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BERNARDO, João. Epílogo e prefácio (um testemunho presencial)

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BERNARDO, João. Epílogo e prefácio (um testemunho presencial)

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  • Eplogo e prefcio (um testemunho presencial)Joo Bernardo*

    Resumo:O autor mistura recordaes do combate poltico com uma sntese dosresultados a que chegou em algumas das suas obras tericas, para concluirque o neoliberalismo, ao destruir as instituies intermediadoras dosconflitos sociais, prepara uma nova vaga de lutas muito violentas.Palavras-chave: Capitalismo; Classe trabalhadora; Conflitos sociais.

    Abstract:Mixing together reminiscences from his political life with a synthesis of theopinions supported in some of his books and articles, the author concludesthat neo-liberalism, as it destroyed the institutions intermediating socialconflicts, prepares a new era of violent struggles.Keywords: Capitalism; Working class; Social conflicts.

    * Escritor, autor entre outros de Para uma teoria do modo de produo comunista(1975); Marx crtico de Marx. Epistemologia, classes sociais e tecnologia em O Capital,3 vol. (1977); Capital, sindicato, gestores (1987); Economia dos conflitos sociais (1991e 2009); Poder e dinheiro. Do poder pessoal ao estado impessoal no regime senhorial,sculos V-XV, 3 vols. (1995, 1997, 2002); Labirintos do fascismo (2003); Democraciatotalitria. Teoria e prtica da empresa soberana (2004).

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    Poucos sabem hoje, ou desejam recordar, mas ns estivemos beirade vencer.

    Ns, os revolucionrios, os anticapitalistas que ao longo dadcada de 1960 e na primeira metade da dcada seguinte vamos a nossafora crescer e aumentar a nossa capacidade de aco num impulso queparecia irrefrevel. Foi essa a poca das lutas autonomistas contra ocapitalismo privado e os gestores nos pases ocidentais e contra o capitalismode Estado e a burocracia poltica nos pases de Leste. Comeadas aqui eacol, as greves a que os dirigentes sindicais chamavam selvagens, porqueresultavam da iniciativa das bases e escapavam ao calendrio reivindicativoconsagrado, contestavam as burocracias dos sindicatos ao mesmo tempoque reclamavam contra os patres. O grande avano do movimento operrionaquela poca deveu-se ao entendimento de que os dirigentes sindicaistinham mais em comum com os chefes das empresas do que com a classetrabalhadora.

    Sobre o pano de fundo de uma proliferao de greves selvagens,os estudantes universitrios inauguraram um novo tipo de lutas,apresentando reivindicaes que, em vez de serem especificamenteestudantis, reflectiam os interesses globais dos trabalhadores. Desde aCalifrnia at Berlim, desde o movimento pelos direitos cvicos da populaonegra at aos protestos contra as cadncias infernais nas fbricas, osestudantes lutaram no enquanto jovem elite mas enquanto trabalhadoresem formao. Foi esta a primeira resposta converso, ainda incipiente, daantiga universidade num instrumento de ensino de massas. Quandoreflectiam sobre os problemas da academia, os estudantes contestatriosexigiam a remodelao do sistema de ensino de acordo com os interessesda classe explorada.

    No se tratou apenas do aparecimento de novas organizaespolticas, menos centralizadas e menos hierarquizadas. Naquela pocasurgiram tambm, ou adquiriram novo vigor, organizaes trotskistas emaostas, e embora fossem centralizadas e autoritrias, colocavam oproblema do relacionamento com as bases de uma maneira diferente dasorganizaes formadas pelo stalinismo. Em todos os quadrantes do

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    radicalismo anticapitalista era reconhecida a actividade prpria dostrabalhadores e dos estudantes de base.

    Um movimento convergente ocorria nos pases da esfera sovitica.As revoltas operrias de 1953 na Alemanha de Leste, a grande insurreiohngara de 1956, as movimentaes na Checoslovquia em 1968 e asrepetidas e persistentes revoltas do proletariado polaco revelaram odescontentamento da classe trabalhadora para com regimes que haviamsubstitudo os patres privados pelo patro colectivo da burocracia polticae da tecnocracia empresarial. certo que outros sectores da sociedadecontriburam para a insatisfao e deram um tom nacionalista quelasrebelies, mas posso recorrer a um teste simples para mostrar que a luta declasse foi em todos estes casos o motor principal. Na esfera sovitica, durantea Guerra Fria, a Central Intelligence Agency fomentava exclusivamente osnacionalismos, inventando-os quando eles no existiam, e emborapromovesse e organizasse a subverso sempre que lhe convinha, foi notriaa sua falta de apoio aos movimentos que evoquei, precisamente porqueeles eram animados pela classe trabalhadora. A ltima das coisas que osgovernantes norte-americanos pretendiam era que o comunismoburocrtico fosse derrubado por um comunismo operrio. Alis, a estratgianorte-americana de promoo dos nacionalismos acabou por ser vitoriosa,j que a antiga Unio Sovitica e a sua esfera de influncia pereceram nopela luta de classes mas devido fragmentao nacional. Se as memriasno fossem to curtas, todos perceberiam que o actual mapa polticoeuropeu corresponde de muito perto s fronteiras traadas pelo TerceiroReich a partir de 1939. Os governantes de Washington conseguiram imporaquele panorama geopoltico que Hitler no tivera oportunidade deconsolidar.

