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OS FUNDADORES DA ASTRONOMIA MODERNA

BERTRAND, Joseph - Os Fundadores Da Astronomia Moderna (Retail)

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JOSEPH BERTRAND

OS FUNDADORES

DA ASTRONOMIA MODERNA

COPÉRNICO / TYCHO BRAHE KEPLER / GALILEU / NEWTON

T R A D U Ç Ã O

REGINA SCHÖPKE E MAURO BALADI

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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.

B463f

Bertrand, Joseph, 1822-1900Os fundadores da astronomia moderna : Copérnico, Tycho Brahe, Kepler, Galileu, Newton /

Joseph Bertrand ; tradução Regina Schöpke e Mauro Baladi. - Rio de Janeiro : Contraponto, 2008Tradução de: Les Fondateurs de l'astronomie moderne Inclui bibliografiaISBN 978-85-85910-66-2

1. Copérnico, Nicolau, 1473-1543. 2. Brahe, Tycho, 1546-1601. 3. Kepler, Johannes, 1571-1630. 4. Galileu, 1564-1642. 5. Newton, Isaac, Sir, 1642-1727. 6. Astronomia - História. I. Título.

04-3445. CDD 520.9CDU 52(091)

22.12.04 23.12.04 008631

Título original: Les Fondateurs de l’astronomie moderne

© desta edição, Contraponto Editora Ltda, 2005Vedada, nos termos da lei, a reprodução total ou parcial deste livro sem autorização da editora.

CONTRAPONTO EDITORA LTDACaixa Postal 56066- Cep 22292-970Tel/ fax: (21) 2544 0206Rio de Janeiro, RJ – Brasil e-mail: [email protected]: www.contrapontoeditora.com.br

1a edição, abril de 20082000 exemplares

Revisão de originais CÉSAR BENJAMIN

Revisão tipográfica TEREZA ROCHA

Projeto gráfico ADRIANA MORENO

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Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7Copérnico e seus trabalhos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15Tycho Brahé e seus trabalhos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47Kepler e seus trabalhos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71Galileu e seus trabalhos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 105Isaac Newton e seus trabalhos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 155Posfácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 207

Sumário

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A teoria dos movimentos celestes contara, antes de Copérnico,com mais de um representante de primeira ordem, e o imortal New-ton, revelando o seu verdadeiro princípio, não disse a última palavrasobre o assunto. Por mais ilustres que sejam os nomes dos grandeshomens cuja história narramos neste volume, outros poderiam – seminjustiça – ser colocados junto deles. E se este primeiro esboço pa-recer útil, seria fácil ampliar ainda mais o seu quadro.

Um estudo sobre o caráter e sobre as obras de alguns grandes in-ventores não poderia resumir a história da astronomia. Esta bela ciên-cia começa com a civilização, e o aperfeiçoamento constante dos mé-todos de observação e de cálculo promete, aos nossos descendentes,longos séculos de descobertas e de progressos.

As primeiras idéias dos filósofos sobre o sistema do mundo fo-ram, sem dúvida, aquelas que a contemplação do céu sugeria a umobservador ainda completamente ignorante das teorias cosmográ-ficas.

A Terra parece uma imensa planície sobre a qual o céu repousa portodos os lados. Ele a recobre como um domo sólido pelo qual desli-zam os astros, que se elevam todos os dias no oriente para irem de-saparecer no ocidente (retornando no dia seguinte, por caminhos des-conhecidos, à posição que ocupavam na véspera).

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PREFÁCIO

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As estrelas movem-se assim, todas juntas, sem mudarem sua posi-ção relativa. Cada uma delas se levanta e se põe todos os dias nosmesmos pontos do horizonte. Os maiores deslocamentos de um ob-servador através da superfície da Terra não modificam o aspecto nema grandeza aparente de suas constelações.

Apenas sete corpos celestes, dentre os que podemos perceber seminstrumentos, separam-se de todos os outros, escapando assim da leisimples que os rege. O Sol, a Lua, Mercúrio, Vênus, Marte, Júpitere Saturno, arrastados – entretanto – pelo movimento diurno das es-trelas, não descrevem todos os dias o mesmo círculo. Suas mudançasde rota são bastante aparentes para chamarem a atenção, a longo pra-zo, do observador menos exercitado.

Cada um desses astros segue, no céu, uma espiral complicada, daqual cada espira pode ser assimilada, sem erro sensível, a um dos cír-culos traçados pelas estrelas. Esse círculo, que muda a cada dia, é per-corrido pelo astro errante em um tempo diferente do das estrelas. A diferença, sensível para o Sol e os cinco planetas, é, sobretudo,considerável para a Lua.

Inicialmente, explicaram-se essas aparências supondo que as estre-las estavam ligadas a uma esfera sólida que, envolvendo a Terra portodos os lados, gira em 24 horas em torno de um eixo dirigido deum pólo ao outro. Cada planeta é fixado, nesse sistema, a uma esfe-ra transparente que gira como a das estrelas, mas em sentido diferen-te, mesmo deixando-se arrastar por ela e participando do seu movi-mento. Os planetas – entre os quais os antigos incluíam a Lua e oSol – tinham assim dois movimentos: um em comum com as estre-las e um outro que variava para cada planeta.

Aos olhos dos antigos filósofos, essa substituição de dois movi-mentos de rotação pelo movimento em espiral tinha uma imensa im-portância. Eles consideravam como certo que o movimento circularuniforme era o único que convinha à perfeição dos corpos celestes.

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Sua obstinação em não admitir outros movimentos dominou suateoria e foi um dos fatores que, afastando-os das explicações simplesdos movimentos celestes, ocultou-lhes a sua verdadeira harmonia.

A hipótese das esferas concêntricas não reproduz com exatidão su-ficiente nenhum dos movimentos que ela tem a finalidade de expli-car. O próprio Sol, que apresenta, entre todos, as aparências maissimples, é muito mais irregular em sua marcha do que desejaria umatal doutrina. Ele descreve, é verdade, com relação às estrelas, umgrande círculo que é chamado de eclíptica. Mas, seu movimento, nes-te círculo, está longe de ser uniforme.

A marcha da Lua é ainda mais irregular. Seu movimento de retro-gradação, seja com relação às estrelas, seja com relação ao Sol (como qual ele tem sido muitas vezes comparado), é muito irregular, e suaórbita muda de ano para ano, segundo uma lei que se levou muitotempo para descobrir.

As aparências se tornam muito mais complicadas quando se passaao estudo dos planetas. Os planetas, com efeito, diferentemente doSol e da Lua, não se atrasam incessantemente em relação às estrelase, supondo que a esfera que os conduz gire uniformemente do oci-dente para o oriente, seu movimento não chega a ser nem mesmogrosseiramente representado.

Depois de termos avançado em direção a algumas estrelas, pode-mos vê-las permanecerem estacionárias durante vários dias; então,elas se dirigem em sentido inverso para se deterem outra vez e volta-rem novamente sobre os seus passos.

Os astrônomos, seguindo um falso caminho, encontraram, desdeo princípio, grandes obstáculos. E, enquanto os verdadeiros princí-pios simplificam tudo (quando são encontrados), o sistema artificialdas esferas concêntricas levava a complicações sempre crescentes. Foinecessário aumentar pouco a pouco o número de esferas. Eudoro,contemporâneo de Aristóteles, atribuía a cada planeta quatro esferas

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diferentes, encaixadas umas nas outras e dotadas de movimentos di-versos, entre os quais ele supõe até mesmo movimentos oscilatórios.

O Sol e a Lua, menos irregulares em sua marcha, tinham cada umtrês esferas sólidas. Aristóteles, estudando os fenômenos mais deperto, encontrou grandes dificuldades, que ele acreditou ter feito de-saparecer elevando o número total das esferas para 36. Porém, ele ja-mais pôde conciliar tudo. Observações mais precisas e mais prolon-gadas exigiam incessantemente novas suposições.

Quando Fracastor quis, no começo do século XVI, renovar o sis-tema que era recomendado por nomes tão grandes, na época, comoAristóteles e Platão, os progressos da ciência o obrigaram a admitir79 esferas encaixadas umas nas outras, dotadas cada uma de um mo-vimento próprio e arrastando consigo aquelas que as cercavam.

Muitos bons espíritos, entretanto, ficavam chocados com a inútilcomplicação dessas engrenagens tão numerosas. Aceitavam-se comalguma dificuldade essas esferas tão transparentes que os raios lumi-nosos as atravessavam sem ficarem enfraquecidos e, no entanto, tãosólidas que podiam guiar os corpos celestes e mantê-los sob sujeição,arrastando-os com uma incompreensível rapidez.

Apolônio, que viveu pouco tempo depois de Aristóteles, foi o primeiroa propor o célebre sistema dos excêntricos e dos epiciclos, ao qual é dadoquase sempre o nome do astrônomo Ptolomeu, que o adotou e comentou.

Foi uma idéia muito nova e muito feliz a de fazer com que os cor-pos celestes se movessem em círculos excêntricos, ou seja, cujo centroestava supostamente fora da nossa Terra.

O movimento era, então, uniforme (como se acreditava ser neces-sário); nesta hipótese, entretanto, a velocidade parece tornar-se variá-vel por causa da influência da mudança de distância sobre a grande-za aparente do caminho percorrido.

