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HISTÓRIA, GENEALOGIA E RIZOMA Antonio Paulo Benatte INTRODUÇÃO Agradeço o convite para falar das relações entre história, genealogia e rizoma. É um desafio e um privilégio discutir esses temas com vocês. A fala é dividida em três partes. A primeira aborda o procedimento genealógico nietzscheano, a partir de uma leitura de Foucault; a segunda trata da lógica rizomática, teorizada no primeiro “capítulo” de Mil Platôs, a suma de Deleuze e Guattari; a terceira parte coloca algumas implicações do procedimento genealógico-rizomático para a tribo dos historiadores, que é o lugar de onde falo. Por trata-se de uma colagem de vários textos, peço a indulgência de vocês para que eu possa lê-la. DA GENEALOGIA COMO DERMATOLOGIA GERAL A genealogia nietzscheana, por meio de um uso crítico e nominalista da história, buscou solapar os fundamentos dos diversos essencialismos que constituem a tradição filosófica do ocidente. No primeiro parágrafo de Humano, Demasiado Humano, Nietzsche contrapõe uma efetiva filosofia histórica a um pensamento metafísico que admitia, “para as coisas de um valor elevado, uma origem miraculosa no núcleo e na essência da “coisa em si”. 1 A noção de essência pressupõe uma duração sem mudança, em oposição à aparência, imersa na torrente do devir. Mais que negar a dualidade essência/aparência, Nietzsche afirma o aparente como o único mundo “real”. A aparência é, para o perspectivismo nietzscheano, “a verdadeira e única realidade das coisas”: trata-se de pôr fim à oposição entre “a aparência” e “a realidade”; a “aparência”, para Nietzsche, é a “realidade”’. 2 No Crepúsculo dos ídolos, ainda mais radicalmente, Nietzsche nega a realidade da própria aparência: “Eliminamos o mundo verdadeiro: o que restou?, Talvez o 1 NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano 2 BARONI, C. Conhecer Nietzsche e o que ele realmente disse. Lisboa: Ática, 1977, p. 77.

BENATTE, AP - Historia genealogia e rizoma

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  • HISTRIA, GENEALOGIA E RIZOMA

    Antonio Paulo Benatte

    INTRODUO

    Agradeo o convite para falar das relaes entre histria, genealogia e rizoma. um desafio e um privilgio discutir esses temas com vocs. A fala dividida em trs partes. A primeira aborda o procedimento genealgico nietzscheano, a partir de uma leitura de Foucault; a segunda trata da lgica rizomtica, teorizada no primeiro captulo de Mil Plats, a suma de Deleuze e Guattari; a terceira parte coloca algumas implicaes do procedimento genealgico-rizomtico para a tribo dos historiadores, que o lugar de onde falo. Por trata-se de uma colagem de vrios textos, peo a indulgncia de vocs para que eu possa l-la. DA GENEALOGIA COMO DERMATOLOGIA GERAL

    A genealogia nietzscheana, por meio de um uso crtico e nominalista da histria, buscou solapar os fundamentos dos diversos essencialismos que constituem a tradio filosfica do ocidente.

    No primeiro pargrafo de Humano, Demasiado Humano, Nietzsche

    contrape uma efetiva filosofia histrica a um pensamento metafsico que admitia, para as coisas de um valor elevado, uma origem miraculosa no ncleo e na essncia da coisa em si.1 A noo de essncia pressupe uma durao sem mudana, em oposio aparncia, imersa na torrente do devir. Mais que negar a dualidade essncia/aparncia, Nietzsche afirma o aparente como o nico mundo real. A aparncia , para o perspectivismo nietzscheano, a verdadeira e nica realidade das coisas: trata-se de pr fim oposio entre a aparncia e a realidade; a aparncia, para Nietzsche, a realidade.2 No Crepsculo dos dolos, ainda mais radicalmente, Nietzsche nega a realidade da prpria aparncia: Eliminamos o mundo verdadeiro: o que restou?, Talvez o

    1 NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano 2 BARONI, C. Conhecer Nietzsche e o que ele realmente disse. Lisboa: tica, 1977, p. 77.

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    aparente?... No!, ao eliminarmos o mundo verdadeiro eliminamos tambm o aparente! . 3

    Negar a oposio essncia/aparncia implica afirmar que todas as coisas

    so visveis; que elas esto na superfcie e que no h um sentido latente, mistrio no-revelado ou verdade sem data que a anlise trataria de desvelar, fazer aparecer em sua pureza e integridade virginais. Como bom discpulo de Herclito, Nietzsche condenava o que para ele no passava de iluso: a realidade do ser e sua primazia sobre o devir. Pode-se dizer, grosso modo, que Nietzsche tomou o partido de Herclito contra Parmnides, afirmando a pluralidade, o movimento e a mudana contra a unidade, a substncia e a imutabilidade. O maior inimigo do genealogista talvez seja Parmnides, antes mesmo de Plato. No pensamento de Parmnides, a mudana e o movimento so iluses: O devir no passa de uma aparncia. So nossos sentidos que nos levam a crer no fluxo incessante dos fenmenos. O que real o Ser nico, imvel, imutvel, eterno e oculto sob o vu das aparncias mltiplas. 4

    Nietzsche inverte completamente a questo: os sentidos no mentem: a

    prpria razo a responsvel pelas iluses. A essncia uma iluso racional! No Crepsculo dos dolos, numa passagem em que presta reverncia ao nome de Herclito, Nietzsche o diz claramente: A razo a causa de ns falsearmos o testemunho dos sentidos. Mostrando o devir, o perecer, a mudana, os sentidos no mentem... Porm Herclito ter eternamente razo ao dizer que o ser uma fico vazia. O mundo aparente o nico: o mundo verdadeiro no mais do que um acrscimo mentiroso... 5

    A afirmao da aparncia faz a verdade residir na superfcie das coisas ditas, no nas profundezas do referente. Esse giro torna possvel uma histria da verdade, ou melhor, dos erros a que os homens historicamente chamaram a verdade. Uma histria da verdade possvel porque o prprio conhecimento tomado como inveno contingente e arbitrria, acontecimento histrico sem qualquer necessidade e que nem mesmo est inscrito na natureza humana como faculdade essencial. A verdade um produto da linguagem, ou, mais exatamente, do poder de nomear. A verdade uma inveno histrica tornada

    3 NIETZSCHE, F. Crepsculo dos dolos. Lisboa: Guimares, 1985, p. 44. 4 JAPIASSU, H. & MARCONDES, D. Dicionrio bsico de filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 1990, p. 90. 5 NIETZSCHE, Crepsculo dos dolos, op. cit., pp. 36-37.

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    monumento. Num texto em que expe sua teoria do conhecimento, Nietzsche esclarece sua concepo de verdade. A verdade definida como

    Um batalho mvel de metforas, metonmias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relaes humanas, que foram enfatizadas potica e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, aps longo uso, parecem a um povo slidas, cannicas e obrigatrias: as verdades so iluses, das quais se esqueceu que o so, metforas que se tornaram gastas e sem fora sensvel, moedas que perderam sua efgie e agora s entram em considerao como metal, no mais como moedas.6

    O conceito e, por extenso, a verdade terica (todo tipo de verdade) forosamente uma generalizao, quer dizer, um esquecimento necessrio das diferenas entre as coisas. O filsofo bastante didtico. O conceito de folha, por exemplo: no existe na natureza a folha, algo como uma essncia, matriz ou arqutipo de todas as folhas; na natureza existem to somente folhas, uma pluralidade, uma multiplicidade de folhas diferentes entre si, no-identitrias e no-iguais. A base do conceito, a base da prpria lgica, nasce de um erro original: atribuir ao que apenas semelhante a categoria (ideal) da igualdade.

    Todo conceito diz Nietzsche nasce por igualao do no-igual.

    Assim como certo que nunca uma folha inteiramente igual a uma outra, certo que o conceito de folha formado por arbitrrio abandono dessas diferenas individuais, por um esquecer-se do que distintivo, e desperta ento a representao, como se na natureza alm das folhas houvesse algo, que fosse folha, uma espcie de folha primordial, segundo a qual todas as folhas fossem tecidas, desenhadas, recortadas, coloridas, frisadas, pintadas, mas por mos inbeis, de tal modo que nenhum exemplar tivesse sado correto e fidedigno como cpia fiel da forma primordial.7

    Trata-se de uma crtica teoria platnica do conhecimento, fundada na

    oposio entre o mundo sensvel (aparncia) e o mundo inteligvel (essncia).

    6 NIETZSCHE, F. Sobre verdade e mentira no sentido extramoral, In Obras Incompletas. So Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 48. 7 Idem, ibidem.

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    Mas trata-se, tambm, de uma afirmao do primado da multiplicidade ou, o que d no mesmo, da primazia da diferena sobre a identidade.

    A multiplicidade, em Nietzsche, constitui no apenas os objetos, mas os

    prprios sujeitos. Nesse sentido, tambm o indivduo no passa de uma construo vazia. Nietzsche nega a unidade do sujeito: ns somos uma multiplicidade que construiu uma unidade imaginria.8 Como Dostoievski, Nietzsche no acreditava na unidade do homem ou na unidade de um eu. Torna-se possvel uma histria do sujeito e do prprio sujeito de conhecimento.