    Mas isto hoje, a poca da nossa derrota, e eu estava a falar deontem, quando caminhvamos para a vitria. Quem pode suspender otempo, mesmo quando ele recordado no teclado? Eram as lutas sociais,no as nacionais, que nos moviam na dcada de 1960, e no vamos qualquerdiferena no combate contra as classes dominantes no Ocidente ou a Leste.Os partidos comunistas ocidentais facilitaram muito esta convergncia ao

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    se oporem com todo o vigor de que eram capazes ao radicalismo das lutasoperrias e das lutas estudantis. E a represso lanada pelo regime soviticocontra contestaes em tudo idnticas s que ns prprios prosseguamosno Ocidente encerraram definitivamente o mito da ptria do socialismo.Aqueles de ns que desfilavam no Quartier Latin em Agosto de 1968cantando LInternationale contra a invaso sovitica da Checoslovquia eramos mesmos que pouco tempo antes, durante as lutas estudantis de Maio ea greve geral de Maio e Junho, se haviam manifestado e ocupado e erguidobarricadas e combatido a polcia. A posio tomada pelos partidoscomunistas contra o movimento operrio autonomista e contra osestudantes contestatrios ditou o fim da sua audincia enquanto partidosrevolucionrios. Sabamos quem o inimigo era e onde estava. O Muro e osseus pedreiros caram muito antes do que se julga, e o que estava de p eraapenas um fantasma de cimento. At os movimentos revolucionrios decariz mais ortodoxo seriam obrigatoriamente influenciados pelas lutasautonomistas, se estas tivessem vencido. Cuba como porque o resto foicomo foi.

    Rudi Dutschke simbolizou a convergncia das lutas sociais. Nascidoe criado na Alemanha de Leste, onde tomara posio contra as instituiese especialmente contra a militarizao da sociedade, Rudi Dutschke fugiupara Berlim ocidental em 1961 e continuou ali a mesma luta que haviaprosseguido do lado de l da fronteira, tornando-se uma das principaisfiguras do movimento estudantil. Esta sntese geogrfica dos dois espaospolticos foi reforada por uma sntese ideolgica, e o facto de Rudi,profundamente cristo, ter sido ao mesmo tempo influenciado por tericosmarxistas excludos da cartilha oficial, como Rosa Luxemburg, Gramsci e osensastas da escola de Frankfurt, mostrou que o marxismo podia ser usadocomo instrumento crtico tanto na luta contra regimes que se reconheciamcapitalistas como contra outros que se pretendiam marxistas. Um jovem deextrema-direita tentou assassin-lo em Abril de 1968 disparando-lhe trstiros na cabea. Rudi sobreviveu, e na convalescena continuou a simbolizara nova era de confronto com os regimes de um e outro lado da Guerra Fria,porque ele, que fugira da Alemanha de Leste, viu-se expulso em 1971 da

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    Inglaterra, onde fora prosseguir os tratamentos, sob a acusao de ser umestrangeiro indesejvel, dedicado a actividades subversivas. E sem dvidaque ramos todos estrangeiros indesejveis, ns que no reconhecamosfronteiras nem nacionalidades.

    O escopo geogrfico da convergncia foi mais amplo ainda, porquena sua fase inicial a Revoluo Cultural chinesa surgiu como um dos principaiselementos de referncia neste panorama. Mao Ts-tung lanou a RevoluoCultural para mover os jovens contra os seus opositores nas disputas internasdo Partido Comunista, mas os limites previstos foram rapidamenteultrapassados por uma ala radical, que comeou a pr em causa a burocraciacomo classe social. A implantao do Estado comunista em toda a China em1949 operara-se sobre uma continuidade fundamental, a manuteno domandarinato. Uma burocracia plurimilenar, que se modernizaraconvertendo-se numa tecnocracia, mantivera-se no poder graas suacomponente de esquerda, e contra ela a ala radical da Revoluo Culturaldefendeu a necessidade de destruir a propriedade privada dos meiosintelectuais de produo, tal como fora necessrio destruir a propriedadeprivada dos meios materiais. Quando os cartazes de parede comearam aatacar no s os rivais de Mao mas igualmente os gestores das empresas ea denunciar as relaes sociais e as condies de trabalho vigentes nointerior das fbricas, nesse momento Mao Ts-tung viu que as coisasestavam a ir longe demais. Viu-o tambm quando lhe foi proposta a adopodo modelo da Comuna de Paris e a transformao da China numa federaode comunas, com dirigentes livremente eleitos e revocveis. Foi ento queMao Ts-tung recorreu ao exrcito, e a militarizao da Revoluo Cultural,celebrizada nas imagens de milhes de jovens brandindo o livrinhovermelho num exerccio geomtrico de ginstica colectiva, representou oaniquilamento da ala radical.

    Para ns, naquela poca, a mensagem emanada da RevoluoCultural era a mesma que ouvamos gritada pelos estudantes norte-americanos contra a guerra no Vietnam e pelo movimento pelos direitoscvicos, a mesma das ruas e das fbricas francesas em Maio e Junho de 1968,a mesma de Praga no Vero desse ano, a mesma das ruas e das fbricas

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    italianas, a mesma que haviam tentado assassinar na pessoa de RudiDutschke, e entre a voz de Joan Baez e as citaes do livrinho vermelho novamos grande diferena. Seria uma confuso de cabeas quentes, que malsabiam interpretar fragmentos de informao? No me parece. Os vectoresda histria daquela poca fomos ns que os entendemos, porque fomosns quem os fez, no os acadmicos que se perdem no labirinto dasmincias precisamente porque esse o libi de que necessitam para noencontrar sadas.

