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Estudos de Psicologia, Campinas, v.21, n.3, p.237-252, setembro/dezembro 2004

A INSTITUIÇÃO TOTAL COMO AGÊNCIA DE PRODUÇÃO DESUBJETIVIDADE NA SOCIEDADE DISCIPLINAR1

TOTAL INSTITUTIONS AS AGENCY OF SUBJECTIVITY PRODUCTION IN THE DISCIPLINARY SOCIETY

Sílvio José BENELLI2

RESUMO

A leitura de Goffman a partir das análises de Foucault pode nos proporcionar um enriquecimento fecundo na compreensão dos processos de produçãode subjetividade na sociedade contemporânea e, de modo específico, nocontexto das instituições totais, que estão longe de terem desaparecido.Consideramos que Goffman realiza uma modalidade de análise institucionalque pode ser situada transitando entre os planos macro (ou molar) e micro

dos fenômenos que ocorrem nos estabelecimentos fechados. Goffmananalisa as práticas não-discursivas, e as articula com grande sutileza,fazendo os “detalhes” mais pitorescos e aparentemente insignificantes docotidiano institucional falarem: percebemos, então, o plano microfísico dasrelações intra-institucionais mergulhando nas diferentes estratégias nasquais o poder se ramifica, circula, domina e produz saberes e sujeitos.

Acreditamos que Goffman já apresenta o poder como uma relação dinâmicade estratégias sempre atuantes, presente em toda parte, em todos oslugares. Foucault, por sua vez , nos revela como são possíveis as instituiçõesdisciplinares e quais as razões de sua emergência. Ambos são excelentesreferenciais para análises institucionais.

Palavras-chave : instituição total; subjetividade; análise institucional;

Foucault, Michel; Gofman, Erving.

ABSTRACT

Goffman’s insights about Foucault´s analyses can provide a considerableachievement about the subjectivity production processes knowledge in the

1 Artigo elaborado a partir da dissertação de mestrado de autoria de S.J. Benelli, intitulada “Pescadores de Homens. Aprodução da subjetividade no contexto institucional de um Seminário Católico”, sob a orientação do prof. Dr. Abílio daCosta-Rosa. Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2003. Apoio: FAPESP.

2 Curso de Filosofia, Faculdade João Paulo II. Caixa postal 1011, Jardim América, 17506-770. Marília, SP. Brasil.E-mail :<[email protected]>.

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contemporary society and, mainly at total institutions context, where they areso present. We consider that Goffman’s institutional analyses is between the

macro (molar) and micro spheres of the phenomenon, that happen in closedinstitutions. He analyzes the non-discoursive practices, and subtletyarticulates them, as the daily, apparently insignificant and bizarre “details”from institutional context makes us to realize the intra-institutional relationsof microphysics plan, dipping into different strategies in which power itself branches, circulates, dominates and produces knowledges and subjects.We might say that Goffman has already introduced the idea of power as adynamical relation of strategies always achieved at all parts and places.Foucault, reveals us how possible are disciplinary institutions and their reasons for emerging. They both are outstanding references to the institutionalanalyses.

Key-words : total institution; subjectivity; institutional analyses; Foucault,Michel; Gofman, Erving.

ATUALIDADE DAS INSTITUIÇÕESTOTALITÁRIAS

Estamos no início do século XXI, atra-vessando grandes transformações socioculturaisproduzidas pelo impacto do desenvolvimentotecnológico e da informática no cotidiano. Novasformas de relacionamento, de produção, deconsumo, de produção de subjetividade semanifestam. As técnicas de vigilância, de punição,de controle social, de produção de sujeitostambém estão se sofisticando a partir do suporteda tecnologia de ponta.

Mesmo nesse contexto de mudanças, asantigas instituições totalitárias não desaparece-ram da sociedade contemporânea. Pelo contrário,há uma florescente indústria funcionandoativamente no sistema prisional (Salla, 2000),nos novos pavilhões construídos para a Fundaçãopara o Bem-Estar do Menor (FEBEM) (Guirado,1986), nos inúmeros presídios que se espalhampelo interior do Estado de São Paulo. Nessacategoria de instituições ainda entram os hospitaispsiquiátricos (Levinson & Gallagher, 1971; Castel,1978; Costa-Rosa, 1987; Goffman, 1987;Foucault, 1999a; Costa-Rosa, 2000; 2002),internatos escolares em geral (Hesse,1970; Rego,1979; Hesse, 1980; Lautréamont, 1986; Musil,1986; Perrone-Moisés, 1988; Pompéia, 1997;Benelli, 2002; 2003), colégios agrícolas cominternato, asilos para idosos, orfanatos para

crianças, quartéis e casernas militares, escolaspara formação de policiais militares (Cruz, 1989),seminários católicos que acolhem adolescentese jovens universitários em regime de internatopara preparação para o sacerdócio (Cabras, 1982;Trevisan, 1985; Tagliavini, 1990; Rocha, 1991;Ferraz e Ferraz, 1994; Benelli & Costa-Rosa,2002), plataformas petrolíferas marinhas, casasque acolhem crianças em situação de risco,exército etc.

Considerando a permanência temporal detais instituições, certamente espécimes ultrapas-sados, sobreviventes de séculos anteriores,entendemos que Goffman (1987) e Foucault(1999b) são dois referenciais estratégicosfundamentais para estudo e compreensãoadequada dessas instituições. Elas ainda tendema funcionar de modo clássico, tal como forammapeadas por Goffman e Foucault, permane-cendo alheias a sofisticações tecnológicas ou,em muitos casos, incorporando novidadesinformáticas sem maiores transformaçõesestruturais. Esse instrumental teórico possibilitaainda uma intervenção profissional crítica nessasinstituições, permitindo-nos um posicionamentoético congruente com a lógica da produção desubjetividade singularizada ao ocuparmos asbrechas disponíveis na conjuntura atual.

Segundo Goffman (1987), as instituiçõestotais se caracterizam por serem estabeleci-mentos fechados que funcionam em regime de

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internação, onde um grupo relativamentenumeroso de internados vive em tempo integral.

A instituição funciona como local de residência,trabalho, lazer e espaço de alguma atividadeespecífica, que pode ser terapêutica, correcional,educativa etc. Normalmente há uma equipedirigente que exerce o gerenciamento administra-tivo da vida na instituição. Acreditamos queGoffman (1987) tenha como programa justamenteproceder a uma observação minuciosa do detalhe,buscando, ao mesmo tempo, um enfoque políticodessas pequenas coisas do cotidiano, utilizadaspara o controle e - diremos também - produção desubjetividade no contexto institucional (Benelli &Costa-Rosa, 2002).

