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Henri Bergson Matéria e Memória Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito Tradução PAULO NEVES MartinsFontes São Paulo 1999

Bergson, henri. matéria e memória

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Henri BergsonMatéria e Memória

Ensaio sobre a relação do corpocom o espírito

TraduçãoPAULO NEVES

Martins FontesSão Paulo 1999

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Esta obra foi publicada originalmente em francês com o títuloMATIÈRE ET MÉMOIRE por Presses üniversitaires de France em 1939.

Copyright © Presses Üniversitaires de France. Paris, 1939.Copyright © Livraria Martins Fontes Editora Ltda.,

São Paulo, 1999, para a presente edição.

2a edição

abril de J 999

TraduçãoPAULO NEVES

Revisão da traduçãoMonica Stahel

Revisão gráficaIvete Batista dos Santos

Produção gráficaGeraldo Alves

Paginação/FotolitosStudio 3 Desenvolvimento Editorial (6957-7653)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Bergson, Henri, 1859-1941.Matéria e memória : ensaio sobre a relação do corpo com o

espírito / Henri Bergson ; tradução Paulo Neves. - 2- ed. - SãoPaulo : Martins Fontes, 1999. - (Coleção tópicos)

Título original: Matière et mémoire.Bibliografia.ISBN 85-336-1021-1

1. Espírito e corpo 2. Matéria I. Título. II. Série.

99-0780 CDP-128.3

índices para catálogo sistemático:1. Matéria e memória : Filosofia 128.3

Todos os direitos para a língua portuguesa reservados àLivraria Martins Fontes Editora Ltda.

Rua Conselheiro Ramalho, 330/340

01325-000 São Paulo SP Brasil

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índice

Prefácio da sétima edição 1

I. Da seleção das imagens para a representação.O papel do corpo 11

II. Do reconhecimento das imagens. A memóriae o cérebro 83

III. Da sobrevivência das imagens. A memória e oespírito 155

IV Da delimitação e da fixação das imagens. Per-cepção e matéria. Alma e corpo 209

Resumo e conclusão 263

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PREFÁCIO DA SÉTIMA EDIÇÃO

Este livro afirma a realidade do espírito, a realidade damatéria, e procura determinar a relação entre eles sobreum exemplo preciso, o da memória. Portanto é claramen-te dualista. Mas, por outro lado, considera corpo e espí-rito de tal maneira que espera atenuar muito, quando nãosuprimir, as dificuldades teóricas que o dualismo sempreprovocou e que fazem que, sugerido pela consciência ime-diata, adotado pelo senso comum, ele seja pouco estimadopelos filósofos.

Essas dificuldades devem-se, em sua maior parte, àconcepção ora realista, ora idealista, que é feita da matéria.O objeto de nosso primeiro capítulo é mostrar que idea-lismo e realismo são duas teses igualmente excessivas,que é falso reduzir a matéria à representação que temosdela, falso também fazer da matéria algo que produziriaem nós representações mas que seria de uma natureza di-ferente delas. A matéria, para nós, é um conjunto de "ima-gens". E por "imagem" entendemos uma certa existênciaque é mais do que aquilo que o idealista chama uma

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representação, porém menos do que aquilo que o realistachama uma coisa - uma existência situada a meio caminhoentre a "coisa" e a "representação". Essa concepção da ma-téria é pura e simplesmente a do senso comum. Um homemestranho às especulações filosóficas ficaria bastante espan-tado se lhe disséssemos que o objeto diante dele, que elevê e toca, só existe em seu espírito e para seu espírito, oumesmo, de uma forma mais geral, só existe para um espí-rito, como o queria Berkeley. Nosso interlocutor haveriade sustentar que o objeto existe independentemente daconsciência que o percebe. Mas, por outro lado, esse in-terlocutor ficaria igualmente espantado se lhe dissésse-mos que o objeto é bem diferente daquilo que se perce-be, que ele não tem nem a cor que o olho lhe atribui, nema resistência que a mão encontra nele. Essa cor e essaresistência estão, para ele, no objeto: não são estados denosso espírito, são os elementos constitutivos de umaexistência independente da nossa. Portanto, para o sensocomum, o objeto existe nele mesmo e, por outro lado, oobjeto é a imagem dele mesmo tal como a percebemos: éuma imagem, mas uma imagem que existe em si.

Tal é precisamente o sentido em que tomamos a pa-lavra "imagem" em nosso primeiro capítulo. Colocamo-nos no ponto de vista de um espírito que ignorasse as dis-cussões entre filósofos. Esse espírito acreditaria natural-mente que a matéria existe tal como ele a percebe; e, jáque ele a percebe como imagem, faria dela própria umaimagem. Em uma palavra, consideramos a matéria antesda dissociação que o idealismo e o realismo operaram en-tre sua existência e sua aparência. Certamente tornou-sedifícil evitar essa dissociação, desde que os filósofos a fi-

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zeram. Pedimos no entanto que o leitor a esqueça. Se, aolongo do primeiro capítulo, apresentarem-se objeções emseu espírito contra esta ou aquela de nossas teses, que eleexamine se tais objeções não se devem a ele colocar-se numou noutro dos dois pontos de vista acima dos quais o con-vidamos a elevar-se.

Um grande progresso foi realizado em filosofia nodia em que Berkeley estabeleceu, contra os mechanicalphilosophers, que as qualidades secundárias da matériatinham pelo menos tanta realidade quanto as qualidadesprimárias. Seu erro foi acreditar que era preciso para issotransportar a matéria para o interior do espírito e fazerdela uma pura idéia. Certamente, Descartes colocava a ma-téria demasiado longe de nós quando a confundia com aextensão geométrica. Mas, para reaproximá-la, não havianecessidade de fazê-la coincidir com nosso próprio espí-rito. Fazendo isso, Berkeley viu-se incapaz de explicar osucesso da física e obrigado, enquanto Descartes havia fei-to das relações matemáticas entre os fenômenos sua pró-pria essência, a considerar a ordem matemática do uni-verso como um puro acidente. A crítica kantiana tornou-seentão necessária para explicar a razão dessa ordem mate-mática e para restituir à nossa física um fundamento sóli-do - o que, aliás, ela só conseguiu ao limitar o alcance denossos sentidos e de nosso entendimento. A crítica kan-tiana, nesse ponto ao menos, não teria sido necessária, oespírito humano, nessa direção ao menos, não teria sidolevado a limitar seu próprio alcance, a metafísica não teriasido sacrificada à física, se a matéria tivesse sido deixadaa meio caminho entre o ponto para onde Descartes a impe-lia è aquele para onde Berkeley a puxava, ou seja, enfim,

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lá onde o senso comum a vê. É aí que nós também pro-curamos vê-la. Nosso primeiro capítulo define essa ma-neira de olhar a matéria; nosso quarto capítulo tira as con-seqüências disso.

Mas, conforme anunciávamos no início, só tratamosda questão da matéria na medida em que ela interessa aoproblema abordado no segundo e terceiro capítulos destelivro, que é o próprio objeto do presente estudo: o pro-blema da relação do espírito com o corpo.

Essa relação, embora constantemente tratada ao lon-go da história da filosofia, em realidade foi muito poucoestudada. Se deixarmos de lado as teorias que se limitama constatar a "união da alma e do corpo" como um fatoirredutível e inexplicável, e aquelas que falam vagamentedo corpo como de um instrumento da alma, não restarãooutras concepções da relação psicofisiológica que a hipó-tese "epifenomenista" ou a hipótese "paralelista", tantouma como outra conduzindo na prática - quero dizer, nainterpretação dos fatos particulares - às mesmas conclu-sões. Quer se considere, com efeito, o pensamento comouma simples função do cérebro e o estado de consciênciacomo um epifenomeno do estado cerebral, quer se tomemos estados do pensamento e os estados do cérebro porduas traduções, em línguas diferentes, de um mesmo ori-ginal, tanto num caso como no outro coloca-se em prin-cípio que, se pudéssemos penetrar no interior de um cé-rebro que trabalha e assistir ao fogo cruzado dos átomos queformam o córtex cerebral, e se, por outro lado, possuísse-mos a chave da psicofisiologia, saberíamos em detalhetudo o que se passa na consciência correspondente.

A bem da verdade, eis aí o que é mais comumenteadmitido, tanto pelos filósofos quanto pelos cientistas. Ca-

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beria no entanto perguntar se os fatos, examinados semidéias preconcebidas, sugerem realmente uma hipótese des-se tipo. Que haja solidariedade entre o estado de cons-ciência e o cérebro, é incontestável. Mas há solidariedadetambém entre a roupa e o prego onde ela está pendurada,pois, se retiramos o prego, a roupa cai. Diremos por issoque a forma do prego indica a forma da roupa ou nos per-mite de algum modo pressenti-la? Assim, de que o fatopsicológico esteja pendurado em um estado cerebral, nãose pode concluir o "paralelismo" das duas séries psicoló-gica e fisiológica. Quando a filosofia pretende apoiar essatese paralelista sobre os dados da ciência, ela pratica umverdadeiro círculo vicioso; pois, se a ciência interpreta asolidariedade, que é um fato, no sentido do paralelismo,que é uma hipótese (e uma hipótese muito pouco inteli-gível1), isto é feito, consciente ou inconscientemente, porrazões de ordem filosófica; porque a ciência se habituou,graças a uma certa filosofia, a crer que não há hipótese maisplausível, mais conforme aos interesses da ciência positiva.

Ora, desde que pedimos aos fatos indicações preci-sas para resolver o problema, é para o terreno da memó-ria que nos vemos transportados. Isso era de esperar, poisa lembrança - conforme procuraremos mostrar na presenteobra - representa precisamente o ponto de interseção en-tre o espírito e a matéria. Mas pouco importa a razão: nin-guém contestará, creio eu, que no conjunto de fatos capa-

1. Sobre esse último ponto, discorremos mais particularmente numartigo intitulado "O paralogismo psicofisiológico" (Revue de métaphysiqueet de morale, novembro de 1904).

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zes de lançar alguma luz sobre a relação psicofisiológica,os que concernem à memória, seja no estado normal, sejano estado patológico, ocupam um lugar privilegiado. Nãoapenas os documentos são aqui de uma extrema abun-dância (basta pensar na massa considerável de observa-ções recolhidas sobre as diversas afasias!), como tam-bém em nenhuma outra parte a anatomia, a fisiologia e apsicologia conseguiram, como aqui, prestar-se um mútuoapoio. Para aquele que aborda sem idéia preconcebida, noterreno dos fatos, o antigo problema das relações da almae do corpo, esse problema logo parece restringir-se emtorno da questão da memória, e até mais particularmenteda memória das palavras; é daí, sem dúvida nenhuma,que deverá partir a luz capaz de esclarecer os lados maisobscuros do problema.

Eis de que modo procuramos resolvê-lo. De uma ma-neira geral, o estado psicológico nos parece, na maioriados casos, ultrapassar enormemente o estado cerebral. Que-ro dizer que o estado cerebral indica apenas uma peque-na parte dele, aquela que é capaz de traduzir-se por movi-mentos de locomoção. Tome-se um pensamento complexoque se desdobra numa série de raciocínios abstratos.Esse pensamento é acompanhado da representação deimagens, pelo menos nascentes. E estas próprias imagenssó são representadas à consciência depois que se dese-nhem, na forma de esboço ou de tendência, os movimen-tos pelos quais elas mesmas se desempenhariam no espa-ço - quero dizer, imprimiriam ao corpo estas ou aquelasatitudes, liberariam tudo o que contêm implicitamente demovimento espacial. Pois bem, é este pensamento comple-xo que se desdobra que, em nossa opinião, o estado cere-

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bral indica a todo instante. Aquele que pudesse penetrar nointerior de um cérebro, e perceber o que aí ocorre, seriaprovavelmente informado sobre esses movimentos esbo-çados ou preparados; nada prova que seria informado sobreoutra coisa. Ainda que fosse dotado de uma inteligênciasobre-humana e tivesse a chave da psicofisiologia, seriatão esclarecido sobre o que se passa na consciência cor-respondente quanto o seríamos sobre uma peça de teatroacompanhando apenas os movimentos dos atores em cena.

Eqüivale a dizer que a relação entre o mental e o ce-rebral não é uma relação constante, assim como não éuma relação simples. Conforme a natureza da peça quese representa, os movimentos dos atores dizem mais ou me-nos sobre ela: quase tudo, no caso de uma pantomima;quase nada, no caso de uma comédia sutil. Da mesmaforma, nosso estado cerebral contém mais ou menos denosso estado mental, conforme tendemos a exteriorizarnossa vida psicológica em ação ou a interiorizá-la em co-nhecimento puro.

Há portanto, enfim, tons diferentes de vida mental, enossa vida psicológica pode se manifestar em alturas di-ferentes, ora mais perto, ora mais distante da ação, con-forme o grau de nossa atenção à vida. Esta é uma dasidéias diretrizes da presente obra, a própria idéia que ser-viu de ponto de partida ao nosso trabalho. O que se tomaordinariamente por uma maior complicação do estadopsicológico revela-se, de nosso ponto de vista, como umamaior dilatação de nossa personalidade inteira que, nor-malmente restringida pela ação, estende-se tanto maisquanto se afrouxa o torno no qual ela se deixa comprimire, sempre indivisa, espalha-se sobre uma superfície tanto

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mais considerável. O que se toma ordinariamente por umaperturbação da vida psicológica, uma desordem interior,uma doença da personalidade, revela-se, de nosso pontode vista, como um relaxamento ou uma perversão da so-lidariedade que liga essa vida psicológica a seu concomi-tante motor, uma alteração ou uma diminuição de nossaatenção à vida exterior. Essa tese, como aliás a que con-siste em negar a localização das lembranças de palavrase em explicar as afasias de outro modo que não por essalocalização, foi considerada paradoxal por ocasião daprimeira publicação desta obra (1896). Atualmente ela oparecerá bem menos. A concepção da afasia, concepçãoque então era clássica, universalmente aceita e tida por in-tangível, vem sendo fortemente atacada há alguns anos,sobretudo por razões de ordem anatômica, mas em partetambém por razões psicológicas do mesmo tipo das queexpúnhamos já naquela época2. E o estudo aprofundadoe original que Pierre Janet realizou das neuroses o con-duziu, nos últimos anos, por caminhos bem diferentes eatravés do exame das formas "psicastênicas" da doença,a empregar aquelas considerações de "tensão" psicológica ede "atenção à realidade" inicialmente qualificadas de vi-sões metafísicas3.

2. Ver os trabalhos de Pierre Marie e a obra de F. Moutier, L 'apha-sie de Broca, Paris, 1908 (em particular o cap. VII). Não podemos entrar nodetalhe das pesquisas e das controvérsias relativas à questão. Não deixa-remos porém de citar o recente artigo de J. Dagnan-Bouveret, "L'aphasiemotrice sous-corticale" (Journal de psychologie normale et pathologi-que, janeiro-fevereiro de 1911).

3. P. Janet, Les obsessions et Ia psychasthénie, Paris, F. Alcan, 1903(em particular pp. 474-502).

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A bem da verdade, não estava totalmente errado qua-lificá-las assim. Sem contestar à psicologia, e nem à me-tafísica, o direito de erigir-se em ciência independente,julgamos que cada uma dessas duas ciências deve colo-car problemas à outra e é capaz, em certa medida, de aju-dar a resolvê-los. Como poderia ser diferente, se a psico-logia tem por objeto o estudo do espírito humano enquan-to funcionando utilmente para a prática, e se a metafísicaé esse mesmo espírito humano esforçando-se para desem-baraçar-se das condições da ação útil e para assumir-secomo pura energia criadora? Muitos problemas que pare-cem estranhos uns aos outros, se nos ativermos literalmen-te aos termos em que são colocados por essas duas ciên-cias, aparecem como muito próximos e capazes de seremresolvidos uns pelos outros quando aprofundamos suasignificação interior. Não teríamos acreditado, no iníciode nossas pesquisas, que pudesse haver qualquer conexãoentre a análise da lembrança e as questões que se agitam en-tre realistas e idealistas, ou entre mecanicistas e dinamistas,a respeito da existência ou da essência da matéria. No en-tanto, essa conexão é real: ela é inclusive íntima; e, se le-varmos isso em consideração, um problema metafísico ca-pital vê-se transportado para o terreno da observação, ondepoderá ser resolvido progressivamente, em vez de alimen-tar indefinidamente as disputas entre escolas no campocerrado da dialética pura. A complicação de certas partesda presente obra deve-se à inevitável imbricação de pro-blemas que se produz quando a filosofia é tomada poresse viés. Mas através dessa complicação, que tem a vercom a própria complicação da realidade, acreditamos quenão será difícil situar-se se forem mantidos os dois prin-

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cípios que nos serviram de fio condutor em nossas pes-quisas. O primeiro é que a análise psicológica deve pau-tar-se a todo momento sobre o caráter utilitário de nossasfunções mentais, essencialmente voltadas para a ação. Osegundo é que os hábitos contraídos na ação, transpostos àesfera da especulação, criam aí problemas factícios, e quea metafísica deve começar por dissipar essas obscuridadesartificiais.

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CAPÍTULO IDA SELEÇÃO DAS IMAGENSPARA A REPRESENTAÇÃO.O PAPEL DO CORPO

Iremos fingir por um instante que não conhecemosnada das teorias da matéria e das teorias do espírito, nadadas discussões sobre a realidade ou a idealidade do mundoexterior. Eis-me portanto em presença de imagens, no sen-tido mais vago em que se possa tomar essa palavra, ima-gens percebidas quando abro meus sentidos, despercebidasquando os fecho. Todas essas imagens agem e reagemumas sobre as outras em todas as suas partes elementaressegundo leis constantes, que chamo leis da natureza, e,como a ciência perfeita dessas leis permitiria certamentecalcular e prever o que se passará em cada uma de taisimagens, o futuro das imagens deve estar contido em seupresente e a elas nada acrescentar de novo. No entanto háuma que prevalece sobre as demais na medida em que aconheço não apenas de fora, mediante percepções, mastambém de dentro, mediante afecções: é meu corpo. Exa-mino as condições em que essas afecções se produzem:descubro que vêm sempre se intercalar entre estímulosque recebo de fora e movimentos que vou executar, como

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se elas devessem exercer uma influência maldeterminadasobre o procedimento final. Passo em revista minhasdiversas afecções: parece-me que cada uma delas contém,à sua maneira, um convite a agir, ao mesmo tempo coma autorização de esperar ou mesmo de nada fazer. Exa-mino mais de perto: descubro movimentos começados,mas não executados, a indicação de uma decisão mais oumenos útil, mas não a coerção que exclui a escolha. Evo-co, comparo minhas lembranças: lembro que por todaparte, no mundo organizado, julguei ver essa mesmasensibilidade surgir no momento preciso em que a natu-reza, tendo conferido ao ser vivo a faculdade de mover-se no espaço, indica à espécie, através da sensação, osperigos gerais que a ameaçam, e incumbe os indivíduosdas precauções a serem tomadas para evitá-los. Interro-go enfim minha consciência sobre o papel que ela se atri-bui na afecção: ela responde que assiste, com efeito, sobforma de sentimento ou de sensação, a todas as iniciati-vas que julgo tomar, que ela se eclipsa e desaparece, aocontrário, a partir do momento em que minha atividade,tornando-se automática, declara não ter mais necessida-de dela. Portanto, ou todas as aparências são enganosas,ou o ato em que resulta o estado afetivo não é daquelesque poderiam rigorosamente ser deduzidos dos fenôme-nos anteriores como um movimento de um movimento, ecom isso ele acrescenta verdadeiramente algo de novo aouniverso e à sua história. Atenhamo-nos às aparências;vou formular pura e simplesmente o que sinto e o quevejo: Tudo se passa como se, nesse conjunto de imagensque chamo universo, nada se pudesse produzir de realmen-te novo a não ser por intermédio de certas imagens parti-culares, cujo modelo me é fornecido por meu corpo.

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Estudo agora, em corpos semelhantes ao meu, a con-figuração dessa imagem particular que chamo meu corpo.Percebo nervos aferentes que transmitem estímulos aoscentros nervosos, em seguida nervos eferentes que partemdo centro, conduzem estímulos à periferia e põem em mo-vimento partes do corpo ou o corpo inteiro. Interrogo ofisiologista e o psicólogo sobre a destinação de uns e ou-tros. Eles respondem que, se os movimentos centrífugosdo sistema nervoso podem provocar o deslocamento docorpo ou das partes do corpo, os movimentos centrípetos^ou pelo menos alguns deles^Jazem nascer a representação _do mundo exterior. Que devemos pensar disso?

Os nervos aferentes são imagens, o cérebro é uma ima-gem, os estímulos transmitidos pelos nervos sensitivos epropagados no cérebro são imagens também. Para queessa imagem que chamo de estímulo cerebral engendrasseas imagens exteriores, seria preciso que ela as contivessede uma maneira ou outra, e que a representação do uni-verso material inteiro estivesse implicada na deste movi-mento molecular. Ora, bastaria enunciar semelhante pro-posição para perceber seu absurdo. É o cérebro que fazparte do mundo material, e não o mundo material quefaz parte do cérebro. Suprima a imagem que leva o nomede mundo material, você aniquilará de uma só vez o cé-rebro e o estímulo cerebral que fazem parte dele. Suponha,ao contrário, que essas duas imagens, o cérebro e o estímu-lo cerebral, desapareçam: por hipótese, somente elas irãose apagar, ou seja, muito pouca coisa, um detalhe insignifi-cante num imenso quadro. O quadro em seu conjunto, isto é,o universo, subsiste integralmente. Fazer do cérebro a con-dição da imagem total é verdadeiramente contradizer a si

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mesmo, já que o cérebro, por hipótese, é uma parte dessaimagem. Nem os nervos nem os centros nervosos podemportanto condicionar a imagem do universo.

Detenhamo-nos sobre esse último ponto. Eis as ima-gens exteriores, meu corpo, e finalmente as modifica-ções causadas por meu corpo às imagens que o cercam.Percebo bem de que maneira as imagens exteriores in-fluem sobre a imagem que chamo meu corpo: elas lhetransmitem movimento. E vejo também de que maneiraeste corpo influi sobre as imagens exteriores: ele lhes resti-tui movimento. Meu corpo é portanto, no conjunto domundo material, uma imagem que atua como as outrasimagens, recebendo e devolvendo movimento, com aúnica diferença, talvez, de que meu corpo parece esco-lher, em uma certa medida, a maneira de devolver o querecebe. Mas de que modo meu corpo em geral, meu siste-ma nervoso em particular engendrariam toda a minha re-presentação do universo ou parte dela? Pode dizer quemeu corpo é matéria ou que ele é imagem, pouco importaa palavra. Se é matéria, ele faz parte do mundo material, eo mundo material, conseqüentemente, existe em tornodele e fora dele. Se é imagem, essa imagem só poderá ofe-recer o que se tiver posto nela, e já que ela é, por hipótese, aimagem de meu corpo apenas, seria absurdo querer extrairdaí a imagem de todo o universo. Meu corpo, objeto des-tinado a mover objetos, é portanto um centro de ação;ele não poderia fazer nascer uma representação.

Mas, se meu corpo é um objeto capaz de exerceruma ação real e nova sobre os objetos que o cercam, eledeve ocupar ante eles uma situação privilegiada. Em geral,qualquer imagem influencia as outras imagens de uma ma-

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neira determinada, até mesmo calculável, de acordo comaquilo que chamamos leis da natureza. Como ela não teráo que escolher, também não terá necessidade de explorara região ao seu redor, nem de exercitar-se de antemão emvárias ações simplesmente possíveis. A ação necessáriase cumprirá por si mesma, quando sua hora tiver chegado.Mas supus que o papel da imagem que chamo meu corpoera exercer sobre outras imagens uma influência real, econseqüentemente decidir-se entre vários procedimentosmaterialmente possíveis. E, já que esses procedimentoslhe são sugeridos certamente pela maior ou menor vanta-gem que pode obter das imagens circundantes, é precisoque essas imagens indiquem de algum modo, em sua facevoltada para o meu corpo, a vantagem que meu corpopoderia delas obter. De fato, observo que a dimensão, aforma, a própria cor dos objetos exteriores se modificamconforme meu corpo se aproxima ou se afasta deles, quea força dos odores, a intensidade dos sons aumentam ediminuem com a distância, enfim, que essa própria dis-tância representa sobretudo a medida na qual os corposcircundantes são assegurados, de algum modo, contra aação imediata de meu corpo. À medida que meu horizontese alarga, as imagens que me cercam parecem desenhar-sesobre um fundo mais uniforme e tornar-se indiferentespara mim. Quanto mais contraio esse horizonte, tantomais os objetos que ele circunscreve se escalonam distin-tamente de acordo com a maior ou menor facilidade demeu corpo para tocá-los e movê-los. Eles devolvem por-tanto a meu corpo, como faria um espelho, sua influên-cia eventual; ordenam-se conforme os poderes crescen-tes ou decrescentes de meu corpo. Os objetos que cer-

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cam meu corpo refletem a ação possível de meu corposobre eles.

Irei agora, sem tocar nas outras imagens, modificarligeiramente aquela que chamo meu corpo. Nessa ima-gem, secciono em pensamento todos os nervos aferentesdo sistema cérebro-espinhal. Que irá acontecer? Algunsgolpes de bisturi terão cortado alguns feixes de fibras: oresto do universo, e mesmo o resto de meu corpo, perma-necerão o que eram. A mudança operada é portanto in-significante. De fato, "minha percepção" inteira desapa-rece. Examinemos mais de perto o que acaba de se pro-duzir. Eis as imagens que compõem o universo em geral,aquelas que estão próximas de meu corpo, e enfim o meupróprio corpo. Nesta última imagem, o papel habitual dosnervos centrípetos é transmitir movimentos ao cérebro eà medula; os nervos centrífugos devolvem esse movi-mento à periferia. O seccionamento dos nervos centrípe-tos só pode, portanto, produzir um único efeito realmenteinteligível, que é interromper a corrente que vai da peri-feria à periferia passando pelo centro - conseqüentemente,colocar meu corpo na impossibilidade de obter, em meioàs coisas que o cercam, a qualidade e a quantidade de mo-vimento necessárias para agir sobre elas. Isso diz respeitoà ação, e somente à ação. No entanto é minha percepçãoque desaparece. O que isso significa, senão que minhapercepção traça precisamente no conjunto das imagens, àmaneira de uma sombra ou de um reflexo, as ações vir-tuais ou possíveis de meu corpo? Ora, o sistema de ima-gens no qual o bisturi não operou mais que uma mudan-ça insignificante é aquilo que chamamos geralmente demundo material; e, por outro lado, o que acaba de desa-

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parecer é "minha percepção" da matéria. Donde, proviso-riamente, estas duas definições: Chamo de matéria o con-junto das imagens, e de percepção da matéria essas mes-mas imagens relacionadas à ação possível de uma certaimagem determinada, meu corpo.

Aprofundemos essa última relação. Considero meucorpo com os nervos centrípetos e centrífugos, com oscentros nervosos. Sei que os objetos exteriores imprimemnos nervos aferentes estímulos que se propagam para oscentros, que os centros são palco de movimentos mole-culares muito variados, que esses movimentos dependemda natureza e da posição dos objetos. Mudem-se os obje-tos, modifique-se sua relação com meu corpo, e tudo sealtera nos movimentos interiores de meus centros percep-tivos. Mas tudo se altera também em "minha percepção".Minha percepção é portanto função desses movimentosmoleculares, ela depende deles. Mas de que modo depen-de deles? Você dirá talvez que ela os traduz, e que nãome represento nada mais, em última análise, do que os mo-vimentos moleculares da substância cerebral. Mas comoteria esta proposição o menor sentido, visto que a ima-gem do sistema nervoso e de seus movimentos interioresé, por hipótese, a de um certo objeto material, e que merepresento o universo material em sua totalidade? É ver-dade que se tenta aqui contornar a dificuldade. Mostra-seum cérebro análogo, em sua essência, ao resto do univer-so material, uma imagem, conseqüentemente, se o universoé imagem. /Em seguida, como se pretende que os movi-mentos interiores deste cérebro criam ou determinam arepresentação do mundo material inteiro, imagem que

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ultrapassa infinitamente a das vibrações cerebrais, finge-senão ver mais nesses movimentos moleculares, ou no mo-vimento em geral, imagens como as outras, mas algo queseria mais ou menos que uma imagem, em todo caso deuma natureza diferente de imagem, e de onde sairia a re-presentação por um verdadeiro milagre J A matéria torna-seassim algo radicalmente diferente da representação, e delanão temos conseqüentemente nenhuma imagem; diantedela coloca-se uma consciência vazia de imagens, da qualnão podemos fazer nenhuma idéia; enfim, para preencher aconsciência, inventa-se uma ação incompreensível dessamatéria sem forma sobre esse pensamento sem matéria.Mas a verdade é que os movimentos da matéria sãomuito claros enquanto imagens, e que não há como bus-car no movimento outra coisa além daquilo que se vê. Aúnica dificuldade consistiria em fazer surgir dessas ima-gens muito particulares a variedade infinita das represen-tações; mas por que pensar nisso quando, na opinião detodos, as vibrações cerebrais fazem parte do mundo ma-terial e essas imagens, conseqüentemente, ocupam ape-nas um espaço muito pequeno da representação? - Por-tanto, o que são afinal esses movimentos, e que papelessas imagens particulares desempenham na representa-ção do todo? - Não tenho dúvida quanto a isso: trata-sede movimentos, no interior de meu corpo, destinados apreparar, iniciando-a, a reação de meu corpo à ação dosobjetos exteriores. Sendo eles próprios imagens, não po-dem criar imagens; mas marcam a todo momento, comofaria uma bússola que é deslocada, a posição de uma ima-gem determinada, meu corpo, em relação às imagens queo cercam. No conjunto da representação, são muito pouca

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coisa; mas têm uma importância capital para essa parteda representação que chamo meu corpo, pois esboçam atodo momento seus procedimentos virtuais. Há portantoapenas uma diferença de grau, não pode haver uma dife-rença de natureza entre a faculdade dita perceptiva docérebro e as funções reflexas da medula espinhal. A me-dula transforma as excitações sofridas em movimentosexecutados; o cérebro as prolonga em reações simples-mente nascentes; mas, tanto num caso como no outro, opapel da matéria nervosa é conduzir, compor mutuamen-te ou inibir movimentos. A que se deve então que "minhapercepção do universo" pareça depender dos movimen-tos internos da substância cerebral, mudar quando elesvariam e desaparecer quando são abolidos?

A dificuldade desse problema está ligada sobretudoao fato de representarmos a substância cinzenta e suasmodificações como coisas que bastariam a si mesmas eque poderiam isolar-se do resto do universo. Materialistase dualistas estão de acordo, no fundo, quanto a esse ponto.Consideram à parte certos movimentos moleculares damatéria cerebral: assim, uns vêem em nossa percepçãoconsciente uma fosforescência que segue esses movimen-tos e lhes ilumina o traçado; os outros desenvolvem nossaspercepções numa consciência que exprime sem cessar, àsua maneira, os estímulos moleculares da substância cor-tical: em ambos os casos, são estados de nosso sistemanervoso que se supõe que a percepção trace ou traduza.Mas é possível conceber o sistema nervoso vivendo semo organismo que o alimenta, sem a atmosfera onde o or-ganismo respira, sem a terra banhada por essa atmosfera,sem o sol em torno do qual a terra gravita? De uma forma

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mais geral, a ficção de um objeto material isolado não im-plicará uma espécie de absurdo, já que esse objeto tomaemprestado suas propriedades físicas das relações que elemantém com todos os outros, e deve cada uma de suasdeterminações - sua própria existência, conseqüentemen-te - ao lugar que ocupa no conjunto do universo? Nãodigamos portanto que nossas percepções dependem sim-plesmente dos movimentos moleculares da massa cerebral.Digamos que elas variam com eles, mas que esses própriosmovimentos permanecem inseparavelmente ligados aoresto do mundo material. Não se trata mais, então, ape-nas de saber de que maneira nossas percepções se ligamàs modificações da substância cinzenta. O problema am-plia-se e coloca-se também em termos muito mais cla-ros. Há um sistema de imagens que chamo minha percep-ção do universo, e que se conturba de alto a baixo porleves variações de uma certa imagem privilegiada, meucorpo. Esta imagem ocupa o centro; sobre ela regulam-setodas as outras; a cada um de seus movimentos tudo muda,como se girássemos um caleidoscópio. Há, por outro lado,as mesmas imagens, mas relacionadas cada uma a si mes-ma, umas certamente influindo sobre as outras, mas de ma-neira que o efeito permanece sempre proporcional àcausa: é o que chamo de universo. Como explicar queesses dois sistemas coexistam, e que as mesmas imagenssejam relativamente invariáveis no universo, infinitamen-te variáveis na percepção? O problema pendente entre orealismo e o idealismo, talvez mesmo entre o materialis-mo e o espiritualismo, coloca-se portanto, em nossa opi-nião, nos seguintes termos: Como se explica que as mes-mas imagens possam entrar ao mesmo tempo em dois sis-

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temas diferentes, um onde cada imagem varia em funçãodela mesma e na medida bem definida em que sofre aação real das imagens vizinhas, o outro onde todas variamem função de uma única, e na medida variável em que elasrefletem a ação possível dessa imagem privilegiada?

Toda imagem é interior a certas imagens e exterior aoutras; mas do conjunto das imagens não é possível dizerque ele nos seja interior ou que nos seja exterior, já que ainterioridade e a exterioridade não são mais que relaçõesentre imagens. Perguntar se o universo existe apenas emnosso pensamento ou fora dele é, portanto, enunciar oproblema em termos insolúveis, supondo-se que sejam in-teligíveis; é condenar-se a uma discussão estéril, em queos termos pensamento, existência, universo serão neces-sariamente tomados, por uma parte e por outra, em sen-tidos completamente diferentes. Para solucionar o debate,é preciso encontrar primeiro um terreno comum onde se,trava a luta, e visto que, tanto para uns como para outros, sóapreendemos as coisas sob forma de imagens, é em funçãode imagens, e somente de imagens, que devemos colocaro problema. Ora, nenhuma doutrina filosófica contestaque as mesmas imagens possam entrar ao mesmo tempoem dois sistemas distintos, um que pertence à ciência, eonde cada imagem, estando relacionada apenas a ela mes-ma, guarda um valor absoluto, o outro que é o mundo daconsciência, e onde todas as imagens regulam-se por umaimagem central, nosso corpo, cujas variações elas acom-panham. A questão colocada entre o realismo e o idealis-mo torna-se então muito clara: quais são as relações queesses dois sistemas de imagens mantêm entre si? E é fá-cil perceber que o idealismo subjetivo consiste em fazer

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derivar o primeiro sistema do segundo, e o realismo ma-terialista em tirar o segundo do primeiro.

O realista parte, com efeito, do universo, ou seja, deum conjunto de imagens governadas em suas relaçõesmútuas por leis imutáveis, onde os efeitos permanecemproporcionais às suas causas, e cuja característica é nãohaver centro, todas as imagens desenvolvendo-se em ummesmo plano que se prolonga indefinidamente. Mas eleé obrigado a constatar que além desse sistema existempercepções, isto é, sistemas em que estas mesmas imagensestão relacionadas a uma única dentre elas, escalonando-se ao redor dela em planos diferentes e transfigurando-seem seu conjunto a partir de ligeiras modificações destaimagem central. É dessa percepção que parte o idealista,e no sistema de imagens que ele se oferece há uma ima-gem privilegiada, seu corpo, sobre a qual se regulam asoutras imagens. Mas, se quiser ligar o presente ao passa-do e prever o futuro, ele será obrigado a abandonar essaposição central, a recolocar todas as imagens no mesmoplano, a supor que elas não variam mais em função delemas em função delas, e a tratá-las como se fizessem par-te de um sistema onde cada mudança dá a medida exatade sua causa. Somente com essa condição a ciência douniverso torna-se possível; e já que esta ciência existe, jáque ela consegue prever o futuro, a hipótese que a funda-menta não é uma hipótese arbitrária. O primeiro sistemasó é dado à experiência presente; mas acreditamos nosegundo pelo simples fato de que afirmamos a continui-dade do passado, do presente e do futuro. Assim, tanto noidealismo como no realismo coloca-se um dos dois siste-mas, e dele procura-se deduzir o outro.

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Mas, nessa dedução, nem o realismo nem o idealis-mo podem completar-se, porque nenhum dos dois sistemasde imagens está implicado no outro, e cada qual se basta.Se você propuser o sistema de imagens que não tem centro,e onde cada elemento possui sua grandeza e seu valorabsolutos, não vejo por que tal sistema se associaria a umsegundo, onde cada imagem adquire um valor indetermi-nado, submetido a todas as vicissitudes de uma imagemcentral. Será preciso portanto, para engendrar a percep-ção, evocar algum deus ex machina, tal como a hipótesematerialista da consciência-epifenômeno. Escolher-se-á,entre todas as imagens de mudanças absolutas inicialmen-te colocadas, aquela que chamamos nosso cérebro, e aosestados interiores dessa imagem será conferido o singu-lar privilégio de acompanhar-se, não se sabe como, da re-produção, desta vez relativa e variável, de todas as outras.É verdade que se fingirá não dar nenhuma importância aessa representação, vendo nela uma fosforescência que asvibrações cerebrais deixariam atrás de si: como se a subs-tância cerebral, as vibrações cerebrais, inseridas nas ima-gens que compõem essa representação, pudessem ser deuma natureza diferente delas! Todo realismo fará portantoda percepção um acidente, e por isso mesmo um misté-rio. Mas, inversamente, se você propuser um sistema deimagens instáveis dispostas em torno de um centro privi-legiado e modificando-se profundamente por deslocamen-tos insensíveis deste centro, estará excluindo em primei-ro lugar a ordem da natureza, essa ordem indiferente aoponto onde se está e ao termo por onde se começa. Vocêsó poderá restabelecer essa ordem evocando, por sua vez,um deus ex machina, admitindo-se, por uma hipótese arbi-

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traria, não se sabe qual harmonia preestabelecida entre ascoisas e o espírito, ou pelo menos, para dizer como Kant,entre a sensibilidade e o entendimento. É a ciência que setornará então um acidente, e seu êxito um mistério. - Vocênão poderia portanto deduzir nem o primeiro sistema deimagens do segundo, nem o segundo do primeiro, e estasduas doutrinas opostas, realismo e idealismo, quando re-colocadas enfim sobre o mesmo terreno, vêm, em senti-dos contrários, tropeçar no mesmo obstáculo.

Escavando agora por baixo das duas doutrinas, vocêdescobriria nelas um postulado comum, que formulare-mos assim: a percepção tem um interesse inteiramente es-peculativo; ela é conhecimento puro. Toda a discussão tempor objeto a importância que é preciso atribuir a esse co-nhecimento em face do conhecimento científico. Uns ado-tam a ordem exigida pela ciência, e vêem na percepçãoapenas uma ciência confusa e provisória. Outros colocam apercepção em primeiro lugar, erigem-na em absoluto, e to-mam a ciência por uma expressão simbólica do real. Mas,para uns e outros, perceber significa antes de tudo conhecer.

Ora, é esse postulado que contestamos. Ele é des-mentido pelo exame, mesmo o mais superficial, da estru-tura do sistema nervoso na série animal. E não se pode-ria aceitá-lo sem obscurecer profundamente o trípliceproblema da matéria, da consciência e de sua relação.

Acompanhe-se, com efeito, passo a passo, o progres-so da percepção externa desde a monera até os vertebra-dos superiores. Descobrimos que no estado de simplesmassa protoplásmica a matéria viva já é irritável e con-trátil, que ela sofre a influência dos estímulos exteriores,que ela responde a eles através de reações mecânicas, fí-

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sicas e químicas. À medida que avançamos na série dosorganismos, vemos o trabalho fisiológico dividir-se. Célu-las nervosas aparecem, diversificam-se, tendem a agru-par-se em sistema. Ao mesmo tempo, o animal reage pormovimentos mais variados à excitação exterior. Mas, aindaque o estímulo recebido não se prolongue imediatamenteem movimento realizado, ele parece simplesmente aguar-dar a ocasião disso, e a mesma impressão que transmiteao organismo as modificações ambientais determina ouprepara sua adaptação a elas. Entre os vertebrados supe-riores, sem dúvida torna-se radical a distinção entre oautomatismo puro, sediado sobretudo na medula, e a ati-vidade voluntária, que exige a intervenção do cérebro.Poder-se-ia imaginar que a impressão recebida, em vezde desenvolver-se apenas em movimentos, espiritualiza-se em conhecimento. Mas basta comparar a estrutura docérebro com a da medula para nos convencermos de quehá somente uma diferença de complicação, e não uma di-ferença de natureza, entre as funções do cérebro e a ati-vidade reflexa do sistema medular. O que se passa, comefeito, na ação reflexa? O movimento centrípeto comuni-cado pela excitação reflete-se imediatamente, por inter-médio das células nervosas da medula, num movimentocentrífugo que determina uma contração muscular. Emque consiste, por outro lado, a função do sistema cerebral?O estímulo periférico, em vez de propagar-se diretamentepara a célula motora da medula e de imprimir ao músculouma contração necessária, remonta em primeiro lugar aoencéfalo, tornando depois a descer para as mesmas célu-las motoras da medula que intervém no movimento reflexo.O que ele ganhou portanto nessa volta, e o que foi buscar

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nas células ditas sensitivas do córtex cerebral? Não com-preendo, não compreenderei jamais que ele obtenha aí omiraculoso poder de transformar-se em representação dascoisas, e inclusive considero essa hipótese inútil, como severá em seguida. Mas o que percebo muito bem é que es-tas células das diversas regiões ditas sensoriais do córtex,células interpostas entre as arborizações terminais das fi-bras centrípetas e as células motoras do sulco de Rolan-do, permitem ao estímulo recebido atingir à vontade esteou aquele mecanismo motor da medula espinhal e esco-lher assim seu efeito. Quanto mais se multiplicarem estascélulas interpostas, mais elas emitirão prolongamentosamebóides capazes de se aproximarem diversamente, maisnumerosas e variadas serão também as vias capazes de seabrirem ante um mesmo estímulo vindo da periferia, e,conseqüentemente, haverá mais sistemas de movimentosque uma mesma excitação deixará à escolha. O cérebronão deve portanto ser outra coisa, em nossa opinião, quenão uma espécie de central telefônica: seu papel é "efe-tuar a comunicação", ou fazê-la aguardar. Ele não acres-centa nada àquilo que recebe; mas, como todos os órgãosperceptivos lhe enviam seus últimos prolongamentos, etodos os mecanismos motores da medula e do bulbo ra-quidiano têm aí seus representantes titulares, ele consti-tui efetivamente um centro, onde a excitação periféricapõe-se em contato com este ou aquele mecanismo motor,escolhido e não mais imposto. Por outro lado, como umaquantidade enorme de vias motoras podem abrir-se nessasubstância, todas juntas, a um mesmo estímulo vindo daperiferia, esse estímulo tem a faculdade de dividir-se aoinfinito e, conseqüentemente, de perder-se em reações mo-

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toras inumeráveis, apenas nascentes. Assim, o papel docérebro é ora de conduzir o movimento recolhido a umórgão de reação escolhido, ora de abrir a esse movimentoa totalidade das vias motoras para que aí desenhe todasas reações que ele pode gerar e para que analise a si mes-mo ao se dispersar. Em outras palavras, o cérebro nos pa-rece um instrumento de análise com relação ao movimen-to recolhido e um instrumento de seleção com relação aomovimento executado. Mas, num caso como no outro,seu papel limita-se a transmitir e a repartir movimento.E, tanto nos centros superiores do córtex quanto na me-dula, os elementos nervosos não trabalham com vistas aoconhecimento: apenas esboçam de repente uma pluralida-de de ações possíveis, ou organizam uma delas.

Eqüivale a dizer que o sistema nervoso nada tem deum aparelho que serviria para fabricar ou mesmo prepa-rar representações. Ele tem por função receber excitações,montar aparelhos motores e apresentar o maior númeropossível desses aparelhos a uma excitação dada. Quantomais ele se desenvolve, mais numerosos e distantes tor-nam-se os pontos do espaço que ele põe em relação commecanismos motores cada vez mais complexos: deste mo-do aumenta a latitude que ele deixa à nossa ação, e nissojustamente consiste sua perfeição crescente. Mas, se osistema nervoso é construído, de uma ponta à outra dasérie animal, em vista de uma ação cada vez menos neces-sária, não caberia pensar que a percepção, cujo progres-so é pautado pelo dele, também seja inteiramente orien-tada para a ação, e não para o conhecimento puro? E, comisso, a riqueza crescente dessa percepção não deveria sim-bolizar simplesmente a parte crescente de indeterminação

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deixada à escolha do ser vivo em sua conduta em facedas coisas? Partamos pois dessa indeterminação como sen-do o princípio verdadeiro. Procuremos, uma vez colocadaessa indeterminação, se não seria possível deduzir daí apossibilidade e mesmo a necessidade da percepção cons-ciente. Em outras palavras, tomemos esse sistema de ima-gens solidárias e bem amarradas que chamamos de mun-do material, e imaginemos aqui e ali, nesse sistema, cen-tros de ação real representados pela matéria viva: afirmoque é preciso que ao redor de cada um desses centros se-jam dispostas imagens subordinadas à sua posição e va-riáveis com ela; afirmo conseqüentemente que a percep-ção consciente deve se produzir, e que, além disso, é pos-sível compreender como essa percepção surge.

Assinalemos de início que uma lei rigorosa vinculaa extensão da percepção consciente à intensidade de açãode que o ser vivo dispõe. Se nossa hipótese é correta, essapercepção aparece no momento preciso em que um estí-mulo recebido pela matéria não se prolonga em reaçãonecessária. No caso de um organismo rudimentar, serápreciso, é verdade, um contato imediato do objeto de inte-resse para que o estímulo se produza, e nesse caso a rea-ção não se pode fazer esperar. É assim que, nas espéciesinferiores, o tocar é passivo e ativo ao mesmo tempo; ser-ve para reconhecer uma presa e capturá-la, para percebero perigo e procurar evitá-lo. Os prolongamentos variadosdos protozoários, os ambulacros dos equinodermas sãoórgãos de movimento assim como de percepção tátil; oaparelho urticante dos celenterados é um instrumento depercepção assim como um meio de defesa. Em uma pala-vra, quanto mais imediata deve ser a reação, tanto mais é

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preciso que a percepção se assemelhe a um simples con-tato, e o processo completo de percepção e de reação malse distingue então do impulso mecânico seguido de ummovimento necessário. Mas, à medida que a reação torna-semais incerta, que dá mais lugar à hesitação, aumenta tam-bém a distância na qual se faz sentir sobre o animal a açãodo objeto que o interessa. Através da visão, através da au-dição, ele se relaciona com um número cada vez maiorde coisas, ele sofre influências cada vez mais longínquas;e, quer esses objetos lhe prometam uma vantagem, quero ameacem com um perigo, promessas e perigos recuamseu prazo. A parte de independência de que um ser vivodispõe, ou, como diremos, a zona de indeterminação quecerca sua atividade, permite portanto avaliar a priori aquantidade e a distância das coisas com as quais ele estáem relação. Qualquer que seja essa relação, qualquer queseja portanto a natureza íntima da percepção, pode-se afir-mar que a amplitude da percepção mede exatamente a in-determinação da ação consecutiva, e conseqüentementeenunciar esta lei: a percepção dispõe do espaço na exataproporção em que a ação dispõe do tempo.

Mas por que essa relação do organismo com objetosmais ou menos distantes adquire a forma particular de umapercepção consciente? Já examinamos o que se passa nocorpo organizado; vimos movimentos transmitidos ou ini-bidos, metamorfoseados em ações realizadas ou disper-sos em ações nascentes. Tais movimentos nos pareceraminteressar a ação, e a ação somente; eles permanecem abso-lutamente estranhos ao processo da representação. Consi-deramos então a ação mesma e a indeterminação que acerca, indeterminação implicada na estrutura do sistema

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nervoso, e em vista da qual esse sistema parece ter sidoconstruído bem mais do que em vista da representação.Dessa indeterminação, aceita como um fato, pudemos con-cluir a necessidade de uma percepção, isto é, de uma re-lação variável entre o ser vivo e as influências mais oumenos distantes dos objetos que o interessam. Como seexplica que essa percepção seja consciência, e por quetudo se passa como se essa consciência nascesse dos mo-vimentos interiores da substância cerebral?

Para responder a essa questão, iremos em primeirolugar simplificar bastante as condições em que a percep-ção consciente se realiza. Na verdade, não há percepçãoque não esteja impregnada de lembranças. Aos dados ime-diatos e presentes de nossos sentidos misturamos milha-res de detalhes de nossa experiência passada. Na maioriadas vezes, estas lembranças deslocam nossas percepçõesreais, das quais não retemos então mais que algumas in-dicações, simples "signos" destinados a nos trazerem àmemória antigas imagens. A comodidade e a rapidez dapercepção têm esse preço; mas daí nascem também ilu-sões de toda espécie. Nada impede que se substitua es-sa percepção, inteiramente penetrada de nosso passado,pela percepção que teria uma consciência adulta e forma-da, mas encerrada no presente, e absorvida, à exclusão dequalquer outra atividade, na tarefa de se amoldar ao obje-to exterior. Dirão que fazemos uma hipótese arbitrária, eque essa percepção ideal, obtida pela eliminação dos aci-dentes individuais, não corresponde de modo nenhum àrealidade. Mas esperamos precisamente mostrar que osacidentes individuais estão enxertados nessa percepçãoimpessoal, que essa percepção está na própria base de nosso

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conhecimento das coisas, e que é por havê-la desconhe-cido, por não a ter distinguido daquilo que a memória acres-centa ou suprime nela, que se fez da percepção inteirauma espécie de visão interior e subjetiva, que só se dife-renciaria da lembrança por sua maior intensidade. Tal seráportanto nossa primeira hipótese. Mas ela acarreta natu-ralmente uma outra. Por mais breve que se suponha umapercepção, com efeito, ela ocupa sempre uma certa dura-ção, e exige conseqüentemente um esforço da memória,que prolonga, uns nos outros, uma pluralidade de momen-tos. Mesmo a "subjetividade" das qualidades sensíveis,como procuraremos mostrar, consiste sobretudo em umaespécie de contração do real, operada por nossa memória.Em suma, a memória sob estas duas formas, enquanto re-cobre com uma camada de lembranças um fundo de per-cepção imediata, e também enquanto ela contrai uma mul-tiplicidade de momentos, constitui a principal contribuiçãoda consciência individual na percepção, o lado subjetivo denosso conhecimento das coisas; e, ao deixar de lado essacontribuição para tornar nossa idéia mais clara, iremosnos adiantar bem mais do que convém no caminho queempreendemos. Faremos isso apenas para voltar em se-guida sobre nossos passos e para corrigir, sobretudo atra-vés da reintegração da memória, o que nossas conclusõespoderiam ter de excessivo. Portanto, no que se segue, de-ve-se ver apenas uma exposição esquemática, e pediremosque se entenda provisoriamente por percepção não minhapercepção concreta e complexa, aquela que minhas lem-branças preenchem e que oferece sempre uma certa espes-sura de duração, mas a percepção pura, uma percepçãoque existe mais de direito do que de fato, aquela que teria

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um ser situado onde estou, vivendo como eu vivo, masabsorvido no presente, e capaz, pela eliminação da me-mória sob todas as suas formas, de obter da matéria umavisão ao mesmo tempo imediata e instantânea. Coloque-mo-nos portanto nessa hipótese, e perguntemos de quemodo a percepção consciente se explica.

Deduzir a consciência seria um empreendimento bas-tante ousado, mas na verdade isso não é necessário aqui,porque ao colocar o mundo material demo-nos um con-junto de imagens, e aliás é impossível nos darmos outracoisa. Nenhuma teoria da matéria escapa a essa necessi-dade. Reduza-se a matéria a átomos em movimento: estesátomos, mesmo desprovidos de qualidades físicas, só sedeterminam em relação a uma visão e a um contato pos-síveis, aquela sem iluminação e este sem materialidade.Condense-se o átomo em centros de força, dissolva-se-oem turbilhões evoluindo num fluido contínuo: esse fluido,esses movimentos, esses centros só se determinam, elespróprios, em relação a um tocar impotente, a um impulsoineficaz, a uma luz descolorida; trata-se ainda de imagens.É verdade que uma imagem pode ser sem ser percebida;pode estar presente sem estar representada; e a distânciaentre estes dois termos, presença e representação, parecejustamente medir o intervalo entre a própria matéria e apercepção consciente que temos dela. Mas examinemosessas coisas mais de perto e vejamos em que consiste aocerto essa diferença. Se houvesse mais no segundo termodo que no primeiro, se, para passar da presença à repre-sentação, fosse preciso acrescentar alguma coisa, a dis-tância seria intransponível, e a passagem da matéria à per-cepção permaneceria envolvida em um impenetrável mis-

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tério. O mesmo não aconteceria se pudéssemos passar doprimeiro termo ao segundo mediante uma diminuição, ese a representação de uma imagem fosse menos que suasimples presença; pois então bastaria que as imagens pre-sentes fossem forçadas a abandonar algo delas mesmaspara que sua simples presença as convertesse em repre-sentações. Ora, eis a imagem que chamo de objeto mate-rial; tenho a representação dela. Como se explica que elanão pareça ser em si o que é para mim? A razão é que estaimagem, solidária à totalidade das outras imagens, conti-nua-se nas que a seguem, assim como prolongava aquelasque a precedem. Para transformar sua existência pura e sim-ples em representação, bastaria suprimir de uma só vez oque a segue, o que a precede, e também o que a preenche,não conservando mais do que sua crosta exterior, sua pelí-cula superficial. O que a distingue, enquanto imagem pre-sente, enquanto realidade objetiva, de uma imagem re-presentada é a necessidade em que se encontra de agirpor cada um de seus pontos sobre todos os pontos dasoutras imagens, de transmitir a totalidade daquilo querecebe, de opor a cada ação uma reação igual e contrária,de não ser, enfim, mais do que um caminho por onde pas-sam em todos os sentidos as modificações que se propagamna imensidão do universo. Eu a converteria em representa-ção se pudesse isolá-la, se pudesse sobretudo isolar seuinvólucro. A representação está efetivamente aí, mas sem-pre virtual, neutralizada, no momento em que passaria aoato, pela obrigação de prolongar-se e de perder-se emoutra coisa. O que é preciso para obter essa conversão nãoé iluminar o objeto, mas ao contrário obscurecer certoslados dele, diminuí-lo da maior parte de si mesmo, de modoque o resíduo, em vez de permanecer inserido no am-

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biente como uma coisa, destaque-se como um quadro.Ora, se os seres vivos constituem no universo "centros deindeterminação", e se o grau dessa indeterminação é medi-do pelo número e pela elevação de suas funções, concebe-mos que sua simples presença possa eqüivaler à supres-são de todas as partes dos objetos nas quais suas funçõesnão estão interessadas. Eles se deixarão atravessar, de cer-to modo, por aquelas dentre as ações exteriores que lhessão indiferentes; as outras, isoladas, tornar-se-ão "percep-ções" por seu próprio isolamento. Tudo se passará então,para nós, como se refletíssemos nas superfícies a luz queemana delas, luz que, propagando-se sempre, jamais teriasido revelada. As imagens que nos cercam parecerão vol-tar-se em direção a nosso corpo, mas desta vez ilumina-da a face que o interessa; elas destacarão de sua substân-cia o que tivermos retido de passagem, o que somos ca-pazes de influenciar. Indiferentes umas às outras em ra-zão do mecanismo radical que as vincula, elas apresen-tam reciprocamente, umas às outras, todas as suas facesao mesmo tempo, o que eqüivale a dizer que elas agem ereagem entre si por todas as suas partes elementares, eque, conseqüentemente, nenhuma delas é percebida nempercebe conscientemente. E se, ao contrário, elas depa-ram em alguma parte com uma certa espontaneidade dereação, sua ação é diminuída na mesma proporção, e essadiminuição de sua ação é justamente a representação quetemos delas. Nossa representação das coisas nasceria por-tanto, em última análise, do fato de que elas vêm refletir-se contra nossa liberdade.

Quando um raio de luz passa de um meio a outro, eleo atravessa geralmente mudando de direção. Mas podem

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ser tais as densidades respectivas dos dois meios que, apartir de um certo ângulo de incidência, não haja maisrefração possível. Então se produz a reflexão total. Doponto luminoso forma-se uma imagem virtual, que simbo-liza, de algum modo, a impossibilidade de os raios lumi-nosos prosseguirem seu caminho. A percepção é um fe-nômeno do mesmo tipo. O que é dado é a totalidade dasimagens do mundo material juntamente com a totalidadede seus elementos interiores. Mas se supusermos centrosde atividade verdadeira, ou seja, espontânea, os raios quechegam aí e que interessariam essa atividade, em vez deatravessá-los, parecerão retornar desenhando os contor-nos do objeto que os envia. Não haverá aí nada de positivo,nada que se acrescente à imagem, nada de novo. Os obje-tos não farão mais que abandonar algo de sua ação realpara figurar assim sua ação virtual, ou seja, no fundo, ainfluência possível do ser vivo sobre eles. A percepção as-semelha-se portanto aos fenômenos de reflexão que vêmde uma refração impedida; é como um efeito de miragem.

Isso eqüivale a dizer que há para as imagens umasimples diferença de grau, e não de natureza, entre ser eser conscientemente percebidas. A realidade da matériaconsiste na totalidade de seus elementos e de suas açõesde todo tipo. Nossa representação da matéria é a medidade nossa ação possível sobre os corpos; ela resulta da eli-minação daquilo que não interessa nossas necessidadese, de maneira mais geral, nossas funções. Num certo sen-tido, poderíamos dizer que a percepção de um ponto ma-terial inconsciente qualquer, em sua instantaneidade, éinfinitamente mais vasta e mais completa que a nossa, jáque esse ponto recolhe e transmite as ações de todos os

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pontos do mundo material, enquanto nossa consciênciasó atinge algumas partes por alguns lados. A consciência- no caso da percepção exterior - consiste precisamentenessa escolha. Mas, nessa pobreza necessária de nossapercepção consciente, há algo de positivo e que já anun-cia o espírito: é, no sentido etimológico da palavra, o dis-cernimento.