    Ns, os que restamos, somos picos que quem navega nestas guasjulga serem ilhus perdidos, mas que formam os cimos de montanhassubmersas, uma Atlntida que deixou palimpsestos cujas camadas inferioress raros hoje conseguem decifrar, porque quem as escreveu se esqueceuda linguagem ento usada.

    Fomos vencidos. Liquidaram as nossas possibilidades de aco legalquando elas existiam, perseguiram-nos, encurralaram-nos, exasperaram-nos at precipitarem os mais destemidos ou mais desesperados em acesque foram depois usadas como libi da represso desencadeadaanteriormente. Juntaram-nos em estdios e campos de concentrao ouconfinaram-nos em celas de isolamento. Apesar de ser longussima a histriadas atrocidades humanas, experimentaram contra alguns de ns torturassem precedentes, recorrendo a tcnicas sofisticadas de dor e deenlouquecimento. Mataram muitos e deixaram outros morrer na priso, ealguns dos que se salvaram continuam perseguidos, quarenta anos depois,com a persistncia do dio burocrtico. As minhas saudaes, CesareBattisti. Mas no foi isto o mais importante. Perecemos por um conjunto demotivos, e o principal foi o facto de termos lutado em todo o mundo aomesmo tempo mas dispersamente, enquanto o capitalismo conseguiureorganizar-se no plano internacional e conduziu o contra-ataque atravsdas firmas multinacionais. O que antes havia sido a internacionalizao daeconomia converteu-se numa supranacionalizao e data de ento ahegemonia incontestada que obtiveram as empresas transnacionais. Oreverso desta transnacionalizao do capital foi a fragmentao dostrabalhadores. Fomos vencidos devido paradoxal fragilidade de sermos

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    internacionalistas e no termos conseguido unificar as nossas lutas por cimadas fronteiras. Por isso a classe trabalhadora est hoje repartida no s porpases mas por uma multiplicidade de outras divises, umas retiradas daarca das recordaes histricas e outras inventadas pelos estrategistas dasclasses dominantes, para grande satisfao dos acadmicosmulticulturalistas.

    S que no capitalismo desenvolvido as derrotas nunca so umesmagamento, mas uma recuperao, operada mediante a perverso dostemas da luta e a inverso do funcionamento das instituies nascidas nessaluta. Os trabalhadores haviam reivindicado o fim do monoplio doconhecimento tcnico pelos gestores e haviam mostrado na prtica queeles mesmos eram capazes de gerir, comeando por gerir as lutasdesencadeadas fora dos sindicatos e depressa passando a administrarempresas ocupadas, que podiam mesmo, como em Portugal em 1974 e1975, representar grande parte do aparelho produtivo de um pas. E o quesucedeu? O capitalismo mostrou-se capaz de inserir essa capacidade degesto nos mecanismos de explorao. Resumido ao essencial, foi assimque se passou do fordismo ao toyotismo. Por seu lado, os estudanteshaviam reivindicado a extino da velha universidade e o fim da divisoclssica do conhecimento, a abertura do ensino superior classetrabalhadora. E o que sucedeu? Extinguiram-se os ltimos traos dauniversidade de elite e os gestores do sistema acadmico deram-nos umauniversidade de massas vocacionada para ministrar cursos tcnicos a umamo-de-obra qualificada. O trgico que no foram s os outros a faz-lo,fomos ns mesmos. Os engenheiros e os administradores de esquerda,que haviam sofrido a influncia do movimento estudantil radical,contriburam poderosamente, nalguns casos decisivamente, para planificara reorganizao toyotista, tal como os professores de esquerda, em cujacabea ecoavam os temas da contestao estudantil, auxiliaram a reformacapitalista da universidade, quando no a superintenderam.

    ambguo falar de derrota e de vitria, porque as h de infinitasvariedades. -se derrotado de uma dada maneira e os vencedores triunfamde uma dada maneira, por isso a vitria de uns tem indelvel a marca da

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    derrota dos outros, e sucede s vezes que o peso de certos vencidos sufoqueos vitoriosos. Mas o que irremissivelmente perece so os sonhos e osobjectivos que no foram realizados e animaram a luta at ela ser subjugada.Hoje restituram-nos a utopia como vmito. E o que num plano organizativo o virar do avesso de instituies que, nascidas na luta, passaram a servir oseu exacto contrrio, no plano da linguagem a adulterao das palavras. Olucidssimo Jean-Paul Marat dedicou um dos captulos de Les Chanes delesclavage a esta perverso semntica, que nunca d s coisas os seusverdadeiros nomes. E enfileiradas as palavras, temos a adulterao dasideias. Que Foucault e o multiculturalismo sejam entronizados comoexpresso directa do Maio de 68 uma operao do mesmo teor daexecutada pelo marechal Floriano quando mandou dar o seu nome cidadecuja rebelio ele mesmo aniquilara.