Consideramos que Goffman (1987) realizauma modalidade de análise institucional quepode ser situada transitando entre os planosmacro (ou molar) e micro dos fenômenos queocorrem nos estabelecimentos fechados. Suaconcepção explícita de poder é a de um poder essencialmente modelador, poder instaurado,repressivo e mutilador do eu em sua missão(res)socializadora. Isso parece ser o que Goffmanapresenta numa primeira leitura. Mas depois deestudar algumas das contribuições de Foucaulte da análise institucional (Costa-Rosa, 1987)relativas à produção da subjetividade no contextoinstitucional, uma leitura mais atenta de Goffman(1987) então nos permitiu encontrar tambémuma dimensão produtiva do poder: há nele umamicrossociologia dos estabelecimentostotalitários que explicita toda uma tecnologia depoder altamente criativa.

Certamente podemos identificar opressorese oprimidos, caracterizados pela equipe dirigentee pelo grupo dos internados, os primeiros modelame os segundos são objetos de procedimentosmodeladores. Apesar de o binômio dominadores-dominados dar a impressão de que o poder sejauma instituição, estrutura ou certa potência queum grupo detém em prejuízo de outro, Goffman járevela, de certa forma, que poder é substancial-mente relação e que são lugares que compõema sua dinâmica.

Goffman (1987) descreve minuciosamenteas reações de (contra)controle que os dois grupos

antagônicos exercem um sobre o outro: hámodelagem e resistências; vigilância permanente

e recíproca; há lutas e conflitos nos planos macroe microfísicos. Goffman mapeia estratégiasostensivas de ataque e reações que se esboçamàs vezes sutis, outras claramente defensivas ousabotadoras. Mostra-nos como o grupo dosinternados se defende dos esforços modeladoresatravés de diversas táticas adaptativas eutilizando-se dos próprios recursos institucionaispara construir um mundo pessoal contrário aosobjetivos oficiais do estabelecimento. Há umclima de guerra permanente entre ambos osgrupos antagônicos e, mesmo em cada grupo,há facções e disputas, relações de poder, forçasem luta que compõem o cenário institucional.

Acreditamos que Goffman (1987), se nãode modo explícito, já apresenta o poder comouma relação dinâmica de estratégias sempreatuantes, presente em toda parte, em todos oslugares. Tais lugares revelam-se como multiplici-dade de relações de forças, em um jogo permanen-te que, através de lutas e enfrentamentosdeclarados ou velados, incessantes, transforma,reforça, inverte, origina apoios, pontos deresistência.

Contudo, sentimos a ausência de um campono qual situar as análises de Goffman (1987) quenos permitisse localizar as “instituições totais”dentro de uma evolução geral das instituições.Esse campo de referências históricas que faltaem Goffman, nós o encontramos na obra deMichel Foucault, no que se refere a uma históriado desenvolvimento das instituições que seocupam com presos, loucos, estudantes edoentes (Foucault, 1984, 1999a, 1999b). Como

já dissemos, parece-nos que Goffman não temuma percepção apenas repressiva do poder,enquanto que Foucault apresenta mais clara-mente o poder como portador de uma positividadeprodutiva, tanto de saberes quanto de sujeitos.

A SOCIEDADE DISCIPLINAR

Foucault (1999b, p.118), ao estudar ofuncionamento do poder nas sociedades moder-

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nas, afirma que procedimentos disciplinares jáexistiam há muito tempo nos conventos, no

exército, nas oficinas. “Mas as disciplinas setornaram no decorrer do século XVII e XVIIIformas gerais de dominação”. Elas seriam umasofisticação da tecnologia conventual monásticaque, apesar de implicar a obediência a umsuperior, tinha como objetivo principal o aumentodo autodomínio.

O momento histórico das disciplinas é omomento em que nasce uma arte do corpohumano, que visa não unicamente oaumento de suas habilidades, nem

tampouco aprofundar sua sujeição, mas aformação de uma relação que no mesmomecanismo o torna tanto mais obedientequanto mais é útil, e inversamente (Foucault,1999b, p.119).O corpo humano foi então submetido a uma

“anatomia política” e igualmente a uma “mecânicado poder” que o esquadrinha, desarticula,recompõe. A disciplina fabrica corpos submissos,exercitados, fortes, aumenta sua aptidão e aomesmo tempo sua dominação. Uma “microfísica”do poder produz um investimento político eminucioso do corpo, tendendo, desde o séculoXVII, a cobrir todo o âmbito social.

Uma observação minuciosa do detalhe, eao mesmo tempo um enfoque políticodessas pequenas coisas, para controle eutilização dos homens. Sobem através daera clássica, levando consigo todo umconjunto de técnicas, todo um corpo deprocessos e de saber, de descrições, dereceitas e dados. E desses esmiuça-mentos, sem dúvida, nasceu o homem dohumanismo moderno (Foucault, 1999b,p.121).

A instituição total como organizaçãoimplementada pelo poder disciplinar

Vamos apresentar o recenseamento queFoucault fez dos diversos procedimentos etécnicas que constituem o poder disciplinar eseus efeitos microfísicos, implementados nasinstituições totais.

Inicialmente, a tecnologia disciplinar promo-ve a distribuição dos indivíduos no espaço,

utilizando diversos procedimentos: o enclaustra-mento (baseado no modelo conventual); oquadriculamento celular e individualizante (“cadaindivíduo no seu lugar; e, em cada lugar, umindivíduo”); a regra das localizações funcionais(vigiando ao mesmo tempo em que cria umespaço útil); a classificação e a serialização(individualizando os corpos ao distribuí-los efazendo-os circular numa rede de relações). Assim, essa tecnologia, organizando celas,lugares, fileiras, cria espaços altamentecomplexos, incidindo nos planos arquitetônico,funcional e hierárquico:

São espaços que realizam a fixação epermitem a circulação; recortam segmentosindividuais e estabelecem ligações opera-tórias; marcam lugares e indicam valores;garantem a obediência dos indivíduos, mastambém uma melhor economia do tempo edos gestos (Foucault, 1999b, p.127).Em segundo lugar, a tecnologia disciplinar

visa a um minucioso controle da atividade.Fundamental para esse controle é a administraçãodo tempo através do estabelecimento do horário,tempo estritamente organizado também a partir dos moldes monásticos, mas então afinados demodo radical: contam-se os quartos de hora,minutos, segundos. Regularidade, exatidão eaplicação são características fundamentais dotempo disciplinar.

Investe-se ainda numa elaboração temporaldo ato através de uma decomposição precisados gestos e movimentos, visando ajustar ocorpo a imperativos temporais. Assim, “o tempopenetra o corpo, e com ele todos os controlesminuciosos do poder” (Foucault, 1999b, p.129).O controle disciplinar põe o corpo e o gesto emperfeita e absoluta correlação, pois “um corpobem disciplinado é a base do gesto eficiente”(Foucault, 1999b, p.130). Procede-se também auma codificação instrumental do corpo que temcomo objeto não a subtração, mas a síntese,ligando o indivíduo ao aparelho de produção.