Toda a dificuldade do problema que nos ocupa advémde que nos representamos a percepção como uma visãofotográfica das coisas, que seria tomada de um ponto de-terminado com um aparelho especial, no caso o órgão depercepção, e que se desenvolveria a seguir na substânciacerebral por não se sabe qual processo de elaboração quí-mica e psíquica. Mas como não ver que a fotografia, sefotografia existe, já foi obtida, já foi tirada, no própriointerior das coisas e de todos os pontos do espaço? Ne-nhuma metafísica, nenhuma física mesmo pode furtar-sea essa conclusão. Componha-se o universo com átomos:em cada um deles fazem-se sentir, em qualidade e emquantidade, variáveis conforme a distância, as ações exer-cidas por todos os átomos da matéria. Com centros deforça: as linhas de força emitidas em todos os sentidospor todos os centros dirigem a cada centro as influênciasdo mundo material inteiro. Com mônadas, enfim: cadamônada, como o queria Leibniz, é o espelho do universo.Todo o mundo está portanto de acordo quanto a esse ponto.Mas, se considerarmos um lugar qualquer do universo,poderemos dizer que a ação da matéria inteira passa semresistência e sem perda, e que a fotografia do todo é trans-lúcida: falta, atrás da chapa, uma tela escura sobre a qualse destacaria a imagem. Nossas "zonas de indetermina-

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ção" desempenhariam de certo modo o papel de tela.Elas não acrescentam nada àquilo que é; fazem apenasque a ação real passe e que a ação virtual permaneça.

Isto não é uma hipótese. Limitamo-nos a formular osdados que nenhuma teoria da percepção pode dispensar.Nenhum psicólogo, com efeito, abordará o estudo da per-cepção exterior sem colocar a possibilidade pelo menosde um mundo material, ou seja, no fundo, a percepçãovirtual de todas as coisas. Nessa massa material simples-mente possível será isolado o objeto particular que cha-mo meu corpo, e nesse corpo os centros perceptivos: serámostrado o estímulo chegando de um ponto qualquer doespaço, propagando-se ao longo dos nervos, atingindo oscentros. Mas aqui se efetua um golpe teatral. Esse mundomaterial que cercava o corpo, esse corpo que abriga océrebro, esse cérebro onde se distinguiam centros, sãobruscamente dispensados; e como que através de umavarinha mágica faz-se surgir, à maneira de uma coisa abso-lutamente nova, a representação daquilo que se haviacolocado inicialmente. Essa representação é lançada forado espaço, para que ela não tenha nada mais em comumcom a matéria de onde se havia partido: quanto à própriamatéria, gostaríamos de passar sem ela, o que no entantoé impossível, porque seus fenômenos apresentam entre siuma ordem tão rigorosa, tão indiferente ao ponto que seescolheu por origem, que essa regularidade e essa indife-rença constituem de fato uma existência independente.Será preciso então resignar-se a conservar da matéria seufantasma. Pelo menos ela será despojada de todas as qua-lidades que constituem a vida. Num espaço amorfo serãorecortadas figuras que se movem; ou então (o que vem a

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ser mais ou menos a mesma coisa), imaginar-se-ão rela-ções de grandeza que se comporiam entre si, funções queevoluiriam desenvolvendo seu conteúdo: a partir daí a re-presentação, carregada com os despojos da matéria, se ma-nifestará livremente numa consciência inextensiva. Masnão basta cortar, é preciso costurar. Essas qualidades queforam separadas de seu suporte material, será precisoagora explicar de que modo elas tornam a juntar-se a ele.Cada atributo de que a matéria é privada faz crescer ointervalo entre a representação e seu objeto. Se você faza matéria inextensa, como ela irá receber a extensão? Sevocê a reduz ao movimento homogêneo, de onde surgiráa qualidade? Sobretudo, como imaginar uma relação en-tre a coisa e a imagem, entre a matéria e o pensamento,uma vez que cada um desses dois termos possui, pordefinição, o que falta ao outro? Assim as dificuldadesnascem a cada passo, e cada esforço que você fizer paradissipar uma delas só conseguirá decompô-la em muitasoutras. O que lhe pedimos então? Simplesmente que re-nuncie à sua varinha mágica, e que continue no caminhoonde havia entrado inicialmente. Você nos havia mostra-do as imagens exteriores atingindo os órgãos dos sentidos,modificando os nervos, propagando sua influência nocérebro. Prossiga até o fim. O movimento irá atravessara substância cerebral, não sem ter aí permanecido, e semanifestará então em ação voluntária. Eis aí todo o me-canismo da percepção. Quanto à própria percepção, en-quanto imagem, não é preciso descrever sua gênese, poisvocê a colocou de início e não podia, aliás, deixar de colo-cá-la: ao dar-se o cérebro, ao dar-se a menor parcela de ma-téria, você não se dava a totalidade das imagens? O que

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você tem a explicar, portanto, não é como a percepçãonasce, mas como ela se limita, já que ela seria, de direito,a imagem do todo, e ela se reduz, de fato, àquilo que inte-ressa a você. Mas, se ela se distingue justamente da ima-gem pura e simples pelo fato de suas partes se ordenaremem relação a um centro variável, compreende-se sua li-mitação sem dificuldade: indefinida de direito, ela se res-tringe de fato a desenhar a parte de indeterminação dei-xada aos procedimentos desta imagem especial que vocêchama seu corpo. E por conseqüência, inversamente, aindeterminação dos movimentos do corpo, tal como re-sulta da estrutura da substância cinzenta do cérebro, dá amedida exata da percepção que você tem. Não é de admi-rar portanto se tudo se passa como se sua percepção re-sultasse dos movimentos interiores do cérebro e saísse,de certo modo, dos centros corticais. Ela não poderia virdaí, pois o cérebro é uma imagem como as outras, envol-vida na massa das outras imagens, e seria absurdo que ocontinente saísse do conteúdo. Mas, como a estrutura docérebro oferece o plano minucioso dos movimentos en-tre os quais você tem a escolha; como, por outro lado, aporção das imagens exteriores que parece concentrar-separa constituir a percepção desenha justamente todos ospontos do universo sobre os quais esses movimentos teriaminfluência, percepção consciente e modificação cerebralcorrespondem-se rigorosamente. A dependência recípro-ca desses dois termos deve-se portanto simplesmente aofato de eles serem, um e outro, função de um terceiro,que é a indeterminação do querer.

Seja, por exemplo, um ponto luminoso P cujos raiosagem sobre os diferentes pontos a, b, c, da retina. Nesse

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ponto P a ciência localiza vibrações de uma certa ampli-tude e de uma certa duração. Nesse mesmo ponto P aconsciência percebe luz. Nós nos propomos a mostrar, aolongo deste estudo, que tanto uma como outra têm razão,e que não há diferença essencial entre essa luz e essesmovimentos, com a condição de que se devolva ao movi-mento a unidade, a indivisibilidade e a heterogeneidadequalitativa que uma mecânica abstrata lhe recusa, com acondição também de que se vejam nas qualidades sensíveisoutras tantas contrações operadas por nossa memória:ciência e consciência coincidiriam no instantâneo. Li-mitemo-nos provisoriamente a dizer, sem muito aprofun-dar aqui o sentido das palavras, que o ponto P envia àretina estímulos luminosos. O que irá se passar? Se a ima-gem visual do ponto P não fosse dada, haveria por queprocurar saber como ela se forma, e logo nos veríamosem presença de um problema insolúvel. Mas, não importaa maneira como se faça, é impossível deixar de colocá-lade saída: a única questão é portanto saber por que e comoessa imagem é escolhida para fazer parte de minha per-cepção, enquanto uma infinidade de outras imagens perma-nece excluída. Ora, vejo que os estímulos transmitidosdo ponto P aos diversos corpúsculos retinianos são con-duzidos aos centros ópticos subcorticais e corticais, fre-qüentemente também a outros centros, e que esses cen-tros às vezes os transmitem a mecanismos motores, àsvezes os detêm provisoriamente. Os elementos nervososinteressados são portanto exatamente aquilo que dá aoestímulo recebido sua eficácia; eles simbolizam a inde-terminação do querer; de sua integridade depende essaindeterminação; e, conseqüentemente, toda lesão desses

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elementos, ao diminuir nossa ação possível, diminuirá namesma medida a percepção. Em outras palavras, se exis-tem no mundo material pontos onde os estímulos reco-lhidos não são mecanicamente transmitidos, se há, comodizíamos, zonas de indeterminação, estas zonas devemprecisamente encontrar-se no trajeto daquilo que é cha-mado processo sensório-motor; e a partir daí tudo devese passar como se os raios Pa, Pb, Pc fossem percebidosao longo desse trajeto e projetados em seguida em P. Emais: se essa indeterminação é algo que escapa à experi-mentação e ao cálculo, o mesmo não se dá com os ele-mentos nervosos nos quais a impressão é recolhida etransmitida. É desses elementos portanto que deverão seocupar fisiologistas e psicólogos; neles se determinarãoe por eles se explicarão todos os detalhes da percepçãoexterior. Poderemos dizer, se quisermos, que a excitação,após ter caminhado ao longo desses elementos, após teralcançado o centro, converteu-se aí numa imagem cons-ciente que é exteriorizada em seguida no ponto P. Mas,ao nos exprimirmos assim, estaremos apenas nos curvan-do às exigências do método científico; não descreve-remos em absoluto o processo real. De fato, não há umaimagem inextensiva que se formaria na consciência e seprojetaria a seguir em P, A verdade é que o ponto P, osraios que ele emite, a retina e os elementos nervososinteressados formam um todo solidário, que o ponto Pfaz parte desse todo, e que é exatamente em P, e não emoutro lugar, que a imagem de P é formada e percebida.

Ao nos representarmos assim as coisas, o que fazemosé retornar à convicção ingênua do senso comum. Todosnós começamos por acreditar que entrávamos no objeto

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mesmo, que o percebíamos nele, e não em nós. Se o psi-cólogo desdenha uma idéia tão simples, tão próxima doreal, é que o processo intracerebral, essa mínima parte dapercepção, parece-lhe ser o equivalente da percepção in-teira. Suprima-se o objeto percebido conservando esseprocesso interno: a imagem do objeto lhe parecerá perma-necer. E sua crença explica-se sem dificuldade: há nume-rosos estados, como a alucinação e o sonho, em que sur-gem imagens que imitam ponto por ponto a percepçãoexterior. Como, em semelhante caso, o objeto desapare-ceu enquanto o cérebro subsiste, conclui-se que o fenô-meno cerebral é suficiente para a produção da imagem.Mas convém não esquecer que, em todos os estados psi-cológicos desse gênero, a memória desempenha o papelprincipal. Ora, procuraremos mostrar mais adiante que,uma vez admitida a percepção tal como a entendemos, amemória deve surgir, e que essa memória, tanto como aprópria percepção, não tem sua condição real e completanum estado cerebral. Sem abordar ainda o exame dessesdois pontos, limitemo-nos a apresentar uma observaçãobastante simples, e que aliás não é nova. Muitos cegos denascença têm seus centros visuais intactos: no entanto vi-vem e morrem sem ter jamais formado uma imagem vi-sual. Tal imagem não pode aparecer a menos que o obje-to exterior tenha desempenhado um papel uma primeiravez: conseqüentemente ele deve, na primeira vez pelo me-nos, ter entrado efetivamente na representação. Ora, nãoexigimos outra coisa de momento, pois é da percepçãopura que tratamos aqui, e não da percepção complicadade memória. Rejeite portanto a contribuição da memória,considere a percepção em estado bruto, você será obriga-

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do a reconhecer que não há jamais imagem sem objeto.Mas, assim que você associa aos processos intracerebraiso objeto exterior em questão, vejo perfeitamente de quemodo a imagem desse objeto é dada com ele e nele, nãovejo em absoluto de que modo ela nasceria do movimentocerebral.

Quando uma lesão dos nervos ou dos centros inter-rompe o trajeto do estírríulo nervoso, a percepção é dimi-nuída da mesma forma. Devemos espantar-nos com isso?O papel do sistema nervoso é utilizar esse estímulo, con-vertê-lo em procedimentos práticos, realmente ou virtual-mente efetuados. Se, por uma razão ou outra, a excitaçãonão passa mais, seria estranho que a percepção corres-pondente tivesse ainda lugar, já que essa percepção colo-caria então nosso corpo em relação com pontos do espaçoque não a convidariam mais diretamente a fazer uma es-colha. Seccione-se o nervo óptico de um animal; o estí-mulo partido do ponto luminoso não se transmite maisao cérebro e daí aos nervos motores; o fio que ligava oobjeto exterior aos mecanismos motores do animal, en-globando o nervo óptico, é rompido: a percepção visualtornou-se portanto impotente, e nessa impotência consis-te precisamente a inconsciência. Que a matéria possa serpercebida sem o concurso de um sistema nervoso, semórgãos dos sentidos, não é teoricamente inconcebível; masé praticamente impossível, porque uma percepção dessetipo não serviria para nada. Ela conviria a um fantasma,não a um ser vivo, a um ser ativo. Representa-se o corpovivo como um império dentro de um império, o sistemanervoso como um ser à parte, cuja função seria inicial-mente elaborar percepções, em seguida criar movimentos.

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A verdade é que meu sistema nervoso, interposto entreos objetos que estimulam meu corpo e aqueles que eupoderia influenciar, desempenha o papel de um simplescondutor, que transmite, distribui ou inibe movimento.Esse condutor compõe-se de uma quantidade enorme defios estendidos da periferia ao centro e do centro à peri-feria. Quantos forem os fios que vão da periferia ao centro,tantos serão os pontos do espaço capazes de solicitar mi-nha vontade e de colocar, por assim dizer, uma questãoelementar à minha atividade motora: cada questão colo-cada é justamente o que chamamos uma percepção. Assima percepção será diminuída de um de seus elementoscada vez que um dos fios ditos sensitivos for cortado,porque então alguma parte do objeto exterior torna-seimpotente para solicitar a atividade, e também cada vezque um hábito estável for adquirido, porque desta vez aréplica inteiramente pronta torna a questão inútil. O quedesaparece, tanto num caso como no outro, é a reflexãoaparente do estímulo sobre si mesmo, o retorno da luz àimagem de onde ela parte, ou melhor, essa dissociação,esse discernimento que faz com que a percepção se sepa-re da imagem. Pode-se portanto afirmar que o detalhe dapercepção molda-se exatamente sobre o dos nervos ditossensitivos, mas que a percepção, em seu conjunto, temsua verdadeira razão de ser na tendência do corpo a semover.

O que geralmente causa ilusão sobre esse ponto é aaparente indiferença de nossos movimentos à excitaçãoque os ocasiona. Parece que o movimento de meu corpopara atingir e modificar um objeto permanece o mesmo,quer eu tenha sido advertido de sua existência pela audi-

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ção, quer ele me tenha sido revelado pela visão ou pelotato. Minha atividade motora torna-se então uma entidadeà parte, uma espécie de reservatório de onde o movimentosai à vontade, sempre o mesmo para uma mesma ação,qualquer que seja o tipo de imagem que fez com que elese produzisse. Mas a verdade é que o caráter de movi-mentos exteriormente idênticos é interiormente modifi-cado, conforme dêem a réplica a uma impressão visual,tátil ou auditiva. Percebo uma multidão de objetos no es-paço; cada um deles, enquanto forma visual, solicitaminha atividade. Perco bruscamente a visão. Certamentedisponho ainda da mesma quantidade e da mesma quali-dade de movimentos no espaço; mas esses movimentosnão podem mais ser coordenados a impressões visuais; apartir de agora deverão seguir impressões táteis, por exem-plo, e no cérebro se desenhará certamente um novo ar-ranjo; as expansões protoplasmicas dos elementos nervososmotores, no córtex, estarão em relação com um númeromuito menor, desta vez, desses elementos nervosos quechamamos sensoriais. Minha atividade é portanto real-mente diminuída, na medida em que, embora eu possaproduzir os mesmos movimentos, os objetos me forne-cem menos ocasião disso. E, por conseqüência, a inter-rupção brusca da condução óptica teve por efeito essen-cial, profundo, suprimir toda uma parte das solicitaçõesde minha atividade: ora, esta solicitação, conforme vimos,é a própria percepção. Vemos claramente aqui o erro da-queles que fazem nascer a percepção do estímulo senso-rial propriamente dito, e não de uma espécie de questãocolocada à nossa atividade motora. Eles separam essa ati-vidade motora do processo perceptivo, e, como ela parece

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sobreviver à abolição da percepção, concluem que a percep-ção está localizada nos elementos nervosos ditos senso-riais. Mas a verdade é que ela está tanto nos centros sen-soriais quanto nos centros motores; ela mede a complexi-dade de suas relações, e existe onde aparece.

Os psicólogos que estudaram a infância sabem bemque nossa representação começa sendo impessoal. Só pou-co a pouco, e à força de induções, ela adota nosso corpo porcentro e torna-se nossa representação. O mecanismo des-sa operação, aliás, é fácil de compreender. À medida quemeu corpo se desloca no espaço, todas as outras imagensvariam; a de meu corpo, ao contrário, permanece invariá-vel. Devo portanto fazer dela um centro, ao qual relacio-narei todas as outras imagens. Minha crença num mundoexterior não provém, não pode provir, do fato de eu pro-jetar fora de mim sensações inextensivas: de que modoestas sensações adquiririam a extensão, e de onde eu po-deria tirar a noção de exterioridade? Mas, se concordar-mos, como a experiência demonstra, que o conjunto dasimagens é dado de início, percebo claramente de que modomeu corpo acaba por ocupar nesse conjunto uma situa-ção privilegiada. E compreendo também de que modosurge então a noção de interior e de exterior, que no inícionão é mais que a distinção de meu corpo e dos outroscorpos. Parta, com efeito, de meu corpo, como se faz cos-tumeiramente; você não me fará jamais compreender deque modo impressões recebidas na superfície de meucorpo, e que interessam só a esse corpo, irão se constituirpara mim em objetos independentes e formar um mundoexterior. Dê-me ao contrário as imagens em geral: meucorpo acabará necessariamente por se desenhar no meio

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delas como uma coisa distinta, já que elas não cessam demudar e ele permanece invariável. A distinção do inte-rior e do exterior se reduzirá assim à da parte e do todo.Há inicialmente o conjunto das imagens; há, nesse con-junto, "centros de ação" contra os quais as imagens inte-ressantes parecem se refletir; é deste modo que as percep-ções nascem e as ações se preparam. Meu corpo é o quese desenha no centro dessas percepções; minha pessoa éo ser ao qual se devem relacionar tais ações. As coisas seesclarecem se vamos assim da periferia da representaçãoao centro, como faz a criança, como nos convidam afazê-lo a experiência imediata e o senso comum. Tudo seobscurece, ao contrário, e os problemas se multiplicam,se pretendemos ir do centro à periferia, como fazem osteóricos. Como se explica, então, essa idéia de um mundoexterior construído artificialmente, peça por peça, comsensações inextensivas das quais não se compreende nemcomo chegariam a formar uma superfície extensa, nem co-mo se projetariam a seguir fora de nosso corpo? Por quese pretende, contrariando todas as aparências, que eu váde meu eu consciente a meu corpo, e depois de meu corpoaos outros corpos, quando na verdade eu me coloco desaída no mundo material em geral, para progressivamen-te limitar este centro de ação que se chamará meu corpoe distingui-lo assim de todos os outros? Nessa crença nocaráter inicialmente inextensivo de nossa percepção ex-terior há tantas ilusões reunidas, nessa idéia de que pro-jetamos fora de nós estados puramente internos há tantosmal-entendidos, tantas respostas defeituosas a questõesmal colocadas, que não poderíamos querer elucidá-las deuma só vez. Esperamos fazê-lo pouco a pouco, à medida

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que mostrarmos mais claramente, por trás dessas ilusões,a confusão metafísica da extensão indivisa e do espaçohomogêneo, a confusão psicológica da "percepção pura"e da memória. Mas essas ilusões estão ligadas também afatos reais, que podemos desde agora assinalar para reti-ficar sua interpretação.

O primeiro desses fatos é que nossos sentidos têmnecessidade de educação. Nem a visão nem o tato chegamimediatamente a localizar suas impressões. Uma série deaproximações e induções é necessária, através das quaiscoordenamos pouco a pouco nossas impressões umas àsoutras. Daí salta-se para a idéia de sensações inextensi-vas por essência, as quais, justapondo-se, constituiriam aextensão. Mas quem não percebe, na própria hipótese emque nos colocamos, que nossos sentidos terão igualmen-te necessidade de educação - não, certamente, para seconciliarem com as coisas, mas para se porem de acordoentre si? Eis, no meio de todas as imagens, uma certaimagem que chamo meu corpo e cuja ação virtual se tra-duz por uma aparente reflexão, sobre si mesmas, dasimagens circundantes. Assim como há para meu corpotipos de ação possível, também haverá, para os outroscorpos, sistemas de reflexão diferentes, e cada um dessessistemas corresponderá a um de meus sentidos. Meu cor-po se conduz portanto como uma imagem que refletiriaoutras imagens, analisando-as do ponto de vista das di-versas ações a exercer sobre elas. E, por conseqüência,cada uma das qualidades percebidas por meus diferentessentidos no mesmo objeto simboliza uma certa direçãode minha atividade, uma certa necessidade. Pois bem: todasessas percepções de um corpo por meus diversos senti-

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dos irão, ao se reunirem, dar a imagem completa dessecorpo? Não, certamente, já que elas foram colhidas noconjunto. Perceber todas as influências de todos os pontosde todos os corpos seria descer ao estado de objeto mate-rial. Perceber conscientemente significa escolher, e a cons-ciência consiste antes de tudo nesse discernimento prático.As percepções diversas do mesmo objeto que oferecemmeus diversos sentidos não reconstituirão portanto, ao sereunirem, a imagem completa do objeto; permanecerãoseparadas uma das outras por intervalos que medem, decerto modo, muitos vazios em minhas necessidades: épara preencher tais intervalos que uma educação dos sen-tidos é necessária. Essa educação tem por finalidade har-monizar meus sentidos entre si, restabelecer entre seusdados uma continuidade que foi rompida pela própriadescontinuidade das necessidades de meu corpo, enfimreconstruir aproximadamente a totalidade do objeto ma-terial. Assim se explicará, em nossa hipótese, a necessi-dade de uma educação dos sentidos. Comparemos essaexplicação à precedente. Na primeira, sensações inexten-sivas da visão se comporão com sensações inextensivasdo tato para dar, por sua síntese, a idéia de um objetomaterial. Mas, em primeiro lugar, não se percebe comoessas sensações adquirirão extensão, e sobretudo como,uma vez a extensão adquirida de direito, se explicaria, defato, a preferência de uma delas por um determinado pon-to do espaço. E pode-se perguntar, em seguida, por quefeliz acordo, em virtude de que harmonia preestabeleci-da, essas sensações de espécies diferentes vão se coorde-nar ao mesmo tempo para formar um objeto estável, apartir de então solidificado, comum à minha experiênciae à de todos os homens, submetido, em face dos outros,

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a essas regras inflexíveis que chamamos leis da natureza.Na segunda, ao contrário, os "dados de nossos diferentessentidos" são qualidades das coisas, percebidas inicial-mente mais nelas do que em nós: é espantoso que elas sejuntem, quando apenas a abstração as separou? - Na pri-meira hipótese, o objeto material não é nada do que per-cebemos: colocar-se-á de um lado o princípio conscientecom as qualidades sensíveis, do outro uma matéria daqual não se pode dizer nada, e que se define por negaçõesporque foi despojada inicialmente de tudo o que a revela.Na segunda, um conhecimento cada vez mais aprofundadoda matéria é possível. Bem longe de suprimir nela algode percebido, devemos ao contrário reaproximar todas asqualidades sensíveis, redescobrir seu parentesco, resta-belecer entre elas a continuidade que nossas necessidadesromperam. Nossa percepção da matéria então já não é re-lativa nem subjetiva, pelo menos em princípio e não selevando em conta, como veremos em seguida, a afecção esobretudo a memória; ela é simplesmente cindida pelamultiplicidade de nossas necessidades. - Na primeira hi-pótese, o espírito é tão incognoscível quanto a matéria,pois atribui-se a ele a indefinível capacidade de evocarsensações, não se sabe de onde, e de projetá-las, não sesabe por quê, num espaço onde elas formarão corpos. Nasegunda, o papel da consciência é claramente definido:consciência significa ação possível; e as formas adquiri-das pelo espírito, aquelas que nos ocultam sua essência,deverão ser separadas à luz deste segundo princípio.Abre-se assim, em nossa hipótese, a possibilidade de dis-tinguir mais claramente o espírito da matéria, e de operaruma reaproximação entre eles. Mas deixemos de lado esseprimeiro ponto, e passemos ao segundo.

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O segundo fato alegado consistiria naquilo que sechamou durante muito tempo "a energia específica dosnervos". Sabe-se que a excitação do nervo óptico por umchoque exterior ou uma corrente elétrica provocará umasensação visual, que essa mesma corrente elétrica, apli-cada ao nervo acústico ou ao glossofaríngeo, fará perce-ber um sabor ou ouvir um som. Desses fatos muito parti-culares passa-se a duas leis muito gerais, a saber: causas di-ferentes, agindo sobre o mesmo nervo, excitam a mesmasensação; e a mesma causa, agindo sobre nervos diferen-tes, provoca sensações diferentes. E dessas mesmas leisinfere-se que nossas sensações são simplesmente sinais,que o papel de cada sentido é traduzir em sua língua pró-pria movimentos homogêneos e mecânicos realizando-seno espaço. Donde, enfim, a idéia de cindir nossa percepçãoem duas partes distintas, doravante incapazes de se junta-rem: de um lado os movimentos homogêneos no espaço,de outro as sensações inextensivas na consciência. Nãonos cabe entrar no exame dos problemas fisiológicos quea interpretação das duas leis levanta: de qualquer manei-ra que se compreendam essas leis, seja atribuindo a ener-gia específica aos nervos, seja reportando-a aos centros,dificuldades insuperáveis se colocam. Mas são as pró-prias leis que parecem cada vez mais problemáticas. Lotzejá havia suspeitado de sua falsidade. Para acreditar nelas,ele esperava "que ondas sonoras dessem ao olho a sensa-ção de luz, ou que vibrações luminosas fizessem escutarum som ao ouvido"1. A verdade é que todos os fatos ale-gados parecem convergir para um único tipo: o excitante

1. Lotze, Métaphysique, pp. 526 ss.

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único capaz de produzir sensações diferentes, os excitan-tes múltiplos capazes de engendrar uma mesma sensa-ção, são ou a corrente elétrica, ou uma causa mecânicacapaz de determinar no órgão uma modificação do equi-líbrio elétrico. Ora, pode-se perguntar se a excitação elé-trica não compreenderia componentes diversos, respon-dendo objetivamente a sensações de diferentes tipos, e seo papel de cada sentido não seria simplesmente extrairdo todo o componente que o interessa: seriam então exa-tamente as mesmas excitações que dariam as mesmas sen-sações, e excitações diversas que provocariam sensaçõesdiferentes. Para falar com mais precisão, é difícil admitirque a eletrização da língua, por exemplo, não ocasionemodificações químicas; ora, são essas modificações quechamamos, em todos os casos, sabores. Por outro lado,se o físico pôde identificar a luz com uma perturbaçãoeletromagnética, pode-se dizer inversamente que o queele chama aqui de perturbação eletromagnética é luz, desorte que seria efetivamente luz que o nervo óptico per-ceberia objetivamente na eletrização. Para nenhum senti-do a doutrina da energia específica parecia mais solida-mente estabelecida do que para a audição: em nenhumaparte também a existência real da coisa percebida tor-nou-se mais provável. Não insistamos nesses fatos, cujaexposição e discussão aprofundadas serão encontradas nu-ma obra recente2. Limitemo-nos a assinalar que as sensa-ções de que se fala aqui não são imagens percebidas pornós fora de nosso corpo, mas antes afecções localizadas

2. Schwarz, Das Wahrnehmungsproblem, Leipzig, 1892, pp. 313 ss.

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em nosso próprio corpo. Ora, resulta da natureza e da des-tinação de nosso corpo, como iremos ver, que cada um deseus elementos ditos sensitivos tenha sua ação real pró-pria, que deve ser do mesmo tipo que sua ação virtual,sobre os objetos exteriores que ele percebe ordinariamente,de sorte que se compreenderia assim por que cada um dosnervos sensitivos parece vibrar segundo um modo deter-minado de sensação. Mas, para elucidar esse ponto, con-vém aprofundar a natureza da afecção. Somos conduzi-dos, por isso mesmo, ao terceiro e último argumento quequeríamos examinar.

Esse terceiro argumento se extrai do fato de que sepassa, por graus insensíveis, do estado representativo,que ocupa espaço, ao estado afetivo, que parece inexten-so. Daí conclui-se a inextensão natural e necessária detoda sensação, a extensão acrescentando-se à sensação, eo processo da percepção consistindo em uma exterioriza-ção de estados internos. O psicólogo parte, com efeito,de seu corpo, e, como as impressões recebidas na perife-ria desse corpo lhe parecem suficientes para a reconsti-tuição do universo material inteiro, é a seu corpo que elereduz inicialmente o universo. Mas essa primeira posiçãonão é sustentável; seu corpo não tem e não pode ter nemmais nem menos realidade que todos os outros corpos. Épreciso portanto ir mais longe, seguir até o fim a aplica-ção do princípio e, após ter reduzido o universo à super-fície do corpo vivo, contrair esse mesmo corpo num cen-tro que se acabará por supor inextenso. Deste centro sefarão partir sensações inextensivas que serão infladas, porassim dizer, aumentando em extensão e findando por darnosso corpo extenso em primeiro lugar, e a seguir todos os

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outros objetos materiais. Mas essa estranha suposiçãoseria impossível se não houvesse precisamente entre asimagens e as idéias, estas inextensas e aquelas extensas,uma série de estados intermediários, mais ou menos con-fusamente localizados, que são os estados afetivos. Nossoentendimento, cedendo à sua ilusão habitual, coloca o di-lema de que uma coisa é extensa ou não o é; e como oestado afetivo participa vagamente da extensão, como éimperfeitamente localizado, conclui-se que esse estado éabsolutamente inextensivo. Mas com isso os graus suces-sivos da extensão, e a própria extensão, irão explicar-sepor não se sabe qual propriedade adquirida dos estadosinextensivos; a história da percepção irá tornar-se a dosestados internos e inextensivos, estendendo-se e projetan-do-se para fora. Poderíamos colocar essa argumentaçãosob uma outra forma. Praticamente não há percepção quenão possa, por um crescimento da ação de seu objeto so-bre nosso corpo, tornar-se afecção e, mais particularmente,dor. Assim, há uma passagem insensível do contato daagulha à picada. Inversamente, a dor decrescente coincidepouco a pouco com a percepção de sua causa e exteriori-za-se, por assim dizer, em representação. Parece portantoque há efetivamente uma diferença de grau, e não de natu-reza, entre a afecção e a percepção. Ora, a primeira estáintimamente ligada à minha existência pessoal: o queseria, com efeito, uma dor separada do sujeito que a sen-te? Ê preciso portanto, pensa-se, que seja assim tambémcom a segunda, e que a percepção exterior se constituapela projeção, no espaço, da afecção tornada inofensiva.Realistas e idealistas coincidem em raciocinar dessa ma-neira. Estes não vêem outra coisa, no universo material,

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que não uma síntese de estados subjetivos e inextensivos;aqueles acrescentam que há, atrás dessa síntese, uma rea-lidade independente que corresponde a ela; mas tanto unscomo outros concluem, da passagem gradual da afecçãoà representação, que a representação do universo mate-rial é relativa, subjetiva, e, por assim dizer, que ela sai denós, em vez de sermos nós a sair primeiramente dela.

Antes de criticar essa interpretação contestável deum fato exato, mostremos que ela não consegue explicar,não consegue sequer esclarecer, nem a natureza da dornem a da percepção. Que estados afetivos essencialmenteligados à minha pessoa, e que desapareceriam se eu de-saparecesse, venham, pelo simples efeito de uma dimi-nuição de intensidade, a adquirir a extensão, a tomar umlugar determinado no espaço, a constituir uma experiên-cia estável, sempre de acordo com ela mesma e com aexperiência dos outros homens, é algo que dificilmente seconseguirá fazer-nos compreender. O que quer que faça-mos, seremos levados a devolver às sensações, sob umaforma ou outra, primeiro a extensão e depois a indepen-dência que pretendíamos dispensar. Mas, por outro lado,a afecção não será muito mais clara, nessa hipótese, quea representação. Pois se não se vê como as afecções, aodiminuírem de intensidade, tornam-se representações, nãose compreende também como o mesmo fenômeno, queera dado inicialmente como percepção, torna-se afecçãopor um crescimento de intensidade. Existe na dor algo depositivo e de ativo, que se explica mal dizendo, como cer-tos filósofos, que ela consiste numa representação confusa.Mas esta ainda não é a dificuldade principal. Que o au-mento gradual do excitante acaba por transformar a per-

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cepção em dor, isso é incontestável; ainda assim é verda-de que a transformação se dá a partir de um momentopreciso: por que esse momento e não outro? E qual arazão especial que faz com que um fenômeno, de que euera de início apenas o espectador indiferente, adquira derepente um interesse vital para mim? Não percebo por-tanto, nessa hipótese, nem por que em determinado mo-mento uma diminuição de intensidade no fenômeno lheconfere um direito à extensão e a uma aparente indepen-dência, nem como um crescimento de intensidade cria,num momento e não em outro, esta propriedade nova,fonte de ação positiva, que denominamos dor.

Voltemos agora à nossa hipótese, e mostremos de quemodo a afecção deve, num momento determinado, surgirda imagem. Compreenderemos também como se passa deuma percepção, que se aplica à extensão, a uma afecçãoque se crê inextensiva. Mas algumas observações prelimi-nares são indispensáveis sobre a significação real da dor.

Quando um corpo estranho toca um dos prolonga-mentos da ameba, esse prolongamento se retrai; cada parteda massa protoplasmica é portanto igualmente capaz dereceber a excitação e de reagir contra ela; percepção emovimento confundem-se aqui numa propriedade únicaque é a contratilidade. Mas, à medida que o organismo secomplica, o trabalho se divide, as funções se diferenciam,e os elementos anatômicos assim constituídos alienamsua independência. Num organismo como o nosso, as fi-bras ditas sensitivas são exclusivamente encarregadas detransmitir excitações a uma região central de onde o estí-mulo se propagará por elementos motores. Parece por-tanto que elas renunciaram à ação individual para contri-

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buir, na qualidade de sentinelas avançadas, às evoluçõesdo corpo inteiro. Mas ainda assim permanecem expostas,isoladamente, às mesmas causas de destruição que amea-çam o organismo em seu conjunto: e, enquanto esse or-ganismo tem a faculdade de se mover para escapar aoperigo ou para reparar suas perdas, o elemento sensitivoconserva a imobilidade relativa à qual a divisão do traba-lho o condena. Assim nasce a dor, que não é, para nós,senão um esforço do elemento lesado para repor as coi-sas no lugar - uma espécie de tendência motora sobre umnervo sensitivo. Toda dor consiste portanto num esforço,e num esforço impotente. Toda dor é um esforço local, eesse próprio isolamento do esforço é a causa de sua im-potência, porque o organismo, em razão da solidariedadede suas partes, já não é apto senão para os efeitos de con-junto. É também por ser local que a dor é absolutamentedesproporcional ao perigo que corre o ser vivo: o perigopode ser mortal e a dor pequena; a dor pode ser insuportá-vel (como uma dor de dentes) e o perigo insignificante.Há portanto, deve haver, um momento preciso em que ador intervém: é quando a porção interessada do organismo,em vez de acolher a excitação, a repele. E não é somenteuma diferença de grau que separa a percepção da afecção,mas uma diferença de natureza.

Isto posto, havíamos considerado o corpo vivo comouma espécie de centro de onde se reflete, sobre os obje-tos circundantes, a ação que esses objetos exercem sobreele: nessa reflexão consiste a percepção exterior. Mas estecentro não é um ponto matemático: é um corpo, exposto,como todos os corpos da natureza, à ação das causas ex-teriores que ameaçam desagregá-lo. Acabamos de ver que

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ele resiste à influência dessas causas. Não se limita a re-fletir a ação de fora; ele luta, e absorve assim algo dessaação. Aí estaria a origem da afecção. Poderíamos portan-to dizer, por metáfora, que, se a percepção mede o poderrefletor do corpo, a afecção mede seu poder absorvente.

Mas trata-se apenas de uma metáfora. É preciso exa-minar as coisas mais de perto, e compreender de fato quea necessidade da afecção decorre da existência da própriapercepção. A percepção, tal como a entendemos, medenossa ação possível sobre as coisas e por isso, inversamen-te, a ação possível das coisas sobre nós. Quanto maior acapacidade de agir do corpo (simbolizada por uma com-plicação superior do sistema nervoso), mais vasto o campoque a percepção abrange. A distância que separa nossocorpo de um objeto percebido mede portanto efetivamentea maior ou menor iminência de um perigo, o prazo maiorou menor de uma promessa. E, por conseqüência, nossapercepção de um objeto distinto de nosso corpo, separa-do de nosso corpo por um intervalo, nunca exprime mais doque uma ação virtual. Porém, quanto mais diminui a dis-tância entre esse objeto e nosso corpo, tanto mais o perigotorna-se urgente ou a promessa imediata, tanto mais aação virtual tende a se transformar em ação real. Passe-mos agora ao limite, suponhamos que a distância se tornenula, ou seja, que o objeto a perceber coincida com nossocorpo, enfim, que nosso próprio corpo seja o objeto a per-ceber. Então não é mais uma ação virtual, mas uma açãoreal que essa percepção muito particular irá exprimir: aafecção consiste exatamente nisso. Nossas sensações estão,portanto, para nossas percepções assim como a ação realde nosso corpo está para sua ação possível ou virtual. A

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ação virtual concerne aos outros objetos e se desenhanesses objetos; a ação real concerne ao próprio corpo e sedesenha por conseqüência nele. Tudo se passará, enfim,como se, por um verdadeiro retorno das ações reais e vir-tuais a seus pontos de aplicação ou de origem, as ima-gens exteriores fossem refletidas por nosso corpo no espa-ço que o cerca, e as ações reais retidas por ele, no interiorde sua substância. Eis por que sua superfície, limite co-mum do exterior e do interior, é a única porção da exten-são que é ao mesmo tempo percebida e sentida.

Isto eqüivale novamente a dizer que minha percep-ção está fora de meu corpo, e minha afecção, ao contrá-rio, em meu corpo. Assim como os objetos exteriores sãopercebidos por mim onde se encontram, neles e não emmim, também meus estados afetivos são experimentadoslá onde se produzem, isto é, num ponto determinado demeu corpo. Considere-se o sistema de imagens que cha-mamos mundo material. Meu corpo é uma delas. Emtorno dessa imagem dispõe-se a representação, ou seja,sua influência eventual sobre as outras. Nela se produz aafecção, ou seja, seu esforço atual sobre si mesma. Tal é,no fundo, a diferença que cada um de nós estabelece na-turalmente, espontaneamente, entre uma imagem e umasensação. Quando dizemos que uma imagem existe forade nós, entendemos por isso que ela é exterior a nossocorpo. Quando falamos da sensação como de um estadointerior, queremos dizer que ela surge em nosso corpo. Épor isso que afirmamos que a totalidade das imagenspercebidas subsiste, mesmo se nosso corpo desaparece,ao passo que não podemos suprimir nosso corpo semfazer desaparecer nossas sensações.

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Entrevemos por aí a necessidade de uma primeiracorreção em nossa teoria da percepção pura. Raciocinamoscomo se nossa percepção fosse uma parte das imagens se-parada tal e qual de sua substância, como se, exprimindoa ação virtual do objeto sobre nosso corpo ou de nossocorpo sobre o objeto, ela se limitasse a isolar do objetototal o aspecto dele que nos interessa. Mas é preciso le-var em conta que nosso corpo não é um ponto matemáti-co no espaço, que suas ações virtuais se complicam e seimpregnam de ações reais, ou, em outras palavras, quenão há percepção sem afecção. A afecção é portanto oque misturamos, do interior de nosso corpo, à imagemdos corpos exteriores; é aquilo que devemos extrair ini-cialmente da percepção para reencontrar a pureza da ima-gem. Mas o psicólogo que fecha os olhos à diferença denatureza, à diferença de função entre a percepção e a sen-sação - esta envolvendo uma ação real e aquela uma açãosimplesmente possível -, não pode encontrar entre elasmais que uma diferença de grau. Aproveitando-se do fatode a sensação (por causa do esforço confuso que envolve)ser apenas vagamente localizada, ele a declara imediata-mente inextensiva, e faz doravante da sensação em geralo elemento simples com que obtemos, por via de compo-sição, as imagens exteriores. A verdade é que a afecçãonão é a matéria-prima de que é feita a percepção; é antesa impureza que aí se mistura.

Percebemos aqui, na sua origem, o erro que conduzo psicólogo a considerar sucessivamente a sensação comoinextensiva e a percepção como um agregado de sensa-ções. Esse erro é reforçado adiante, como veremos, porargumentos tomados de empréstimo a uma falsa concep-

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ção do papel do espaço e da natureza da extensão, masele conta, além disso, com fatos mal interpretados, queconvém desde já examinar.

Em primeiro lugar, parece que a localização de umasensação afetiva num lugar do corpo exige uma verdadei-ra educação. Um certo tempo decorre antes que a criançaconsiga tocar com o dedo o ponto preciso da pele ondefoi picada. O fato é incontestável, mas tudo o que se podeconcluir daí é que um tateio é necessário para coordenaras impressões dolorosas da pele, que recebeu a picada,com as do sentido muscular, que dirige os movimentosdo braço e da mão. Nossas afecções internas, como nos-sas percepções externas, repartem-se em diferentes tipos.Esses tipos, como os da percepção, são descontínuos,separados por intervalos que a educação preenche. Daínão se segue, de maneira alguma, que não haja, para cadatipo de afecção, uma localização imediata de um certogênero, uma cor local que lhe seja própria. Digamos aindamais: se a afecção não tiver essa cor local imediatamente,ela não a terá jamais. Pois tudo o que a educação poderáfazer será associar à sensação afetiva presente a idéia deuma certa percepção possível da visão e do tato, de sorteque uma afecção determinada evoca a imagem de umapercepção visual ou tátil igualmente determinada. É pre-ciso portanto que haja, nessa própria afecção, algo que adistinga das outras afecções do mesmo gênero e permitaassociá-la a este dado possível da visão ou do tato e não aqualquer outro. Mas isso não eqüivale a dizer que a afecçãopossui, desde o início, uma certa determinação extensiva?

Alegam-se ainda as localizações errôneas, a ilusão dosamputados (que seria conveniente, aliás, submeter a um

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novo exame). Mas o que concluir daí, senão que a educa-ção subsiste uma vez recebida, e que os dados da memória,mais úteis na vida prática, deslocam os da consciênciaimediata? É-nos indispensável, em vista da ação, traduzirnossa experiência afetiva em dados possíveis da visão,do tato e do sentido muscular. Uma vez estabelecida essatradução, o original empalidece, mas ela jamais poderiater sido feita se o original não tivesse sido colocado pri-meiro, e se a sensação afetiva não tivesse sido, desde oinício, localizada por sua simples força e à sua maneira.

Mas o psicólogo tem uma grande dificuldade emaceitar essa idéia do senso comum. Assim como a per-cepção, segundo ele pensa, não poderia estar nas coisaspercebidas a menos que as coisas percebessem, tambémuma sensação não poderia estar no nervo a menos que onervo sentisse: ora, o nervo evidentemente não sente.Portanto, a sensação será tomada no ponto onde o sensocomum a localiza, será extraída de lá, aproximada do cé-rebro, do qual ela parece depender mais ainda que donervo; e acabaria assim, logicamente, sendo colocada nocérebro. Mas logo se percebe que, se a sensação não estáno ponto onde parece se produzir, não poderá tambémestar em outro lugar; se não está no nervo, também nãoestará no cérebro; pois, para explicar sua projeção docentro à periferia, uma certa força é necessária, que sedeverá atribuir a uma consciência mais ou menos ativa.Será preciso portanto ir mais longe e, após ter feito con-vergir as sensações para o centro cerebral, expulsá-las aomesmo tempo do cérebro e do espaço. Representar-se-ãoentão sensações absolutamente inextensivas, e de outrolado um espaço vazio, indiferente às sensações que virão

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aí se projetar; depois se farão esforços de todo tipo paranos fazer compreender de que modo as sensações inex-tensivas adquirem extensão e escolhem, para aí se locali-zarem, tais pontos do espaço de preferência a todos osoutros. Mas essa doutrina não é apenas incapaz de nosmostrar claramente como o inextenso se estende; ela tornaigualmente inexplicáveis a afecção, a extensão e a repre-sentação. Ela terá que se dar os estados afetivos comooutros tantos absolutos, dos quais não se sabe por queaparecem ou desaparecem em tais ou tais momentos naconsciência. A passagem da afecção à representação per-manecerá envolvida em um mistério também impenetrável,porque, repetimos, não se encontrará jamais em estadosinteriores, simples e inextensivos, uma razão para queadotem de preferência esta ou aquela ordem determinadano espaço. E, enfim, a própria representação terá que serposta como um absoluto: não se percebe nem sua origem,nem sua destinação.

As coisas se esclarecem, ao contrário, se partimos daprópria representação, isto é, da totalidade das imagenspercebidas. Minha percepção, em estado puro e isolado deminha memória, não vai de meu corpo aos outros corpos:ela está no conjunto dos corpos em primeiro lugar, depoisaos poucos se limita, e adota meu corpo por centro. E é le-vada a isso justamente pela experiência da dupla faculdadeque esse corpo possui de efetuar ações e experimentarafecções, em uma palavra, pela experiência da capacidadesensório-motora de uma certa imagem, privilegiada entre asdemais. De um lado, com efeito, essa imagem ocupasempre o centro da representação, de maneira que asoutras imagens se dispõem em torno dela na própria ordem

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em que poderiam sofrer sua ação; de outro lado, percebo ointerior dessa imagem, o íntimo, através de sensaçõesque chamo afetivas, em vez de conhecer apenas, comonas outras imagens, sua película superficial. Há portanto,no conjunto das imagens, uma imagem favorecida, per-cebida em sua profundidade e não apenas em sua superfí-cie, sede de afecção ao mesmo tempo que fonte de ação:é essa imagem particular que adoto por centro de meuuniverso e por base física de minha personalidade.

Mas, antes de prosseguir e de estabelecer uma relaçãoprecisa entre a pessoa e as imagens onde ela se instala,resumamos brevemente, opondo-a às análises da psicolo-gia usual, a teoria que acabamos de esboçar da "percep-ção pura".

Vamos retomar, para simplificar a exposição, o sen-tido da visão que havíamos escolhido como exemplo.Atribuímo-nos em geral sensações elementares, corres-pondendo às impressões recebidas pelos cones e basto-netes da retina. É com essas sensações que se irá recons-tituir a percepção visual. Mas, em primeiro lugar, não háuma retina, há duas. Será preciso portanto explicar de quemaneira duas sensações, que se supõem distintas, fundem-se numa percepção única, respondendo àquilo que cha-mamos um ponto do espaço.

Suponhamos essa questão resolvida. As sensações deque se fala são inextensivas. Como recebem elas a exten-são? Quer se veja na extensão um quadro inteiramente pron-to para receber as sensações ou um efeito da mera simul-taneidade de sensações que coexistem na consciênciasem se fundirem, tanto num caso como no outro se intro-duzirá com a extensão algo de novo que não se poderá

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esclarecer, e o processo pelo qual a sensação junta-se àextensão, a escolha de um ponto determinado do espaço porcada sensação elementar permanecerão inexplicados.

Passemos sobre essa dificuldade. Eis a extensão vi-sual constituída. De que maneira ela se junta, por sua vez,à extensão tátil? Tudo o que minha visão constata no es-paço, meu tato o verifica. Dir-se-á que os objetos se cons-tituem precisamente pela cooperação da visão e do tato,e que a concordância dos dois sentidos na percepção seexplica pelo fato de que o objeto percebido é sua obracomum? Mas aqui não poderíamos admitir nada em co-mum, do ponto de vista da qualidade, entre uma sensaçãovisual elementar e uma sensação tátil, já que elas perten-ceriam a dois gêneros inteiramente diferentes. A corres-pondência entre a extensão visual e a extensão tátil nãopode portanto se explicar a não ser pelo paralelismoentre a ordem das sensações visuais e a ordem das sensa-ções táteis. Eis-nos obrigados a supor, além das sensaçõesvisuais, além das sensações táteis, uma certa ordem quelhes é comum, e que, por conseqüência, deve ser indepen-dente tanto de umas quanto de outras. Vamos mais longe:esta ordem é independente de nossa percepção individual,já que ela aparece do mesmo modo a todos os homens, econstitui um mundo material onde efeitos estão encadeadosa causas, onde os fenômenos obedecem a leis. Vemo-nosportanto finalmente conduzidos à hipótese de uma ordemobjetiva e independente de nós, ou seja, de um mundomaterial distinto da sensação.

À medida que avançávamos, multiplicamos os dadosirredutíveis e ampliamos a hipótese simples de onde ha-víamos partido. Mas ganhamos com isso alguma coisa?

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Se a matéria à qual chegamos é indispensável para nosfazer compreender a maravilhosa concordância das sen-sações entre si, nada conhecemos dela, já que lhe devemosnegar todas as qualidades percebidas, todas as sensaçõescuja correspondência ela simplesmente deve explicar.Portanto ela não é, ela não pode ser nada daquilo que co-nhecemos, nada daquilo que imaginamos. Permanece noestado de entidade misteriosa.

Mas nossa própria natureza, o papel e a destinaçãode nossa pessoa, permanece envolvida em grande misté-rio também. Pois de onde surgem, como nascem e a quedevem servir essas sensações elementares, inextensivas,que irão se desenvolver no espaço? É preciso colocá-lascomo outros tantos absolutos, cuja origem e fim não seconhecem. E, supondo que seja preciso distinguir, em ca-da um de nós, o espírito e o corpo, não se pode conhecernada do corpo, nem do espírito, nem da relação que man-têm entre si.

Agora, em que consiste nossa hipótese e em que pontopreciso ela se separa da outra? Em vez de partir da afec-ção, da qual não se pode dizer nada já que não há nenhu-ma razão para que ela seja o que é e não outra coisa, par-timos da ação, isto é, da faculdade que temos de operarmudanças nas coisas, faculdade atestada pela consciên-cia e para a qual parecem convergir todas as capacidadesdo corpo organizado. Colocamo-nos portanto, de saída,no conjunto das imagens extensas, e nesse universo ma-terial percebemos precisamente centros de indeterminação,característicos da vida. Para que ações irradiem dessescentros, é preciso que os movimentos ou influências dasoutras imagens sejam por um lado recolhidos, por outro

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utilizados. A matéria viva, em sua forma mais simples eno estado homogêneo, realiza já essa função, na medidaem que se alimenta ou se repara. O progresso dessa maté-ria consiste em repartir essa dupla tarefa entre duas cate-gorias de órgãos, sendo que os primeiros, chamados órgãosde nutrição, destinam-se a sustentar os segundos: estes últi-mos são feitos para agir, têm por modelo simples umacadeia de elementos nervosos, estendida entre duas ex-tremidades, uma delas recolhendo impressões exteriorese a outra efetuando movimentos. Assim, para retornar aoexemplo da percepção visual, o papel dos cones e dos bas-tonetes será simplesmente receber estímulos que serãoelaborados em seguida em movimentos efetuados ou nas-centes. Nenhuma percepção pode resultar daí, e em partealguma, no sistema nervoso, há centros conscientes; masa percepção nasce da mesma causa que suscitou a cadeiade elementos nervosos com os órgãos que a sustentam ecom a vida em geral: ela exprime e mede a capacidade deagir do ser vivo, a indeterminação do movimento ou daação que seguirá o estímulo recolhido. Essa indetermina-ção, conforme já mostramos, se traduzirá por uma reflexãosobre si mesmas, ou melhor, por uma divisão das imagensque cercam nosso corpo; e, como a cadeia de elementosnervosos que recebe, retém e transmite movimentos é jus-tamente a sede e dá a medida dessa indeterminação, nossapercepção acompanhará todo o detalhe e parecerá expri-mir todas as variações desses mesmos elementos nervo-sos. Nossa percepção, em estado puro, faria portanto ver-dadeiramente parte das coisas. E a sensação propriamen-te dita, longe de brotar espontaneamente das profundezasda consciência para se estender, debilitando-se, no espa-

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ço, coincide com as modificações necessárias que sofre,em meio às imagens que a influenciam, esta imagem par-ticular que cada um de nós chama seu corpo.

Esta é a teoria simplificada, esquemática, que havía-mos anunciado da percepção exterior. Seria a teoria dapercepção pura. Se a tomássemos por definitiva, o papelde nossa consciência, na percepção, se limitaria a ligarpelo fio contínuo da memória uma série ininterrupta devisões instantâneas, que fariam parte antes das coisas doque de nós. Que nossa consciência tenha sobretudo essepapel na percepção exterior é aliás o que se pode deduzira priori da definição mesma de corpos vivos. Pois, seesses corpos têm por objeto receber excitações para ela-borá-las em reações imprevistas, também a escolha dareação não deve se operar ao acaso. Essa escolha se inspi-ra, sem dúvida nenhuma, em experiências passadas, e areação não se faz sem um apelo à lembrança que situa-ções análogas foram capazes de deixar atrás delas. A in-determinação dos atos a cumprir exige portanto, para nãose confundir com o puro capricho, a conservação das ima-gens percebidas. Poderíamos dizer que não temos podersobre o futuro sem uma perspectiva igual e corresponden-te sobre o passado, que o impulso de nossa atividade paradiante cria atrás de si um vazio onde as lembranças seprecipitam, e que a memória é assim a repercussão, na es-fera do conhecimento, da indeterminação de nossa von-tade. - Mas a ação da memória estende-se muito mais longee mais profundamente ainda do que faria supor este exa-me superficial. É chegado o momento de reintegrar a me-mória na percepção, de corrigir por isso o que nossas

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conclusões podem ter de exagerado, e de determinar assimcom mais precisão o ponto de contato entre a consciênciae as coisas, entre o corpo e o espírito.

Digamos inicialmente que, se colocarmos a memó-ria, isto é, uma sobrevivência das imagens passadas, estasimagens irão misturar-se constantemente à nossa percep-ção do presente e poderão inclusive substituí-la. Pois elassó se conservam para tornarem-se úteis: a todo instantecompletam a experiência presente enriquecendo-a com aexperiência adquirida; e, como esta não cessa de crescer,acabará por recobrir e submergir a outra. É incontestávelque o fundo de intuição real, e por assim dizer instantâneo,sobre o qual se desenvolve nossa percepção do mundoexterior é pouca coisa em comparação com tudo o quenossa memória nele acrescenta. Justamente porque a lem-brança de intuições anteriores análogas é mais útil que aprópria intuição, estando ligada em nossa memória a todaa série dos acontecimentos subseqüentes e podendo porisso esclarecer melhor nossa decisão, ela desloca a intuiçãoreal, cujo papel então não é mais - conforme mostrare-mos adiante - que o de chamar a lembrança, dar-lhe umcorpo, torná-la ativa e conseqüentemente atual. Tínhamosrazão portanto em dizer que a coincidência da percepçãocom o objeto percebido existe mais de direito do que defato. É preciso levar em conta que perceber acaba nãosendo mais do que uma ocasião de lembrar, que na práti-ca medimos o grau de realidade com o grau de utilidade,que temos todo o interesse, enfim, em erigir em simplessignos do real essas intuições imediatas que coincidem,no fundo, com a própria realidade. Mas descobrimosaqui o erro daqueles que vêem na percepção uma proje-

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ção exterior de sensações inextensivas, tiradas de nossopróprio âmago e a seguir desenvolvidas no espaço. Elesnão têm dificuldade em mostrar que nossa percepção com-pleta está carregada de imagens que nos pertencem pes-soalmente, de imagens exteriorizadas (ou seja, em suma,rememoradas); esquecem apenas que um fundo impes-soal permanece, onde a percepção coincide com o objetopercebido, e que esse fundo é a própria exterioridade.

O erro capital, o erro que, remontando da psicologiaà metafísica, acaba por nos ocultar o conhecimento docorpo assim como o do espírito, é o que consiste em verapenas uma diferença de intensidade, e não de natureza,entre a percepção pura e a lembrança. Nossas percepçõesestão certamente impregnadas de lembranças, e inversa-mente uma lembrança, conforme mostraremos adiante, nãose faz presente a não ser tomando emprestado o corpo dealguma percepção onde se insere. Estes dois atos, percep-ção e lembrança, penetram-se portanto sempre, trocamsempre algo de suas substâncias mediante um fenômenode endosmose. O papel do psicólogo seria o de dissociá-los, devolver a cada um deles sua pureza original: assim seesclareceria um bom número das dificuldades que a psi-cologia enfrenta, e possivelmente a metafísica também.Mas não. Pretende-se que esses estados mistos, amboscompostos, em doses desiguais, de percepção pura e delembrança pura, sejam estados simples. Por isso o psicó-logo condena-se a ignorar tanto a lembrança pura quantoa percepção pura, a já não conhecer senão um único tipode fenômeno, que será chamado ora de lembrança, ora depercepção, conforme predomine nele um ou outro dessesdois aspectos, e por conseqüência a não ver entre a per-cepção e a lembrança mais que uma diferença de grau, e

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não de natureza. Este erro tem por primeiro efeito, comoveremos em detalhe, viciar profundamente a teoria damemória; pois, fazendo-se da lembrança uma percepçãomais fraca, ignora-se a diferença essencial que separa opassado do presente, renuncia-se a compreender os fenô-menos do reconhecimento e, de uma maneira mais geral, omecanismo do inconsciente. Mas inversamente, e porquese fez da lembrança uma percepção mais fraca, já não sepoderá ver na percepção senão uma lembrança mais inten-sa. Raciocinar-se-á como se ela nos fosse dada, à maneirade uma lembrança, como um estado interior, como umasimples modificação de nossa pessoa. Desconhecer-se-á oato original e fundamental da percepção, esse ato, consti-tutivo da percepção pura, pelo qual nos colocamos de iní-cio nas coisas. E o mesmo erro, que se exprime em psico-logia por uma incapacidade radical de explicar o mecanis-mo da memória, irá impregnar profundamente, em metafí-sica, as concepções idealista e realista da matéria.