    Os fios que me servem para tecer este artigo podem escapar aoshistoriadores, mas foram entendidos por ficcionistas, que tm da realidadeuma outra percepo, mais ntima e ao mesmo tempo mais fundamental.Durante muitos anos afirmei em aulas, para incmodo de alunos e colegas,que a sociologia simplesmente uma m fico, e que a boa fico sempreuma excelente sociologia. Mas como no dado a todos produzir romances,resta-lhes ser socilogos. Desde o primeiro livro que escreveu para LaComdie humaine at ao ltimo, Balzac incansavelmente se proclamouhistoriador. Por isso ele pde exclamar, na introduo geral sua grandeobra: Fiz melhor do que o historiador, sou mais livre. Mas quantos dosque tm a histria como profisso aprenderam com ele? Passo uma grandeparte do dia a ler historiadores, quando no escrevo histria, e os melhores,os nicos bons, sabem empregar a imaginao, mas conheo apenas umque enunciou claramente esta necessidade metodolgica. Para quem sededica histria social, escreveu George Dangerfield em The Strange Deathof Liberal England, os factos no constituem o nico elemento, nem o maisimportante. A histria social, tal como a prpria histria, combina o gosto,a imaginao, a cincia e a erudio. Ela reconcilia o que incompatvel,equilibra probabilidades, para atingir finalmente a realidade da fico, que a forma mais elevada de realidade. Trata-se, afinal, de aplicar as

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    consequncias lgicas de um preceito de Leibniz, quando sustentou que opossvel, mesmo sem existir, j real. Nestes termos, James Ellroy, o grandemestre contemporneo da literatura policial, o ficcionista que melhornos permite compreender a histria dos embates polticos subterrneosnos Estados Unidos na segunda metade do sculo passado, especialmenteem American Tabloid e The Cold Six Thousand. Contrariamente ao queprevira a maior parte da extrema-esquerda, nos Estados Unidos no foipreciso recorrer mobilizao fascista porque J. Edgar Hoover, director doFederal Bureau of Investigation desde 1935 at morrer em 1972, procedeu aliana da polcia com o crime organizado, ficando assim conjugada afiscalizao global a nvel superior com a penetrao e o enquadramentodos sindicatos e a provocao e destruio interna das organizaesrevolucionrias ou meramente contestatrias. Que candura, que iluses,no na nossa fora, porque a tnhamos, mas numa certa dignidade doinimigo, que mesmo nas piores previses imaginvamos nossa imagem,quando ele era, e continua sendo, o retrato da abjeco. Isto os historiadoresno revelam, nem sabem, mas James Ellroy mostra-o, e s assim podemosentender aqueles tempos e o destino que tivemos.

    Acima do romance est a poesia porque, se na grande fico temosa histria de uma poca, na poesia temos a antecipao do seu futuro.Hegel afirmou que a intuio, em vez de ser a anttese da razo, era o seuculminar. Quando se conhece intimamente um assunto, quandodesposamos todos os seus meandros a ponto de os incorporarmos em nsmesmos, ento, mostrou Hegel, a razo torna-se imediata e prescinde doraciocnio. Este carcter imediato de uma razo que se afirma directamentea si mesma a intuio. O poeta - o grande poeta, porque os poetas menoresno so poetas - aquele que consegue fundir o corpo e a mente com otempo e as pessoas. Resulta da o dom de sntese da poesia, onde noexistem sinnimos e onde as palavras no se repetem mesmo que sejamiguais, porque cada uma tem uma funo nica. A sntese potica aexpresso literria da intuio. Por isso, antes de ter comeado aquelemeio sculo de lutas sociais, Ginsberg pde traar no mais clebre dos seuspoemas, Howl, o destino reservado aos que depositariam a esperana nessa

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    luta. I saw the best minds of my generation destroyed by madness, starvinghysterical naked, / dragging themselves through the negro streets at dawnlooking for an angry fix, / [...]. A polcia mata muito nos pases civilizados,mas esse o trabalho de detalhe, o trabalho por grosso feito pelaputrefaco e pela droga. Howl profetizou um destino cujos mecanismosestruturariam mais tarde a fico romanesca de Ellroy: o capitalismo,personificado por Howard Hughes, e o Federal Bureau of Investigation,dirigido pelo Fouch das lutas sociais contemporneas, manobrando o crimeorganizado para neutralizar atravs da droga a bomia do esprito e aquiloa que noutra poca se chamara as classes perigosas.

    Fomos vencidos. E na voragem da nossa derrota desapareceramoutros tambm, contra quem lutvamos. A partir do momento em queperderam a legitimidade revolucionria, os partidos comunistas ocidentaise os grandes aparelhos burocrticos dos sindicatos s tinham algumautilidade enquanto ns existssemos, para nos conter e para servir detampo entre as elites e os operrios e estudantes mais activos. Inimigosontem para os revolucionrios, desnecessrios hoje para a sustentao daordem, os partidos comunistas do Ocidente extinguiram-se ou atrofiaram-se e, acompanhando este movimento, desvirtuaram-se os partidossocialistas, social-democratas e trabalhistas, cuja referncia, mesmo quemtica, classe trabalhadora deixou de ter lugar. Ao mesmo tempo, naprtica totalidade dos pases, os sindicatos passaram a mobilizar umapercentagem cada vez mais reduzida da fora de trabalho, as burocraciassindicais afastaram-se do confronto de classe e dedicaram-se sobretudo agerir os seus colossais fundos financeiros e pacotes de aces.Desmantelaram-se os mecanismos de integrao social keynesianos, deque os partidos de esquerda e os sindicatos eram parte integrante, e aliquidao das instituies independentes destinadas a regular os conflitossociais deixou as classes dominantes desprovidas de instrumentos deconciliao especficos. No sculo XIX considerava-se que as questes sociaiseram casos de polcia e a mesma opinio voltou hoje a prevalecer, comrazo, porque o confronto entre as classes tornou-se cada vez mais directo.