O tempo monástico era fundamentalmentenegativo, baseado no princípio da não-ociosidade.

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O tempo disciplinar, pelo contrário, visa àutilização exaustiva: baseia-se no princípio de

uma utilização teoricamente crescente do tempo,intensifica o uso do mínimo instante, buscandoextrair sempre mais forças úteis. O máximo derapidez deve encontrar o máximo de eficiência.

À medida que o corpo vai se tornando alvode novos mecanismos de poder, oferece-setambém a novas formas de saber: logo o comporta-mento e as exigências orgânicas vão lenta egradualmente substituir uma física algo toscados movimentos:

O corpo, do qual se requer que seja dócil

até em suas mínimas operações, opõe emostra as condições de funcionamentopróprias de um organismo. O poder discipli-nar tem por correlato uma individualidadeque não só é analítica e ‘celular’, mastambém natural e ‘orgânica’ (Foucault,1999b, p.132).Em terceiro lugar, há um aperfeiçoamento

do “programa” da busca de perfeição místico-religiosa, que pretendia levar um indivíduo àsantidade, sob a direção de um mestre,

constituída por uma vida ascética organizada emtarefas com níveis crescentes de dificuldade. Opoder disciplinar é genético, organiza gêneses:divide a duração em segmentos, organizaseqüências de acordo com um esquema analítico,institui uma prova de qualificação no final doprocesso e estabelece séries de séries.

O “exercício” é a técnica por excelênciapela qual se impõe aos corpos tarefas ao mesmotempo repetitivas, diferentes e graduadas. Já nãovisa à salvação da alma, mas foi transformado

numa tecnologia política do corpo e da duração,num processo de sujeição interminável.

Finalmente, a tecnologia disciplinar visa àcomposição das forças, reparte os corpos, extraie acumula o tempo dos mesmos, buscandotambém compor forças para obter um aparelhoeficiente. “O corpo se constitui como peça deuma máquina multissegmentar” (Foucault, 1999b,p.139). A disciplina combina ainda sériescronológicas para formar um tempo composto demodo a extrair a máxima quantidade de forças de

cada um e combiná-las num resultado ótimo;através da arregimentação, todos os indivíduos

cumprem suas tarefas em uníssono, sob umsistema preciso de comando.Foucault (1999b, p.141) sintetiza a produção

que o poder disciplinar efetua a partir dos corposque controla: uma individualidade caracterizadacomo celular (através do jogo da repartiçãoespacial); orgânica (pois codifica formalmente asatividades); genética (ao acumular um temposegmentado e serializado) e combinatória (pelacomposição das forças). A tecnologia disciplinar - aperfeiçoada, sobretudo, a partir da matriz

conventual (Benelli, 2002a) - tende a atravessar as diversas instituições que compõem o corposocial, incidindo num nível propriamente capilar emicrofísico do tecido social. Através do processodescrito acima, o poder disciplinar constrói umasociedade disciplinar, adestrando, produzindocoletivamente corpos individualizados e dóceis.Trata-se de uma modalidade de poder produtivo,e não essencialmente restritivo, mutilador ourepressivo, que liga as forças para multiplicá-lase utilizá-las em sua totalidade, apropriando-sedelas ainda mais e melhor. A ação do poder disciplinar é essencialmente produção desubjetividade moderna.

Instrumentos t écnicos para o adestramentodisciplinar

A disciplina ‘fabrica’ indivíduos; ela é atécnica de um poder que toma os indivíduos aomesmo tempo como objetos e como instrumentosde seu exercício. “(...) O sucesso do poder disciplinar se deve sem dúvida ao uso deinstrumentos simples: o olhar hierárquico , asanção normalizadora e sua combinação numprocedimento que lhe é específico, o exame”(grifo meu) (Foucault, 1999b, p.143). Visibilidadetotal e irrestrita é a nova estratégia utilizadapelo poder disciplinar a fim de realizar o contro-le – sem uso da violência ostensiva – para oexercício de uma vigilância produtiva. Cria-se umdispositivo, “observatório” que obriga pelo jogo doolhar um aparelho onde técnicas óticas efetuammanobras de poder: olho do poder que vigia,

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produz, torna inteiramente visíveis os indivíduossobre os quais incide.

O acampamento militar é o diagrama de umpoder que age pelo efeito de uma visibilidadegeral. Durante muito tempo encontraremosno urbanismo, na construção das cidadesoperárias, dos hospitais, dos asilos, dasprisões, das casas de educação, essemodelo do acampamento ou pelo menos oprincípio que o sustenta: o encaixamentoespacial das vigilâncias hierarquizadas(Foucault, 1999b, p.144).Há uma problematização da arquitetura no

sentido de tornar visíveis e observáveis os quenela se encontram. A arquitetura passa assim aser um operador que visa a transformação dosindivíduos: sua incidência sobre aqueles queabriga produz um domínio sobre seu comporta-mento, propaga até eles efeitos de poder, expõem--nos ao saber e ao conhecimento, modifica-os.

Assim é que o hospital-edifício se organizapouco a pouco como instrumento de açãomédica (...) um operador terapêutico. Comoa escola-edifício deve ser um operador de

adestramento, (...) um aparelho de vigiar (Foucault, 1999b, p.145).Há uma objetivação progressiva e um

quadriculamento detalhado dos comportamentosindividuais:

As instituições disciplinares produziramuma maquinaria de controle que funcionoucomo um microscópio do comportamento;as divisões tênues e analíticas por elasrealizadas formaram, em torno dos homens,um aparelho de observação, de registro ede treinamento (Foucault, 1999b, p.145).Um estabelecimento circular, oPanopticon

de Bentham (Foucault, 1984; 1999b; 1999c),capacitaria perfeitamente que o olho do poder vigiasse efetiva e permanentemente tudo, aomesmo tempo fonte de luz e ponto de conver-gência do que deve ser sabido. A estruturapiramidal permite a organização de uma vigilânciaescalonada: forma uma rede sem lacunas,mutiplicando seus degraus, de forma discreta,potencializando os efeitos do dispositivo

disciplinar. A decomposição hierárquica, pira-midal, do poder disciplinar aumenta sua sutileza

e sua função produtiva: tornar a vigilância maisescalonada é torná-la mais funcional, nas diversasinstituições disciplinares.