Para o realismo, com efeito, a ordem invariável dosfenômenos da natureza reside numa causa distinta denossas próprias percepções, seja porque essa causa devapermanecer incognoscível, seja porque não possamosatingi-la por um esforço (sempre mais ou menos arbitrá-rio) de construção metafísica. Para o idealista, ao contrário,essas percepções são a totalidade da realidade, e a ordeminvariável dos fenômenos da natureza não é mais que osímbolo pelo qual exprimimos, ao lado das percepçõesreais, as percepções possíveis. Mas tanto para o realismoquanto para o idealismo as percepções são "alucinaçõesverdadeiras", estados do sujeito projetados fora dele; e asduas doutrinas diferem apenas no fato de que, numa,

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esses estados constituem a realidade, enquanto na outraeles vão juntar-se a ela.

Mas essa ilusão recobre ainda uma outra, que se es-tende à teoria do conhecimento em geral. O que constituio mundo material, dissemos, são objetos, ou, se preferirem,imagens, cujas partes agem e reagem todas através de mo-vimentos umas sobre as outras. E o que constitui nossapercepção pura é, no seio mesmo dessas imagens, nos-sa ação nascente que se desenha. A atualidade de nossapercepção consiste portanto em sua atividade, nos movi-mentos que a prolongam, e não em sua maior intensida-de: o passado não é senão idéia, o presente é ídeo-motor.Mas eis aí o que se insiste em não ver, porque se toma apercepção por uma espécie de contemplação, porque selhe atribui sempre uma finalidade puramente especulativa,porque se quer que ela vise a não se sabe qual conheci-mento desinteressado: como se, isolando-a da ação, cor-tando assim seus vínculos com o real, ela não se tornasseao mesmo tempo inexplicável e inútil! A partir daí toda adiferença é abolida entre a percepção e a lembrança, já queo passado é por essência o que não atua mais, e que aose desconhecer esse caráter do passado se é incapaz dedistingui-lo realmente do presente, ou seja, do atuante. Por-tanto só poderá subsistir entre a percepção e a memóriauma simples diferença de grau, e tanto numa como nou-tra o sujeito não sairá de si mesmo. Restabeleçamos, aocontrário, o caráter verdadeiro da percepção; mostremos,na percepção pura, um sistema de ações nascentes quepenetra no real por suas raízes profundas: esta percepçãose distinguira radicalmente da lembrança; a realidade dascoisas já não será construída ou reconstruída, mas toca-

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da, penetrada, vivida; e o problema pendente entre o rea-lismo e o idealismo, em vez de perpetuar-se em dis-cussões metafísicas, deverá ser resolvido pela intuição.

Mas por aí também perceberemos claramente a posi-ção a ser tomada entre o idealismo e o realismo, reduzidosum e outro a não ver na matéria mais que uma construçãoou uma reconstrução executada pelo espírito. Com efeito,seguindo até o fim o princípio que colocamos aqui, e se-gundo o qual a subjetividade de nossa percepção consis-tiria sobretudo na contribuição de nossa memória, diremosque as próprias qualidades sensíveis da matéria seriamconhecidas em si, de dentro e não mais de fora, se pudés-semos separá-las desse ritmo particular de duração que ca-racteriza nossa consciência. Nossa percepção pura, comefeito, por mais rápida que a suponhamos, ocupa uma certaespessura de duração, de sorte que nossas percepções suces-sivas não são jamais momentos reais das coisas, comosupusemos até aqui, mas momentos de nossa consciência.O papel teórico da consciência na percepção exterior,dizíamos nós, seria o de ligar entre si, pelo fio contínuo damemória, visões instantâneas do real. Mas, na verdade,não há jamais instantâneo para nós. Naquilo que chama-mos por esse nome existe já um trabalho de nossa memória,e conseqüentemente de nossa consciência, que prolongauns nos outros, de maneira a captá-los numa intuição re-lativamente simples, momentos tão numerosos quanto os.de um tempo indefinidamente divisível. Ora, onde se en-contra exatamente a diferença entre a matéria, tal como orealismo mais exigente poderia concebê-la, e a percepçãoque temos dela? Nossa percepção nos oferece do univer-so uma série de quadros pitorescos, mas descontínuos:

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de nossa percepção atual não saberíamos deduzir as per-cepções ulteriores, porque não há nada, num conjunto dequalidades sensíveis, que deixe prever as qualidades novasem que elas se transformarão. Já a matéria, tal como orealismo geralmente a coloca, evolui de modo que se possapassar de um momento ao momento seguinte por via de de-dução matemática. É verdade que entre essa matéria e essapercepção o realismo científico não saberia encontrar umponto de contato, porque ele desenvolve a matéria em mu-danças homogêneas no espaço, enquanto encerra a per-cepção em sensações inextensivas numa consciência. Mas,se nossa hipótese é correta, não é difícil ver de que modopercepção e matéria se distinguem e de que modo coin-cidem. A heterogeneidade qualitativa de nossas percep-ções sucessivas do universo deve-se ao fato de que cadauma dessas percepções estende-se, ela própria, sobre umacerta espessura de duração, ao fato de que a memóriacondensa aí uma multiplicidade enorme de estímulos quenos aparecem juntos, embora sucessivos. Bastaria dividiridealmente essa espessura indivisa de tempo, distinguirnela a multiplicidade ordenada de momentos, em umapalavra, eliminar toda a memória, para passar da percep-ção à matéria, do sujeito ao objeto. A matéria então, tor-nada cada vez mais homogênea à medida que nossas sen-sações extensivas se repartiriam em um número maior demomentos, tenderia indefinidamente para este sistema deestímulos homogêneos de que fala o realismo, sem no en-tanto, é verdade, jamais coincidir inteiramente com eles.Não haveria mais necessidade de colocar de um lado oespaço com movimentos não percebidos, de outro a cons-ciência com sensações inextensivas. É numa percepção

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extensiva, ao contrário, que sujeito e objeto se uniriaminicialmente, o aspecto subjetivo da percepção consistin-do na contração que a memória opera, a realidade objeti-va da matéria confundindo-se com os estímulos múlti-plos e sucessivos nos quais essa percepção se decompõeinteriormente. Tal é, pelo menos, a conclusão que se tirará,esperamos, da última parte deste trabalho: as questõesrelativas ao sujeito e ao objeto, à sua distinção e à suaunião, devem ser colocadas mais em função do tempo quedo espaço.

Mas nossa distinção da "percepção pura" e da "me-mória pura" visa um outro objeto ainda. Se a percepçãopura, ao nos fornecer indicações sobre a natureza da ma-téria, deve nos permitir tomar posição entre o realismo eo idealismo, a memória pura, ao nos abrir uma perspecti-va sobre o que chamamos espírito, deverá por sua vezdesempatar estas duas outras doutrinas, materialismo eespiritualismo. Inclusive, é esse aspecto da questão queirá nos preocupar nos próximos dois capítulos, pois é poresse lado que nossa hipótese comporta, de certo modo,uma verificação experimental.

Poderíamos resumir, com efeito, nossas conclusõessobre a percepção pura dizendo que há na matéria algoalém, mas não algo diferente, daquilo que é atualmentedado. Sem dúvida a percepção consciente alcança a tota-lidade da matéria, já que ela consiste, enquanto consciente,na separação ou no "discernimento" daquilo que, nessamatéria, interessa nossas diversas necessidades. Mas entreessa percepção da matéria e a própria matéria há apenasuma diferença de grau, e não de natureza, a percepção

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pura estando para a matéria na relação da parte com otodo. Isso significa que a matéria não poderia exercer po-deres de um tipo diferente daqueles que nós percebemos.Ela não tem, ela não pode conter virtude misteriosa. Paratomar um exemplo bem definido, aquele, aliás, que nos in-teressa mais, diremos que o sistema nervoso, massa mate-rial apresentando certas qualidades de cor, resistência, coe-são, etc, talvez possua propriedades físicas não percebidas,mas propriedades físicas apenas. E com isso ele só pode terpor função receber, inibir ou transmitir movimento.

Ora, a essência de todo materialismo é sustentar ocontrário, uma vez que ele pretende fazer surgir a cons-ciência, com todas as suas funções, do simples jogo doselementos materiais. Daí ser levado a considerar as pró-prias qualidades percebidas da matéria, as qualidades sen-síveis e conseqüentemente sentidas, como fosforescênciasque seguiriam o traço dos fenômenos cerebrais no ato depercepção. A matéria, capaz de criar esses fatos de cons-ciência elementares, engendraria da mesma forma os fa-tos intelectuais mais elevados. É portanto da essência domaterialismo afirmar a perfeita relatividade das qualida-des sensíveis, e não é sem razão que essa tese, à qual De-mócrito deu sua fórmula precisa, resulta ser tão antigaquanto o materialismo.

Mas, por uma estranha cegueira, o espiritualismo sem-pre seguiu o materialismo nesse caminho. Acreditandoenriquecer o espírito com tudo o que tirava da matéria,não hesitou jamais em despojar essa matéria das qualida-des que ela adquire em nossa percepção, e que seriamoutras tantas aparências subjetivas. Assim ele fez da ma-téria, muito freqüentemente, uma entidade misteriosa, que,

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justamente por não conhecermos dela mais que a vã apa-rência, poderia engendrar tanto os fenômenos do pensa-mento como os outros.

Na verdade haveria um meio, e apenas um, de refutaro materialismo: seria estabelecer que a matéria é absolu-tamente como ela parece ser. Por aí se eliminaria da ma-téria toda virtualidade, todo poder oculto, e os fenôme-nos do espírito teriam uma realidade independente. Maspara isso seria preciso deixar à matéria essas qualidadesque materialistas e espiritualistas coincidem em isolar dela,estes para fazer de tais qualidades representações do es-pírito, aqueles por não verem aí mais que o revestimentoacidental da extensão.

Tal é precisamente a atitude do senso comum em faceda matéria, e é por isso que o senso comum crê no espí-rito. Parece-nos que a filosofia devia adotar aqui a atitudedo senso comum, corrigindo-a porém num ponto. A me-mória, praticamente inseparável da percepção, intercalao passado no presente, condensa também, numa intuiçãoúnica, momentos múltiplos da duração, e assim, por suadupla operação, faz com que de fato percebamos a maté-ria em nós, enquanto de direito a percebemos nela.

Daí a importância capital do problema da memória.Se a memória é o que comunica sobretudo à percepçãoseu caráter subjetivo, eliminar sua contribuição, dizíamos,deverá ser o primeiro passo da filosofia da matéria. Acres-centaremos agora: uma vez que a percepção pura nos dáo todo ou ao menos o essencial da matéria, uma vez que orestante vem da memória e se acrescenta à matéria, é pre-ciso que a memória seja, em princípio, um poder absolu-tamente independente da matéria. Se, portanto, o espírito

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é uma realidade, é aqui, no fenômeno da memória, quedevemos abordá-lo experimentalmente. E a partir de entãotoda tentativa de derivar a lembrança pura de uma opera-ção do cérebro deverá revelar-se à análise uma ilusãofundamental.

Digamos a mesma coisa de uma forma mais clara.Sustentamos que a matéria não tem nenhum poder ocultoou incognoscível, que ela coincide, no que tem de essen-cial, com a percepção pura. Daí concluímos que o corpovivo em geral, o sistema nervoso em particular são ape-nas locais de passagem para os movimentos que, recebi-dos sob forma de excitação, são transmitidos sob formade ação reflexa ou voluntária. Isso significa que se atri-buiria em vão à substância cerebral a propriedade deengendrar representações. Ora, os fenômenos da memó-ria, onde pretendemos apreender o espírito em sua formamais palpável, são precisamente aqueles que uma psico-logia superficial faria com a maior naturalidade sair daatividade cerebral apenas, justamente porque eles se en-contram no ponto de contato entre a consciência e a ma-téria, e os próprios adversários do materialismo não vêemnenhum inconveniente em tratar o cérebro como um re-cipiente de lembranças. Mas se pudéssemos estabelecerpositivamente que o processo cerebral corresponde ape-nas a uma parte muito fraca da memória, que ele é muitomais seu efeito do que sua causa, que a matéria é aqui,como em outro lugar, o veículo de uma ação e não osubstrato de um conhecimento, então a tese que sustenta-mos se veria demonstrada pelo exemplo julgado o maisdesfavorável, e a necessidade de erigir o espírito em rea-lidade independente se imporia. Mas também assim tal-

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vez se esclarecesse em parte a natureza do que chama-mos espírito, e a possibilidade de o espírito e a matériaagirem um sobre o outro. Pois uma demonstração dessetipo não pode ser puramente negativa. Tendo feito ver oque a memória não é, seremos obrigados a buscar o queela é. Tendo atribuído ao corpo a única função de prepa-rar ações, forçosamente teremos que pesquisar por que amemória parece solidária a esse corpo, de que modolesões corporais a influenciam, e em que sentido ela semodela pelo estado da substância cerebral. Aliás, é im-possível que essa pesquisa não acabe por nos informarsobre o mecanismo psicológico da memória, assim comodas diversas operações do espírito que se ligam a ela. Einversamente, se os problemas de psicologia pura pare-cem receber de nossa hipótese alguma luz, a própriahipótese ganhará com isso em certeza e em solidez.

Mas devemos apresentar essa mesma idéia sob umaterceira forma ainda, para estabelecer claramente de quemaneira o problema da memória é, aos nossos olhos, umproblema privilegiado. O que resulta de nossa análise dapercepção pura são duas conclusões de certo modo di-vergentes, uma ultrapassando a psicologia em direção dapsicofisiologia, a outra em direção da metafísica, sendo quenem uma nem outra comportava conseqüentemente umaverificação imediata. A primeira dizia respeito ao papeldo cérebro na percepção: o cérebro seria um instrumentode ação, e não de representação. Não podíamos pedir aconfirmação direta dessa tese aos fatos, já que a percepçãopura aplica-se por definição a objetos presentes, acionan-do nossos órgãos e nossos centros nervosos, e tudo sempreirá se passar, por conseqüência, como se nossas percep-

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ções emanassem de nosso estado cerebral e se projetassemem seguida sobre um objeto que difere absolutamentedelas. Em outras palavras, no caso da percepção exterior,a tese que combatemos e a que substituímos a ela condu-zem exatamente às mesmas conseqüências, de sorte que sepode invocar em favor de uma ou de outra sua inteligibi-lidade mais elevada, mas não a autoridade da experiên-cia. Ao contrário, um estudo empírico da memória podee deve desempatá-las. A lembrança pura, com efeito, é,por hipótese, a representação de um objeto ausente. Se énuma certa atividade cerebral que a percepção tinha suacausa necessária e suficiente, essa mesma atividade cere-bral, repetindo-se mais ou menos completamente na ausên-cia do objeto, será o bastante para reproduzir a percepção:a memória poderá portanto explicar-se integralmente pelocérebro. Se, ao contrário, descobrirmos que o mecanismocerebral condiciona a lembrança de uma certa maneira, masnão é suficiente em absoluto para assegurar sua sobrevi-vência, que ele diz respeito, na percepção rememorada,mais à nossa ação do que à nossa representação, podere-mos inferir daí que ele desempenhava um papel análogona própria percepção, e que sua função era simplesmen-te assegurar nossa ação eficaz sobre o objeto presente.Nossa primeira conclusão estaria assim verificada. - Res-taria então a segunda conclusão, de ordem sobretudo me-tafísica, segundo a qual somos colocados efetivamentefora de nós na percepção pura, segundo a qual tocamos arealidade do objeto numa intuição imediata. Aqui tam-bém uma verificação experimental era impossível, poisos resultados práticos serão absolutamente os mesmos,quer a realidade do objeto tenha sido intuitivamente per-

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cebida, quer tenha sido racionalmente construída. Mas tam-bém aqui um estudo da lembrança poderá desempatar asduas hipóteses. Na segunda, com efeito, não deverá havermais que uma diferença de intensidade, ou de grau, entrea percepção e a lembrança, uma vez que ambas serão fe-nômenos de representação que se bastam a si mesmos.Se, ao contrário, descobrirmos que não há entre a lem-brança e a percepção uma simples diferença de grau, masuma diferença radical de natureza, as conjeturas estarãoa favor da hipótese que faz intervir na percepção algoque não existe em nenhum grau na lembrança, uma rea-lidade intuitivamente apreendida. Assim o problema damemória é efetivamente um problema privilegiado, namedida em que deve conduzir à verificação psicológicade duas teses que parecem inverificáveis, sendo que asegunda, de ordem sobretudo metafísica, ultrapassa infi-nitamente a psicologia.

O caminho que temos a seguir está portanto traçado.Iremos começar passando em revista os documentos dediversos tipos, tomados de empréstimo à psicologia nor-mal ou patológica, de onde nos poderíamos acreditar au-torizados a tirar uma explicação física da memória. Esseexame será necessariamente minucioso, sob pena de serinútil. Devemos, aproximando-nos o máximo possível docontorno dos fatos, buscar onde começa e onde termina,na operação da memória, o papel do corpo. E, no caso deencontrarmos nesse estudo a confirmação de nossa hipó-tese, não hesitaremos em ir mais longe, considerando emsi mesmo o trabalho elementar do espírito, e completan-do assim a teoria que teremos esboçado das relações doespírito com a matéria.

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CAPITULO IIDO RECONHECIMENTO DAS IMAGENS.A MEMÓRIA E O CÉREBRO

Enunciemos de imediato as conseqüências que decor-reriam de nossos princípios para a teoria da memória. Di-zíamos que o corpo, colocado entre os objetos que agemsobre ele e os que ele influencia, não é mais que um con-dutor, encarregado de recolher os movimentos e de trans-miti-los, quando não os retém, a certos mecanismos mo-tores, mecanismos estes determinados, se a ação é reflexa,escolhidos, se a ação é voluntária. Tudo deve se passar por-tanto como se uma memória independente juntasse ima-gens ao longo do tempo à medida que elas se produzem,e como se nosso corpo, com aquilo que o cerca, não fos-se mais que uma dessas imagens, a última que obtemos atodo momento praticando um corte instantâneo no devirem geral. Nesse corte, nosso corpo ocupa o centro. As coi-sas que o cercam agem sobre ele e ele reage a elas. Suasreações são mais ou menos complexas, mais ou menosvariadas, conforme o número e a natureza dos aparelhosque a experiência montou no interior de sua substância.É portanto na forma de dispositivos motores, e de dispo-

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sitivos motores somente, que ele pode armazenar a ação dopassado. Donde resultaria que as imagens passadas pro-priamente ditas conservam-se de maneira diferente, e quedevemos, por conseguinte, formular esta primeira hipótese:

I. O passado sobrevive sob duas formas distintas: 1) emmecanismos motores; 2) em lembranças independentes.

Com isso, a operação prática e conseqüentemente or-dinária da memória, a utilização da experiência passadapara a ação presente, o reconhecimento, enfim, deve rea-lizar-se de duas maneiras. Ora se fará na própria ação, epelo funcionamento completamente automático do meca-nismo apropriado às circunstâncias; ora implicará um traba-lho do espírito, que irá buscar no passado, para dirigi-lasao presente, as representações mais capazes de se inseri-rem na situação atual. Donde nossa segunda proposição:

II. O reconhecimento de um objeto presente se faz pormovimentos quando procede do objeto, por representaçõesquando emana do sujeito.

É verdade que uma última questão se coloca: a desaber de que modo se conservam essas representações eque relações elas mantêm com os mecanismos motores.Essa questão só será aprofundada em nosso próximo capí-tulo, quando tivermos tratado do inconsciente e mostradoem que consiste, no fundo, a distinção entre passado epresente. Mas já agora podemos falar do corpo como deum limite movente entre o futuro e o passado, como de umaextremidade móvel que nosso passado estenderia a todomomento em nosso futuro. Enquanto meu corpo, consi-derado num instante único, é apenas um condutor inter-posto entre os objetos que o influenciam e os objetos so-bre os quais age, por outro lado, recolocado no tempo

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que flui, ele está sempre situado no ponto preciso ondemeu passado vem expirar numa ação. Conseqüentemente,essas imagens particulares que chamo mecanismos cere-brais terminam a todo momento a série de minhas repre-sentações passadas, consistindo no último prolongamentoque essas representações enviam no presente, seu pontode ligação com o real, ou seja, com a ação. Corte essaligação, a imagem passada talvez não se destrua, mas vocêlhe tirará toda capacidade de agir sobre o real, e por con-seguinte, conforme mostraremos, de se realizar. É nessesentido, e nesse sentido apenas, que uma lesão do cére-bro poderá abolir algo da memória. Daí nossa terceira eúltima proposição:

III. Passa-se, por graus insensíveis, das lembrançasdispostas ao longo do tempo aos movimentos que dese-nham sua ação nascente ou possível no espaço. As lesõesdo cérebro podem atingir tais movimentos, mas não taislembranças.

Resta saber se a experiência verifica essas três pro-posições.

I. As duas formas da memória - Estudo uma lição, epara aprendê-la de cor leio-a primeiramente escandindocada verso; repito-a em seguida um certo número de ve-zes. A cada nova leitura efetua-se um progresso; as pala-vras ligam-se cada vez melhor; acabam por se organizarjuntas. Nesse momento preciso sei minha lição de cor;dizemos que ela tornou-se lembrança, que ela se impri-miu em minha memória.

Examino agora de que modo a lição foi aprendida, eme represento as fases pelas quais passei sucessivamente.

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Cada uma das leitura^ sucessivas volta-me então ao espí-rito com sua individualidade própria; revejo-a com ascircunstâncias que a acompanhavam e que a enquadramainda; ela se distingue das precedentes e das subseqüen-tes pela própria posição que ocupou no tempo; em suma,cada uma dessas leituras torna a passar diante de mim co-mo um acontecimento determinado de minha história.Dir-se-á ainda que essas imagens são lembranças, queelas se imprimiram em minha memória. Empregam-se asmesmas palavras em ambos os casos. Trata-se efetiva-mente da mesma coisa?

A lembrança da lição, enquanto aprendida de cor,tem todas as características de um hábito. Como o hábito,ela é adquirida pela repetição de um mesmo esforço.Como o hábito, ela exigiu inicialmente a decomposição,e depois a recomposição da ação total. Como todo exer-cício habitual do corpo, enfim, ela armazenou-se nummecanismo que estimula por inteiro um impulso inicial,num sistema fechado de movimentos automáticos que sesucedem na mesma ordem e ocupam o mesmo tempo.

Ao contrário, a lembrança de tal leitura particular, asegunda ou a terceira por exemplo, não tem nenhuma dascaracterísticas do hábito. Sua imagem imprimiu-se ne-cessariamente de imediato na memória, já que as outrasleituras constituem, por definição, lembranças diferentes.É como um acontecimento de minha vida; contém, poressência, uma data, e não pode conseqüentemente repe-tir-se. Tudo o que as leituras ulteriores lhe acrescentariamsó faria alterar sua natureza original; e, se meu esforçopara evocar essa imagem torna-se cada vez mais fácil àmedida que o repito com maior freqüência, a própria ima-

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gem, considerada em si, era necessariamente de início oque será sempre.

Dir-se-á que essas duas lembranças, a da leitura e a dalição, diferem apenas em grau, que as imagens sucessiva-mente desenvolvidas por cada leitura recobrem-se entresi, e que a lição uma vez aprendida não é mais que a ima-gem compósita resultante da superposição de todas asoutras? É incontestável que cada uma das leituras suces-sivas difere sobretudo da precedente pelo fato de que alição é aí sabida melhor. Mas é certo também que cadauma delas, considerada como uma leitura sempre renovadae não como uma lição cada vez melhor aprendida, bastaabsolutamente a si mesma, subsiste tal como se produziu,e constitui, juntamente com todas as percepções conco-mitantes, um momento irredutível de minha história. Po-de-se mesmo ir mais longe, e afirmar que a consciêncianos revela entre esses dois tipos de lembrança uma dife-rença profunda, uma diferença de natureza. A lembrançade determinada leitura é uma representação, e não maisque uma representação; diz respeito a uma intuição doespírito que posso, a meu bel-prazer, alongar ou abreviar;eu lhe atribuo uma duração arbitrária: nada me impede deabarcá-la de uma só vez, como num quadro. Ao contrário,a lembrança da lição aprendida, mesmo quando me limi-to a repetir essa lição interiormente, exige um tempobem determinado, o mesmo que é necessário para desen-volver um a um, ainda que em imaginação, todos osmovimentos de articulação requeridos: portanto não setrata mais de uma representação, trata-se de uma ação. E,de fato, a lição, uma vez aprendida, não contém nenhu-ma marca que revele suas origens e a classifique no pas-

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sado; ela faz parte de meu presente da mesma forma quemeu hábito de caminhar ou de escrever; ela é vivida, elaé "agida", mais que representada; - eu poderia acreditá-la inata, se não me agradasse evocar ao mesmo tempo,como outras tantas representações, as leituras sucessivasque me serviram para aprendê-la. Essas representaçõessão portanto independentes dela, e, como elas precede-ram a lição sabida e recitada, a lição uma vez sabida podetambém passar sem elas.

Levando até o fim essa distinção fundamental, pode-ríamos representar-nos duas memórias teoricamente inde-pendentes. A primeira registraria, sob forma de imagens-lembranças, todos os acontecimentos de nossa vida coti-diana à medida que se desenrolam; ela não negligencia-ria nenhum detalhe; atribuiria a cada fato, a cada gesto,seu lugar e sua data. Sem segunda intenção de utilidade oude aplicação prática, armazenaria o passado pelo meroefeito de uma necessidade natural. Por ela se tornaria pos-sível o reconhecimento inteligente, ou melhor, intelectual,de uma percepção já experimentada; nela nos refugiaría-mos todas as vezes que remontamos, para buscar aí umacerta imagem, a encosta de nossa vida passada. Mas todapercepção prolonga-se em ação nascente; e, à medida queas imagens, uma vez percebidas, se fixam e se alinhamnessa memória, os movimentos que as continuam modi-ficam o organismo, criam no corpo disposições novaspara agir. Assim se forma uma experiência de uma or-dem bem diferente e que se deposita no corpo, uma sériede mecanismos inteiramente montados, com reaçõescada vez mais numerosas e variadas às excitações exterio-res, com réplicas prontas a um número incessantemente

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maior de interpelações possíveis. Tomamos consciênciadesses mecanismos no momento em que eles entram emjogo, e essa consciência de todo um passado de esforçosarmazenado no presente é ainda uma memória, mas umamemória profundamente diferente da primeira, semprevoltada para a ação, assentada no presente e consideran-do apenas o futuro. Esta só reteve do passado os movi-mentos inteligentemente coordenados que representamseu esforço acumulado; ela reencontra esses esforçospassados, não em imagens-lembranças que os recordam,mas na ordem rigorosa e no caráter sistemático com queos movimentos atuais se efetuam. A bem da verdade, elajá não nos representa nosso passado, ela o encena; e, seela merece ainda o nome de memória, já não é porqueconserve imagens antigas, mas porque prolonga seu efei-to útil até o momento presente.

Dessas duas memórias, das quais uma imagina e aoutra repete, a segunda pode substituir a primeira e fre-qüentemente até dar a ilusão dela. Quando o cão acolheseu dono com festa e latidos alegres, ele o reconhece,sem dúvida nenhuma; mas esse reconhecimento implicaa evocação de uma imagem passada e a reaproximaçãodessa imagem à percepção presente? Não consistirá an-tes na consciência que toma o animal de uma certa ati-tude especial adotada por seu corpo, atitude que suasrelações familiares com seu dono foram formando poucoa pouco, e que a simples percepção do dono provoca agoranele mecanicamente? Não vamos tão longe! No próprioanimal, vagas imagens do passado ultrapassam talvez apercepção presente; é concebível inclusive que seu pas-sado inteiro esteja virtualmente desenhado em sua cons-

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ciência; mas esse passado não o interessa o bastante parasepará-lo do presente que o fascina, e seu reconhecimentodeve ser antes vivido do que pensado. Para evocar o passa-do em forma de imagem, é preciso poder abstrair-se daação presente, é preciso saber dar valor ao inútil, é precisoquerer sonhar. Talvez apenas o homem seja capaz de umesforço desse tipo. Também o passado que remontamosdeste modo é escorregadio, sempre a ponto de nos escapar,como se essa memória regressiva fosse contrariada pelaoutra memória, mais natural, cujo movimento para diantenos leva a agir e a viver.

Quando os psicólogos falam da lembrança como deum hábito contrário, como de uma impressão que se gra-va cada vez mais profundamente à medida que se repete,eles esquecem que a imensa maioria de nossas lembran-ças tem por objeto os acontecimentos e detalhes de nossavida, cuja essência é ter uma data e, conseqüentemente,não se reproduzir jamais. As lembranças que se adquiremvoluntariamente por repetição são raras, excepcionais. Aocontrário, o registro, pela memória, de fatos e imagens úni-cos em seu gênero se processa em todos os momentos daduração. Mas como as lembranças aprendidas são maisúteis repara-se mais nelas. E como a aquisição dessaslembranças pela repetição do mesmo esforço assemelha-seao processo já conhecido do hábito tende-se a colocar essetipo de lembrança em primeiro plano, a erigi-lo em mo-delo de lembrança, e a ver na lembrança espontânea ape-nas esse mesmo fenômeno em estado nascente, o começode uma lição aprendida de cor. Mas como não reconhecerque a diferença é radical entre o que deve se constituir pelarepetição e o que, por essência, não pode se repetir? A lem-

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branca espontânea é imediatamente perfeita; o tempo nãopoderá acrescentar nada à sua imagem sem desnaturá-la;ela conservará para a memória seu lugar e sua data. Aocontrário, a lembrança aprendida sairá do tempo à medidaque a lição for melhor sabida; tornar-se-á cada vez maisimpessoal, cada vez mais estranha à nossa vida passada.Portanto, a repetição não tem de modo algum por resul-tado converter a primeira na segunda; seu papel é simples-mente utilizar cada vez mais os movimentos pelos quaisa primeira se desenvolve, organizar esses movimentos en-tre si e, montando um mecanismo, criar um hábito docorpo. Esse hábito, aliás, só é lembrança porque me lem-bro de tê-lo adquirido; e só me lembro de tê-lo adquiridoporque apelo à memória espontânea, aquela que data osacontecimentos e só os registra uma vez. Das duas memó-rias que acabamos de distinguir, a primeira parece por-tanto ser efetivamente a memória por excelência. A se-gunda, aquela que os psicólogos estudam em geral, é anteso hábito esclarecido pela memória do que a memóriapropriamente.

É verdade que o exemplo de uma lição aprendida decor é bastante artificial. Todavia nossa existência decorreem meio a objetos em número restrito, que tornam a pas-sar com maior ou menor freqüência diante de nós: cadaum deles, ao mesmo tempo que é percebido, provoca denossa parte movimentos pelo menos nascentes atravésdos quais nos adaptamos a eles. Esses movimentos, ao serepetirem, criam um mecanismo, adquirem a condiçãode hábito, e determinam em nós atitudes que acompa-nham automaticamente nossa percepção das coisas. Nos-so sistema nervoso não estaria destinado, dizíamos, a um

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outro uso. Os nervos aferentes trazem ao cérebro uma ex-citação que, após ter escolhido inteligentemente seu ca-minho, transmite-se a mecanismos motores criados pelarepetição. Assim se produz a reação apropriada, o equilí-brio com o meio, a adaptação, em uma palavra, que é afinalidade geral da vida. E um ser vivo que se contentas-se em viver não teria necessidade de outra coisa. Mas, aomesmo tempo que se desenvolve esse processo de percep-ção e adaptação que resulta no registro do passado sobforma de hábitos motores, a consciência, como veremos,retém a imagem das situações pelas quais passou suces-sivamente, e as alinha na ordem em que elas sucederam.Para que servirão essas imagens-lembranças? Ao se con-servarem na memória, ao se reproduzirem na consciência,não irão elas desnaturar o caráter prático da vida, mistu-rando o sonho à realidade? Seria assim, certamente, senossa consciência atual, consciência que reflete justamen-te a exata adaptação de nosso sistema nervoso à situaçãopresente, não descartasse todas aquelas imagens passa-das que não são capazes de se coordenar à percepção atuale de formar com ela um conjunto útil. No máximo algu-mas lembranças confusas, sem relação com a situaçãopresente, ultrapassam as imagens utilmente associadas,desenhando ao redor delas uma franja menos iluminadaque irá se perder numa imensa zona obscura. Mas vemum acidente que perturba o equilíbrio mantido pelo cére-bro entre a excitação exterior e a reação motora; afrouxepor um instante a tensão dos fios que vão da periferia àperiferia passando pelo centro, e logo as imagens obscureci-das reaparecerão em plena luz: é esta última condição quese realiza certamente no sono quando sonhamos. Das

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duas memórias que distinguimos, a segunda, que é ativaou motora, deverá portanto inibir constantemente a pri-meira, ou pelo menos aceitar dela apenas o que é capaz deesclarecer e completar utilmente a situação presente:deste modo se deduzem as leis da associação de idéias. -Mas, independentemente dos serviços que podem prestarpor sua associação a uma percepção presente, as imagensarmazenadas pela memória espontânea têm ainda um outrouso. Certamente são imagens de sonho; certamente cos-tumam aparecer e desaparecer independentemente de nos-sa vontade; e é justamente por isso que somos obrigados,para saber realmente uma coisa, para tê-la à nossa dispo-sição, a aprendê-la de cor, ou seja, a substituir a imagemespontânea por um mecanismo motor capaz de supri-la.Mas há um certo esforço sui generis que nos permitereter a própria imagem, por um tempo limitado, sob oolhar de nossa consciência; e graças a essa faculdade nãotemos necessidade de esperar do acaso a repetição aci-dental das mesmas situações para organizar em hábito osmovimentos concomitantes; servimo-nos da imagem fugazpara construir um mecanismo estável que a substitui. - Por-tanto, ou nossa distinção de duas memórias independen-tes não tem fundamento, ou, se ela corresponde aos fatos,deveremos constatar uma exaltação da memória espontâ-nea na maioria dos casos em que o equilíbrio sensório-motor do sistema nervoso for perturbado, e, ao contrário,uma inibição, no estado normal, de todas as lembrançasespontâneas incapazes de consolidar utilmente o equilíbriopresente; enfim, deveremos constatar, na operação pelaqual se adquire a lembrança-hábito, a intervenção latenteda lembrança-imagem. Os fatos confirmam a hipótese?

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Não insistiremos, de momento, nem sobre o primeiro,nem sobre o segundo ponto: esperamos esclarecê-los ple-namente quando estudarmos as perturbações da memóriae as leis da associação de idéias. Limitemo-nos a mostrar,no que concerne às coisas aprendidas, de que modo as duasmemórias vão aqui lado a lado e prestam-se um mútuoapoio. Que as lições inculcadas à memória motora repe-tem-se automaticamente, é o que a experiência diária mos-tra; mas a observação dos casos patológicos estabeleceque o automatismo estende-se bem mais do que pensa-mos. Já se viu dementes darem respostas inteligentes auma série de questões que não compreendiam: a lingua-gem funcionava neles à maneira de um reflexo1. Afásicos,incapazes de pronunciar espontaneamente uma palavra,recordam sem erro as palavras de uma melodia quando acantam2. São capazes também de recitar correntementeuma oração, a série dos números, dos dias da semana oudos meses do ano3. Assim, mecanismos de uma compli-cação extrema, bastante sutis para imitar a inteligência,podem funcionar por si mesmos uma vez construídos, econseqüentemente obedecer, em geral, ao mero impulsoinicial da vontade. Mas o que se passa enquanto os construí-mos? Quando nos exercitamos em aprender uma lição,por exemplo, a imagem visual ou auditiva que buscamos

1. Robertson, "Reflex Speech" {Journal of Mental Science, abril de1888). Cf.: artigo de Ch. Féré, "Le langage réflexe" (Revuephilosophique,janeiro de 1896).

2. Oppenheim, "Über das Verhalten der musikalischen Ausdrucks-bewegungen bei Aphatischen" (Charité Annalen, XIII, 1888, pp. 348 ss.).

3. Ibid., p. 365.

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recompor por movimentos não estaria já em nosso espí-rito, invisível e presente? Desde a primeira recitação, re-conhecemos com um vago sentimento de mal-estar talerro que acabamos de cometer, como se recebêssemosdas obscuras profundezas da consciência uma espécie deadvertência4. Concentre-se então naquilo que experi-menta; você sentirá que a imagem completa está ali, masfugitiva, verdadeiro fantasma que desaparece no mo-mento preciso em que sua atividade motora gostaria defixar-lhe a silhueta. Em experiências recentes, realizadasaliás com um objetivo bem distinto5, os pacientes decla-ravam precisamente experimentar uma impressão dessetipo. Fazia-se aparecer a seus olhos, durante alguns se-gundos, uma série de letras que deveriam reter. Mas, paraimpedi-los de sublinhar as letras percebidas com movi-mentos de articulação apropriados, exigia-se que repe-tissem constantemente uma certa sílaba enquanto olha-vam a imagem. Disso resultava um estado psicológicoespecial, em que os pacientes sentiam-se de posse com-pleta da imagem visual "sem no entanto poderem repro-duzir a menor parte dela no momento desejado: para suagrande surpresa, a linha desaparecia". No dizer de umdeles, "havia na base do fenômeno uma representação deconjunto, uma espécie de idéia complexa abarcando o

4. Ver, a respeito deste sentimento de erro, o artigo de Müller eSchumann, "Experimentelle Beitrãge zur Untersuchung des Gedáchtnis-ses" (Zeitschrf. Psych. u. Phys. der Sinnesorgane, dezembro de 1893,p. 305).

5. W. G. Smith, "The Relation of Attention to Memory" (Mina, janei-ro de 1894).

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todo, e onde as partes tinham uma unidade inexprimivel-mente sentida"6.

Essa lembrança espontânea, que se oculta certamenteatrás da lembrança adquirida, é capaz de revelar-se por cla-rões repentinos: mas ela se esconde, ao menor movimentoda memória voluntária. Se o paciente vê desaparecer a sériede letras cuja imagem acreditava ter retido, é sobretudo nomomento em que começa a repeti-las: "esse esforço pareceempurrar o resto da imagem para fora da consciência"7.Analise agora os procedimentos imaginativos da mnemo-tecnia: verá que esta ciência tem precisamente por objetotrazer ao primeiro plano a lembrança espontânea que se dis-simula, e colocá-la, como uma lembrança ativa, à nossalivre disposição: para isso reprime-se inicialmente todaveleidade da memória atuante ou motora. A faculdade defotografia mental, diz um autor8, pertence antes à subcons-

6. "According to one observer, the basis was a Gesammtvorstellung,a sort of ali embracing complex idea in which the parts have an indefini-tely felt unity." (Smith, art. cit., p. 73.)

7. Não seria algo do mesmo tipo que ocorre nessa afecção que osautores alemães chamaram dyslexie'? O doente lê corretamente as primeiraspalavras de uma frase, depois pára bruscamente, incapaz de prosseguir,como se os movimentos de articulação tivessem inibido as lembranças.Ver, a respeito da dislexia: Berlim, Eine besondere Art der Wortblindheit(Dyslexie), Wiesbaden, 1887, e Sommer, "Die Dyslexie ais functionelleStórung" (Arch.f. Psychiatrie, 1893). Aproximaríamos ainda a esses fe-nômenos os casos bastante singulares de surdez verbal, em que o doentecompreende a fala de outrem, mas não compreende a sua (ver os exemploscitados por Bateman, On Aphasia, p. 200; por Bernard, De Vaphasie, Pa-ris, 1889, pp. 143-4; e por Broadbent, "A Case of Peculiar Affection ofSpeech", Brain, 1878-9, pp. 484 ss.).

8. Mortimer Granville, "Ways of Remembering" (Lancei, 27 de se-tembro de 1879, p. 458).

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ciência do que à consciência; ela dificilmente obedece aoapelo da vontade. Para exercitá-la, deveremos habituar-nosa reter, por exemplo, vários grupamentos de pontos de umasó vez, sem mesmo pensar em contá-los9: é preciso, de certomodo, imitar a instantaneidade dessa memória para chegarà disciplina. Todavia ela permanece caprichosa em suasmanifestações e, como as lembranças que traz têm algo desonho, é raro que sua intrusão mais regular na vida do espí-rito não perturbe profundamente o equilíbrio intelectual.

Em que consiste essa memória, de onde ela deriva ede que modo procede, nosso próximo capítulo o mostrará.Uma concepção esquemática será o bastante provisoria-mente. Digamos portanto, para resumir o que precede, queo passado parece efetivamente armazenar-se, conformehavíamos previsto, sob essas duas formas extremas, deum lado os mecanismos motores que o utilizam, de outroas imagens-lembranças pessoais que desenham todos osacontecimentos dele com seu contorno, sua cor e seulugar no tempo. Dessas duas memórias, a primeira é ver-dadeiramente orientada no sentido da natureza; a segunda,entregue a si mesma, iria antes em sentido contrário. Aprimeira, conquistada pelo esforço, permanece sob a de-pendência de nossa vontade; a segunda, completamenteespontânea, é tanto volúvel em reproduzir quanto fiel emconservar. O único serviço regular e certo que a segundapode prestar à primeira é mostrar-lhe as imagens daquiloque precedeu ou seguiu situações análogas à situaçãopresente, a fim de esclarecer sua escolha: nisto consiste a

9. Kay, Memory andHow to Improve it, Nova York, 1888.

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associação de idéias. Não há nenhum outro caso em quea memória que revê obedeça regularmente à memória querepete. Em qualquer outra situação, preferimos construirum mecanismo que nos permita, em caso de necessida-de, desenhar novamente a imagem, porque sabemos bemque não podemos contar com sua reaparição. Estas sãoas duas formas extremas da memória, consideradas cadauma em estado puro.

Digamos logo: foi por se ater às formas intermediáriase, de certo modo, impuras, que se desconheceu a verda-deira natureza da lembrança. Em vez de dissociar inicial-mente os dois elementos, imagem-lembrança e movi-mento, para examinar em seguida através de que série deoperações eles chegam, abandonando algo de sua purezaoriginal, a penetrarem-se um ao outro, considera-se ape-nas o fenômeno misto que resulta de sua coalescência.Esse fenômeno, sendo misto, apresenta por um lado o as-pecto de um hábito motor, por outro, o de uma imagemmais ou menos conscientemente localizada. Mas preten-de-se que seja um fenômeno simples. Será preciso por-tanto supor que o mecanismo cerebral, medular ou bul-bar, que serve de base ao hábito motor, seja ao mesmotempo o substrato da imagem consciente. Donde a estra-nha hipótese de lembranças armazenadas no cérebro, quese tornariam conscientes por um verdadeiro milagre, e nosreconduziriam ao passado por um processo misterioso.Alguns, é verdade, apegam-se mais ao aspecto conscienteda operação e gostariam de ver aí nada mais que um epi-fenômeno. Mas, como eles não começaram por isolar amemória que retém e alinha as repetições sucessivas sobforma de imagens-lembranças, como eles a confundem

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com o hábito que o exercício aperfeiçoa, são levados acrer que o efeito da repetição tem a ver com um único emesmo fenômeno indivisível, que seria reforçado sim-plesmente ao se repetir: e como esse fenômeno acabavisivelmente por não ser mais que um hábito motor e porcorresponder a um mecanismo, cerebral ou outro qual-quer, são levados, queiram ou não, a supor que um meca-nismo desse tipo estava desde o início no fundamento daimagem e que o cérebro é um órgão de representação.Iremos considerar esses estados intermediários, e levarem conta, em cada um deles, a parte da ação nascente, istoé, do cérebro, e a parte da memória independente, isto é,a das imagens-lembranças. Quais são esses estados?Sendo motores por um certo lado, eles devem, de acordocom nossa hipótese, prolongar uma percepção atual; maspor outro lado, enquanto imagens, eles reproduzem per-cepções passadas. Ora, o ato concreto pelo qual reave-mos o passado no presente é o reconhecimento. É portan-to o reconhecimento que devemos estudar.

II. Do reconhecimento em geral: imagens-lembran-ças e movimentas - Há duas maneiras habituais de expli-car o sentimento do déjà vu. Para uns, reconhecer uma per-cepção presente consistiria em inseri-la pelo pensamentonum ambiente antigo. Encontro uma pessoa pela primei-ra vez: eu a percebo simplesmente. Se torno a encontrá-la,eu a reconheço, no sentido de que as circunstâncias con-comitantes da percepção primitiva, voltando-me ao espí-rito, desenham ao redor da imagem atual um quadro quenão é o quadro atualmente percebido. Reconhecer seria por-tanto associar a uma percepção presente as imagens dadas

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outrora em contigüidade com ela10. Mas, como já se obser-vou com razão11, uma percepção renovada não pode suge-rir as circunstâncias concomitantes da percepção primiti-va a menos que esta seja inicialmente evocada pelo estadoatual que se lhe assemelha. Seja A a percepção primeira;as circunstâncias concomitantes B, C, D permanecemassociadas a ela por contigüidade. Se chamo A' a mesmapercepção renovada, como não éaA' mas a A que estãoligados os termos B, C, D, será preciso, para evocar ostermos B, C, D, que uma associação por semelhança façasurgir A inicialmente. Em vão se sustentará que A' éidêntico a A. Os dois termos, ainda que semelhantes, per-manecem numericamente distintos, e diferem pelo menosno simples fato de que A' é uma percepção, ao passo queA não é mais do que uma lembrança. Das duas interpre-tações que havíamos anunciado, a primeira vem assimfundir-se na segunda, que passamos agora a examinar.

Supõe-se, desta vez, que a percepção presente vá sem-pre buscar, no fundo da memória, a lembrança da percep-ção anterior que se lhe assemelha: o sentimento do déjàvu viria de uma justaposição ou de uma fusão entre a per-cepção e a lembrança. Certamente, como já foi observadocom profundidade12, a semelhança é uma relação estabe-

10. Ver a exposição sistemática dessa tese, apoiada em experiên-cias, nos artigos de Lehmann, "Über Wiedererkennen" {Philos. Studiende Wundt, t. V, pp. 96 ss., e t. VII, pp. 169 ss.).

11. Pillon, "La formation des idées abstraites et générales" (Crit.Philos., 1885,1.1, pp. 208 ss.). - Cf. Ward, "Assimilation and Association"(Mind, julho de 1893 e outubro de 1894).

12. Brochard, "La loi de similarité" (Revue phüosophique, 1880, t.IX, p. 258). E. Rabier defende a mesma opinião em suas Leçons dephilosophie, t. I, Psychologie, pp. 187-92.

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lecida pelo espírito entre termos que ele reaproxima e que,conseqüentemente, já possui, de sorte que a percepção deuma semelhança é antes um efeito da associação do quesua causa. Mas, ao lado dessa semelhança definida e per-cebida que consiste na conformidade de um elementoapreendido e liberado pelo espírito, há uma semelhançavaga e de certo modo objetiva, espalhada na superfície daspróprias imagens, e que poderia agir como uma causa fí-sica de atração recíproca13. Alegaremos que se reconhe-ce freqüentemente um objeto sem conseguir identificá-locom uma imagem antiga? Buscar-se-á refúgio na hipótesecômoda de traços cerebrais que coincidiriam, de movimen-tos cerebrais que o exercício facilitaria14, ou de célulasde percepção comunicando-se com células onde repou-sam as lembranças15. Na verdade, é em hipóteses dessetipo que acabam se perdendo, quer se queira ou não, todasessas teorias do reconhecimento. Elas querem fazer sur-gir todo reconhecimento de uma reaproximação entre apercepção e a lembrança; mas, por outro lado, a expe-riência está aí, testemunhando que, na maioria das vezes,a lembrança só surge uma vez reconhecida a percepção.É necessário portanto devolver ao cérebro, sob forma decombinação entre movimentos ou de ligação entre células,o que se havia anunciado inicialmente como uma asso-

13. Pillon, art. cit., p. 207. - Cf. James Sully, The Human Mind,Londres, 1892, t. I, p. 331.

14. Hóffding, "Über Wiedererkennen, Association und psychischeActivitát" {Vierteljahrsschriftf. wissenschaftlichePhilosophie, 1889, p. 433).

15. Munk, Über die Functionen der Grosshirnrinde, Berlim, 1881,pp. 108 ss.

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ciação entre representações, e explicar o fato do reconheci-mento - muito claro a nosso ver - pela hipótese em nos-sa opinião muito obscura de um cérebro que armazenariaidéias.

Mas em realidade a associação de uma percepção auma lembrança não basta, de modo algum, para explicaro processo do reconhecimento. Pois, se o reconhecimentose fizesse assim, ele seria abolido quando as imagens an-tigas desaparecessem, ocorreria sempre quando essas ima-gens fossem conservadas. A cegueira psíquica, ou inca-pacidade de reconhecer os objetos percebidos, seria por-tanto acompanhada de uma inibição da memória visual,e sobretudo a inibição da memória visual teria invariavel-mente por efeito a Cegueira psíquica. Ora, a experiêncianão verifica nem uma nem outra dessas duas conseqüên-cias. Num caso estudado por Wilbrand16, a doente podia,com os olhos fechados, descrever a cidade onde habitavae percorrê-la na imaginação: uma vez na rua, tudo lheparecia novo; ela não reconhecia nada e não conseguia seorientar. Fatos do mesmo gênero foram observados porFr. Müller17 e Lissauer18. Os doentes sabem evocar a visãointerior de um objeto que lhes é nomeado; descrevem-nobastante bem; não são capazes porém de reconhecê-loquando lhes é apresentado. A conservação, mesmo cons-ciente, de uma lembrança visual não basta portanto parao reconhecimento de uma percepção semelhante. Mas in-

16. Die Seelenblindheit ais Herderscheinung, Wiesbaden, 1887, p. 56.17. "Ein Beitrag zur Kenntnis der Seelenblindheit" (Arch. f. Psy-

chiatrie, t. XXIV, 1892).18. "Ein Fali von Seelenblindheit" (Arch. f. Psychiatrie, 1889).

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versamente, no caso estudado por Charcot19 e tornado clás-sico de um eclipse completo das imagens visuais, nemtodo reconhecimento das percepções era abolido. Ficare-mos convencidos ao examinar de perto o relato dessecaso. O paciente não reconhecia mais, certamente, as ruasde sua cidade natal, tanto que não podia nem nomeá-lasnem se orientar nelas; sabia no entanto que eram ruas, eque via casas. Ele não reconhecia mais sua mulher e seusfilhos; podia afirmar no entanto, ao percebê-los, que erauma mulher, que eram crianças. Nada disso teria sidopossível se ele padecesse de cegueira psíquica no sentidoabsoluto da palavra. O que fora abolido era portanto umaespécie de reconhecimento, que teremos de analisar, masnão a faculdade geral de reconhecer. Concluamos quenem todo reconhecimento implica sempre a intervençãode uma imagem antiga, e que é possível também evocartais imagens sem conseguir identificar as percepçõescom elas. Portanto, o que é afinal o reconhecimento, e deque modo o definiremos?

Há inicialmente, no limite, um reconhecimento noinstantâneo, um reconhecimento de que apenas o corpo écapaz, sem que nenhuma lembrança explícita intervenha.Ele consiste numa ação, e não numa representação. Passeiopor uma cidade, por exemplo, pela primeira vez. A cadaesquina, hesito, não sabendo aonde vou. Estou na incer-teza, e entendo por isso que alternativas se colocam a meucorpo, que meu movimento é descontínuo em seu con-junto, que não há nada, numa das atitudes, que anuncie eprepare as atitudes subseqüentes. Mais tarde, após uma

19. Relatado por Bemard, "Un cas de suppression brusque et isoléede Ia vision mentale" {Progrès medicai, 21 de julho de 1883).

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longa permanência na cidade, irei circular por ela maqui-nalmente, sem ter a percepção distinta dos objetos diantedos quais eu passo. Ora, entre essas duas condições ex-tremas, uma em que a percepção não organizou ainda osmovimentos definidos que a acompanham, outra em queesses movimentos concomitantes estão organizados aponto de tornar minha percepção inútil, há uma condiçãointermediária, na qual o objeto é percebido, mas provocamovimentos ligados entre si, contínuos, e que se comuni-cam uns aos outros. Comecei por um estado em que sódistinguia minha percepção; acabo por um estado em quetalvez já não tenha consciência senão de meu automatis-mo: no intervalo teve lugar um estado misto, uma per-cepção sublinhada por um automatismo nascente. Ora, seas percepções ulteriores diferem da primeira percepçãono fato de conduzirem o corpo a uma reação maquinaiapropriada, se, por outro lado, as percepções renovadasaparecem ao espírito com esse aspecto sui generis quecaracteriza as percepções familiares ou reconhecidas, nãodevemos presumir que a consciência de um acompanha-mento motor bem regulado, de uma reação motora orga-nizada, é aqui o fundamento do sentimento de familiari-dade? Na base do reconhecimento haveria portanto, efeti-vamente, um fenômeno de ordem motora.

Reconhecer um objeto usual consiste sobretudo emsaber servir-se dele. Isso é tão verdadeiro que os primeirosobservadores deram o nome de apraxia a essa doença doreconhecimento que chamamos cegueira psíquica20. Massaber servir-se dele é já esboçar os movimentos que se

20. Kussmaul, Les troubles de Ia parole, Paris, 1884, p. 233; -Allen Starr, "Apraxia and Aphasia" {Medicai Record, 27 de outubro de

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adaptam a ele, é tomar uma certa atitude ou pelo menostender a isso em função daquilo que os alemães chama-ram "impulsos motores" (Bewegungsantriebe). O hábito deutilizar o objeto acabou portanto por organizar ao mesmotempo movimentos e percepções, e a consciência dessesmovimentos nascentes, que acompanhariam a percepçãoà maneira de um reflexo, estaria, aqui, também, na basedo reconhecimento.

Não há percepção que não se prolongue em movi-mento. Ribot21 e Maudsley22 chamaram a atenção paraesse ponto há bastante tempo. A educação dos sentidosconsiste precisamente no conjunto das conexões estabe-lecidas entre a impressão sensorial e o movimento que autiliza. À medida que a impressão se repete, a conexão seconsolida. O mecanismo da operação não tem aliás nadade misterioso. Nosso sistema nervoso é evidentementedisposto em vista da construção de aparelhos motores,ligados, por intermédio dos centros, a excitações sensí-veis, e a descontinuidade dos elementos nervosos, a mul-tiplicidade de suas ramificações terminais capazes certa-mente de se aproximarem de diversos modos, tornam ili-mitado o número de conexões possíveis entre as impres-sões e os movimentos correspondentes. Mas o mecanis-mo em vias de construção não poderia aparecer à cons-

1888). — Cf. Laquer, "Zur Localisation der sensorischen Aphasie" (Neu-rolog. Centralblatt, 15 de junho de 1888), e Dodds, "On Some CentralAffections of Vision" (Brain, 1885).

21. "Les mouvements et leur importance psychologique" (Revuephilosophique, 1879, t. VIII, pp. 371 ss.). - Cf. Psychologie de 1'atten-tion, Paris, 1889, p. 75 (Félix Alcan, ed.).

22. Physiologie de Vesprit, Paris, 1879, pp. 207 ss.

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ciência sob a mesma forma que o mecanismo construído.Algo distingue profundamente e manifesta claramente ossistemas de movimentos consolidados no organismo. Ésobretudo esta, acreditamos, a dificuldade de modificarsua ordem. Daí também a pré-formação dos movimentosque seguem nos movimentos que precedem, pré-formaçãoque faz com que a parte contenha virtualmente o todo, co-mo acontece quando cada nota de uma melodia aprendida,por exemplo, permaneça inclinada sobre a seguinte paravigiar sua execução23. Se, portanto, toda percepção usualtem seu acompanhamento motor organizado, o sentimentode reconhecimento usual tem sua raiz na consciência des-sa organização.

Eqüivale a dizer que exercemos em geral nosso re-conhecimento antes de pensá-lo. Nossa vida diária desen-rola-se em meio a objetos cuja mera presença nos convi-da a desempenhar um papel: nisso consiste seu aspectode familiaridade. As tendências motoras já seriam sufi-cientes, portanto, para nos dar o sentimento do reconhe-cimento. Mas, apressemo-nos a dizer, junta-se aí, na maio-ria das vezes, uma outra coisa.

Com efeito, enquanto aparelhos motores são monta-dos sob a influência das percepções cada vez mais bemanalisadas pelo corpo, nossa vida psicológica anterior con-tinua existindo: ela sobrevive - procuraremos demons-trá-lo - com toda a particularidade de seus acontecimen-

23. Num dos mais engenhosos capítulos de sua Psychologie (Paris,1893, t. I, p. 242), A. Fouillée diz que o sentimento de familiaridade éfeito, em grande parte, da diminuição do choque interior que constitui asurpresa.

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tos localizados no tempo. Constantemente inibida pelaconsciência prática e útil do momento presente, isto é,pelo equilíbrio sensório-motor de um sistema estendidoentre a percepção e a ação, essa memória aguarda sim-plesmente que uma fissura se manifeste entre a impressãoatual e o movimento concomitante para fazer passar aísuas imagens. Em geral, para remontar o curso de nossopassado e descobrir a imagem-lembrança conhecida, lo-calizada, pessoal, que se relacionaria ao presente, um es-forço é necessário, pelo qual nos liberamos da ação a quenossa percepção nos inclina: esta nos lançaria para ofuturo; é preciso que retrocedamos no passado. Neste sen-tido, o movimento tenderia a afastar a imagem. Todavia,por um certo lado, ele contribui para prepará-la. Pois,se o conjunto de nossas imagens passadas nos permane-ce presente, também é preciso que a representação análo-ga à percepção atual seja escolhida entre todas as repre-sentações possíveis. Os movimentos efetuados ou sim-plesmente nascentes preparam essa seleção, ou pelo me-nos delimitam o campo das imagens onde iremos colher.Devido à constituição de nosso sistema nervoso, somosseres nos quais impressões presentes se prolongam emmovimentos apropriados: se antigas imagens vêm domesmo modo prolongar-se nesses movimentos, elas apro-veitam a ocasião para se insinuarem na percepção atual efazerem-se adotar por ela. Com isso aparecem de fato ànossa consciência, quando deveriam de direito permane-cer cobertas pelo estado presente. Poderíamos portantodizer que os movimentos que provocam o reconhecimen-to automático impedem por um lado, e por outro favo-recem, o reconhecimento por imagens. Em princípio, o

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presente desloca o passado. Mas, justamente porque asupressão das antigas imagens resulta de sua inibição pelaatitude presente, aquelas cuja forma poderia se enquadrarnessa atitude encontrarão um obstáculo menor que asoutras; e, se, a partir de então, alguma delas for capaz desuperar o obstáculo, é a imagem semelhante à percepçãopresente que irá superá-lo.