    E no s as questes sociais, mas tambm as questes educacionais

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    passaram a ser casos de polcia. O ensino de massas revelou-se um dos maisespectaculares fracassos do capitalismo. Ao longo das ltimas dcadas tmsido investidas somas enormes na infra-estrutura escolar e na formao deprofessores e um nmero incalculvel de pedagogos tem animadocomisses e escrito relatrios, sem que nada disso consiga evitar oanalfabetismo funcional. Alis, as estatsticas, por pessimistas que sejam,atenuam a realidade, porque, como os critrios de avaliao se tornaramcada vez mais baixos, aqueles que hoje passam por saber alguma coisaseriam h algum tempo atrs considerados como no sabendo quase nada.A situao diferente nos colgios privados e em certas escolas pblicasespeciais, destinadas a educar as crianas das classes dominantes, mas osfuturos trabalhadores ficam entregues escola pblica de massas e soestas instituies que aqui me interessam.

    Na base do fracasso do ensino de massas encontra-se uma dicotomiade que s os pedagogos no se apercebem. O ensino tem como preocupaoexclusiva as salas de aula, onde se concentra todo o esforo pedaggico.Por seu lado, os alunos interessam-se unicamente pelos corredores e pelosptios, articulados no mesmo espao social com os estabelecimentos dejogos de vdeo e com os centros comerciais. Para o aparelho pedaggico deEstado as escolas so lugares de aprendizagem. Para os alunos, as escolasso lugares de sociabilizao. no convvio nos corredores e nos ptios, nosvideo-games e nos shopping centers que os analfabetos funcionais seadestram profissionalmente. Eles so incapazes de escrever duas linhas ede entender o sentido de uma frase simples, mas conhecem como ningumos meandros do comportamento urbano. E o teclado dos computadores s para eles um mistrio quando se vem obrigados a juntar as letras; paratudo o mais manejam-nos com rapidez e percia. Tambm aqui a utopia nosfoi devolvida como vmito. A aprendizagem ldica, que os libertrios tantohaviam enaltecido nas dcadas de 1960 e 1970, resultou hoje naaprendizagem atravs dos jogos de computador, que sustenta oanalfabetismo funcional.

    A grande questo consiste em saber como possvel que algumpermanea nove, dez ou onze anos no sistema escolar e saia praticamente

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    analfabeto, porque no se trata aqui de no ter aprendido, mas de no terquerido aprender. S se analfabeto funcional graas a uma luta deliberadae longa, to longa quanto o o ensino obrigatrio. Ora, os economistasneoliberais, que gostam de imaginar sujeitos movidos pela racionalidadeeconmica, tal como a ditaria um mercado utopicamente livre-concorrencial, vero com apreo o facto de o analfabeto funcional, mesmosem conhecer a tabuada, ser capaz de avaliar o mercado de trabalho e decalcular que no lhe rentvel despender tanto esforo a qualificar-senuma poca em que as empresas raramente oferecem carreiras estveis.Para acabar trabalhando num call center, valer a pena candidatar-se admisso na universidade? E assim a precarizao, se comeou por suscitaro aumento do analfabetismo funcional, ela prpria incentivada peladifuso do analfabetismo, porque estes trabalhadores no podem ser outracoisa seno precrios. Um dos elementos indispensveis aodesenvolvimento da produtividade, e por a ao aumento da taxa deexplorao, fica comprometido quando o analfabetismo funcionalultrapassa um certo nvel. Sem conseguir quebrar o crculo vicioso, ocapitalismo corre hoje o srio risco de ver a precarizao expandir-se muitopara alm do que lhe seria rentvel.

    ento que se fala de fracasso escolar, o que mais uma vez baralhatudo, porque as razes deste fracasso situam-se fora da escola, no mercadode trabalho. Ao elegerem os corredores e os ptios das escolas, as casas dejogos de vdeo e os shoppings como os lugares onde decorre a sua formaopessoal e profissional, os alunos da escola pblica deram uma respostaracional ao dilema em que foram colocados. E se esta resposta nos parecehorrenda, no os acusemos a eles, mas racionalidade econmica. Avessoss salas de aula, os alunos refractrios no so j disciplinados pela instituioescolar. Quem os disciplina, ento? E assim a questo educacional tornou-se um caso de polcia. infindvel o catlogo das medidas de repressoinstaladas no interior dos espaos escolares para monitorizar os alunos epara permitir a rpida interveno dos seguranas privados, se os houver,ou da polcia oficial. Nem aqueles sonhadores que nas suas horas de lirismoentusistico equiparavam as escolas a prises imaginaram algum dia que

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    elas se transformassem realmente em crceres, com grades para impediros alunos de sair ou, sabe-se l, de entrar.