A teoria das órbitas excêntricas, mesmo representando algumasdas aparências, não suportava o exame minucioso dos detalhes, ten-

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do sido necessário juntar a ela a hipótese dos epiciclos, que consisteem supor o planeta movendo-se em um círculo cujo centro é ele pró-prio impulsionado por um movimento uniforme sobre a circunferên-cia de um outro círculo chamado de deferente. Uma rotação contínuae uniforme sobre o epiciclo pode produzir, com relação ao centro dodeferente, um movimento alternativamente direto e retrógrado, quepermite explicar as estações e as retrogradações. Porém, é impossívelestabelecer um perfeito acordo com as observações. Será necessárionovamente complicar a hipótese, seja pela introdução de novos epi-ciclos, seja pela invenção do equante. Hiparco, a quem devemos estaidéia engenhosa, ousou afastar-se do princípio até então incontesta-do da uniformidade dos movimentos elementares e admitir uma cir-culação em velocidade variável, impondo-lhe somente a condição deparecer uniforme para um observador convenientemente localizado.

Essas maiores facilidades, concedidas aos astrônomos para com-por seus sistemas, permitiam representar mais ou menos as observa-ções passadas; porém, a seqüência revertia incessantemente ao come-ço e demonstrava a esterilidade do princípio, revelando discordânciasque era preciso laboriosamente remediar por meio de novas compli-cações, sem nunca poder conduzir a obra a uma perfeição sempre einutilmente perseguida.

Nem mesmo a imutável regularidade do movimento das estrelas es-capa a essa lei. Pela comparação atenta de observações minuciosas, con-tinuadas durante vários séculos, Hiparco – numa de suas maiores des-cobertas – constata um movimento lento e regular que parece ser co-mum a todas, e que, deslocando o eixo do mundo – e, em conseqüên-cia disso, o equador –, produz a retrogradação ou precessão dos equi-nócios que, perceptível somente ao longo de um século, realiza-se em26 mil anos. Seria necessário admitir uma nova esfera abarcando a dasestrelas e arrastando-a consigo na rotação lenta e regular, para desor-denar, ao longo do tempo, a uniformidade do movimento diurno.

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Nenhum desses sistemas – nem é preciso dizê-lo – tinha qualquerdas características que impõem nossas teorias modernas à convicçãode quem for capaz de estudá-las; e, nesta incerteza, o campo perma-necia aberto a todas as hipóteses e às mais loucas fantasias. Os filó-sofos, fazendo as suposições mais bizarras sobre a estrutura do mundo,encontraram algumas vezes a verdade, sem conseguirem fixar nela,por meio de razões sólidas, a crença de seus sucessores. Os estóicospensavam – como o próprio Kepler, em um período da sua vida – quecada planeta é dirigido, no percurso que deve seguir, por uma almaque conhece seu dever e o impõe a ele. Se as estrelas descrevem to-das, ao mesmo tempo, círculos tão desiguais, é porque – diziam eles– cada uma delas, sem depender de forma alguma das outras, conhe-ce o percurso que lhe está designado e regula-se por si mesma parapercorrê-lo pontualmente no tempo fixado, sem ser forçada por ne-nhuma ação exterior. Entre essas trevas espessas, Pitágoras, mais fe-liz em suas conjecturas, percebeu a luz e mostrou-a a alguns discípu-los. Ele ousou buscar na rotação da Terra a explicação do movimentodiurno e fazer do Sol imóvel o centro de todo o Universo. Sua doutri-na, transmitida de forma misteriosa aos iniciados, jamais tornou-seuniversal. Tudo leva a crer que, apenas adivinhada por um feliz esforçode gênio, na Antiguidade ela jamais tenha estado apoiada nos argumen-tos irresistíveis que, nos tempos modernos, fatigaram e venceram as re-sistências mais brutais e mais teimosas.

A queda do Império Romano e as invasões dos bárbaros impedi-ram, durante vários séculos, não somente os progressos, mas o pró-prio estudo da astronomia. Os conquistadores árabes e os califas mu-çulmanos foram os primeiros a dar a uma parte do mundo a tranqüi-lidade e a ordem necessárias aos trabalhos do espírito. Seu governo,cheio de generosidade e de justiça para todos, favoreceu em todas asdireções o impulso da inteligência humana. Os grandes príncipes dadinastia dos Abassidas recolocaram em lugar de honra a filosofia e a

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ciência dos gregos. Aristóteles e Platão foram traduzidos para o ára-be, ao mesmo tempo que Hipócrates e Galeno. Eles foram seguidossem discussão, e os sábios astrônomos, que a generosidade dos cali-fas cercava de todos os meios de estudo e de observação, contenta-ram-se em transmitir – sem aumentar seu brilho – a tocha legada pe-los gregos. Seus trabalhos, entretanto, mostram o completo entendi-mento dos métodos. A mais antiga medida do globo que chegou aténós foi realizada pelos astrônomos árabes, por ordem do califa Al-mamoun.

Infelizmente, a doutrina dos epiciclos era contrariada por obser-vações precisas e cada vez mais numerosas. Os erros acumularam-see, tal como um rio do qual é preciso constantemente deslocar os di-ques, os astros há muito tempo não obedeciam mais às leis de Pto-lomeu. As tabelas do Almagesto já não serviam mais, e as que o reiAfonso de Castela havia mandado calcular, em meados do século XIII,já desolavam os astrólogos por causa da sua diferença em relação aoestado do céu. Os sistemas admitidos até então envelheciam e logoteriam de ser abolidos. A habilidade crescente dos observadores e aprecisão dos cálculos não permitiam contentar-se com pouco. Pur-bach e seu discípulo Regiomontanus tentaram em vão restaurar oedifício vacilante. Seus esforços, demonstrando sua fraqueza, só ser-viram para preparar o triunfo de Copérnico.

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A rotação diurna do nosso globo e seu movimento anual em tor-no do Sol são hoje verdades que não encontram contestação. No en-tanto, poucas verdades se impuseram com maior dificuldade à cons-ciência do espírito humano. Copérnico teve a glória de afirmá-las, eele é, segundo Voltaire, o seu verdadeiro e único inventor. “O raio deluz que hoje ilumina o mundo partiu”, diz o grande escritor, “da pe-quena cidade de Thorn.” Ele define, aliás, a questão afirmando queuma tão bela e tão importante descoberta, uma vez proclamada, teriasido transmitida de século para século, como as belas demonstraçõesde Arquimedes, e não teria se perdido. Não aconteceu assim, no en-tanto: os homens não aceitam com tanta facilidade uma verdade tãoafastada dos sentidos, e um erro tão antigo quanto o mundo não po-de ser arrancado com um único esforço. Os filósofos da Antiguidadeacreditavam no movimento da Terra e, sem que seja possível determi-nar a origem desta opinião, vê-se que ela havia impressionado Ar-quimedes, assim como Aristóteles e Platão. Cícero e Plutarco falamdisso em termos bastante precisos. Esta teoria não era, portanto, no-va. Porém, como o número de seus adeptos foi diminuindo em cadaépoca, ela havia sido completamente abandonada e tinha caído no es-quecimento quando Copérnico, dando-lhe, por assim dizer, vida no-va, fez com que ela ecoasse bastante alto para vincular para sempre

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COPÉRNICO E SEUS TRABALHOS

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seu nome a ela. As provas são numerosas e precisas; seria inútil enu-merá-las; mas talvez não tenha sido inútil assinalar o erro no qualcaiu Voltaire, por ter confiado em demasia na lógica. Não é ela quedecide as questões históricas. Um fato bem constatado deve preva-lecer sobre as conjecturas e as opiniões do mais admirável bomsenso.

Copérnico, aliás, refutou de antemão seus admiradores demasiadoexclusivistas, revelando, com grande boa-fé, as passagens dos escrito-res antigos nos quais buscara a primeira idéia do seu sistema. As in-dicações que ele fornece, infelizmente muito breves, constituem qua-se tudo aquilo que sabemos sobre o percurso secreto do seu espíri-to. A história das suas idéias permanecerá, portanto, por mais quepossamos fazer, mal conhecida. Buscando reconstruir seus principaisaspectos, ficaremos muitas vezes reduzidos às conjecturas.

Copérnico nasceu em Thorn, em 1472. Ele perdeu seu pai quan-do tinha dez anos e recebeu, sob a orientação de seu tio, bispo deWarmie, uma educação muito esmerada, orientada sobretudo para oestudo das letras. Conservou-se dele uma elegante tradução latinadas epístolas de Teofilato, que ele ofereceu ao seu tio, advertindo-ode que – expurgadas com cuidado – todas elas mereceriam o títulode cartas morais (concedido pelo autor grego apenas a algumas).