Se nossa análise é exata, as doenças do reconheci-mento apresentarão duas formas profundamente diferen-tes e se constatarão duas espécies de cegueira psíquica.Com efeito, ora serão as imagens antigas que não pode-rão mais ser evocadas, ora será apenas o vínculo entre apercepção e os movimentos concomitantes que será rom-pido, a percepção provocando movimentos difusos comose fosse nova. Os fatos verificam essa hipótese?

Não pode haver contestação quanto ao primeiro ponto.A abolição aparente das lembranças visuais na cegueirapsíquica é um fato tão comum que pôde servir, duranteum tempo, para definir essa afecção. Teremos que nosperguntar até que ponto e em que sentido lembrançaspodem realmente desaparecer. O que nos interessa, demomento, é que se apresentam casos em que o reconheci-mento não ocorre mais, sem que a memória visual sejapraticamente abolida. Trata-se então, como pretendemos,de uma simples perturbação dos hábitos motores ou, pelomenos, de uma interrupção do vínculo que os une às per-cepções sensíveis? Como nenhum observador se colocouuma questão desse tipo, seríamos bastante cautelosos emresponder se não tivéssemos notado aqui e ali, em suasdescrições, certos fatos que nos parecem significativos.

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O primeiro deles é a perda do sentido de orientação.Todos os autores que trataram da cegueira psíquica ficaramimpressionados com essa particularidade. O doente de Lis-sauer havia perdido completamente a capacidade de seorientar em sua casa24. Fr. Müller insiste no fato de que,enquanto os cegos aprendem rapidamente a encontrarseu caminho, uma pessoa acometida de cegueira psíquicaé incapaz, mesmo após meses de exercício, de se orientarem seu próprio quarto25. Mas o que é a faculdade de seorientar senão a faculdade de coordenar os movimentosdo corpo às impressões visuais, e de prolongar maquinal-mente as percepções em reações úteis?

Há um segundo fato, mais característico ainda. Quere-mos nos referir ao modo como esses doentes desenham.Podem-se conceber duas maneiras de desenhar. A pri-meira consistiria em fixar sobre o papel um certo númerode pontos, por aproximação, e em ligá-los entre si verifi-cando a todo momento se a imagem se assemelha ao obje-to. É o que se chamaria desenhar "por pontos". Mas ómeio que utilizamos habitualmente é bem diferente. De-senhamos "com um traço contínuo" após ter olhado omodelo ou ter pensado nele. Como explicar semelhantefaculdade, senão pelo hábito de distinguir imediatamen-te a organização dos contornos mais usuais, ou seja, poruma tendência motora a figurar seu esquema com umúnico traço? Mas, se são precisamente os hábitos ou as

24. An. cit., Arch. f. Psychiatrie, 1889-90, p. 224. Cf. Wilbrand,op. cit., p. 140, e Bernhardt, "Eigenthumlicher Fali von Hirnerkrankung"{Berliner klinische Wochenschrift, 1877, p. 581).

25. Art. cit., Arch. f. Psychiatrie, t. XXIV, p. 898.

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correspondências desse tipo que se dissolvem em certasformas da cegueira psíquica, o doente poderá ainda, talvez,traçar elementos de linha que ajustará bem ou mal entreeles; ele não poderá mais desenhar com um traço contí-nuo, porque sua mão terá perdido o movimento dos con-tornos. Ora, é precisamente isto que a experiência verifi-ca. A observação de Lissauer é já instrutiva a esse respei-to26. Seu doente tinha a maior dificuldade para desenharobjetos simples, e, se quisesse desenhar de memória, tra-çava porções separadas, iniciadas aqui e ali, não conse-guindo ligar umas às outras. Mas os casos de cegueirapsíquica completa são raros. Muito mais numerosos sãoos de cegueira verbal, isto é, de uma perda do reconheci-mento visual limitada aos caracteres do alfabeto. Ora, éum fato de observação corrente a incapacidade do doen-te, em semelhante caso, de perceber o que poderia serchamado o movimento das letras quando tenta copiá-las.Ele começa seu desenho num ponto qualquer, verifican-do a todo momento se está de acordo com o modelo. Eisso é tanto mais notável que freqüentemente ele conser-vou intacta a capacidade de escrever sob ditado ou es-pontaneamente. O que é abolido aqui, portanto, é o há-bito de distinguir as articulações do objeto percebido, ouseja, de completar a percepção visual por uma tendênciamotora a desenhar seu esquema. Donde se pode concluir,como havíamos anunciado, que nisto reside efetivamentea condição primordial do reconhecimento.

Mas devemos passar agora do reconhecimento auto-mático, que se realiza sobretudo por movimentos, para

26. Art. cit.,Arch.f.Psychiatrie, 1889-90, p. 233.

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aquele que exige a intervenção regular das lembranças-imagens. O primeiro é um reconhecimento por distração:o segundo, como iremos ver, é o reconhecimento atento.

Também este começa por movimentos. Mas, enquan-to no reconhecimento automático nossos movimentosprolongam nossa percepção para obter efeitos úteis e nosafastam assim do objeto percebido, aqui, ao contrário, elesnos reconduzem ao objeto para sublinhar seus contornos.Daí o papel preponderante, e não mais acessório, que aslembranças-imagens adquirem. Suponhamos, com efei-to, que os movimentos renunciam a seu fim próprio, eque a atividade motora, em vez de continuar a percepçãoatravés de reações úteis, volta atrás para desenhar seustraços principais: então as imagens análogas à percepçãopresente, imagens cuja forma já terá sido lançada por es-ses movimentos, virão regularmente e não mais aciden-talmente fundir-se nesse molde, com a condição, é verda-de, de abandonarem muitos de seus detalhes para entra-rem aí mais facilmente.

III. Passagem gradual das lembranças aos movimen-tos. O reconhecimento e a atenção - Tocamos aqui o pontoessencial do debate. Nos casos em que o reconhecimen-to é atento, ou seja, em que as lembranças-imagens jun-tam-se regularmente à percepção presente, é a percepçãoque determina mecanicamente o aparecimento das lem-branças, ou são as lembranças que vão espontaneamenteao encontro da percepção?

Da resposta a essa questão depende a natureza dasrelações que se estabelecerão entre o cérebro e a memória.Em toda percepção, com efeito, há um estímulo transmi-

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tido pelos nervos aos centros perceptivos. Se a propaga-ção desse movimento a outros centros corticais tivesse porreal efeito fazer surgir aí imagens, poder-se-ia sustentar,a rigor, que a memória é apenas uma função do cérebro.Mas se estabelecêssemos que aqui, como em outros lu-gares, o movimento só pode produzir movimento, que opapel do estímulo perceptivo é simplesmente imprimirno corpo uma certa atitude na qual as lembranças vêminserir-se, então, todo o efeito dos estímulos materiais ten-do-se esgotado nesse trabalho de adaptação motora, seriapreciso buscar a lembrança em outra parte. Na primeirahipótese, os distúrbios da memória ocasionados por umalesão cerebral resultariam de que as lembranças ocupavama região lesada e foram destruídas com ela. Na segunda,ao contrário, tais lesões afetariam nossa ação nascente oupossível, mas apenas nossa ação. Ora elas impediriam ocorpo de tomar, ante um objeto, a atitude apropriada aochamamento da imagem; ora cortariam as ligações dessalembrança com a realidade presente, o que significa que,suprimindo a última fase da realização da lembrança, su-primindo a fase da ação, elas impediriam do mesmo modoa lembrança de se atualizar. Mas, nem num caso nem nooutro, uma lesão cerebral destruiria de fato as lembranças.

Esta segunda hipótese será a nossa. Antes porém debuscar sua verificação, digamos brevemente de que modonos representamos as relações gerais da percepção, da aten-ção e da memória. Para mostrar como uma lembrança po-deria, de grau em grau, vir a inserir-se numa atitude ounum movimento, teremos que antecipar um pouco as con-clusões de nosso próximo capítulo.

Em que consiste a atenção? De um lado, a atençãotem por efeito essencial tornar a percepção mais intensa

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e destacar seus detalhes: considerada em sua causa, elase reduziria portanto a uma certa intensificação do esta-do intelectual27. Mas, de outro lado, a consciência constatauma irredutível diferença de forma entre esse aumentode intensidade e aquele que se deve a uma influência maiorda excitação exterior: ele parece, com efeito, vir de dentro,e testemunhar uma certa atitude adotada pela inteligên-cia. Mas aqui começa precisamente a obscuridade, pois aidéia de uma atitude intelectual não é uma idéia clara.Falar-se-á de uma "concentração do espírito"28, ou aindade um esforço "aperceptivo"29 para colocar a percepçãosob o olhar da inteligência distinta. Alguns, materializan-do essa idéia, irão supor uma tensão particular da energiacerebral30, ou mesmo um dispêndio central de energiavindo acrescentar-se à excitação recebida31. Mas, ou seacaba apenas traduzindo o fato psicologicamente consta-tado numa linguagem fisiológica que nos parece aindamenos clara, ou é sempre a uma metáfora que se retorna.

De grau em grau, seremos levados a definir a aten-ção por uma adaptação geral mais do corpo que do espí-rito, e a ver nessa atitude da consciência, acima de tudo,

27. Marillier, "Remarques sur le mécanisme de 1'attention" (Revuephilosophique, 1889, t. XXVII). Cf. Ward, art. "Psychology" da En-cyclop. Britannica, e Bradley, "Is There a Special Activity of Attention?"(Mm/, 1886, t. XI, p. 305).

28. Hamilton, Lectures on Metaphysics, t. I, p. 247.29. Wundt, Psychologie physiologique, t. II, pp. 231 ss. (F. Alcan, ed.).30. Maudsley, Physiologie de Vesprit, pp. 300 ss. - Cf. Bastian, "Les

processus nerveux dans l'attention" (Revuephilosophique, t. XXXIII, pp.360 ss.).

31. W. James, Principies of Psychology, vol. I, p. 441.

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a consciência de uma atitude. Tal é a posição tomada porTh. Ribot no debate32, e, embora atacada33, ela parece terconservado toda a sua força, com a condição todavia,acreditamos, de que não se veja nos movimentos descri-tos por Th. Ribot senão a condição negativa do fenômeno.Supondo-se, com efeito, que os movimentos concomi-tantes da atenção voluntária fossem sobretudo movimentosde detenção, faltaria explicar o trabalho do espírito quecorresponde a ela, ou seja, a misteriosa operação pelaqual o mesmo órgão, percebendo no mesmo ambiente omesmo objeto, descobre aí um número crescente de coisas.Mas pode-se ir mais longe, e sustentar que os fenômenosde inibição não são mais que uma preparação aos movi-mentos efetivos da atenção voluntária. Suponhamos comefeito, como já chegamos a sugerir, que a atenção impli-ca uma volta para trás do espírito que renuncia a perse-guir o resultado útil da percepção presente: haverá inicial-mente uma inibição de movimento, uma ação de deten-ção. Mas nessa atitude geral virão em seguida introduzir-semovimentos mais sutis, alguns dos quais foram observadose descritos34, e que têm por função tornar a passar sobreos contornos do objeto percebido. Com esses movimen-tos começa o trabalho positivo, e não mais simplesmentenegativo, da atenção. Ele é continuado pelas lembranças.

Se a percepção exterior, com efeito, provoca de nos-sa parte movimentos que a desenham em linhas gerais,

32. Psychologie de Vattention, Paris, 1889 (F. Alcan, ed).33. Marillier, art. cit. Cf. J. Sully, "The Psycho-Physical Process in

Attention" (Brain, 1890, p. 154).34. N. Lange, "Beitr. zur Theorie der sinnlichen Aufmerksamkeit"

(Philos. Studien de Wundt, t. VII, pp. 390-422).

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nossa memória dirige à percepção recebida as antigasimagens que se assemelham a ela e cujo esboço já foi tra-çado por nossos movimentos. Ela cria assim pela segundavez a percepção presente, ou melhor, duplica essa percep-ção ao lhe devolver, seja sua própria imagem, seja umaimagem-lembrança do mesmo tipo. Se a imagem retidaou rememorada não chega a cobrir todos os detalhes daimagem percebida, um apelo é lançado às regiões maisprofundas e afastadas da memória, até que outros detalhesconhecidos venham a se projetar sobre aqueles que seignoram. E a operação pode prosseguir indefinidamente,a memória fortalecendo e enriquecendo a percepção, aqual, por sua vez, atrai para si um número crescente delembranças complementares. Não pensamos portanto emnenhum espírito que disporia de não se sabe qual quanti-dade de luz, ora difundindo-a ao redor, ora concentran-do-a num ponto único. Imagem por imagem, preferiría-mos comparar o trabalho elementar da atenção ao dotelegrafista que, ao receber um telegrama importante,torna a expedi-lo palavra por palavra ao lugar de origempara verificar sua exatidão.

Mas, para reenviar um telegrama, é preciso saber ma-nipular o aparelho. Assim também, para refletir sobre umapercepção a imagem que recebemos dela, é preciso quepossamos reproduzi-la, isto é, reconstruí-la por um esforçode síntese. Já se disse que a atenção é uma faculdade deanálise, o que é verdade; mas não se explicou suficiente-mente como uma análise desse tipo é possível, nem porqual processo chegamos a descobrir numa percepção oque nela não se manifestava de início. A verdade é que es-sa análise se faz por uma série de tentativas de síntese, ou,

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o que vem a ser o mesmo, por uma série de hipóteses:nossa memória escolhe sucessivamente diversas imagensanálogas que lança na direção da percepção nova. Mas essaescolha não se opera ao acaso. O que sugere as hipóteses,o que preside de longe à seleção, são os movimentos deimitação pelos quais a percepção prolonga-se, e que ser-virão de quadro comum à percepção e às imagens reme-moradas.

Mas, então, será preciso representar-se o mecanismoda percepção distinta de maneira diferente da usual. Apercepção não consiste apenas em impressões recolhidasou mesmo elaboradas pelo espírito. Quando muito, issoocorre com as percepções que se dissipam tão logo rece-bidas, aquelas que espalhamos em ações úteis. Mas todapercepção atenta supõe de fato, no sentido etimológicoda palavra, uma reflexão, ou seja, a projeção exterior deuma imagem ativamente criada, idêntica ou semelhanteao objeto, e que vem moldar-se em seus contornos. Se,após ter fixado um objeto, desviamos bruscamente nossoolhar, obtemos dele uma imagem consecutiva: não deve-mos supor que essa imagem já se produzia quando oolhávamos? A descoberta recente de fibras perceptivascentrífugas nos inclinaria a pensar que as coisas se pas-sam regularmente assim, e que, ao lado do processo afe-rente que traz a impressão ao centro, há um outro, inverso,que leva de volta a imagem à periferia. É verdade que setrata aqui de imagens fotografadas sobre o próprio objeto,e de lembranças imediatamente consecutivas à percepção,da qual elas não são mais que o eco. Mas, por trás dessasimagens idênticas ao objeto existem outras, armazenadasna memória, que têm apenas semelhança com ele, outras

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enfim que têm apenas um parentesco mais ou menos re-moto. Todas elas se dirigem ao encontro da percepção e,alimentadas por esta, adquirem suficiente força e vida parase exteriorizarem com ela. As experiências de Münster-berg35, de Külpe36, não deixam a menor dúvida quanto aesse ponto: toda imagem-lembrança capaz de interpretarnossa percepção atual insinua-se nela, a ponto de não po-dermos mais discernir o que é percepção e o que é lem-brança. Mas nada mais interessante, sob esse aspecto,que as engenhosas experiências de Goldscheider e Müllersobre o mecanismo da leitura37. Contra Grashey, quehavia sustentado num estudo célebre38 que lemos as pala-vras letra por letra, esses pesquisadores estabeleceramque a leitura corrente é um verdadeiro trabalho de adivi-nhação, nosso espírito colhendo aqui e ali alguns traçoscaracterísticos e preenchendo todo intervalo com lem-branças-imagens que, projetadas sobre o papel, substi-tuem-se aos caracteres realmente impressos e nos dãosua ilusão. Assim, criamos ou reconstruímos a todo ins-tante. Nossa percepção distinta é verdadeiramente com-parável a um círculo fechado, onde a imagem-percepçãodirigida ao espírito e a imagem-lembrança lançada noespaço correriam uma atrás da outra.

35. Beitr. zur experimentellen Psychologie, Heft 4, pp. 15 ss.36. Gnmdriss der Psychologie, Leipzig, 1893, p. 185.37. "Zur Physiologie und Pathologie des Lesens" {Zeitschr.f. klinis-

che Medicin, 1893). Cf. McKeen Cattell, "Über die Zeit der Erkennungvon Scriftzeichen" {Philos. Studien, 1885-86).

38. "Über Aphasie und ihre Beziehungen zur Wahrnehmung" (Arch.f. Psychiatrie, 1885, t. XVI).

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Insistamos nesse último ponto. Costuma-se represen-tar a percepção atenta como uma série de processos queavançariam ao longo de um trajeto único, o objeto exci-tando sensações, as sensações fazendo surgir idéias diantedelas, cada idéia estimulando sucessivamente pontos maisrecuados da massa intelectual. Haveria aí, portanto, umamarcha em linha reta, pela qual o espírito se distanciariacada vez mais do objeto para não mais voltar a ele. Pen-samos, ao contrário, que a percepção refletida seja umcircuito, onde todos os elementos, inclusive o próprioobjeto percebido, mantêm-se em estado de tensão mútuacomo num circuito elétrico, de sorte que nenhum estímu-lo partido do objeto é capaz de deter sua marcha nas pro-

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fundezas do espírito: deve sempre retornar ao próprioobjeto. Que não se veja aqui uma simples questão de pa-lavras. Trata-se de duas concepções radicalmente diferen-tes do trabalho intelectual. De acordo com a primeira, ascoisas se passam mecanicamente e através de uma sérieinteiramente acidental de adições sucessivas. A cada mo-mento de uma percepção atenta, por exemplo, elementosnovos, emanando de uma região mais profunda do espírito,poderiam juntar-se aos elementos antigos sem criar umaperturbação geral, sem exigir uma transformação do sis-tema. Na segunda, ao contrário, um ato de atenção implicauma tal solidariedade entre o espírito e seu objeto, é umcircuito tão bem fechado, que não se poderia passar a esta-dos de concentração superior sem criar circuitos comple-tamente novos envolvendo o primeiro, e que teriam emcomum apenas o objeto percebido. Desses diferentes cír-culos da memória, que estudaremos em detalhe mais adian-te, o mais restrito, A, é o mais próximo à percepção ime-diata. Contém apenas o próprio objeto O e a imagem con-secutiva que volta para cobri-lo. Atrás dele os círculos B,C e D, cada vez maiores, correspondem a esforços cres-centes de expansão intelectual. É a totalidade da memó-ria, conforme veremos, que entra em cada um desses cir-cuitos, já que a memória está sempre presente; mas essamemória, que sua elasticidade permite dilatar indefinida-mente, reflete sobre o objeto um número crescente decoisas sugeridas - ora os detalhes do próprio objeto, oradetalhes concomitantes capazes de ajudar a esclarecê-lo.Assim, após ter reconstituído o objeto percebido, à ma-neira de um todo independente, reconstituímos com ele ascondições cada vez mais longínquas com as quais forma

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um sistema. Chamamos B', C" e D' essas causas de pro-fundidade crescente, situadas atrás do objeto, e virtual-mente dadas com o próprio objeto. Vemos que o progres-so da atenção tem por efeito criar de novo, não apenas oobjeto percebido, mas os sistemas cada vez mais vastosaos quais ele pode se associar; de sorte que, à medida queos círculos B,C QD representam uma expansão mais altada memória, sua reflexão atinge em B',C e D' camadasmais profundas da realidade.

A mesma vida psicológica seria portanto repetida umnúmero indefinido de vezes, nos estágios sucessivos damemória, e o mesmo ato do espírito poderia ser desempe-nhado em muitas alturas diferentes. No esforço de aten-ção, o espírito se dá sempre por inteiro, mas se simplificaou se complica conforme o nível que escolhe para reali-zar suas evoluções. Em geral é a percepção presente quedetermina a orientação de nosso espírito; mas, conformeo grau de tensão que o nosso espírito adota, conforme aaltura onde se coloca, essa percepção desenvolve em nósum número maior ou menor de lembranças-imagens.

Em outras palavras, enfim, as. lembranças pessoais,exatamente localizadas, e cuja série desenharia o cursode nossa existência passada, constituem, reunidas, o últi-mo e maior invólucro de nossa memória. Essencialmentefugazes, elas só se materializam por acaso, seja porqueuma determinação acidentalmente precisa de nossa ati-tude corporal as atraia, seja porque a indeterminaçãomesma dessa atitude deixe o campo livre ao capricho desua manifestação. Mas esse invólucro extremo se com-prime e se repete em círculos interiores e concêntricos,os quais, mais restritos, contêm as mesmas lembranças

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diminuídas, cada vez mais afastadas de sua forma pessoale original, cada vez mais capazes, em sua banalidade, dese aplicar à percepção presente e de determiná-la à manei-ra de uma espécie englobando o indivíduo. Chega ummomento em que a lembrança assim reduzida se encai-xa tão bem na percepção presente que não se saberiadizer onde a percepção acaba, onde a lembrança come-ça. Nesse momento preciso, a memória, em vez de fazeraparecer e desaparecer caprichosamente suas representa-ções, se pauta pelo detalhe dos movimentos corporais.

Mas, à medida que essas lembranças se aproximammais do movimento e por isso da percepção exterior, aoperação da memória adquire uma importância práticamaior. As imagens passadas, reproduzidas tais e quais comtodos os seus detalhes, e inclusive com sua coloraçãoafetiva, são as imagens do devaneio ou do sonho; o quechamamos agir é precisamente fazer com que essa me-mória se contraia ou, antes, se aguce cada vez mais, atéapresentar apenas o fio de sua lâmina à experiência ondeirá penetrar. No fundo, é por não haver distinguido aquio elemento motor da memória que ora se desconheceu,ora se exagerou o que há de automático na evocação daslembranças. Em nossa opinião, um apelo é lançado à nos-sa atividade no momento preciso em que nossa percep-ção é decomposta automaticamente em movimentos deimitação: um esboço então nos é fornecido, do qual recria-mos o detalhe e a cor projetando nele lembranças maisou menos longínquas. Mas não é assim que se costumaver as coisas. Ora confere-se ao espírito uma autonomiaabsoluta; atribui-se-lhe o poder de operar sobre os obje-tos presentes ou ausentes a seu bel-prazer; e deste modo

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não se compreendem mais os distúrbios profundos da aten-ção e da memória capazes de acompanhar a menor per-turbação do equilíbrio sensório-motor. Ora se fazem dosprocessos imaginativos, ao contrário, efeitos mecânicosda percepção presente; pretende-se que, por um progres-so necessário e uniforme, o objeto faça surgir sensações,e as sensações idéias que se prendem a elas: então, comonão há razão para que o fenômeno, inicialmente mecânico,mude de natureza no caminho, chega-se à hipótese de umcérebro onde poderiam se depositar, adormecer e desper-tar estados intelectuais. Num caso como no outro, se des-conhece a função verdadeira do corpo, e, como não seviu em que a intervenção de um mecanismo é necessária,não se sabe mais, depois que se recorreu a ele, onde é pre-ciso detê-lo.

Mas é hora de deixar essas generalidades. Devemosexaminar se nossa hipótese é confirmada ou anulada pelosfatos conhecidos de localização cerebral. Os distúrbiosda memória imaginativa que correspondem a lesões lo-calizadas do córtex são sempre doenças do reconheci-mento, seja do reconhecimento visual ou auditivo emgeral (cegueira e surdez psíquicas), seja do reconheci-mento das palavras (cegueira verbal, surdez verbal, etc).Estes são portanto os distúrbios que devemos examinar.

Mas, se nossa hipótese é correta, tais lesões do reco-nhecimento não virão de modo algum de que as lembran-ças ocupavam a região lesada. Deverão resultar de duascausas: às vezes do fato de nosso corpo não ser maiscapaz, em presença da excitação vinda de fora, de tomarautomaticamente a atitude precisa por intermédio da qualse operaria uma seleção entre nossas lembranças, outras

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vezes do fato de as lembranças não encontrarem mais nocorpo um ponto de aplicação, um meio de se prolongar emação. No primeiro caso, a lesão terá a ver com os meca-nismos que prolongam o estímulo recolhido em movi-mento automaticamente executado: a atenção não poderámais ser fixada pelo objeto. No segundo, a lesão envol-verá os centros particulares do córtex que preparam osmovimentos voluntários fornecendo-lhes o antecedentesensorial necessário, e que são chamados, corretamenteou não, centros imaginativos: a atenção já não poderá serfixada pelo sujeito. Mas, em ambos os casos, são movi-mentos atuais que serão lesados ou movimentos por virque deixarão de ser preparados: não terá havido destruiçãode lembranças.

Ora, a patologia confirma essa previsão. Ela nos re-vela a existência de duas espécies absolutamente distintasde cegueira e surdez psíquicas, de cegueira e surdez ver-bais. Na primeira, as lembranças visuais ou auditivas sãoainda evocadas, mas não podem mais se aplicar às per-cepções correspondentes. Na segunda, a própria evocaçãodas lembranças é impedida. Refere-se efetivamente a lesão,como dizíamos, aos mecanismos sensório-motores da aten-ção automática no primeiro caso, aos mecanismos imagi-nativos da atenção voluntária no segundo? Para verificarnossa hipótese, devemos nos limitar a um exemplo preciso.Na verdade, poderíamos mostrar que o reconhecimentovisual das coisas em geral, das palavras em particular,implica um processo motor semi-automático de início, de-pois uma projeção ativa de lembranças que se inseremnas atitudes correspondentes. Mas preferimos nos ater àsimpressões do ouvido, e mais particularmente à audição

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da linguagem articulada, porque este exemplo é o maiscompreensível de todos. Ouvir a palavra falada, com efei-to, é primeiramente reconhecer seu som, em seguida iden-tificar seu sentido, e finalmente buscar, mais ou menoslonge, sua interpretação: em suma, é passar por todos osgraus da atenção e exercer várias capacidades sucessivasda memória. Além disso, não há distúrbios mais freqüen-tes nem melhor estudados que os da memória auditiva daspalavras. Enfim, a abolição das imagens verbais acústi-cas sempre é acompanhada da lesão grave de certas circun-voluções determinadas do córtex: um exemplo indiscutí-vel de localização nos será então fornecido, sobre o qualpoderemos nos perguntar se o cérebro é realmente capazde armazenar lembranças. Devemos portanto mostrar noreconhecimento auditivo das palavras: 1) um processoautomático sensório-motor; 2) uma projeção ativa e, porassim dizer, excêntrica de lembranças-imagens.

1) Ouço duas pessoas conversando numa língua des-conhecida. Isto é suficiente para que eu as escute? Asvibrações que chegam a mim são as mesmas que atingemseus ouvidos. No entanto não percebo mais do que um ruí-do confuso em que todos os sons se assemelham. Nãodistingo nada e não poderia repetir nada. Nessa mesmamassa sonora, ao contrário, os dois interlocutores reco-nhecem consoantes, vogais e sílabas que se assemelhampouco, enfim, palavras distintas. Entre eles e mim, ondeestá a diferença?

A questão é saber de que modo o conhecimento deuma língua, que não passa de lembrança, pode modificara materialidade de uma percepção presente, e fazer comque uns ouçam o que outros, nas mesmas condições físi-

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cas, não ouvem. Supõe-se, é verdade, que as lembrançasauditivas das palavras, acumuladas na memória, respon-dem aqui ao apelo das impressões sonoras e vêm reforçarseu efeito. Mas, se a conversação que escuto não é paramim mais que um ruído, tanto faz que o som seja refor-çado. O ruído, sendo mais forte, nem por isso será maisclaro. Para que a lembrança da palavra se deixe evocar pelapalavra escutada, é preciso ao menos que o ouvido ouçaa palavra. De que maneira os sons percebidos irão falar àmemória, de que maneira irão escolher, no armazém dasimagens auditivas, aquelas que devem colocar-se sobreeles, se já não tiverem sido separados, distinguidos, per-cebidos, enfim, como sílabas e como palavras?

Essa dificuldade não parece ter preocupado suficien-temente os teóricos da afasia sensorial. Na surdez verbal,com efeito, o doente se encontra, com relação à sua pró-pria língua, na mesma situação em que nós próprios nosencontramos quando ouvimos falar uma língua desconhe-cida. Geralmente ele conservou intacto o sentido da au-dição, mas não compreende nada das palavras que ouvepronunciar, e freqüentemente inclusive nem chega a dis-tingui-las. Acredita-se ser suficiente para explicar esseestado dizer que as lembranças auditivas das palavras sãodestruídas no córtex, ou que uma lesão, ora transcortical,ora subcortical, impede a lembrança auditiva de evocar aidéia, ou a percepção de unir-se à lembrança. Mas, parao último caso pelo menos, a questão psicológica perma-nece intacta: qual é o processo consciente que a lesão abo-liu, e por intermédio de que se opera em geral o discerni-mento das palavras e das sílabas, dadas inicialmente aoouvido como uma continuidade sonora?

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A dificuldade seria insuperável se tivéssemos real-mente que nos ocupar apenas com impressões auditivas,de um lado, com lembranças auditivas, de outro. O mes-mo não aconteceria se as impressões auditivas organizas-sem movimentos nascentes, capazes de escandir a fraseouvida e de marcar suas principais articulações. Essesmovimentos automáticos de acompanhamento interior, ini-cialmente confusos e mal coordenados, superariam cadavez melhor as dificuldades ao se repetirem; acabariampor desenhar uma figura simplificada, na qual a pessoaque escuta reconheceria, em suas linhas gerais e direçõesprincipais, os próprios movimentos da pessoa que fala.Assim se desenvolveria em nossa consciência, sob a formade sensações musculares nascentes, o que chamaremosde esquema motor da palavra escutada. Adaptar o ouvidoaos elementos de uma língua nova não consistiria entãonem em modificar o som bruto, nem em acrescentar-lheuma lembrança; seria coordenar as tendências motorasdos músculos da voz às impressões do ouvido, seria aper-feiçoar o acompanhamento motor.

Para aprender um exercício físico, começamos porimitar o movimento em seu conjunto, tal como nossosolhos o vêem de fora, tal como acreditamos vê-lo exe-cutar-se. Nossa percepção dele foi confusa: confuso seráo movimento que procura repeti-lo. Mas, enquanto nossapercepção visual era a de um todo contínuo, o movimentopelo qual buscamos reconstituir sua imagem é compostode uma infinidade de contrações e tensões musculares; ea consciência que temos dele compreende, ela própria, sen-sações múltiplas, provenientes do jogo variado das arti-culações. O movimento confuso que imita a imagem já

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contém portanto sua decomposição virtual; ele traz emsi, por assim dizer, o meio de se analisar. O progresso queresultará da repetição e do exercício consistirá simples-mente em desembaraçar o que estava inicialmente enre-dado, em dar a cada um dos movimentos elementaresessa autonomia que garante a precisão, embora conser-vando-lhe a solidariedade com os outros, sem a qual setornaria inútil. É correto afirmar que o hábito se adquirepela repetição do esforço; mas para que serviria o esfor-ço repetido, se ele reproduzisse sempre a mesma coisa?A repetição tem por verdadeiro efeito decompor em pri-meiro lugar, recompor em seguida, e deste modo falar àinteligência do corpo. Ela desenvolve, a cada nova tenta-tiva, movimentos enredados; a cada vez chama a atençãodo corpo para um novo detalhe que havia passado des-percebido, faz com que ele separe e classifique; acentua-lhe o essencial; reconhece uma a uma, no movimento to-tal, as linhas que fixam sua estrutura interior. Neste sen-tido, um movimento é aprendido tão logo o corpo o com-preendeu.

É assim que um acompanhamento motor da palavraescutada romperia a continuidade dessa massa sonora.Resta saber em que consiste esse acompanhamento. Seriaa fala mesma, reproduzida interiormente? Mas então acriança saberia repetir todas as palavras que seu ouvidodistingue; e a nós mesmos bastaria compreender uma lín-gua estrangeira para pronunciá-la com o acento correto.As coisas estão longe de ser assim tão simples. Possoperceber uma melodia, acompanhar seu desenho, fixá-lainclusive em minha memória, e não saber cantá-la. Dis-tingo sem dificuldade particularidades de inflexão e de

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entonação num inglês falando alemão - corrijo-o portantointeriormente; - isso não quer dizer que eu daria a infle-xão e a entonação corretas à frase alemã se eu falasse. Osfatos clínicos, aliás, confirmam aqui a observação diária.Pode-se ainda acompanhar e compreender a fala quandose ficou incapacitado de falar. A afasia motora não im-plica a surdez verbal.

Isto porque o esquema, por meio do qual escandimosa palavra escutada, marca apenas seus contornos principais.Esse esquema está para a fala assim como o croqui parao quadro acabado. Uma coisa, com efeito, é compreen-der um movimento difícil, outra é poder executá-lo. Paracompreendê-lo, basta perceber o essencial, o suficientepara distingui-lo dos outros movimentos possíveis. Mas pa-ra saber executá-lo é preciso também que o corpo tenhacompreendido. Ora, a lógica do corpo não admite os suben-tendidos. Ela exige que todas as partes constitutivas domovimento pedido sejam mostradas uma a uma, e depoisrecompostas juntamente. Uma análise completa torna-se aquinecessária, sem negligenciar nenhum detalhe, acompa-nhada de uma síntese atual em que não se abrevia nada.O esquema imaginativo, composto de algumas sensaçõesmusculares nascentes, era apenas um esboço. As sensa-ções musculares real e completamente experimentadasdão-lhe o colorido e a vida.

Resta saber de que modo um acompanhamento des-se tipo poderia se produzir, e se ele se produz sempre emrealidade. Sabe-se que a pronúncia efetiva de uma pala-vra exige a intervenção simultânea da língua e dos lábiospara a articulação, da laringe para a fonação, e finalmentedos músculos torácicos para a produção da corrente de ar

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expiatória. A cada sílaba pronunciada corresponde por-tanto a entrada em jogo de um conjunto de mecanismos,inteiramente comandados nos centros medulares e bulba-res. Esses mecanismos estão ligados aos centros superio-res do córtex pelos prolongamentos cilindro-axiais (axô-nios) das células piramidais da zona psicomotora; é aolongo dessas vias que segue o impulso da vontade. Assim,conforme queiramos articular um som ou outro, transmi-timos a ordem de agir a este ou aquele mecanismo motor.Mas, se os mecanismos inteiramente comandados que res-pondem aos diversos movimentos possíveis de articula-ção e de fonação estão em relação com as causas, quais-quer que sejam, que os acionam na fala voluntária, há fa-tos que colocam fora de dúvida a comunicação dessesmesmos mecanismos com a percepção auditiva das pala-vras. Entre as numerosas variedades de afasia descritaspelos clínicos, sabe-se de pelo menos duas delas (4a e 6fformas de Lichtheim) que parecem indicar uma relaçãodesse tipo. Assim, num caso observado pelo próprio Licht-heim, o paciente, após uma queda, havia perdido a me-mória da articulação das palavras e, em conseqüência, acapacidade de falar espontaneamente; ele repetia no en-tanto com a maior correção o que diziam39. Por outro la-do, em casos em que a fala espontânea está intacta, mas nosquais a surdez verbal é absoluta, o doente não compreen-dendo mais nada do que lhe é dito, a faculdade de repetira fala de outrem pode ainda ser inteiramente conserva-da40. Dir-se-á, com Bastian, que tais fenômenos testemu-nham simplesmente uma preguiça da memória articula-

39. Lichtheim, "On Aphasia" (Brain, janeiro de 1885, p. 447).40. Md, p. 454.

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tória ou auditiva das palavras, as impressões acústicaslimitando-se a despertar essa memória de seu torpor?41

Essa hipótese, da qual aliás voltaremos a falar, não nosparece dar conta dos fenômenos bastante curiosos deecolalia assinalados há tempos por Romberg42, Voisin43,Winslow44, e que Kussmaul qualificou, sem dúvida comcerto exagero, de reflexos acústicos45. Aqui o paciente re-pete maquinalmente, e talvez inconscientemente, as pala-vras ouvidas, como se as sensações auditivas se conver-tessem espontaneamente em movimentos articulatórios.Partindo daí, alguns supuseram um mecanismo especialque ligaria um centro acústico das palavras a um centroarticulatório de fala46. A verdade parece situar-se no meiodessas duas hipóteses: há, nesses diversos fenômenos, maisdo que ações absolutamente mecânicas, porém menos doque um apelo à memória voluntária; eles testemunhamuma tendência das impressões verbais auditivas a se pro-longarem em movimentos de articulação, tendência queseguramente não escapa ao controle habitual de nossa von-tade, que talvez implique inclusive um discernimento ru-

41. Bastian, "On Different Kinds of Aphasia" (British MedicaiJournal, out. e nov. de 1887, p. 935).

42. Romberg, Lehrbuch der Nervenkrankheiten, 1853, t. II.43. Citado por Bateman, On Aphasia, Londres, 1890, p. 79. - Cf.

Marcé, "Mémoire sur quelques observations de physiologie pathologi-que" (Mém. de Ia Soe. de Biologie, 2? série, t. III, p. 102).

44. Winslow, On Obscure Diseases of the Brain, Londres, 1861,p. 505.

45. Kussmaul, Les troubles de laparole, Paris, 1884, pp. 69 ss.46. Arnaud, "Contribution à 1'étude clinique de Ia surdité verbale"

(Arch. de Neurologie, 1886, p. 192). - Spamer, "Über Asymbolie" (Arch.f. Psychiatrie, t. VI, pp. 507 e 524).

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dimentar, e que se traduz, no estado normal, por uma repe-tição interior daquilo que sobressai na fala ouvida. Ora,nosso esquema motor não se comporta de outra forma.

Aprofundando essa hipótese, encontraríamos talveza explicação psicológica que pedíamos há pouco de cer-tas formas de surdez verbal. Sabe-se de alguns casos desurdez verbal com sobrevivência integral das lembrançasacústicas. O doente conservou intactos tanto a lembrançaauditiva das palavras como o sentido da audição; não re-conhece porém nenhuma das palavras que ouve pronun-ciar47. Supõe-se aqui uma lesão subcortical que impediriaas impressões acústicas de encontrar as imagens verbaisauditivas nos centros do córtex onde elas estariam depo-sitadas. Mas, em primeiro lugar, a questão é precisamentesaber se o cérebro é capaz de armazenar imagens; e, de-pois, a própria constatação de uma lesão nas vias condu-toras da percepção não nos dispensaria de buscar a inter-pretação psicológica do fenômeno. Por hipótese, as lem-branças auditivas podem, efetivamente, ser chamadas devolta à consciência; por hipótese também, as impressõesauditivas chegam à consciência: deve haver portanto, naprópria consciência, uma lacuna, uma solução de conti-nuidade, alguma coisa enfim que se oponha à junção dapercepção e da lembrança. Ora, o fato se esclarecerá senotarmos que a percepção auditiva bruta é efetivamente ade uma continuidade sonora, e que as conexões sensório-motoras estabelecidas pelo hábito devem ter por função,

47. Ver em particular: P. Sérieux, "Sur un cas de surdité verbalepurê" (Revue de médecine, 1893, pp. 733 ss.); Lichtheim, art. cit., p. 461; eAmaud, "Contrib. à 1'étude de Ia surdité verbale" (2? artigo) (Arch. deneurologie, 1886, p. 366).

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objeto é um interlocutor cujas idéias se manifestam emsua consciência como representações auditivas, para sematerializarem em seguida como palavras pronunciadas.Será preciso portanto, se é verdade o que dizemos, que oouvinte se coloque de saída entre idéias correspondentes,e as desenvolva como representações auditivas que irãorecobrir os sons brutos percebidos, encaixando-se elas mes-mas no esquema motor. Acompanhar um cálculo é refa-zê-lo por conta própria. Compreender a fala de outremconsistiria do mesmo modo em reconstituir inteligente-mente, isto é, partindo das idéias, a continuidade dos sonsque o ouvido percebe. E, de uma maneira mais geral,prestar atenção, reconhecer com inteligência, interpretar,constituiriam uma única e mesma operação pela qual oespírito, tendo fixado seu nível, tendo escolhido em simesmo, com relação às percepções brutas, o ponto simé-trico de sua causa mais ou menos próxima, deixaria escoarpara essas percepções as lembranças que as irão recobrir.

Apressemo-nos em dizer que não é deste modo quese consideram geralmente as coisas. Nossos hábitos asso-ciacionistas estão aí, fazendo com que nos representemossons que evocariam por contigüidade lembranças auditi-vas, e as lembranças auditivas, idéias. Depois, há as lesõescerebrais, que parecem ocasionar o desaparecimento daslembranças: mais particularmente, no caso que nos ocupa,poder-se-ão invocar as lesões características da surdezverbal cortical. Assim, a observação psicológica e os fatosclínicos parecem estar de acordo. Haveria, em forma demodificações físico-químicas das células, por exemplo,representações auditivas adormecidas no córtex: um estí-mulo vindo de fora as desperta, e por um processo intrace-

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rebral, talvez por movimentos transcorticais que vão buscaras representações complementares, elas evocam idéias.

Que se reflita porém nas estranhas conseqüências deuma hipótese desse tipo. A imagem auditiva de uma pala-vra não é um objeto com contornos definidamente estabe-lecidos, pois a mesma palavra, pronunciada por vozes dife-rentes ou pela mesma voz em diferentes alturas, produzsons diferentes. Portanto haverá tantas lembranças auditi-vas de uma palavra quantas houver de alturas de som e tim-bres de voz. Todas essas imagens irão se amontoar no cére-bro? Ou, se o cérebro escolher, qual delas irá preferir?Admitamos no entanto que ele tenha suas razões para esco-lher uma delas: de que modo essa mesma palavra, pronun-ciada por uma outra pessoa, irá juntar-se a uma lembrançada qual ela difere? Assinalemos, com efeito, que essa lem-brança é, por hipótese, algo inerte e passivo, incapaz por-tanto de captar, sob diferenças exteriores, uma similitudeinterna. Fala-se da imagem auditiva da palavra como sefosse uma entidade ou um tipo: esse tipo existe, sem dúvi-da nenhuma, para uma memória ativa que esquematize asemelhança dos sons complexos; mas, para um cérebro quenão registra nem pode registrar senão a materialidade dossons percebidos, haverá da mesma palavra milhares e mi-lhares de imagens distintas. Pronunciada por uma nova voz,essa palavra irá formar uma imagem nova que se acrescen-tará pura e simplesmente às outras.

Mas eis algo não menos embaraçoso. Uma palavrasó tem individualidade, para nós, a partir do momento emque somos ensinados a abstraí-la. Não são palavras queaprendemos a pronunciar em primeiro lugar, mas frases.Uma palavra anastomosa-se sempre com as que a acom-

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panham, e, conforme o andamento e o movimento da frasede que ela faz parte integrante, assume aspectos diferen-tes: do mesmo modo, cada nota de um tema melódicoreflete vagamente o tema inteiro. Admitamos portantoque haja lembranças auditivas modelos, figuradas porcertos dispositivos intracerebrais, e aguardando a passa-gem das impressões sonoras: essas impressões irão pas-sar sem ser reconhecidas. Com efeito, onde estará a medi-da comum, o ponto de contato entre a imagem seca, inerte,isolada, e a realidade viva da palavra que se organiza coma frase? Compreendo muito bem esse começo de reco-nhecimento automático que consistiria, como vimos antes,em sublinhar as principais articulações desta frase, emadotar assim seu movimento. Mas, a menos que se supo-nha em todos os homens vozes idênticas pronunciando nomesmo tom as mesmas frases estereotipadas, não vejocomo as palavras ouvidas iriam juntar-se às suas imagensno córtex cerebral.

No caso de haver de fato lembranças depositadas nascélulas do córtex, irá constatar-se, na afasia sensorial porexemplo, a perda irreparável de algumas palavras deter-minadas, a conservação integral das outras. Na verdade,não é isso que ocorre. Ora é a totalidade das lembrançasque desaparece, a faculdade de audição mental sendocompletamente abolida, ora assiste-se a um debilitamentogeral dessa função; mas é geralmente a função que é di-minuída, e não o número das lembranças. Como se o doen-te não tivesse mais a força de recuperar suas lembrançasacústicas, como se girasse em torno da imagem verbal semconseguir colocar-se sobre ela. Freqüentemente, para fa-zer com que ele recupere uma palavra, basta colocá-lo no

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caminho, indicando-lhe a primeira sílaba53, ou simples-mente encorajando-o54. Uma emoção poderá produzir omesmo efeito55. Todavia apresentam-se casos em que sepercebe bem que são grupos de representações determina-das que se apagam da memória. Examinamos um grandenúmero desses casos, e nos pareceu possível dividi-losem duas categorias absolutamente definidas. Na primeira,a perda das lembranças é geralmente repentina; na segun-da, é progressiva. Na primeira, as lembranças desligadasda memória são quaisquer, escolhidas arbitrária e mesmocaprichosamente: podem ser certas palavras, certos nú-meros, ou inclusive, muitas vezes, todas as palavras de umalíngua aprendida. Na segunda, as palavras seguem, paradesaparecer, uma ordem metódica e gramatical, a mesmaindicada pela lei de Ribot: os nomes próprios desaparecemem primeiro lugar, depois os nomes comuns, e finalmenteos verbos56. Eis as diferenças exteriores. Vejamos agora oque, para nós, é a diferença interna. Nas amnésias do pri-meiro tipo, quase todas consecutivas a um choque violen-to, nós nos inclinaríamos a pensar que as lembranças apa-rentemente abolidas estão na realidade presentes, e nãoapenas presentes mas atuantes. Para dar um exemplo bas-

53. Bemard, op. cit., pp. 172 e 179. Cf. Babilée, Les íroubles de Iamémoire dans 1'alcoolisme, Paris, 1886 (tese de medicina), p. 44.

54. Rieger, Beschreibung der Intelligenzstôrungen in Folge einerHirnverleizung, Würzburg, 1889, p. 35.

55. Wernicke, Der aphasische Symptomencomplex, Breslau, 1874,p. 39. - Cf. Valentin, "Sur un cas d'aphasie d'origine traumatique" (Rev.médicale de VEst, 1880, p. 171).

56. Ribot, Les maladies de Ia mémoire, Paris, 1881, pp. 131 ss. (Fé-lix Alcan, ed.).

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tante conhecido de Winslow57, o do paciente que haviaesquecido a letra F, e a letra F apenas, perguntamo-nos seé possível fazer abstração de uma letra determinada ondequer que ela se encontre, desligá-la portanto das palavrasfaladas ou escritas às quais está fortemente aderida, seprimeiramente não houve um reconhecimento implícitodessa letra. Num outro caso citado pelo mesmo autor58, opaciente havia esquecido línguas que aprendera e tam-bém poemas que escrevera. Restabelecendo-se, ele con-seguiu aos poucos refazer os mesmos versos. É comumocorrer aliás, em semelhante caso, uma restauração inte-gral das lembranças desaparecidas. Sem querermos nospronunciar muito categoricamente sobre uma questãodesse gênero, não podemos deixar de perceber uma analo-gia entre tais fenômenos e as cisões da personalidade des-critas por Pierre Janet59: o que acabamos de citar asseme-lha-se espantosamente a essas "alucinações negativas" e"sugestões com ponto de referência" induzidas pelos hip-notizadores60. - Bem diferentes são as afasias do segundotipo, as afasias verdadeiras. Elas devem-se, como procura-remos mostrar em seguida, à diminuição progressiva de

57. Winslow, On Obscure Diseases ofthe Brain, Londres, 1861.58./Wd.,p. 372.59. Pierre Janet, État mental des hystériques, Paris, 1894, II, pp. 263

ss. - Cf., do mesmo autor, Vautomatisme psychologique, Paris, 1889.60. Ver o caso de Grashey, estudado novamente por Sommer, e que

este último declara inexplicável no estado atual das teorias da afasia.Nesse exemplo, os movimentos executados pelo paciente têm toda a apa-rência de serem sinais dirigidos a uma memória independente. (Sommer,Zur Psychologie der Sprache, Zeitschr. f. Psychol. u. Physiol. der Sinnesor-gane, t. II, 1891, pp. 143 ss. - Cf. a Comunicação de Sommer ao Congressodos alienistas- alemães, Arch. de neurologie, t. XXIV, 1892.)

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uma função bem localizada, a faculdade de atualizar aslembranças de palavras. Como explicar que a amnésia sigaaqui uma evolução metódica, começando pelos nomespróprios e acabando pelos verbos? Dificilmente compreen-deríamos esse processo se as imagens verbais realmentese depositassem nas células do córtex: não seria estranho,com efeito, que a doença afetasse sempre essas célulasna mesma ordem?61 Mas o fato se esclarecerá se se admi-tir, conosco, que as lembranças, para se atualizarem, têmnecessidade de um coadjuvante motor, e que elas exi-gem, para serem chamadas à memória, uma espécie deatitude mental inserida, ela própria, numa atitude corpo-ral. Com isso os verbos, cuja essência é exprimir açõesimitáveis, são precisamente as palavras que um esforçocorporal nos permitirá alcançar quando a função da lin-guagem estiver prestes a se perder: ao contrário, os no-mes próprios, sendo de todas as palavras as mais afasta-das dessas ações impessoais que nosso corpo é capaz deesboçar, são aquelas que um debilitamento da funçãoatingiria em primeiro lugar. Assinalemos o fato singularde que um afásico, normalmente incapacitado de locali-zar o substantivo que busca, irá substituí-lo por uma perí-frase onde entram outros substantivos62, e às vezes o pró-prio substantivo rebelde: não podendo pensar a palavraexata, ele pensou a ação correspondente, e essa atitude de-terminou a direção geral de um movimento de onde a fra-se saiu. É deste modo que nos acontece, tendo retido a ini-cial de um nome esquecido, de reencontrar o nome à força

ól.Wundt, Psychologiephysiologique, t. I, p. 239.62. Bernard, De 1'aphasie, Paris, 1889, pp. 171 e 174.

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de pronunciar a inicial63. - Assim nos fatos do segundotipo de afasia, é a função que é atingida em seu conjun-to, e nos do primeiro tipo o esquecimento, aparentementemais nítido, não deve jamais ser definitivo em realidade.Em nenhum dos dois casos encontramos lembranças lo-calizadas em células determinadas da substância cerebral,e que uma destruição dessas células aboliria.

Mas interroguemos nossa consciência. Perguntemosa ela o que se passa quando escutamos a fala de outremcom a noção de compreendê-la. Aguardamos, passivos,que as impressões saiam em busca de suas imagens? Nãosentimos antes que nos colocamos numa certa disposi-ção, variável com o interlocutor, variável com a línguaque ele fala, com o tipo de idéias que exprime e sobretu-do com o movimento geral de sua frase, como se come-çássemos por adequar o tom de nosso trabalho intelectual?O esquema motor, acentuando as entonações de meu in-terlocutor, acompanhando a curva de seu pensamento emtodas as suas sinuosidades, indica ao meu pensamento ocaminho. Ele é o recipiente vazio que determina, por suaforma, a forma da massa fluida que nele se precipita.

Haverá relutância em compreender deste modo omecanismo da interpretação, por causa da invencível ten-dência que nos leva a pensar, em qualquer ocasião, antesem coisas do que em progressos. Dissemos que partíamosda idéia, e que a desenvolvíamos em lembranças-imagensauditivas capazes de se inserir no esquema motor para

63. Graves cita o caso de um doente que havia esquecido todos osnomes mas se lembrava de sua inicial, e conseguia deste modo recuperá-los.(Citado por Bernard, De Vaphasie, p. 179.)

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recobrir os sons ouvidos. Existe aí um progresso contí-nuo pelo qual a nebulosidade da idéia se condensa emimagens auditivas distintas, as quais, fluidas ainda, irãofinalmente se solidificar em sua coalescência com os sonsmaterialmente percebidos. Em nenhum momento pode-seafirmar com precisão que a idéia ou que a imagem-lem-brança acaba, que a imagem-lembrança ou que a sensaçãocomeça. De fato, onde está a linha de demarcação entrea confusão dos sons percebidos em massa e a clareza queas imagens auditivas rememoradas acrescentam aí, en-tre a descontinuidade dessas próprias imagens rememora-das e a continuidade da idéia original que elas dissociame refratam em palavras distintas? Mas o pensamento cien-tífico, ao analisar esta série ininterrupta de mudanças ecedendo a uma irresistível necessidade de figuração sim-bólica, detém e solidifica em coisas acabadas as principaisfases dessa evolução. Institui os sons brutos escutadosem palavras separadas e completas, e a seguir as imagensauditivas rememoradas em entidades independentes daidéia que desenvolvem: estes três termos, percepção bruta,imagem auditiva e idéia, irão formar assim totalidadesdistintas, cada uma delas bastando-se a si mesma. Em vezde ater-se à experiência pura e partir da idéia, já que aslembranças auditivas devem a ela sua soldadura e já queos sons brutos, por sua vez, só se completam através daslembranças, não se vê inconveniente, quando se comple-tou arbitrariamente o som bruto e também arbitrariamentese soldaram as lembranças, em inverter a ordem naturaldas coisas, em afirmar que vamos da percepção às lem-branças e das lembranças à idéia. Mas, de uma forma ououtra, num momento ou noutro, será preciso restabelecera continuidade rompida dos três termos. Irá supor-se que

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esses três termos, alojados em porções distintas do bulboe do córtex, mantêm comunicações entre si, as percep-ções indo despertar as lembranças auditivas, e estas, porsua vez, dirigindo-se às idéias. Como se solidificaram emtermos independentes as fases principais do desenvolvi-mento, materializa-se agora em linhas de comunicaçãoou em movimentos de impulsão o próprio desenvolvi-mento. Mas não é impunemente que se terá assim inver-tido a ordem verdadeira e, por uma conseqüência neces-sária, introduzido em cada termo da série elementos quesó se realizam depois dele. Também não é impunementeque se terá fixado em termos distintos e independentes acontinuidade de um progresso indiviso. Esse modo derepresentação será suficiente talvez enquanto estritamen-te limitado aos fatos que serviram para inventá-lo: mascada fato novo obrigará a complicar a figura, a intercalarao longo do movimento estações novas, sem que jamaisessas estações justapostas cheguem a reconstituir o pró-prio movimento.

Nada de mais instrutivo, a esse respeito, que a histó-ria dos "esquemas" da afasia sensorial. Num primeiro pe-ríodo, marcado pelos trabalhos de Charcot64, Broadbent65,Kussmaul66 e Lichtheim67, prevalece a hipótese de um

64. Bernard, De 1'aphasie, p. 37.65. Broadbent, "A Case of Peculiar Affection of Speech" (Brain,

1879, p. 494).66. Kussmaul, Les troubles de laparole, Paris, 1884, p. 234.67. Lichtheim, "On Aphasia" (Brain, 1885). Convém notar no en-

tanto que Wernicke, o primeiro a estudar sistematicamente a afasia sensorial,abstinha-se de um centro de conceitos (Der aphasische Symptomencom-plex, Breslau, 1874).

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"centro ideacional", ligado, por vias transcorticais, aos di-versos centros da fala. Mas este centro das idéias rapida-mente foi invalidado pela análise. Com efeito, enquanto afisiologia cerebral conseguia localizar cada vez melhorsensações e movimentos, jamais idéias, a diversidade dasafasias sensoriais obrigava os clínicos a dissociar o cen-tro intelectual em centros imaginativos de complexidadecrescente, centro das representações visuais, centro dasrepresentações táteis, centro das representações auditivas,etc. - e, mais ainda, a cindir às vezes em duas vias dife-rentes, uma ascendente e outra descendente, o caminho quefaria com que eles se comunicassem dois a dois68. Tal foio traço característico dos esquemas do período ulterior,os de Wysman69, Moeli70, Freud71, etc. Assim a teoriacomplicava-se cada vez mais, sem conseguir no entantoabarcar a complexidade do real. E mais: à medida que osesquemas complicavam-se, eles indicavam e deixavamsupor a possibilidade de lesões que, por serem certamen-te mais diversas, deviam ser ainda mais especiais e maissimples, a complicação do esquema resultando precisamen-

68. Bastian, "On Different Kinds of Aphasia" (British MedicaiJournal, 1887). - Cf. a explicação (indicada apenas como possível) daafasia óptica por Bernheim: "De Ia cécité psychique des choses" (RevuedeMédecine, 1885).

69. Wysman, "Aphasie und verwandte Zustànde" (DeutschesArchivfür klinische Medicin, 1890). - Magnan já havia aliás tomado essecaminho, como o indica o esquema de Skwortzoff, De Ia cécité des mots(tese de medicina, 1881, pi. I).

70. Moeli, "Über Aphasie bei Wahrnehmung der Gegenstãnde durchdas Gesich" (Berliner klinische Wochenschrift, 28 de abril de 1890).

71. Freud, Zur Auffassung der Aphasien, Leipzig, 1891.

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te na dissociação de centros que haviam sido inicialmenteconfundidos. Ora, a experiência estava longe de dar razãoaqui à teoria, já que ela mostrava quase sempre, parcial-mente e diversamente reunidas, várias dessas le-sões psi-cológicas simples que a teoria isolava. Ficando, assim, des-truída por si mesma a complicação das teorias da afasia,não é de espantar que a patologia atual, cada vez maiscrítica em relação a esquemas, volte pura e simplesmenteà descrição dos fatos.72

Mas como poderia ser de outro modo? Ao ouvirmoscertos teóricos da afasia sensorial, acreditaríamos que elesjamais consideraram de perto a estrutura de uma frase.Raciocinam como se uma frase se compusesse de nomesque vão evocar imagens de coisas. O que vêm a ser essasdiversas partes do discurso cuja função é justamente es-tabelecer entre as imagens relações e nuances de todotipo? Dirá você que cada uma dessas palavras exprime eevoca uma imagem material, mais confusa certamente,mas determinada? Pense então na quantidade de relaçõesdiferentes que a mesma palavra pode exprimir conformeo lugar que ocupa e os termos que une! Alegará você queisso são refinamentos de uma linguaja bastante aperfei-çoada, e que uma linguagem é possível com nomes con-cretos destinados a fazer surgir imagens de coisas? Acei-to sem maiores problemas; mas, quanto mais a língua deque você me fala for primitiva e desprovida de termosque exprimem relação, tanto mais você deverá dar lugarà atividade de meu espírito, uma vez que ele é obrigado

72. Sommer, "Communication à un congrès cTalienistes" (Arch. deneurologie,t- XXIV, 1892).

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a estabelecer relações que não estão expressas: ou seja,você terá que abandonar a hipótese segundo a qual cadaimagem iria conectar-se com sua idéia. A bem da verdade,existe aí apenas uma questão de grau: refinada ou gros-seira, uma língua subentende muito mais coisas do que écapaz de exprimir. Essencialmente descontínua, já que pro-cede por palavras justapostas, a fala limita-se a assinalar,a intervalos regulares, as principais etapas do movimentodo pensamento. Por isso compreenderei sua fala se eu par-tir de um pensamento análogo ao seu para acompanhar-lheas sinuosidades com o auxílio de imagens verbais desti-nadas, à maneira de letreiros, a mostrar-me de tempos emtempos o caminho. Mas não a compreenderei jamais separtir das próprias imagens verbais, porque entre duasimagens verbais consecutivas há um intervalo que ne-nhuma representação concreta conseguiria preencher. Asimagens, com efeito, serão sempre coisas, e o pensamentoé um movimento.

