mundo tornou-se uma ameaa diversidadecultural. Ele produz muito facilmente o mal-enrendido de que a mo-dernidade ocidental incluiria tambm a consagrao de uma cultu-ra mundial, tal como outrora os missionrios quiseram disseminar ocristianismo em todo o mundo. "Especfico do Ocidente a retrcado universalismo", que no conhece "nenhuma diferena entre proxi-midade e distncia", pois "incondicionada e abstrata", como expeHans Magnus Enzensbeger em seu excelente ensaio "Aussichten aufden Brgerkreg" lGuerra ciul] sobre o tema dos direitos humanosuniversais. Da perspectiva ocidental, todos os conflitos aparecemcomo "crises de adaptao. A modernizao global pensada comoum pocesso linear e inexorvel". A chamada arte universal, podemosento acrescentar, oferece nesse processo a compensao folclrica,visto que de modo algum pode proporcionar seriamente uma contra-partida ao modelo ocidental e visto que apresenta a cultura do Tercei-ro Mundo apenas na condio de um reserva.trio.

    Em seu llro Kwburgeschichte und Modernitit Lateinamerikas[Histria da cultura e da modernidade na Amrica Latina], de r992,Constantin von Barloewen chama a aten() para () clcscnvolvimen-to equivocado que, em surra, consistc no frrto rlc cltrc rrs rr:rircs s

  • sugerida nas mdias, mas que apenas uma presena miditica, pro-duz a impresso de que ns tambm estaramos de posse da arte uni-versal. Essa arte est sendo reunida nos Estados Unidos e na Europah muito tempo e tornou-se um tema da cultura ocidental, sem ser umtema das outrs culturas. Fora do mundo ocidental, o interesse pelaprpria cultura tanto maior quanto mais se tiver a impresso de tersido roubado pelos norte-americanos e pelos europeus quando se lhescedia involuntariamente, no perodo colonial, a prpria arte.

    A arte universal, que pertence a todos e a ningum, no instituinenhuma identidade, pois esta nasce apenas do sentimento de pertenci-mento e de origem comum. Quem antigamente dirigisse o olhar para aarte do mundo, azia-o a fim de encontra um outro mundo e vivenciaruma arte distante. Por isso, os chamados primitivistas estiveram muitoem voga quando predominava o desalento cultural e a histria da pr-pria arte parecia esgotada. Mas essa sada tornou-se imediatamente, eno poderia ser diferente, um evento justamente dessa histria da arte.O chamado primitivismo um componente inseparvel da histria daate ocidental, tal como confirmou, de maneira secretamente tendencio-sa, a grande exposio de William Rubin de 1984, no Museu de ArteModerna de Nova York. Mas o que vale para o primitivismo no valede modo algum paa os "primitivos", os quais buscamos precisamentefora de toda (e mais ainda da nossa prpria) histria da arte. Ns osutilizamos como contra-imagem da nossa cultura, como est no ttuloBild und Gegenbild [Imagem e contra-imagem] do livro de Karla Bilangsobre "O original na arte do sculo xx".

    O tema tnico que nisso guia o olhar tambm obstruiu esse mes-mo olhar durante muito tempo, como explanou Cifford Geertz em seulivro Die knstlicben 'Wilden [Os selvagens artificiais]. Fazia parte tam-bm da contra-imagem o princpio de f de que as culturas tribais, paramencionar apenas um exemplo, teriam vivido sem histria. A histriaque l encontrvamos assemelhava-se to pouco nossa concepo dehistria que ela era compreendida, segundo a contra-imagem, comocomponente de uma existncia mtica em que o tempo estava parali-sado. As objees so bvias, visto que a hist

  • terra" num museu de arte -

    o que completamente diferente de exibira arte universal na televiso, assim como o mundo como tal. Pode-sefacilmente falar sem refletir da global uillage [aldeia global], mas omundo parece diferente quando se obrigado a manifestar uma toma-da de posio numa exposio: a global uillage mais um fantasmado global medium [meio global].