Copérnico, com a idade de dezessete anos, foi enviado a Cracóviapara estudar medicina. Porém, longe de fazer dela a sua ocupaçãoúnica e exclusiva, seguiu com sucesso todos os cursos da universida-de. O do professor de astronomia, Alberto Brudvinski, interessouparticularmente à sua curiosidade. Antes de tudo, um poderoso en-canto se prendia, para ele, aos rudes e grosseiros instrumentos entãoem uso, e o jovem estudante tratou de iniciar-se no seu emprego. O ardor do seu espírito arrastava-o ao mesmo tempo para as artes;ele seguiu um curso de perspectiva e, passando da teoria à prática, dedi-cou-se durante algum tempo à pintura. Mostrou nisso – como mos-

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trava em todos os seus trabalhos – excelentes disposições, chegando afazer alguns retratos ao natural que foram considerados bastante fiéis.

Rabelais nos informa que “os jovens estudiosos e amadores de pere-grinações” já tinham, em sua época, “o desejo de visitar os homens dou-tos, as antigüidades e as singularidades da Itália”. Copérnico, bem pre-parado para tirar proveito de uma semelhante viagem, foi, com a idadede 23 anos, para a Universidade de Pádua, cujos hábeis mestres desfru-tavam, então, de grande renome. Lá, ele seguiu os cursos de medicina ede filosofia, obtendo dois dos prêmios que eram concedidos todos osanos aos alunos que mais se destacavam pela ciência e pelo talento. Seusestudos médicos eram, entretanto, interrompidos por freqüentes excur-sões a Bolonha, para onde era atraído pela reputação e o saber do pro-fessor Domenico Maria, de Ferrara, do qual ele logo se tornou amigoíntimo. O exemplo e os conselhos de Maria fortaleceram o gosto deCopérnico pela astronomia e o puseram no caminho que ele não maisabandonaria. A medicina foi logo deixada de lado: o jovem estudante fi-xou residência em Bolonha, e Maria permitiu que ele trabalhasse em seuobservatório. Esta lisonjeira colaboração foi útil a Copérnico e contri-buiu, sem dúvida, para fazer dele um astrônomo completo, mas semconduzi-lo imediatamente a descobertas reais. Dentre os resultadosdesses primeiros trabalhos, é possível citar mesmo um erro manifesto euma observação cuja exatidão é duvidosa: Maria acreditava ter demons-trado que o pólo da Terra desloca-se em sua superfície e que, desde oinício dos tempos históricos, a latitude das cidades da Itália se modifi-cara em cerca de um grau. Ele fez com que sua opinião fosse comparti-lhada por Copérnico – que, mais tarde, renunciou a ela, porque não amenciona em sua obra. Em uma observação feita em Bolonha, em 1497,os dois astrônomos acreditaram perceber uma estrela através da parteescura do disco da Lua, que parecia deixar passar os seus raios. Comonada veio, em seguida, confirmar este incompreensível fenômeno, os as-trônomos, em comum acordo, não acreditaram nele.

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Antes de voltar para a Polônia, Copérnico foi a Roma. Lá, viu océlebre astrônomo Regiomontanus, de quem conquistou a estima.Recomendado por seu tio, o bispo, e já digno de ser procurado porseus próprios méritos, ele não foi tratado como um estudante que ti-vesse vindo receber lições, mas como um astrônomo que podia dá-las.Assim, fizeram com que se sentasse ao lado dos mestres. A permis-são para ensinar, licentia docendi, que ele havia recebido em Cracóvia foiconsiderada válida em Roma. Copérnico deu aulas, durante algunsanos, junto de Regiomontanus, cujas sábias conversações concorre-ram ditosamente – junto com as de Maria – para os progressos deseus estudos astronômicos. Chegou-se mesmo a dizer que esse céle-bre astrônomo que, por suas próprias reflexões, suspeitou do movi-mento da Terra havia orientado para esta direção as meditações deCopérnico. Porém, nenhuma prova torna esta opinião verossímil. Re-giomontanus morreu pouco tempo depois, assassinado pelos filhosde um homem cujas obras ele havia criticado com muita veemência.Nenhum dos escritos que ele deixou nos autoriza a encará-lo comoo iniciador ou o precursor de Copérnico.

Copérnico voltou para a Polônia com a idade de 29 anos, bem de-terminado a consagrar à astronomia um talento desenvolvido por dezanos de estudos tão brilhantes quanto variados. Para facilitar-lhe osmeios de conseguir o que desejava, seu tio, durante sua estada na Itá-lia, havia obtido para ele um canonicato na igreja de Frauenburgo.Um canonicato – tal era, então, a ambição comum a todos os aspi-rantes aos estudos liberais: poetas, filósofos e médicos viam nisso aúnica chance de tranqüilidade e de independência. O mérito, sem dú-vida, ajudava a obtê-lo, mas não seria possível citar como prova dis-so o exemplo de Copérnico, porque seu irmão mais velho, chamadoAndré (e tão completamente obscuro que a tradição não nos infor-ma sobre ele nada além desse fato), foi agraciado na mesma época queele. Sem necessidades e sem ambição (e mais assíduo em seu obser-

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vatório do que no coro), o ditoso Nicolau só interrompia seus tra-balhos científicos para entregar-se aos fáceis deveres de sua profis-são. Como ele havia obtido há muito tempo o barrete de doutor emmedicina, alguns doentes reclamavam, é verdade, seus conselhos, queele concedia gratuitamente. Porém, esse desprendimento nem por is-so aumentava a confiança. Sua clientela nunca foi considerável: era oque ele desejava. Quaisquer que fossem, no entanto, as suas preocu-pações científicas, ele jamais negligenciou os deveres que lhe eramimpostos pela confiança dos doentes.

Sua reputação chegou a ultrapassar, pouco a pouco, os limites dasua diocese: uma correspondência publicada recentemente mostra queo duque Alberto, grão-mestre dos cavaleiros teutônicos, recorreu aele em 1541, por ocasião de uma doença grave de um dos seus con-selheiros, pedindo-lhe que concedesse “seus bons conselhos e opi-niões a seu servidor, para curá-lo com a ajuda de Deus”. Copérnico,então com 69 anos, atendeu imediatamente aos rogos do duque, apóster obtido a autorização dos cônegos seus confrades. Ele ficou cercade um mês junto ao doente e continuou, mesmo muito tempo de-pois, a enviar por escrito seus conselhos a ele, a quem possivelmen-te curou, porque a correspondência que nos foi conservada – aliás,muito insignificante – não menciona o desenlace da doença.

Foi nos primeiros anos de seu retorno à Polônia que Copérnicoparece ter definido suas idéias sobre o sistema do mundo e compos-to sua célebre obra sobre as revoluções dos corpos celestes. Ele a con-servou inédita durante quase trinta anos. Embora a aperfeiçoasse in-cessantemente e tivesse uma extrema dificuldade para satisfazer a sipróprio, dificilmente seria possível explicar uma demora tão longa senão soubéssemos que apreensões poderiam retê-lo, e quantas dificul-dades a publicação de suas idéias teria, sem dúvida, atraído para ele.

O Almagesto de Ptolomeu era a regra universal das opiniões docil-mente recebidas e transmitidas, como evidentes e indubitáveis, de

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uma geração para outra. Copérnico, recusando-se a ceder a essa au-toridade, foi o primeiro a ousar libertar-se do jugo. A complicaçãodos movimentos admitidos pelas escolas não satisfazia o seu espíri-to. Esta arquitetura bizarra o escandalizava. Ela não podia convir, se-gundo ele, a um edifício tão majestoso e satisfazer a alta idéia de per-feição que se relaciona com ele.

Penetrado por este pensamento, e sem se preocupar com as opi-niões recebidas, ele buscou a verdade com tanto ardor quanto inde-pendência de razão. Querendo primeiramente, segundo o costume,encontrar um ponto de apoio nos antigos, ele começou por reler cui-dadosamente os escritos dos filósofos, para familiarizar-se com suasdoutrinas e saber aquilo que eles pensaram sobre esse grande e eter-no tema de meditação, não temendo atravessar muitas nuvens paradescobrir alguns raios de luz.

Naquele século de falsa ciência e de erudição sem luzes, as inteli-gências acorrentadas a vãs sutilezas não aprendiam a raciocinar, masa crer. Os mais doutos eram considerados os mais hábeis, e os anti-gos não tinham mais do que comentadores. Copérnico fez-se discí-pulo deles; buscando as idéias e não as autoridades, ele ousou abor-dá-los com um espírito de análise que as escolas não mais conheciam,para adotar e aperfeiçoar aquilo que encontrava neles de melhor e deverdadeiro. Com imaginação e um juízo reto, ele teria certamente po-dido encontrar, sem nenhuma ajuda, a idéia ousada que fez a sua gló-ria. Mas, quando ele declara formalmente o contrário, por que recu-saríamos o seu testemunho? Eis o que ele diz:

Tomei a resolução de reler as obras de todos os filóso-fos, para procurar nelas se alguns deles haviam admitido,com relação às esferas celestes, outros movimentos alémdos aceitos nas escolas. Descobri, em Cícero, que Nicetasacreditava no movimento da Terra. Plutarco ensinou-me,

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em seguida, que esta opinião havia sido partilhada por vá-rios outros. Eis suas próprias palavras: “Outros conside-ram que a Terra não se move, mas Filolau, pitagórico, con-sidera que ela se move girando pelo círculo oblíquo, nemmais nem menos do que fazem o Sol e a Lua. Heráclitodo Ponto e Ecfanto, pitagórico, agitam bastante a Terra;mas não que ela chegue a passar de um lugar para outro,estando envolvida, como uma roda, por bandas, desde ooriente até o ocidente, em torno do seu próprio centro.”