Portanto é em vão que se tratam imagens-lembrançase idéias como coisas acabadas, às quais se atribui a se-guir um lugar em centros problemáticos. Por mais que sedisfarce a hipótese sob uma linguagem tomada de em-préstimo à anatomia e à fisiologia, ela não é mais que aconcepção associacionista da vida do espírito; leva emconta apenas a tendência constante da inteligência dis-cursiva a separar todo progresso em fases e a solidificarem seguida essas fases em coisas; e, como ela nasceu, apriori, de uma espécie de preconceito metafísico, não con-segue nem acompanhar o movimento da consciência nemsimplificar a explicação dos fatos.

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Mas devemos seguir essa ilusão até o ponto precisoem que ela resulta numa contradição manifesta. Dizíamosque as idéias, as lembranças puras, chamadas do fundo damemória, desenvolvem-se em lembranças-imagens cadavez mais capazes de se inserirem no esquema motor. Àmedida que essas lembranças adquirem a forma de umarepresentação mais completa, mais concreta e mais cons-ciente, elas tendem a se confundir com a percepção queas atrai ou cujo quadro elas adotam. Portanto, não hánem pode haver no cérebro uma região onde as lembran-ças se fixem e se acumulem. A pretensa destruição daslembranças pelas lesões cerebrais não é mais que umainterrupção do progresso contínuo através do qual a lem-brança se atualiza. E, conseqüentemente, se quisermos àforça localizar as lembranças auditivas das palavras, porexemplo, num ponto determinado do cérebro, seremos le-vados, por razões de igual valor, a distinguir este centroimaginativo do centro perceptivo ou a confundir os doiscentros. Ora, é precisamente isto que a experiência verifica.

Notemos, com efeito, a singular contradição a que es-sa teoria é conduzida pela análise psicológica, de umlado, e pelos fatos patológicos, de outro. Por um lado,pensa-se, se a percepção uma vez efetuada permanece nocérebro em estado de lembrança armazenada, isso só épossível como uma disposição adquirida dos próprios ele-mentos que a percepção impressionou: de que maneira,em que momento preciso, iria ela buscar outros? É a essasolução natural, com efeito, que chegam Bain73 e Ribot74.

73. Bain, Les sens et Vintelligence, p. 304. - Cf. Spencer, Príncipesdepsychologie, 1.1, p. 483.

74. Ribot, Les maladies de Ia mémoire, Paris, 1881, p. 10.

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Mas por outro lado a patologia está aí, advertindo-nos deque a totalidade das lembranças de um certo tipo pode nosescapar, embora a faculdade correspondente de perceberpermaneça intacta. A cegueira psíquica não impede de ver,nem a surdez psíquica de ouvir. Mais particularmente, noque concerne à perda das lembranças auditivas de pala-vras - a única que nos ocupa -, há numerosos fatos quea mostram regularmente associada a uma lesão destrutivada primeira e da segunda circunvoluções têmporo-esfe-noidais esquerdas75, não se conhecendo um único casoem que essa lesão tenha provocado a surdez propriamentedita: chegou-se inclusive a produzi-la experimentalmen-te no macaco, sem determinar nele outra coisa que nãosurdez psíquica, isto é, uma incapacidade de interpretaros sons que ele continua a ouvir76. Será preciso portantodestinar à percepção e à lembrança elementos nervososdistintos. Mas essa hipótese terá então contra ela a obser-vação psicológica mais elementar; pois sabemos que umalembrança, à medida que se torna mais clara e mais in-tensa, tende a se fazer percepção, sem que haja momentopreciso em que uma transformação radical se opere e emque se possa dizer, por conseqüência, que a lembrança étransportada dos elementos imaginativos aos elementossensoriais. Assim, as duas hipóteses contrárias, a primeira

75. Ver a enumeração dos casos mais evidentes no artigo de Shaw,"The Sensory Side of Aphasia" (Brain, 1893, p. 501). - Vários autores,aliás, limitam à primeira circunvolução a lesão característica da perdadas imagens verbais auditivas. Ver em particular Ballet, Le langage inté-rieur,p. 153.

76. Luciani, citado por J. Soury, Les fonctions du cerveau, Paris,1892, p. 211.

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identificando os elementos de percepção com os elemen-tos de memória, a segunda distinguindo-os, são de tal na-tureza que cada uma delas remete à outra sem que sepossa ficar com nenhuma das duas.

Como haveria de ser de outro modo? Também aqui seconsideram percepção distinta e lembrança-imagem demaneira estática, como coisas, sendo que a primeira esta-ria já completa na segunda, em vez de se considerar oprogresso dinâmico pelo qual uma se torna a outra.

Por um lado, com efeito, a percepção completa só sedefine e se distingue por sua coalescência com uma ima-gem-lembrança que lançamos ao encontro dela. A aten-ção tem esse preço, e sem atenção não há senão uma jus-taposição passiva de sensações acompanhadas de umareação automática. Mas, por outro lado, como iremos mos-trar mais adiante, a própria imagem-lembrança, reduzidaao estado de lembrança pura, permaneceria ineficaz.Virtual, esta lembrança só pode tornar-se atual através dapercepção que a atrai. Impotente, ela retira sua vida e suaforça da sensação presente na qual se materializa. Nãoeqüivale isto a dizer que a percepção distinta é provoca-da por duas correntes de sentidos contrários, uma delas,centrípeta, vindo do objeto exterior, e a outra, centrífuga,tendo por ponto de partida o que chamamos de "lem-brança pura"? A primeira corrente, sozinha, produziriaapenas uma percepção passiva com as reações automáti-cas que a acompanham. A segunda, entregue a si mesma,tende a produzir uma lembrança atualizada, cada vez maisatual à medida que a corrente se acentuasse. Reunidas,essas duas correntes formam, no ponto onde se juntam, apercepção distinta e reconhecida.

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Eis o que diz a observação interior. Mas não temos odireito de nos deter aqui. Certamente, é grande o perigode se aventurar, sem luz suficiente, em meio às obscurasquestões de localização cerebral. Mas dissemos que a se-paração da percepção completa e da imagem-lembrançacolocava a observação clínica em conflito com a análisepsicológica, e que daí resultava, para a doutrina da loca-lização das lembranças, uma antinomia grave. Somos obri-gados a investigar o que vêm a ser os fatos conhecidos,quando se deixa de considerar o cérebro como depositá-rio de lembranças77.

Admitamos por um instante, para simplificar a expo-sição, que excitações vindas de fora dão nascimento, seja

77. A teoria que esboçamos aqui assemelha-se aliás, por um lado, àde Wundt. Assinalemos desde já o ponto em comum e a diferença essen-cial. Julgamos, juntamente com Wundt, que a percepção distinta implicauma ação centrífuga, e por isso somos levados a supor com ele (emboranum sentido um pouco diferente) que os centros ditos imaginativos sãoantes centros de agrupamento das impressões sensoriais. Mas, enquantopara Wundt a ação centrífuga consiste numa "estimulação aperceptiva"cuja natureza só é definível de uma maneira geral e que parece corres-ponder ao que chamamos geralmente fixação da atenção, pretendemosque essa ação centrífuga assume em cada caso uma forma distinta, amesma do "objeto virtual" que tende a se atualizar gradativamente. Daíuma diferença importante na concepção do papel dos centros. Wundt élevado a supor: 1) um órgão geral de apercepção, ocupando o lobo fron-tal; 2) centros particulares que, incapazes certamente de armazenar ima-gens, conservam no entanto tendências ou disposições para reproduzi-las.Sustentamos, ao contrário, que não é possível restar algo de uma imagemna substância cerebral, e que não poderia haver também um centro deapercepção, mas que há simplesmente, nessa substância, órgãos de per-cepção virtual, influenciados pela intenção da lembrança, assim como naperiferia há órgãos de percepção real, influenciados pela ação do objeto.(Ver Psychologie physiologique, 1.1, pp. 242-52.)

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no córtex cerebral, seja em outros centros, a sensaçõeselementares. Ainda aí não temos mais que sensações ele-mentares. Ora, na verdade, cada percepção envolve um nú-mero considerável dessas sensações, todas coexistentes edispostas numa ordem determinada. Como se explica essaordem, e o que garante essa coexistência? No caso de umobjeto material presente, a resposta é clara: ordem e coe-xistência vêm de um órgão dos sentidos, impressionadopor um objeto exterior. Esse órgão é precisamente cons-truído de modo a permitir que uma pluralidade de excita-ções simultâneas o impressionem de uma certa maneira enuma certa ordem, distribuindo-se, todas ao mesmo tempo,sobre partes escolhidas de sua superfície. Trata-se portan-to de um imenso teclado de piano, sobre o qual o objetoexterior executa de uma só vez seu acorde de milhares denotas, provocando assim, numa ordem determinada e numúnico momento, uma quantidade enorme de sensaçõeselementares que correspondem a todos os pontos interes-sados do centro sensorial. Suprima-se, agora, o objetoexterior, ou o órgão dos sentidos, ou ambos: as mesmassensações elementares podem ser excitadas, pois as mes-mas cordas continuam lá, prontas a ressoar da mesma ma-neira; mas onde está o teclado que permitirá atacar mi-lhares delas ao mesmo tempo e reunir uma quantidade denotas simples no mesmo acorde? Em nossa opinião, a"região das imagens", se existe, não pode ser mais queum teclado desse tipo. Certamente, não haveria nada deinconcebível em que uma causa puramente psíquica acio-nasse diretamente todas as cordas interessadas. Mas, nocaso da audição mental - o único que nos ocupa -, a lo-calização da função parece certa, já que uma lesão deter-minada do lobo temporal a abole, e por outro lado expu-

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semos as razões pelas quais não poderíamos admitir nemsequer conceber resíduos de imagens depositadas numaregião da substância cerebral. Uma única hipótese perma-nece portanto plausível, a de que essa região ocupa, emrelação ao centro da audição mesmo, a posição simétricado órgão dos sentidos, que é aqui o ouvido: seria um ou-vido mental.

Mas, com isso, a contradição assinalada se dissipa.Compreende-se, por um lado, que a imagem auditiva re-memorada ponha em movimento os mesmos elementosnervosos que a percepção primária, e que a lembrança setransforme assim gradualmente em percepção. E com-preende-se também, por outro lado, que a faculdade derememorar sons complexos, como as palavras, possa in-teressar outras partes da substância nervosa, ao contrárioda faculdade de percebê-los: é por isso que a audição realsobrevive, na surdez psíquica, à audição mental. As cor-das continuam ainda lá, e sob a influência dos sons exte-riores ainda vibram; é o teclado interior que falta.

Em outras palavras, enfim, os centros onde nascemas sensações elementares podem ser acionados, de certomodo, por dois lados diferentes, pela frente e por trás.Pela frente eles recebem as impressões dos órgãos dossentidos e, conseqüentemente, de um objeto real; por tráseles sofrem, de intermediário em intermediário, a influên-cia de um objeto virtual. Os centros de imagens, se exis-tem, só podem ser os órgãos simétricos dos órgãos dossentidos em relação a esses centros sensoriais. Eles nãosão depositários das lembranças puras, ou seja, dos obje-tos virtuais, assim como os órgãos dos sentidos não sãodepositários dos objetos reais.

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Acrescentemos que esta é uma tradução, extrema-mente resumida, do que se pode passar na realidade. Asdiversas afasias sensoriais demonstram suficientementeque a evocação de uma imagem auditiva não é um atosimples. Entre a intenção, que seria aquilo que chamamoslembrança pura, e a imagem-lembrança auditiva propria-mente dita intercalam-se na maioria das vezes lembran-ças intermediárias, que devem primeiramente realizar-secomo imagens-lembranças em centros mais ou menosafastados. É então por graus sucessivos que a idéia chegaa tomar corpo nessa imagem particular que é a imagemverbal. Por isso, a audição mental pode ser subordinada àintegridade dos diversos centros e das vias que condu-zem a eles. Mas essas complicações não alteram as coi-sas basicamente em nada. Quaisquer que sejam o núme-ro e a natureza dos termos interpostos, não vamos da per-cepção à idéia, mas da idéia à percepção, e o processocaracterístico do reconhecimento não é centrípeto, mascentrífugo.

Restaria saber, é verdade, de que modo excitações queemanam de dentro podem dar origem, por sua ação sobreo córtex cerebral ou sobre outros centros, a sensações. Eé evidente que esta é apenas uma maneira cômoda de seexprimir. A lembrança pura, à medida que se atualiza,tende a provocar no corpo todas as sensações correspon-dentes. Mas essas sensações na verdade virtuais, para setornarem reais, devem tender a fazer com que o corpo aja,com que nele se imprimam os movimentos e atitudes dosquais elas são o antecedente habitual. Os estímulos doscentros ditos sensoriais, estímulos que precedem geral-mente movimentos efetuados ou esboçados pelo corpo e

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que têm inclusive por função normal prepará-los, come-çando-os, são portanto menos a causa real da sensaçãodo que a marca de sua força e a condição de sua eficácia.O progresso pelo qual a imagem virtual se realiza não ésenão a série de etapas pelas quais essa imagem chegaa obter do corpo procedimentos úteis. A excitação doscentros ditos sensoriais é a última dessas etapas; é o pre-lúdio de uma reação motora, o começo de uma ação noespaço. Em outras palavras, a imagem virtual evolui emdireção à sensação virtual, e a sensação virtual em direçãoao movimento real: esse movimento, ao se realizar, realizaao mesmo tempo a sensação da qual ele seria o prolonga-mento natural e a imagem que quis se incorporar à sensa-ção. Iremos aprofundar esses estados virtuais e, penetran-do mais adiante no mecanismo interior das ações psíquicase psicofisiológicas, mostrar por qual progresso contínuoo passado tende a reconquistar sua influência perdida aose atualizar.

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CAPITULO IIIDA SOBREVIVÊNCIA DAS IMAGENS.A MEMÓRIA E O ESPÍRITO

Façamos um breve resumo do que precede. Distingui-mos três termos, a lembrança pura, a lembrança-imageme a percepção, dos quais nenhum se produz, na realidade,isoladamente. A percepção não é jamais um simples con-tato do espírito com o objeto presente; está inteiramenteimpregnada das lembranças-imagens que a completam,interpretando-a. A lembrança-imagem, por sua vez, parti-cipa da "lembrança pura" que ela começa a materializar,

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e da percepção na qual tende a se encarnar: consideradadesse último ponto de vista, ela poderia ser definida comouma percepção nascente. Enfim, a lembrança pura, certa-mente independente de direito, não se manifesta normal-mente a não ser na imagem colorida e viva que a revela.Simbolizando esses três termos pelos segmentos conse-cutivos AB, BC, CD de uma mesma reta AD, pode-sedizer que nosso pensamento descreve essa reta num mo-vimento contínuo que vai de A a D, e que é impossívelafirmar com precisão onde um dos termos acaba, ondecomeça o outro.

Aliás, é isso que a consciência constata facilmentetoda vez que acompanha, para analisar a memória, o pró-prio movimento da memória que trabalha. Trata-se de re-cuperar, uma lembrança, de evocar um período de nossahistória? Temos consciência de um ato sui generis peloqual deixamos o presente para nos recolocar primeira-mente no passado em geral, e depois numa certa regiãodo passado: trabalho de tentativa, semelhante à busca dofoco de uma máquina fotográfica. Mas nossa lembrançapermanece ainda em estado virtual; dispomo-nos simples-mente a recebê-la, adotando a atitude apropriada. Poucoa pouco aparece como que uma nebulosidade que se con-densasse; de virtual ela passa ao estado atual; e, à medi-da que seus contornos se desenham e sua superfície secolore, ela tende a imitar a percepção. Mas continua presaao passado por suas raízes profundas, e se, uma vez rea-lizada, não se ressentisse de sua virtualidade original, senão fosse, ao mesmo tempo que um estado presente, algoque se destaca do presente, não a reconheceríamos jamaiscomo uma lembrança.

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O erro constante do associacionismo é substituir essacontinuidade do devir, que é a realidade viva, por umamultiplicidade descontínua de elementos inertes e justa-postos. Justamente porque cada um dos elementos assimconstituídos contém, em razão de sua origem, algo daqui-lo que o precede e também daquilo que o segue, ele deve-ria assumir aos nossos olhos a forma de um estado mistoe de certo modo impuro. Mas, por outro lado, o princípiodo associacionismo pretende que todo estado psicológicoseja uma espécie de átomo, um elemento simples. Daí anecessidade de sacrificar, em cada uma das fases que foramdistinguidas, o instável pelo estável, ou seja, o começopelo fim. Em se tratando da percepção, ver-se-ão nela nãomais que as sensações aglomeradas que a colorem; igno-rar-se-ão as imagens rememoradas que formam seu núcleoobscuro. Em se tratando por sua vez da imagem rememo-rada, ela será tomada como algo pronto, concebida no es-tado de fraca percepção, e fechar-se-ão os olhos à lem-brança pura que essa imagem desenvolveu progressiva-mente. Na concorrência que o associacionismo instituiassim entre o estável e o instável, a percepção destituirásempre a lembrança-imagem, e a lembrança-imagem alembrança pura. Por isso mesmo a lembrança pura desa-parece totalmente. O associacionismo, cortando ao meiopor uma linha MO a totalidade do progresso AD, não vêna porção OD senão as sensações que a terminam e queconstituem, para ele, toda a percepção; - e por outro ladoele reduz a porção AO, igualmente, à imagem realizadaem que culmina, ao desabrochar, a lembrança pura. A vidapsicológica resume-se então inteiramente nesses dois ele-mentos, a sensação e a imagem. E como, de um lado, sub-

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mergiu-se na imagem a lembrança pura que fazia dela umestado original, como, de outro lado, aproximou-se a ima-gem da percepção colocando nesta última, de antemão, algoda própria imagem, não se verá mais entre esses doisestados senão uma diferença de grau ou de intensidade.Daí a distinção dos estados fortes e dos estados fracos,os primeiros sendo erigidos por nós em percepções dopresente, os segundos - não se sabe por quê - em repre-sentações do passado. Mas a verdade é que jamais atin-giremos o passado se não nos colocarmos nele de saída.Essencialmente virtual, o passado não pode ser apreendi-do por nós como passado a menos que sigamos e adote-mos o movimento pelo qual ele se manifesta em imagempresente, emergindo das trevas para a luz do dia. Em vãose buscaria seu vestígio em algo de atual e já realizado:seria o mesmo que buscar a obscuridade sob a luz. Este éprecisamente o erro do associacionismo: colocado no atual,esgota-se em vãos esforços para descobrir, num estadorealizado e presente, a marca de sua origem passada, paradistinguir a lembrança da percepção, e para erigir emdiferença de natureza aquilo que condenou de antemão anão ser mais que uma diferença de grandeza.

Imaginar não é lembrar-se. Certamente uma lembran-ça, à medida que se atualiza, tende a viver numa imagem;mas a recíproca não é verdadeira, e a imagem pura e sim-ples não me reportará ao passado a menos que seja efeti-vamente no passado que eu vá buscá-la, seguindo assimo progresso contínuo que a trouxe da obscuridade à luz.É isso que os psicólogos esquecem freqüentemente quan-do concluem, do fato de que uma sensação rememoradatorna-se mais atual quando sentimos melhor seu peso, que

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a lembrança da sensação era esta sensação nascente. Ofato que eles alegam é sem dúvida exato. Quanto mais meesforço por recordar uma dor passada, tanto mais tendo aexperimentá-la realmente. Mas isso se compreende semdificuldade, já que o progresso da lembrança consistejustamente, como dizíamos, em se materializar. A ques-tão é saber se a lembrança da dor era verdadeiramentedor na origem. Porque o indivíduo hipnotizado acaba porsentir calor quando lhe repetem com insistência que eleestá com calor, não se conclui que as palavras da suges-tão contenham em si calor. Do fato de a lembrança deuma sensação se prolongar nessa própria sensação, nãose deve também concluir que a lembrança tenha sido umasensação nascente: é possível, com efeito, que essa lem-brança desempenhe precisamente, em relação à sensaçãoque irá nascer, o papel do magnetizador que produz asugestão. O raciocínio que criticamos, apresentado destaforma, já não tem portanto valor probatório; ainda não éfalso, porque se beneficia dessa incontestável verdade deque a lembrança se transforma à medida que se atualiza.Mas o absurdo vem à tona quando raciocinamos seguin-do o caminho inverso - que deveria no entanto ser igual-mente legítimo na hipótese proposta -, ou seja, quandose faz decrescer a intensidade da sensação em vez deaumentar a intensidade da lembrança pura. Com efeito,deveria acontecer então, se os dois estados diferissem ape-nas em grau, que num certo momento a sensação se me-tamorfoseasse em lembrança. Se a lembrança de umagrande dor, por exemplo, não é mais que uma dor fraca,inversamente uma dor intensa que experimento acabarádiminuindo, por ser uma grande dor rememorada. Ora,

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chega um momento, sem dúvida nenhuma, em que me éimpossível dizer se o que torno a sentir é uma sensaçãofraca que experimento ou uma sensação fraca que imagi-no (e isso é natural, uma vez que a lembrança-imagemparticipa já da sensação), mas jamais esse estado fraco meaparecerá como a lembrança de um estado forte. A lem-brança é portanto algo bem diferente.

Mas a ilusão que consiste em estabelecer entre alembrança e a percepção uma diferença apenas de grau émais do que uma simples conseqüência do associacionis-mo, mais do que um acidente na história da filosofia. Elatem raízes profundas. Repousa, em última análise, sobreuma falsa idéia da natureza e do objeto da percepção ex-terior. Não se quer ver na percepção mais do que umensinamento dirigido a um espírito puro, e com um inte-resse inteiramente especulativo. Então, como a próprialembrança é, por essência, um conhecimento desse tipo,uma vez que não tem mais objeto, entre a percepção e alembrança só se poderá encontrar uma diferença de grau,a percepção deslocando a lembrança e constituindo destemodo nosso presente, simplesmente em virtude da lei domais forte. Mas existe bem mais, entre o passado e o pre-sente, que uma diferença de grau. Meu presente é aquiloque me interessa, o que vive para mim e, para dizer tudo,o que me impele à ação, enquanto meu passado é essen-cialmente impotente. Detenhamo-nos nesse ponto. Opon-do-o à percepção presente, iremos compreender melhor anatureza daquilo que chamamos "lembrança pura".

Seria inútil, com efeito, tentarmos caracterizar a lem-brança de um estado passado se não começássemos pordefinir a marca concreta, aceita pela consciência, da rea-

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lidade presente. O que é, para mim, o momento presente?É próprio do tempo decorrer; o tempo já decorrido é opassado, e chamamos presente o instante em que ele de-corre. Mas não se trata aqui de um instante matemático.Certamente há um presente ideal, puramente concebido,limite indivisível que separaria o passado do futuro. Maso presente real, concreto, vivido, aquele a que me refiroquando falo de minha percepção presente, este ocupa ne-cessariamente uma duração. Onde portanto se situa essaduração? Estará aquém, estará além do ponto matemáti-co que determino idealmente quando penso no instantepresente? Evidentemente está aquém e além ao mesmotempo, e o que chamo "meu presente" estende-se ao mes-mo tempo sobre meu passado e sobre meu futuro. Sobremeu passado em primeiro lugar, pois "o momento emque falo já está distante de mim"; sobre meu futuro aseguir, pois é sobre o futuro que esse momento está incli-nado, é para o futuro que eu tendo, e se eu pudesse fixaresse indivisível presente, esse elemento infinitesimal dacurva do tempo, é a direção do futuro que ele mostraria.É preciso portanto que o estado psicológico que chamo"meu presente" seja ao mesmo tempo uma percepção dopassado imediato e uma determinação do futuro imediato.Ora, o passado imediato, enquanto percebido, é, comoveremos, sensação, já que toda sensação traduz uma su-cessão muito longa de estímulos elementares; e o futuroimediato, enquanto determinando-se, é ação ou movimen-to. Meu presente portanto é sensação e movimento aomesmo tempo; e, já que meu presente forma um todoindiviso, esse movimento deve estar ligado a essa sensa-ção, deve prolongá-la em ação. Donde concluo que meu

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presente consiste num sistema combinado de sensações emovimentos. Meu presente é, por essência, sensório-motor.

Eqüivale a dizer que meu presente consiste na cons-ciência que tenho de meu corpo. Estendido no espaço,meu corpo experimenta sensações e ao mesmo tempo exe-cuta movimentos. Sensações e movimentos localizando-seem pontos determinados dessa extensão, só pode haver, aum momento dado, um único sistema de movimentos ede sensações. Por isso meu presente parece ser algo abso-lutamente determinado, e que incide sobre meu passado.Colocado entre a matéria que influi sobre ele e a matériasobre a qual ele influi, meu corpo é um centro de ação, olugar onde as impressões recebidas escolhem inteligente-mente seu caminho para se transformarem em movimen-tos efetuados; portanto, representa efetivamente o estadoatual de meu devir, daquilo que, em minha duração, estáem vias de formação. De maneira mais geral, nessa con-tinuidade de devir que é a própria realidade, o momentopresente é constituído pelo corte quase instantâneo quenossa percepção pratica na massa em vias de escoamento,e esse corte é precisamente o que chamamos de mundomaterial: nosso corpo ocupa o centro dele; ele é, destemundo material, aquilo que sentimos diretamente decor-rer; em seu estado atual consiste a atualidade de nossopresente. Se a matéria, enquanto extensão no espaço, deveser definida, em nossa opinião, como um presente que nãocessa de recomeçar, nosso presente, inversamente, é a pró-pria materialidade de nossa existência, ou seja, um con-junto de sensações e de movimentos, nada mais. E esseconjunto é determinado, único para cada momento da du-ração, justamente porque sensações e movimentos ocupam

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lugares do espaço e não poderia haver, no mesmo lugar,várias coisas ao mesmo tempo. - Como se explica que setenha podido desconhecer uma verdade tão simples, tãoevidente, e que, afinal de contas, não é mais do que a idéiado senso comum?

A razão disso é que se insiste em ver apenas uma di-ferença de grau, e não de natureza, entre as sensações atuaise a lembrança pura. A diferença, a nosso ver, é radical.Minhas sensações atuais são aquilo que ocupa porçõesdeterminadas da superfície de meu corpo; a lembrançapura, ao contrário, não diz respeito a nenhuma parte demeu corpo. Certamente ela engendrará sensações ao sematerializar, mas nesse momento preciso deixará de serlembrança para passar ao estado de coisa presente, atual-mente vivida; e só lhe restituirei seu caráter de lembran-ça reportando-me à operação pela qual a evoquei, virtual,do fundo de meu passado. É justamente porque a tereitornado ativa que ela irá se tornar atual, isto é, sensaçãocapaz de provocar movimentos. A maioria dos psicólo-gos, ao contrário, vê na lembrança pura apenas uma per-cepção mais fraca, um conjunto de sensações nascentes.Tendo apagado assim, de antemão, toda diferença de na-tureza entre a sensação e a lembrança, eles são conduzi-dos pela lógica de sua hipótese a materializar a lembrançae a idealizar a sensação. Ao examinarem a lembrança, só apercebem sob forma de imagem, isto é, já encarnada emsensações nascentes. Transportando para ela o essencialda sensação, e não querendo ver, na idealidade dessa lem-brança, algo de distinto, que se destaca da própria sensa-ção, são obrigados, quando retornam à sensação pura, alhe cederem a idealidade que haviam conferido implici-

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tamente à sensação nascente. Se o passado, que por hipó-tese não age mais, pode com efeito subsistir no estado desensação fraca, segue-se que existem sensações impoten-tes. Se a lembrança pura, que por hipótese não diz respeitoa nenhuma parte determinada do corpo, é uma sensaçãonascente, segue-se também que a sensação não está es-sencialmente localizada num ponto do corpo. Daí a ilu-são que consiste em ver na sensação um estado flutuantee inextensivo, que não adquiriria extensão e não se con-solidaria no corpo a não ser por acidente: ilusão que vi-cia profundamente, conforme vimos, a teoria da percepçãoexterior, e envolve um bom número das questões penden-tes entre as diversas metafísicas da matéria. É preciso de-cidir-se quanto a isso: a sensação é, por essência, exten-siva e localizada; é uma fonte de movimento; - a lem-brança pura, sendo inextensiva e impotente, não partici-pa da sensação de maneira alguma.

O que chamo meu presente é minha atitude em facedo futuro imediato, é minha ação iminente. Meu presenteé portanto efetivamente sensório-motor. De meu passado,apenas torna-se imagem, e portanto sensação ao menosnascente, o que é capaz de colaborar com essa ação, deinserir-se nessa atitude, em uma palavra, de tornar-se útil;mas, tão logo se transforma em imagem, o passado deixao estado de lembrança pura e se confunde com uma certaparte de meu presente. A lembrança atualizada em ima-gem difere assim profundamente dessa lembrança pura.A imagem é um estado presente, e só pode participar dopassado através da lembrança da qual ela saiu. A lem-brança, ao contrário, impotente enquanto permanece inútil,não se mistura com a sensação e não se vincula ao pre-sente, sendo portanto inextensiva.

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Essa impotência radical da lembrança pura nos aju-dará a compreender precisamente de que modo ela se con-serva em estado latente. Sem entrar ainda no âmago daquestão, limitemo-nos a assinalar que nossa repugnânciaem conceber estados psicológicos inconscientes se devesobretudo a tomarmos a consciência como a propriedadeessencial dos estados psicológicos, de sorte que um esta-do psicológico não poderia deixar de ser consciente semdeixar de existir. Mas, se a consciência não é mais que amarca característica do presente, ou seja, do atualmentevivido, ou seja, enfim, do que age, então o que não agepoderá deixar de pertencer à consciência sem deixar ne-cessariamente de existir de algum modo. Em outras pala-vras, no domínio psicológico, consciência não seria sinô-nimo de existência mas apenas de ação real ou de eficáciaimediata, e, achando-se assim limitada a extensão dessetermo, haveria menos dificuldade em se representar umestado psicológico inconsciente, isto é, em suma, impo-tente. Seja qual for a idéia que se faça da consciência emsi, tal como apareceria se fosse exercida sem entraves, nãose poderia contestar que, num ser que realiza funções cor-porais, a consciência tem sobretudo o papel de presidir aação e iluminar uma escolha. Ela projeta assim sua luzsobre os antecedentes imediatos da decisão e sobre todasaquelas lembranças passadas capazes de se organizaremutilmente com eles; o resto permanece na sombra. Masreencontramos aqui, sob uma forma nova, a ilusão sem-pre renascente que perseguimos desde o início deste tra-balho. Pretende-se que a consciência, mesmo ligada a fun-ções corporais, seja uma faculdade acidentalmente prática,essencialmente voltada para a especulação. Então, como

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não se percebe que interesse ela teria em deixar escaparos conhecimentos que possui, estando votada ao conhe-cimento puro, não se compreende que ela possa negar-sea iluminar o que não está inteiramente perdido para ela.Donde resultaria que só lhe pertence de direito o que lhepertence de fato, e que, no domínio da consciência, todoreal é atual. Mas devolva-se à consciência seu verdadei-ro papel: não haverá mais razão para afirmar que o pas-sado, uma vez percebido, se apaga do que para supor queos objetos materiais deixem de existir quando deixo depercebê-los.

Insistamos nesse último ponto, pois está aí o centrodas dificuldades e a origem dos equívocos que cercam oproblema do inconsciente. A idéia de uma representaçãoinconsciente é clara, a despeito de um difundido precon-ceito; pode-se inclusive afirmar que fazemos dela umuso constante e que não há concepção mais familiar aosenso comum. Todo o mundo admite, com efeito, que asimagens atualmente presentes em nossa percepção nãosão a totalidade da matéria. Mas, por outro lado, o quepode ser um objeto material não percebido, uma imagemnão imaginada, a não ser uma espécie de estado mentalinconsciente? Além das paredes de seu quarto, que vocêpercebe neste momento, há os quartos vizinhos, depois oresto da casa, finalmente a rua e a cidade onde você mora.Pouco importa a teoria da matéria à qual se esteja ligado:realista ou idealista, você pensa evidentemente, quandofala da cidade, da rua, dos outros quartos da casa, em ou-tras tantas percepções ausentes de sua consciência e noentanto dadas fora dela. Elas não são criadas à medidaque sua consciência as acolhe; portanto já existiam de ai-

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gum modo, e uma vez que, por hipótese, sua consciêncianão as apreendia, como poderiam existir em si a não serno estado inconsciente? Como se explica então que umaexistência fora da consciência nos pareça clara quandose trata dos objetos, obscura quando falamos do sujeito?Nossas percepções, atuais e virtuais, estendem-se ao lon-go de duas linhas, uma horizontal AB, que contém todosos objetos simultâneos no espaço, a outra vertical Cl, sobrea qual se dispõem nossas lembranças sucessivas escalo-nadas no tempo. O ponto /, interseção das duas linhas, éo único que é dado atualmente à nossa consciência. Comose explica que não hesitemos em afirmar a realidade dalinha AB por inteiro, embora ela permaneça despercebi-da, e que, ao contrário, da linha Cl o presente / atualmentepercebido seja o único ponto que nos pareça existir ver-dadeiramente? Existem, no fundo dessa distinção radicalentre as duas séries temporal e espacial, tantas idéias con-fusas ou mal esboçadas, tantas hipóteses desprovidas dequalquer valor especulativo, que não poderíamos analisá-las de uma só vez. Para desmascarar inteiramente a ilu-são, seria preciso buscar na sua origem e seguir atravésde todos os seus meandros o duplo movimento pelo qual

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chegamos a propor realidades objetivas sem relação coma consciência e estados de consciência sem realidade obje-tiva, o espaço parecendo então conservar indefinidamen-te coisas que aí se justapõem, enquanto o tempo destrui-ria, pouco a pouco, estados que se sucedem nele. Umaparte deste trabalho foi feita em nosso primeiro capítulo,quando tratamos da objetividade em geral; a outra o seránas últimas páginas deste livro, quando falarmos da idéiade matéria. Limitemo-nos aqui a assinalar alguns pontosessenciais.

Em primeiro lugar, os objetos escalonados ao lon-go dessa linha AB representam a nossos olhos o que ire-mos perceber, enquanto a linha Cl contém apenas o que jáfoi percebido. Ora, o passado não tem mais interesse paranós; ele esgotou sua ação possível, ou só voltará a ter in-fluência tomando emprestada a vitalidade da percepçãopresente. Ao contrário, o futuro imediato consiste numaação iminente, numa energia ainda não despendida. A par-te não percebida do universo material, carregada de pro-messas e de ameaças, tem portanto para nós uma realidadeque não podem nem devem ter os períodos atualmente nãopercebidos de nossa existência passada. Mas essa distin-ção, inteiramente relativa à utilidade prática e às necessi-dades materiais da vida, adquire em nosso espírito a formacada vez mais nítida de uma distinção metafísica.

Já mostramos, com efeito, que os objetos situados emtorno de nós representam, em graus diferentes, uma açãoque podemos realizar sobre as coisas ou que iremos so-frer delas. O prazo dessa ação possível é justamente mar-cado pelo maior ou menor afastamento do objeto corres-pondente, de sorte que a distância no espaço mede a pro-

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ximidade de uma ameaça ou de uma promessa no tempo.O espaço nos fornece assim, de uma só vez, o esquema denosso futuro próximo; e, como esse futuro deve escoar-seindefinidamente, o espaço que o simboliza tem a proprie-dade de permanecer, em sua imobilidade, indefinida-mente aberto. Daí decorre que o horizonte imediato dadoà nossa percepção nos pareça necessariamente cercadode um círculo mais largo, existente embora não percebi-do, este próprio círculo implicando um outro que o cerca,e assim sucessivamente. É portanto da essência de nossapercepção atual, enquanto extensa, ser sempre apenas umconteúdo em relação a uma experiência mais vasta, e mes-mo indefinida, que a contém: e essa experiência, ausentede nossa consciência visto que ultrapassa o horizonte per-cebido, mesmo assim parece atualmente dada. Mas, en-quanto nos sentimos ligados a esses objetos materiaisque erigimos deste modo em realidades presentes, nossaslembranças, enquanto passadas, são ao contrário pesosmortos que arrastamos conosco e dos quais gostaríamosde nos fingir desvencilhados. O mesmo instinto, em vir-tude do qual abrimos indefinidamente diante de nós oespaço, faz com que fechemos atrás de nós o tempo à me-dida que ele passa. E, se a realidade, enquanto extensão,nos parece ultrapassar ao infinito nossa percepção, emnossa vida interior, ao contrário, só nos parece real o quecomeça com o momento presente; o resto é praticamenteabolido. Então, quando uma lembrança reaparece à cons-ciência, ela nos dá a impressão de uma alma do outromundo cuja aparição misteriosa precisaria ser explicadapor causas especiais. Na realidade, a aderência dessa lem-brança a nosso estado presente é inteiramente comparável

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à dos objetos não percebidos em relação aos que perce-bemos, e o inconsciente desempenha nos dois casos umpapel do mesmo tipo.

Mas temos muita dificuldade em representar-nos ascoisas deste modo, porque adquirimos o hábito de acen-tuar as diferenças, e por outro lado de apagar as semelhan-ças, entre a série dos objetos simultaneamente escalona-dos no espaço e a dos estados sucessivamente desenvol-vidos no tempo. Na primeira, os termos condicionam-sede uma maneira totalmente determinada, de modo que oaparecimento de cada novo termo possa ser previsto. As-sim, ao sair de meu quarto, sei quais são as peças que ireiatravessar. Minhas lembranças, ao contrário, apresentam-senuma ordem aparentemente caprichosa. A ordem das re-presentações é portanto necessária num caso, contingenteno outro; e é essa necessidade que hipostasio, de certomodo, quando falo da existência dos objetos fora de todaconsciência. Se não vejo nenhum inconveniente em su-por dada a totalidade dos objetos que não percebo, é por-que a ordem rigorosamente determinada desses objetoslhes dá o aspecto de uma cadeia, da qual minha percep-ção presente não seria mais que um elo: este elo comuni-ca então sua atualidade ao restante da cadeia. - Mas, seexaminarmos de perto, veremos que nossas lembrançasformam uma cadeia do mesmo tipo, e que nosso caráter,sempre presente em todas as nossas decisões, é exata-mente a síntese atual de todos os nossos estados passa-dos. Sob essa forma condensada, nossa vida psicológicaanterior existe inclusive mais, para nós, do que o mundoexterno, do qual nunca percebemos mais do que uma par-te muito pequena, enquanto ao contrário utilizamos a tota-

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lidade de nossa experiência vivida. É verdade que a pos-suímos apenas como um resumo, e que nossas antigaspercepções, consideradas como individualidades distintas,nos dão a impressão, ou de terem desaparecido totalmente,ou de só reaparecerem ao sabor de seu capricho. Masessa aparência de destruição completa ou de ressurreiçãocaprichosa deve-se simplesmente ao fato de a consciên-cia atual aceitar a cada instante o útil e rejeitar momenta-neamente o supérfluo. Sempre voltada para a ação, ela sóé capaz de materializar, de nossas antigas percepções,aquelas que se organizam com a percepção presente paraconcorrer à decisão final. Se é preciso, para que a vonta-de se manifeste sobre um ponto dado do espaço, que mi-nha consciência ultrapasse um a um esses obstáculos ouessas mediações cujo conjunto constitui o que chamamosa distância no espaço, em compensação lhe é útil, paraesclarecer esta ação, saltar sobre o intervalo de tempoque separa a situação atual de uma situação anterior aná-loga; e, como a consciência assim se transporta de um sal-to, toda a parte intermediária do passado escapa às suasinfluências. As mesmas razões que fazem com que nos-sas percepções se disponham em continuidade rigorosano espaço fazem portanto com que nossas lembranças seiluminem de maneira descontínua no tempo. Não estamoslidando, no que concerne aos objetos não percebidos noespaço e às lembranças inconscientes no tempo, com duasformas radicalmente diferentes da existência; mas as exi-gências da ação são inversas, num caso, do que elas sãono outro.

Tocamos aqui o problema capital da existência, pro-blema que podemos apenas roçar, sob pena de sermos

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conduzidos, de questão em questão, ao próprio núcleo dametafísica. Digamos simplesmente que, no que concerneàs coisas da experiência - as únicas que nos interessamaqui -, a existência parece implicar duas condições reu-nidas: 1) a apresentação à consciência; 2) a conexão lógi-ca ou causai daquilo que é assim apresentado com o queprecede e o que segue. A realidade para nós de um esta-do psicológico ou de um objeto material consiste nesseduplo fato de que nossa consciência os percebe e elesfazem parte de uma série, temporal ou espacial, em que ostermos se determinam uns aos outros. Mas essas duas con-dições admitem graus, e concebe-se que, necessárias umae outra, sejam desigualmente preenchidas. Assim, no casodos estados internos atuais, a conexão é menos estreita, ea determinação do presente pelo passado, deixando bas-tante lugar à contingência, não tem o caráter de uma de-rivação matemática; - em compensação, a apresentaçãoà consciência é perfeita, um estado psicológico atual en-tregando-nos a totalidade de seu conteúdo no próprio atopelo qual o percebemos. Ao contrário, quando se tratados objetos exteriores, é a conexão que é perfeita, já queesses objetos obedecem a leis necessárias; mas com issoa outra condição, a apresentação à consciência, só será par-cialmente preenchida, pois o objeto material, justamenteem virtude da multiplicidade dos elementos não percebi-dos que o prendem a todos os outros objetos, parece-nosencerrar em si e ocultar atrás de si infinitamente mais doque aquilo que nos deixa ver. - Deveríamos portanto afir-mar que a existência, no sentido empírico da palavra, im-plica sempre ao mesmo tempo, mas em graus diferentes,a apreensão consciente e a conexão regular. Mas nosso

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entendimento, que tem por função estabelecer distinçõesnítidas, não compreende as coisas deste modo. Em vezde admitir a presença, em todos os casos, dos dois elemen-tos mesclados em proporções diversas, ele prefere disso-ciar esses dois elementos, e atribuir assim aos objetosexteriores, de um lado, e aos objetos internos, de outro,dois modos de existência radicalmente diferentes, carac-terizados cada um pela presença exclusiva da condiçãoque se deveria declarar simplesmente preponderante. Comisso a existência dos estados psicológicos consistirá in-teiramente em sua apreensão pela consciência, e a dosfenômenos exteriores, inteiramente também, na ordemrigorosa de sua concomitância e de sua sucessão. Dondea impossibilidade de deixar aos objetos existentes masnão percebidos a menor participação na consciência, eaos estados interiores não conscientes a menor participa-ção na existência. Já mostramos, no começo deste livro,as conseqüências da primeira ilusão: ela acaba deturpan-do nossa representação da matéria. A segunda, comple-mentar da primeira, vicia nossa concepção do espírito, aoespalhar sobre a idéia do inconsciente uma obscuridadeartificial. Nossa vida psicológica passada inteira condi-ciona nosso estado presente, sem determiná-lo de umamaneira necessária; também inteira ela se revela em nossocaráter, embora nenhum dos estados passados se mani-feste no caráter explicitamente. Reunidas, essas duas con-dições asseguram a cada um dos estados psicológicos pas-sados uma existência real, ainda que inconsciente.

Mas estamos tão habituados a inverter, para a maiorvantagem da prática, a ordem real das coisas, padecemosa tal ponto a obsessão das imagens obtidas do espaço,

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que não podemos nos impedir de perguntar onde se con-serva a lembrança. Concebemos que fenômenos físico-químicos tenham lugar no cérebro, que o cérebro esteja nocorpo, o corpo no ar que o circunda, etc; mas o passadouma vez realizado, se ele se conserva, onde se encontra?Colocá-lo, no estado de modificação molecular, na subs-tância cerebral parece simples e claro, porque temos comisso um reservatório atualmente dado, que bastaria abrirpara fazer fluir as imagens latentes na consciência. Mas,se o cérebro não pode servir a semelhante uso, em quedepósito iremos alojar as imagens acumuladas? Esquece-seque a relação entre continente e conteúdo retira sua cla-reza e sua universalidade aparentes da necessidade quetemos de abrir sempre diante de nós o espaço, de fecharsempre atrás de nós a duração. Por se mostrar que umacoisa está em uma outra, de modo algum se esclareceu ofenômeno de sua conservação. E mais: admitamos porum instante que o passado sobreviva no estado de lem-brança armazenada no cérebro. Será preciso então que océrebro, para conservar a lembrança, conserve pelo me-nos a si mesmo. Mas este cérebro, enquanto imagemestendida no espaço, nunca ocupa mais que o momentopresente; ele constitui, com o restante do universo mate-rial, um corte incessantemente renovado do devir univer-sal. Portanto, ou você terá que supor que esse universoperece e renasce, por um verdadeiro milagre, em todos osmomentos da duração, ou terá que atribuir a ele a conti-nuidade de existência que você recusa à consciência, e fa-zer de seu passado uma realidade que sobrevive e se pro-longa em seu presente: portanto, você não terá ganhadonada em armazenar a lembrança na matéria, e se verá obri-

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gado, ao contrário, a estender à totalidade dos estados domundo material essa sobrevivência independente e inte-gral do passado que você recusava aos estados psicológi-cos. Tal sobrevivência em si do passado impõe-se assimde uma forma ou outra, e a dificuldade que temos deconcebê-la resulta simplesmente de atribuirmos à sériedas lembranças, no tempo, essa necessidade de conter ede ser contido que só é verdadeira para o conjunto doscorpos instantaneamente percebidos no espaço. A ilusãofundamental consiste em transportar à própria duração,em vias de decorrer, a forma dos cortes instantâneos quenela praticamos.

Mas como o passado, que, por hipótese, cessou de ser,poderia por si mesmo conservar-se? Não existe aí umacontradição verdadeira? - Respondemos que a questão éprecisamente saber se o passado deixou de existir, ou seele simplesmente deixou de ser útil. Você define arbitra-riamente o presente como o que é, quando o presente ésimplesmente o que se faz. Nada é menos que o momen-to presente, se você entender por isso esse limite indivi-sível que separa o passado do futuro. Quando pensamosesse presente como devendo ser, ele ainda não é; e, quan-do o pensamos como existindo, eleja passou. Se, ao con-trário, você considerar o presente concreto e realmentevivido pela consciência, pode-se afirmar que esse pre-sente consiste em grande parte no passado imediato. Nafração de segundo que dura a mais breve percepção pos-sível de luz, trilhões de vibrações tiveram lugar, sendoque a primeira está separada da última por um intervaloenormemente dividido. A sua percepção, por mais ins-tantânea, consiste portanto numa incalculável quantidade

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de elementos rememorados, e, para falar a verdade, todapercepção é já memória. Nós só percebemos, praticamen-te, o passado, o presente puro sendo o inapreensível avan-ço do passado a roer o futuro.

A consciência ilumina portanto com seu brilho, atodo momento, essa parte imediata do passado que, incli-nada sobre o futuro, trabalha para realizá-lo e agregá-lo asi. Unicamente preocupada em determinar deste modoum futuro indeterminado, ela poderá espalhar um poucode sua luz sobre aqueles dos nossos estados mais recua-dos no passado que se organizariam utilmente com nossoestado presente, isto é, com nosso passado imediato; oresto permanece obscuro. É nessa parte iluminada de nos-sa história que estamos colocados, em virtude da lei fun-damental da vida, que é uma lei de ação: daí a dificulda-de que experimentamos em conceber lembranças que seconservariam na sombra. Nossa repugnância em admitira sobrevivência integral do passado deve-se portanto àprópria orientação de nossa vida psicológica, verdadeirodesenrolar de estados em que nos interessa olhar o que sedesenrola, e não o que está inteiramente desenrolado.

Retornamos assim, através de uma longa volta, aonosso ponto de partida. Há, dizíamos, duas memórias pro-fundamente distintas: uma, fixada no organismo, não ésenão o conjunto dos mecanismos inteligentemente mon-tados que asseguram uma réplica conveniente às diversasinterpelações possíveis. Ela faz com que nos adaptemosà situação presente, e que as ações sofridas por nós seprolonguem por si mesmas em reações ora efetuadas, orasimplesmente nascentes, mas sempre mais ou menosapropriadas. Antes hábito do que memória, ela desempe-

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nha nossa experiência passada, mas não evoca sua ima-gem. A outra é a memória verdadeira. Coextensiva à cons-ciência, ela retém e alinha uns após outros todos os nos-sos estados à medida que eles se produzem, dando a cadafato seu lugar e conseqüentemente marcando-lhe a data,movendo-se efetivamente no passado definitivo, e não,como a primeira, num presente que recomeça a todo ins-tante. Mas, ao distinguir profundamente essas duas for-mas da memória, não havíamos mostrado seu vínculo.Acima do corpo, com seus mecanismos que simbolizamo esforço acumulado das ações passadas, a memória queimagina e que repete pairava, suspensa no vazio. Mas, senunca percebemos outra coisa que não nosso passado ime-diato, se nossa consciência do presente é já memória, osdois termos que havíamos separado de início irão fundir-se intimamente. Considerado desse novo ponto de vista,com efeito, nosso corpo não é nada mais que a parte in-variavelmente renascente de nossa representação, a partesempre presente, ou melhor, aquela que acaba a todo mo-mento de passar. Sendo ele próprio imagem, esse corponão pode armazenar as imagens, já que faz parte das ima-gens; por isso é quimérica a tentativa de querer localizaras percepções passadas, ou mesmo presentes, no cérebro:elas não estão nele; é ele que está nelas. Mas essa ima-gem muito particular, que persiste em meio às outras eque chamo meu corpo, constitui a cada instante, comodizíamos, um corte transversal do universal devir. Portan-to é o lugar de passagem dos movimentos recebidos edevolvidos, o traço de união entre as coisas que agem so-bre mim e as coisas sobre as quais eu ajo, a sede, enfim,dos fenômenos sensório-motores. Se eu representar por

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Figura 4

um cone SAB a totalidade das lembranças acumuladasem minha memória, a base AB, assentada no passado,permanece imóvel, enquanto o vértice S, que figura atodo momento meu presente, avança sem cessar, e semcessar também toca o plano móvel P de minha represen-tação atual do universo. Em S concentra-se a imagem docorpo; e, fazendo parte do plano P, essa imagem limita-sea receber e a devolver as ações emanadas de todas as ima-gens de que se compõe o plano.

A memória do corpo, constituída pelo conjunto dossistemas sensório-motores que o hábito organizou, é por-tanto uma memória quase instantânea à qual a verdadeiramemória do passado serve de base. Como elas não cons-tituem duas coisas separadas, como a primeira não é, di-zíamos, senão a ponta móvel inserida pela segunda noplano movente da experiência, é natural que essas duasfunções prestem-se um mútuo apoio. Por um lado, comefeito, a memória do passado apresenta aos mecanismossensório-motores todas as lembranças capazes de orien-tá-los em sua tarefa e de dirigir a reação motora no sen-tido sugerido pelas lições da experiência: nisto consistem

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precisamente as associações por contigüidade e por simi-litude. Mas, por outro lado, os aparelhos sensório-moto-res fornecem às lembranças impotentes, ou seja, incons-cientes, o meio de se incorporarem, de se materializa-rem, enfim, de se tornarem presentes. Para que uma lem-brança reapareça à consciência, é preciso com efeito queela desça das alturas da memória pura até o ponto preci-so onde se realiza a ação. Em outras palavras, é do pre-sente que parte o apelo ao qual a lembrança responde, eé dos elementos sensório-motores da ação presente que alembrança retira o calor que lhe confere vida.

Não é pela firmeza desse acordo, pela precisão comque essas duas memórias complementares se inseremuma na outra, que reconhecemos os espíritos "bem equi-"librados", isto é, os homens perfeitamente adaptados àvida? O que caracteriza o homem de ação é a prontidãocom que convoca em auxílio de uma situação dada todasas lembranças a ela relacionadas; mas é também a barreirainsuperável que encontram nele, ao se apresentarem aolimiar da consciência, as lembranças inúteis ou indiferen-tes. Viver no presente puro, responder a uma excitaçãoatravés de uma reação imediata que a prolonga, é própriode um animal inferior: o homem que procede assim é umimpulsivo. Mas não está melhor adaptado à ação aqueleque vive no passado por mero prazer, e no qual as lem-branças emergem à luz da consciência sem proveito paraa situação atual: este não é mais um impulsivo, mas umsonhador. Entre esses dois extremos situa-se a favoráveldisposição de uma memória bastante dócil para seguir comprecisão os contornos da situação presente, mas bastanteenérgica para resistir a qualquer outro apelo. O bom senso,ou senso prático, não é na verdade outra coisa.

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O desenvolvimento extraordinário da memória es-pontânea na maior parte das crianças deve-se precisamen-te a que elas ainda não solidarizaram sua memória comsua conduta. Seguem habitualmente a impressão do mo-mento, e, como a ação não se submete nelas às indica-ções da lembrança, inversamente suas lembranças não selimitam às necessidades da ação. Elas só parecem retercom mais facilidade porque se lembram com menos dis-cernimento. A diminuição aparente da memória, à medi-da que a inteligência se desenvolve, deve-se portanto àorganização crescente das lembranças com os atos. A me-mória consciente perde assim em extensão o que ganhaem força de penetração: no início ela tinha a facilidadeda memória dos sonhos, mas isso porque realmente elasonhava. Observa-se aliás esse mesmo exagero da me-mória espontânea entre homens cujo desenvolvimentointelectual não ultrapassa em muito o da infância. Um mis-sionário, após ter pregado um longo sermão a selvagensda África, viu um deles repeti-lo textualmente, com osmesmos gestos, de uma ponta à outra1.

Mas se nosso passado permanece quase inteiramen-te oculto para nós porque é inibido pelas necessidades daação presente, ele irá recuperar a força de transpor o li-miar da consciência sempre que nos desinteressarmos daação eficaz para nos recolocarmos, de algum modo, navida do sonho. O sono, natural ou artificial, provoca jus-tamente um desinteresse desse tipo. Recentemente foi su-gerida, no sono, uma interrupção de contato entre os ele-

1. Kay, Memory and How to Improve it, Nova York, 1888, p. 18.

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mentos nervosos, sensoriais e motores2. Mesmo se nãonos ativermos a essa engenhosa hipótese, é impossívelnão ver no sono um relaxamento, pelo menos funcional,da tensão do sistema nervoso, sempre pronto durante avigília a prolongar a excitação recebida em reação apro-priada. Ora, é um fato de observação comum a "exalta-ção" da memória em certos sonhos e em certos estadossonambúlicos. Lembranças que se acreditavam abolidasreaparecem com uma exatidão impressionante: revive-mos em todos os detalhes cenas da infância inteiramenteesquecidas; falamos línguas que não lembrávamos sequerde ter aprendido. Mas nada mais instrutivo, a esse respeito,do que aquilo que acontece em certos casos de sufocaçãobrusca, entre os afogados e os enforcados. O indivíduo,voltando à vida, declara ter visto desfilar diante dele, numtempo muito curto, todos os acontecimentos esquecidosde sua história, com suas mais ínfimas circunstâncias ena própria ordem em que se produziram3.

Um ser humano que sonhasse sua existência em vezde vivê-la manteria certamente sob seu olhar, a todo mo-mento, a multidão infinita dos detalhes de sua história

2. Mathias Duval, "Théorie histologique du sommeil" (C. R. de IaSoe. de Biologie, 1895, p. 74). - Cf. Lépine, ibid., p. 85, e Revue de mé-decine, agosto de 1894, e sobretudo Pupin, La neurone et les hypothèseshistologiques, Paris, 1896.

3. Winslow, Obscure Diseases of the Brain, pp. 250 ss. - Ribot,Maladies de Ia mémoire, pp. 139 ss. - Maury, Le sommeil et les rêves, Pa-ris, 1878, p. 439. - Egger, "Le moi des mourants" (Revue philosophique,janeiro e outubro de 1896). - Cf. a frase de Bali: "A memória é uma fa-culdade que não perde nada e registra tudo." (Citada por Rouillard, Lesamnésies, tese de med., Paris, 1885, p. 25.)

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passada. E aquele que, ao contrário, repudiasse essa me-mória com tudo o que ela engendra, encenaria sem cessarsua existência em vez de representá-la verdadeiramente:autômato consciente, seguiria a encosta dos hábitos úteisque prolongam a excitação em reação apropriada. O pri-meiro não sairia jamais do particular, e mesmo do indivi-dual. Dando a cada imagem sua data no tempo e seu lugarno espaço, veria por onde ela difere das outras e não poronde se assemelha. O outro, ao contrário, sempre condu-zido pelo hábito, só distinguiria numa situação o lado poronde ela se assemelha praticamente a situações anterio-res. Incapaz de pensar o universal, uma vez que a idéiageral supõe a representação pelo menos virtual de umaquantidade de imagens rememoradas, é todavia no univer-sal que ele evoluiria, o hábito estando para a ação assimcomo a generalidade para o pensamento. Mas esses doisestados extremos, um de uma memória totalmente con-templativa que só apreende o singular em sua visão, o ou-tro de uma memória inteiramente motora que imprime amarca da generalidade à sua ação, não se isolam e não semanifestam plenamente a não ser em casos excepcionais.Na vida normal eles se penetram intimamente, abando-nando deste modo, um e outro, algo de sua pureza origi-nal. O primeiro se traduz pela lembrança das diferenças,o segundo pela percepção das semelhanças: na confluên-cia das duas correntes aparece a idéia geral.

Não se trata aqui de resolver de uma vez a questãodas idéias gerais. Entre essas idéias há algumas que nãotêm por origem única percepções e que só se relacionamde muito longe a objetos materiais. Nós as deixaremos de

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lado, para considerar apenas as idéias gerais fundadas noque chamamos percepção das semelhanças. Queremos se-guir a memória pura, a memória integral, no esforço con-tínuo que faz para se inserir no hábito motor. Por isso fa-remos conhecer melhor o papel e a natureza dessa memó-ria; mas por isso também procuraremos esclarecer, consi-derando-as sob um aspecto bem particular, as duas noçõesigualmente obscuras de semelhança e de generalidade.