    Mas h ainda aqueles estudantes que, apesar de tudo, so capazesde escrever, embora poucas pginas e com uma deplorvel sintaxe, para jnem mencionar a ortografia, e que so capazes de ler, no livros inteiros,mas pelo menos captulos de livros ou partes de captulos e so capazes depesquisar na internet o suficiente para fazer copy and paste. Estesconseguem obter um diploma universitrio. Por todo o mundo, o ensino demassas transformou as universidades em colgios tcnicos e a maior parteda pesquisa cientfica passou a obedecer aos mesmos critrios. Uma vezmais, a utopia foi-nos restituda como caricatura desfigurada, porque ondeproclammos a necessidade de unir a teoria prtica temos agora o fim dateoria e o empobrecimento da prtica. A teoria e a cultura, que resultam dacapacidade de relacionar o particular com o geral e, assim, de entender osfundamentos do particular, deixaram de vigorar nas universidades e nosinstitutos de pesquisa, onde impera a especializao, precisamente ocontrrio da articulao do particular no geral. A norma o desaparecimentodo geral atravs da incessante multiplicao do particular, acompartimentao crescente de cursos ou de linhas de pesquisa em que impossvel saber o que se passa ao lado. Nesta situao, a internet, quepoderia ter sido um espantoso utenslio de amplificao cultural, serve deinstrumento ao contexto onde vigora, e acelera a fragmentao doconhecimento e a futilidade dos interesses. certo que algum, em algumlugar, conhece a teoria e sabe conjugar o particular no geral, mas esses noesto na universidade de massas. A cultura, mais do que nunca, tornou-semonoplio dos gestores. Mas como tambm entre eles reina aespecializao, embora de tipo diferente, a cultura detida apenas pelosgestores do conhecimento. O que antes fora uma linguagem genricaconverteu-se em mais um dos dialectos particulares.

    A renovao da cultura e a difuso de uma contracultura foi uma daspreocupaes marcantes das revoltas estudantis da dcada de 1960 e docomeo dos anos seguintes. Contrariamente ao que sucede com o ps-modernismo, empregmos ento a ironia como crtica e no como

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    distanciao, manejmos o sarcasmo e a violncia de linguagem,empenhmo-nos em chegar ao fundo e no em deslizar pela superfcie.Havia uma enorme seriedade por detrs das nossas atitudes maisirreverentes, ao contrrio dos ps-modernos, que recorrem a uma aparenteirreverncia pr-fabricada pelos imitadores do libertador do corpo esustentada pela banalidade da carreira acadmica. Na dcada de 1960 e nameia dcada seguinte as vanguardas profissionais do leninismo tinham sidosubstitudas por um misto de organizadores polticos e agitadores culturais.Mas que cultura difundida hoje pelos meios de comunicao de massa?Ser que a cultura dominante a de classes dominantes incultas?

    E no foram s as questes sociais e educacionais que no sculo XXIse tornaram casos de polcia, porque a questo familiar tambm se tornou.Marx e Engels haviam escrito, num manifesto clebre, que o capitalismoestava a desagregar a famlia, mas precipitaram-se na previso, porquedurante bastante tempo o cio permaneceu exterior esfera do capital.Sustentados pelo pequeno comrcio e pelos pequenos servios enquantomodalidades de economia domstica, os lazeres, na sua produo,mantinham um espao para a famlia. Esse espao era igualmente mantidona fruio dos lazeres e, destruda quotidianamente no mbito das relaesde assalariamento capitalista, a famlia proletria reconstitua-sesemanalmente no dia de folga. Foi ao expandir-se nesta direco e ao criaras indstrias do cio que o capitalismo suprimiu o derradeiro quadro depreservao da famlia, precipitando a sua desagregao. Ora, isto sucedenuma poca em que as instituies mediadoras polticas e sindicais estoenfraquecidas ou liquidadas e em que as salas de aula no funcionam jcomo instrumento de disciplina. Sempre prestes a apresentar as coisas aocontrrio, os jornalistas, e aqueles socilogos que no ultrapassam o nveldo jornalismo, evocam agora a demisso dos pais. Resta saber se forameles que se demitiram ou se foram demitidos, e por quem.

    As autoridades interrogam-se, ansiosas, sobre o que fazer com aturbamulta de jovens. Noutra poca eles puderam ser inseridos emjuventudes partidrias, de leno vermelho ao pescoo, ou, nos pases ondeera hegemnica uma social-democracia com ampla base operria, eles

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    Eplogo e prefcio (um testemunho presencial)

    estavam inseridos em redes de cultura e de lazer animadas pelos sindicatos.Por seu lado, o activismo poltico e social das dcadas de 1960 e 1970 serviutambm, nossa maneira, para enquadrar a juventude. Tudo isto pertencehoje ao reino dos defuntos, e se as foras conservadoras viam ento comdesconfiana uns tipos de mobilizao e com pavor os outros,possivelmente tm saudades agora, porque se j no existem quadros paramobilizar a juventude, tambm no os h para cont-la. E as escolasconverteram-se em focos de conspirao para os to temidos desordeiros.Uma vez mais funciona aqui o paralelo estimado por alguns entre a escola eo crcere, porque tal como no interior dos presdios se constituem eestabelecem os estados-maiores do crime organizado, tambm noscorredores e nos recreios os jovens tecem entre eles os laos da suainsubmisso colectiva. A famlia foi a ltima instituio intermediadora queo capitalismo contemporneo derrubou. Restam os polcias do Estado e osseguranas das firmas privadas para fazerem a vez de pais severos. E comque aplicao se dedicam a esta tarefa! O policiamento das escolas conjuga-se com o policiamento dos centros comerciais e dos estabelecimentos dejogos electrnicos, e no so poucas as cidades, em vrios pases, onde estdecretado o recolher obrigatrio do jovens a partir de certa hora da noite.Estranho mundo onde o adulto, sob o fantasma da pedofilia, apresentadocomo um perigo iminente para as crianas, e as crianas, sob o espectro dovandalismo, so apresentadas como uma ameaa constante para os adultos.