Copérnico poderia ter citado uma autoridade mais considerável:Arquimedes, com efeito, no início do livro intitulado Arenário, é maisclaro e ainda mais preciso:

O mundo é considerado pela maior parte dos astrôno-mos uma esfera cujo centro é o mesmo que o da Terra, ecujo raio é igual à distância entre a Terra e o Sol. Aristarcode Samos menciona esta opinião e a refuta: segundo ele,o mundo seria muito maior. Ele supõe que o Sol é imó-vel, assim como as estrelas, e pensa que a Terra gira emtorno do Sol como centro, e que a grandeza da esfera dasestrelas fixas – cujo centro é o do Sol – é tamanha que acircunferência do círculo traçado pela Terra está, para adistância das estrelas fixas, como o centro de um círculoestá para a sua superfície.

São essas passagens tão formais que, como diz Copérnico, lheabrirão caminho para a idéia do movimento da Terra, e serão para elecomo uma revelação. Ele viu aí o meio de simplificar as engrenagenstão numerosas e tão complicadas da máquina celeste. O sucesso ul-trapassou as suas expectativas, e a luz logo se fez em seu espírito.

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Mais preocupado, entretanto, com o repouso do que ambicionandouma glória retumbante, ele continuou silenciosamente os seus traba-lhos, aperfeiçoando incessantemente a sua obra e fortificando suasconvicções por meio do estudo contínuo das observações antigas eda contemplação assídua do céu – muitas vezes velado, infelizmente,pelos nevoeiros do Vístula.1 A finalidade principal da obra de Co-pérnico é estabelecer o duplo movimento da Terra, pela simplicidadee regularidade das explicações que ele fornece (e cujo majestoso con-junto não tem necessidade de outras provas para impor-se irresisti-velmente ao espírito).

O próprio Ptolomeu não ignorava que a hipótese da rotação daTerra explica com muita simplicidade algumas das aparências doUniverso, mas não havia ousado adotá-la. Ele era demasiado esclare-cido para ver uma dificuldade séria na ausência aparente de movi-mento. Por mais rapidamente, com efeito, que a Terra nos carregue,os objetos que nos cercam, seguindo todos ao mesmo tempo o mes-mo caminho, experimentam um deslocamento em comum, cuja im-petuosidade torna-se, como resultado disso, imperceptível. Ptolo-meu, sem dúvida, compreendeu isso; mas recuou diante de uma ob-jeção que lhe parecia sem réplica.

Se a Terra girasse em 24 horas em torno do seu eixo,os pontos de sua superfície seriam animados por uma ve-locidade imensa e, da sua rotação, nasceria uma força deprojeção capaz de arrancar dos seus fundamentos os edi-fícios mais sólidos, fazendo voar seus pedaços pelos ares.

Esta apreciação dos efeitos da rotação terrestre assenta-se sobreuma confusão que é preciso assinalar. A dificuldade desaparece quan-

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1. Rio que corre através da Áustria, da Polônia e da Alemanha, desaguando no marBáltico. [N. dos T.]

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do, invocando os verdadeiros princípios da mecânica, queremos levá-la às últimas conseqüências.

No movimento de um corpo que gira, devemos distinguir a velo-cidade absoluta dos pontos situados na superfície e a velocidade derotação medida pela duração de uma volta completa. A força de pro-jeção de que fala Ptolomeu – e que nós chamamos de força centrífuga– depende ao mesmo tempo dessas duas velocidades, e é proporcio-nal a ambas. Ora, no caso da rotação terrestre, que nos ocupa, se avelocidade dos pontos situados na superfície é muito grande, a velo-cidade de rotação é extremamente pequena: uma volta a cada 24 ho-ras. É a metade daquilo que faz o ponteiro das horas de um relógioe, feitos todos os cálculos, a força centrífuga produzida pela rotaçãoda Terra, longe de poder arrancar os edifícios das suas fundações, di-minui somente o peso dos corpos situados no equador, onde ela émais forte, em cerca de três gramas por quilo.

Galileu encontrou, um século mais tarde, a mesma dificuldade,sem conseguir desenredá-la completamente. Copérnico tinha aindabem menos condições de realizar semelhante cálculo (que teria ultra-passado bastante os seus conhecimentos de mecânica), mas nem porisso renunciou às suas convicções. Mesmo encarando a objeção comoséria, ele não deixou que ela o retardasse ou perturbasse. Acreditoupoder conciliar tudo por meio de uma distinção sutil:

A rotação da Terra, sendo um movimento natural, osefeitos dela são completamente diferentes dos de um mo-vimento violento, e não se deve assimilar a Terra, que gi-ra em virtude da sua própria natureza, a uma roda que éforçada a girar.

Duzentos anos de trabalhos e de descobertas apagaram da ciênciaessa distinção entre movimento natural e movimento violento. Um

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corpo, qualquer que seja, não tem nenhuma virtude real, nenhumacausalidade para produzir o seu próprio movimento ou para modificara direção dele. Os corpos celestes, em suas evoluções, não diferem emnada dos outros corpos. Eles estão submetidos às mesmas leis mecâ-nicas, do mesmo modo como as substâncias organizadas nos corposvivos obedecem às mesmas leis físicas e químicas que regem a maté-ria inerte. Portanto, o princípio de Copérnico é falso. Mas não é ab-surdo. Ele o recebeu, aliás, dos peripatéticos, e seria tão injusto cen-surá-lo quanto ver uma prova de sagacidade no argumento sem valorque o manteve tão afortunadamente no bom caminho.

Copérnico admite, como Filolau e Heráclito do Ponto, que a Terragira em 24 horas, e do ocidente para o oriente, em torno da linha dospólos. Carregados por esse movimento, do qual não temos consciên-cia, nós o transferimos para os astros, que parecem, por uma rotaçãocontrária, girar em 24 horas do oriente para o ocidente, em torno domesmo eixo.

Esta explicação simples de um fenômeno tão universal faz desapa-recerem muitas dificuldades. A distância imensa das estrelas exigiria,se o seu movimento fosse real, uma velocidade que assusta a imagi-nação e que Kepler avaliava demasiado por baixo, fixando-a em 17 mil léguas por minuto. Seria bem difícil de explicar, além disso,que esse número prodigioso de sóis, como que encadeados por laçosinvisíveis, conservassem exatamente suas posições relativas, consti-tuindo um sistema invariável que parece girar como uma única peça,sem ser atrapalhado em nada por uma rotação tão rápida. Como o Sol,a Lua e os planetas participariam desse movimento, porém subtrain-do-se a ele parcialmente, já que se vê variar a cada dia o lugar em queeles nascem e o círculo que eles parecem descrever? Como, enfim, omisterioso impulso que parece fazer o Universo girar em torno de umeixo que atravessa o nosso globo deixaria apenas a nós de fora dessarotação? Como a rotação da Terra fazia com que todas essas dificul-

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dades desaparecessem, Copérnico considerou-a como demonstrada.Explicando assim o movimento diurno dos astros, ele pôde abstraí-la na seqüência de seus trabalhos, limitando-se a considerar, em es-tudos posteriores, seu deslocamento em relação às estrelas.

As estrelas, entretanto, mesmo conservando suas posições relati-vas, parecem estar sendo carregadas por um outro movimento extre-mamente lento, que não pode ser medido por dias, mas por centenasde séculos, e que, de acordo com Hiparco, desloca toda a esfera ce-leste no sentido da eclíptica, fazendo com que ela complete uma vol-ta em 26 mil anos. Copérnico nem por isso abandonou sua crença nafixidez. Compreendeu que não são elas que se deslocam: é o eixo daTerra que gira em 26 mil anos em torno da eclíptica, arrastando as-sim o pólo do Universo, sem deixar de atravessar o globo terrestrenos mesmos pontos – e sem justificar, por conseguinte, a opinião deDomenico Maria sobre a modificação das latitudes geográficas.

Existe, é preciso confessá-lo, uma contradição geométrica em su-por um eixo de rotação atravessando sempre o globo terrestre nosmesmos pontos e mudando, entretanto, de direção no espaço. Se avelocidade no pólo é sempre nula, o eixo que nele culmina permane-ce invariável, e a modificação da sua direção, tão lenta quanto sequeira supô-la, é impossível. Porém, nada sob o Sol é rigorosamenteimutável; o pólo da Terra não está fixo na sua superfície. Um dosgeômetras mais perspicazes da nossa época, Poinsot, analisando o fe-nômeno com sutileza e clareza, mostrou que todos os dias o nossopólo descreve em torno de sua posição mediana um círculo de algunsdecímetros. Para os astrônomos, um movimento tão sutil e tão deli-cado não difere da imobilidade. Porém, ele tem importância aos olhosdos geômetras. Corresponde à rolagem regular e necessária, emboraimperceptível, da imensa máquina que eles estudam. A circunferên-cia desse pequeno círculo mede – como mostrou Poinsot – o cami-nho que o pólo do Universo percorre a cada dia na esfera celeste:

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é um dos passos sucessivos dessa marcha tão lenta, assinalada porHiparco, que dura 26 mil anos.