Circunscrevendo ao máximo as dificuldades de ordempsicológica levantadas pelo problema das idéias gerais,acreditamos podê-las encerrar neste círculo: para genera-lizar é preciso primeiro abstrair, mas para abstrair utilmen-te é preciso já saber generalizar. É em torno deste círculoque gravitam, consciente ou inconscientemente, nominalis-mo e conceitualismo, cada uma das duas doutrinas con-tando sobretudo com a insuficiência da outra. Os nomi-nalistas, com efeito, não retendo da idéia geral mais doque sua extensão, vêem simplesmente nela uma série aber-ta e indefinida de objetos individuais. Portanto, a unidadeda idéia só poderá consistir para eles na identidade dosímbolo através do qual designamos indiferentemente to-dos esses objetos distintos. A acreditar no que dizem, co-meçamos por perceber uma coisa, depois associamos aela uma palavra: essa palavra, reforçada pela capacidadeou pelo hábito de se estender a um número indefinido deoutras coisas, institui-se então em idéia geral. Mas, paraque a palavra se estenda e no entanto se limite aos obje-tos que designa, também é preciso que esses objetos nosapresentem semelhanças que, ao aproximá-los uns dosoutros, os distingam de todos os objetos aos quais a palavranão se aplica. Parece portanto que a generalização requer

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a consideração abstrata das qualidades comuns, e gradati-vamente o nominalismo será levado a definir a idéia geralpor sua compreensão, e não mais apenas por sua extensãocomo desejava de início. É dessa compreensão que parteo conceitualismo. A inteligência, segundo ele, decompõea unidade superficial do indivíduo em qualidades diversas,sendo que cada uma delas, isolada do indivíduo que alimitava, torna-se, por isso mesmo, representativa de umgênero. Em vez de considerar cada gênero como com-preendendo, em ato, uma multiplicidade de objetos, pre-tende-se agora, ao contrário, que cada objeto contenha, empotência e como uma série de qualidades que manteriaprisioneiras, uma multiplicidade de gêneros. Mas a questãoé precisamente saber se qualidades individuais, mesmoisoladas por um esforço de abstração, não permanecemindividuais como eram de início, e se, para instituí-las emgêneros, não é necessário um novo procedimento do espí-rito, através do qual se imponha inicialmente a cada qua-lidade um nome, reunindo a seguir sob este nome umamultiplicidade de objetos individuais. A brancura de umlírio não é a brancura de uma superfície de neve; continuamsendo, mesmo isoladas da neve e do lírio, brancura de lírioe brancura de neve. Elas não renunciam à sua individua-lidade a menos que consideremos sua semelhança paralhes dar um nome em comum: aplicando então este nomea um número indefinido de objetos semelhantes, devolve-mos à qualidade, por uma espécie de ricochete, a genera-lidade que a palavra foi buscar em sua aplicação às coisas.Mas, raciocinando deste modo, não se retorna ao pontode vista da extensão que se havia abandonado de início?Giramos portanto realmente num círculo, o nominalismo

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conduzindo-nos ao conceitualismo, e o conceitualismo re-metendo-nos ao nominalismo. A generalização só podeser feita por uma extração de qualidades comuns; mas asqualidades, para serem comuns, deverão já ter sofridoum trabalho de generalização.

Se aprofundássemos agora essas duas teorias adver-sas, descobriríamos nelas um postulado comum: ambassupõem que partimos da percepção de objetos individuais.A primeira compõe o gênero através de uma enumeração;a segunda o obtém através de uma análise; mas é sobreindivíduos, considerados como realidades dadas à intui-ção imediata, que se aplicam a análise e a enumeração.Eis aí o postulado. A despeito de sua evidência aparente,ele não é nem verossímil nem conforme aos fatos.

A priori, com efeito, parece claro que a distinçãonítida dos objetos individuais seja um luxo da percepção,do mesmo modo que a representação clara das idéias ge-rais é um refinamento da inteligência. A concepção per-feita dos gêneros é certamente característica do pensa-mento humano; exige um esforço de reflexão, pelo qualapagamos de uma representação as particularidades detempo e lugar. Mas a reflexão sobre essas particularida-des, reflexão sem a qual a individualidade dos objetosnos escaparia, supõe uma faculdade de observar as dife-renças, e por isso mesmo uma memória das imagens, queé certamente o privilégio do homem e dos animais supe-riores. Parece portanto que não começamos nem pela per-cepção do indivíduo nem pela concepção do gênero, maspor um conhecimento intermediário, por um sentimentoconfuso de qualidade marcante ou de semelhança: estesentimento, igualmente afastado da generalidade plena-

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mente concebida e da individualidade claramente perce-bida, as engendra, uma e outra, por meio de dissociação. Aanálise reflexiva o depura em idéia geral; a memória dis-criminativa o solidifica em percepção do individual.

Isto aparecerá claramente se nos reportarmos às ori-gens utilitárias de nossa percepção das coisas. O que nosinteressa numa situação dada, o que devemos perceber aíem primeiro lugar, é o lado pelo qual ela é capaz de res-ponder a uma tendência ou a uma necessidade: ora, a ne-cessidade vai direto à semelhança ou à qualidade, e sótem que fazer diferenças individuais. A percepção dosanimais costuma limitar-se a esse discernimento do útil.É o capim em geral que atrai o herbívoro: a cor e o odordo capim, sentidos e experimentados como forças (nãochegamos ao ponto de dizer: pensados como qualidadesou gêneros), são os únicos dados imediatos de sua per-cepção exterior. Sobre esse fundo de generalidade ou desemelhança sua memória poderá fazer valer os contrastesdos quais surgirão as diferenciações; ele distinguira entãouma paisagem de outra paisagem, um campo de outrocampo; mas isto, repetimos, é o supérfluo da percepção enão o necessário. Dir-se-á que estamos apenas recuandoo problema, que lançamos simplesmente no inconscientea operação pela qual se manifestam as semelhanças e seconstituem os gêneros? Mas não lançamos nada no incons-ciente, pela razão muito simples de que não é, em nossaopinião, um esforço de natureza psicológica que mani-festa aqui a semelhança: esta semelhança age objetiva-mente como uma força, e provoca reações idênticas emvirtude da lei inteiramente física que obriga os mesmosefeitos de conjunto a seguirem as mesmas causas profún-

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das. Porque o ácido clorídrico age sempre da mesma ma-neira sobre o carbonato de cálcio - seja o mármore ou ocré -, dir-se-á que o ácido distingue entre as espécies ostraços característicos de um gênero? Ora, não há diferençaessencial entre a operação pela qual este ácido obtém dosal sua base e o ato da planta que extrai invariavelmentedos solos mais diversos os mesmos elementos que irãolhe servir de alimento. Dê agora um passo a mais; imagi-ne uma consciência rudimentar como pode ser a de umaameba agitando-se em uma gota d'água: o animálculo sen-tirá a semelhança, e não a diferença, das diversas subs-tâncias orgânicas que é capaz de assimilar. Em suma, domineral à planta, da planta aos mais simples organismosconscientes, do animal ao homem, acompanha-se o pro-gresso da operação pela qual as coisas e os organismosapreendem em seu ambiente o que os atrai, o que os inte-ressa praticamente, sem que haja necessidade de abstrair,simplesmente porque o restante do ambiente permanecesem ação sobre eles: essa identidade de reação a açõessuperficialmente diferentes é o germe que a consciênciahumana desenvolve em idéias gerais.

Reflita-se, com efeito, sobre a destinação de nosso sis-tema nervoso, tal como ela parece resultar de sua estrutu-ra. Vemos aparelhos de percepção muito diversos, todoseles ligados, por intermédio dos centros, aos mesmos apa-relhos motores. A sensação é instável; ela pode adquiriras nuances mais variadas; o mecanismo motor ao contrá-rio, uma vez montado, funcionará invariavelmente da mes-ma maneira. Podem-se portanto supor percepções as maisdiferentes possíveis em seus detalhes superficiais: se elasse prolongam pelas mesmas reações motoras, se o orga-

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nismo é capaz de extrair delas os mesmos efeitos úteis, seelas imprimem ao corpo a mesma atitude, algo de comumirá resultar daí, e deste modo a idéia geral terá sido sen-tida e experimentada antes de ser representada. - Eis-nosportanto finalmente livres do círculo em que parecíamosencerrados de início. Para generalizar, dizíamos, é preci-so abstrair as semelhanças, mas para manifestar utilmen-te a semelhança é preciso já saber generalizar. A verdadeé que não há círculo, porque a semelhança de que o espí-rito parte, quando abstrai de início, não é a semelhança aque o espírito chega quando, conscientemente, generali-za. Aquela de que ele parte é uma semelhança sentida,vivida, ou, se quiserem, automaticamente desempenhada.Aquela a que ele chega é uma semelhança inteligentemen-te percebida ou pensada. E é precisamente ao longo des-se progresso que se constróem, através do duplo esforçodo entendimento e da memória, a percepção dos indiví-duos e a concepção dos gêneros - a memória introduzin-do distinções nas semelhanças espontaneamente abstraídas,o entendimento retirando do hábito das semelhanças aidéia clara da generalidade. Essa idéia de generalidadenão era, na origem, senão nossa consciência de uma iden-tidade de atitude numa diversidade de situações; era opróprio hábito, remontando da esfera dos movimentos àdo pensamento. Mas, dos gêneros assim esboçados me-canicamente pelo hábito, passamos, por um esforço de

.reflexão efetuado sobre essa própria operação, à idéiageral do gênero; e, uma vez constituída essa idéia, cons-truímos, agora voluntariamente, um número ilimitado denoções gerais. Não é necessário aqui acompanhar a inte-ligência no detalhe dessa construção. Limitemo-nos a dizer

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que o entendimento, imitando o trabalho da natureza, mon-tou, ele também, aparelhos motores, desta vez artificiais,para fazê-los responder, em número limitado, a uma quan-tidade ilimitada de objetos individuais: o conjunto dessesmecanismos é a palavra articulada.

Essas duas operações divergentes do espírito, umacapaz de discernir indivíduos, outra capaz de construirgêneros, estão longe aliás de exigir o mesmo esforço e deprogredir com a mesma rapidez. A primeira, precisandoapenas da intervenção da memória, realiza-se desde oinício de nossa experiência; a segunda prossegue indefi-nidamente sem completar-se jamais. A primeira acabapor constituir imagens estáveis que, por sua vez, armaze-nam-se na memória; a segunda forma representações ins-táveis e evanescentes. Detenhamo-nos nesse último ponto.Tocamos aqui um fenômeno essencial da vida mental.

A essência da idéia geral, com efeito, é mover-se in-cessantemente entre a esfera da ação e a da memória pura.Reportemo-nos ao esquema que havíamos traçado. Em Sestá a percepção atual que tenho de meu corpo, ou seja,de um certo equilíbrio sensório-motor. Sobre a superfícieda base AB estarão dispostas, se quiserem, minhas lem-branças em sua totalidade. No cone assim determinado, aidéia geral oscilará continuamente entre o vértice Seabase AB. Em S ela tomaria a forma bem nítida de umaatitude corporal ou de uma palavra pronunciada; em ABela tomaria o aspecto, não menos nítido, dos milhares deimagens individuais nas quais viria se romper sua unida-de frágil. E por isso uma psicologia que se atem ao aca-bado, que conhece apenas coisas e ignora os progressos,só perceberá desse movimento as extremidades entre as

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quais ele oscila; tal psicologia fará coincidir a idéia geralora com a ação que a desempenha ou a palavra que a ex-prime, ora com as imagens múltiplas, em número indefi-nido, que são seu equivalente na memória. Mas a verda-de é que a idéia geral nos escapa tão logo pretendemosfixá-la a uma ou outra dessas extremidades. Ela consistena dupla corrente que vai de uma à outra - sempre pronta,seja a cristalizar-se em palavras pronunciadas, seja a eva-porar-se em lembranças.

Isto eqüivale a dizer que entre os mecanismos sensó-rio-motores figurados pelo ponto Sea totalidade das lem-branças dispostas em AB há lugar, como sugeríamos nocapítulo precedente, para milhares e milhares de repeti-ções de nossa vida psicológica, figuradas por outras tan-tas seções A'B',A "B", etc, do mesmo cone. Tendemos adispersar-nos em AB à medida que nos liberamos maisde nosso estado sensorial e motor para viver a vida do

Figura 5

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sonho; tendemos a concentrar-nos em S à medida que nosligamos mais firmemente à realidade presente, responden-do através de reações motoras a excitações sensoriais. Naverdade, o eu normal não se fixa jamais em nenhuma dasposições extremas; ele se move entre elas, adota sucessi-vamente as posições representadas pelas seções interme-diárias, ou, em outras palavras, dá a suas representaçõeso suficiente de imagem e o suficiente de idéia para queelas possam contribuir utilmente para a ação presente.

Dessa concepção da vida mental inferior podem serdeduzidas as leis da associação de idéias. Mas, antes deaprofundar esse ponto, mostremos a insuficiência das teo-rias correntes da associação.

Que toda idéia emergente no espírito tem uma relaçãode semelhança ou de contigüidade com o estado mentalanterior, é incontestável; mas uma afirmação desse tiponão nos informa sobre o mecanismo da associação, e abem da verdade não nos esclarece absolutamente nada.Buscaríamos em vão, com efeito, duas idéias que nãotenham entre si algum traço de semelhança ou que não setoquem por algum lado. No que diz respeito à semelhan-ça, por mais profundas que sejam as diferenças que sepa-ram duas imagens, encontraremos sempre, remontandobem acima, um gênero comum ao qual elas pertencem e,em conseqüência, uma semelhança que lhes serve de traçode união. No que concerne à contigüidade, uma percep-ção A, como dizíamos antes, não evoca por "contigüida-de" uma antiga imagem B a não ser que ela lembre pri-meiro uma imagem A' que se lhe assemelha, pois é umalembrança A', e não a percepção A, que toca realmente B

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na memória. Por mais afastados que se suponham portan-to os termos A e B um do outro, sempre se poderá estabe-lecer entre eles uma relação de contigüidade se o termointercalar A' mantiver com A uma semelhança suficien-temente afastada. Isso quer dizer que entre duas idéiasquaisquer, escolhidas ao acaso, há sempre semelhança esempre, se quiserem, contigüidade, de sorte que, ao des-cobrir uma relação de contigüidade ou de semelhança en-tre duas representações que se sucedem, não se explicaem absoluto por que uma evoca a outra.

A verdadeira questão é saber como se opera a sele-ção entre uma infinidade de lembranças que se asseme-lham, todas, por algum lado à percepção presente, e porque uma só dentre elas - esta e não aquela - emerge à luzda consciência. A essa questão o associacionismo não écapaz de responder, porque ele institui as idéias e as ima-gens em entidades independentes, flutuando, à maneirados átomos de Epicuro, num espaço interior, aproximan-do-se, ligando-se entre si quando o acaso as conduz àesfera de atração umas das outras. Aprofundando a dou-trina nesse ponto, veríamos que seu erro foi intelectuali-zar demasiadamente as idéias, atribuir-lhes um papel in-teiramente especulativo, acreditar que elas existem parasi e não para nós, desconhecer sua relação com a atividadedo querer. Se as lembranças vagueiam, indiferentes, numaconsciência inerte e amorfa, não há nenhuma razão paraque a percepção presente atraia de preferência uma delas:só poderei constatar o encontro, uma vez produzido, e fa-lar de semelhança ou de contigüidade - o que eqüivale,no fundo, a reconhecer vagamente que os estados de cons-ciência têm afinidades uns com os outros.

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Mas dessa própria afinidade, que toma a dupla for-ma da contigüidade e da semelhança, o associacionismoé incapaz de fornecer qualquer explicação. A tendênciageral para associar-se permanece tão obscura, nessa dou-trina, quanto as formas particulares da associação. Ha-vendo erigido as lembranças-imagens individuais emcoisas acabadas, dadas tais e quais no curso de nossavida mental, o associacionismo é obrigado a supor entreesses objetos atrações misteriosas, das quais não se sabe-ria sequer dizer de antemão, como da atração física, atra-vés de que fenômenos irão se manifestar. Com efeito, porque uma imagem, que por hipótese basta a si mesma,buscaria agregar-se a outras, ou semelhantes, ou dadasem contigüidade com ela? Mas a verdade é que essa ima-gem independente é um produto artificial e tardio doespírito. Na realidade, percebemos as semelhanças antesdos indivíduos que se assemelham, e, num agregado departes contíguas, o todo antes das partes. Vamos da se-melhança aos objetos semelhantes, bordando sobre a seme-lhança, essa talagarça comum, a variedade das diferençasindividuais. E vamos também do todo às partes, por umtrabalho de decomposição cuja lei veremos mais adiante,e que consiste em parcelar, para a maior comodidade davida prática, a continuidade do real. A associação não é,portanto, o fato primitivo; é por uma dissociação quecomeçamos, e a tendência de toda lembrança a se agre-gar a outras explica-se por um retorno natural do espíritoà unidade indivisa da percepção.

Mas descobrimos aqui o vício radical do associacio-nismo. Sendo dada uma percepção presente que formapasso a passo, com lembranças diversas, várias associa-

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ções sucessivas, há duas maneiras, dizíamos, de concebero mecanismo dessa associação. Pode-se supor que a per-cepção permaneça idêntica a si mesma, verdadeiro áto-mo psicológico ao qual se agregam outros à medida queestes últimos passam ao lado dele. Tal é o ponto de vistado associacionismo. Mas existe um segundo, e é precisa-mente aquele que indicamos em nossa teoria do reconhe-cimento. Supusemos que nossa personalidade inteira, coma totalidade de nossas lembranças, participava, indivisa,de nossa percepção presente. Então, se essa percepçãoevoca sucessivamente lembranças diferentes, não é poruma adjunção mecânica de elementos cada vez mais nu-merosos que ela exerceria, imóvel, uma atração ao seuredor; é por uma dilatação de nossa consciência inteira,que, expandindo-se sobre uma superfície mais vasta, écapaz de levar mais longe o inventário detalhado de suariqueza. Tal como uma nebulosa, vista em telescópios cadavez mais potentes, converte-se em um número crescentede estrelas. Na primeira hipótese (que conta apenas comsua aparente simplicidade e sua analogia com um ato-mismo mal compreendido), cada lembrança constitui umser independente e coagulado, do qual não se pode dizernem por que ele busca agregar-se a outros, nem como es-colhe, para associá-las em função de uma contigüidadeou de uma semelhança, entre milhares de lembranças queteriam direitos iguais. É preciso supor que as idéias en-trechocam-se ao acaso, ou que forças misteriosas atuamentre elas, e tem-se ainda contra si o testemunho da cons-ciência, que não nos mostra jamais fatos psicológicos flu-tuando no estado independente. Na segunda hipótese, nãose faz mais que constatar a solidariedade dos fatos psico-

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lógicos, sempre dados juntos à consciência imediata comoum todo indiviso que somente a reflexão separa em frag-mentos distintos. O que é preciso explicar, então, já nãoé a coesão dos estados internos, mas o duplo movimentode contração e de expansão pelo qual a consciência es-treita ou alarga o desenvolvimento de seu conteúdo. Masesse movimento se deduz, conforme iremos ver, das ne-cessidades fundamentais da vida; e é fácil perceber tam-bém por que as "associações" que parecemos formar aolongo desse movimento abrangem todos os graus suces-sivos da contigüidade e da semelhança.

Suponhamos por um instante, com efeito, que nossavida psicológica se reduza às meras funções sensório-motoras. Em outras palavras, coloquemo-nos, na figuraesquemática que traçamos (p. 190), nesse ponto S quecorresponderia à maior simplificação possível de nossavida mental. Nesse estado, toda percepção prolonga-se es-pontaneamente em reações apropriadas, pois as percepçõesanálogas anteriores mostraram aparelhos motores maisou menos complexos que para entrar em funcionamentosó esperam a repetição do mesmo apelo. Ora, há nessemecanismo uma associação por semelhança, já que apercepção presente age em virtude de sua similitude comas percepções passadas, e há aí também uma associaçãopor contigüidade, já que os movimentos consecutivos aessas percepções antigas se reproduzem, e podem inclu-sive arrastar consigo um número indefinido de ações coor-denadas à primeira. Percebemos portanto aqui, na suaorigem mesma e quase confundidas - não pensadas, cer-tamente, mas desempenhadas e vividas —, a associação porsemelhança e a associação por contigüidade. Estas não

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são, aí, formas contingentes de nossa vida psicológica.Representam os dois aspectos complementares de umaúnica e mesma tendência fundamental, a tendência de to-do organismo a extrair de uma situação dada o que elatem de útil, e a armazenar a reação eventual, sob a formade hábito motor, para fazê-la servir a situações do mesmotipo.

Transportemo-nos agora, de um salto, para a outraextremidade de nossa vida mental. Passemos, segundonosso método, da existência psicológica simplesmente"praticada" para aquela que seria exclusivamente "sonha-da". Coloquemo-nos, em outras palavras, sobre essa baseAB da memória (p. 190) em que se desenham em seus me-nores detalhes todos os acontecimentos de nossa vidatranscorrida. Uma consciência que, desligada da ação,mantivesse sob o olhar a totalidade de seu passado, nãoteria nenhuma razão para se fixar sobre uma parte dessepassado em vez de uma outra. Num certo sentido, todasas suas lembranças difeririam de sua percepção atual,pois, se as tomarmos com a multiplicidade de seus deta-lhes, duas lembranças não são jamais identicamente amesma coisa. Mas, num outro sentido, uma lembrançaqualquer poderia ser aproximada da situação presente:bastaria negligenciar, nessa percepção e nessa lembran-ça, suficientes detalhes para que apenas a semelhançaaparecesse. Aliás, uma vez ligada a lembrança à percep-ção, uma quantidade de acontecimentos contíguos à lem-brança se associaria ao mesmo tempo à percepção -quantidade indefinida, que só se limitaria no ponto em quese escolhesse detê-la. As necessidades da vida já nãodeterminam o efeito da semelhança e conseqüentemente

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da contigüidade, e, como no fundo tudo se assemelha, se-gue-se que tudo pode se associar. Há pouco, a percepçãoatual prolongava-se em movimentos determinados; agoraela se dissolve numa infinidade de lembranças igualmen-te possíveis. Em AB a associação provocaria portantouma escolha arbitrária, assim como em S um procedi-mento fatal.

Mas estes são apenas dois limites extremos em que opsicólogo deve se colocar alternadamente para a comodi-dade do estudo, e que, na verdade, jamais são atingidos.Não há, pelo menos no homem, um estado puramentesensório-motor, assim como não há vida imaginativa semum substrato de atividade vaga. Nossa vida psicológicanormal oscila, dizíamos, entre essas duas extremidades.De um lado, o estado sensório-motor S orienta a memó-ria, da qual, no fundo, é a extremidade atual e ativa; deoutro lado, essa própria memória, com a totalidade de nos-so passado, exerce uma pressão para diante a fim de inse-rir na ação presente a maior parte possível de si mesma.Desse duplo esforço resulta, a todo instante, uma quanti-dade indefinida de estados possíveis da memória, estadosfigurados pelos cortes A 'B'; A "B ", etc, de nosso esque-ma. Estes são, dizíamos, outras tantas repetições de nossavida passada inteira. Mas cada um desses cortes é maisou menos amplo, conforme se aproxime mais da base oudo vértice; além disso, cada uma dessas representaçõescompletas de nosso passado só traz à luz da consciênciaaquilo que pode se enquadrar no estado sensório-motor,conseqüentemente aquilo que se assemelha à percepçãopresente do ponto de vista da ação a cumprir. Em outraspalavras, a memória integral responde ao apelo de um

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estado presente através de dois movimentos simultâneos,um de translação, pelo qual ela se dirige por inteiro aoencontro da experiência e se contrai mais ou menos, semse dividir, em vista da ação, o outro de rotação sobre simesma, pelo qual se orienta para a situação do momentoa fim de apresentar-lhe a face mais útil. A esses diversosgraus de contração correspondem as formas variadas deassociação por semelhança.

Tudo se passa portanto como se nossas lembrançasfossem repetidas um número indefinido de vezes nessesmilhares e milhares de reduções possíveis de nossa vidapassada. Elas adquirem uma forma mais banal quando amemória se contrai, mais pessoal quando se dilata, e destemodo participam de uma quantidade ilimitada de "sistema-tizações" diferentes. Uma palavra de uma língua estran-geira, pronunciada a meu ouvido, pode fazer-me pensarnessa língua em geral ou em uma voz que a pronunciavaoutrora de uma certa maneira. Essas duas associações porsemelhança não se devem à chegada acidental de duasrepresentações diferentes que o acaso teria trazido suces-sivamente à esfera de atração da percepção atual. Elasrespondem a duas disposições mentais diversas, a doisgraus distintos de tensão da memória, aqui mais próximaà imagem pura, ali mais voltada à resposta imediata, ouseja, à ação. Classificar esses sistemas, buscar a lei queos vincula respectivamente aos diversos "tons" de nossavida mental, mostrar como cada um desses tons é elepróprio determinado pelas necessidades do momento etambém pelo grau variável de nosso esforço pessoal, seriaum empreendimento difícil: toda essa psicologia está ain-da por fazer, e não pretendemos, de momento, lançar-nos

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a isso. Mas cada um de nós percebe bem que essas leisexistem, e que há relações estáveis dessa natureza. Sabe-mos, por exemplo, quando lemos um romance de análisepsicológica, que certas associações de idéias que nos sãodescritas são verdadeiras, que elas puderam ser vividas;outras nos chocam ou não nos dão a impressão do real,porque percebemos nelas o efeito de uma aproximaçãomecânica entre níveis diferentes do espírito, como se oautor não tivesse sabido ater-se ao plano que escolhera davida mental. A memória, portanto, tem seus graus suces-sivos e distintos de tensão ou de vitalidade, difíceis dedefinir, certamente, mas que o pintor da alma não podemisturar entre si impunemente. A patologia aliás vemconfirmar aqui - através de exemplos grosseiros, é ver-dade - algo que sabemos instintivamente ser verdadeiro.Nas "amnésias sistematizadas" dos histéricos, por exem-plo, as lembranças que parecem abolidas encontram-serealmente presentes; mas todas elas estão ligadas a umcerto tom determinado de vitalidade intelectual, no qualo paciente não pode mais se colocar.

Se há assim planos diferentes, em número indefini-do, para a associação por semelhança, o mesmo acontececom a associação por contigüidade. No plano extremo querepresenta a base da memória, não há lembrança que nãoesteja ligada, por contigüidade, à totalidade dos aconteci-mentos que a precedem e também dos que a sucedem.No ponto em que se concentra nossa ação no espaço, aocontrário, a contigüidade só acarreta, sob forma de movi-mento, a reação imediatamente consecutiva a uma per-cepção semelhante anterior. Na realidade, toda associaçãopor contigüidade implica uma posição do espírito inter-

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mediaria entre esses dois limites extremos. Se supuser-mos, aqui também, uma infinidade de repetições possí-veis da totalidade de nossas lembranças, cada um dessesexemplares de nossa vida transcorrida será cortado, à suamaneira, em fatias determinadas, e o modo de divisão nãoserá o mesmo se passarmos de um exemplar a outro, por-que cada um deles é precisamente caracterizado pela na-tureza das lembranças dominantes, nas quais as outraslembranças se encostam como em pontos de apoio. Quan-to mais nos aproximarmos da ação, por exemplo, tantomais a contigüidade tenderá a participar da semelhança ea se distinguir assim de uma simples relação de sucessãocronológica: é deste modo que não saberíamos dizer daspalavras de uma língua estrangeira, quando elas se evo-cam umas às outras na memória, se há uma associaçãopor semelhança ou por contigüidade. Ao contrário, quantomais nos afastamos da ação real ou possível, tanto maisa associação por contigüidade tende a reproduzir pura esimplesmente as imagens consecutivas de nossa vida pas-sada. É impossível entrar aqui num estudo aprofundadodesses diversos sistemas. Será suficiente assinalar quetais sistemas não são formados de lembranças justapos-tas à maneira de átomos. Há sempre algumas lembrançasdominantes, verdadeiros pontos brilhantes em torno dosquais os outros formam uma vaga nebulosidade. Essespontos brilhantes multiplicam-se à medida que se dilatanossa memória. O processo de localização de uma lem-brança no passado, por exemplo, não consiste de maneiraalguma, como já se falou, em penetrar na massa de nos-sas lembranças como num saco, para retirar daí lembran-ças cada vez mais aproximadas, entre as quais irá apare-

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cer a lembrança a localizar. Por que feliz acaso colocaría-mos a mão justamente sobre um número crescente delembranças intercalares? O trabalho de localização con-siste, em realidade, num esforço crescente de expansão,através do qual a memória, sempre presente por inteironela mesma, estende suas lembranças sobre uma superfí-cie cada vez mais ampla e acaba por distinguir assim,num amontoado até então confuso, a lembrança que nãoencontrava seu lugar. Também aqui, por sinal, a patolo-gia da memória nos forneceria ensinamentos instrutivos.Na amnésia retrógrada, as lembranças que desaparecemda consciência são, ao que tudo indica, conservadas nosplanos extremos da memória, e o paciente poderá recu-perá-las por um esforço excepcional, como o que ocorreno estado de hipnotismo. Nos planos inferiores essaslembranças aguardavam, de certo modo, a imagem domi-nante na qual pudessem se encostar. Um choque brusco,uma emoção violenta, será o acontecimento decisivo aoqual elas se associarão: e se este acontecimento, em razãode seu caráter repentino, separar-se do resto de nossa his-tória, elas o acompanharão no esquecimento. Concebe-seportanto que o esquecimento consecutivo a um choque,físico ou moral, compreenda os acontecimentos imedia-tamente anteriores - fenômeno bastante difícil de expli-car em todas as outras concepções da memória. As-sinalemos de passagem: se nos recusarmos a atribuiralguma espera desse tipo às lembranças recentes, e mes-mo relativamente afastadas, o trabalho normal da memóriatornar-se-á ininteligível. Pois todo acontecimento cuja lem-brança se imprimiu na memória, por mais simples queseja, ocupou um certo tempo. As percepções que preen-

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cheram o primeiro período desse intervalo, e que formamagora com as percepções consecutivas uma lembrançaindivisa, estavam portanto verdadeiramente no "ar", en-quanto a parte decisiva do acontecimento ainda não haviase produzido. Entre o desaparecimento de uma lembran-ça com seus diversos detalhes preliminares e a abolição,pela amnésia retrógrada, de um número maior ou menorde lembranças anteriores a um acontecimento dado, existeportanto uma simples diferença de grau, e não de natureza.

Dessas diversas considerações sobre a vida mentalinferior decorreria uma certa concepção do equilíbriointelectual. Esse equilíbrio, evidentemente, só será alte-rado pela perturbação dos elementos que lhe servem debase. Não nos compete abordar aqui os problemas depatologia mental: não podemos todavia eludi-los com-pletamente, uma vez que buscamos determinar a relaçãoexata entre o corpo e o espírito.

Supusemos que o espírito percorria sem cessar o in-tervalo compreendido entre seus dois limites extremos, oplano da ação e o plano do sonho. Trata-se de uma deci-são a tomar? Reunindo, organizando a totalidade de suaexperiência naquilo que chamamos seu caráter, ele a faráconvergir para ações onde se verá, com o passado que lhesserve de base, a forma imprevista que a personalidadelhes imprime; mas a ação só será realizável se vier se en-quadrar na situação atual, ou seja, nesse conjunto de cir-cunstâncias que nasce de uma certa posição determinadado corpo no tempo e no espaço. Trata-se de um trabalhointelectual, de uma concepção a formar, de uma idéiamais ou menos geral a extrair da multiplicidade das lem-

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brancas? Uma grande margem é deixada à fantasia, de umlado, e ao discernimento lógico, de outro: mas a idéia,para ser viável, deverá tocar a realidade presente por algumlado, ou seja, deverá poder, gradativamente e por dimi-nuições ou contrações progressivas, ser mais ou menosdesempenhada pelo corpo ao mesmo tempo que repre-sentada pelo espírito. Nosso corpo, com as sensações querecebe de um lado e os movimentos que é capaz de exe-cutar de outro, é portanto aquilo que efetivamente fixanosso espírito, o que lhe proporciona a base e o equilíbrio.A atividade do espírito ultrapassa infinitamente a massadas lembranças acumuladas, assim como essa massa delembranças ultrapassa infinitamente as sensações e osmovimentos do momento presente; mas essas sensaçõese movimentos condicionam o que se poderia chamar deatenção à vida, e é por isso que tudo depende de sua coe-são no trabalho normal do espírito, como numa pirâmideque se equilibrasse sobre sua ponta.

Passemos os olhos, aliás, na fina estrutura do siste-ma nervoso, tal como a revelaram descobertas recentes.Acreditaremos ver por toda parte condutores, em nenhu-ma parte centros. Fios dispostos de uma ponta à outra ecujas extremidades se aproximam certamente quando acorrente passa, eis tudo o que se vê. E talvez seja tudo oque existe, se é verdade que o corpo não é mais que umlugar de encontro entre as excitações recebidas e os mo-vimentos efetuados, tal como supusemos ao longo de todoo nosso trabalho. Mas esses fios que recebem do meioexterior estímulos ou excitações e que os devolvem naforma de reações apropriadas, esses fios tão sabiamenteestendidos da periferia à periferia, asseguram justamen-

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te, pela firmeza de suas conexões e pela precisão de seusentrecruzamentos, o equilíbrio sensório-motor do corpo,isto é, sua adaptação à situação presente. Relaxe-se essatensão ou rompa-se esse equilíbrio: tudo se passará comose a atenção se separasse da vida. O sonho e a alienaçãonão parecem ser algo muito diferente.

Falávamos há pouco da recente hipótese que atribuio sono a uma interrupção da solidariedade entre neurô-nios. Mesmo se não aceitarmos essa hipótese (confirmadano entanto por curiosas experiências), seria preciso supordurante o sono profundo uma interrupção pelo menosfuncional da relação estabelecida no sistema nervosoentre a excitação e a reação motora. De sorte que o sonhoseria sempre o estado de um espírito cuja atenção não éfixada pelo equilíbrio sensório-motor do corpo. E parececada vez mais provável que essa distensão do sistemanervoso se deva à intoxicação de seus elementos pelosprodutos não eliminados de sua atividade normal no es-tado de vigília. Ora, o sonho imita perfeitamente a aliena-ção. Não apenas todos os sintomas psicológicos da lou-cura se encontram no sonho - a ponto de a comparaçãodesses dois estados ter se tornado banal -, como a aliena-ção parece igualmente originar-se de um esgotamentocerebral, o qual seria causado, a exemplo da fadiga nor-mal, pela acumulação de certos venenos específicos noselementos do sistema nervoso4. Sabe-se que a alienação

4. Essa idéia foi desenvolvida recentemente por vários autores.Uma exposição bastante sistemática poderá ser encontrada no trabalho deCowles, "The Mecanism of Insanity" (American Journal of Insanity,1890-91).

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segue-se freqüentemente às doenças infecciosas, e é pos-sível aliás reproduzir experimentalmente com tóxicos to-dos os fenômenos da loucura5. Não é verossímil, portanto,que a ruptura do equilíbrio mental na alienação se devasimplesmente a uma perturbação das relações sensório-motoras estabelecidas no organismo? Essa perturbaçãoseria suficiente para criar uma espécie de vertigem psí-quica, fazendo assim com que a memória e a atenção per-dessem contato com a realidade. Leiam-se as descriçõesfeitas por alguns loucos de sua doença nascente: ver-se-áque eles experimentam muitas vezes um sentimento deestranheza ou, como dizem, de "não-realidade", como seas coisas percebidas perdessem para eles seu relevo e suasolidez6. Se nossas análises são exatas, o sentimento con-creto que temos da realidade presente consistiria, comefeito, na consciência que tomamos dos movimentos efe-tivos pelos quais nosso organismo responde naturalmen-te às excitações; - de sorte que quando as relações seenfraquecem ou se deterioram entre sensações e movi-mentos o sentido do real debilita-se ou desaparece7.

Haveria aqui, aliás, uma série de distinções a fazer,não apenas entre as diversas formas de alienação, mastambém entre a alienação propriamente dita e as cisõesda personalidade que uma psicologia recente aproximoude forma bastante curiosa à primeira8. Nessas doenças da

5. Ver sobretudo Moreau de Tours, Du hachisch, Paris, 1845.6. Bali, Leçons sur les maladies mentales, Paris, 1890, pp. 608 ss. -

Cf. uma análise bastante curiosa: "Visions, a Personal Narrative" (Journalof Mental Science, 1896, p. 284).

7. Ver antes, p. 162.8. Pierre Janet, Les accidents mentaux, Paris, 1894, pp. 292 ss.

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personalidade parece que grupos de lembranças sepa-ram-se da memória central e renunciam à sua solidarie-dade com as outras. Mas é raro que não se observemtambém cisões concomitantes da sensibilidade e da mo-tricidade9. É-nos impossível deixar de ver nesses últimosfenômenos o verdadeiro substrato material dos primei-ros. Se é verdade que nossa vida intelectual repousa porinteiro sobre sua ponta, isto é, sobre as funções sensório-motoras pelas quais se insere na realidade presente, oequilíbrio intelectual será diversamente perturbado con-forme essas funções sejam lesadas de uma maneira ou deoutra. Ora, ao lado das lesões que afetam a vitalidadegeral das funções sensório-motoras, debilitando ou abo-lindo o que chamamos de sentido do real, há outras quese traduzem por uma diminuição mecânica, e não maisdinâmica, dessas funções, como se certas conexões sen-sório-motoras se separassem pura e simplesmente das ou-tras. Se nossa hipótese for correta, a memória será atin-gida de maneira bem diversa nos dois casos. No primei-ro, nenhuma lembrança será separada, mas todas estarãomenos apoiadas, menos solidamente orientadas para oreal, donde uma ruptura verdadeira do equilíbrio mental.No segundo, o equilíbrio não será rompido, mas perderásua complexidade. As lembranças conservarão seu aspec-to normal, mas renunciarão em parte à sua solidariedade,porque sua base sensório-motora, em vez de ser, por as-sim dizer, quimicamente alterada, será mecanicamentediminuída. Em nenhum dos dois casos, aliás, as lembran-ças serão diretamente atingidas ou lesadas.

9. Pierre Janet, L 'automatisme psychologique, Paris, 1889, pp. 95 ss.

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A idéia de que o corpo conserva lembranças na for-ma de dispositivos cerebrais, de que as perdas e as dimi-nuições da memória consistem na destruição mais ou me-nos completa desses mecanismos, enquanto a exaltaçãoda memória e a alucinação seriam ao contrário um exa-gero de sua atividade, não é confirmada portanto nempelo raciocínio nem pelos fatos. Na verdade existe ape-nas um caso, um único, em que a observação pareceriainicialmente sugerir tal idéia: referimo-nos à afasia ou,de maneira mais geral, aos distúrbios do reconhecimentoauditivo e visual. É o único caso em que se pode atribuirà doença uma localização constante numa circunvoluçãodeterminada do cérebro; mas é também precisamente ocaso em que não verificamos a supressão mecânica e ime-diatamente definitiva de tais e tais lembranças, mas anteso enfraquecimento gradual e funcional do conjunto damemória interessada. E já explicamos de que modo a lesãocerebral podia ocasionar esse enfraquecimento, sem queseja preciso supor de maneira alguma uma provisão delembranças acumuladas no cérebro. O que realmente éatingido são as regiões sensoriais e motoras corresponden-tes a esse tipo de percepção, e sobretudo os anexos quepermitem acioná-las interiormente, de sorte que a lem-brança, não achando mais a que se prender, acaba por tor-nar-se praticamente impotente: ora, em psicologia impo-tência significa inconsciência. Em todos os outros casos,a lesão observada ou suposta, jamais claramente locali-zada, age através da perturbação que transmite ao con-junto das conexões sensório-motoras, seja por alterar es-sa massa, seja por fragmentá-la: daí uma ruptura ou umasimplificação do equilíbrio mental e, por tabela, a desor-

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dem ou a disjunção das lembranças. A doutrina que fazda memória uma função imediata do cérebro, doutrinaque levanta dificuldades teóricas insolúveis, doutrina cujacomplicação desafia toda imaginação e cujos resultadossão incompatíveis com os dados da observação interior,não pode portanto contar sequer com o apoio da patolo-gia cerebral. Todos os fatos e todas as analogias estão afavor de uma teoria que veria no cérebro apenas um in-termediário entre as sensações e os movimentos, que fariadesse conjunto de sensações e movimentos a ponta extre-ma da vida mental, ponta incessantemente inserida notecido dos acontecimentos, e que, atribuindo assim ao cor-po a única função de orientar a memória para o real e deligá-la ao presente, consideraria essa própria memóriacomo absolutamente independente da matéria. Neste sen-tido o cérebro contribui para chamar de volta a lembran-ça útil, porém mais ainda para afastar provisoriamentetodas as outras. Não vemos de que modo a memória sealojaria na matéria; mas compreendemos bem - conformea observação profunda de um filósofo contemporâneo -que "a materialidade ponha em nós o esquecimento"10.

10. Ravaisson, La philosophie en France au XIXe siècle, 3? edição,p. 176.

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CAPITULO IVDA DELIMITAÇÃO E DA FIXAÇÃODAS IMAGENS. PERCEPÇÃOE MATÉRIA. ALMA E CORPO

Uma conclusão geral decorre dos três primeiros ca-pítulos deste livro: a de que o corpo, sempre orientadopara a ação, tem por função essencial limitar, em vista daação, a vida do espírito. Com relação às representações, eleé um instrumento de seleção, e de seleção apenas. Nãopoderia nem engendrar nem ocasionar um estado intelec-tual. No que diz respeito à percepção, nosso corpo, pelolugar que ocupa a todo instante no universo, marca aspartes e os aspectos da matéria sobre os quais teríamosação: a percepção, que mede justamente nossa ação virtualsobre as coisas, limita-se assim aos objetos que influen-ciam atualmente nossos órgãos e preparam nossos movi-mentos. No que diz respeito à memória, o papel do corponão é armazenar as lembranças, mas simplesmente esco-lher, para trazê-la à consciência distinta graças à eficáciareal que lhe confere, a lembrança útil, aquela que com-pletará e esclarecerá a situação presente em vista da açãofinal. É verdade que esta segunda seleção é bem menosrigorosa que a primeira, porque nossa experiência passa-

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da é uma experiência individual e não mais comum, porquetemos sempre muitas lembranças diferentes capazes dese ajustarem igualmente a uma mesma situação atual, etambém porque a natureza não pode ter aqui, como no casoda percepção, uma regra inflexível para delimitar nossasrepresentações. Uma certa margem é portanto necessa-riamente deixada desta vez à fantasia; e, se os animaisnão se aproveitam muito dela, cativos que são da neces-sidade material, parece que o espírito humano, ao contrá-rio, lança-se a todo instante com a totalidade de suamemória de encontro à porta que o corpo lhe irá entrea-brir: daí os jogos da fantasia e o trabalho da imaginação- liberdades que o espírito toma com a natureza. É ver-dade que mesmo assim a orientação de nossa consciênciapara a ação parece ser a lei fundamental de nossa vidapsicológica.

Poderíamos a rigor deter-nos aqui, pois era para de-finir o papel do corpo na vida do espírito que havíamosempreendido este trabalho. Mas, por um lado, durante ocaminho levantamos um problema metafísico que julga-mos não poder ser deixado em suspenso, e, por outro, nos-sas pesquisas, embora sobretudo psicológicas, em diversosmomentos deixaram entrever, senão um meio de resolvero problema, pelo menos um lado por onde abordá-lo.

Esse problema é nada menos que o da união da almaao corpo. Ele coloca-se para nós de uma forma aguda,porque distinguimos profundamente a matéria do espíri-to. E não podemos tomá-lo por insolúvel, pois definimosespírito e matéria por caracteres positivos, e não por ne-gações. É verdadeiramente na^matéria que a percepçãopura nos colocaria,, ^efetivamente no espírito que pene-

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traríamos já com a memória. Além disso, a mesma obser-vação psicológica que nos revelou a distinção da matériae do espírito nos faz ver sua união. Portanto, ou nossasanálises comportam um vício original, ou elas devemajudar-nos a sair das dificuldades que levantam.

A obscuridade do problema, em todas as doutrinas,deve-se à dupla antítese que nosso entendimento estabe-lece entre o extenso e o inextenso, de um lado, a qualida-de e a quantidade, de outro. É incontestável que o espíritose opõe inicialmente à matéria como uma unidade pura seopõe a uma multiplicidade essencialmente divisível, quealém disso nossas percepções se compõem de qualidadesheterogêneas enquanto o universo percebido parece de-ver resolver-se em mudanças homogêneas e calculáveis.Haveria portanto a inextensão e a qualidade de um lado,a extensão e a quantidade de outro. Repudiamos o mate-rialismo, que pretende fazer derivar o primeiro termo dosegundo; mas não aceitamos também o idealismo, quedeseja que o segundo seja simplesmente uma construçãodo primeiro. Sustentamos contra o materialismo que apercepção supera infinitamente o estado cerebral; mas pro-curamos estabelecer contra o idealismo que a matéria ul-trapassa por todos os lados a representação que temos dela,representação que o espírito, por assim dizer, colheu aíatravés de uma escolha inteligente. Dessas duas doutrinasopostas, uma atribui ao corpo e a outra ao espírito um domde criação verdadeira, a primeira querendo que nosso cé-rebro engendre a representação e a segunda que nossoentendimento desenhe o plano da natureza. E contra essasduas doutrinas invocamos o mesmo testemunho, o da cons-ciência, que nos mostra em nosso corpo uma imagem como

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as outras, e em nosso entendimento uma certa faculdadede dissociar, de distinguir e de opor logicamente, mas nãode criar ou de construir. Assim, prisioneiros voluntários daanálise psicológica e conseqüentemente do senso comum,parece que fechamos, após ter exasperado os conflitosque o dualismo vulgar levanta, todas as saídas que a me-tafísica podia nos abrir.

Mas, justamente porque levamos o dualismo ao ex-tremo, nossa análise talvez tenha dissociado seus ele-mentos contraditórios. A teoria da percepção pura de umlado, da memória pura de outro, prepararia então o cami-nho para uma reaproximação entre o inextenso e o extenso,entre a qualidade e a quantidade.

No que concerne à percepção pura, ao fazer do esta-do cerebral o começo de uma ação e não a condição deuma percepção, lançávamos as imagens percebidas dascoisas fora da imagem de nosso corpo; recolocávamosportanto a percepção nas próprias coisas. Mas com isso,nossa percepção fazendo parte das coisas, as coisas par-ticipam da natureza de nossa percepção. A extensão mate-rial não é mais, não pode ser mais essa extensão múltiplade que fala o geômetra; ela assemelha-se, antes, à exten-são indivisa de nossa representação. Eqüivale a dizer quea análise da percepção pura nos deixou entrever na idéiade extensão uma reaproximação possível entre o extensoe o inextenso.

Por uma via paralela, nossa concepção da memóriapura deveria levar a atenuar a segunda oposição, entre aqualidade e a quantidade. Separamos radicalmente, comefeito, a lembrança pura do estado cerebral que a prolongae a torna eficaz. A memória portanto não é, emjienhum

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grau, uma emanação da matéria; muito pelo contrário, amatéria, tal como a captamos numa percepção concreta queocupa sempre uma certa duração, deriva em grande parteda memória. Ora, onde está exatamente a diferença entreas qualidades heterogêneas que se sucedem em nossapercepção concreta e as mudanças homogêneas que a ciên-cia coloca por trás dessas percepções no espaço? As pri-meiras são descontínuas e não podem ser deduzidas umasdas outras; as segundas, ao contrário, prestam-se ao cál-culo. Mas, porque se prestam a isso, não há necessidadede fazer delas quantidades puras: eqüivaleria a reduzi-lasao nada. Basta que sua heterogeneidade seja suficiente-mente diluída, de certo modo, para tornar-se, de nossoponto de vista, praticamente negligenciável. Ora, se todapercepção concreta, por mais breve que a suponhamos, jáé a síntese, pela memória, de uma infinidade de "percep-ções puras" que se sucedem, não devemos pensar que aheterogeneidade das qualidades sensíveis tem a ver comsua contração em nossa memória, e a homogeneidaderelativa das mudanças objetivas com seu relaxamento na-tural? E o intervalo da quantidade à qualidade não pode-ria então ser diminuído por considerações de tensão,assim como a distância do extenso ao inextenso por con-siderações de extensão?

Antes de nos lançarmos nesse caminho, formulemoso princípio geral do método que gostaríamos de aplicar.Já fizemos uso dele num trabalho anterior, e mesmo, im-plicitamente, no presente trabalho.

O que chamamos ordinariamente um fato não é a rea-lidade tal como apareceria a uma intuição imediata, masuma adaptação do real aos interesses da prática e às ex>

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gências da yida_spçial. A intuição pura, exterior ou interna,é a de uma continuidade indivisa. Nós a fracionamos emelementos justapostos, que correspondem, aqui a pala-vras distintas, ali a objetos independentes. Mas, justamen-te porque rompemos assim a unidade de nossa intuiçãooriginal, sentimo-nos obrigados a estabelecer entre ostermos disjuntos um vínculo, que já não poderá ser senãoexterior e sobreposto. À unidade viva, nascida da conti-nuidade interior, substituímos a unidade factícia de umamoldura vazia, inerte como os termos que ela mantémunidos. Empirismo e dogmatismo concordam, no fundo,em partir dos fenômenos assim reconstituídos, e diferemapenas no fato de o dogmatismo prender-se mais à forma,o empirismo à matéria. O empirismo, com efeito, perce-bendo vagamente o que há de artificial nas relações queunem os termos entre si, atém-se aos termos e negligen-cia as relações. Seu erro não consiste em dar demasiadovalor à experiência, mas ao contrário em substituir a ex-periência verdadeira, aquela que nasce do contato ime-diato do espírito com seu objeto, por uma experiênciadesarticulada e portanto certamente desnaturada, em todocaso arranjada para a maior facilidade da ação e da lin-guagem. Justamente porque essa fragmentação do real seoperou em vista das exigências da vida prática, ela nãoacompanhou as linhas interiores da estrutura das coisas:por isso o empirismo é incapaz de satisfazer o espíritoem qualquer um dos grandes problemas, e inclusive, quan-do chega à plena consciência de seu princípio, abstém-sede colocá-los. - O dogmatismo descobre e resgata as di-ficuldades para as quais o empirismo fecha os olhos; mas,para falar a verdade, busca sua solução no caminho que

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o empirismo traçou. Também ele aceita esses fenômenosdesligados, descontínuos, com os quais o empirismo secontenta, e esforça-se apenas em fazer uma síntese que,não tendo sido dada numa intuição, terá sempre necessa-riamente uma forma arbitrária. Em outras palavras, se ametafísica não é mais que uma construção, há várias me-tafísicas igualmente verossímeis, que se refutam conse-qüentemente umas às outras, e a última palavra caberá auma filosofia crítica que toma todo conhecimento porrelativo e o âmago das coisas por inacessível ao espírito.Tal é, com efeito, a marcha regular do pensamento filo-sófico: partimos daquilo que acreditamos ser a experiên-cia, procuramos diversos arranjos possíveis entre os frag-mentos que a compõem aparentemente, e, diante da fra-gilidade reconhecida de todas as nossas construções, aca-bamos por renunciar a construir. - Mas haveria um últi-mo empreendimento a tentar. Seria ir buscar a experiênciaem sua fonte, ou melhor, acima dessa virada decisiva emque ela, infletindo-se no sentido de nossa utilidade, torna-sepropriamente experiência humana. A impotência da razãoespeculativa, tal como Kant a demonstrou, talvez não seja,no fundo, senão a impotência de uma inteligência sub-metida a certas necessidades da vida corporal e exercen-do-se sobre uma matéria que foi preciso desorganizarpara a satisfação de nossas necessidades. Nosso conheci-mento das coisas já não seria então relativo à estruturafundamental de nosso espírito, mas somente a seus hábitossuperficiais e adquiridos, à forma contingente que de-pende de nossas funções corporais e nossas necessidadesinferiores. A relatividade do conhecimento não seria por-tanto definitiva. Desfazendo o que essas necessidades

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fizeram, restabeleceríamos a intuição em sua pureza pri-meira e retomaríamos contato com o real.

Esse método apresenta, na aplicação, dificuldadesconsideráveis e que não cessam de renascer, porque eleexige, para a solução de cada novo problema, um esforçointeiramente novo. Renunciar a certos hábitos de pensare mesmo de perceber já é difícil: mas esta é só a parte ne-gativa do trabalho a ser feito; e, quando a fizemos, quan-do nos colocamos naquilo que chamávamos a virada daexperiência, quando aproveitamos a nascente claridadeque, ao iluminar a passagem do imediato ao útil, dá iní-cio à aurora de nossa experiência humana, resta ainda re-constituir, com os elementos infinitamente pequenos quepercebemos da curva real, a forma da própria curva quese estende na obscuridade atrás deles. Neste sentido, atarefa do filósofo, tal como a entendemos, assemelha-seem muito à do matemático que determina uma função par-tindo da diferencial. O procedimento extremo da pesqui-sa filosófica é um verdadeiro trabalho de integração.

Tentamos outrora a aplicação desse método ao pro-blema da consciência, e nos pareceu que o trabalho utilitá-rio do espírito, no que concerne à percepção de nossa vidainterior, consistia numa espécie de refração da duraçãopura através do espaço, refração que nos permite separarnossos estados psicológicos, conduzi-los a uma forma cadavez mais impessoal, impor-lhes nomes, enfim, fazê-losentrar na corrente da vida social. Empirismo e dogmatis-mo tomam os estados interiores sob essa forma descontí-nua, o primeiro atendo-se aos próprios estados para verno eu apenas uma seqüência de fatos justapostos, o outrocompreendendo a necessidade de um vínculo, mas já não

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podendo achar esse vínculo senão em uma forma ou emuma força - forma exterior onde o agregado se inseriria,força indeterminada e, por assim dizer, física, que garan-tiria a coesão dos elementos. Daí os dois pontos de vistaopostos sobre a questão da liberdade: para o determinis-mo, o ato é a resultante de uma composição mecânicados elementos entre si; para seus adversários, se estives-sem rigorosamente de acordo com seu princípio, a deci-são livre deveria ser um fiat arbitrário, uma verdadeiracriação ex nihilo. - Pensamos que haveria um terceiro par-tido a tomar. Seria colocarmo-nos na duração pura, cujodecorrer é contínuo, e onde passamos, por gradações in-sensíveis, de um estado a outro: continuidade realmentevivida, mas artificialmente decomposta para a maior co-modidade do conhecimento usual. Então acreditamos vera ação sair de seus antecedentes por uma evolução suigeneris, de tal sorte que encontramos nessa ação os ante-cedentes que a explicam, e no entanto ela acrescenta aíalgo de absolutamente novo, estando em desenvolvimen-to neles como o fruto na flor. A liberdade não é de modoalgum reconduzida por isso, como se disse, à espontanei-dade sensível. Quando muito seria assim no animal, cujavida psicológica é sobretudo afetiva. Mas no homem, serpensante, o ato livre pode ser chamado uma síntese desentimentos e de idéias, e a evolução que conduz a isso,uma evolução racional. O artifício desse método consistesimplesmente, em suma, em distinguir o ponto de vista doconhecimento usual ou útil e o do conhecimento verda-deiro. A duração em que nos vemos agir, e em que é útilque nos vejamos, é uma duração cujos elementos se dis-sociam e se justapõem; mas a duração em que agimos é

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uma duração na qual nossos estudos se fundem uns nosoutros, e é lá que devemos fazer um esforço para nos colo-car pelo pensamento no caso excepcional e único em queespeculamos sobre a natureza íntima da ação, ou seja, nateoria da liberdade.

Um método desse tipo será aplicável ao problema damatéria? A questão é saber se, nessa "diversidade dos fe-nômenos" de que falou Kant, a massa confusa com ten-dência extensiva poderia ser apreendida aquém do espaçohomogêneo sobre o qual ela se aplica e por intermédiodo qual a subdividimos - do mesmo modo que nossa vidainterior é capaz de se desligar do tempo indefinido e va-zio para voltar a ser duração pura. Certamente, seria umempreendimento quimérico querer libertar-se das condi-ções fundamentais da percepção exterior. Mas a questãoé saber se certas condições, que tomamos geralmente porfundamentais, não concerniriam ao uso a fazer das coisas,à vantagem prática que nos proporcionam, bem mais doque ao conhecimento puro que podemos ter delas. Maisparticularmente, no que se refere à extensão concreta, con-tínua, diversificada e ao mesmo tempo organizada, pode-secontestar que ela seja solidária ao espaço amorfo e iner-te que a subtende, espaço que dividimos indefinidamente,onde separamos figuras arbitrariamente, e onde o própriomovimento, conforme dizíamos em outra parte, só podeaparecer como uma multiplicidade de posições instantâ-neas, já que nada poderia assegurar nele a coesão do pas-sado e do presente. Seria possível portanto, numa certamedida, libertar-se do espaço sem sair da extensão, e ha-veria efetivamente aí um retorno ao imediato, uma vezque percebemos de fato a extensão, enquanto não fazemos

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mais que conceber o espaço à maneira de um esquema.Censurar-se-á este método por atribuir arbitrariamenteao conhecimento imediato um valor privilegiado? Masque razões teríamos para duvidar de um conhecimento?A própria idéia de duvidar por acaso nos viria sem asdificuldades e as contradições que a reflexão assinala, semos problemas que a filosofia coloca? E o conhecimentoimediato não encontraria então nele mesmo sua justifica-ção e sua prova, se pudéssemos estabelecer que essasdificuldades, essas contradições, esses problemas nascemsobretudo da figuração simbólica que recobre tal conhe-cimento, figuração que se tornou para nós a própria rea-lidade, e cuja espessura só pode ser atravessada por umesforço intenso, excepcional?

Escolhemos a seguir, dentre os resultados a que aaplicação desse método pode conduzir, aqueles que inte-ressam nossa pesquisa. Iremos nos contentar aliás comindicações; é impossível tratar de construir aqui uma teo-ria da matéria.

I. Todo movimento, enquanto passagem de um repou-so a um repouso, é absolutamente indivisível.

Não se trata aqui de uma hipótese, mas de um fato,geralmente recoberto por uma hipótese.