    A verdade nasceu do erro. A mesma idia retomada nA Gaia Cincia: a

    lgica nasceu de um impulso ilgico, do ato de estabelecer igualdades, de tomar por igual o que semelhante. (...) um impulso predominante que leva a tratar as coisas semelhantes como iguais, de sada, um impulso ilgico, pois em si nada existe de igual, e que criou toda a base da lgica. 9

    Esse erro, reforado pela negao do devir, fundamenta a formao do

    conceito de substncia, indispensvel lgica e metafsica, e a que nada corresponde de real: ... foi preciso que por muito tempo o mutvel das coisas no tenha sido visto ou sentido, para se chegar a um conceito como o de substncia.10

    Como mostra Foucault, a crtica do dualismo essncia/aparncia, ou

    ser/devir, acarreta a recusa da busca da origem. Pergunta Foucault: Por que Nietzsche genealogista recusa, pelo menos em certas ocasies, a pesquisa da origem (...)? Para imediatamente responder:

    Porque, primeiramente, a pesquisa, nesse sentido, se esfora para recolher nela a essncia exata da coisa, sua mais pura possibilidade, sua identidade cuidadosamente recolhida em si mesma, sua forma imvel e anterior a tudo o que externo, acidental, sucessivo. Procurar uma tal origem tentar reencontrar o que era imediatamente, o aquilo mesmo de uma imagem exatamente adequada a si; tomar por acidental todas as peripcias que puderam ter acontecido, todas as astcias, todos os disfarces;

    8 Apud BARONI, op. cit., p. 69. 9 NIETZSCHE, F. A Gaia Cincia. So Paulo: Hemus, 1976, p. 125. 10 Idem, ibidem.

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    querer tirar todas as mscaras para desvelar enfim uma identidade primeira.11

    Desvelar, tirar os vus, buscar o imediato no seno colar uma nova

    mscara sobre todas as outras, na iluso de contemplar um rosto nu. O procedimento genealgico, diferentemente, abandona esse objetivo (idealista, mesmo em suas verses materialistas e dialticas) e coloca-se como tarefa interpretar as interpretaes, decifrar a escritura hieroglfica da humanidade sem pressupor a existncia da coisa em si, desde a origem vazia de substncia real. Em Nietzsche, interpretar sempre um ato de fora, uma dobra de significaes anteriores; interpretar impor sentido (inventar sentido), e no revelar um sentido primeiro, universal e eterno.

    A histria genealgica uma crueldade tornada mtodo rigoroso. Ela

    mostra a pudenda origo de todas as coisas excelsas. Pudenda origo quer dizer que as origens so baixas, vergonhosas, mesquinhas. Inconfessveis. L onde se buscava a origem dos valores morais atribuindo-lhes qualidades da divindade, tornando-os bens sagrados e transcendentes (o bem em si, o belo em si, o justo em si), a genealogia escava os subterrneos e revela que esses valores so demasiadamente humanos. Nasceram das relaes sociais e polticas entre os homens, das violncias, das lutas, das estratgias de dominao e controle cujo palco ocupa toda a histria. O livre-arbtrio do indivduo? Origem baixa, baixssima. O livre-arbtrio no passa de uma artimanha de telogos (...) destinada a fazer responsvel a humanidade no sentido dos telogos, quer dizer, torn-la dependente deles... (...) a doutrina da vontade foi inventada essencialmente com a finalidade de castigar, ou seja, de querer-encontrar-culpados.12

    Exaltar as origens prprio de um exagero metafsico que uma filosofia

    histrica procura destruir pela raiz. Esse exagero embala, segundo Nietzsche, a prpria concepo histrica dominante do sculo XIX, especialmente sob suas formas antiquria e monumental, mas tambm sob sua forma crtica. O terceiro aforismo dO Viajante e sua sombra questiona uma certa concepo de histria que no tardamos a reconhecer na nossa tradio humanista-historicista: Exaltar as origens o exagero metafsico que renasce sempre na concepo da

    11 FOUCAULT, M. Nietzsche, a genealogia e a histria, In Microfsica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1982, p. 17. 12 NIETZSCHE, F. Crepsculo dos dolos, op. cit., p. 62.

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    histria e faz pensar absolutamente que no princpio de todas as coisas onde se encontra o que tm elas de mais precioso e essencial.13 A origem representada como solene, pomposa, grave. Ela remete ao transcendente (Deus ou, na falta deste, a Razo).

    Mas o genealogista zombeteiro. Ele ri da solenidade dos rituais, ele aponta que o rei est nu e que todas as verdades so, datadas, contingentes, historicamente fabricadas. Como interpreta Foucault:

    Ora, se o genealogista tem o cuidado de escutar a histria em vez de acreditar na metafsica, o que que ele aprende? Que atrs das coisas h algo inteiramente diferente: no seu segredo essencial e sem data, mas o segredo de que elas so sem essncia, ou que sua essncia foi construda pea por pea a partir de figuras que lhe eram estranhas.14

    O genealogista mostra que todas as verdades e todos os valores foram forjados num terreno poltico e social; que todas as verdades e valores so imanentes e, num campo de relaes de poder, foram travestidos de uma necessidade metafsico-transcendental. A verdade uma mentira gregria, imposta violentamente pela fora e tornada irrefutvel pelo longo cozimento da histria. Uma histria genealgica da cincia e dos cientistas, em suas lutas ferrenhas e intestinas, mostrar uma formao do discurso cientfico a partir de figuras estranhas prpria cincia. Pudenda origo. A rvore genealgica dos cientistas mostra que so filhos do escrivo e do advogado, ou do pastor protestante, etc., segundo os tipos ideais Esse procedimento, claro, torna possvel uma genealogia do prprio saber histrico. A histria genealgica pode, assim, tornar-se metahistria. Ao voltar contra si prpria o ferro da cincia, a histria sacrifica o sujeito e desnaturaliza o objeto. Historicizando sua prpria vontade de saber e de poder, a histria pode, desdobrada, assumir enfim um perspectivismo radical.

    As referncias de Nietzsche histria operam sempre no sentido da

    desestruturao de categorias ideais, da desnaturalizao do dado e da negao do prprio dado. Nada, no mundo humano, eterno ou dado de uma vez por 13 NIETZSCHE, F. El viajero y su sombra. Mxico: Ed. Mexicanos Unidos, 1974, p. 8. 14 FOUCAULT, M., op. cit., pp. 17-18

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    todas: tudo constructo, poiesis, inveno humana. NA Gaia Cincia, o filsofo aponta a timidez e a miopia das pesquisas histricas do sculo XIX, to orgulhoso de ser o sculo do devir. interessante notar, como o faz Escobar, que Nietzsche aponta, ainda em 1882, para materiais hoje (e ontem) equivocadamente substancializados, tais como os sentidos, instintos, corpo, amor, desejo, etc...15

    Sabe-se que a incorporao desses novos objeto ampliou e mudou

    radicalmente a historiografia contempornea, em especial na Frana, com a chamada Escola dos Annales. Assim como Nietzsche criticara a falta de sentido histrico dos filsofos, os Annales condenaram o anacronismo dos historiadores tradicionais. O anacronismo um erro resultante da falta de sentido histrico dos prprios historiadores, que so metafsicos a seu modo. Acreditar que as palavras, ao longo do tempo, designaram ou significaram algo essencialmente idntico a si mesmo (uma coisa-em-si) fruto da semntica idealista dos historiadores, por vezes travestida de realismo, materialismo e cientifismo.

    A genealogia uma faca s lmina: ela secciona os blocos (aparentemente

    nmonolticos e homognos) de tempo; ela faz emergir as descontinuidades por sob as pseudo-continuidades dos discursos essencialistas. O historiador-genealogista sempre dir: naturalmente e, portanto, ingenuamente... Ele no partir dos objetos naturalizados (essencializados), nem dos sujeitos, mas das prticas (sociais, culturais, polticas) que os constituem historicamente.

    A genealogia no se ope histria tout court, mas faz um determinado

    uso da erudio para se contrapor criticamente pesquisa da origem, vista por Nietzsche como um procedimento idealista, teleolgico e estabilizador. A genealogia opera contra um essencialismo filosfico de fundo, triunfante no Ocidente desde Scrates e Plato. A histria instrumentalizada para conjurar e desconstruir as concepes metafsicas, essas teias de aranha da razo.

    Dreifuss e Rabinow sobre a atitude de conhecimento do genealogista: O

    genealogista no pretende descobrir entidades substanciais (sujeitos, virtudes, foras) nem revelar suas relaes com outras entidades deste tipo. Ele estuda o surgimento de um campo de batalha que define e esclarece um espao. Os sujeitos no preexistem para, em seguida, entrarem em combate ou em harmonia. Na genealogia, os sujeitos emergem num campo de batalha e 15 ESCOBAR, C. H. A genealogia ou os leninismos na materializao de uma poltica nietzschiana, p. 35

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    somente a que desempenham seus papis. O mundo no um jogo que apenas mascara uma realidade mais verdadeira existente por trs das cenas. Ele tal qual aparece. Esta a profundidade da viso genealgica. [Michel Foucault: uma trajetria filosfica, p. 122]

    A NOO DE RIZOMA

    Ora, essa profundidade da viso genealgica uma constante em Deleuze.