Entre os astros móveis, o Sol é o único que segue uma marchasimples e regular: ele é visto descrevendo em um ano, sobre a esferaceleste, o grande círculo chamado de eclíptica. Seu movimento não érigorosamente uniforme, mas chegaria a sê-lo, nos limites da exati-dão suficiente, se nos colocássemos, para observá-lo, em um centrofictício pouco afastado do centro da Terra.

O movimento dos planetas é mais complicado: eles vão ora maisrápido, ora mais lentamente, ora em um sentido, ora em outro, e suasfreqüentes paradas, constantemente seguidas por uma mudança dedireção, dão-lhes no céu um andamento desigual e bizarro. O movi-mento circular uniforme – que é o único que convém, segundo os an-tigos astrônomos, à perfeição dos corpos celestes – não pode explicartais aparências. Tinha-se acreditado conciliar tudo com a singulardoutrina dos epiciclos que, no tempo de Copérnico, ainda reinava ab-soluta. Partindo do princípio evidente de que os corpos celestes de-viam descrever círculos, e vendo claramente, entretanto, que eles nãoos descreviam, os antigos astrônomos – atendo-se bem mais a har-monizar as palavras do que a permanecer conseqüentes com o seufalso princípio – diziam que cada planeta é móvel em um círculo.Mas, eles logo admitiram que esse círculo, chamado de epiciclo, era ar-rastado uniformemente, por sua vez, na circunferência de um outrocírculo, chamado de deferente, levando consigo o planeta que o percor-re. Esse último encontrar-se-ia, assim, submetido a dois movimentosque se alteram mutuamente por sua composição. Ele só pode – façao que fizer – descrever uma única curva, que não é um círculo, masque é produzida pela combinação de dois movimentos circulares;com esta sutileza de discurso, eles pretendiam conciliar tudo. Essashipóteses que, de acordo com Ptolomeu, remontam a Apolonius explicam as características gerais dos movimentos observados. Mas

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estão longe de reproduzir exatamente os seus pormenores, e os astrônomos – tateando, por assim dizer, nas trevas – não haviam he-sitado em complicar suas hipóteses, aumentando ilimitadamente onúmero desses círculos que giram uns sobre os outros. Suas dimen-sões arbitrárias, assim como suas velocidades, deixavam uma grandemargem que prolongava a ilusão, e, para harmonizar a teoria com asobservações cada vez mais precisas, avançava-se por um caminho semsaída, embaraçando-se em entraves sempre mais numerosos. Copér-nico teve bastante liberdade de espírito para rejeitá-los e bastanteforça para rompê-los com uma mão ousada. Fez desaparecerem essasvãs sutilezas. Lançando a Terra no espaço, colocou o Sol no centrodo mundo, como sendo o coração e o fogo de toda a natureza. Quempoderia – diz ele – escolher um melhor lugar para essa lâmpada bri-lhante que ilumina todo o Universo? Do mesmo modo que o maisbelo quadro só pode ser admirado e compreendido de um ponto devista bem escolhido, é preciso, para compreender o sistema do mun-do, colocar-se, por meio do pensamento, no seu centro, que é o doSol: é daí que Copérnico percebe a ordem harmoniosa do Universoe o espetáculo eterno que seus mestres lhe haviam tantas vezes mos-trado, sem lhe ensinar a compreendê-lo.

Supondo-se o Sol imóvel, é forçoso admitir que a Terra gira emtorno dele, descrevendo a cada ano um círculo precisamente igualàquele no qual acreditávamos vê-lo ser arrastado. Nosso globo per-de, assim, seu papel excepcional no Universo. Deixa de ser o centroe o fim último da criação. Por mais que a vaidade humana queira es-tabelecer alguma diferença entre a Terra e os outros planetas, não émais possível perceber nenhuma característica peculiar que a distin-ga. Copérnico nos mostra todos os planetas semelhantes pela forma,comparáveis pelas dimensões e circulando, submetidos às mesmasleis, em torno do mesmo foco de luz e de calor, que reluz igualmen-te para todos eles, envia-lhes a mesma claridade, aquece-os com os

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mesmos raios e parece mantê-los na mesma dependência. É preciso,portanto, buscar mais alto e mais longe do que na nossa Terra os se-gredos da sabedoria eterna ou renunciar modestamente a penetrar ne-les. Porém, como diz o frei João, essas não são as palavras do breviário,e o cônego de Frauenburgo praticamente não podia discuti-las.

Admitindo-se o movimento da Terra, vê-se facilmente que aparên-cias esse deslocamento, efetuado sem o nosso conhecimento, deveproduzir sobre os diferentes astros. Se nos aproximarmos do Sol,por exemplo, nos parecerá que, por um movimento contrário, é eleque se aproxima de nós. Se nosso movimento nos leva para a direita,aparentemente o veríamos descrever um caminho igual para a esquer-da, se nos considerássemos imóveis. Uma análise muito simples dofenômeno mostra, enfim, que, descrevendo uma curva qualquer, nósacreditaríamos ver o Sol – ou qualquer outro astro que estivéssemosobservando – descrever uma curva precisamente igual no sentido in-verso, cujas dimensões aparentes dependeriam, bem entendido, dadistância que nos separasse dele.

Essas aparências, que Copérnico analisa com tanta solidez e jus-teza, se estendem sem exceção a todos os corpos celestes acessíveisàs nossas observações. É uma conseqüência da qual não é possível seesquivar, e que parece de início condenar a hipótese. O movimentodas estrelas é, com efeito, completamente explicado pela rotação daTerra em torno do seu eixo, e nós não as vemos de forma alguma des-creverem, além disso, círculos paralelos entre si e iguais à órbita pre-sumida do nosso planeta. Porém, esta dificuldade não deteve Co-pérnico. Ele conclui disso que, por causa da prodigiosa distância dasestrelas, o círculo igual à órbita terrestre, que cada uma delas deveriaparecer descrever, aparece de tal modo pequeno que escapa às obser-vações mais precisas.

Os planetas tampouco parecem descrever círculos iguais e parale-los ao plano da eclíptica. Eles têm, portanto, um movimento real que

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se combina com o movimento aparente que o nosso espírito lhesatribui. Copérnico admite que cada um deles descreve um círculo emtorno do Sol; o movimento da Terra, que, além disso, nós transferi-mos para eles por meio do pensamento, produz então as mesmas apa-rências que existiriam se cada planeta girasse em um ano em um epi-ciclo igual à órbita terrestre arrastada sobre a órbita verdadeira doplaneta – que parece desempenhar, assim, o papel do deferente de Apo-lonius. É possível inverter os papéis e considerar a órbita real comoo epiciclo, supondo que ela é arrastada sobre um deferente igual à ór-bita terrestre. A primeira dessas hipóteses representa, para os plane-tas superiores – Marte, Júpiter e Saturno –, o sistema admitido porPtolomeu, e é a segunda, ao contrário, que reproduziria as teorias deMercúrio e de Vênus, tais como elas são mais ou menos expostas noAlmagesto. Mas, é preciso observar bem que, nas idéias antigas, aidentidade entre as dimensões da órbita do Sol e as dos epiciclos nãoera nem mesmo suspeitada. Ptolomeu, com efeito, não vinculava deforma alguma o movimento de um planeta ao de outro. A relação en-tre o epiciclo e o deferente e as velocidades nas quais ele supunha quefossem percorridos eram determinadas para cada planeta, mas semque existisse qualquer relação entre os círculos relativos aos diferen-tes astros. Os diversos elementos do sistema permaneciam indepen-dentes, e não era possível nem situá-los nem mesmo ordená-los comcerteza. O sistema de Copérnico, fazendo nascer os epiciclos dasaparências produzidas por um mesmo movimento, o da Terra, esta-belece um laço entre esses elementos. Eles tornam-se, por assim di-zer, os membros de um mesmo corpo. É possível contemplá-los comum único olhar, e o sistema do mundo aparece pela primeira vez emseu harmonioso conjunto.

Admitindo-se o princípio de Copérnico, compreende-se facilmen-te como a distância entre cada planeta e o Sol pode ser aproximada-mente determinada. Tomemos como exemplo o planeta Júpiter; é ne-

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cessário, antes de tudo, procurar a duração de sua revolução. Apesardas dificuldades aparentes, a solução desse problema é extremamen-te simples. É possível comparar a linha reta – denominada raio vetor– que reúne o centro fixo do Sol ao centro móvel de Júpiter com oponteiro de um relógio, e o tempo que ele leva para percorrer seuimenso mostrador é a duração da revolução de Júpiter. Nós podemosconsiderar o raio vetor que une a Terra ao Sol como um ponteiromais curto que o precedente e girando no mesmo sentido. O movi-mento deste último é bem conhecido: ele realiza a sua volta em umano. Suponhamos agora, embora isso não seja absolutamente exato,que os planos das duas órbitas coincidam – ou, em outras palavras,que os dois ponteiros, de comprimento desigual, marchem sobre o mesmo mostrador. Situados, como estamos, na extremidade doponteiro menor, é fácil para nós assinalar o encontro dele com omaior, e os astrônomos que observam atentamente o Sol e Júpiter sa-berão dizer em que momento nos encontraremos sobre a linha queos une. Eles descobriram há muito tempo que essas oposições deJúpiter – ou, o que dá no mesmo, os encontros entre os dois pontei-ros – ocorrem, em média, a cada 400 dias. O menor realiza, portanto,em 400 dias, uma volta a mais do que o maior. Como conhecemos omovimento do primeiro, o mais simples estudante será capaz de de-duzir o seu movimento supostamente uniforme, ou seja, o movimen-to médio do outro. Foi assim que se identificou a duração da revo-lução de Júpiter como sendo igual a 4.332 dias e quatorze horas.