    Nas dcadas de 1960 e 1970 lutmos tanto quanto pudemos contraos partidos da esquerda reformista e contra os sindicatos burocratizados,porque os considervamos, com toda a razo, uma das principais protecesdo capitalismo. E o capitalismo, quando nos derrotou, a primeira coisa quefez foi terminar a tarefa que deixramos incompleta e ele prprio ps fimao que restava das instituies intermediadoras dos conflitos sociais.Instaurou-se assim o neoliberalismo, que os jornalistas e muitosespecialistas de cincia poltica consideraram o triunfo definitivo do capital.

    Mas mal se viram detentores de uma to considervel vitria, oscapitalistas perceberam que no lhes restava outra soluo seno enfiar asociedade em casernas. Fazem-no atravs da segregao urbana, rodeando

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    as periferias com auto-estradas para as isolar ou, quando tal se verificaimpossvel, erguendo muros em seu redor, ou erguendo-os em torno dasresidncias e conjuntos residenciais da elite, ou fazendo tudo istosimultaneamente, de maneira que as cidades tendem a transformar-senuma coleco cada vez mais complexa de gavetas. Em vez da integraosocial que passara a ser o objectivo explcito dos urbanistas desde os planosdelineados pelo baro Hausmann para a reconstruo de Paris, e que seapresentava como uma condio indispensvel pacificao poltica, oobjectivo da urbanizao parece ser hoje a segregao sistemtica.

    A segregao ampliou-se mais ainda e abarca continentes inteiros,o que indito no mundo moderno e merece alguma reflexo. Um dosfenmenos bsicos do capitalismo tem sido a emigrao do campo para ascidades. Contrariamente ao que comum julgar, a grande revoluo daprodutividade ocorreu na agricultura, no na indstria. Mesmo nas regiesmais urbanizadas da Europa no sculo XV, como a Itlia setentrional e aFlandres, s cerca de 5% da populao vivia nas cidades, o que significa, emtermos grosseiros, que era necessrio o trabalho de 95% das pessoas paraproduzir alimentos para a totalidade dos habitantes. Hoje a proporoinverteu-se, e nos pases mais desenvolvidos, que so tambm os principaisprodutores e exportadores de produtos agro-pecurios, menos de 5% dapopulao est empregue neste sector. Assim, uma numerosssima mo-de-obra pde dedicar-se ao desenvolvimento dos outros ramoseconmicos. Estas massas de origem rural no se limitaram a deslocar-seno interior de cada pas, e nas ltimas dcadas do sculo XIX e nas primeirasdcadas do sculo XX uma enorme quantidade de camponeses abandonouas suas terras natais e atravessou o oceano para engrossar o proletariadoindustrial nas Amricas do Norte e do Sul. O taylorismo e o fordismo foramas tcnicas necessrias para fazer com que esses imigrantes aprendessemrapidamente a lidar com mquinas, e graas a esta mo-de-obradesenvolveu-se a produo industrial de massas. Quando o Congresso dosEstados Unidos aprovou em 1924 a National Origins Quota Law, fixando umlimite mximo para o nmero de imigrantes aceite anualmente, o objectivoprioritrio no era a reduo do fluxo migratrio mas a restrio drstica da

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    Eplogo e prefcio (um testemunho presencial)

    entrada de no nrdicos, recorrendo a critrios racistas para orientar acomposio tnica da populao norte-americana. Mais recentemente,durante a dcada de 1960 e a primeira metade da dcada seguinte, at crise econmica mundial deflagrada em 1974, os pases desenvolvidos daEuropa acolhiam de braos abertos quem para l quisesse ir trabalhar elegalizavam rapidamente os imigrantes ilegais. A situao actual , portanto,anmala na histria do capitalismo, e -o duplamente, porque enquanto acirculao de capitais beneficia de uma mobilidade total, a circulao demo-de-obra tornou-se alvo de severas restries e os pases evoludoscercaram-se com barreiras legislativas e policiais rigorosas. flagrante oantagonismo entre as leis jurdicas da imigrao e as leis econmicas domercado de trabalho. Os que morrem na travessia, no deserto, noMediterrneo, asfixiados dentro de contentores, em que contabilidade solanados, na da pobreza a que fugiram ou da riqueza que no alcanaram?