Eis por exemplo minha mão colocada no ponto A.Transporto-a para o ponto B, percorrendo num únicogesto o intervalo. Há nesse movimento, ao mesmo tempo,uma imagem que impressiona minha visão e um ato queminha consciência muscular percebe. Minha consciênciame dá a sensação interior de um fato simples, pois em Aestava o repouso, em B está também o repouso, e entre

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A e B coloca-se um ato indivisível ou pelo menos indivi-so, passagem do repouso ao repouso, que é o própriomovimento. Mas minha visão percebe o movimento naforma de uma linha AB que é percorrida, e essa linha,como todo espaço, é indefinidamente decomponível.Portanto, parece inicialmente possível, como pretendo,tomar esse movimento por múltiplo ou por indivisível,conforme eu o considere no espaço ou no tempo, comouma imagem que se desenha fora de mim ou como umato que eu mesmo realizo.

Todavia, afastando toda idéia preconcebida, perceborapidamente que não tenho escolha, que minha própriavisão capta o movimento de A a B como um todo indivi-sível, e que, se ela divide alguma coisa, é a linha supos-tamente percorrida e não o movimento que a percorre. Ébem verdade que minha mão vai de A a B sem atravessaras posições intermediárias, e que esses pontos interme-diários assemelham-se a etapas, tão numerosas quanto sequiser, dispostas ao longo do trajeto; mas há entre asdivisões assim marcadas e etapas propriamente ditas adiferença capital de que em uma etapa nos detemos,enquanto aqui o móvel passa. Ora, a passagem é ummovimento, e a detenção uma imobilidade. A detençãointerrompe o movimento; a passagem identifica-se como próprio movimento. Quando vejo o móvel passar numponto, concebo certamente que ele possa se deter nele; e,ainda que não s*e detenha, tendo a considerar sua passagemcomo um repouso infinitamente curto, porque necessitopelo menos do tempo para pensar nele; mas é apenasminha imaginação que repousa aqui, e o papel do móvel,ao contrário, é se mover. Todo ponto do espaço aparecen-

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do-me necessariamente como fixo, tenho muita dificulda-de em não atribuir ao próprio móvel a mobilidade doponto com o qual por um momento eu o faço coincidir;parece-me então, quando reconstituo o movimento total,que o móvel estacionou por um tempo infinitamente curtoem todos os pontos de sua trajetória. Mas convém nãoconfundir os dados dos sentidos, que percebem o movi-mento, com os artifícios do espírito que o recompõe. Ossentidos, entregues a si mesmos, apresentam-nos o movi-mento real, entre duas detenções reais, como um todo sóli-do e indiviso. A divisão é obra da imaginação, que temjustamente por função fixar as imagens moventes de nossaexperiência ordinária, como o relâmpago instantâneo queilumina durante a noite uma cena de tempestade.

Captamos aqui, em seu próprio princípio, a ilusãoque acompanha e recobre a percepção do movimento real.O movimento consiste visivelmente em passar de um pon-to a outro, e por conseqüência em atravessar o espaço.Ora, o espaço atravessado é divisível ao infinito, e, comoo movimento se aplica, por assim dizer, ao longo da linhaque percorre, ele parece solidário a essa linha e divisívelcomo ela. Não foi ele próprio que a desenhou? Não atra-vessou ele, um após outro, os pontos sucessivos e justa-postos? Sim, certamente, mas esses pontos só têm reali-dade numa linha traçada, isto é, imóvel; e somente porquevocê se representa o movimento, sucessivamente, nessesdiferentes pontos, é que você o detém necessariamenteneles; suas posições sucessivas são, no fundo, apenasdetenções imaginárias. Você substitui o trajeto pela traje-tória e, porque o trajeto está subtendido pela trajetória,você acredita que ambos coincidem. Mas de que modo

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um progresso coincidiria com uma coisa, um movimentocom uma imobilidade?

O que facilita aqui a ilusão é que distinguimos mo-mentos no curso da duração, assim como posições notrajeto do móvel. A supor que o movimento de um pontoa outro forme um todo indiviso, esse movimento aindaassim leva um tempo determinado, e basta que se isoledessa duração um instante indivisível para que o móvelocupe nesse momento preciso uma certa posição, que sedestaca assim de todas as outras. A indivisibilidade domovimento implica portanto a impossibilidade do instante,e uma análise muito sumária da idéia de duração irá comefeito nos mostrar, ao mesmo tempo, por que atribuímosinstantes à duração, e como ela não poderia tê-los. Sejaum movimento simples, como o trajeto de minha mão sedeslocar de A a B. Esse trajeto é dado à minha consciên-cia como um todo indiviso. Ele dura, certamente; massua duração, que coincide aliás com o aspecto interiorque adquire para minha consciência, é compacta e indi-visa como ele. Ora, na medida em que se apresenta, en-quanto movimento, como um fato simples, ele descreveno espaço uma trajetória que posso considerar, para sim-plificar as coisas, como uma linha geométrica; e as extre-midades dessa linha, enquanto limites abstratos, já nãosão linhas, mas pontos indivisíveis. Ora, se a linha que omóvel descreveu mede para mim a duração de seu movi-mento, como o ponto onde a linha termina não haveria desimbolizar uma extremidade dessa duração? E se esseponto é um indivisível de comprimento, como não termi-nar a duração do trajeto por um indivisível de duração?A linha total representando a duração total, as partes dessa

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linha devem corresponder, parece, a partes da duração, eos pontos da linha a momentos do tempo. Os indivisíveisde duração ou momentos do tempo nascem portanto deuma necessidade de simetria; chega-se naturalmente aeles desde que se peça ao espaço uma representação inte-gral da duração. Mas eis precisamente o erro. Se a linhaAB simboliza a duração decorrida do movimento efetua-do de A a B, ela não pode de maneira alguma, sendo imó-vel, representar o movimento que se efetua, a duraçãoque decorre; e, do fato de que essa linha seja divisível empartes, e de que ela termine por pontos, não se deve con-cluir nem que a duração correspondente se componha departes separadas, nem que ela seja limitada por instantes.

Os argumentos de Zenão de Eléia não têm outra ori-gem senão essa ilusão. Todos consistem em fazer coinci-dir o tempo e o movimento com a linha que os subtende,em atribuir-lhes as mesmas subdivisões, enfim, em tratá-loscomo linha. A essa confusão Zenão era encorajado pelosenso comum, que transporta geralmente ao movimentoas propriedades de sua trajetória, e também pela lingua-gem, que traduz sempre em espaço o movimento e a du-ração. Mas o senso comum e a linguagem estão aqui emseu direito, e inclusive cumprem, de certo modo, seu dever,pois, considerando sempre o devir como uma coisa utili-zável, eles não têm por que se inquietar mais com a orga-nização interior do movimento do que o operário com aestrutura molecular de suas ferramentas. Ao tomar o mo-vimento por divisível como sua trajetória, o senso comumexprime apenas os dois únicos fatos que importam navida prática: 1) que todo movimento descreve um espaço;2) que em cada ponto desse espaço o móvel poderia se

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deter. Mas o filósofo que reflete sobre a natureza íntimado movimento é obrigado a restituir-lhe a mobilidade queé sua essência, e é isto que Zenão não faz. Pelo primeiroargumento (a Dicotomia) supõe-se o móvel em repouso,para a seguir só considerar etapas, em número indefini-do, sobre a linha que deve percorrer: você buscaria emvão, dizem-nos, a maneira como ele conseguiria transporo intervalo. Mas com isso prova-se simplesmente que éimpossível construir a priori o movimento com imobili-dades, e disso jamais alguém duvidou. A única questão ésaber se, o movimento sendo dado como um fato, há umabsurdo de certo modo retrospectivo em conceber queum número infinito de pontos tenha sido percorrido. Masvemos aí algo muito natural, já que o movimento é umfato indiviso ou uma seqüência de fatos indivisos, enquan-to a trajetória é indefinidamente divisível. No segundoargumento (o Aquiles), consente-se em se dar o movi-mento; ele é atribuído inclusive a dois móveis, mas, semprepelo mesmo erro, deseja-se que esses movimentos coin-cidam com sua trajetória e sejam, como ela, arbitraria-mente decomponíveis. Então, em vez de reconhecer quea tartaruga dá passos de tartaruga e Aquiles passos deAquiles, de modo que após um certo número desses atosou saltos indivisíveis Aquiles terá ultrapassado a tartaruga,Zenão acredita-se no direito de desarticular à vontade omovimento de Aquiles e o movimento da tartaruga: di-verte-se assim em reconstruir os dois movimentos segun-do uma lei de formação arbitrária, incompatível com ascondições fundamentais da mobilidade. O mesmo sofis-ma aparece mais claramente no terceiro argumento (a Fle-cha), que consiste em concluir, do fato de podermos fixar

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pontos sobre a trajetória de um projétil, que se tem o di-reito de distinguir momentos indivisíveis na duração dotrajeto. Mas o mais instrutivo dos argumentos de Zenão étalvez o quarto (o Estádio), que acreditamos ter sido muitoinjustamente desdenhado, e cujo absurdo só é mais mani-festo porque nele se expõe com toda a franqueza o postu-lado dissimulado nos outros três1. Sem entrar aqui numadiscussão que estaria fora de lugar, limitemo-nos a cons-tatar que o movimento imediatamente percebido é um fato

1. Recordemos brevemente esse argumento. Seja um móvel que sedesloca com uma certa velocidade e que passa simultaneamente diante dedois corpos, um deles imóvel e o outro movendo-se a seu encontro com amesma velocidade que ele. Ao mesmo tempo que o móvel percorre umcerto comprimento do primeiro corpo, ele transpõe naturalmente umcomprimento duplo do segundo. Donde Zenão conclui "que uma duraçãoé o dobro dela mesma". - Raciocínio pueril, dizem, pois Zenão não levaem conta que a velocidade é o dobro, num caso, do que é no outro. -Certo. Mas de que modo, pergunto, ele poderia perceber isso? Que, aomesmo tempo, um móvel percorra comprimentos diferentes de dois cor-pos, um estando em repouso e outro em movimento, isto é claro paraquem faz da duração uma espécie de absoluto, e a coloca seja na cons-ciência, seja em algo que participa da consciência. Enquanto uma porçãodeterminada dessa duração consciente ou absoluta transcorre, com efeito,o mesmo móvel percorreu, ao longo dos dois corpos, dois espaços, um odobro do outro, sem que se possa concluir daí que uma duração é o dobrodela mesma, uma vez que a duração permanece algo independente de ume de outro espaço. Mas o erro de Zenão, em toda a sua argumentação, éjustamente deixar de lado a duração verdadeira para considerar apenas seutraço objetivo no espaço. Como é que os dois traços deixados pelo mesmomóvel não mereceriam então uma igual consideração, enquanto medidasda duração? E como não representariam a mesma duração, ainda que fos-sem o dobro um do outro? Concluindo daí que uma duração "é o dobrodela mesma", Zenão permanecia na lógica de sua hipótese, e seu quartoargumento vale exatamente tanto quanto os outros três.

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muito claro, e que as dificuldades ou contradições assina-ladas pela escola de Eléia concernem muito menos ao mo-vimento propriamente do que a uma reorganização artifi-cial, e não viável, do movimento pelo espírito. Tiremosaliás a conclusão de tudo o que precede:

II. Há movimentos reais.O matemático, exprimindo com mais precisão uma

idéia do senso comum, define a posição pela distância apontos de referência ou a eixos, e o movimento pela va-riação da distância. Ele não conhece portanto do movimen-to a não ser mudanças de comprimento; e, como os valoresabsolutos da distância variável entre um ponto e um eixo,por exemplo, exprimem tanto o deslocamento do eixo emrelação ao ponto como o do ponto em relação ao eixo,ele atribuirá indiferentemente ao mesmo ponto o repou-so ou a mobilidade. Se o movimento se reduz portanto auma mudança de distância, o mesmo objeto torna-se móvelou imóvel conforme os pontos de referência aos quais érelacionado, e não há movimento absoluto.

Mas as coisas mudam já de aspecto quando se passadas matemáticas à física, e do estudo abstrato do movimen-to à consideração das mudanças concretas que se reali-zam no universo. Se somos livres para atribuir o repousoou o movimento a todo ponto material tomado isolada-mente, ainda assim é verdade que o aspecto do universomaterial muda, que a configuração interior de todo siste-ma real varia, e que aqui não temos mais a escolha entrea mobilidade e o repouso: o movimento, qualquer queseja sua natureza íntima, torna-se uma incontestável rea-lidade. Admitamos que não se possa dizer que partes do

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conjunto se movem; ainda assim há movimento no con-junto. Deste modo não é de admirar que os mesmos pen-sadores que consideram todo movimento particular co-mo relativo tratem da totalidade dos movimentos comode um absoluto. A contradição foi assinalada em Des-cartes, que, após ter dado à tese da relatividade suaforma mais radical ao afirmar que todo movimento é"recíproco"2, formula as leis do movimento como se omovimento fosse um absoluto3. Leibniz e outros, depoisdele, assinalaram essa contradição4: ela deve-se sim-plesmente a que Descartes trata do movimento comofísico após tê-lo definido como geômetra. Todo movi-mento é relativo para o geômetra: isto significa apenas,em nossa opinião, que não há símbolo matemáticocapaz de exprimir que é o móvel que se move e não oseixos ou os pontos aos quais está relacionado. E é natu-ral que seja assim, já que esses símbolos, sempre desti-nados a medidas, só são capazes de exprimir distâncias.Mas que haja um movimento real, ninguém pode contes-tar seriamente: caso contrário, nada mudaria no univer-so, e sobretudo não se percebe o que significaria a cons-ciência que temos de nossos próprios movimentos. Emsua controvérsia com Descartes, Morus fazia alusão aesse último ponto com um gracejo: "Quando estou sen-tado tranqüilo, e um outro, afastando-se mil passos de

2. Descartes, Príncipes, II, 29.3. Príncipes, parte II, §§ 37 ss.4. Leibniz, "Specimen dynamicum" (Mathem. Schriften, Gerhardt,

2a seção, 2o vol., p. 246).

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mim, está exausto de fadiga, é efetivamente ele que semove e sou eu que repouso."5

Mas, se há um movimento absoluto, pode-se persis-tir em ver no movimento apenas uma mudança de lugar?Será preciso então erigir a diversidade de lugar em dife-rença absoluta, e distinguir posições absolutas num espaçoabsoluto. Foi o que Newton fez6, seguido aliás por Euler7

e outros. Mas é possível imaginar-se ou mesmo conce-ber-se isso? Um lugar não se distinguiria absolutamentede outro lugar a não ser por sua qualidade, ou por sua re-lação ao conjunto do espaço: de sorte que o espaço setornaria, nessa hipótese, ou composto de partes heterogê-neas ou finito. Mas a um espaço finito daríamos um outroespaço como barreira, e sob partes heterogêneas de espa-ço imaginaríamos um espaço homogêneo como suporte:em ambos os casos, é ao espaço homogêneo e indefinidoque retornaríamos necessariamente. Não podemos por-tanto deixar de tomar todo lugar por relativo, nem de crernum movimento absoluto.

Dir-se-á então que o movimento real se distingue domovimento relativo pelo fato de ter uma causa real, pelofato de emanar de uma força? Mas convém que nos en-tendamos quanto ao sentido desta última palavra. Nas ciên-cias da natureza, a força não é mais que uma função damassa e da velocidade; ela é calculada pela aceleração;só a conhecemos, só a avaliamos pelos movimentos queela supostamente produz no espaço. Solidária a esses mo-vimentos, ela participa de sua relatividade. Deste modo,

5. H. Morus, Scriptaphilosophica, 1679, t. II, p. 248.6. Newton, Principia (ed. Thomson, 1871, pp. 6 ss.)7. Euler, Theoria motus corporum solidorum, 1765, pp. 30-3.

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os físicos que buscam o princípio do movimento absolutona força assim definida são reconduzidos, pela lógica deseu sistema, à hipótese de um espaço absoluto que dese-javam evitar de início8. Será preciso portanto retornar aosentido metafísico da palavra, e apoiar o movimento per-cebido no espaço em causas profundas, análogas às quenossa consciência acredita perceber no sentimento doesforço. Mas o sentimento do esforço é efetivamente ode uma causa profunda? E análises decisivas não mostra-ram que não há nada mais, nesse sentimento, do que aconsciência dos movimentos já efetuados ou começadosna periferia do corpo? É portanto em vão que gostaríamosde fundar a realidade do movimento sobre uma causa quese distingue dele: a análise nos leva sempre de volta aopróprio movimento.

Mas por que buscar em outro lugar? Enquanto vocêapoia o movimento contra a linha que ele percorre, o mes-mo ponto aparece alternadamente, conforme a origem àqual você o relaciona, como repouso ou como movimento.O mesmo não acontece se você extrai do movimento amobilidade que é sua essência. Quando meus olhos medão a sensação de um movimento, esta sensação é umarealidade, e algo se passa efetivamente, seja que um obje-to se desloque ante meus olhos, seja que meus olhos semovam diante do objeto. Com mais razão ainda estou se-guro da realidade do movimento quando o produzo apóster desejado produzi-lo, e o sentido muscular me propor-ciona a consciência dele. Vale dizer que toco a realidadedo movimento quando ele me aparece, interiormente a

8. Em particular Newton.

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mim, como uma mudança de estado ou de qualidade. Mas,então, por que não se passaria o mesmo quando percebomudanças de qualidade nas coisas? O som difere absolu-tamente do silêncio, como também um som de outrosom. Entre a luz e a obscuridade, entre cores, entre nuan-ces, a diferença é absoluta. A passagem de uma à outra é,igualmente, um fenômeno absolutamente real. Tomo por-tanto as duas extremidades da cadeia, as sensações mus-culares em mim, as qualidades sensíveis fora de mim, enem num caso nem no outro percebo o movimento, semovimento existe, como uma simples relação: trata-se deum absoluto. - Entre essas duas extremidades vêm colo-car-se os movimentos dos corpos exteriores propriamenteditos. Como distinguir aqui um movimento aparente deum movimento real? De qual objeto, exteriormente per-cebido, pode-se afirmar que se move, de qual outro quepermanece imóvel? Colocar semelhante questão é admi-tir que a descontinuidade estabelecida pelo senso comumentre objetos independentes uns dos outros, tendo cadaum sua individualidade, comparáveis a espécies de pes-soas, é uma distinção fundada. Na hipótese contrária, comefeito, já não se trataria de saber como se produzem, em taispartes determinadas da matéria, mudanças de posição,mas como se realiza, no todo, uma mudança de aspecto,mudança cuja natureza, aliás, restaria por determinar. For-mulemos portanto, a seguir, nossa terceira proposição:

III. Toda divisão da matéria em corpos independentesde contornos absolutamente determinados é uma divisãoartificial.

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Um corpo, isto é, um objeto material independente,apresenta-se inicialmente a nós como um sistema de qua-lidades, em que a resistência e a cor - dados da visão edo tato - ocupam o centro e mantêm suspensas, de certomodo, todas as outras. Por um lado, os dados da visão edo tato são os que se estendem mais manifestamente noespaço, e o caráter essencial do espaço é a continuidade.Há intervalos de silêncio entre os sons, pois a audiçãonem sempre está ocupada; entre os odores e os saboresexistem vazios, como se o olfato e o gosto só funcionas-sem acidentalmente: assim que abrimos os olhos, ao con-trário, nosso campo visual se colore por inteiro, e, uma vezque os sólidos são necessariamente contíguos uns aos ou-tros, nosso tato deve acompanhar a superfície ou as ares-tas dos objetos sem jamais encontrar interrupção verda-deira. De que modo fragmentamos a continuidade primi-tivamente percebida da extensão material em tantos cor-pos, cada um dos quais com sua substância e individuali-dade? Certamente essa continuidade muda de aspecto, deum momento a outro; mas por que não constatamos purae simplesmente que o conjunto mudou, como se houvés-semos girado um caleidoscópio? Por que buscamos enfim,na mobilidade do conjunto, pistas deixadas por corposem movimento? Uma continuidade movente nos é dada,em que tudo muda e permanece ao mesmo tempo: comose explica que dissociemos esses dois termos, permanên-cia e mudança, para representar a permanência por corpose a mudança por movimentos homogêneos no espaço?Este não é um dado da intuição imediata; mas tambémnão é uma exigência da ciência, pois a ciência, ao contrá-rio, propõe-se a reencontrar as articulações naturais de

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um universo que recortamos artificialmente. E mais: aodemonstrar cada vez melhor a ação recíproca de todos ospontos materiais uns sobre os outros, a ciência retorna, adespeito das aparências, conforme iremos ver, à idéia dacontinuidade universal. Ciência e consciência estão, nofundo, de acordo, contanto que se considere a consciênciaem seus dados mais imediatos e a ciência em suas aspi-rações mais longínquas. Como se explica então a irresis-tível tendência a constituir um universo material descon-tínuo, com corpos de arestas bem recortadas, que mudamde lugar, isto é, de relação entre si?

Ao lado da consciência e da ciência, existe a vida.Mais abaixo dos princípios da especulação, tão cuidado-samente analisados pelos filósofos, existem tendênciascujo estudo se negligenciou e que se explicam simples-mente pela necessidade que temos de viver, ou seja, emrealidade, de agir. Já o poder conferido às consciênciasindividuais de se manifestar por atos exige a formação dezonas materiais distintas que correspondem respectiva-mente a corpos vivos: neste sentido, meu próprio corpo e,por analogia com ele, os outros corpos vivos são os quetenho melhores condições de distinguir na continuidadedo universo. Mas uma vez constituído e distinguido essecorpo, as necessidades que ele experimenta o levam adistinguir e a constituir outros. No mais humilde dos se-res vivos, a nutrição exige uma busca, depois um contato,e finalmente uma série de esforços convergindo para umcentro: este centro irá tornar-se justamente o objeto inde-pendente que deve servir de alimento. Seja qual for a na-tureza da matéria, pode-se afirmar que a vida estabeleceránela já uma primeira descontinuidade, exprimindo a dua-

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lidade da necessidade e do que deve servir para satisfazê-la.Mas a necessidade de se alimentar não é a única. Outrasorganizam-se em torno dela, todas tendo por objeto a con-servação do indivíduo ou da espécie: ora, cada uma des-sas necessidades leva a distinguir, ao lado de nosso pró-prio corpo, corpos independentes dele, dos quais deve-mos nos aproximar ou fugir. Nossas necessidades são por-tanto feixes luminosos que, visando a continuidade dasqualidades sensíveis, desenham aí corpos distintos. Elassó podem satisfazer-se com a condição de se moldaremnessa continuidade um corpo, e depois de delimitarem aíoutros corpos com os quais este entrará em relação comocom pessoas. Estabelecer essas relações muito particula-res entre porções assim recortadas da realidade sensível éjustamente o que chamamos viver.

Mas, se essa primeira subdivisão do real correspon-de muito menos à intuição imediata do que às necessida-des fundamentais da vida, como se obteria um conheci-mento mais próximo das coisas levando a divisão aindamais longe? Deste modo prolongamos o movimento vital;viramos as costas ao conhecimento verdadeiro. Por isso aoperação grosseira que consiste em decompor o corpoem partes da mesma natureza que ele nos conduz a umimpasse, incapazes que nos sentimos em seguida de con-ceber por que motivo essa divisão se deteria e de que ma-neira ela se prolongaria ao infinito. Tal operação repre-senta, com efeito, uma forma usual da ação útil, indevi-damente transportada ao domínio do conhecimento puro.Portanto não se explicará jamais através de partículas,sejam quais forem, as propriedades simples da matéria:quando muito se acompanharão até os corpúsculos, arti-

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ficiais como o próprio corpo, as ações e reações dessecorpo em face de todos os outros. Tal é precisamente oobjeto da química. Ela estuda menos a matéria do que oscorpos; concebe-se portanto que ela se detenha numátomo, dotado ainda das propriedades gerais da matéria.Mas a materialidade do átomo dissolve-se cada vez maissob o olhar do físico. Não temos nenhum motivo, porexemplo, para nos representarmos o átomo como sólido,em vez de líquido ou gasoso, nem para nos figurarmos aação recíproca dos átomos através de choques e não deoutra maneira. Por que pensamos num átomo sólido, epor que em choques? Porque os sólidos, sendo os corpossobre os quais temos uma influência mais manifesta, sãoaqueles que nos interessam mais em nossas relações como mundo exterior, e porque o contato parece ser o únicomeio de que dispomos para fazer agir nosso corpo sobreos outros corpos. Mas experiências muito simples mos-tram que não há jamais contato real entre dois corposque interagem9; por outro lado, a solidez está longe deser um estado absolutamente definido da matéria10. So-lidez e choque obtêm portanto sua aparente clareza doshábitos e necessidades da vida prática; - imagens dessetipo não lançam nenhuma luz sobre o âmago das coisas.

Se há uma verdade, aliás, que a ciência colocou acimade qualquer contestação, é a de uma ação recíproca de

9. Ver, sobre o assunto, Maxwell, "Action at a Distance" (ScientificPapers, Cambridge, 1890, t. II, pp. 313-4).

10. Maxwell, "Molecular Constitution of Bodies" (Scientific Pa-pers, t. 11, p. 618). - Van der Waals demonstrou, por outro lado, a conti-nuidade dos estados líquidos e gasosos.

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todas as partes da matéria umas sobre as outras. Entre asmoléculas supostas dos corpos se exercem forças atrativase repulsivas. A influência da gravidade estende-se atravésdos espaços interplanetários. Existe portanto algumacoisa entre os átomos. Dir-se-á que já não é matéria, masforça. Representar-se-ão, estendidos entre os átomos, fioscada vez mais delgados, até que tenham se tornado invi-síveis e mesmo, pelo que se acredita, imateriais. Mas paraque poderia servir essa imagem grosseira? A conserva-ção da vida exige certamente que distingamos, em nossaexperiência diária, coisas inertes e ações exercidas poressas coisas no espaço. Como nos é útil fixar o lugar dacoisa no ponto preciso onde poderíamos tocá-la, seus con-tornos palpáveis tornam-se para nós seu limite real, evemos então em sua ação um não-sei-quê que se separa edifere dela. Mas já que uma teoria da matéria se propõejustamente a recuperar a realidade sob essas imagensusuais, todas relativas a nossas necessidades, é dessas ima-gens que ela deve se abstrair em primeiro lugar. E, defato, vemos força e matéria reaproximarem-se e reuni-rem-se à medida que o físico aprofunda seus efeitos. Ve-mos a força materializar-se, o átomo idealizar-se, essesdois termos convergirem para um limite comum, e o uni-verso recuperar assim sua continuidade. Falar-se-á aindade átomos; o átomo conservará inclusive sua individuali-dade para nosso espírito que o isola; mas a solidez e ainércia do átomo se dissolverão, seja em movimentos, sejaem linhas de força, cuja solidariedade recíproca restabe-lecerá a continuidade universal. A essa conclusão deviamnecessariamente chegar, ainda que partindo de pontoscompletamente diferentes, os dois físicos do século XIX

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que penetraram mais fundo na constituição da matéria,Thomson e Faraday. Para Faraday, o átomo é um "centrode forças". Ele entende por isto que a individualidade doátomo consiste no ponto matemático em que se cruzam aslinhas de força, indefinidas, irradiando-se através do es-paço, que o constituem realmente: cada átomo ocupa assim,para empregar suas expressões, "o espaço inteiro no qualse estende a gravidade" e "todos os átomos penetram-seuns aos outros"11. Thomson, colocando-se numa ordemde idéias bem diferente, supõe um fluido perfeito, contí-nuo, homogêneo e incompressível, que preencheria oespaço: o que chamamos átomo seria um anel de formainvariável turbilhonando nessa continuidade, que deveriasuas propriedades à sua forma, sua existência e conse-qüentemente sua individualidade a seu movimento12. Mas,em ambas as hipóteses, vemos desvanecer-se, à medidaque nos aproximamos dos últimos elementos da matéria,a descontinuidade que nossa percepção estabelecia emsua superfície. A análise psicológica nos revelava já queessa descontinuidade é relativa a nossas necessidades:toda filosofia da natureza acaba por considerá-la incom-patível com as propriedades gerais da matéria.

A bem da verdade, turbilhões e linhas de força nãosão jamais, no espírito do físico, senão figuras cômodas,destinadas a esquematizar cálculos. Mas a filosofia deve

11. Faraday, "A Especulation Concerning Eletric Conduction"(Philos. Magazine, 3? série, vol. XXIV).

12. Thomson, "On Vortex Atoms" {Proc. ofthe Roy. Soe. ofEdimb.,1867). - Uma hipótese do mesmo tipo foi formulada por Graham, "On theMolecular Mobility of Gases" {Proc. ofthe Roy. Soe, 1863, pp. 621 ss.).

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perguntar-se por que tais símbolos são mais cômodos queoutros e possibilitam ir mais longe. Poderíamos, ao operarcom eles, ir ao encontro da experiência, se as noções aque eles correspondem não nos assinalassem pelo menosuma direção em que buscar a representação do real? Ora,a direção que eles indicam não é duvidosa; mostram-nos,progredindo através da extensão concreta, modificações,perturbações, mudanças de tensão ou de energia, e nadamais. É deste modo sobretudo que esses símbolos ten-dem a juntar-se com a análise puramente psicológica quehavíamos inicialmente dado do movimento, e que o apre-sentava para nós, não como uma simples mudança derelação entre objetos aos quais ele se acrescentaria comoum acidente, mas como uma realidade verdadeira e decerto modo independente. Nem a ciência nem a cons-ciência rejeitariam, portanto, esta última proposição:

IV O movimento real é antes o transporte de um esta-do que de uma coisa.

Ao formular essas quatro proposições, só fizemos,em realidade, estreitar progressivamente o intervalo entredois termos que são opostos um ao outro, as qualidadesou sensações, e os movimentos. À primeira vista, a dis-tância parece intransponível. As qualidades são hetero-gêneas entre si, os movimentos homogêneos. As sensa-ções, indivisíveis por essência, escapam à medida; osmovimentos, sempre divisíveis, distinguem-se por dife-renças calculáveis de direção e de velocidade. Pretende-se colocar as qualidades, sob a forma de sensações, naconsciência, enquanto os movimentos executam-se in-dependentemente de nós no espaço. Esses movimentos,

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compondo-se entre si, jamais produziriam senão movi-mentos; por um processo misterioso, nossa consciência,incapaz de tocá-los, os traduziria em sensações que se pro-jetariam em seguida no espaço e viriam recobrir, não sesabe como, os movimentos que elas traduzem. Daí doismundos diferentes, incapazes de se comunicarem a nãoser por um milagre, de um lado o dos movimentos no es-paço, de outro a consciência com as sensações. E certa-mente a diferença permanece irredutível, como nós mes-mos já havíamos mostrado anteriormente, entre a qualidade,de um lado, e a quantidade pura, de outro. Mas a questãoé justamente saber se os movimentos reais apresentamentre si apenas diferenças de quantidade, ou se não seriama própria qualidade, vibrando, por assim dizer, interior-mente, e escandindo sua própria existência num númerofreqüentemente incalculável de momentos. O movimen-to que a mecânica estuda não é mais que uma abstraçãoou um símbolo, uma medida comum, um denominadorcomum que permite comparar entre si todos os movi-mentos reais; mas esses movimentos, considerados nelesmesmos, são indivisíveis que ocupam duração, supõemum antes e um depois, e ligam os momentos sucessivosdo tempo por um fio de qualidade variável que deve teralguma analogia com a continuidade de nossa própriaconsciência. Não podemos conceber, por exemplo, que airredutibilidade de duas cores percebidas se deva sobre-tudo à estreita duração em que se contraem trilhões devibrações que elas executam em um de nossos instantes?Se pudéssemos estirar essa duração, isto é, vivê-la numritmo mais lento, não veríamos, à medida que esse ritmodiminuísse, as cores empalidecerem e se alongarem em

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impressões sucessivas, certamente ainda coloridas, mascada vez mais próximas de se confundirem com estímu-los puros? Ali onde o ritmo do movimento é bastante lentopara se ajustar aos hábitos de nossa consciência - comoacontece para as notas graves da escala musical, por exem-plo -, não sentimos a qualidade percebida decompor-seespontaneamente em estímulos repetidos e sucessivos, li-gados entre si por uma continuidade interior? O que im-pede geralmente a aproximação é o hábito adquirido devincular o movimento a elementos - átomos ou outros -que interporiam sua solidez entre o próprio movimento ea qualidade na qual ele se contrai. Como nossa experiên-cia diária nos mostra corpos que se movem, parece-nosque, para sustentar os movimentos elementares nos quaisas qualidades se concentram, é preciso pelo menos cor-púsculos. Com isso o movimento, para nossa imagina-ção, não passa de um acidente, uma série de posições, umamudança de relações; e, como é uma lei de nossa repre-sentação que nela o estável desloca o instável, o elemen-to importante e central torna-se para nós o átomo, cujomovimento não faria mais que ligar as posições sucessi-vas. Mas tal concepção não tem apenas o inconvenientede ressuscitar para o átomo todos os problemas que amatéria coloca; não comete apenas o erro de atribuir umvalor absoluto a essa divisão da matéria que parece cor-responder sobretudo às necessidades da vida; além dissoela torna ininteligível o processo pelo qual apreendemosem nossa percepção, ao mesmo tempo, um estado de nos-sa consciência e uma realidade independente de nós. Essecaráter misto de nossa percepção imediata, essa aparênciade contradição realizada, é a principal razão teórica que

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temos para crer num mundo exterior que não coincideabsolutamente com nossa percepção; e, como isso não éreconhecido numa doutrina que faz a sensação comple-tamente heterogênea aos movimentos dos quais ela seriaa tradução consciente, tal doutrina, pensa-se, deveria seater às sensações, convertidas em único dado, e não asso-ciá-las a movimentos que, sem contato possível com elas,não são mais do que sua duplicata inútil. O realismo assimentendido destrói portanto a si mesmo. Em suma, não háoutra escolha: se nossa crença num substrato mais oumenos homogêneo das qualidades sensíveis é correta, sópode ser mediante um ato que nos faria captar ou adivi-nhar, na própria qualidade, algo que ultrapassa nossa sen-sação, como se essa sensação estivesse carregada de deta-lhes suspeitados e não percebidos. Sua objetividade, ouseja, o que ela tem a mais do que oferece, consistirá pre-cisamente então, tal como já havíamos sugerido, na imen-sa multiplicidade dos movimentos que ela executa, de cer-to modo, no interior de sua crisálida. Ela se expõe, imó-vel, na superfície; mas ela vive e vibra em profundidade.

A bem da verdade, ninguém representa-se de outromodo a relação entre quantidade e qualidade. Acreditar emrealidades distintas das realidades percebidas é sobretu-do reconhecer que a ordem de nossas percepções dependedelas, e não de nós. Deve haver portanto, no conjunto daspercepções que ocupam um momento dado, a razão do quese passará no momento seguinte. E o mecanismo só fazformular com mais precisão essa crença quando afirmaque os estados da matéria podem ser deduzidos uns dosoutros. É verdade que essa dedução só é possível se foremdescobertos, sob a heterogeneidade aparente das qualida-

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des sensíveis, elementos homogêneos e calculáveis. Mas,por outro lado, se esses elementos são exteriores às qua-lidades cuja ordem regular devem explicar, eles já nãosão capazes de prestar o serviço que se lhes pede, umavez que as qualidades só se acrescentam então a eles poruma espécie de milagre, e só correspondem a eles emvirtude de uma harmonia preestabelecida. Portanto é ine-vitável colocar esses movimentos dentro dessas qualida-des, na forma de estímulos interiores, considerar esses es-tímulos como menos homogêneos e as qualidades comomenos heterogêneas do que aparentam superficialmente,e atribuir a diferença de aspecto dos dois termos à neces-sidade, que possui essa multiplicidade, de certo modo in-definida, de contrair-se numa duração demasiado estrei-ta para escandir seus momentos.

Insistamos nesse último ponto, do qual já havíamosdito uma palavra em outro lugar, mas que consideramosessencial. A duração vivida por nossa consciência é umaduração de ritmo determinado, bem diferente desse tem-po de que fala o físico e que é capaz de armazenar, numintervalo dado, uma quantidade de fenômenos tão gran-de quanto se queira. No espaço de um segundo, a luz ver-melha - aquela que tem o maior comprimento de onda ecujas vibrações são portanto as menos freqüentes - reali-za 400 trilhões de vibrações sucessivas. Deseja-se fazeruma idéia desse número? Será preciso afastar as vibra-ções umas das outras o suficiente para que nossa cons-ciência possa contá-las ou pelo menos registrar explicita-mente sua sucessão, e se verá quantos dias, meses ou anosocuparia tal sucessão. Ora, o menor intervalo de tempovazio de que temos consciência é igual, segundo Exner, adois milésimos de segundo; ainda assim é duvidoso que

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possamos perceber um após outro vários intervalos tãocurtos. Admitamos no entanto que sejamos capazes dissoindefinidamente. Imaginemos, em uma palavra, uma cons-ciência que assistisse ao desfile de 400 trilhões de vibra-ções, todas instantâneas, e apenas separadas umas dasoutras pelos dois milésimos de segundo necessários paradistingui-las. Um cálculo muito simples mostra que serãonecessários mais de 25 mil anos para concluir a opera-ção. Assim, essa sensação de luz vermelha experimenta-da por nós durante um segundo corresponde, em si a umasucessão de fenômenos que, desenrolados em nossa du-ração com a maior economia de tempo possível, ocupa-riam mais de 250 séculos de nossa história. Isto é conce-bível? É preciso distinguir aqui nossa própria duração dotempo em geral. Em nossa duração, aquela que nossaconsciência percebe, um intervalo dado só pode conterum número limitado de fenômenos conscientes. É conce-bível que esse conteúdo aumente e, quando falamos deum tempo indefinidamente divisível, seja nessa duraçãoque pensemos?

Em se tratando do espaço, pode-se levar a divisão tãolonge quanto se queira; com isso não se altera em nada anatureza do que se divide. É que o espaço nos é exterior,por definição; uma porção de espaço parece-nos subsis-tir ainda que deixemos de nos ocupar dela. Por mais quecontinue indivisa, sabemos que ela pode esperar, e queum novo esforço de imaginação a decomporia por sua vez.Como não cessa jamais de ser espaço, ela implica sem-pre justaposição e conseqüentemente divisão possível. Oespaço aliás, no fundo, não é mais do que o esquema dadivisibilidade indefinida. Mas com a duração é comple-

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tamente diferente. As partes de nossa duração coincidemcom os momentos sucessivos do ato que a divide; quantosforem os instantes que nela fixamos, tantas serão as par-tes correspondentes; e, se nossa consciência só é capazde distinguir num intervalo um número determinado deatos elementares, se ela interrompe em alguma parte a di-visão, também aí se interrompe a divisibilidade. Em vãonossa imaginação esforça-se em ir além, em dividir as úl-timas partes sucessivamente, e em ativar de algum modoa circulação de nossos fenômenos interiores: o mesmoesforço, pelo qual gostaríamos de levar mais longe a di-visão de nossa duração, alongaria na mesma proporçãoessa duração. E todavia sabemos que milhões de fenôme-nos se sucedem enquanto contamos apenas alguns deles.Não é apenas a física que nos diz; a experiência grossei-ra dos sentidos já nos deixa adivinhar isto; pressentimosna natureza sucessões bem mais rápidas que as de nossosestados interiores. Como concebê-las, e qual é essa dura-ção cuja capacidade supera toda imaginação?

Não é a nossa, seguramente; mas não é também essaduração impessoal e homogênea, a mesma para tudo e paratodos, que transcorreria, indiferente e vazia, fora daquiloque dura. Esse pretenso tempo homogêneo, como tentamosdemonstrar em outra parte, é um ídolo da linguagem,uma ficção cuja origem é fácil de encontrar. Em realida-de, não há um ritmo único da duração; é possível imagi-nar muitos ritmos diferentes, os quais, mais lentos ou maisrápidos, mediriam o grau de tensão ou de relaxamentodas consciências, e deste modo fixariam seus respectivoslugares na série dos seres. Essa representação de duraçõescom elasticidade desigual é talvez incômoda para nosso

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espírito, que contraiu o hábito útil de substituir a duraçãoverdadeira, vivida pela consciência, por um tempo homo-gêneo e independente; mas em primeiro lugar é fácil, comodissemos, desmascarar a ilusão que torna uma tal repre-sentação incômoda, e em segundo essa idéia conta, nofundo, com o consentimento tácito de nossa consciência.Não nos acontece perceber em nós mesmos, durante osono, duas pessoas contemporâneas e distintas, sendo queuma dorme alguns minutos enquanto o sonho da outraocupa dias e semanas? E a História inteira não caberianum tempo muito curto para uma consciência mais tensaque a nossa, que assistisse ao desenvolvimento da huma-nidade condensando-o, por assim dizer, nas grandes fasesde sua evolução? Perceber consiste portanto, em suma,em condensar períodos enormes de uma existência infi-nitamente diluída em alguns momentos mais diferenciadosde uma vida mais intensa, e em resumir assim uma histó-ria muito longa. Perceber significa imobilizar.

Eqüivale a dizer que discernimos, no ato da percep-ção, algo que ultrapassa a própria percepção, sem que noentanto o universo material se diferencie ou se distingaessencialmente da representação que temos dele. Numcerto sentido, minha percepção é bastante interior a mim,já que ela condensa num momento único de minha dura-ção o que se repartiria, por si, em um número incalculávelde momentos. Mas, se você suprime minha consciência,o universo material subsiste tal qual era: apenas, como foifeita abstração do ritmo particular de duração que era acondição de minha ação sobre as coisas, essas coisasretornam a si mesmas para se separarem na infinidade demomentos que a ciência distingue, e as qualidades sensí-

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veis, sem desaparecerem, espalham-se e dissolvem-se nu-ma duração incomparavelmente mais dividida. A matériaconverte-se assim em inumeráveis estímulos, todos liga-dos numa continuidade ininterrupta, todos solidários entresi, e que se propagam em todos os sentidos como tremo-res. - Volte a ligar uns aos outros, em uma palavra, osobjetos descontínuos de sua experiência diária; faça fluir,em seguida, a continuidade imóvel de suas qualidadescomo estímulos locais; adira a esses movimentos, des-vencilhando-se do espaço divisível que os subtende, parajá não considerar senão sua mobilidade, esse ato indivisoque sua consciência capta nos movimentos que você mes-mo executa: você irá obter da matéria uma visão fatigan-te talvez para a imaginação, no entanto pura, e desemba-raçada daquilo que as exigências da vida o obrigam aacrescentar na percepção exterior. - Restabeleça agoraminha consciência e, com ela, as exigências da vida: alongos intervalos repetidos, e transpondo a cada vez enor-mes períodos da história interior das coisas, visões quaseinstantâneas serão tomadas, visões desta vez pitorescas,cujas cores mais definidas condensam uma infinidade derepetições e de mudanças elementares. É assim que osmilhares de posições sucessivas de um corredor se con-traem numa única atitude simbólica, que nosso olho per-cebe, que a arte reproduz, e que se torna, para todo omundo, a imagem de um homem que corre. O olhar quelançamos ao nosso redor, de momento a momento, sópercebe portanto os efeitos de uma infinidade de repeti-ções e evoluções interiores, efeitos por isso mesmo des-contínuos, e cuja continuidade é restabelecida pelos mo-vimentos relativos que atribuímos a "objetos" no espaço.

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A mudança encontra-se por toda parte, mas em profundi-dade; nós a localizamos aqui e acolá, mas na superfície;e constituímos assim corpos ao mesmo tempo estáveisquanto a suas qualidades e móveis quanto a suas posições,uma simples mudança de lugar condensando nele, a nos-sos olhos, a transformação universal.

Que existem, num certo sentido, objetos múltiplos,que um homem se distingue de outro homem, uma árvo-re de outra árvore, uma pedra de outra pedra, é incontes-tável, uma vez que cada um desses seres, cada uma des-sas coisas tem propriedades características e obedece auma lei determinada de evolução. Mas a separação entrea coisa e seu ambiente não pode ser absolutamente defi-nida; passa-se, por gradações insensíveis, de uma ao outro:a estrita solidariedade que liga todos os objetos do uni-verso material, a perpetuidade de suas ações e reações re-cíprocas, demonstra suficientemente que eles não têm oslimites precisos que lhes atribuímos. Nossa percepção de-senha, de certo modo, a forma de seu resíduo; ela os de-limita no ponto em que se detém nossa ação possível sobreeles, e em que eles cessam, conseqüentemente, de interes-sar nossas necessidades. Tal é a primeira e a mais evidenteoperação do espírito que percebe: traçar divisões na con-tinuidade da extensão, cedendo simplesmente às sugestõesda necessidade e aos imperativos da vida prática. Mas,para dividir assim o real, devemos nos persuadir inicial-mente de que o real é arbitrariamente divisível. Devemosem conseqüência estender abaixo da continuidade dasqualidades sensíveis, que é a extensão concreta, uma redede malhas indefinidamente deformáveis e indefinidamen-

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te decrescentes: tal substrato meramente concebido, talesquema inteiramente ideal da divisibilidade arbitrária eindefinida, é o espaço homogêneo. - Pois bem, ao mesmotempo que nossa percepção atual e, por assim dizer, ins-tantânea efetua essa divisão da matéria em objetos inde-pendentes, nossa memória solidifica em qualidades sen-síveis o escoamento contínuo das coisas. Ela prolonga opassado no presente, porque nossa ação irá dispor do fu-turo na medida exata em que nossa percepção, aumenta-da pela memória, tiver condensado o passado. Respondera uma ação sofrida por uma reação imediata que se ajustaao seu ritmo e se prolonga na mesma duração, estar nopresente, e num presente que recomeça a todo instante,eis a lei fundamental da matéria: nisso consiste a neces-sidade. Se há ações livres ou pelo menos parcialmenteindeterminadas, elas só podem pertencer a seres capazesde fixar, em intervalos regulares de tempo, o devir sobreo qual seu próprio devir se aplica, capazes de solidificá-loem momentos distintos, de condensar deste modo suamatéria e, assimilando-a, digeri-la em movimentos dereação que passarão através das malhas da necessidadenatural. A maior ou menor tensão de sua duração, que nofundo exprime sua maior ou menor intensidade de vida,determina assim tanto a força de concentração de suapercepção quanto o grau de sua liberdade. A indepen-dência de sua ação sobre a matéria ambiental afirma-secada vez melhor à medida que eles se libertam do ritmosegundo o qual essa matéria escoa-se. De sorte que asqualidades sensíveis, tal como figuram em nossa percep-ção acompanhada de memória, são efetivamente os mo-mentos sucessivos obtidos pela solidificação do real. Mas,

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para distinguir esses momentos, e também para juntá-losatravés de um fio que seja comum à nossa própria exis-tência e à das coisas, somos forçados a imaginar um es-quema abstrato da sucessão em geral, um meio homogê-neo e indiferente que esteja para o escoamento da maté-ria, no sentido do comprimento, assim como o espaço nosentido da largura: nisto consiste o tempo homogêneo.Espaço homogêneo e tempo homogêneo não são portantonem propriedades das coisas, nem condições essenciaisde nossa faculdade de conhecê-los: exprimem, de umaforma abstrata, o duplo trabalho de solidificação e de di-visão que aplicamos à continuidade movente do real paranela encontrarmos pontos de apoio, para nela fixarmoscentros de operação, para nela introduzirmos, enfim, mu-danças verdadeiras; estes são os esquemas de nossa açãosobre a matéria. O primeiro erro, que consiste em fazerdesse tempo e desse espaço homogêneos propriedades dascoisas, conduz às insuperáveis dificuldades do dogmatis-mo metafísico - mecanismo ou dinamismo -, o dinamismoerigindo em absolutos os cortes sucessivos que pratica-mos ao longo do escoamento do universo e esforçando-seem vão para ligá-los entre si por uma espécie de deduçãoqualitativa, o mecanismo apegando-se ao contrário, numdos cortes qualquer, às divisões praticadas no sentido dalargura, ou seja, às diferenças instantâneas de tamanho eposição, e esforçando-se não menos em vão para engendrarcom a variação dessas diferenças a sucessão das qualida-des sensíveis. No caso da outra hipótese, que pretende,com Kant, que o espaço e o tempo sejam formas de nossasensibilidade, conclui-se que matéria e espírito são igual-mente incognoscíveis. Mas, se comparamos as duas hipó-

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teses opostas, descobrimos nelas um fundo comum: ao fa-zer do tempo homogêneo e do espaço homogêneo, ou rea-lidades contempladas, ou formas da contemplação, ambasatribuem ao espaço e ao tempo um interesse antes espe-culativo do que vital. Haveria então lugar, entre o dog-matismo metafísico de um lado e a filosofia crítica deoutro, para uma doutrina que veria no espaço e no tempohomogêneos princípios de divisão e de solidificação in-troduzidos no real tendo em vista a ação e não o conhe-cimento, que atribuiria às coisas uma duração real e umaextensão real, e que perceberia finalmente a origem detodas as dificuldades não mais nessa duração e nessa ex-tensão que pertencem efetivamente às coisas e se mani-festam imediatamente a nosso espírito, mas no espaço eno tempo homogêneos que estendemos abaixo delas paradividir o contínuo, fixar o devir e proporcionar à nossaatividade pontos de aplicação.

Mas as concepções errôneas da qualidade sensível edo espaço encontram-se tão profundamente enraizadasno espírito, que não se poderiam atacá-las de uma só veznum grande número de pontos. Digamos portanto, paraindicar um novo aspecto, que elas implicam esse duplopostulado, igualmente aceito pelo realismo e pelo idea-lismo: 1) entre diversos gêneros de qualidade não há nadaem comum; 2) não há nada em comum, da mesma forma,entre a extensão e a qualidade pura. Sustentamos, aocontrário, que há algo em comum entre qualidades deordem diferente, que todas elas participam da extensão emgraus diversos, e que não se podem desconhecer essas duasverdades sem embaraçar em mil dificuldades a metafísicada matéria, a psicologia da percepção, e de uma maneira

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mais geral a questão das relações da consciência com amatéria. Sem insistir nessas conseqüências, limitemo-nos de momento a mostrar, no fundamento das diversasteorias da matéria, os dois postulados que contestamos, eremontemos à ilusão de onde eles procedem.

A essência do idealismo inglês consiste em tomar aextensão por uma propriedade das percepções táteis. Co-mo não vê nas qualidades sensíveis mais do que sensa-ções, e nas sensações mais do que estados de alma, esseidealismo não encontra nada, nas qualidades diversas, quepossa fundamentar o paralelismo de seus fenômenos: vê-se obrigado portanto a explicar tal paralelismo por umhábito, que faz com que as percepções atuais da visão,por exemplo, nos sugiram sensações possíveis do tato. Seas impressões de dois sentidos diferentes não se asseme-lham mais do que as palavras de duas línguas, em vãose buscaria deduzir os dados de um dos dados do outro;elas não têm elemento comum. E conseqüentemente tam-bém não há nada em comum entre a extensão, que é sem-pre tátil, e os dados dos outros sentidos que não o tato, osquais não têm a ver com a extensão de maneira alguma.

Mas o realismo atomístico, por sua vez, pondo os mo-vimentos no espaço e as sensações na consciência, tam-bém não é capaz de descobrir nada em comum entre asmodificações ou fenômenos da extensão e as sensaçõesque correspondem a eles. Essas sensações seriam comoque fosforescências deixadas por essas modificações, ouentão traduziriam na língua da alma as manifestações damatéria; mas em ambos os casos não refletiriam a imagemde suas causas. Certamente todas elas remontam a umaorigem comum, que é o movimento no espaço; mas, jus-

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tamente porque evoluem fora do espaço, elas renunciam,enquanto sensações, ao parentesco que ligava suas causas.Rompendo com o espaço, elas rompem também entre si,e deste modo não participam nem umas das outras, nemda extensão.

Idealismo e realismo, portanto, só diferem aqui pelofato de que o primeiro faz recuar a extensão até a percep-ção tátil, da qual ela se torna propriedade exclusiva, en-quanto o segundo lança a extensão ainda mais longe, parafora de toda percepção. Mas as duas doutrinas coincidemem afirmar a descontinuidade das diversas ordens dequalidades sensíveis, como também a passagem bruscadaquilo que é puramente extenso ao que não é extenso demaneira alguma. Ora, as principais dificuldades que am-bas encontram na teoria da percepção derivam desse pos-tulado comum.

Com efeito, é possível dizer, com Berkeley, que todapercepção de extensão se relaciona ao tato? A rigor, po-deríamos recusá-la aos dados da audição, do olfato e dogosto; mas seria preciso pelo menos explicar a gênese deum espaço visual, correspondendo ao espaço tátil. Ale-ga-se, é verdade, que a visão acaba por tornar-se simbó-lica do tato, e que já não há, na percepção visual das rela-ções de espaço, nada mais do que uma sugestão de per-cepções táteis. Mas dificilmente nos farão compreenderde que modo a percepção do relevo, por exemplo, per-cepção que causa em nós uma impressão sui generis, aliásindescritível, coincide com a simples lembrança de umasensação do tato. A associação de uma lembrança comuma percepção presente pode complicar essa percepçãoao enriquecê-la de um elemento conhecido, mas não criar

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um novo tipo de impressão, uma nova qualidade de per-cepção: ora, a percepção visual do relevo apresenta umcaráter absolutamente original. Dirão que a ilusão de re-levo se produz com uma superfície plana, e que por issouma superfície em que os jogos de sombra e luz do obje-to em relevo estejam mais ou menos bem imitados é sufi-ciente para nos lembrar o relevo; mas ainda assim é pre-ciso, para que o relevo seja lembrado, que ele tenha sidoem primeiro lugar efetivamente percebido. Já o afirma-mos, mas nunca seria demais repetir: nossas teorias dapercepção estão inteiramente viciadas pela idéia de que,se um certo dispositivo produz, em um momento dado, ailusão de uma certa percepção, ele sempre foi capaz deproduzir essa própria percepção; - como se o papel damemória não fosse justamente fazer sobreviver a com-plexidade do efeito à simplificação da causa! Dirão quea própria retina é uma superfície plana, e que, se perce-bemos pela visão algo de extenso, isso não é mais do queimagem retiniana. Mas, conforme mostramos no iníciodeste livro, não é verdade que, na percepção visual de umobjeto, o cérebro, os nervos, a retina e o próprio objetoformam um todo solidário, um processo contínuo do quala imagem retiniana não é mais que um episódio? Qual odireito de isolar essa imagem para resumir toda a percep-ção nela? E, além disso, conforme também mostramos13,uma superfície poderia ser percebida como superfície anão ser num espaço cujas três dimensões fossem restabe-lecidas? Berkeley, pelo menos, levava sua tese até o fim:

13. Essai sur les données immédiaíes de Ia conscience, Paris, 1889,pp. 77-8.

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negava à visão qualquer percepção da extensão. Mas comisso as objeções que levantamos só adquirem mais força,já que não se compreende como se criaria por uma sim-ples associação de lembranças o que há de original emnossas percepções visuais de linha, superfície e volu-me, percepções tão nítidas que o matemático contenta-secom elas, e raciocina em geral sobre um espaço exclusi-vamente visual. Mas não insistamos nesses diversos pon-tos, nem nos argumentos contestáveis baseados na obser-vação dos cegos operados: a teoria, clássica a partir deBerkeley, das percepções adquiridas da visão parece quenão irá resistir aos múltiplos ataques da psicologia con-temporânea14. Deixando de lado as dificuldades de or-dem psicológica, limitemo-nos a chamar a atenção paraum outro ponto, que é para nós o essencial. Suponhamospor um instante que a visão não nos informe originaria-mente sobre nenhuma das relações de espaço, A formavisual, o relevo visual, a distância visual tornam-se entãosímbolos de percepções táteis. Mas será preciso que nosdigam por que esse simbolismo tem êxito. Eis objetosque mudam de forma e que se movem. A visão constatavariações determinadas que a seguir o tato verifica. Háportanto, nas duas séries visual e tátil ou em suas causas,algo que as faz corresponderem uma à outra e que asse-gura a constância de seu paralelismo. Qual o princípiodessa ligação?

14. Ver sobre o assunto: Paul Janet, "La perception visuelle de Iadistance" (Revue philosophique, 1879, t. VII, pp. 1 ss.) - William James,Principies of Psychology, t. II, cap. XXII. - Cf. o tema da percepçãovisual da extensão: Dunan. "L'espace visuel et 1'espace tactile" (Revuephilosophique, fev. e abr. de 1888, jan. de 1889).

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Para o idealismo inglês, só pode ser algum deus exmachina, e somos reconduzidos ao mistério. Para o rea-lismo vulgar, é num espaço distinto das sensações que seacharia o princípio da correspondência das sensações en-tre si: mas essa doutrina posterga a dificuldade e inclusivea agrava, pois terá que nos dizer de que modo um siste-ma de movimentos homogêneos no espaço evoca sensaçõesdiversas sem nenhuma relação entre si. Há pouco, a gêne-se da percepção visual do espaço por simples associaçãode imagens nos parecia implicar uma verdadeira criaçãoex nihilo; agora, todas as sensações nascem de nada, oupelo menos não têm nenhuma relação com o movimentoque as ocasiona. No fundo, esta segunda teoria difere daprimeira bem menos do que se crê. O espaço amorfo, osátomos que se impelem e se entrechocam, não são outracoisa senão as percepções táteis objetivadas, desligadasdas outras percepções em razão da importância excepcio-nal que se lhes atribui, e erigidas em realidades indepen-dentes para se distinguirem deste modo das outras sensa-ções, que se tornam seus símbolos. Elas foram aliás es-vaziadas, nessa operação, de uma parte de seu conteúdo;após ter feito convergir todos os sentidos para o tato, já nãose conserva, do próprio tato, senão o esquema abstrato dapercepção tátil para construir com ele o mundo exterior.É de admirar que entre esta abstração, de um lado, e assensações, de outro, não se encontre mais comunicaçãopossível? A verdade é que o espaço não está mais fora denós do que em nós, e que ele não pertence a um grupoprivilegiado de sensações. Todas as sensações participam daextensão; todas emitem na extensão raízes mais ou me-nos profundas; e as dificuldades do realismo vulgar vêm

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de que, o parentesco das sensações tendo sido extraído eposto à parte na forma de espaço indefinido e vazio, nãovemos mais como essas sensações participam da exten-são nem como se correspondem entre si.