A vigilância hierárquicaorganiza-se como um poder múltiplo, auto-mático e anônimo (...) seu funcionamento éde uma rede de relações de alto a baixo,mas também até um certo ponto de baixopara cima e lateralmente; essa rede“sustenta” o conjunto, e o perpassa deefeitos de poder que se apóiam uns sobre

os outros: fiscais perpetuamente fiscali-zados (...) funciona como uma máquina(...) é o aparelho inteiro que produz “poder”e distribui os indivíduos nesse campopermanente e contínuo (Foucault, 1999b,p.148).Poder “discreto” que funciona silencioso e

permanentemente, poder “indiscreto” onipresente,onisciente, que tudo vê, tudo sabe, sempreatento, alerta, esquadrinhando e controlandocontinuamente os indivíduos, através de “olhares

calculados” em jogos ininterruptos, todos vigiama todos:Graças às técnicas de vigilância, a física dopoder, o domínio sobre o corpo se efetuasegundo as leis da ótica e da mecânica,segundo um jogo de espaços, de linhas, detelas, de feixes, de graus, e sem recurso,pelo menos em princípio, ao excesso, àforça, à violência. Poder que é em aparência,menos “corporal” por ser mais sabiamente“físico” (Foucault, 1999b, p.148).

Microtribunal institucional

Um mecanismo penal autônomo funcionano interior das diversas instituições disciplinares,possuidor de um privilégio auto-outorgado defazer justiça, de impor leis próprias, elaborar catálogo de delitos específicos, criar instânciasde julgamento e formas particulares de sanção.Uma ordem jurídica se inscreve no cerne dessasinstituições: os regulamentos obrigam tantoquanto a sanção legal no campo jurídico, sanção

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terapêutica no hospital, pedagógica na escola,reeducativa na prisão.

Uma micropenalidade repressiva atua sobreos mais ínfimos comportamentos e detalhes deconduta. Todo um conjunto de processos sutis éorganizado num plano que vai do castigo físico,passando por privações calculadas até aspequenas humilhações. Aquele que se afasta ounão se submete à norma receberá a sanção quese destina a fazê-lo retornar ao interior da norma.Goffman (1987, p.24) apresenta os “processosde mortificação do eu” como processos padroni-zados que expressam e exemplificam o funciona-

mento da sanção normalizadora.O “circuito”, descrito por Goffman (1987,

p.40) “como uma perturbação na relação usualentre o ator individual e seus atos”, permitepenalizar os aspectos mais tênues do compor-tamento, inserindo o indivíduo num universopunitivo e persecutório. No “circuito”, uma agênciacria uma resposta defensiva no internado e depoisutiliza essa resposta para seu ataque seguinte.O indivíduo descobre que sua resposta protetoradiante de um ataque a sua pessoa falha nasituação, pois não se pode defender da formausual ao tentar estabelecer uma distância entresi mesmo e a situação mortificante.

Goffman (1987, p.41) indica também atiranização do indivíduo através de um processode infantilização social que retira dele suaautonomia, liberdade de ação e capacidade dedecisão, perturbando decididamente suacapacidade de autodeterminação. As menorespartes de sua atividade ficam sujeitas aregulamentos e julgamentos da equipe dirigente.

A vida do internado é constantemente vigiada esancionada do alto, sobretudo no período inicialde sua estada, antes de ele se acostumar e sesubmeter aos regulamentos sem pensar. Cadaespecificação normativa da conduta priva oindivíduo da oportunidade de equilibrar suasnecessidades e objetivos de maneira pessoal-mente eficiente, violentando a autonomia pessoal.O controle minucioso é extremamente limitador numa instituição total. Além da tiranização, ointernado também está submetido ao processode arregimentação (Goffman, 1987, p.44), que

indica a obrigação de executar a atividade reguladaem uníssono com grupos de outros internados.

Também existe um sistema de autoridadeescalonada (Goffman, 1987, p.45): qualquer pessoa da equipe dirigente tem o direito de impor disciplina a qualquer dos internados, o queaumenta claramente a possibilidade de sanção.No mundo externo, o adulto normalmente estásob a autoridade de um único superior no trabalho,sob a autoridade do cônjuge na vida doméstica ea autoridade escalonada da polícia não é onipre-sente. Os internados podem viver, sobretudo osnovatos, aterrorizados e cronicamente angus-

tiados quanto à desobediência das regras e suasconseqüências pela onipresença da autoridadeescalonada e pelos regulamentos difusos.

De acordo com Foucault (1999b, p.149), oobjeto de punição disciplinar é o desvio do queprescreve o regulamento, lei que programa ofuncionamento institucional. A inobservância, ainadequação à regra, o afastamento da mesmasão áreas de abrangência da penalidade disci-plinar, que é essencialmente jurídica. Para corrigir os desvios, o castigo disciplinar deve ser

fundamentalmente corretivo, baseado no exercíciorepetido como condição de um aprendizadointensificado. Castigar é então punir com exercí-cios numa insistência redobrada à norma.

Elabora-se uma microeconomia baseadano sistema de gratificação-sanção: uma quali-ficação dos comportamentos e desempenhoscomo bons ou maus, positivos ou negativos, quepassam a ser mensuráveis por notas ou pontos,quantificados, contabilizados. “Uma contabilidadepenal, constantemente posta em dia, permiteobter o balanço positivo de cada um” (Foucault,1999b, p.151). O passo seguinte é a integraçãodessa microeconomia penal perpétua no saber,no conhecimento dos indivíduos: as notas indicama natureza dos indivíduos bons e maus, osalunos “fortes” e “fracos”, num processo dediferenciação individualizante (cf. Pompéia, 1997,p.75: “o Livro das notas”). O comportamentogeral do indivíduo é sempre tomado como indicador de patologia ou de convalescença (Goffman,1987).

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O sistema microeconômico de gratificação-sanção é denominado por Goffman (1987, p.49)

de “sistema de privilégios” que inclui os “ajusta-mentos primários”, “ajustamentos secundários”,prêmios e castigos. A penalidade perpétua, nasinstituições disciplinares, normaliza os indiví-duos, diferenciando-os uns dos outros com baseno critério da norma: “o que se deve fazer funcionar como base mínima, como média a respeitar oucomo o ótimo de que se deve chegar perto”(Foucault,1999b, p.152).

No regime disciplinar, o objetivo dapuniçãonão é obter a expiação nem promover a repressão,

afirma Foucault. Ela produz sujeitos normalizadosao relacionar os atos, os desempenhos, oscomportamentos singulares a um conjuntonormativo ideal que funciona ao mesmo tempocomo parâmetro de comparação, espaçodiferenciador e princípio de uma regra a seguir.

O parâmetro normativo funciona coagindo auma conformidade a realizar, traçando limites,estabelecendo diferenças, criando fronteiras entreo normal e o anormal. Assim, o poder da normase baseia em um conjunto de fenômenos

observáveis, na especificação de atos em umcerto número de categorias gerais, fazendofuncionar a oposição binária do permitido e doproibido, produz diferenciação e classificação,hierarquização e distribuição de lugares. A regula-mentação normalizante não produz homogeneida-de, ela individualiza, mede desvios, determinaníveis, fixa especialidades, torna úteis asdiferenças, ajustando-as entre si, introduz toda agradação das diferenças individuais.