Sendo bem conhecido esse resultado, tracemos um círculo de raioarbitrário que represente a órbita terrestre e cujo centro representa-rá o Sol. Procuremos representar a órbita de Júpiter no mesmo dese-nho, conservando as suas proporções exatas. Suponhamos que a ob-servação contínua do planeta nos tenha ensinado que ele se encon-trava certo dia localizado sobre o prolongamento da linha que liga oSol à Terra. Sobre o círculo que representa a órbita terrestre, selecio-

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nemos um ponto que, nesse dia, representará a Terra. Sobre o raiocorrespondente e a uma distância desconhecida encontra-se Júpiter.Após algum tempo – depois de um mês, por exemplo – a Terra terápercorrido 1/12 de sua órbita e será possível fixar o ponto onde elase encontra. Poderemos assim, de acordo com as observações, traçarno papel a linha que a une com Júpiter. Se supusermos, enfim, que es-te se move com um movimento uniforme em um círculo tendo comocentro o Sol, será possível traçar o raio vetor que reúne, no mesmodia, o Sol com Júpiter e que produz, com o raio primitivo relativo aodia da conjunção, um ângulo igual aos 30/4.332 de quatro ângulosretos, ou seja, cerca de 2°31’. Temos, assim, duas linhas que devemconter Júpiter. Sua interseção dará a posição aproximada do planeta.A mesma construção, reproduzida para os intervalos correspondentesa trinta dias de marcha de um e de outro planeta, fornecerá os pontossucessivos da órbita de Júpiter, e todos esses pontos, se nossas hipó-teses forem exatas, estarão sobre um mesmo círculo. Infelizmente,não é assim que acontece; obtém-se, desta maneira, uma curva umpouco alongada e sinuosa, que difere notavelmente de um círculo. O método parece, portanto, sem razão, e a experiência fracassa. Ela é,no entanto, um primeiro passo num caminho que traz à luz.

Nossas construções supõem, com efeito, que o planeta descrevauniformemente um círculo, tendo como centro o Sol e cujo planocoincida com o da órbita terrestre. Essas suposições não são exatas, eo resultado obtido, portanto, é apenas uma primeira aproximação. Se-melhante aos primeiros arquitetos cristãos que, para erguerem os tem-plos da nova fé, empregavam os restos dos monumentos antigos, Co-pérnico recorreu aos procedimentos habituais de Ptolomeu e supôs umexcêntrico e um epiciclo. Porém, a álgebra é o único instrumento bas-tante refinado para determinar esses novos elementos; é a única línguabastante precisa para desembaralhar a confusão de semelhante proble-ma. Devemos nos limitar a ter assinalado o princípio e a característica

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essencial do método; seria inútil seguir Copérnico nos pormenores dasolução. Esse retorno aos epiciclos é uma contradição no sistema. Elealtera a simplicidade que faz a sua grandeza e beleza, e constitui umaverdadeira nódoa. É o único ponto sobre o qual o livro das revoluçõesafasta o leitor dos grandes caminhos da ciência moderna.

Após haver exposto os detalhes de seu sistema, Copérnico – satisfei-to por haver dito o bastante para assegurar o triunfo de suas idéias –absteve-se de resumir as suas características essenciais e de ressaltar oapoio que elas emprestam-se mutuamente. Pelo que dizem, ele comple-ta suas demonstrações por meio de comunicações verbais. Para recons-tituir todo o seu pensamento, é preciso adivinhá-lo nos escritos – namaior parte, bem tímidos – que, inspirados por ele, vieram a se colocarentre o seu livro das revoluções e as obras imortais e originais de Galileue de Kepler. Foi o próprio Kepler que, ainda muito jovem e discípulo deMoestlin, resumiu seus argumentos mais decisivos, de maneira a impri-mi-los fortemente nos espíritos. Tais argumentos eram transmitidos emtom de confidência e sem se aventurarem nas cátedras oficiais.

“Adotei o sistema de Copérnico”, ele diz, “depois de profundas refle-xões e sustentado pela autoridade de meu mestre Moestlin.” E, após ha-ver exposto sumariamente a diferença entre as duas doutrinas, ele acres-centa: “Poderíamos perguntar a Ptolomeu por que os excêntricos deMercúrio e de Vênus e o do Sol são percorridos em tempos iguais; seusistema não oferece nenhuma razão para esta coincidência; o de Co-pérnico, pelo contrário, nos mostra que esses três movimentos são apa-rências produzidas por uma mesma causa, que é a rotação da Terra.”

Por que os movimentos dos cinco planetas são alternadamente di-retos e retrógrados, enquanto o Sol e a Lua andam sempre no mes-mo sentido? Responderemos, quanto ao Sol, que ele na realidade es-tá imóvel, e que o movimento aparente é o efeito da translação daTerra, que por sua vez efetua-se sempre no mesmo sentido. Quantoà Lua, sua rotação em torno do Sol acompanha a da Terra, e, por con-

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seguinte, não tem efeito para os nossos olhos. Percebemos apenas omovimento que a empurra sempre no mesmo sentido em torno donosso planeta. Quanto aos planetas, eles giram sempre no mesmosentido, mas nós aplicamos a eles, acreditando que estamos imóveis,um movimento contrário ao da Terra que, segundo as posições rela-tivas, pode – como se vê por uma análise atenta – diversificar as apa-rências e simular um deslocamento, dirigido ora num, ora noutrosentido. Poderíamos perguntar ainda, sem que Ptolomeu pudesseresponder: por que as maiores órbitas correspondem a epiciclos tãopequenos e as menores órbitas a epiciclos tão grandes? Isso se deve,segundo Copérnico, ao fato de que esses epiciclos, idênticos à órbi-ta terrestre, são iguais entre si e, por conseguinte, tanto menores –relativamente – quanto mais eles pareçam girar em uma órbita maior.Se a mesma lei não se estende aos planetas Vênus e Mercúrio é por-que, por uma inversão que foi explicada, o epiciclo de Ptolomeu é,para esses dois, sua órbita verdadeira, que se supõe móvel sobre umcírculo igual ao da órbita terrestre. Os antigos se espantavam, enfim– e não sem razão –, por verem os planetas superiores constantemen-te em oposição ao Sol, no momento em que eles passam pelo pontomais baixo do seu epiciclo, e em conjunção com o mesmo astro,quando de sua chegada ao ponto mais alto. Esta coincidência é umaconseqüência obrigatória do sistema de Copérnico. Como a Terra gi-ra, como os outros planetas, em torno do Sol, sua distância para ca-da um deles é evidentemente a menor possível, quando ela está sobrea linha que reúne o Sol ao planeta (e existe, então, oposição); ela é,pelo contrário, a maior possível nas conjunções.

É bom ser modesto, disse Voltaire, mas não é possível ser indife-rente com relação à glória: Copérnico parece ter sido. Ele não tinhaambições, nem mesmo a mais alta e a mais pura de todas – a de dei-xar um grande nome. Seu zelo pela verdade, temperado com o amorpela paz, jamais chegou ao ponto de comprometer seu repouso.

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Sem prever quais contrariedades poderiam existir entre as suasopiniões e as decisões da Igreja, ele suspeitava das dificuldades, quepreferiu evitar, não publicando nada.

Copérnico oferecia gratuitamente seus cuidados, como médico, atodos aqueles que os reclamavam, mas sem procurar acrescer sua re-putação nem aumentar sua clientela. O sábio astrônomo agia preci-samente da mesma maneira. Não recusando sua companhia nem suaconversação aos raros discípulos que vinham até ele para serem escla-recidos, ele lhes revelava todos os seus segredos. Porém, para aquelesque, satisfeitos com o testemunho dos sentidos, acreditavam conhe-cer a natureza, ou que, temendo tornarem-se mais sábios do que deviamser, recusavam-se a levantar o véu misterioso que a cobria, Copérnicojamais tentava elevar-lhes o espírito contra a sua vontade e abrir-lhesos olhos voluntariamente entorpecidos. Não esqueçamos de que, co-mo cônego, ele devia obediência aos seus superiores, o que sempreconstrange um pouco a liberdade.

