8

BENJAMIN,Walter.a Crise Do Romance in Obras Escolhidas v1

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: BENJAMIN,Walter.a Crise Do Romance in Obras Escolhidas v1

5/11/2018 BENJAMIN,Walter.a Crise Do Romance in Obras Escolhidas v1 - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/benjaminwaltera-crise-do-romance-in-obras-escolhidas-v1 1/7

 

A crise do romanceSobre Alexandersplatz, de D3bUn*

N o sentido da poesia epica, a existencia e urn mar. Naohi nada mais epico que 0mar. NaturaImente, podemos rela-cionar-nos com 0 mar de diferentes formas. Podemos, porexemplo, deitar na praia, ouvir as ondas ou colher os molus-cos arremessados na areia. E 0 que faz 0 poeta epico. Mastambem podemos percorrer 0mar. Com muitos objetivos, e

sem objetivo nenhurn. Podemos fazer uma travessia maritimae cruzar 0oceano, sem terra a vista, venda unicamente 0ceu eo mar. E 0 que faz 0 romancista. Ele e 0 mudo, 0 solitario.o homem epico Iimita-se a repousar. No poema epico. 0povorepousa, depois do dia de trabalho: escuta, sonha e colhe. 0romancista se separou do povo e do que ele faz. A matriz doromance e 0individuo em sua solidao, 0 homem que naa podemais falar exemplarmente sobre suas preocupaeoes, a quemninguem pode dar conselhos, e que nAa sabe dar conselhos aninguem. Escrever urn romance significa descrever a existenciahumana, levando 0 incomensuravel ao paroxismo. A distanciaque separa 0 romance da verdadeira epopeia pode ser avaliadase pensarmos na obra de Homero ou Dante. A tradicao oral,

(*) D8blin, Alfred, Berlin Alexanderplatz. Die Geschichte von Franz Biber-

kopft . Berlim, S. Fischer Verlag, 1929. SJOp_

Page 2: BENJAMIN,Walter.a Crise Do Romance in Obras Escolhidas v1

5/11/2018 BENJAMIN,Walter.a Crise Do Romance in Obras Escolhidas v1 - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/benjaminwaltera-crise-do-romance-in-obras-escolhidas-v1 2/7

 

MAGIA E T£cNICA, ARTE E POLITICA 55

patrimonio da epopeia, nada tern em eomum com 0 que cons-

titui a substincia do romance. 0 que distingue 0 romance detodas as outras- formas de prosa - contos de fadas, sagas,

proverbios, farsas - e que elenem provem da tradi~io oralnem a alimenta. Essa caracteristica 0 distingue, sobretudo, danarrativa, que representa, na prosa, 0espirito epico em toda asua pureza. Nada contribui mais para a perigosa mudez dohomem interior, nada mata mais radicabnente 0 espirito danarrativa que 0 espaco cada vez maior e cada vez mais impu-dente que a leitura dos romances ocupa em nossa existSncia.Por isso, a citacao seguinte contem a voz do narrador nato,

insurgindo-se contra 0romancista: "Nio quero alongar-me natese de que eonsidero utilliberar do livro 0 elemento epico ...uti1 sobretudo no que diz respeito it Iinguagem, 0 livro e amorte das linguagens autenticas. 0 poeta epico que se limita aescrever nio dispOe das fo~as lingUisticas mais importantes emais constitutivas". Flaubert nio teria falado assim. E ssa te se

e de Doblin, Ele a expOs pormenorizadamente no primeiroanuario da S~io de Poesia da Academia Prussiana e t a s Artes,

e sua Constru,iio da obra epica e uma contribuicao magistrale bem documentada para a compreensio da crise do romance,que se inicia com a restauracao da poesia epica e que encon-tramos em toda parte. inclusive no drama. Quem refletir sa -

bre essa palestra de Dablin nio precisara mais ater-se aosindicios extemos dessa crise, que se manifesta no fortaleci-mento da radicalidade epica. Nio se surpreenderi mais com aavalancha de romances biograficos e hist6ricos. Como te6rico,

Doblin niio se resigna com essa crise, mas antecipa-se a ela e atransforma em coisa sua. Seu ultimo livro mostra que em suaproducao a teoria e a pritica coincidem. .