    Em agenciamento transcriador com o pensamento de Nietzsche, Deleuze, contra a profundidade enfatiza a superfcie do mundo, da vida e do pensamento. Trata-se de uma filosofia da imanncia que elimina toda transcendncia: o pensamento no transcende o mundo e a vida; ele substancialmente idntico ao mundo a vida. H uma inverso ou uma perverso do platonismo: nesse sentido, contra a profundidade, que Deleuze gosta de citar uma frase de Valry: o mais profundo a pele. A filosofia deleuzeana uma espcie de dermatologia geral.

    Essa dermatologia sistemtica, movida por um desejo de formar sistema. Um sistema um conjunto de conceitos. Mas tem-se uma idia diferente do conceito, do sistema e das relaes entre eles. Ocorre que, como diz um conto de Borges, um sistema no seno a subordinao de todos os aspectos do universo a qualquer um deles.16 Um sistema aberto prescinde dessa subordinao hierrquica: ele descentrado ou constitudo por vrios centros conectados a partir de mltiplos vasos comunicantes.

    Em outras palavras, Deleuze no renega a idia de formar sistema: o rizoma repudia apenas as causalidades lineares e a noo de tempo como sucesso cronolgica de acontecimentos. Diga-se de passagem que, evidentemente, esse repdio traz conseqncias importantes para o modo como os historiadores pensamos e fazemos a histria. Diz Deleuze: Na verdade, os sistemas no perderam rigorosamente nada de suas foras vivas. H hoje, nas cincias ou em lgica, todo o princpio de uma teoria dos sistemas ditos abertos, fundado sobre as interaes, e que repudiam somente as causalidades lineares e transformam a noo de tempo.17 E exemplifica o rizoma como um caso de sistema aberto: O que [...] chamamos de rizoma precisamente um caso de sistema aberto. [...] Um sistema um conjunto de conceitos. Um sistema

    16 Borges, Thn, Ugbar, Orbis Tertius, p. 26. 17 Deleuze, Conversaes, p. 45.

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    aberto quando os conceitos so relacionados a circunstncias, e no mais a essncias. 18

    No primeiro captulo de Mil Plats: Deleuze e Guattari desterritorializam o termo para designar, simultaneamente, uma nova lgica e uma nova imagem do pensamento. Em seu modo de proliferao, um sistema rizomtico contrape-se a um sistema arborescente: os diagramas arborescentes procedem por hierarquias sucessivas, a partir de um ponto central em relao ao qual remonta cada elemento local. Os sistemas em rizoma ou em trelia, ao contrrio, podem derivar infinitamente, estabelecer conexes transversais sem que se possa centr-los ou cerc-los. 19 A noo de rizoma remete imagem de um pensamento nmade de matiz nietzscheano. O rizoma a lgica mesma de um pensamento nmade. Lgica, e no modelo. Imagem de pensamento, e no mtodo.

    Esse princpio do sistema aberto, que opera por conexes mltiplas como

    numa interseco de anis quebrados, construtivista, ele maquina uma estrutura longe do equilbrio. A disposio em rizoma dos acontecimentos no visam compor sistemas fechados, mas sistemas abertos: como um conjunto de anis quebrados. Eles podem penetrar uns nos outros. 20 O rizoma parte dos princpios de conexo e de heterogeneidade: qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve s-lo. 21

    No existe outro mtodo seno a criao, a inveno. Michel Serres o diz muito claramente: A inveno o ato intelectual verdadeiro, a nica ao inteligente. [...]. S a inveno prova que se pensa de verdade a coisa que se pensa, seja qual for esta coisa. 22 A lgica rizomtica inscreve-se nessa perspectiva criadora do pensamento. Acontece que criar pegar uma onda, surfar nas correntes de criao coletiva. No se parte de um eu demirgico e substancial, mas do agenciar uma rede de processos criativos exteriores. Um agenciamento com o de fora, com a exterioridade. Por essncia, a criao sempre dissidente, transindividual, transcultural23 E transhistrica.

    A lgica rizomtica implica uma disponibilidade para encontrar coisas concretas nas artes, nas cincias, nas filosofias; implica um agenciamento

    18 Deleuze, Conversaes, p. 45. Idem, ibidem. 19[Guattari & Rolnik, Micropoltica: Cartografias do desejo, p. 322.

    20 Deleuze, Conversaes, p. 37. 21 Deleuze e Guattari, Mil Plats, 1, p. 15. 22 Serres, Filosofia mestia, pp. 108-109. 23 Guattari & Rolnik, Micropoltica: cartografias do desejo, p. 36.

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    daquilo que imtempestivo no pensamento e que faz funcionar uma mquina de escrita nomdica e no-pessoal, um certo gro de loucura, uma certa anarquia deliberada, mas extremamente rigorosa. O rizoma transforma a imagem que se faz do pensamento. Pensar rizomorficamente arrancar as rvores que trazemos plantadas no crebro, por exemplo, a milenar rvore de Porfrio, que procede por dicotomia da substncia at o homem; tornar-se rizocfalo, quer dizer, fazer proliferar uma cultura capim no crebro. A grama cresce pelo meio. Fazemos rizoma quando uma criao se alimenta sem preconceito de fontes as mais heterogneas. Um rizoma um crazy patchwork, uma colcha de retalhos louca. Por certo ela pressupe uma totalizao de fragmentos heterogneos, mas no sob a forma de uma totalidade fechada, substancial e acabada. Em todos os campos da criao esttica e cientfica, impuseram-se modelos em ruptura com as hierarquias opressivas modelos no arborescentes, rizomticos, transversalistas. 24 Um rizoma pe em funcionamento uma mquina de pensar e de escrever, constituda por sries de relaes mltiplas entre os heterogneos. Trata-se de criar em ressonncia com modelos de pensamento contemporneos filosofias, das artes e das cincias, sem sonhos totalizantes e delrios unificadores.

    O pensamento cria conceitos. Mas os conceitos podem ser maquinados de duas formas: Por muito tempo [os conceitos] foram usados para determinar o que uma coisa (essncia). Ns, ao contrrio, nos interessamos pelas circunstncias de uma coisa: em que casos, onde e quando, como, etc.? Para ns o conceito deve dizer o acontecimento, e no mais a essncia. 25 O acontecimento um fenmeno de superfcie.

    O livro-rvore essencialista e opera por dicotomia, a lgica da

    bifurcao: o um que se torna dois. Contra esse dualismo, o livro-mquina de guerra, fabricado por rizoma, opera sobre um monismo de fundo, ou seja, sobre uma ontologia que afirma a unidade ou a univocidade do ser na multiplicidade de seus atributos e manifestaes. Lgica de um pensamento sem fundamentos, sem razes e arborescncias, nmade, rebelde em relao nossa mentalidade gregria, um pensamento heraclitiano que considere a mudana e o devir como a substncia de todas as coisas.

    PENSAR E ESCREVER A HISTRIA 24 Guattari & Rolnik, p. 196. 25 Deleuze, Conversaes, p. 37.

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    Filosofia e histria. A obra de Deleuze percorre a contracorrente o

    movimento dominante da filosofia ocidental. uma filosofia liberadora da vida e do pensamento l onde eles se encontram aprisionados. Certamente, uma filosofia que se prope a exigncia de pensar o mundo e a vida sob a lgica da mudana, do devir, tem muito a dizer histria. O projeto deleuzeano de uma nova reforma do entendimento na demanda de novas formas de vida e de pensamento pode ser utilizado pelos historiadores para pensar e construir a histria de um modo diferente e oxal mais intempestivo.

    Filosofia e histria. Por outro lado, se a histria pode criar conceitos (e

    ela efetivamente os cria desde que exista um problema), o simulacro do historiador o pensador histrico. Se, como criticava Nietzsche, a falta de sentido histrico o erro hereditrio ou o pecado original de todos os filsofos, o pensador histrico, em agenciamento com um campo filosfico, pode ser roubado produtivamente pela filosofia. Ocorreria ento um fenmeno de dupla captura: devir-filsofo do historiador, devir-historiador do filsofo, em meio a virtualmente todos os devires do mundo. A isso se pode chamar propriamente um encontro. E por a, segundo Deleuze, que as coisas passam ou no passam.

    Filosofia e histria. O historiador criador de conceitos. Se o exerccio

    do pensamento no um privilgio da filosofia, o historiador tambm ele um criador de conceitos. A histria pode fazer rizoma, conexes, agenciamentos com o projeto filosfico deleuzeano, roub-lo.

    A prtica do historiador, seu processo de produo da histria, os materiais

    e os procedimentos, podem alimentar-se de uma nova imagem e de um novo exerccio do pensamento histrico.

    Histria e devir. Mas como pensar e fazer, sem caricatura ou modismo,

    uma histria rizomtica? preciso levar em conta, inicialmente, as atitudes de Deleuze e Guattari frente histria. A uma observao de Eribon, de que os esses pensadores no atribuem um lugar determinante histria. Preferem considerar-se gegrafos, privilegiam o espao, e dizem que preciso traar uma cartografia dos devires, Deleuze responde que A histria certamente muito importante. Mas quando voc toma qualquer linha de pesquisa, ela histrica numa parte de seu percurso, em certos lugares, mas tambm a-histrica, trans-

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    histrica... Em Mille Plateaux, os devires tem muito mais importncia que a histria. No absolutamente a mesma coisa. 26 Deleuze constantemente afirma a diferena entre a histria e o devir dos homens: no acredita, por exemplo, no futuro histrico da revoluo, mas acredita no devir revolucionrio das pessoas, o que totalmente diferente.