A crença no movimento da Terra espalhava-se pouco a pouco.Conta-se que comediantes, tomando-a como tema para os seus gra-cejos, quiseram representar em seu teatro as conseqüências cômicasde uma idéia tão extraordinária. Esta farsa não foi conservada. É for-çoso crer que ela era mais grosseira do que alegre, pois, após algunsdias de sucesso, ela foi vaiada. Talvez se tenha dado demasiada im-portância a inocentes zombarias, que não parecem ter chegado até oinsulto e que estão longe de merecer a indignação. Os comediantes,persuadidos pela falsa evidência que lhes mostrava a Terra imóvel, es-pantavam-se com um suposto movimento do qual não se vê nem seexperimenta nenhum sinal sensível. A crença nesse paradoxo, que to-dos os sentidos pareciam reprovar, pareceu-lhes uma extravagânciaapropriada para figurar em uma encenação cômica. Eles estavam exer-cendo seu papel e no seu direito, porque o teatro não é uma escolade física. “Tu zombas de mim”, escrevia Kepler a um de seus contra-

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ditores; “que seja, vamos rir juntos.” Copérnico não era amigo do ri-so por natureza, e é bem provável que não gostasse de zombarias.Mas sabia suportá-las e não se irritou de forma alguma com os co-mediantes. Não sejamos mais severos do que ele.

Sem nenhum espírito de dominação e nunca se misturando comassuntos que não lhe diziam respeito, Copérnico nem por isso esta-va menos preparado para enfrentar as borrascas do século, para cum-prir todos os deveres que lhe eram impostos pela estima dos seus su-periores ou pela confiança dos seus confrades.

Durante uma vacância da sé episcopal, ele foi nomeado, em 1513,administrador da diocese de Warmie. Carregou dignamente o peso des-sas honoráveis e perigosas funções. Os cavaleiros teutônicos, outroraprotetores da Igreja e fundadores da cidade de Thorn, haviam se tor-nado vizinhos bastante incômodos para o bispado. Já fortemente sus-peitos de heresia e esquecendo muitas vezes a regra da disciplina, elesperturbavam com suas incursões violentas aqueles que haviam defen-dido por tanto tempo. A impunidade aumentava seu desregramento, eos bispos, sem poder para reprimi-los e sem força para puni-los, só po-diam contrapor-lhes, na maior parte das vezes, uma paciência resigna-da. A morte do bispo despertou suas injustas pretensões. Eles se apo-deraram do castelo de Warmie e dos bens do capítulo.2 Copérnico,cheio de zelo para com os interesses dos quais havia sido encarregado,apelou para o rei da Polônia, o firme e sábio Sigismundo, que, para bai-xar o orgulho dos cavaleiros e fazer os seus poderes voltarem aos seusjustos limites, autorizou-o a processar judicialmente o grão-mestre daordem. Copérnico saiu vitorioso da luta e conservou para o bispado asTerras que haviam querido usurpar dele, sem haver comprometido apaz e sem ter perturbado a tranqüilidade dos seus concidadãos.

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2. Comunidade ou corporação formada pelos cônegos ligados a uma catedral oucolegiada. [N. dos T.]

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Recorreu-se, numa outra circunstância, às luzes e à sagacidade deCopérnico, quando a dieta3 polonesa foi convocada em Graudenz, em1521. Ele foi escolhido por unanimidade para nela representar o co-légio dos cônegos, e logo depois foi nomeado relator de uma ques-tão de grande importância. Seu trabalho acaba de ser publicado pelaprimeira vez na nova edição das suas obras. Encontra-se nele umaciência exata e profunda (com toda a força e a clareza do seu exce-lente espírito), aplicada a questões muito delicadas e postas a servi-ço de verdades já antigas, mas quase sempre ignoradas.

As dificuldades financeiras, conseqüência necessária de uma má ad-ministração, haviam conduzido pouco a pouco os grão-mestres da or-dem teutônica a alterarem, sem cautela e sem escrúpulo, o teor metáli-co das diversas moedas. Como as dissensões e os revezes políticos ti-nham, ao mesmo tempo, rompido a unidade da Prússia, cada cidade ha-via se arrogado o direito de cunhar moedas, e disso havia resultado nosdois países, politicamente ligados por direitos de suserania, uma deplo-rável confusão. O marco designava primitivamente um peso de meia li-bra, e em moeda corrente valia sessenta soldos. De alteração em altera-ção e de expediente em expediente, haviam conseguido modificar as pro-porções da liga a ponto de cunhar trinta marcos – ou 1.800 soldos –com uma libra de prata. O peso das peças não tinha variado, mas essessoldos (que pesavam o mesmo que as atuais moedas francesas de dezsoldos) não valiam mais, em prata, do que seis cêntimos. De moedas deprata, eles haviam gradualmente se transformado em moedas de cobreque, aceitas com repugnância no interior do país, não eram mais recebi-das pelos negociantes estrangeiros. Os interesses do comércio estavamgravemente comprometidos, e a questão se impunha às prontas delibe-rações da dieta. Copérnico foi encarregado de estudá-la. Cumpriu a ta-refa com inteligência e bom senso.

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3. Nome que recebiam as assembléias políticas em alguns países da Europa. [N. dos T.]

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“O aviltamento da moeda”, escreveu, “é um dos quatro grandesflagelos que, junto com a discórdia, as epidemias e a fome, podemperturbar e agitar um Estado.” Ele combateu o preconceito daquelesque imaginavam que o enfraquecimento das moedas poderia baixar opreço real das mercadorias, pondo-as mais ao alcance dos pobres. A de-sordem e a confusão das espécies metálicas só beneficiam os cambis-tas, cujo papel torna-se mais ativo e mais indispensável. Copérnicoaplica-se até mesmo em provar que os colonos censitários – que devemaos proprietários uma renda nominal fixa – perdem, eles próprios, como aviltamento da qualidade das moedas. Esse é o único ponto arrisca-do de sua tese; o contrário parece evidente: a alteração das moedas ali-via os encargos dos censitários; porém, para que isso aconteça, o se-nhor é lesado na mesma medida. É para ele uma verdadeira espoliação,e a justiça é violada sem nenhum proveito para a sociedade.

Copérnico propõe alguns remédios simples e práticos, tais comoa redução das casas da moeda a apenas duas, a desconsideração dasantigas moedas e sua substituição por soldos contendo 1/4 de pratapura e cunhados à razão de vinte marcos por libra. Ele sentia que se-ria impossível subir novamente ao topo da colina e voltar imediata-mente à moeda forte do século XIV. Seria necessário combinar a re-forma de maneira a não expulsar o ouro, sem todavia atraí-lo em de-masiada quantidade, em detrimento da prata.

Os princípios de Copérnico sobre as moedas estão em conformi-dade com as sãs doutrinas da economia política: “A moeda”, escreveu,“é uma medida e, como toda medida, deve ser fixa.” O que se diriade uma alna4 ou de uma libra cujo comprimento e peso mudassem deacordo com a vontade dos fabricantes de medidas? O valor da moe-da provém não daquilo que está impresso nela, mas do valor do me-tal puro que ela contém. E entre esses dois valores só deve haver uma

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4. Antiga medida de comprimento equivalente a cerca de 120 centímetros. [N. dos T.]

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única diferença, a dos custos de fabricação. Para que serve, então, si-mular uma moeda forte ligando nela um pouco de prata a muitocobre?

Ele não foi o primeiro, aliás, a proclamar essas verdades hoje emdia incontestadas e banais. Nicolau Oresme, na França, inspirando-se nas sábias medidas de Carlos V, havia falado a mesma linguagemainda com mais veemência, protestando contra as alterações escanda-losas que haviam se sucedido durante os reinados de João o Bom ede Carlos VI. A verdade sobre essas questões já tinha sido formula-da claramente por Aristóteles, e, em todos os séculos, encontrou de-fensores convictos e zelosos. Para semelhante tarefa, o gênio não sefazia necessário, o bom senso era suficiente. Mas a voz do bom sen-so era abafada pela ignorância dos povos e pela cupidez estúpida dosgovernos. Copérnico não foi mais feliz do que os seus predecessores,apesar da clareza de suas explicações e da sabedoria das medidas quepropunha. Continuou-se, tanto na Polônia quanto na Prússia, a alte-rar cada vez mais as moedas; e seu excelente relatório estaria esque-cido há muito tempo, se não tivesse tido como salvaguarda o ilustrenome do autor.

Tais foram os únicos acontecimentos marcantes dessa vida pacífi-ca e escondida. Feliz por se fazer esquecer, Copérnico, pouco preo-cupado com os grandes cargos e com as dignidades eminentes, reen-controu com felicidade a obscuridade voluntária do seu retiro e a cal-ma necessária para os seus trabalhos. O resto da sua vida, divididaentre a astronomia e o exercício gratuito da medicina, decorreu na con-templação do verdadeiro e na prática do bem. Temendo sempre asconseqüências de uma iniciação muito ousada e muito brusca, pro-pagou suas idéias com mais perseverança que zelo, não revelandoseus segredos senão pouco a pouco, escolhendo seus discípulos semjamais atraí-los e não pensando que a fé científica obrigava ao mar-tírio. Em meio às perturbações e às dissensões da Igreja, considera-

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va-se feliz por estar abrigado da tempestade. Sua lealdade jamais pen-sou em calar a verdade, mas ele temia professá-la demasiado publica-mente. Tem-se censurado essa circunspeção, afirmando que naquelaépoca, na Polônia, ele teria podido falar sem perigo; mas Copérnicoera, sem dúvida, quanto a esse ponto, um melhor juiz do que nós po-demos ser.