NAohi nada mais instrutivo que comparar essa atitudede Doblin com a atitude igualmente soberana, igualmenteconcretizada na pratica, igualmente precisa e, no entanto, emtudo oposta it primeira, que se manifest a no Diario dos moe-deiros falsos, recentemente publicado por Andre Gide. A si-tuacao atual da literatura epica se exprime com toda a nitidez,a contrario sensu, na inteligencia crltica de Gide. Nesse co-mentario autobiogrifico sobre seu ultimo romance, 0 autordesenvolve a teoria do "roman pur". Com 0 maximo de suti-leza, descarta os elementos narrativos simples, combinadosentre si de forma linear (caracterlsticas importantes da epo-

Page 3: BENJAMIN,Walter.a Crise Do Romance in Obras Escolhidas v1

5/11/2018 BENJAMIN,Walter.a Crise Do Romance in Obras Escolhidas v1 - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/benjaminwaltera-crise-do-romance-in-obras-escolhidas-v1 3/7

 

5 6 WALTER BEN JAM IN

peia), em beneficio de procedimentos mais intelectualizados,

puramente romanescos, 0 que tambem significa, no caso, ro-manticos. A posi~ao dos personagens com relaeao a ~ao, a

posicao do autor com rel~ao a eles e a sua tecnica, tudo issodeve fazer parte integrante do proprio romance. Em suma,

esse "roman pur" e interioridade pura, nio conhece a dimen-sao extern a e constitui, nesse sentido, a antitese mais com-pleta da atitude epica pura, representada pela narrativa.

o ideal gideano do romance, exatamente oposto ao de DobIln,eo romance escritural puro, As posi~5es de Flaubert sao de-fendidas talvez pela ultima vez. Nio admira que a palestra de

Doblin represente a reacao mais extrema a esse ponto de vista."Talvez os senhores levantem as mios a cabeca, se eu lhesdisser que aconselho os autores a serem decididamente liricos,dramaticos, e mesmo reflexives, em seu trabalho epico. Mas

insisto nisso ."A perplexidade de muitos leitores desse novo livro mostra

como essa insisrencia foi tenaz. e verdade que raramente sehavia narrado nesse estilo, raramente a serenidade do leitor

fora perturb ada por ondas tio altas de acontecimentos e re-flexOes, raramente ele fora assim molhado, ate os ossos, pelaespuma da linguagem verdadeiramente falada. Mas nio enecessariousar expressOesartificiais, falar de "dialogue mte-rieur" ou aludir a Joyce. Na realidade, trata-se de uma coisainteiramente diferente. 0 principio estilistico do livro e a mon-tagem. Material impresso de toda ordem, de origem pequeno-burguesa, hist6rias escandalosas, acidentes, sensaeoes de1928, cancoes populares e anuncios enxameiam nesse texto •.}..montagem faz explodir 0 "romance". estrutural e estilistica-mente, e abre novas possibilidades. de carater epico. Princi-palmente na forma. 0 material da montagem esta longe de serarbitrario, A verdadeira montagem se baseia no documento.Em sualuta fanatica contra a obra de arte, 0 dadaismo colo-cou a seu service a vida cotidiana, atraves da montagem. Foi 0prirneiro a proclamar, ainda que de forma insegura, a hege-monia exclusiva do autentico. Em seus melhores momentos,

o cinema tentou habituar-nos a montagem. Agora, ela se tor-nou pela primeira vez utilizavel para a literatura epica. Osversiculos da Biblia, asestatisticas, os ten os publicitltrios saousados por Doblin para conferir autoridade a ~ao epica. Elescorrespondem 80S versos estereotipados da antiga epopeia.

Page 4: BENJAMIN,Walter.a Crise Do Romance in Obras Escolhidas v1

5/11/2018 BENJAMIN,Walter.a Crise Do Romance in Obras Escolhidas v1 - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/benjaminwaltera-crise-do-romance-in-obras-escolhidas-v1 4/7

 

MAGiA E rtCNICA, ARTE E POLITICA 57

Tlo densa e essa montagem que 0 autor, esmagado porela, mal consegue tomar a palavra. Ele reservou para si aorganizacao dos capitulos, estruturados no estilo das narra-

~Oespopulares: quanto ao resto, nao tern pressa em fazer-seouvir. (Ele tera, mais tarde, 0que dizer.) t; : surpreendente porquanto tempo ele acompanha seus personagens, sem correr 0risco de faze-los falar. Como 0 poeta epico, ele chega ate ascoisas com grande lentidlo. Tudo 0 que acontece, mesmo 0

mais repentino, parece preparado ha longo tempo. Inspira-o,nessa atitude, 0proprio espirlto do dialeto berlinense. 0 ritmodo seu movimentoe vagaroso. Pois0berlinense fala como co-

nhecedor, relaeionando-se amorosamente com 0 que diz. Eledegusta 0 que diz. Quando insulta, zomba ou ameaea, eletoma algum tempo para faze-lo. Glassbrenner acentuou asqualidades dramaticas do dialeto berlinense. Aqui ele e son-dado em suas profundidades epicas; 0 navio de Franz Biber-kopf tern urna earga pesada, mas nAocorre 0risco de enca-lhar. 0 livro e um monumento a Berlim, porque 0 narradornAose preocupou em cortejar a cidade, com 0 sentimenta-

lismo de quem eelebra a terra natal. Ele fala a partir da ci-dade. Berlim e seu megafone. Seu dialeto e uma das foreasque sevoltam contra 0carater fechado do velhoromance. Poisesse livronada tern de fechado. Ele tern sua moral, que afetamesmo os berlinenses. (0 Abraham Tonelli. de Tieck, ji ha-via mostrado em ~Ao "0focinho berlinense", • mas ninguemtinha ousado ainda curar essaenfermidade.)