    Histria e devir. A diferena entre histria e devir implica um novo

    estatuto para o acontecimento, uma questo importante numa filosofia que se afirma como uma filosofia do acontecimento. Como lgica das multiplicidades, o rizoma implica um novo estatuto do acontecimento e uma nova concepo do tempo: Os verbos no infinitivo designam devires ou acontecimentos que ultrapassam os modos e os tempos. 27 A disposio em rizoma uma composio em diversos modos e tempos, diferente da cronologia linear e progressiva. H que se levar em conta tambm a idia que os historiadores fazemos do acontecimento, e a diferena conceitual possvel entre fato, episdio, evento e acontecimento.

    O acontecimento de Deleuze no o acontecimento dos historiadores, pois o acontecimento precisamente o extemporneo, o retorno da diferena, o que no est na histria e que ainda no tem histria, o ser mesmo do devir.

    Colagem na pintura: patchwork, um procedimento construtivista: um

    agenciamento de acontecimentos e processos heterogneos, sua colagem num rizoma temporal, a partir de um sujeito que ele prprio devir imanente a um campo de acontecimentos.

    A histria uma montagem, fundada sempre sob uma perspectiva: o

    rizoma como imagem do pensamento uma radicalizao desse perspectivismo. Como toda construo, como toda feitura, ela pressupe uma seleo de materiais. Esses materiais so os mais heterogneos possveis, dispostos como um arranjo serial de acontecimentos. Um rizoma temporal uma histria serial sem matemtica.

    No existe diferena entre pensar e escrever a histria. Ora, a histria,

    desde Herdoto e Tucdides, uma forma de escritura, por certo singular e dotada ela prpria de historicidade, mas ainda assim, e por princpio, uma 26 Deleuze, Conversaes, p. 43. 27 Deleuze, Conversaes, p. 48.

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    escritura. A escritura o efeito de uma prtica, o grafo complexo de uma prtica: a prtica de escrever.28 O pensamento histrico e tambm uma historiografia. O historiador um sigrapheus, aquele que coloca por escrito junto, que pratica uma escritura. Pensador histrico, o historiador antes de tudo um escritor.

    O que seria escrever rizomaticamente a histria? O que escrever? O que

    os escritores fazem quando escrevem? Trata-se realmente de escrever? Que mirades de fluxos (econmicos, polticos, ticos, estticos, erticos, discursivos) cruzam as linhas traadas por um texto? A histria rizomtica implica uma nova subjetividade historiadora: historiador no se compraz mais imagem do frio doutor das distncias, ou imagem do sujeito-narrador do sculo 19; ele pode, por exemplo, introduzir procedimentos literrios experimentais em historiografia. Esses experimentalismos colocam em cheque a noo tradicional da causalidade histrica como sucesso cronolgica de causa e efeito.

    Para Deleuze, escrever devir: a literatura (a chamada grande literatura) uma questo de devir. Elogiando a superioridade dos escritores anglo-americanos (Thomas Hardy, Melville, Stevenson, Virginia Woolf, Thomas Wolfe, Lawrence, Fitzgerald, Henry Miller, Krouac...), Deleuze concebe a literatura como um fluxo entre outros: Escrever um fluxo entre outros, sem nenhum privilgio em relao aos demais, e que entra em relao de corrente, contra-corrente, de redemoinho com outros fluxos, fluxos de merda, de esperma, de fala, de ao, de erotismo, de dinheiro, de poltica, etc. 29

    Como disse Virginia Woolf, o problema da escritura que, para o escritor,

    no se trata de escrever. Trata-se de outra coisa. Em termos deleuzianos (ou, antes, nietzscheanos), essa outra coisa muito prosaicamente a vida. O estilo de um escritor antes uma questo de vida que de forma e/ou contedo. A filosofia deleuziana e especialmente seus conceitos de agenciamento e de devir pode nos fornecer categorias para pensar a relao complexa da escritura com a vida.

    Um agenciamento, o que isso? Em Deleuze e Guattari, a noo de

    agenciamento mais ampla do que as de estrutura, sistema, forma, etc: Um

    28 Barthes, Aula, p. 10. 29 Deleuze, Conversaes, p. 17.

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    agenciamento comporta componentes heterogneos, tanto de ordem biolgica, quanto social, maqunica, gnosiolgica, imaginria. 30

    O conceito de devir remete economia do desejo: Os fluxos de desejo

    procedem por afetos e devires, independentemente do fato de que possam ser ou no calcados sobre pessoas, sobre imagens, sobre identificaes. Assim, um indivduo, etiquetado antropologicamente como masculino, pode ser atravessado por devires mltiplos e, aparentemente, contraditrios: devir feminino que coexiste com um devir criana, um devir animal, um devir invisvel, etc. 31 (Idem, p. 318). A prtica literria inseparvel desses devires, todos os devires do mundo. Ela no uma enunciao discursiva autnoma, mas o produto de um agenciamento coletivo de enunciao.

    A escritura um fluxo que pode virtualmente conjugar-se a qualquer outro

    fluxo; de fato, ela est em relao com os fluxos do capitalismo, com todos os aparelhos do saber-poder burgus que bloqueiam e capturam as linhas de fuga, reterritorializando-as (no caso da escritura, domesticando-a, academizando-a sob a forma rgida do cnone e do autor). Escrever biolgico e poltico. Tem a ver com a resistncia, com a criao de possibilidades de vida, com a construo de um espao possvel de liberdade. Escrever traar uma linha de fuga dentro da linguagem, uma linha que aponta para o fora da linguagem.

    Nada a ver com a ideologia, conceito ruim, pois uma sociedade no se

    define por suas contradies, mas por suas linhas de fuga. A literatura uma dessas linhas, e das mais potentes. A literatura como agenciamento maqunico de enunciao: A literatura um agenciamento, ela nada tem a ver com ideologia, e, de resto, no existe nem nunca existiu ideologia.32 Esses agenciamentos so coletivos e constituem toda e qualquer multiplicidade social.

    A literatura como mquina de guerra est do lado dos devires minoritrios.

    O escritor uma minoria em agenciamento com outras minorias. E logo se v que essas minorias no so necessariamente minorias numricas. A literatura faz rizoma com os devires minoritrios da lngua, fugindo das lnguas dominantes. O exemplo de Kafka: Uma lngua dominante (uma lngua que opera num espao nacional) pode ser localmente capturada num devir minoritrio. Ela ser

    30 Guattari & Rolnik, p. 317. 31 Guattari & Rolnik, p. 318. 32 Mil Plats, v. 1, p. 12.

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    qualificada de devir menor. Exemplo: o dialeto alemo de Praga utilizado por Kafka. (Idem, ibidem).

    A subjetividade do escritor um devir-minoritrio que nada tem a ver com

    a escritura: Por que se escreve? que no se trata de escritura. [...] Escrever no tem outra funo: ser um fluxo que se conjuga com outros fluxos todos os devires-minoritrios do mundo.33 Entenda-se por subjetividade o processo vital, existencial, histrico, tico, poltico, etc., que faz de ns aquilo que somos. Mas aquilo que somos no nunca um dado, um comeo ou um fim: um processo, ou mais exatamente, o efeito histrico de uma srie de processos que se estendem no tempo. Em outras palavras, a subjetividade no uma essncia, real ou virtual; ela um devir; ou, mais exatamente, aquilo que fazemos do nosso devir. Assim, o devir-escritor nada tem a ver com o devir-autor. A figura do autor, como mostrou Foucault, uma inveno histrica recente, um dispositivo de controle prprio de uma nova ordem do discurso. (FOUCAULT, 1992, passim).

    possvel que escrever esteja em uma relao essencial com as linhas de

    fuga. Escrever traar linhas de fuga... 34 A escritura, quando imanente a uma mquina de guerra, um fluxo que escapa da ordem do discurso e que pode, nessa linha de fuga, conjugar-se a qualquer outro fluxo. De fato, a literatura est em relao real ou potencial com todos os fluxos coletivos que atravessam e constituem uma sociedade. Ela foge ativamente dos aparelhos de saber-poder que bloqueiam e capturam as linhas de fuga, reterritorializando-as (no caso da escritura, transformando-a em mercadoria ou domesticando-a sob a forma rgida do cnone ou da obra de autor). A literatura, nesse sentido, rebelde em relao a toda (re)codificao ou tomada de poder operante na linguagem dominante. Historicamente, uma lngua dominante no se institui seno por relaes de poder. Como devir minoritrio, a literatura uma linha de ruptura sulcada na linguagem. Toda verdadeira obra de arte uma ruptura, ainda que um experimento imperceptvel que escapa, pois Sobre as linhas de fuga, s pode haver uma coisa, a experimentao-vida. 35 Iidem, p. 60-61).