A idéia de que todas as nossas sensações são exten-sivas em algum grau penetra cada vez mais a psicologiacontemporânea. Sustenta-se, não sem uma certa aparên-cia de razão, que não há sensação sem "extensidade"15

ou sem "um sentimento de volume"16. O idealismo inglêspretendia reservar à percepção tátil o monopólio da ex-tensão, os outros sentidos só se exercendo no espaço namedida em que nos trazem à memória os dados do tato.Uma psicologia mais atenta nos revela, ao contrário, e semdúvida irá revelar cada vez melhor, a necessidade de con-siderar todas as sensações como primitivamente extensi-vas, sua extensão empalidecendo e apagando-se dianteda intensidade e da utilidade superiores da extensão tátil,e certamente também da extensão visual.

Assim entendido, o espaço é de fato o símbolo dafixidez e da divisibilidade ao infinito. A extensão con-creta, ou seja, a diversidade das qualidades sensíveis, nãoestá nele; é ele que colocamos nela. O espaço não é osuporte sobre o qual o movimento real se põe; é o movi-

15. Ward. art. "Psychology" da Encyclop. Britannica.16. W. James, Principies ofPsychology, t. II, pp. 134 ss. -Notemos

de passagem que se poderia atribuir essa opinião a Kant, já que a Estéticatranscendental não faz diferença entre os dados dos diversos sentidos noque concerne à sua extensão no espaço. Mas convém não esquecer que oponto de vista da Crítica é bem diferente do da psicologia, e que basta aseu objeto que todas as nossas sensações acabem por se localizar no espa-ço quando a percepção atingiu sua forma definitiva.

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mento real, ao contrário, que o põe abaixo de si. Mas nos-sa imaginação, preocupada antes de tudo com a comodi-dade de expressão e as exigências da vida material, prefe-re inverter a ordem natural dos termos. Habituada a buscarseu ponto de apoio num mundo de imagens inteiramenteconstruídas, imóveis, cuja fixidez aparente reflete sobre-tudo a invariabilidade de nossas necessidades inferiores,ela não consegue deixar de ver o repouso como anteriorà mobilidade, de tomá-lo por ponto de referência, de ins-talar-se nele, e de não perceber no movimento, enfim,senão uma variação de distância, o espaço precedendo omovimento. Então, num espaço homogêneo e indefinida-mente divisível nossa imaginação desenhará uma trajetó-ria e fixará posições: aplicando a seguir o movimentocontra a trajetória, o fará divisível como essa linha e, comoela, desprovido de qualidade. É de admirar que nossoentendimento, exercendo-se desde então sobre essa idéiaque representa justamente a inversão do real, só descubranela contradições? Tendo-se assimilado os movimentosao espaço, tais movimentos serão homogêneos como oespaço; e, como já não se percebe entre eles senão dife-renças calculáveis de direção e de velocidade, toda rela-ção é abolida entre o movimento e a qualidade. Com issoresta apenas circunscrever o movimento ao espaço, asqualidades à consciência, e estabelecer entre essas duasséries paralelas, incapazes por hipótese de jamais se junta-rem, uma misteriosa correspondência. Abandonada à cons-ciência, a qualidade sensível torna-se incapaz de recon-quistar a extensão. Relegado ao espaço, e ao espaço abstra-to, onde não há mais que um instante único e onde tudorecomeça sempre, o movimento renuncia a essa solida-

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riedade do presente e do passado que é sua própria essên-cia. E, como estes dois aspectos da percepção, qualidadee movimento, são envolvidos de idêntica obscuridade, ofenômeno da percepção, em que uma consciência encer-rada em si própria e estranha ao espaço traduziria o quetem lugar no espaço, torna-se um mistério. - Afastemos,ao contrário, toda idéia preconcebida de interpretação oude medida, coloquemo-nos face a face com a realidadeimediata: não veremos mais uma distância intransponível,uma diferença essencial, nem mesmo uma distinção ver-dadeira entre a percepção e a coisa percebida, entre a qua-lidade e o movimento.

Retornamos assim, por uma longa volta, às conclusõesque havíamos tirado no primeiro capítulo deste livro. Nos-sa percepção, dizíamos, encontra-se originariamente antesnas coisas do que no espírito, antes fora de nós do queem nós. As percepções de diversos tipos assinalam algu-mas das muitas direções verdadeiras da realidade. Masessa percepção que coincide com seu objeto, acrescentá-vamos, existe mais de direito do que de fato: ela teria lu-gar no instantâneo. Na percepção concreta intervém a me-mória, e a subjetividade das qualidades sensíveis deve-sejustamente ao fato de nossa consciência, que desde o iní-cio não é senão memória, prolongar uns nos outros, paracondensá-los numa intuição única, uma pluralidade demomentos.

Consciência e matéria, alma e corpo entravam assimem contato na percepção. Mas essa idéia permanecia emparte obscura, porque nossa percepção, e conseqüentemen-te também nossa consciência, pareciam então participarda divisibilidade que se atribui à matéria. Se nos recusamos

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naturalmente, na hipótese dualista, a aceitar a coincidên-cia parcial do objeto percebido e do sujeito que percebe,é porque temos consciência da unidade indivisa de nossapercepção, ao passo que o objeto nos parece ser, por es-sência, indefinidamente divisível. Daí a hipótese de umaconsciência com sensações inextensivas, colocada diantede uma multiplicidade extensa. Mas se a divisibilidade damatéria é inteiramente relativa à nossa ação sobre ela, ouseja, à nossa faculdade de modificar seu aspecto, se elapertence, não à própria matéria, mas ao espaço que esten-demos abaixo dessa matéria para fazê-la cair sob nossainfluência, então a dificuldade desaparece. A matéria ex-tensa, considerada em seu conjunto, é como uma cons-ciência em que tudo se equilibra, se compensa e se neu-traliza; ela oferece de fato a indivisibilidade de nossapercepção; de sorte que podemos, inversamente e semescrúpulos, atribuir à percepção algo da extensão da maté-ria. Estes dois termos, percepção e matéria, vão assim umem direção ao outro à medida que nos despojamos doque poderia ser chamado os preconceitos da ação: a sen-sação reconquista a extensão, a extensão concreta retomasua continuidade e sua indivisibilidade naturais. E o espa-ço homogêneo, que se erguia entre os dois termos comouma barreira intransponível, não tem mais outra realida-de senão a de um esquema ou de um símbolo. Ele dizrespeito aos procedimentos de um ser que age sobre amatéria, mas não ao trabalho de um espírito que especu-la sobre sua essência.

Por aí se esclarece, em certa medida, a questão paraa qual todas as nossas pesquisas convergem, a da uniãoda alma e do corpo. A obscuridade desse problema, na

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hipótese dualista, advém de que se considera a matériacomo essencialmente divisivel e todo estado de alma co-mo rigorosamente inextensivo, de modo que se começapor cortar a comunicação entre os dois termos. E, apro-fundando esse duplo postulado, descobre-se nele, no queconcerne à matéria, uma confusão da extensão concreta eindivisível com o espaço divisivel que a subtende, comotambém, no que concerne ao espírito, a idéia ilusória deque não há graus nem transição possível entre o extensoe o inextenso. Mas, se esses dois postulados encobremum erro comum, se existe passagem gradual da idéia àimagem e da imagem à sensação, se, à medida que evo-lui no sentido da atualidade, ou seja, da ação, o estadode alma se aproxima da extensão, se, finalmente, essaextensão, uma vez atingida, permanece indivisa e porisso não contraria de maneira alguma a unidade da alma,compreende-se que o espírito possa colocar-se sobre amatéria no ato de percepção pura, conseqüentementeunindo-se a ela, e que não obstante dela se distinga radi-calmente. Ele se distingue na medida em que é, já então,memória, isto é, síntese do passado e do presente comvistas ao futuro, na medida em que condensa os momen-tos dessa matéria para servir-se dela e para manifestar-seatravés de ações que são a razão de ser de sua união como corpo. Tínhamos portanto razão ao afirmar, no iníciodeste livro, que a distinção do corpo e do espírito não de-ve ser estabelecida em função do espaço, mas do tempo.

O erro do dualismo vulgar é colocar-se no ponto devista do espaço, pondo de um lado a matéria com suasmodificações no espaço, e de outro sensações inextensi-vas na consciência. Daí a impossibilidade de compreen-

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der como o espírito age sobre o corpo ou o corpo sobre oespírito. Daí as hipóteses que não são e não podem sermais do que constatações dissimuladas da realidade - aidéia de um paralelismo ou a de uma harmonia preesta-belecida. Mas daí também a impossibilidade de consti-tuir, seja uma psicologia da memória, seja uma metafísi-ca da matéria. Tentamos estabelecer que essa psicologiae essa metafísica são solidárias, e que as dificuldades ate-nuam-se num dualismo que, partindo da percepção puraem que sujeito e objeto coincidem, promova o desenvol-vimento desses dois termos em suas respectivas durações- a matéria, à medida que se leva mais a fundo sua aná-lise, tendendo a não ser mais que uma sucessão de mo-mentos infinitamente rápidos que se deduzem uns dosoutros e portanto se eqüivalem; o espírito sendo já me-mória na percepção, e afirmando-se cada vez mais comoum prolongamento do passado no presente, um progres-so, uma evolução verdadeira.

Mas a relação entre corpo e espírito torna-se com is-so mais clara? Substituímos uma distinção espacial poruma distinção temporal: os dois termos serão mais capazesde se unir? Convém notar que a primeira distinção nãocomporta graus: a matéria está no espaço, o espírito estáfora do espaço; não há transição possível entre eles. Aocontrário, se o papel mais modesto do espírito é ligar osmomentos sucessivos da duração das coisas, se é nessaoperação que ele toma contato com a matéria e tambémse distingue dela inicialmente, concebe-se uma infinidadede graus entre a matéria e o espírito plenamente desen-volvido, o espírito capaz de ação não apenas indetermi-nada, mas racional e refletida. Cada um desses graus suces-

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sivos, que mede uma intensidade crescente de vida, cor-responde a uma tensão mais alta de duração e se traduzexteriormente por um maior desenvolvimento do sistemasensório-motor. O importante é então esse sistema nervo-so? Sua complexidade crescente parecerá deixar umaamplitude cada vez maior à atividade do ser vivo, a capa-cidade de esperar antes de reagir, e de colocar a excita-ção recebida em relação com uma variedade cada vezmais rica de mecanismos motores. Mas isto é apenas oexterior, e a organização mais complexa do sistema ner-voso, que parece assegurar uma maior independência doser vivo em face da matéria, não faz mais que simbolizarmaterialmente essa própria independência, isto é, a forçainterior que permite ao ser vivo libertar-se do ritmo dotranscorrer das coisas, reter cada vez melhor o passadopara influenciar mais profundamente o futuro, ou seja,enfim, sua memória, no sentido especial que damos aessa palavra. Assim, entre a matéria bruta e o espíritomais capaz de reflexão há todas as intensidades possíveisda memória, ou, o que vem a ser o mesmo, todos osgraus da liberdade. Na primeira hipótese, a que exprimea distinção do espírito e do corpo em termos de espaço,corpo e espírito são como duas vias férreas que se corta-riam em ângulo reto; na segunda, os trilhos se ligam poruma curva, de modo que se passa insensivelmente deuma via à outra.

Mas existe aqui algo mais do que uma imagem? E adistinção não permanece nítida, a oposição irredutível, en-tre a matéria propriamente dita e o mais simples grau deliberdade ou de memória? Sim, certamente, a distinçãosubsiste, mas a união torna-se possível, já que ela seria

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dada, sob a forma radical da coincidência parcial, na per-cepção pura. As dificuldades do dualismo vulgar nãoadvêm de que os dois termos se distingam, mas de quenão se percebe como um deles se introduz no outro. Ora,mostramos que a percepção pura, que seria o grau maisbaixo do espírito - o espírito sem a memória -, faria ver-dadeiramente parte da matéria tal como a entendemos.Vamos mais longe: a memória não intervém como umafunção da qual a matéria não tivesse algum pressenti-mento e que já não imitasse à sua maneira. Se a matérianão se lembra do passado, é porque ela o repete sem ces-sar, porque, submetida à necessidade, ela desenvolve umasérie de momentos em que cada um eqüivale ao prece-dente e pode deduzir-se dele: assim, seu passado é verda-deiramente dado em seu presente. Mas um ser que evoluimais ou menos livremente cria a todo instante algo denovo: é portanto em vão que se buscaria ler seu passadoem seu presente se o passado não se depositasse nele nacondição de lembrança. Assim, para retomar uma metá-fora que já apareceu várias vezes neste livro, é preciso,por razões semelhantes, que o passado seja desempenha-do pela matéria, imaginado pelo espírito.

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RESUMO E CONCLUSÃO

I - A idéia que retiramos dos fatos e confirmamospelo raciocínio é de que o nosso corpo é um instrumentode ação, e somente de ação. Em nenhum grau, em nenhumsentido, sob nenhum aspecto ele serve para preparar, emuito menos explicar, uma representação. Em se tratandoda percepção exterior, há apenas uma diferença de grau,e não de natureza, entre as faculdades ditas perceptivas docérebro e as funções reflexas da medula espinhal. Enquan-to a medula transforma os estímulos recebidos em movi-mento mais ou menos necessariamente executado, o cé-rebro os põe em relação com mecanismos motores maisou menos livremente escolhidos; mas o que se explicapelo cérebro em nossas percepções são nossas ações co-meçadas, ou preparadas, ou sugeridas, e não nossas per-cepções mesmas. - Em se tratando da lembrança, o corpoconserva hábitos motores capazes de desempenhar denovo o passado; pode retomar atitudes em que o passadoirá se inserir; ou ainda, pela repetição de certos fenôme-nos cerebrais que prolongaram antigas percepções, irá for-

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necer à lembrança um ponto de ligação com o atual, ummeio de reconquistar na realidade presente uma influên-cia perdida: mas em nenhum caso o cérebro armazenarálembranças ou imagens. Assim, nem na percepção, nemna memória, nem, com mais razão ainda, nas operaçõessuperiores do espírito, o corpo contribui diretamentepara a representação. Ao desenvolver essa hipótese emseus múltiplos aspectos, levando assim o dualismo aoextremo, parecíamos cavar entre o corpo e o espírito umabismo intransponível. Em realidade, indicávamos oúnico meio possível de reaproximá-los e de uni-los.

II - Todas as dificuldades que esse problema levanta,com efeito, seja no dualismo vulgar, seja no materialis-mo e no idealismo, vêm de que se considera, nos fenô-menos de percepção e de memória, o físico e o moralcomo duplicatas um do outro. O que acontece se me co-locar no ponto de vista materialista da consciência-epife-nômeno? Não compreendo em absoluto por que certosfenômenos cerebrais são acompanhados de consciência,ou seja, para que serve ou como se produz a repetiçãoconsciente do universo material que se pôs de início. - Eno caso do idealismo? Eu me darei então percepções, e meucorpo será uma delas. Mas, enquanto a observação memostra que as imagens percebidas perturbam-se de alto abaixo por variações muito leves daquela que chamo meucorpo (pois é suficiente fechar os olhos para que meuuniverso visual desapareça), a ciência me assegura que to-dos os fenômenos devem suceder-se e condicionar-se se-gundo uma ordem determinada, em que os efeitos são ri-gorosamente proporcionais às causas. Sou portanto obri-gado a buscar nessa imagem que chamo meu corpo, e

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RESUMO E CONCLUSÃO 265

que me acompanha por toda parte, mudanças que sejamos equivalentes, desta vez bem regulados e exatamentemedidos uns em relação aos outros, das imagens que sesucedem em torno de meu corpo: os movimentos cere-brais, que recupero deste modo, irão tornar-se a duplica-ta de minhas percepções. É verdade que esses movimentosserão percepções ainda, percepções "possíveis", de sorteque esta segunda hipótese é mais inteligível que a outra;mas em compensação ela deverá supor, por sua vez, umainexplicável correspondência entre minha percepção realdas coisas e minha percepção possível de certos movi-mentos cerebrais que não se assemelham de maneira al-guma a essas coisas. Se examinarmos de perto, veremosque o obstáculo de todo idealismo encontra-se aí: está napassagem da ordem que nos aparece na percepção àordem que nos resulta na ciência - ou, no caso mais par-ticular do idealismo kantiano, na passagem da sensibili-dade ao entendimento. - Restaria então o dualismo vul-gar. Irei colocar de um lado a matéria, de outro o espíri-to, e supor que os movimentos cerebrais são a causa ou aocasião de minha representação dos objetos. Mas se elessão a causa, se eles bastam para produzi-la, tornarei a cair,gradativamente, na hipótese materialista da consciência-epifenômeno. Se eles são apenas a ocasião, é porque nãose assemelham a ela de maneira alguma; e, despojandoentão a matéria de todas as qualidades que lhe conferi emminha representação, é ao idealismo que retorno. Idealismoe materialismo são portanto os dois pólos entre os quaisesse tipo de dualismo irá oscilar sempre; e quando, paramanter a dualidade das substâncias, ele decidir-se a colo-car ambas no mesmo nível, será levado a ver nelas duas

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traduções de um mesmo original, dois desenvolvimentosparalelos, regulados de antemão, de um único e mesmoprincípio, negando assim sua influência recíproca e, poruma conseqüência inevitável, fazendo o sacrifício da li-berdade.

Cavando agora por baixo dessas três hipóteses, des-cubro-lhes um fundamento comum: elas tomam as ope-rações elementares do espírito, percepção e memória, poroperações de conhecimento puro. O que elas colocam naorigem da consciência é ora a duplicata inútil de uma rea-lidade exterior, ora a matéria inerte de uma construçãointelectual completamente desinteressada: mas negligen-ciam sempre a relação da percepção com a ação e da lem-brança com a conduta. Ora, pode-se conceber certamente,como um limite ideal, uma memória e uma percepção de-sinteressadas; mas, de fato, é para a ação que percepçãoe memória estão voltadas, é esta ação que o corpo prepara.No que concerne à percepção, a complexidade crescentedo sistema nervoso põe o estímulo recebido em relaçãocom uma variedade cada vez mais considerável de apare-lhos motores e deste modo faz com que seja esboçadosimultaneamente um número cada vez maior de açõespossíveis. No que concerne à memória, ela tem por fun-ção primeira evocar todas as percepções passadas análo-gas a uma percepção presente, recordar-nos o que prece-deu e o que seguiu, sugerindo-nos assim a decisão maisútil. Mas não é tudo. Ao captar numa intuição única mo-mentos múltiplos da duração, ela nos libera do movimentode transcorrer das coisas, isto é, do ritmo da necessidade.Quanto mais ela puder condensar esses momentos numúnico, tanto mais sólida será a apreensão que nos propor-

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RESUMO E CONCLUSÃO 267

cionará da matéria; de sorte que a memória de um ser vivoparece medir antes de tudo a capacidade de sua ação so-bre as coisas, e não ser mais do que a repercussão inte-lectual disto. Partamos pois dessa forma de agir como doprincípio verdadeiro; suponhamos que o corpo é um cen-tro de ação, um centro de ação somente, e vejamos queconseqüências irão decorrer daí para a percepção, para amemória e para as relações do corpo com o espírito.

III - Para a percepção em primeiro lugar. Eis aquimeu corpo com seus "centros perceptivos". Estes centrossão estimulados, e tenho a representação das coisas. Poroutro lado, supus que esses estímulos não podiam produ-zir nem traduzir minha percepção. Portanto ela se encon-tra fora deles. Onde está ela? Não há como hesitar: aocolocar meu corpo, coloquei uma certa imagem, mas comisso também a totalidade das outras imagens, uma vezque não há objeto material que não deva suas qualidades,suas determinações, sua existência, enfim, ao lugar queocupa no conjunto do universo. Minha percepção portantosó pode ser algo desses próprios objetos; ela está nelesantes do que eles nela. Mas o que exatamente desses obje-tos é ela? Vejo que minha percepção parece acompanhartodos os detalhes dos estímulos nervosos ditos sensitivos,e por outro lado sei que o papel desses estímulos é unica-mente preparar reações de meu corpo sobre os corposcircundantes, esboçar minhas ações virtuais. Isto porqueperceber consiste em separar, do conjunto dos objetos, aação possível de meu corpo sobre eles. A percepção entãonão é mais que uma seleção. Ela não cria nada; seu papel,ao contrário, é eliminar do conjunto das imagens todasaquelas sobre as quais eu não teria nenhuma influência, e

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depois, de cada uma das imagens retidas, tudo aquilo quenão interessa as necessidades da imagem que chamo meucorpo. Tal é, pelo menos, a explicação muito simplifica-da, a descrição esquemática do que chamamos percepçãopura. Marquemos a seguir a posição que assumíamosassim entre o realismo e o idealismo.

Que toda a realidade tenha um parentesco, uma ana-logia, uma relação, enfim, com a consciência é o que con-cedíamos ao idealismo na medida mesmo em que cha-mávamos as coisas de "imagens". Nenhuma doutrinafilosófica, contanto que se entenda consigo mesma, podealiás escapar a essa conclusão. Mas, se fossem reunidostodos os estados de consciência, passados, presentes epossíveis, de todos os seres conscientes, só se abrangeriacom isso, a nosso ver, uma parte muito pequena da reali-dade material, porque as imagens ultrapassam a percepçãopor todos os lados. São precisamente tais imagens que aciência e a metafísica gostariam de reconstituir, restau-rando em sua totalidade uma cadeia da qual nossa per-cepção só tem alguns elos. Mas, para estabelecer assimentre a percepção e a realidade a relação da parte com otodo, seria preciso atribuir à percepção sua função verda-deira, que é preparar ações. É o que não faz o idealismo.Por que ele não consegue, como dizíamos há pouco, pas-sar da ordem que se manifesta na percepção à ordem queresulta na ciência, isto é, da contingência com a qual nos-sas sensações parecem suceder-se ao determinismo queliga os fenômenos da natureza? Precisamente porque eleatribui à consciência, na percepção, um papel especulati-vo, de sorte que não se percebe em absoluto que interesseessa consciência teria em deixar escapar entre duas sen-

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RESUMO E CONCLUSÃO 269

sações, por exemplo, as mediações pelas quais a segundase deduz da primeira. São essas mediações e sua ordemrigorosa que permanecem então obscuras, quer se insti-tuam essas mediações em "sensações possíveis", segun-do a expressão de Mill, quer se atribua essa ordem, comoo faz Kant, às substruções estabelecidas pelo entendi-mento impessoal. Mas suponhamos que minha percep-ção consciente tenha uma destinação inteiramente prática,que ela desenhe simplesmente, no conjunto das coisas, oque interessa à minha ação possível sobre elas: com-preendo que todo o resto me escape, e que todo o resto,no entanto, seja da mesma natureza que aquilo que per-cebo. Meu conhecimento da matéria então já não é nemsubjetivo, como é para o idealismo inglês, nem relativo,como deseja o idealismo kantiano. Não é subjetivo por-que está mais nas coisas do que em mim. Não é relativoporque não há entre o "fenômeno" e a "coisa" a relação daaparência à realidade, mas simplesmente a da parte ao todo.

Por aí parecíamos retornar ao realismo. Mas o realis-mo, se não o corrigirmos num ponto essencial, é tão ina-ceitável quanto o idealismo, e pela mesma razão. O idea-lismo, dizíamos, não consegue passar da ordem que semanifesta na percepção à ordem que resulta na ciência,isto é, na realidade. O realismo, inversamente, fracassaem obter da realidade o conhecimento imediato que temosdela. Vejamos, com efeito, o que se passa no realismo vul-gar: tem-se de um lado uma matéria múltipla, compostade partes mais ou menos independentes, difusa no espa-ço, e de outro um espírito que não pode ter nenhum con-tato com ela, a menos que seja, como querem os materia-listas, seu ininteligível epifenômeno. Consideremos no

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outro extremo o realismo kantiano: entre a coisa em si,isto é, o real, e a diversidade sensível com a qual cons-truímos nosso conhecimento, não se acha nenhuma rela-ção concebível, nenhuma medida comum. Aprofundandoagora essas duas formas extremas de realismo, vemo-lasconvergir para um mesmo ponto: ambas erguem o espa-ço homogêneo como uma barreira entre a inteligência eas coisas. O realismo ingênuo faz desse espaço um meioreal onde as coisas estariam em suspensão; o realismokantiano o considera um meio ideal onde a multiplicida-de das sensações se coordena; mas para ambos esse meioé dado, de início, como a condição necessária do que aívirá se colocar. E, aprofundando por sua vez essa comumhipótese, vemos que ela consiste em atribuir ao espaçohomogêneo um papel desinteressado, quer ele preste àrealidade material o serviço de sustentá-la, quer tenha afunção, ainda inteiramente especulativa, de fornecer àssensações o meio de se coordenarem entre si. De sorte quea obscuridade do realismo, como a do idealismo, decor-re de se orientar nossa percepção consciente, e as condi-ções de nossa percepção consciente, para o conhecimen-to puro e não para a ação. - Mas suponhamos agora queesse espaço homogêneo não seja logicamente anterior,mas posterior às coisas materiais e ao conhecimento puroque podemos ter delas; suponhamos que a extensão pre-cede o espaço; suponhamos que o espaço homogêneo dizrespeito à nossa ação, e à nossa ação somente, sendo co-mo uma rede infinitamente dividida que estendemos abai-xo da continuidade material para nos tornarmos senhoresdela, para decompô-la na direção de nossas atividades enecessidades. Com isso não conseguimos apenas satisfa-

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RESUMO E CONCL USÃO 271

zer a ciência, que nos mostra cada coisa exercendo suainfluência sobre todas as outras, conseqüentemente ocu-pando num certo sentido a totalidade da extensão (embo-ra percebamos dessa coisa apenas seu centro e fixemosseus limites no ponto onde nosso corpo deixaria de terinfluência sobre ela). Não conseguimos apenas, em me-tafísica, resolver ou atenuar as contradições que a divisi-bilidade no espaço levanta, contradições que nascem sem-pre, conforme mostramos, do fato de não se dissociaremos dois pontos de vista da ação e do conhecimento.Conseguimos sobretudo derrubar a insuperável barreiraque o realismo erguia entre as coisas extensas e a percep-ção que temos delas. Com efeito, enquanto se colocavade um lado uma realidade exterior múltipla e dividida ede outro sensações estranhas à extensão e sem contatopossível com ela, damo-nos conta de que a extensão con-creta não é realmente dividida, assim como a percepçãoimediata não é verdadeiramente inextensiva. Partindo dorealismo, retornamos ao mesmo ponto a que o idealismonos havia conduzido; recolocamos a percepção nas coi-sas. Vemos assim realismo e idealismo muito próximosde coincidirem, à medida que afastamos o postulado,aceito sem discussão por ambos, que lhes servia de limi-te comum.

Em resumo, se supomos uma continuidade extensa,e nessa própria continuidade o centro de ação real que éfigurado por nosso corpo, essa atividade parecerá ilumi-nar com sua luz todas as partes da matéria sobre as quaisa cada instante ela teria influência. As mesmas necessi-dades, a mesma capacidade de agir, que recortaramnosso corpo na matéria, irão delimitar corpos distintos

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no meio que nos cerca. Tudo se passará como se deixás-semos filtrar a ação real das coisas exteriores para deter ereter delas a ação virtual: essa ação virtual das coisassobre nosso corpo e de nosso corpo sobre as coisas é pro-priamente a nossa percepção. Mas, como os estímulosque nosso corpo recebe dos corpos circundantes deter-minam constantemente, em sua substância, reações nas-centes, e como os movimentos interiores da substânciacerebral esboçam assim a todo momento nossa ação possí-vel sobre as coisas, o estado cerebral corresponde exata-mente à percepção. Não é nem sua causa, nem seu efei-to, nem, em nenhum sentido, sua duplicata: ele simples-mente a prolonga, a percepção sendo nossa ação virtual e oestado cerebral nossa ação começada.

IV - Mas essa teoria da "percepção pura" precisavaser atenuada e completada ao mesmo tempo em doispontos. Essa percepção pura, com efeito, que seria comoum fragmento destacado tal e qual da realidade, perten-ceria a um ser que não misturaria à percepção dos outroscorpos a de seu corpo, isto é, suas afecções, nem à suaintuição do momento atual a dos outros momentos, istoé, suas lembranças. Em outras palavras, para facilitar oestudo tratamos inicialmente o corpo vivo como um pon-to matemático no espaço e a percepção consciente comoum instante matemático no tempo. Era preciso restituirao corpo sua extensão e à percepção sua duração. Porisso reintegramos na consciência seus dois elementos sub-jetivos, a afetividade e a memória.

O que é uma afecção? Nossa percepção, dizíamos,desenha a ação possível de nosso corpo sobre os outroscorpos. Mas nosso corpo, sendo extenso, é capaz de agir

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RESUMO E CONCLUSÃO 273

sobre si mesmo tanto quanto sobre os outros. Em nossapercepção entrará portanto algo de nosso corpo. Todavia,quando se trata dos corpos circundantes, eles são, porhipótese, separados do nosso corpo por um espaço maisou menos considerável, que mede o afastamento de suaspromessas ou de suas ameaças no tempo: é por isso quenossa percepção desses corpos só desenha ações possí-veis. Ao contrário, quanto mais a distância diminui entreesses corpos e o nosso, tanto mais a ação possível tendea se transformar em ação real, a ação tornando-se maisurgente à medida que a distância decresce. E, quandoessa distância é nula, ou seja, quando o corpo a perceberestá em nosso próprio corpo, é uma ação real, e não maisvirtual, que a percepção desenha. Tal é precisamente anatureza da dor, esforço atual da parte lesada para reco-locar as coisas no lugar, esforço local, isolado, e por issomesmo condenado ao insucesso num organismo que jánão é mais apto senão aos efeitos de conjunto. A dor por-tanto está no local onde se produz, como o objeto está nolugar onde é percebido. Entre a afecção sentida e a imagempercebida existe a diferença de que a afecção está emnosso corpo, a imagem fora de nosso corpo. E por isso asuperfície de nosso corpo, limite comum deste corpo edos outros corpos, nos é dada ao mesmo tempo na formade sensação e na forma de imagem.

Na interioridade da sensação afetiva consiste sua sub-jetividade, na exterioridade das imagens em geral, sua obje-tividade. Mas encontramos aqui o erro que renasce a todoinstante e que perseguimos ao longo de todo o nosso tra-balho. Pretende-se que sensação e percepção existam porsi mesmas; atribui-se-lhes um papel inteiramente especula-

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tivo; e, como se negligenciaram essas ações reais e virtuaisnas quais se incorporam e que serviriam para distingui-las, não se é mais capaz de perceber entre elas mais doque uma diferença de grau. A partir então do fato de quea sensação afetiva só é vagamente localizada (por causada confusão do esforço que envolve), ela é declaradaimediatamente inextensiva; e fazem-se dessas afecçõesdiminuídas ou sensações inextensivas os materiais comos quais construiríamos imagens no espaço. Não se con-segue assim explicar nem de onde vêm os elementos deconsciência ou sensações, tomados como absolutos, nemde que modo essas sensações, inextensivas, juntam-se aoespaço para nele se coordenarem, nem por que elas ado-tam aí uma ordem em vez de outra, nem, finalmente, deque maneira chegam a constituir uma experiência estável,comum a todos os homens. É dessa experiência, palconecessário de nossa atividade, que devemos ao contráriopartir. É portanto a percepção pura, isto é, a imagem, quedevemos nos dar em primeiro lugar. E as sensações, longede serem os materiais com que a imagem é fabricada,aparecerão como a impureza que nela se mistura, sendoaquilo que projetamos de nosso corpo em todos os outros.

V - Mas, enquanto nos atemos à sensação e à per-cepção pura, é difícil afirmar que estejamos tratando doespírito. Certamente estabelecemos contra a teoria da cons-ciência-epifenômeno que nenhum estado cerebral é o equi-valente de uma percepção. Certamente a seleção das per-cepções entre as imagens em geral é o efeito de um dis-cernimento que anuncia já o espírito. Certamente, enfim, opróprio universo material, definido como a totalidade dasimagens, é uma espécie de consciência, uma consciência

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em que tudo se compensa e se neutraliza, uma consciên-cia em que todas as partes eventuais, equilibrando-se umasàs outras através de reações sempre iguais às ações, im-pedem-se reciprocamente de se destacarem. Mas para tocara realidade do espírito é preciso colocar-se ali onde umaconsciência individual, prolongando e conservando o pas-sado num presente que se enriquece dele, subtrai-se àprópria lei da necessidade, que quer que o passado pro-longue-se interminavelmente num presente que apenas orepete de uma outra forma, e que tudo continue sempre atranscorrer. Ao passar da percepção pura para a memória,abandonávamos definitivamente a matéria pelo espírito.

VI - A teoria da memória, que constitui o centro denosso trabalho, precisava ser ao mesmo tempo a conse-qüência teórica e a verificação experimental de nossateoria da percepção pura. Que os estados cerebrais queacompanham a percepção não sejam nem sua causa nemsua duplicata, que a percepção esteja para seu concomi-tante fisiológico assim como a ação virtual para a açãocomeçada é o que não podíamos estabelecer através defatos, já que tudo se passará em nossa hipótese como sea percepção resultasse do estado cerebral. Na percepçãopura, com efeito, o objeto percebido é um objeto presen-te, um corpo que modifica o nosso. A imagem dele por-tanto é atualmente dada, e a partir daí os fatos nos permi-tem indiferentemente dizer (com o risco de nos entender-mos muito desigualmente com nós mesmos) que as modi-ficações cerebrais esboçam as reações nascentes de nossocorpo ou que elas criam a duplicata consciente da ima-gem presente. Mas com a memória é bem diferente, poisa lembrança é a representação de um objeto ausente. Aqui

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as duas hipóteses terão conseqüências opostas. Se, nocaso de um objeto presente, um estado de nosso corpo jábastava para criar a representação do objeto, com muitomais razão esse estado será suficiente também no casodo mesmo objeto ausente. Será preciso portanto, nessateoria, que a lembrança surja da repetição atenuada dofenômeno cerebral que ocasionava a percepção primária,e consista simplesmente em uma percepção enfraqueci-da. Donde essa dupla tese: A memória não é senão umafunção do cérebro, e entre a percepção e a lembrança sóhá uma diferença de intensidade. — Ao contrário, se o es-tado cerebral não engendrasse de maneira alguma nossapercepção do objeto presente mas apenas a prolongasse,ele poderia também prolongar e fazer culminar a lem-brança que evocamos dela, mas não fazê-la surgir. E, poroutro lado, como nossa percepção do objeto presente eraalgo desse objeto mesmo, nossa representação do objetoausente será um fenômeno completamente diferente dapercepção, uma vez que entre a presença e a ausência nãohá nenhum grau, nenhum meio-termo. Donde essa duplatese, inversa da precedente: A memória é algo diferentede uma função do cérebro, e não há uma diferença de grau,mas de natureza, entre a percepção e a lembrança. - Aoposição das duas teorias adquire então uma forma agu-da, e a experiência pode, desta vez, desempatá-las.

Não retornaremos aqui aos detalhes da verificaçãoque tentamos. Recordemos apenas seus pontos essen-ciais. Todos os argumentos de fato que se podem invocara favor de uma acumulação provável das lembranças nasubstância cortical são obtidos das doenças localizadasda memória. Mas, se as lembranças fossem realmente de-

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positadas no cérebro, aos esquecimentos bem definidoscorresponderiam lesões do cérebro caracterizadas. Ora, nasamnésias em que todo um período de nossa existênciapassada, por exemplo, é bruscamente e radicalmente ar-rancado da memória, não se observa lesão cerebral preci-sa; e, ao contrário, nos distúrbios da memória em que alocalização cerebral é clara e certa, isto é, nas diversasafasias e nas doenças do reconhecimento visual ou audi-tivo, não são tais e tais lembranças determinadas que sãocomo que arrancadas do lugar que ocupariam, é a facul-dade de evocação que é mais ou menos diminuída em suavitalidade, como se o paciente tivesse maior ou menordificuldade para colocar suas lembranças em contato coma situação presente. É portanto o mecanismo desse con-tato que deveria ser estudado, a fim de se verificar se opapel do cérebro não seria o de assegurar seu funciona-mento, em vez de aprisionar as próprias lembranças emsuas células. Fomos levados assim a acompanhar em todasas suas evoluções o movimento progressivo pelo qual opassado e o presente entram em contato um com o outro,ou seja, o reconhecimento. E descobrimos, com efeito, queo reconhecimento de um objeto presente podia ser feitode duas maneiras absolutamente diferentes, mas que emnenhum dos casos o cérebro comportava-se como um re-servatório de imagens. Com efeito, ora por um reconhe-cimento inteiramente passivo, antes desempenhado do quepensado, o corpo faz corresponder a uma percepção re-novada um procedimento que se tornou automático: tudose explica então pelos aparelhos motores que o hábitomontou no corpo, e lesões da memória poderão resultarda destruição desses mecanismos. Ao contrário, ora o reco-

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nhecimento se faz ativamente, por imagens-lembrançasque vão ao encontro da percepção presente; mas então épreciso que essas lembranças, no momento de se coloca-rem sobre a percepção, encontrem um meio de acionarno cérebro os mesmos aparelhos que a percepção põeordinariamente em funcionamento para agir: senão, con-denadas de antemão à impotência, elas não terão nenhu-ma tendência a se atualizar. E é por isso que, em todos oscasos em que uma lesão do cérebro atinge uma certacategoria de lembranças, as lembranças atingidas não seassemelham, por exemplo, pelo fato de serem da mesmaépoca, ou por terem um parentesco lógico entre si, massimplesmente porque são todas auditivas, ou todas visuais,ou todas motoras. O que parece lesado, portanto, são asdiversas regiões sensoriais e motoras ou, mais freqüente-mente ainda, os anexos que permitem acioná-las do pró-prio interior do córtex, e não as lembranças propriamenteditas. Fomos ainda mais longe, e, por um estudo atento doreconhecimento das palavras, bem como dos fenômenosda afasia sensorial, procuramos estabelecer que o reco-nhecimento não se fazia em absoluto por um despertarmecânico de lembranças adormecidas no cérebro. Eleimplica, ao contrário, uma tensão mais ou menos alta daconsciência, que vai buscar na memória pura as lembran-ças puras, para materializá-las progressivamente em con-tato com a percepção presente.

Mas o que é a memória pura, e o que são as lembran-ças puras? Ao responder a essa questão, completávamosa demonstração de nossa tese. Acabávamos de estabelecerseu primeiro ponto, a saber: a memória é algo diferente deuma função do cérebro. Faltava-nos mostrar, pela análise

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da "lembrança pura", que não há entre a lembrança e apercepção uma simples diferença de grau, mas uma dife-rença radical de natureza.

VII - Assinalemos de imediato o alcance metafísico,e não mais apenas psicológico, deste último problema. Écertamente uma tese de pura psicologia a que afirma: alembrança é uma percepção enfraquecida. Mas não nosenganemos com ela: se a lembrança é apenas uma percep-ção mais fraca, inversamente a percepção será algo comouma lembrança mais intensa. Ora, o germe do idealismoinglês encontra-se aí. Esse idealismo consiste em ver umadiferença apenas de grau, e não de natureza, entre a rea-lidade do objeto percebido e a idealidade do objeto con-cebido. E a idéia de que construímos a matéria com nos-sos estados interiores, de que a percepção não é mais queuma alucinação verdadeira, vem daí igualmente. É essaidéia que não cessamos de combater quando tratamos damatéria. Portanto, ou nossa concepção da matéria é falsa,ou a lembrança distingue-se radicalmente da percepção.

Deste modo transpusemos um problema metafísicoa ponto de fazê-lo coincidir com um problema de psico-logia, que a observação pura e simples é capaz de resol-ver. De que modo ela o resolve? Se a lembrança de umapercepção não fosse mais que essa percepção enfraqueci-da, aconteceria, por exemplo, tomarmos a percepção deum som leve como a lembrança de um ruído intenso. Ora,semelhante confusão nunca se produz. Mas pode-se irmais longe, e provar, ainda pela observação, que jamais aconsciência de uma lembrança começa sendo um estadoatual mais fraco que procuraríamos lançar no passado apóster tomado consciência de sua fraqueza: de que maneira,

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aliás, seja não tivéssemos a representação de um passa-do anteriormente vivido, poderíamos relegar a eles os es-tados psicológicos menos intensos, quando seria tão sim-ples justapô-los aos estados fortes, como uma experiên-cia presente mais confusa a uma experiência presentemais clara? A verdade é que a memória não consiste, emabsoluto, numa regressão do presente ao passado, mas,pelo contrário, num progresso do passado ao presente. Éno passado que nos colocamos de saída. Partimos de um"estado virtual", que conduzimos pouco a pouco, atravésde uma série de planos de consciência diferentes, até otermo em que ele se materializa numa percepção atual,isto é, até o ponto em que ele se torna um estado presentee atuante, ou seja, enfim, até esse plano extremo de nossaconsciência em que se desenha nosso corpo. Nesse esta-do virtual consiste a lembrança pura.

Como se explica que se desconheça aqui o testemu-nho da consciência? Como se explica que se faça da lem-brança uma percepção mais fraca, da qual não se é capaz dedizer por que a relegamos ao passado, nem como recupe-ramos sua data, nem com que direito ela reaparece nummomento e não num outro? Tudo provém de que se es-quece a destinação prática de nossos estados psicológicosatuais. Faz-se da percepção uma operação desinteressadado espírito, uma contemplação somente. Então, como alembrança pura só pode evidentemente ser algo desse gê-nero (já que ela não corresponde a uma realidade presen-te e premente), lembrança e percepção tornam-se estadosda mesma natureza, entre os quais só se pode achar umadiferença de intensidade. Mas a verdade é que nosso pre-sente não deve se definir como o que é mais intenso: ele

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é o que age sobre nós e o que nos faz agir, ele é sensoriale é motor; - nosso presente é antes de tudo o estado denosso corpo. Nosso passado, ao contrário, é o que não agemais, mas poderia agir, o que agirá ao inserir-se numasensação presente da qual tomará emprestada a vitalida-de. É verdade que, no momento em que a lembrança seatualiza passando assim a agir, ela deixa de ser lembrança,torna-se novamente percepção.

Compreende-se então por que a lembrança não po-dia resultar de um estado cerebral. O estado cerebral pro-longa a lembrança; faz com que ela atue sobre o presen-te pela materialidade que lhe confere; mas a lembrançapura é uma manifestação espiritual. Com a memória esta-mos efetivamente no domínio do espírito.

VIII - Não nos cabia explorar esse domínio. Coloca-dos na confluência do espírito e da matéria, desejososacima de tudo de vê-los fluindo um no outro, precisáva-mos reter da espontaneidade da inteligência apenas seuponto de junção com um mecanismo corporal. Foi assimque pudemos observar o fenômeno da associação deidéias, e o nascimento das idéias gerais mais simples.

Qual é o erro capital do associacionismo? É o de terposto todas as lembranças no mesmo plano, ter desco-nhecido a distância mais ou menos considerável que assepara do estado corporal presente, ou seja, da ação. As-sim ele não consegue explicar nem como a lembrançaadere à percepção que a evoca, nem por que a associaçãose faz por semelhança ou contigüidade e não de outra ma-neira, nem, finalmente, por que capricho essa lembrançadeterminada é eleita entre os milhares de lembranças quea semelhança ou a contigüidade uniriam da mesma forma

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à percepção atual. Vale dizer que o associacionismo mis-turou e confundiu todos os planos de consciência dife-rentes, obstinando-se em ver numa lembrança menos com-pleta apenas uma lembrança menos complexa, quandoem realidade trata-se de uma lembrança menos sonhada,isto é, mais próxima da ação e por isso mesmo mais ba-nal, mais capaz de se modelar - como uma roupa de con-fecção - conforme a novidade da situação presente. Osadversários do associacionismo o acompanharam, aliás,nessa visão. Censuram-no por explicar através de asso-ciações as operações superiores do espírito, mas não pordesconhecer a verdadeira natureza da própria associação.Este, no entanto, é o vício original do associacionismo.

Entre o plano da ação - o plano em que nosso corpocontraiu seu passado em hábitos motores - e o plano damemória pura, em que nosso espírito conserva em todosos seus detalhes o quadro de nossa vida transcorrida,acreditamos perceber, ao contrário, milhares e milharesde planos de consciência diferentes, milhares de repetiçõesintegrais e no entanto diversas da totalidade de nossaexperiência vivida. Completar uma lembrança com deta-lhes mais pessoais não consiste, de modo algum, em jus-tapor mecanicamente lembranças a esta lembrança, masem transportar-se a um plano de consciência mais exten-so, em afastar-se da ação na direção do sonho. Localizaruma lembrança não consiste também em inseri-la meca-nicamente entre outras lembranças, mas em descrever,por uma expansão crescente da memória em sua integra-lidade, um círculo suficientemente amplo para que essedetalhe do passado aí apareça. Esses planos não são da-dos, aliás, como coisas inteiramente prontas, superpostas

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umas às outras. Eles existem antes virtualmente, com es-sa experiência que é própria às coisas do espírito. A inte-ligência, movendo-se a todo instante ao longo do intervaloque as separa, as reencontra, ou melhor, as cria de novosem cessar: sua vida consiste nesse próprio movimento.Então compreendemos por que as leis da associação sãoa semelhança e a contigüidade e não outras leis, e porque a memória escolhe, entre as lembranças semelhantesou contíguas, certas imagens em vez de outras, e enfimcomo se formam, pelo trabalho combinado do corpo e doespírito, as primeiras noções gerais. O interesse de um servivo é perceber numa situação presente o que se asseme-lha a uma situação anterior, em seguida aproximar dela oque a precedeu e sobretudo o que a sucedeu, a fim detirar proveito de sua experiência passada. De todas as as-sociações que se poderiam imaginar, as associações porsemelhança e por contigüidade são portanto as únicasque têm inicialmente uma utilidade vital. Mas, para com-preender o mecanismo dessas associações e sobretudo aseleção aparentemente caprichosa que elas operam entre aslembranças, é preciso colocar-se alternadamente nessesdois planos extremos que chamamos de plano da ação eplano do sonho. No primeiro só figuram hábitos moto-res, dos quais se pode dizer que são antes associaçõespraticadas ou vividas do que representadas: aqui, seme-lhança e contigüidade encontram-se fundidas, pois situa-ções anteriores análogas, ao se repetirem, acabaram porligar certos movimentos de nosso corpo entre si, e a partirde então a mesma reação automática em que iremos de-senvolver esses movimentos contíguos extrairá tambémda situação que os ocasiona sua semelhança com as situa-

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ções anteriores. Mas, à medida que se passa dos movimen-tos às imagens, e das imagens mais pobres às imagensmais ricas, semelhança e contigüidade se dissociam: aca-bam por se opor nesse outro plano extremo em que já ne-nhuma ação adere às imagens. A escolha de uma seme-lhança entre muitas semelhanças, de uma contigüidadeentre outras contigüidades, não se opera portanto ao aca-so: depende do grau constantemente variável de tensão damemória, a qual, conforme se incline mais a inserir-se naação presente ou a afastar-se dela, transpõe-se por intei-ro em um ou em outro tom. É também esse duplo movi-mento da memória entre seus dois limites extremos quedesenha, conforme mostramos, as primeiras noções gerais,o hábito motor remontando às imagens semelhantes paraextrair-lhes as similitudes, as imagens semelhantes tornan-do a descer para o hábito motor a fim de se fundirem, porexemplo, na pronúncia automática da palavra que as une.A generalidade nascente da idéia já consiste portanto emuma certa atividade do espírito, em um movimento entrea ação e a representação. E por isso será sempre fácilpara uma certa filosofia, dizíamos, localizar a idéia geralem uma das duas extremidades, cristalizando-a em pala-vras ou evaporando-a em lembranças, quando em realida-de ela consiste na marcha do espírito que vai de umaextremidade à outra.

IX - Ao nos representarmos assim a atividade men-tal elementar, ao fazermos desta vez de nosso corpo, comtudo o que o cerca, o último plano de nossa memória, aimagem extrema, a ponta movente que nosso passadolança a todo momento em nosso futuro, confirmávamose esclarecíamos o que havíamos dito do papel do corpo,

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ao mesmo tempo que preparávamos o caminho para umareaproximação entre o corpo e o espírito.

Com efeito, após termos estudado sucessivamente apercepção pura e a memória pura, faltava-nos aproximá-las uma da outra. Se a lembrança pura é já o espírito, e sea percepção pura seria ainda algo da matéria, precisáva-mos, colocando-nos no ponto de junção entre a percepçãopura e a lembrança pura, jogar alguma luz sobre a açãorecíproca do espírito e da matéria. Na verdade, a percep-ção "pura", ou seja, instantânea, é apenas um ideal, umlimite. Toda percepção ocupa uma certa espessura de du-ração, prolonga o passado no presente, e participa porisso da memória. Ao tomarmos então a percepção emsua forma concreta, como uma síntese da lembrança purae da percepção pura, isto é, do espírito e da matéria, en-cerrávamos em seus limites mais estreitos o problema daunião da alma com o corpo. Tal é o esforço que tentamossobretudo na última parte do nosso trabalho.

A oposição dos dois princípios, no dualismo em ge-ral, converte-se na tríplice oposição do inextenso ao ex-tenso, da qualidade à quantidade e da liberdade à neces-sidade. Se nossa concepção do papel do corpo, se nossasanálises da percepção pura e da lembrança pura devemesclarecer por algum lado a correlação do corpo ao espí-rito, só pode ser com a condição de suspender ou atenuaressas três oposições. Examinemo-las portanto uma a uma,apresentando aqui de uma forma mais metafísica as con-clusões que quisemos obter da simples psicologia.

1) Se imaginarmos de um lado uma extensão real-mente dividida em corpúsculos, por exemplo, e de outrouma consciência com sensações em si mesmas inextensi-

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vas que viriam se projetar no espaço, não encontraremosevidentemente nada em comum entre essa matéria e essaconsciência, entre o corpo e o espírito. Mas tal oposiçãoda percepção e da matéria é obra artificial de um enten-dimento que decompõe e recompõe de acordo com seushábitos ou suas leis: ela não é dada à intuição imediata.O que é dado não são sensações inextensivas: como ha-veriam elas de juntar-se ao espaço, escolher um lugar,coordenar-se enfim a ele para construir uma experiênciauniversal? O que é real também não é uma extensão divi-dida em partes independentes: de que maneira aliás, nãotendo assim nenhuma relação possível com nossa cons-ciência, ela haveria de desenvolver uma série de mudan-ças cuja ordem e cujas relações correspondessem exata-mente à ordem e às relações de nossa representação? Oque é dado, o que é real, é algo intermediário entre a ex-tensão dividida e o inextenso puro; é aquilo que chama-mos de extensivo. A extensão é a qualidade mais evidenteda percepção. É ao consolidá-la e ao subdividi-la por in-termédio de um espaço abstrato, colocado por nós abai-xo dela para as necessidades da ação, que constituímos aextensão múltipla e indefinidamente divisível. É ao suti-lizá-la, ao contrário, é ao fazer com que ela sucessivamen-te se dissolva em sensações afetivas e se evapore em con-trafações das idéias puras, que obtemos essas sensaçõesinextensivas com as quais buscamos em vão, a seguir,reconstituir imagens. As duas direções opostas nas quaisperseguimos esse duplo trabalho apresentam-se a nós commuita naturalidade, pois resulta das próprias necessidadesda ação que a extensão seja recortada por nós em objetosabsolutamente independentes (donde uma indicação para

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subdividir a extensão) e que se passe por graus insensí-veis da afecção à percepção (donde uma tendência a su-por a percepção cada vez mais inextensiva). Mas nossoentendimento, cujo papel é justamente estabelecer distin-ções lógicas e portanto oposições nítidas, lança-se nosdois caminhos alternadamente, e em cada um deles vaiaté o fim. Erige assim, numa das extremidades, uma ex-tensão indefinidamente divisível, e na outra sensaçõesabsolutamente inextensivas. Deste modo cria a oposiçãocujo espetáculo promove em seguida.

2) Bem menos artificial é a oposição da qualidade àquantidade, ou seja, da consciência ao movimento: masessa oposição só é radical se começamos aceitando a pri-meira. Suponha, com efeito, que as qualidades das coisasse reduzam a sensações inextensivas afetando uma cons-ciência, de sorte que essas qualidades representem apenas,como outros tantos símbolos, mudanças homogêneas ecalculáveis realizando-se no espaço: você terá que imagi-nar entre essas sensações e essas mudanças uma incom-preensível correspondência. Renuncie, pelo contrário, aestabelecer apriori entre elas essa contrariedade factícia:você verá cair uma a uma todas as barreiras que pareciamsepará-las. Em primeiro lugar, não é verdade que a cons-ciência assista, enrolada em si mesma, a um desfile inte-rior de percepções inextensivas. É portanto nas própriascoisas percebidas que você irá recolocar a percepção pura,afastando assim um primeiro obstáculo. É verdade quevocê encontrará um segundo: as mudanças homogênease calculáveis sobre as quais a ciência opera parecem per-tencer a elementos múltiplos e independentes, como osátomos, dos quais elas não seriam senão o acidente; essa

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multiplicidade irá interpor-se entre a percepção e seu obje-to. Mas, se a divisão da extensão é puramente relativa ànossa ação possível sobre ela, a idéia de corpúsculos in-dependentes é afortiori esquemática e provisória; a pró-pria ciência, aliás, nos autoriza a descartá-la. Eis uma se-gunda barreira vencida. Resta ultrapassar um último in-tervalo, o que há entre a heterogeneidade das qualidadese a homogeneidade aparente dos movimentos na exten-são. Mas, justamente porque eliminamos os elementos,átomos ou quaisquer outros, que esses movimentos teriampor sede, não se trata mais aqui do movimento que é oacidente de um móvel, do movimento abstrato que a me-cânica estuda e que, no fundo, é apenas a medida comumdos movimentos concretos. De que modo esse movimen-to abstrato, que se torna imobilidade quando se muda deponto de referência, poderia fundar mudanças reais, istoé, sentidas? De que modo, composto de uma série de po-sições instantâneas, preencheria uma duração cujas par-tes se prolongam e se desenvolvem umas nas outras?Uma única hipótese permanece portanto possível, a deque o movimento concreto, capaz, como a consciência, deprolongar seu passado no presente, capaz, ao se repetir,de engendrar as qualidades sensíveis, já seja algo da cons-ciência, algo da sensação. Seria essa mesma sensaçãodiluída, repartida num número infinitamente maior demomentos, essa mesma sensação vibrando, como dizía-mos, no interior de sua crisálida. Então um último pontorestaria elucidar: como se opera a contração, não mais,certamente, de movimentos homogêneos em qualidadesdistintas, mas de mudanças menos heterogêneas em mu-danças mais heterogêneas? Mas a essa questão responde

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nossa análise da percepção concreta: essa percepção, sín-tese viva da percepção pura e da memória pura, resumenecessariamente em sua aparente simplicidade uma mul-tiplicidade enorme de momentos. Entre as qualidades sen-síveis consideradas em nossa representação e essas mes-mas qualidades tratadas como mudanças calculáveis, háportanto apenas uma diferença de ritmo de duração, umadiferença de tensão interior. Assim, através da idéia detensão procuramos suspender a oposição da qualidade àquantidade, como, através da idéia de extensão, a do inex-tenso ao extenso. Extensão e tensão admitem graus múl-tiplos, mas sempre determinados. A função do entendimen-to é retirar desses dois gêneros, extensão e tensão, seurecipiente vazio, isto é, o espaço homogêneo e a quanti-dade pura, substituir deste modo realidades flexíveis, quecomportam graus, por abstrações rígidas, nascidas dasnecessidades da ação, que se podem apenas pegar ou lar-gar, e assim colocar ao pensamento reflexivo dilemas cujasalternativas jamais são aceitas pelas coisas.

3) Se considerarmos deste modo as relações doextenso ao inextenso, da qualidade à quantidade, teremosmenos dificuldade para compreender a terceira e últimaoposição, entre a liberdade e a necessidade. A necessida-de absoluta seria representada por uma equivalência per-feita dos momentos sucessivos da duração uns em rela-ção aos outros. É o que se passa com a duração do uni-verso material? Cada um desses momentos poderia serdeduzido matematicamente do precedente? Supusemosem todo este trabalho, para comodidade do estudo, queefetivamente era assim: com efeito, é tal a distância entreo ritmo de nossa duração e o do transcorrer das coisas

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que a contingência do curso da natureza, tão profundamen-te estudada por uma filosofia recente, deve eqüivaler naprática, para nós, à necessidade. Conservemos portantonossa hipótese, que no entanto seria conveniente atenuar.Mesmo então, a liberdade não estará na natureza comoum império dentro de um império. Dizíamos que essanatureza podia ser considerada como uma consciêncianeutralizada e portanto latente, uma consciência cujas ma-nifestações eventuais estariam reciprocamente em xequee se anulariam no momento preciso em que quisessemaparecer. Os primeiros clarões aí lançados por uma cons-ciência individual não a iluminam portanto com uma luzinesperada: essa consciência não faz senão afastar umobstáculo, extrair do todo real uma parte virtual, escolhere separar enfim o que a interessava; e, se, por esta sele-ção inteligente, ela testemunha efetivamente que deve aoespírito sua forma, é da natureza que obtém sua matéria.Ao mesmo tempo, aliás, que assistimos à eclosão dessaconsciência, vemos desenharem-se corpos vivos, capa-zes, em sua forma mais simples, de movimentos espontâ-neos e imprevistos. O progresso da matéria viva consistenuma diferenciação das funções que leva primeiramenteà formação, e depois à complicação gradual, de um sis-tema nervoso capaz de canalizar excitações e organizarações: quanto mais os centros superiores se desenvolve-rem, mais numerosas se tornarão as vias motoras entre asquais uma mesma excitação irá propor à ação uma esco-lha. Uma amplitude cada vez maior oferecida ao movi-mento no espaço, eis efetivamente o que se vê. O que nãose vê é a tensão crescente e concomitante da consciênciano tempo. Não apenas, por sua memória das experiências

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já antigas, essa consciência retém cada vez melhor o pas-sado para organizá-lo com o presente numa decisão maisrica e mais nova, como, vivendo uma vida mais intensa,condensando, por sua memória da experiência imediata,um número crescente de momentos exteriores em suaduração presente, ela torna-se mais capaz de criar atoscuja indeterminação interna, devendo repartir-se em umamultiplicidade tão grande quanto se queira dos momen-tos da matéria, passará tanto mais facilmente através dasmalhas da necessidade. Assim, quer a consideremos notempo ou no espaço, a liberdade parece sempre lançar nanecessidade raízes profundas e organizar-se intimamentecom ela. O espírito retira da matéria as percepções queserão seu alimento, e as devolve a ela na forma de movi-mento, em que imprimiu sua liberdade.