Vale a pena investigar essa cura, atraves de Franz Biber-

kopf. 0 que se passa com ele? Mas uma questao previa seimpoe: por que 0 livro se chama Berlin Alexanderplatz; en-quanto A hist6ria de Franz Biberkopf s O aparece como sub-titulo? 0 que e , em Berlim, Alexanderplatz? Eo lugar onde sedAo.nos tiltimos dois anos, as transformaeoes mais violentas,onde guindastes e escavadeiras trabalham incessantemente,onde 0 solo treme com 0 impacto dessas maquinas, com ascolunas de automoveise com 0 rugido dos trens subterraneos,

onde se escancaram, mais profundaniente que em qualqueroutro lugar, as viscerasda grandecidade, onde se abrern a luz

(.) A her/iner Scll1Iauu designa 0 estilo de falar do berlinense: irreverente,

rapido na riplica e oca.sionalmente agressivo. (N. T.)

Page 5: BENJAMIN,Walter.a Crise Do Romance in Obras Escolhidas v1

5/11/2018 BENJAMIN,Walter.a Crise Do Romance in Obras Escolhidas v1 - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/benjaminwaltera-crise-do-romance-in-obras-escolhidas-v1 5/7

 

58 WALTER BEN JAM IN

do dia OS patios dos fundos em torno da praea Georgenkirch,e onde se preservaram mais silenciosamente que em outras

partes da cidade, nos labirintos em tomo da Marsiliusstrasse

(onde as secretarias da Policia dos Estrangeiros estio alojadasem cortices) e em tomo da Kaiserstrasse (onde as prostitutaspraticam, Anoite, suas rondas imemoriais), remanescentes in-tactos da ultima decada do seculo passado. Nio e urn bairroindustrial, e sim comercial, habitado pela pequena burguesia,

No meio de tudo isso, 0 negative socio16gico desse meio: osmarginais, reforeados pelos contingentes de desempregados.

Biberkopf e urn deles. Desempregado, ele deixa a prisio de

Tegel, mantem-se honesto durante algum tempo, abre algu-mas loias, renuncia a vida respeitavel, e torna-se membro deuma quadrilha. 0 raio em que se move essa existencla, napraca, e no maximo de milmetros. Alexanderplatz rege suavida. Urn regente cruel, se se quiser. E seu poder e ilimitado.Porque 0leitor se esquece de tudo 0 que noo seja ele, aprendea preencher, nesse espaeo, sua existencia e descobre como sa-bia pouco a seu respeito, Tudo e muito diferente do que ima-

ginava 0 leitor ao tirar esse livro da estante. Ele nao tern 0

aspecto de urn "romance social". Ninguem donne aqui ao arlivre. Todos os personagens tern urn quarto. Nenhum deles evisto Aprocura de urn quarto. 0 transeunte que primeiro pe-

netra nessa praca parece ter perdido seus temores. Sem dti-vida, toda essa gente e miseravel. Mas e em seu quarto que elae miseravel, Como aconteceu isso? 0 que significa isso? Sig-nifica duas coisas. Uma grande, e outra restritiva. Algo de

grande: a miseria nao e , de fato, como 0 pequeno Moritz aimaginava. Pelo menos a miseria real, em contraste com amiseria temida. Nan apenas as pessoas, mas tambem a po-

breza e 0 desespero precisam adaptar-se As circunstancias,precisam "virar-se". Mesrno os seus agentes, 0 amor e 0 3 . 1 -

cool, revoltam-se frequentemente. Nan hft.nada de tao gravecom que niio possamos conviver durante algum tempo. Nesselivro, a miseria ostenta seu lado jovial. Ela se senta com os

homens na mesma mesa, sem que com isso a conversa se inter-rompa; eles continuam sentados e nOOparam de comer. E

uma verdade ignorada pela nova subliteratura naturalista.Por isso, urn grande narrador era necessario para reafirmaressa verdade. Diz-se que Lenin s6 odiava uma coisa com 6diomais fanatica que a miseria: compactuar com a miseria, Essa