O exame como in strum ento de sançãonormalizadora institucional3

As técnicas da vigilância escalonada e dasanção que normaliza se unificam na produçãoda tecnologia do exame , que produz efeitos decontrole normalizante e uma vigilância que permitequalificar, classificar e punir. Técnica sofisticadana qual poder e saber se superpõem, se imbricamprofundamente. “No coração dos processos de

disciplina, ele manifesta a sujeição dos que sãopercebidos como objetos e a objetivação dos que

se sujeitam” (Foucault,1999b, p.154), mecanis-mo no qual relações de poder permitem obter econstituir campos de saber.

O hospital, a escola e o exército seorganizaram como “aparelhos de examinar”contínuos: a visita do médico ao doente nohospital e o exame escolar funcionaram comolimiar epistemológico para a assunção científicada medicina e da pedagogia. Da mesma forma,inspeções permanentes no exército permitiram odesenvolvimento de um grande saber tático. “O

exame supõe um mecanismo que liga um certotipo de formação de saber a uma certa forma deexercício do poder” (Foucault,1999b, p.156).

Segundo Foucault, o exame inverte aeconomia da visibilidade no exercício do poder :o poder disciplinar, ao exercer-se torna-se invisível,mas os objetos aos quais se aplica sãosubmetidos a um princípio de visibilidadeobrigatória. “É o fato de ser visto sem cessar, desempre poder ser visto, que mantém o sujeitoindivíduo disciplinar” (Foucault,1999b, p.156). Oexame é a técnica pela qual o poder capta osindivíduos num mecanismo de objetivação,organiza objetos no espaço que domina, até emseus graus mais baixos.

Além disso, o exame também insere aindividualidade num campo documentário :relatórios, prontuários, fichas, arquivos e pastaspessoais e dossiês são alimentados com detalhesque captam e fixam os sujeitos numa rede deanotações. “Os procedimentos de exame sãoacompanhados imediatamente de um sistemade registro intenso e de acumulação documen-tária” (Foucault,1999b, p.157). Goffman (1987,p.25) também apresenta a prática da realizaçãodos “processos de admissão” e do “dossiê”pessoal.

A escrita disciplinar também possui efeitosindividualizantes e normalizantes: ela descreve eanalisa o objeto indivíduo, mantendo-o em seustraços singulares, submetido a um saber perma-nente. É aí que Foucault localiza o nascimento

3 Os destaques em itálico desta seção são de Foucault (1999b).

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das ciências humanas, elaboradas no bojo derelações de saber/poder que realizam a coerção

dos corpos, gestos e comportamentos. Trata-sede uma dominação produtiva, que não opera por subtração ou repressão, mas visa a diferenciaçãoe a multiplicidade útil dos sujeitos.

Por fim,o exame, cercado por esta técnicada documentação, transforma o indivíduo em um“caso” , objeto de conhecimento e de poder, aomesmo tempo. “O ‘caso’ (...) é o indivíduo talcomo pode ser descrito, mensurado, medido,comparado a outros e isso em sua própriaindividualidade; e é também o indivíduo que tem

que ser treinado ou retreinado, tem que ser classificado, normalizado, etc.” (Foucault,1999b,p.159). Goffman (1987, p.70) também apresentao “registro de caso” que vai sendo produzido aolongo da carreira do internado.

O exame encontra-se no centro mesmodos processos que individualizam os sujeitoscomo efeito e objeto de poder e de saber. “Naverdade, o poder produz; ele produz realidade;produz campos de objetos e rituais de verdade.O indivíduo e o conhecimento que dele se podeter se originam nessa produção” (Foucault,1999b,p.161).

A instituição total como agência deprodução de subjetividade

Goffman (1987) diz o que são, comofuncionam e indica o que produzem as instituiçõestotais. Foucault (1984, 1999a, 1999b), por suavez, nos revela como são possíveis as instituiçõesdisciplinares e quais as razões de sua emergência,além de apontar para sua futura obsolescência edesaparecimento. Finalmente, será Deleuze(1992) aquele que nos revela a emergente socieda-de de controle como superação da sociedadedisciplinar.

Curiosamente, como vimos, Foucault(1999b) nos apresenta uma sociedade disciplinar sem brechas, na qual a resistência ao poder parece impossível. Movimentos de resistência emesmo sua possibilidade parecem ausentes nohorizonte do livro “Vigiar e Punir”. Será em outrosmomentos que Foucault (1982, 1999c) abordaráo assunto.

As análises de Goffman (1987) são extrema-mente agudas quando estudam as formas da

organização do dispositivo institucional. Se elenão chega a articular uma microfísica do poder nocontexto institucional e social, como fazexplicitamente Foucault, isso aparece numaleitura atenta em sua investigação do manicômio,da prisão e do convento. Goffman não podeconceituar o poder como relações de força emguerra, entretanto, é assim que sua análise orevela: produzindo no nível microfísico exatamentedo modo como o poder opera, para além doslimites teóricos e conceituais do autor.

Ao estudar as relações intra-institucionais,ele oscila entre os planos molares e microfísicos:estabelece polaridades de poder e não-poder,nas quais, aparentemente, este seria privilégiode um grupo minoritário que infligiria a outro maisnumeroso as conseqüências do abuso do poder;mas também apresenta um poder que se estendecomo uma rede de pontos, relações móveis,resistências, efeitos repressivos, coercitivos e,inclusive, produtivos. Estão explícitas as maisdiversas estratégias anônimas de poder. Daspráticas não-discursivas emergem concepçõesdo objeto institucional e de quais são os meios einstrumentos utilizados para trabalhá-lo.Normalmente, essa teoria e técnica da prática(pois, “na prática, a teoria é outra”) costumamestar em franca contradição e conflito com odiscurso institucional oficial.

Goffman (1987) analisa as práticas não--discursivas, o não-dito institucional, mas que éclaramente visível (e não oculto) e, portanto,dizível: ele os articula com grande sutileza.Goffman faz os “detalhes” (Foucault, 1999b,p.120) mais pitorescos e aparentemente insignifi-cantes do cotidiano institucional falarem: percebe-mos então o plano microfísico das relações intra--institucionais superando a pura e simplesdimensão organogramática (molar) e mergulhandonas diferentes estratégias nas quais o poder seramifica, circula, domina e produz.