    Pode-se perguntar seriamente onde est o continuum entre umaobra do minimalista Richard Long, Mwd Circle fCrculo de lamal, e umproduto ritualstico dos yuendumu (grupo de aborgines australianos),que podiam ser vistos lado a lado na exposio [fig. rS]. Sem dvida, oolhar poderia stisfazer-se com analogias formais que facilmente se dei-xam mistificar com antropologia histrica ou numa viso abstrata dasformas. No entanto seria preciso admitir, se se fosse sincero, que assimcomo no se pode separar Richard Long da histria da arte ocidental,tampouco se pode classificar os aborgines dentro dessa histria. Essaaporia, que alguns sadam com alegria, foi encoberta pela prtica devincular na exposio toda obra ao nome do artista, procedncia, as-sim como data, como se essas indicaes, por mais correntes e neces-srias que fossem no cenrio artstico ocidental, tivessem afinal uma im-portncia para muitos dos produtos da arte universal. Porm, no casodos aborgines, no apenas a suposta analogia mas tambm o contrastereal atraam o visitante para uma armadilha; agora eles produzem paraum mercado de arte ocidental, que sabem que aprecia a " atte de abor-gines"- porque j est saturado de seus prprios produtos.

    A par disso a arte universal produz tambm, em extenso cres-cente) o argumento transcultural, quando os artistas no-ocidentais seexprimem nas mdias e gneros artsticos ocidentais, nos quais levamadiante as tradies locais e simultaneamente tomam posio dianteda cultura ocidental por meio do dilogo, sim, mesmo comentando-acriticamente. possvel que surjam a obras e idias de obras extraor-dinrias, mas no so mrito da cultura ocidental e somente poderodesempenhar um papel nela se a arte ocidental estiver em condiesde reagir criativamente. Contudo, o clich do "outro" antes de tudoum impedimento para tomar conhecimento do outro. Assim EleonorHeartney, que em r989 crncr.rtrvi cxp()sio rlc l)rrris no nmero dcjrrlh

  • um mal-entendido didtico, causam a impresso, de uma perspectivaocidental, de serem nacionalistas. Mas enquanto a cultura ocidentalcultiva as suas idias, ao mesmo tempo desmorona no seu interioruma velha unidade cultural que ainda era sustentada pela sua convic-o numa camada unitria de cultura. H muito tempo, a antiga cul-tura burguesa da modernidade no representa os interesses de gruposparticulares no interior da sociedade.

    A bistria da arte foi durante longo tempo exatamente a magemdesejada na qual eram contempladas a prpria cultura e suas vitriaspassadas. O protesto contra essa imagem, que, como vimos, parriu dasfeministas, foi apresentado muito tempo antes, como veremos, pelosprprios artists. Minorias de diferentes procedncias utilizam o espa-o livre recentemente surgido, no qual o "cnone" perdeu validade, e

    "inventam" a sua prpria histria da arte, na qual os artistas podem en-contrar-se com um pblico animado pelos mesmos sentimenros. Ondenenhuma minoria consegue articular-se existem temas atuais que pro-duzem consenso e justificam a produo rtstica. Chega-se a um enten-dimento sobre os temas, mas no sobre a forma da arte.

    O mundo hoje uma dispora, como afirma o comovente FirstDiasporis Manifesto, de :'989, do artista judeu Ronald B. Kitaj, nascidonos Estados Unidos de uma famIia de imigrantes e atualmente vivendosobretudo na Inglaterra. Uma dispora segundo a qual se vive sempreno estrangeio e se tem de procurar para si uma identidade, pois no sepossui uma e tambm no se adquire uma no cenrio artstico global,embora a se possa, em todo caso, assimilar uma identidade. Comose sabe, entre os antigos judeus a proibio da imagem no era tosevera na dispora, de tal modo que somente ali podia nascer uma artejudaica. Pelo menos at a fundao do Estado de Tel-Aviv quase rodosos judeus viveriam em dispora, onde encontraram em sua arte ummedium para a identidade, a qual estava sempre ligada religio. Hojea dispora no mais um destino judeu, como Kitaj nos assegura, masvale para todos que "no se sentem em casa" e querem, por isso, filiar-se a um grupo com convices comuns. A "arte da dispora", com cujoconceito Kitaj brinca irnica e melancolicrn1cntc, . : c()rtrapartida daassim chamada arte univcrsal (' usrrrpr cxitrr('n1(. rrtltrt,lrr corrscir.rciitdc iclcnticl:rclc clttc cluritrttc tttuilo l('rl)() ('slirv; ,rssor'i:rrl;r ltstitritt da/r/(' ()( i(l('ntrll.

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    9 NO ESPELHO DA CULTURA DE MASSAS:A REBELIO DA ARTE CONTRA A HISTORIA DA ARTE

    () destino da modernidade do ps-guerra delineia-se j na famosa frorr-tcira entre "atte e vida", onde se efetua uma meia-volta em rela