    Mas no se deveria pensar uma linha de fuga como uma capitulao

    covarde, uma evaso da vida ou uma recusa da ao. Muito pelo contrrio, essa

    33 Deleuze & Parnet, Dilogos, p. 63. 34 Deleuze & Parnet, p. 56. 35 Deleuze & Parnet, pp. 60-61.

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    fuga positiva e produtiva: ela ao, quer dizer, produo de acontecimentos. Fugir no renunciar s aes, nada mais ativo que uma fuga. o contrrio do imaginrio. tambm fazer fugir, no necessariamente os outros, mas fazer alguma coisa fugir, fazer um sistema vazar como se fura um cano. (Idem, p. 49).

    Surge, portanto, uma questo poltica: o que pode um fluxo de escrita? O

    que pode a literatura como mquina de guerra contra os poderes do mundo? Ou: qual a potncia desse devir minoritrio da lngua?

    A resposta deleuziana muito simples. Contra uma vida miservel, a

    literatura, quando consegue traar uma verdadeira linha de fuga quer dizer, quando consegue se conjugar a outros fluxos, convertendo-se em programas de vida ou protocolos de experincia ela mesma uma arma capaz de resistir e criar, porque a nica forma de resistncia , afinal, a criao permanente de novas possibilidades de vida. Na medida em que a equao literatura = vida for uma equao efetiva, quer dizer, verdadeira traio aos aparelhos e cdigos dominantes, a potncia afirmativa da vida atravessa a obra e a fora da obra constitui a vida como singularidade e diferena. Por isso, a literatura est do lado do informe (do que ainda no tem uma forma dominante e que, por isso, uma linha de cesura, uma experincia-limite).

    Nessa perspectiva, o devir-revolucionrio do escritor no consiste,

    necessariamente, no engajamento militante de sua pessoa civil ou de sua obra. O devir-revolucionrio do escritor no passa pela sua ideologia (no existe nem nunca existiu ideologia porque uma sociedade no se define por suas contradies, mas por suas linhas de fuga, que so primeiras); nada a ver com os equivalentes de classe ou os compromissos ideolgicos. O escritor, diz Barthes, apenas um senhor entre outros.36

    Porque escrever no questo de ser (ser escritor, ser autor); questo de devir, e de devir-outra-coisa que no escritor; tornar-se outro, prolongar ao mximo uma linha de fuga num campo social qualquer. A radicalidade prpria da literatura opera na transversalidade, alheia ao burburinho dos discursos do Mesmo, plenamente capturados pelos aparelhos do Estado, do Capital, do dipo, do Cdigo. Esses aparelhos de poder se constituem por captura das mquinas de guerra, mas uma mquina de guerra irredutvel a todos os aparelhos. Segundo Deleuze, seria necessrio buscar um estatuto para as maquinas de guerra, 36 Barthes, p. 12.

  • 17

    que j no seriam definidas de modo algum pela guerra, mas por uma certa maneira de ocupar, de preencher o espao-tempo, ou de inventar novos espaos-tempos... 37 Fora entre foras, a intensidade rebelde de um fluxo de escritura conjuga-se s mquinas de guerra contra as potncias estabelecidas. Esse fluxo, em sua intensidade e finitude, ele prprio uma ruptura (ou uma srie de rupturas) com os modos dominantes de produo da subjetividade.

    Quando um fluxo de escritura traa uma linha de fuga, de

    desterritorializao, de dessubjetivao, ele entra numa relao com o de fora. O texto literrio, ao apontar para o fora da linguagem, traz para um horizonte de possibilidades outras lgicas do sentido que no a produo do sentido dominante. Se toda fuga uma espcie de delrio, a literatura justamente o delrio supremo da linguagem, palavra enunciada com o corao quente, febre ou incandescncia do discurso, intensidade capaz de fazer a linguagem sair dos eixos, pirar, buscar o fora. Escrever trair: Trai-se as potncias fixas que querem nos reter, as potncias estabelecidas da terra. 38

    Escrever, portanto, criar modos de existncia ou estilos de vida que nada tem a ver com o sujeito, com o autor, com um eu neurtico, narcsico, pessoal. Em parte, toda escrita uma escrita de si. Mas isso nada tem a ver com a insuflao do prprio eu (o ego torna-se uma fico vazia quando a subjetividade concebida como processo). A literatura como experimentao exerccio de si, prtica (des)subjetivante, experincia constituidora de si, protocolo de experincias que joga com as linguagens codificadas o jogo prprio do texto. Ao mesmo tempo, a subjetividade joga com as regras e normas o jogo prprio da vida em sua multiplicidade e vontade de potncia.

    Assim, a concepo da literatura como linha de fuga libera os impulsos

    experimentadores da escritura. No se trata de representar ou interpretar, mas de experimentar. Experimentao simultnea da linguagem e de si num processo aberto de estetizao da existncia. A equao literatura = vida implica, para o escritor, produzir a prpria vida como obra de arte, quer dizer, singularidade e diferena ativas. Da, como dissemos, uma noo vitalista de estilo: O estilo, num grande escritor, sempre tambm um estilo de vida, de nenhum modo algo pessoal, mas a inveno de uma possibilidade de vida, de um modo de existncia.39 Ao inventar/experimentar novas possibilidades de vida, a escritura 37 Deleuze, p. 12? 38 Deleuze & Parnet, p. 53.

  • 18

    (como estilstica da existncia) remete necessariamente tica e poltica, pois so os estilos de vida que nos constituem de um modo ou de outro.

    Criar, nesse sentido, significa estabelecer uma relao consigo que nos

    permita resistir, furtar-nos, fazer a vida ou a morte voltarem-se contra o poder.40 No limite trgico de uma linha de fuga, mesmo o silncio, o deserto, a loucura, o suicdio fazem parte dos estilos de vida, linha vital e mortal de des-subjetivao, desterritorializao das identidades assujeitadas que impossibilitam uma existncia livre e criadora para alm do humano.

    Para apreender a escritura como um gesto absolutamente positivo e

    afirmativo de novas possibilidades de vida, necessrio partir de uma tripla definio de escrever. Comentrio sobre uma declarao de Foucault: escrever lutar, resistir; escrever vir-a-ser; escrever cartografar, eu sou um cartgrafo.... 41

    Cartografar traar um mapa de uma multiplicidade qualquer enquanto

    uma conexo de fluxos coletivos heterogneos e com acontecimentos datados e contingentes: a urbanizao e a industrializao, o crack da bolsa, a decadncia do patriarcado, os movimentos sociais, as mudanas nas emoes e nos sentimentos, as rupturas nas mentalidades, etc., etc. Em Mil Plats Deleuze e Guattari valem-se de uma concepo geogrfica da escritura para criticar as teorias da representao e da significao. Escrever nada tem a ver com significar, mas com agrimensar, cartografar, mesmo que sejam regies ainda por vir. 42

    preciso conceber o livro como uma pequena mquina, por vezes uma

    mquina de guerra: Um livro existe apenas pelo fora e no fora. Assim, sendo o prprio livro uma pequena mquina, que relao, por sua vez mensurvel, esta mquina literria entretm com uma mquina de guerra, uma mquina de amor, uma mquina revolucionria, etc. e com uma mquina abstrata que as arrasta. [...] a nica questo, quando se escreve, saber com que outra mquina a mquina literria pode estar ligada, e deve ser ligada, para funcionar. 43

    39 Deleuze, Conversaes, p. 126. 40 Idem, p. 123. 41 Deleuze, Foucault, p. 53. 42 Deleuze & Guattari, Mil Plats, v. 1, p. 13. 43 Mil Plats, v. 1, p. 12.

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    O escritor no um sujeito, um autor; um inventor de agenciamentos, um contrabandista das multiplicidades: O escritor inventa agenciamentos a partir de agenciamentos que o inventaram, ele faz passar uma multiplicidade para outra.44 Agenciar no falar por ningum ou no lugar de ningum. Falncia da representao: Ao contrrio, preciso falar com, escrever com. Com o mundo, com uma poro de mundo, com pessoas. De modo algum uma conversa, mas uma conspirao, um choque de amor ou de dio.45

    Que entender por essa prtica, agenciar? Agenciar simplesmente estar

    no meio ou sobre a linha de encontro de um mundo interior e de um mundo exterior46, no umbigo do furao, nmade mesmo sem sair do lugar. Experimentao ambgua e tanto mais perigosa quanto maior for sua potncia de vida. Pois O que nos diz que, sobre uma linha de fuga, no iremos reencontrar tudo aquilo de que fugimos? [...] No se pode prever. Uma verdadeira ruptura pode se estender no tempo [...] ela deve ser continuamente protegida no apenas contra suas falsas aparncias, mas tambm contra si mesma, e contra as reterritorializaes que as espreitam. Por isso, de um escritor a outro, ela salta como o que deve ser recomeado.47

    A intensidade de um fluxo de escritura, fora entre foras, conjuga-se s

    mquinas de guerra contra as potncias estabelecidas; e mesmo que, na seqncia, essa intensidade selvagem seja capturada e controlada, ela , em sua finitude mesma, uma ruptura (ou uma srie de rupturas) com os modos dominantes de produo do sentido.