Consideramos a subjetividade como umaprodução eminentemente social e, portanto,coletiva. No contexto institucional, ela é produzidana intersecção das práticas discursivas (imaginá-

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rias e simbólicas) e das práticas não-discursivas.Podemos dizer que o discurso subjetiva tanto

quanto as práticas. Geralmente, o discurso oficialse apresenta lacunar (ideológico) e as práticastrazem embutidas, nas suas próprias condiçõesde possibilidade, um outro discurso que, apesar de não-dito, é perfeitamente visível e extrema-mente efetivo quanto à produção de subjetividade.

As práticas sociais não-discursivas podemser detectadas nos detalhes do cotidiano dofuncionamento institucional: são aquelesaspectos realmente concretos do modo como sefazem as diversas atividades, incluem ainda o

aspecto arquitetônico, o organograma formal einformal e o mobiliário. Estudando o modoconcreto através do qual se executam as tarefas,podemos deduzir toda uma teoria e uma técnicarelativas ao objeto institucional: as práticasembutem conceitos, definições, procedimentose instrumentos para manuseio do objeto. Trata--se de fatos observáveis, visíveis, que não estãonecessariamente ocultos. Eles tendem a não ser percebidos por seu caráter demasiado óbvio epor serem recobertos pelo discurso lacunar, quecostuma mascará-los.

Vimos Foucault demonstrar como o poder produz práticas das quais extrai um saber sobreo objeto ao qual ele se aplica. Há uma íntimarelação entre o exercício do poder e a produçãode saber. Relações de poder enformam práticasdas quais emergem discursos, num procedimentocircular produtivo, do qual emergem indivíduos,sujeitos, subjetividade.

Na sociedade disciplinar, alguém exerceum poder sobre o sujeito, vigiando-o: o professor sobre os alunos; o médico sobre os doentes; opsiquiatra sobre os loucos; o guarda sobre ospresidiários. Enquanto exerce esse poder, vigiae ao mesmo tempo produz um saber a respeitodaqueles que estão sob sua jurisdição. Essesaber é caracterizado pela norma, é um saber normatizador que se ordena em termos daquiloque é estabelecido como normal ou não, corretoou incorreto, daquilo que se deve ou não fazer. Daprática desse poder/saber, vão surgir as ciênciashumanas: psiquiatria, psicologia, sociologia,pedagogia etc.

É inegável a implantação do panoptismo naarquitetura das prisões, escolas, fábricas,

hospitais etc. Trata-se de uma arquitetura devigilância que permite a um único olhar percorrer o maior número de indivíduos, rostos, corpos,comportamentos, celas. Não se trata mais deuma arquitetura do espetáculo, como era a dasociedade grega, ou dos rituais religiosos nosquais os gestos e as palavras de um únicoindivíduo podiam ser presenciados por grandesaudiências.

O panoptismo implementa e estruturadiversas instituições contemporâneas: saúde,educação, religião etc., que por sua vez seencarnam em estabelecimentos como hospitais,escolas, igrejas etc. Ele funciona no própriocotidiano desses estabelecimentos queenquadram a vida e os corpos dos indivíduos nonível mesmo da existência individual, tal comodescrito por Foucault (1999b) e por Goffman(1987), por mais antiquado que isso possaparecer. O saber que se forma a partir daobservação dos indivíduos, da sua classificação,registro, análise e comparação dos comporta-mentos, caracteriza-se como um saber tecnológico, típico a todas as instituições deseqüestro, e que está na base da construção dasdiversas ciências humanas. São jogos de poder e de saber - poder polimorfo e saber que efetuaintervenções - exercidos simultaneamentenessas instituições que transformam o tempo ea força de trabalho, integrando o homem naprodução.

Tal como foi instaurado no século XIX, ocapitalismo penetrou profundamente na existên-cia humana e um poder político realizou umasérie de operações complexas através das quais

ela foi ligada ao aparelho de produção. A partir daí, enunciados que afirmam que a essência dohomem é o trabalho começaram a surgir e aoperar efeitos de verdade. O regime capitalistaelaborou um conjunto de técnicas políticaspermeadas de poder que sujeitou o homem aotrabalho. Foi criado todo um conjunto de técnicasque incidiram diretamente no corpo e no tempohumanos, transformados em tempo e força detrabalho, utilizados na produção de mais-valia.Foi uma rede de poderes microscópicos que,intervindo sobre a existência humana, fixaram o

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homem ao aparelho de produção, tornando-otrabalhador, agente de produção. Não há produ-

ção de mais-valia sem esse poder capilar emicrofísico. A sociedade capitalista é caracterizada por

relações de produção específicas que, por suavez, são determinadas por estas relações depoder microfísico e por formas de funcionamentode saberes que plasmaram as chamadas ciênciashumanas. Assim, poder e saber encontram-semutuamente implicados, não se superpõem àsrelações de produção, mas estão profundamenteimbricados na própria constituição delas. As

ciências humanas, o homem como objeto daciência, têm como possibilidade para seusurgimento a própria gênese e construção dasociedade disciplinar, que implementou em seusdispositivos as instituições de seqüestro, ondeespaços e equipamentos de controle permitem aatualização da maquinaria do Panopticon(Foucault, 1984; 1999b; 1999c), multiplicandonelas saberes sobre o indivíduo, a normalizaçãoe a correção.

Foucault (1984), utilizando a política da

verdade como instrumento para sua análisehistórica da origem da atual sociedade disciplinar,conclui que as relações de força e relaçõespolíticas são as condições de possibilidade paraa formação de um certo número de domínios desaber. As condições políticas e econômicas daexistência não são um obstáculo ideológico parao sujeito do conhecimento, mas são as condiçõesnas quais se formam, se constituem os sujeitosde conhecimento e as relações de verdade.

O campo social é organizado segundo umparadigma bélico da luta ou da guerra de acordocom Foucault (1999c), e todas as práticas sociaiscomportam sempre a dimensão de açõesestratégicas. O poder é o elemento central emqualquer sistema social, que se exerce de modoestratégico. Aquilo que se mostra como umordenamento social é apenas um arranjomomentâneo, mais do que um bloco sólido epermanente. Trata-se somente do resultado atualnuma luta constante e nos diversos empregos dopoder. Nessa luta, o poder não é propriedade de

alguns, e os demais nunca estão totalmente deledestituídos.

Foucault (1982) afirma que a perspectiva deque o poder seja algo que se localiza somente noaparelho de Estado está equivocada. O poder estatal funciona atravessado por um sistema depoderes que o compõem e ultrapassam. Eletampouco é apenas um instrumento do modo deprodução dominante, pois foi justamente o poder disciplinar moderno que, ao submeter o tempo aoimperativo da produção (Foucault, 1984),possibilitou a emergência do Modo de ProduçãoCapitalista (MPC). O poder não deve ser entendido

como agente basicamente repressor, masFoucault o apresenta como pleno de uma funçãoprodutiva e criadora tanto de saberes quanto desujeitos.