Page 6: BENJAMIN,Walter.a Crise Do Romance in Obras Escolhidas v1

5/11/2018 BENJAMIN,Walter.a Crise Do Romance in Obras Escolhidas v1 - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/benjaminwaltera-crise-do-romance-in-obras-escolhidas-v1 6/7

 

MAGIA E TecNICA. ARTE E POLlTICA S9

atitude, com efeito, e de certo modo burguesa; nao somenteno sentido mesquinho do desleixo, mas no sentido maior dasabedoria. Nesse sentido, a hist6ria de Dablin e burguesanuma acepcao muito mais restritiva que se considerassemosapenas sua tend.Cncia e sua intencao: ela e burguesa por suaorigem. 0 que vern a tona nesse livro, de modo fascinantee com uma forca incomparavel, e a grande seducao de CharlesDickens, em cuja obra os burgueses e os criminosos coexistemem grande harmonia, porque seus interesses, embora opostos,situam-se no mesmo mundo. 0 rnundo desses marginais ehom61ogo ao mundo burgues; a trajet6ria de Franz Biber-

kopf, de proxeneta a pequeno-burgues, descreve apenas umametamorfose her6ica da consciSncia burguesa.

Poderiamos responder a teoria do "roman pur" dizendoque 0romance e semelhante aomar. Sua unica pureza esta nosal. Qual 0 sal desse livro? Acontece com 0 sal epico 0mesmoque com 0 sal quimico: ele toma rnais duraveis as coisas asquais se mesc1a. E a durabilidade e urn criterio da literaturaepica, num sentido inteiramente distinto da durabilidade que

caracteriza os demais generos literarios. Mas nao se trata deuma duracao no tempo, e sim no leitor. 0 verdadeiro leitor Ieuma obra epica para "conservar" certas coisas. E, sem du-vida, ele conserva duas coisas desse livro: 0epis6dio do braeoe 0de Mietze. Por que Franz Biberkopf e jogado debaixo deurn carro, perdendo urn braeo? E por que lhe tiram aamiga ea matam? A resposta esta na segunda pagina do livro. "Por-que ele exige da vida mais que urn sanduiche." Nesse caso,

nao exige refeieoes abundantes, dinheiro ou mulheres, masalgo de pior. Seu "grande focinho" fareja uma coisa que naotern forma.Ele esta consurnido por urna fome - a do destino.Nada mais. Esse homem precisa pintar 0 diabo na parede,alfresco, sempre de novo. Nao admira, portanto, que semprede novo 0 diabo apareca, para busca-lo. Como essa fome dedestino e saciada, saciada por toda a vida, cedendo Ingar asatisfacao com 0 sanduiehe, e como 0 marginal se transforma

num sabio - esse e 0itinerario de sua vida. No fun, FranzBiberkopf se converte num homem sem destino, "esperto",como dizem os berlinenses. Doblin descreveu esse "amadure-cimento" de Franz com uma arte inesquecivel. Assim comodurante 0Barmiswoh os judeus divulgam a crianca 0 seu se-gundo nome, ate entao secreto, Doblin dA a Biberkopf urn

Page 7: BENJAMIN,Walter.a Crise Do Romance in Obras Escolhidas v1

5/11/2018 BENJAMIN,Walter.a Crise Do Romance in Obras Escolhidas v1 - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/benjaminwaltera-crise-do-romance-in-obras-escolhidas-v1 7/7

 

60 WALTER BEN JAM IN

segundo prenome. Ele se chama. agora, Franz Karl. Ao mes-mo tempo, acontece algo de muito estranho com esse Franz

Karl, que se tomou ajudante de porteiro numa fabrica. Nio

podemos jurar que Doblin tivesse percebido isso, embora eo-nhecesse seu heroi tio intimamente. 0 que acontece e 0 se-guinte: Franz Biberkopf deixa de ser exemplar e ascende, em

vida, ao ceu dos personagens romanescos. A esperanea e amemoria 0 consolario, doravante, nesse ceu, seu cubiculo deporteiro, porque e mais "esperto" que os outros. Mas nos nio

o visitaremos nesse cubiculo. Pois essa e a lei da forma roma-nesca: no momento em que 0heroi consegue aiudar-se, sua

existencia nio pode mais ajudar-nos.Ese e certo que essaverdade vern a luz, em sua forma mais grandiosa e mais im-

placavel, na Education sen tim entale , entao a hist6ria de FranzBiberkopf e a Education sentimentale dos marginais. 0 es-tagio mais extremo, mais vertiginoso, mais definitive, mais

avancado, do velho "romance de formacao" do periodo bur-guSs.

1930