    A politizao de todo discurso implica que se pense o poder morando na

    linguagem, constituindo e sendo constitudo pelos jogos de linguagem. Tendemos a conservar uma imagem unitria, monoltica, do poder. Mas, pergunta Barthes, e se o poder no fosse unitrio, e se ele fosse plural, como os demnios? Radicaliza a noo de poltica: o poder est em todo lugar, a comear pelas palavras. A linguagem um sistema fascista. Como diz Barthes: ... a lngua, como desempenho de toda linguagem, no nem reacionria nem progressista; ela simplesmente fascista; pois o fascismo no impedir de dizer, obrigar a dizer. 48 A lngua obriga no ao silncio, mas ao discurso; ela 44 Dilogos, p. 65 45 Idem, p. 65. 46 Idem, ibidem. 47 Idem, pp. 52-53. 48 Barthes, Aula, p.

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    opera a partir de determinado lugar na ordem do discurso que institui os sentidos dominantes. Quando se concebe, por exemplo, a gramtica como um sistema normativo de uso de uma lngua dominante, entende-se toda a extenso de uma frase clebre de Nietzsche: No nos desvencilharemos da idia de Deus enquanto no nos livrarmos da gramtica.

    COMO FICA A HISTRIA?

    Como disse Nietzsche, necessitamos da histria. Mas no necessitamos dela de qualquer maneira, isto , maneira dos ociosos que passeiam no jardim da cincia: necessitamos da histria para a vida, o nico valor que no pode ser avaliado, e que, portanto, tem o poder de servir de critrio para todos os outros valores; o valor, o uso, a convenincia da histria, deve portanto, subordinar-se vontade da vida, e no o contrrio; falar, portanto, de um conhecimento objetivo, puro, no faz sentido e sintoma de perigo, pois a histria que no serve vida, o saber que no vivifica.

    Como escrever a histria de um ponto de vista nmade, sem criar razes,

    sem reproduzir as rvores? O professor Lus Orlandi coloca-nos um desafio: Para os que gostam de histria, mas que as escrevem ainda de um ponto de vista sedentrio, dizem os autores que est faltando a constituio de uma nomadologia. 49 A histria rizomtica, que operasse po uma lgica do conectivo, do e, pois o tecido da multiplicidade [...] a conjuno e... e... e, um meio formado por n dimenses das quais o Uno subtrado. Essa a lgica do rizoma, proveitosa para a histria, desde que repensemos o tempo como rede, no como linha, o acontecimento como devir, no como fato.

    O acontecimento, in Lgica do sentido. Evento: Pomiam. Fato, evento e

    acontecimento. Histoire evenementielle : tempo de Cronus : causalidade linear : lgica arborescente. Histria rizomtica: uma epistemologia construtivista (o saber uma construno, uma fabricao, uma inveno). Histria colcha de retalhos. Crazy patchwork. Histria como carnaval organizado: rizoma temporal dos acontecimentos. Causalidade no-linear. Lgica do rizoma. Tempo do Aion. Experimentao: no a interpretose. O ensaio, em sua etimologia.

    49 Orlandi, in Foucault vivo, p. 42.

  • 21

    Na filosofia deleuziana, as referncias ao discurso histrico so raras e incidentais. Preferem a geografia, os mapas, a cartografia. Os franceses so histricos demais. O rizoma uma antigenealogia. Ao mesmo tempo, as referncias histricas (acontecimentos e processos da histria universal) pontuam ao longo de toda a obra. Ao contrrio de Foucault, os autores no descartam a histria universal a la Toynbee: a lgica rizomtica conecta sries de dados dos diversos saberes; a filosofia faz rizoma com a historiografia, assim como com outras cincias e artes, no limite, todas as cincias e artes. A articulao rizomtica dos heterogneos procede, como princpio de composio, opera sob o signo de uma epistemologia construtivista: uma cartografia da multiplicidade (ou um mapa da realidade) s possvel pela conexo de todos os heterogneos: preciso fazer o mltiplo.

    Os princpios metodolgicos ou so nulos ou repressivos: ou ambas as coisas. No se trata de ressuscitar as velhas querelas do mtodo, mas ousar uma nova reforma do entendimento. A teoria da histria alimenta-se da convivncia com a filosofia. O rizoma no um mtodo: , enfim, uma nova imagem do pensamento.

    Uma contribuio filosfica importante no apenas para a abertura do

    campo historiogrfico, mas para uma verdadeira reforma do entendimento. Uma nova forma de exerccio do pensamento.

    Nos anos 70, Chatelet dizia: O problema epistemolgico e poltico

    sabermos o que fazer com esses trabalhos oriundos da instituio e que, incrustando-se nela ou ultrapassando-a, colocam-na em questo. 50

    Como pensar uma histria sem sujeito nem objeto, mas que oriente-se por uma preocupao de inteligibilidade dos acontecimentos e da multiplicidade?

    O lance sagital de Nietzsche, atualizado por Deleuze e Guattari, permite conceber a histria como um mapa dos fluxos ou uma cartografia dos devires. Antigenealogia: uma histria que seja uma cartografia das multiplicidades. Repartio e serializao dos acontecimentos. Uma histria que no grite viva a multiplicidade, mas que faa efetivamente o mltiplo. O tempo do passado no uno nem contnuo nem linear nem homogneo. O tempo da histria rizomtico. Rizoma temporal. Uma nova idia do tempo. A histria como crazy 50 CHATELET, F. A histria, in Histria da Filosofia, v. 7, p. 218.

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    patchwork de acontecimentos, fluxos e processos heterognos, carnaval organizado (Nietzsche), conexo de heterogneos. O historiador um gegrafo no meio do devir enlouquecido. Ele constri um mapa da multiplicidade, faz o mltiplo reverberar na linha de fuga da escritura.

    Uma nomadologia, mais do que uma histria genealgica. uma antigenealogia. Uma historia que seja uma cartografia das descontinuidades, uma geografia da multiplicidade. Repartio e serializao dos acontecimentos. Uma epistemologia construtivista. Fazer rizoma com as artes, as cincias, a filosofia. Fazer efetivamente, positivamente, o mltiplo na escritura. Minar a ratio dominante do discurso historiador.

    O esgotamento da modernidade ou a fadiga da civilizao enquanto projeto ocidental coloca para o historiador a busca de alternativas de vida e de pensamento. A questo do atual. Ana Maria Burmester: Se a civilizao, enquanto projeto ocidental, est em vias de esgotamento (da modernidade), o seu historiador hoje no teria compromissos com a busca de alternativas?

    A experimentao do ensaio numa histria rizomtica, cartografia de fluxos, constituda com E, E, E, isto , estabelecendo conexes entre conjuntos heterogneos. Da um novo tipo de tese como forma de desterritorializao. Contra o frio doutor das distncias. Uma histria que se estrepe na vida. Que seja um corpo-a-corpo com a vida. E que aponte para a criao permanente de novas possibilidades de vida. Rachar o discurso da histria representativa; arrastar o logus historiador a uma outra lgica do sentido. No se trata de refletir sobre a causalidade dos acontecimentos, mas de tomar os acontecimentos como singularidades compostas pela interseco de mltiplos fluxos que aparentemente nada tem a ver entre si.

    Um rizoma histrico mas tambm a-histrico. O esquecimento. Deleuze

    diz que a memria uma faculdade que deve afastar o passado em vez de acion-lo. preciso muita memria para rejeitar o passado, justamente porque no um arquivo. 51 Isso exige uma potente fora plstica. - preciso dosar histria e no-histria e cada indivduo (cada cultura) exigir uma dosagem particular. A fora plastica do indivduo a medida dessa dosagem. N. define como fora plstica: a faculdade de crescer por si mesmo, de transformar e de

    51 O Abecedrio de Gilles Deleuze, entrevista para a TV francesa.

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    assimilar o passado e o heterogneo, de cicatrizar as suas feridas, de reparar as suas perdas, de reconstruir as formas destrudas. [p. 108]

    A fora plstica a capacidade esttica de dar forma ao caos, esculpir a

    argila informe do passado, isto , construir determinado sentido para aquilo que no tm sentido em si, uma essncia dada na origem; a histria, como todo conhecimento, mito, cincia, arte ou religio, uma inveno contingente, sem qualquer fundamento metafsico, natural ou quintessencial.

    A arte de elaborar um questionrio, ampliar e expandir esse questionrio...

    A importncia do problema, da colocao das questes que so fabricadas como qualquer outra coisa. Deleuze, sobre a importncia do problema: As questes so fabricadas, como outra coisa qualquer. Se no deixam que voc fabrique suas questes, com elementos vindos de toda parte, de qualquer lugar, se as colocam a voc, no tem muito o que dizer. A arte de construir um problema muito importante: inventa-se um problema, uma posio de problema, antes de se encontrar a soluo. 52

    A histria rizomtica no deveria abrir mo um problema. Lembramos

    imediatamente de Febvre e sua noo de histria-problema. Ver Febvre e os Annales IV.

    Fato, acontecimento, evento e episdio. Como fica ento a noo de fato?

    Febvre afirma um princpio contrutivista: o fato no dado, uma construo. O historiador constri os fatos. O fato est no historiador, mas no estava antes dele no documento: ele uma construo do historiador. 53 A partir do problema e das hipteses que ele coloca aos documentos, aos testemunhos do passado, procedendo uma escolha, quer dizer, uma seletividade deliberada e uma montagem de sries qualitativas.