Ao investigar o surgimento e constituiçãoda sociedade moderna, Foucault se perguntapelas técnicas de implementação e exercício depoder que estão na sua base. Para produzir sujeitos não bastam o uso da violência, valoresmorais, normas interiorizadas ou influênciaideológica. Foucault vai buscar as técnicas de

poder modernas que se concentraram no corpo,no saber e nas normas. A tecnologia moderna dopoder se caracteriza por uma canalizaçãoprodutiva de forças submetidas ao adestramentodisciplinar e a uma rotinização do agir em direçãoa padrões normativos fixos, a partir do que seconstrói uma noção de “normalidade”.

O primeiro lugar de exercício do poder moderno não é o plano cultural, mas os corposem sua própria materialidade concreta, física emanifestações vitais. É como uma “microfísica”que as modernas técnicas de poder se exercitamsobre a padronização e adestramento dosprocessos de movimento do corpo, visando disci-plinar os movimentos motores dos indivíduos emdireção a atividades produtivas, numa busca deextrair sua máxima eficácia. Além da dimensãodo corpo do indivíduo, o poder investe também nocontrole e desenvolvimento do comportamentobiológico das populações, na estatística dosseus níveis de natalidade, mortalidade, morbidadee saúde (Foucault, 1982).

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Mas essas técnicas de poder modernasdesenvolvem sua eficiência máxima quando se

organizam sob a forma de saberes, num cicloregular. A tecnologia do poder se formula emregras de descobrimentos científicos relativosaos corpos e à vida. São nos estabelecimentossociais, tais como clínica, prisão, hospital, escola,manicômio, fábrica etc.; que se constroemdiscursos científicos e profissionais, saberesconjugados com poderes. Poder produz saber evice-versa, pois não existe saber que não estejaalicerçado em relações de poder que erigem asformas políticas da verdade ao longo da história.

Desse modo, Foucault (1982) construiuuma grade de análise que denominou dedispositivo, com a qual pretende dar conta dasconexões entre saber/poder: um dispositivo englo-ba materiais heterogêneos, o dito e o não-dito. Apartir desses componentes díspares, o genealo-gista pode estabelecer um conjunto de relaçõesflexíveis, reunindo-as num único aparelho demodo a isolar um problema específico. Munidodessa ferramenta, o genealogista é capaz dedemarcar a natureza da relação que pode existir entre esses elementos discursivos e não-discursi-vos, além de evidenciar a função estratégica dodispositivo na medida em que responde àarticulação entre produção de saber e modos deexercício de poder que são dominantes em cadamomento histórico.

CONCLUSÃO

O lugar das instituiç ões disciplin ares nasociedade contemporânea

Observando concretamente a realidadeatual, sabemos que o poder e as práticas discipli-nares, no século XXI, estão mais sofisticados equalitativamente mais dispersos na vida socialcomo um todo. Mas nossa perspectiva deanálise neste artigo, sem desprezar esse fato,concentra-se e focaliza universos institucionaliza-dos mais restritos, pois a atuação dos profissionaisda saúde coletiva (psicólogos, terapeutasocupacionais, assistentes sociais, médicos,psiquiatras etc.) dificilmente se ocupa com a

totalidade do campo social, que é consideradoum importante pano de fundo.

Nossa ação profissional é normalmentesituada em contextos institucionais específicos.Nesses ambientes, notamos que continuamsendo implementadas inclusive as estratégiasmais grosseiras de normalização disciplinar mapeadas por Goffman (1987) e Foucault (1999b),apesar da sofisticação trazida pela tecnologia:telefone celular, Internet, equipamentos de monito-ração de lojas, empresas, ruas e praias públicascom câmeras, rastreamento via satélite, informa-tização do controle e gerenciamento de pessoas

nos mais diversos tipos de estabelecimento.Particularmente no que tange à saúde

mental no âmbito maior da saúde coletiva, devidoao clássico descuido e falta de investimentosgovernamentais, continuamos com instituiçõesnas quais vigoram práticas totalitárias tãorudimentares ainda que poderíamos considerar tais estabelecimentos verdadeiras “excrescên-cias” não só do ponto de vista temporal, masinclusive quanto à própria transformação esofisticação das tecnologias de controle.

Sendo a sociedade um tecido formado por uma rede de instituições sociais, os problemaspsicossociais devem ser contextualizados noplano institucional e sociopolítico nos quaisemergem para serem adequadamente equaciona-dos sob pena de permanecermos em conside-rações funcionalistas que apenas mascaram arealidade do poder e da política, reduzindo-os aquestões de ordem “psicológica” ou “sociológica”individuais. Muitas vezes, provavelmente, o quetomamos como efeito colateral é, na verdade, o

produto principal da ação institucional, apesar detodos os seus discursos altruístas, plasmadosnos seus projetos oficiais.

Podemos afirmar que dominação, aumentoda alienação social, adaptação sociocultural,mistificação ideológica são funções das diversasinstituições sociais na sociedade burguesacapitalista. As ciências humanas emergentesnos séculos XIX e XX nasceram com esse mandatode gerenciamento das populações para amanutenção do sistema (Foucault, 1999b). Desde

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sempre, e muito antes, essa também foi a funçãosocial da religião: manutenção ideológica do

sistema social, na antigüidade e no mundomedieval. Na modernidade, o controle socialestatal ganhou ares de cientificidade (Foucault,1999b).

O que nos ocupa neste estudo é a análisede instituições entendidas como elementos deum dispositivo articulador das relações entreprodução de saberes e modos de exercício dopoder. Por isso retomamos a descrição dedeterminadas instituições: aquelas que, numdado momento histórico, constituem peças na

engrenagem de um tipo específico de sociedade,que Foucault (1984; 1999b) nomeou como“instituições disciplinares”. Nesse sentido, o quea genealogia de Foucault nos proporciona é umaanálise pragmática da nossa situação atual, hajavista que ainda vivemos numa sociedadedisciplinar, pelo menos no que diz respeito a umaboa parte da vida social alijada da produção econsumo de tecnologia de ponta. A partir dosestudos que realizamos, entendemos que umelemento estrutural das instituições em geral é odescompasso e a contradição entre o planoestabelecido em seus estatutos e as práticasimplementadas em seu projeto cotidiano. Essacisão formal encontra seu sentido no fato de queo sucesso de uma instituição depende do seuaparente fracasso como uma organização formalque se dispõe a realizar alguns objetivosespecíficos.