    No bastam os muros de cimento e as barreiras legais. Pela primeiravez na histria da humanidade, a aplicao extensiva da electrnica aosprocessos de trabalho permitiu que os meios de produo fossemsimultaneamente meios de fiscalizao. Quer os simples computadoresquer as mquinas com componentes electrnicos registram o desempenhodo trabalhador ao mesmo tempo que ele trabalha. E como as pessoas passamhoje a esmagadora maioria do lazeres manipulando computadores, as horasde cio so to monitorizadas como as horas de trabalho. A rede estendeu-se e todos os meios e instrumentos providos de componentes electrnicos,desde as televises at aos cartes de crdito e de dbito e quelesdestinados a permitir a circulao nos transportes pblicos, registramdetalhadamente as utilizaes e os percursos dos utentes. A generalizaodos telefones portteis permitiu ampliar mais ainda a rede de fiscalizao.E como se esta colossal panplia no fosse suficiente, as ruas e praas dascidades, alm do interior dos edifcios e dos meios de transporte, do mesmomodo que as portagens [pedgios] das auto-estradas, so guarnecidos comcmaras de vdeo destinadas a filmar transeuntes e passageiros.

    Entretanto, em menos de uma dcada estabeleceu-se uma redemundial secreta de prises e de lugares de tortura, com uma rigorosa diviso

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    de trabalho entre as polcias dos diversos pases, consoante asespecialidades de cada uma e a hierarquia de poderes que as ordena. Estarede funda-se num sistema de extraterritorialidade judiciria e de tribunaisespeciais contrrio s normas jurdicas bsicas da democracia. E que tudoisto pudesse ter sido feito a partir do conjunto de pases onde oparlamentarismo vigora secularmente e onde a censura aos rgos decomunicao se deve a decises e presses internas e no a imposiesgovernamentais revela o grau de totalitarismo que a democracia foi capazde atingir. Os tericos do regime representativo nunca afirmaram que elepermitia ao povo o exerccio do poder, pelo contrrio, consideraram sempreque uma das suas vantagens consistia em afastar o povo de qualquerinterferncia directa na governao, tida como demaggica e perigosa. Mas,ao mesmo tempo, estes tericos indicavam a existncia de mecanismosinstitucionais que permitiam ao povo influenciar as decises dos seuseleitos. Hoje, j nem isto sucede. Esses mecanismos no servem paratransmitir opinies de baixo para cima, mas para ocultar aos de baixo asdecises tomadas pelos de cima. O aumento progressivo das taxas deabsteno nas ltimas quatro dcadas, que se verifica generalizadamente,indica a perda de legitimidade da democracia representativa.

    Enfraquecidas ou liquidadas as instituies que durante muitos anosintermediaram e moderaram os conflitos sociais e embaada a aura deliberdade que envolvia a democracia representativa, as classes dominantesconfiam apenas, para se sustentar, na sofisticada rede de fiscalizaoelectrnica e na brutalidade dos agentes da represso. E querem convencer-nos de que engendraram tudo isto por causa de uns sujeitos encafuados lno noroeste do Paquisto?

    Escrevi h pouco que a vitria de uns tem marcados os traos daderrota dos outros, mas o inverso igualmente verdadeiro. A forma comoas classes dominantes assumiram o seu triunfo nas trs ltimas dcadascondiciona a forma como se lutar contra elas. Nos anos de 1960 e de 1970os elementos mais aguerridos do anticapitalismo eram operriosqualificados, aptos a fazerem laborar as empresas na ausncia dos patres,e estudantes para quem a cultura no era uma palavra sem significado.

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    Eplogo e prefcio (um testemunho presencial)

    Apesar disto fomos considerados inimigos terrveis. Chamaram-nosviolentos porque nos defendamos da violncia, violentos ns, os quelutvamos contra as guerras e contra os exrcitos e as polcias. Chamaramterrorismo desesperada aco defensiva a que alguns se sentiramobrigados a recorrer. Lutmos numa poca em que existiam ainda, noOcidente, instituies mediadoras dos conflitos e em que a democraciarepresentativa gozava de um prestgio mensurvel nas taxas de participaoeleitoral, e estes dois factores contriburam para a nossa derrota. Agora,porm, as classes dominantes apresentam-se desprovidas de biombosinstitucionais, que so a mais eficaz das proteces. E quem vo enfrentar?Aqueles que se tm movido nos ltimos anos contra o capitalismo no sooperrios qualificados mas trabalhadores precrios, no so estudantesletrados mas analfabetos funcionais que incluem a cultura no mesmodesprezo que sentem por tudo o resto, jovens dos subrbios - dos subrbiosdas cidades e dos subrbios do mundo - enquadrados por mais ningumseno por eles prprios e capazes do furor destrutivo necessrio para abalaras instituies em que vivem.

    Ser este o perfil da prxima mar de lutas sociais. A violncia semprecedentes de um confronto generalizado desprovido de mediaes.Terrveis, ns, os vencidos dos anos de 1970? Ouam no YouTube as msicasque nos serviam de liturgia. Em Frana eram Brassens e Lo Ferr quemreverentemente escutvamos. Ouam o canto de Nina Simone, crupressentimento do destino da luta dos negros nos Estados Unidos, maselevado a um plano onde o som rasgava o vu de outro horizonte. Ouam evejam Bob Dylan cantando Blowin in the wind com Joan Baez, os FreedomSingers e Peter, Paul & Mary no festival de Newport em 1963. Era um dosnossos hinos, que todos conheciam, de um e outro lado do oceano.Chamaram violncia a esta candura. E o qu, agora? O que anunciam asmsicas que do voz s revoltas urbanas de hoje?

    Autor convidado.