    O construtivismo deleuziano tem em relao ao construtivismo da

    historiografia dos Annales uma diferena de grau, no de natureza, pois que Deleuze eleva isso a uma incandescncia esquizo do pensamento.

    A defesa de uma histria problema. E a partir dessa crtica que aparece a

    noco de histria-problema, ou seja, de uma histria cientificamente 52 Deleuze & Parnet, p. 9. 53 Aris, O tempo da histria, p. 224.

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    orientada. Mas segundo uma nova noo de cincia e uma nova concepo do prprio fato. Febvre define o que seria essa histria-problema: que pr um problema precisamente o comeo e o fim de toda a histria. Se no h problemas, no h histria. Apenas narraes, compilaes. Lembrem-se: se no falei de cincia da histria, falei de estudo cientificamente conduzido. (...) A frmula cientificamente conduzido implica duas operaes, as mesmas que se encontram na base de qualquer trabalho cientfico moderno: pr problemas e formular hipteses. 54 Um bom exemplo dessa histria-problema: O problema da descrena no sculo XVI: a religio de Rabelais. Como que nasce essa obra-prima de Febvre? Nasce do que ele considera um anacronismo em relao obra literria e ao pensamento de Franois Rabelais, o autor de Gargntua e Pantagruel. Pois bem, um historiador da literatura chamado Lefranc afirmou que Rabelais era, j no Renascimento, um ateu, por causa de seu humor blasfemo que atacava dogmas e prticas catlicas. Havia um longo debate se Rabelais combatia o cristianismo, se era um livre pensador, um racionalista, etc. Febvre coloca um problema: Rabelais era ateu ou no? E formula uma hiptese negativa: No. Rabelais no era ateu porque no havia condies de possibilidade do atesmo no sculo XVI. A mentalidade religiosa do sculo XVI, o verdadeiro domnio da religio sobre a vida, que absorvia por completo todas as prticas da vida diria, tornava impossvel o atesmo em 1532. Voltando ento questo da cincia: para Febvre, o trabalho cientfico no observao, mas interpretao. Febre compara o historiador ao histologista, o pesquisador dos tecidos orgnicos: o trabalho do histologista no microscpio no simplesmente observar, mas interpretar, interpretar a partir da colocao de problemas e da formulao de hipteses. E assim tambm o historiador: [final da pag. 43]: O mesmo se passa com o historiador. Com o historiador a quem nenhuma providncia fornece factos brutos. Factos dotados excepcionalmente de uma existncia de facto perfeitamente definida, simples, irredutvel. Os factos histricos, mesmo os mais humildes, o historiador que os chama vida. Sabemos que os factos, esses factos diante dos quais nos intimam tantas vezes a inclinar-nos devotadamente, so outras tantas abstraes -- e que, para os determinar, preciso recorrer aos testemunhos mais diversos, e por vezes mais contraditrios -- entre os quais, necessariamente, escolhemos.

    O rizoma um crazy patchwork, uma colcha de retalhos um tanto louca,

    composta por agenciamento que permite a colagem de materiais heterogneos. Estabelecer sries de acontecimentos dispostos em rizomas temporais. Mas os 54 Febvre, p. 43.

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    historiadores no sabemos bem o que um acontecimento, e fazemos do tempo uma viso cronolgica. As noes de fato, evento e acontecimento formam uma teoria confusa. Nada a ver com o relato dos fatos como seqncia linear de acontecimentos contados. Historicidade. Devir seqencial de acontecimentos. No h oposio radical entre natureza e histria.

    Tempo. A existncia humana histrica porque est aberta a 3 dimenses

    temporais: o passado, o presente e o futuro. Essa estrutura temporal tripartite no faz parte da vida animal, nem do cosmos, uma caracterstica especfica do animal humano. O tempo de Cronus. Um rizoma temporal descreve o acontecimento no tempo do eterno retorno, que no mais o tempo de Cronus, o tempo humano, linear e homogneo.

    Nietzsche e eterno retorno: Em Ecce Homo (1888), tem sua primeira

    intuio, quase mstica, do eterno retorno: se o tempo no linear, no faz sentido a distino entre o antes e o depois. Se tudo retorna eternamente, o futuro j um passado e o presente to passado quanto futuro. [D.B.F., eterno retorno]. O acontecimento o que retorna como diferena, o ser mesmo do devir, a multiplicidade ontologicamente primeira. A durao, ver D.B.F. Aion, do grego: eternidade, tempo muito longo: Cronus remete ao tempo humano, o Aion ao tempo csmico. Dimenso temporal. No meio de uma durao sem comeo nem fim, embora os acontecimentos possam ser datados: a durao simultnea de diversos fluxos de devir. Ver eterno/eternidade. Um rizoma temporal: uma apreenso sincrnica de uma multiplicidade, ou de uma disperso. O devir, o vir-a-ser, o movimento. Tudo o que percebemos movimento.

    Bento Prado Jr. : ... a singularidade do Acontecimento, que no pode ser

    antecipado, re-conhecido ou re-presentado, que constitui o Ser mesmo do Devir. [Folha de S. Paulo, 2/9/96, Mais, p. 5]. Seu projeto filosfico se define como a constituio de uma teoria das multiplicidades, capaz de compreender cada acontecimento a partir de sua singularidade, de sua contingncia e de seu devir. [Mais, p. 4]

    Considerar a histria como exerccio do pensamento e experimentao da

    linguagem. Um pensamento ex-cntrico, nmade, desterritorializado e desterritorializante, num processo rizomrfico, pois cartografar uma

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    multiplicidade descrev-la e mant-la na disperso que lhe prpria, imanente ao campo dos acontecimentos, sem almejar a transcendncia numa sntese superior. O que um acontecimento? A verdade histrica [...] no o que sucedeu; o que pensamos que sucedeu. [Motta, p. 134]. O acontecimento o a-histrico, quer dizer, uma diferena. O pensamento histrico, que opera por semelhana, no capta assim o acontecimento, o ser do devir.

    Produo, fabricao, em lugar de criao ex nihil. Roubar todos os modos

    de produo de conhecimento, formas de saber cientficas e no-cientficas, desde que eles nos roubem tambm, um duplo roubo: um encontro. Contra o antropocentrismo e o logocentrismo, abrir-se para novas possibilidades de pensar e de viver, uma nova episteme e uma nova tica fundadas na arte e no rigor prprio da inveno. No preciso que saiamos do nosso lugar, e que potencialize nossa afeio e nosso apetite pela histria.

    Certamente, histria e vida andam mescladas; nesse sentido, A

    trajetria de um historiador sempre uma ego-histria. [Duarte, p. 156]. Um pouco como diz o psicohistoriador Besanon, que toda pesquisa uma pesquisa de si mesmo. Mas esse si mesmo, esse eu no remete a uma identidade (a identidade do historiador), no remete a um sujeito, mas a um processo de subjetivao, no remete a um indivduo, mas a uma multiplidade externa, e que atravessa o indivduo. No remete a uma vida pessoal, mas coletiva. Drummond: a multiplicidade toda que existe dentro de cada um.

    Escrever histria acontecimentalizar a singularidade dos devires. O

    objeto da histria constitudo por fluxos os mais heterogneos: poder, moeda, energia, desejo, crena, etc. A histria rizomtica busca simplesmente cartografar os fluxos que atravessam historicamente uma multiplicidade social qualquer. Os princpios de conexo e de heterogeneidade postulam que qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve s-lo. No plano de composio da escritura, o mapeamento dos devires, fluxos ou processos faz da conjuno E um princpio construtivo. Como diz Deleuze, a conjuno E no nem uma reunio, nem uma justaposio; ela como que o nascimento de uma gagueira, ou o traado de uma linha quebrada que parte sempre em adjacncia, uma espcie de linha de fuga ativa e criadora que, em sua deriva, conecta todo tipo de heterogneo.55 55 Deleuze & Guattari, Mil Plats, vol. 1, p. 15.

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    O que uma tese? O que um livro? O que escrever histria, uma histria? A histria um fluxo de escrita; um agenciamento que opera em conexo com uma mirade de outros fluxos que fogem num campo social: Um livro uma pequena engrenagem numa maquinaria exterior muito mais complexa. Escrever um fluxo entre outros, sem nenhum privilgio em relao aos demais, e que entra em relao de corrente, contra-corrente, de redemoinho com outros fluxos, fluxos de merda, de esperma, de fala, de ao, de erotismo, de dinheiro, de poltica, etc.56 Por que se escreve? que no se trata de escritura como expresso de uma bela interioridade: Escrever no tem outra funo: ser um fluxo que se conjuga com outros fluxos todos os devires-minoritrios do mundo.57 O devir-escritor do historiador nada tem a ver com o autor. A figura do autor, como mostra Foucault, uma inveno histrica recente; um dispositivo prprio de uma nova ordem do discurso.58 A escrita rizomtica, pelo contrrio, um fluxo que foge da ordem do discurso que desenha a figura do autor. possvel que escrever esteja em uma relao essencial com as linhas de fuga. Escrever traar linhas de fuga...59

    Mas no se deveria pensar uma linha de fuga como uma capitulao covarde, evaso da vida ou recusa da ao. Pelo contrrio, Fugir no renunciar s aes, nada mais ativo que uma fuga. o contrrio do imaginrio. tambm fazer fugir, no necessariamente os outros, mas fazer alguma coisa fugir, fazer um sistema vazar como se fura um cano.60 Surge, portanto, uma questo poltica: o que pode a escrita? Contra uma vida miservel, a escritura, quando consegue traar uma verdadeira linha de fuga quer dizer, quando consegue conjugar-se a outros fluxos, convertendo-se em programas de vida ou protocolos de experincia ela mesma uma mquina de guerra capaz de resistir e criar, porque a nica forma de resistncia , afinal, a criao permanente de novas possibilidades de vida. Na medida em que a equao literatura = vida (ou histria = vida) for uma equao efetiva, as potncias da vida atravessam a obra e a fora da obra constitui a vida como afirmao, singularidade e diferena.