Foucault (1999b) ressalta que a principalfunção das instituições no estrato sócio-históricoda sociedade disciplinar é de normalização,implementando práticas classificatórias, hierar-quizantes, distribuindo lugares. Desse modo, oatual campo enunciativo que possibilita “ver” e“falar” algo (remetendo às práticas) aprisiona ealiena ambos os pólos (agentes institucionaisdirigentes e clientela). O que uma instituição visaé controlar os desvios dos sujeitos enquantoindivíduos, esquadrinhando seus comporta-mentos e efetuando sobre eles uma vigilânciaconstante. Quase poderíamos dizer que osdiversos atores institucionais “não sabem o quefazem”, afinal, é seu ser social que determina sua

consciência e suas práticas. Sabemos que suaação é historicamente condicionada e determi-

nada pelas condições sociais gerais de produçãoe reprodução da existência.Também é verdade que se uma instituição

cumprisse o que se propõe a realizar, ela sedissolveria. E as instituições tendem a resistir aos processos de dissolução, por isso gastamgrande parte de suas energias em esforços deautomanutenção. Mas temos o direito de exigir das instituições o cumprimento do “contratosimbólico” (Costa-Rosa, 2000; 2002), questionan-do até que ponto os instrumentos utilizados têm

alguma conexão com a possibilidade decumprirem suas promessas.Podemos afirmar que a institucionalização

da vida do indivíduo produz um tipo de subjetivi-dade específica trabalhando na sua formaçãoatravés de práticas objetivantes e subjetivantesque incidem diretamente na sua constituiçãosubjetiva, promovendo a explicitação de várias desuas possibilidades neuróticas, psicóticas eperversas, tal como podemos verificar em Castel(1978), Guirado (1986), Goffman (1987), Cruz(1989), Tagliavini (1990), Ferraz e Ferraz (1994),Foucault (1999b), Benelli & Costa-Rosa (2002),Benelli (2002; 2003). Embora muitos dessesautores não utilizem explicitamente a expressão“produção de subjetividade”, eles caracterizambem sua produção, destacando os efeitos iatrogê-nicos do processo de institucionalização depessoas.

Os saberes psi devem abrir mão do poder de controle que lhes foi historicamente delegado,quando se encomendava que eles gerenciassema loucura e controlassem os distúrbios da popu-lação. Superando a mera função de mantenedoresda ordem pública, renunciando à condição deinstrumentos promotores de segurança públicaao administrarem a “periculosidade social” dosindivíduos desviantes, os profissionais psi podemorientar sua ação na direção de uma éticasingularizante.

Na sociedade capitalista, as instituiçõesmetabolizam a contradição principal (capital/trabalho) através de diversas estratégias. Asrelações de poder são escamoteadas e interpreta-

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das de um modo funcionalista: tendência a umapsicologização interiorizante e individualizante,

ou a uma sociologização que universaliza osinteresses da equipe dirigente (representantedas forças hegemônicas sociais e institucionais),negação das contradições sociais reais e umprocesso de naturalização que elude ahistoricidade dos fatos (Albuquerque, 1980).

Acreditamos que seja necessário pensar as relações de poder situadas no conjunto depráticas sociais que produzem os sujeitos comocorpos dóceis, adestrados e seres desejantes(Foucault, 1999b). Uma articulação pertinente

dos fenômenos emergentes no contextoinstitucional pode ser elaborada num processode análise institucional, procurando superar posicionamentos funcionalistas ingênuos.Pensamos que as dificuldades e problemas dasinstituições totais não se modificariam apenascom novos métodos e técnicas de gerenciamentoinstitucional. A inércia do instituído tende amover os atores institucionais na direção dereceitas que prometam soluções mágicas erápidas para seus impasses e conflitos. Assim,buscam-se reformas para manutenção tudo comoestá, produzindo modificações em aspectossecundários que geram somente efeitos paliativos(Baremblitt, 1998).

Seria preciso ousadia para modificar o eixocentral das discussões: teríamos que problema-tizar o objeto institucional das diversas instituiçõestotais, desnaturalizando, “despsicologizando”,“dessociologizando” o homem que aí é processa-do, tomando-o como um sujeito infinitamentemais complexo e multifacetado do que a caricaturaempobrecida que faz dele um personagemhabitante do universo institucional totalitário.

Consideramos necessário analisar asdiversas práticas institucionais (formativas,educativas, pedagógicas, terapêuticas,correcionais, socioeducativas), problematizandoseus pressupostos subjacentes, procurandodetectar como e até que ponto tais açõesfuncionam como filtros de transformação seletivae deformante de qualquer proposta inovadora.

Trata-se mesmo de promover uma revoluçãoconceitual: dependendo de como vemos determi-

nado objeto, partimos da consideração de suasuposta natureza essencial para a produção de

saberes e técnicas para trabalhá-lo. Os meios eos fins seriam então decorrentes dessa naturezapresumida do objeto. É por isso que acreditamosna importância de uma análise das práticas,daquilo que fazemos no contexto institucional. Ofazer embute em si uma teoria, um objeto,saberes e técnicas: produz subjetividade, modosde existência, sujeitos, universos de materiali-dade social. Tal processo pode se submeter aosentido do processo hegemônico de produção desubjetividade, mas também pode se orientar nosentido de produções singularizadas.

Nesse sentido, Costa-Rosa (2000, p.151)estabelece alguns parâmetros importantes nacomposição de um determinado paradigma, quedevem ser observados quando procuramosestudar e caracterizar uma determinadainstituição, evitando perspectivas funcionalistas:a) concepção do ‘objeto’ e dos ‘meios de trabalho’,que dizem respeito às concepções do objetoinstitucional e concepção dos meios e instru-mentos de seu manuseio (inclui ainda o aparelho jurídico-institucional, multiprofissional e teórico--técnico, além do discurso ideológico); b) formasde organização do dispositivo institucional: comose organizam as relações intra-institucionais,organograma, relações de poder e de saber;c) formas de relacionamento com a clientela;d) formas de seus efeitos típicos em termos deresolutividade e éticos, que inclui os fins políticose socioculturais amplos para os quais concorremos efeitos de suas práticas. As instituições totaispodem ser inseridas num paradigma denominadoasilar e podemos compreender claramente sua

dinâmica ao situá-las nesse contexto (Costa--Rosa, 2000).

Muitas questões pedagógicas, psicoló-gicas, psiquiátricas, hospitalares, da saúdecoletiva, etc . podem se tornar mais inteligíveisquando enquadradas num marco institucionalglobal. Entendemos que os problemas institu-cionais são também problemas sociais. Soluçõestécnicas muitas vezes não são suficientes pararesolvê-los, pois exigem soluções políticas parasua metabolização. A política não é uma questão

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técnica (eficácia administrativa) nem científica(conhecimentos especializados sobre geren-

ciamento ou administração), é ação e decisãocoletiva quanto aos interesses e direitos dopróprio grupo social.

REFERÊNCIAS

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Recebido para publicação em 20 de outubro de2003 e aceito em 21 de outubro de 2004.