    Como toda obra de arte, a literatura (a histria) uma verdadeira ruptura, ainda que um devir-minoritrio ou um experimento imperceptvel: Sobre as 56 Deleuze, Conversaes, p. 17. 57 Deleuze & Parnet, Dilogos, p. 63. 58 Cf. Foucault, O que um autor?, passim. 59 Deleuze & Parnet, op. cit., p. 56. 60 Idem, p. 49.

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    linhas de fuga, s pode haver uma coisa, a experimentao-vida.61 Escrever experimentar e inventar. E todo experimento e inveno constituem um fluxo de desterritorializao que opera imediatamente nos processos de constituio da subjetividade. A linha de fuga uma desterritorializao em relao s linguagens, aos sistemas, aos cdigos. Fugir e fazer fugir, nesse sentido, atualizar processos de subjetivao singulares e autnomos, na medida em que a equao literatura = vida for uma equao real e efetiva, quer dizer, uma verdadeira traio s potncias do mundo. Quando um fluxo de escritura traa uma linha de desterritorializao, de (des)subjetivao, ele entra numa relao com as foras do for a, com as potncias da exterioridade. Se toda fuga uma espcie de delrio, a literatura justamente o delrio da linguagem; palavra enunciada com o corao quente; insnia, febre ou incandescncia do discurso; intensidade capaz de fazer a linguagem sair dos eixos, pirar, buscar o fora, saltitar como um demnio em busca da segunda noite.

    CONECTAR FRAGMENTOS

    A durao social, definida como esses tempos mltiplos e contraditrios da vida dos homens, que no so apenas a substncia do passado, mas tambm o estofo [o tecido] da vida social atual. [p. 43] Braudel coloca uma questo fundamental para a historiografia contempornea: o problema da multiplicidade, da pluralidade dos tempos histricos. O historiador, principalmente a partir dos Annales, no trabalha com uma idia de tempo nico, homogneo, monoltico. Cada vez mais, o trabalho histrico uma operao de decomposio do tempo em distintas e variadas duraes. O tempo histrico no um bloco monoltico: ele pode ser cortado e recortado em diferentes duraes ou extenses, segundo os problemas que o historiador coloca ao passado. Braudel distingue trs tipos principais durao, que correspondem a trs modalidades de histria em relao dialtica uma com as outras: 1. a curta durao: tempo da histria episdica, acontecimental (vnementielle). 2. a mdia durao: ele associa ao tempo da histria que trabalha com conjunturas econmicas e sociais; 3. e a longa durao: tempo de uma histria que trabalha com estruturas sociais inconscientes e resistentes s mudanas.

    61 Idem, pp. 60-61.

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    Como diz Deleuze, numa sociedade tudo foge: uma sociedade, um campo social no se contradiz, mas ele foge, e isto primeiro. Ele foge de antemo por todos os lados; as linhas de fuga que so primeiras (mesmo que primeiro no seja cronolgico).62

    A histria como toda escritura s se torna efetiva quando

    transformada numa mquina de guerra contra as potncias dominantes, e quando se torna irredutvel aos modos dominantes de produo do sentido. A prtica historiogrfica inseparvel dos agenciamentos coletivos de enunciao. Desterritorializao da linguagem e, por extenso, dos processos histricos de subjetivao. Tem a ver com o inacabamento, o informe quer dizer, com a contingncia no ser do homem e no ser da linguagem.

    Por mais cirrgicos que sejam os cortes operados no corpo do tempo, a

    periodizao permanece sempre provisria e movedia. Mas se, como diz Foucault, o saber no feito para compreender, ele feito para cortar, pode-se pensar que a histria pode tambm ser um pouco isso: uma operao cirrgica sobre o corpo do tempo para fazer fluir as multiplicidades que o atravessam.

    preciso notar, a princpio, que o ideal maior da histria cientfica

    (estabelecer as leis ou regularidades da mudana) faz parte de uma ordem do discurso que esconjura o acaso mediante a valorizao excessiva do mtodo: os acontecimentos, os eventos, so inscritos numa sucesso de relaes causais, estruturais, significantes e necessrias. Ao buscar as famosas leis da organizao e do funcionamento das sociedades humanas, as grandes narrativas modernas utilitarismo, positivismo, liberalismo, marxismo e outros ismos procuraram reduzir a presena da alea social, do acaso do mundo e do irracional da vida.

    A desobrigao de formar sistemas fechados permite que se faa uma

    espcie de pop-histria aberta utilizao de todos os tipos de materiais. A histria como bricolage das evidncias do passado, sempre a partir da perspectiva do historiador, que se situa necessariamente no presente. Uma pop-histria ou uma histria rizomtica tm, ao menos, a liberdade de utilizar, como documento, vrios e heterogneos materiais. Escrever a histria em liberdade pressupe que a reconheamos como inveno e artimanha da libido, individual,

    62 Deleuze, Desejo e prazer, p. 19.

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    claro, mas tambm coletiva, no sentido de que nenhum discurso inseparvel da mirade de fluxos que atravessam um campo social.

    A superao do dualismo entre sujeito e objeto. As multiplicidades so

    fluxos: os fluxos em devir constituem o objeto da histria.63 Como diz Veyne: a histria no estuda objetos; ela estuda prticas que

    objetivam. Tambm poder-se-ia dizer: a histria no estuda sujeitos; mas prticas que subjetivam: ela estuda os processos mesmos de subjetivao.

    A disciplinarizao de Clio funciona de modo sutilmente intimidatrio.

    o que Foucault chama a ordem do discurso, constituda por excluses, interditos, tabus, regras.64 Mas a histria da historiografia mostra que no existem as famosas regras essenciais (imutveis) para escrever a histria: o historiador quem inventa historicamente essas regras, geralmente contra as idias aceitas. E essa linha de fuga primeira.

    Em Deleuze, a arte, e a literatura em particular, definida como um

    trabalho de experimentao da vida, e de construo de novas possibilidades. O livro mquina de guerra contra o livro aparelho de Estado. Uma obra est ligada real ou virtualmente a todos os fluxos das matrias sociais. A articulao por reciprocidade com esses fluxos define uma mapa, os eixos e orientaes da atividade criadora. A escritura: proliferao rizomtica do discurso, fluxo de linguagem em conexo com outros fluxos de vida que produzem um campo social.

    No buscando relao de causalidade simples entre os acontecimentos.

    Um outro tipo de filosofia, que aceita que o mundo multiplicidade. Trata-se de fazer da histria lugar de acontecimentos de linguagem; ou,

    como diz Deleuze-Parnet, fazer um uso menor da lngua, um devir-minoritrio, uma linguagem minoritria tornada ela prpria criadora de acontecimentos. [Deleuze-Parnet, Dilogos, p. 83]

    63 Deleuze & Guattari, Mil Plats, vol. *, p. 7. 64 Foucault, A ordem do discurso, passim.

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    A histria ser o que os historiadores fizerem dela: a isso se chama, propriamente, inveno. Mas no se chega a isso sem imaginao e risco. A possibilidade de uma escrita livre inseparvel da ousadia de um pensamento livre. No h garantias. Qualquer forma de escritura da histria ser sempre um ensaio, isto , uma tentativa. E toda tentativa parcial, inacabada, imperfeita, inconclusiva.

    certo que continuaremos a necessitar da histria, mas de uma histria que, sem dar as costas aos problemas colocados pelo presente, atente para a multiplicidade e para a descontinuidade do passado narrvel. Uma histria que, ao contrrio de hipostasiar identidades universais, seja, como diz Veyne, um inventrio das diferenas.

    Definitivamente, a busca da verdade absoluta, da coisa-em-si do passado, da essncia da historicidade, da realidade concreta, foi substituda, no horizonte dos historiadores, pelo relativismo e pelo perspectivismo. A produo historiogrfica contempornea parece cada vez mais assentada no pressuposto epistemolgico de que o conjunto dos eventos e estruturas do passado (a histria que aconteceu) no identitria com a sua escritura, pois a prpria histria filha do tempo, est inserida nas contradies e lutas do presente, ela escrita a partir de uma interpretao de vestgios que sempre representao particular e condicionada do passado, no podendo ascender, portanto, ao plano do universal, esse postulado metafsico que, segundo Nietzsche, dominou ainda a cincia moderna em sua busca ilusria da verdade, da essncia original, da coisa-em-si.