A reputação do cônego de Frauenburgo espalhava-se pouco a pou-co, e seu nome era pronunciado com honra, embora sem alarde, deum extremo ao outro da Europa. Opiniões e pedidos vinham de to-das as partes, para convidá-lo a publicar o livro que sua prudente mo-déstia parecia, há 27 anos, prometer ao público.

Reynold, em seu discurso sobre o sistema de Ptolomeu, falava deum mestre ilustre cuja obra, destinada a restaurar a astronomia, eraaguardada com a mais viva impaciência. A ciência, acrescentava, espe-ra um novo Ptolomeu que sairá da Prússia, porque lá existe um gê-nio divino que a posteridade deve abençoar. O bispo de Culm, Gy-sius, e Nicolau Schomberg, cardeal de Cápua, foram os mais fervo-rosos em solicitá-lo. Eles venceram, enfim, as irresoluções dele. Dei-xando-se conduzir pelos conselhos dos dois, Copérnico confiou oprecioso manuscrito a Gysius. Este apressou-se a remetê-lo ao pro-fessor Rheticus, um dos mais entusiastas e mais devotados dentre osdiscípulos que haviam ido a Frauenburgo buscar na própria fonte oentendimento da nova doutrina. Rheticus logo fez com que ele fos-se impresso em Nuremberg, sob a direção inteligente e zelosa de seusamigos Schoner e Osiander. Porém, Osiander, inquieto no últimomomento, acrescentou à frente da obra uma curta advertência cheiade incerteza e de hesitação que, publicada sem o nome do autor, foimuitas vezes atribuída a Copérnico.

Os eruditos ficarão chocados pela novidade da hipó-tese sobre a qual se baseia este livro, no qual se supõe

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a Terra em movimento em torno do Sol (que permane-ce fixo); mas, se eles quiserem olhá-lo mais de perto,reconhecerão que o autor não é de forma alguma dig-no de repreensão. A finalidade da astronomia é obser-var os corpos celestes e descobrir as leis dos seus mo-vimentos, dos quais é impossível assinalar as verdadei-ras causas. É permitido, por conseguinte, imaginá-lasarbitrariamente, sob a única condição de que elas pos-sam representar geometricamente o estado do céu, e es-sas hipóteses não têm de forma alguma necessidade deserem verdadeiras, nem mesmo verossímeis. Basta queconduzam a posições em conformidade com as obser-vações. Se a astronomia admite princípios, não é paraafirmar a verdade deles, mas para oferecer uma basequalquer para seus cálculos.

Essas linhas, nas quais a prudência simula o ceticismo, são a pró-pria negação da ciência. É impossível ver aí apenas a prudente reser-va de um espírito rigoroso e geométrico. Mas, essa linguagem não éa de Copérnico; ele havia procurado muito pela verdade para quererdeclarar que não pretendia alcançá-la e rebaixar o fruto dos seus tra-balhos às proporções de um método prático para calcular as tabelasastronômicas. Cheio de confiança em sua doutrina, o ilustre autor aconsiderava não somente como verossímil, mas como verdadeira. A ad-vertência de Osiander é contrária tanto aos seus sentimentos quanto aoseu pensamento. O verdadeiro prefácio do livro é a carta sincera e sé-ria endereçada por Copérnico ao papa Paulo III. Embora esta carta,que é muito bela, se pareça com uma hábil precaução contra as con-seqüências das ousadias inseridas no texto, sua linguagem está cheiade dignidade e de convicção. O pensamento do autor, que as palavrasnão desmentem nem diminuem, é exposto com candura e sincerida-

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de, sem altivez, mas sem fraqueza. “Dedico meu livro à Vossa San-tidade”, diz, “para que os sábios e os ignorantes possam ver que eunão fujo do julgamento e do exame.” – “Se alguns homens levianose ignorantes quiserem”, diz mais adiante, “usar contra mim algumaspassagens das Escrituras, das quais eles desviarão o sentido, eu des-prezo seus ataques temerários. As verdades matemáticas só devem serjulgadas pelos matemáticos.”

Esta declaração tão firme e tão precisa está bem longe, como se vê,da pueril escapatória de Osiander. Tanta altivez combina mal comtanta condescendência; mas a prudência humana é cheia de contradi-ções, e não é possível afirmar que Copérnico não tenha visto e apro-vado a advertência de Osiander. Sua aprovação, se ela foi obtida, foium ato de pura condescendência para com seus discípulos. Não mo-difica em nada o alcance do livro, cuja precisão não sofre nenhumequívoco. Que perigos podia temer o cônego de Frauenburgo? É im-possível sabê-lo: a Igreja, reprovando suas opiniões como más e de-testáveis, teria exigido sem dúvida que ele se retratasse. Mas, ela não te-ve tempo para isso; o primeiro exemplar do livro, remetido a Frauen-burgo, chegou muito tarde. Copérnico, atacado por uma apoplexia,mal pôde tocá-lo com suas mãos desfalecentes e mirá-lo com umolhar indiferente através das sombras da morte.

O livro das Revoluções dos corpos celestes não produziu inicialmentenem alarde nem escândalo. A obra encontrou um pequeno número deaprovadores e uma multidão de indiferentes; não inquietou a Igrejanem as escolas. Falta a Copérnico a impetuosidade habitual dos ino-vadores. Ele não tem esse arrebatamento de gênio que agita e arrastao leitor. Seu espírito, sempre calmo, espalha a luz de uma razão tran-qüila e metódica sobre verdades com as quais ele conviveu por tem-po demais para ainda apaixonar-se com a sua contemplação. E se eleexperimentou, como Kepler, a embriaguez entusiástica da invenção,não deixou que o leitor visse nenhum sinal disso. Com exceção de al-

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gumas passagens nas quais a elevação da linguagem segue – sem, en-tretanto, igualar – a grandeza e a majestade das idéias, Copérnico nãoé eloqüente nem comovido. Seu estilo carece de força e de impetuo-sidade. É possível compará-lo a uma suave luz que se insinua nos es-píritos da elite, sem impor-se aos leitores comuns.

O mundo pensante levou tanto tempo para compreender o livrodas Revoluções quanto Copérnico para compô-lo; foi necessário que a veemência sublime de Kepler, a sutileza persuasiva de Galileu e aprecisão magistral de Newton viessem apoiar e consolidar sua dou-trina para reduzir pouco a pouco ao silêncio os seus teimosos con-traditores.

Copérnico está por inteiro, para nós, em seu livro. Sua vida ínti-ma é pouco conhecida. Aquilo que sobre ela se sabe dá a idéia de umhomem firme, mas prudente e de um caráter perfeitamente reto. De-dicado inteiramente às suas especulações e como que recolhido den-tro de si mesmo, ele amava a paz, a solidão e o silêncio. Simplesmen-te e sinceramente devoto, nunca considerou que a verdade pudessecolocar a fé em perigo; sempre reservou-se o direito de procurá-la ede crer nisso. Nenhuma paixão perturbou sua vida; não conhecemosnenhuma relação afetiva ou íntima mantida por ele. Inimigo dos dis-cursos inúteis, não buscou elogios nem o alarde da glória. Indepen-dente e sem orgulho, contente com a sua sorte e contente consigomesmo, foi grande sem esplendor. Revelando-se a um pequeno nú-mero de discípulos escolhidos, realizou uma revolução na ciência semque a Europa soubesse qualquer coisa a esse respeito enquanto eleestava vivo.

Não lhe faltaram honras póstumas. Sua memória recolheu aquiloque sua vida havia acumulado, e a glória, que ele não havia buscado,cercou seu nome com uma auréola imortal. Seu livro foi a fonte deuma luz viva. Viu-se nele, com justiça, o começo da grande obra cien-tífica dos tempos modernos. Kepler e Newton penetraram bem mais

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fundo nos mistérios dos movimentos celestes, mas foi Copérnicoque lhes entregou a chave deles. Ainda hoje, depois de tantos traba-lhos imortais, o verdadeiro sistema do mundo chama-se “sistema deCopérnico”.

“Não há nada”, dizia o cardeal de Retz, “que seja tão sujeito à ilu-são quanto a devoção; todos os tipos de erros se introduzem e seocultam sob o seu véu.” A conduta da Igreja, com relação a Copérni-co, não desmentiu esse juízo.

O tribunal do Index foi bastante temerário para condenar formal-mente a crença no movimento da Terra. O livro das Revoluções foiproibido: donec corrigatur;5 esses são os termos da sentença. As diver-sas partes da obra estão, entretanto, de tal modo ligadas, que formamum todo indissolúvel. Kepler observou que teria sido melhor dizer:donec explicetur. Teria sido melhor não dizer absolutamente nada, por-que a verdade é onipotente e invencível. Se é possível, esmagando-a,retardar por algum tempo o seu triunfo, é somente para aumentar oseu brilho. Como disse Pascal:

Não é o decreto de Roma sobre o movimento da Terraque provará que ela permanece em repouso. Se tivéssemosobservações constantes que provassem que é ela que gira,nem todos os homens juntos a impediriam de girar e seimpediriam de girar junto com ela.

As observações de que fala Pascal sucederam-se, numerosas e inex-plicáveis de acordo com as idéias antigas; experiências convincentesproduziram uma evidência igual à certeza, e a própria Igreja rendeu-se, enfim – bem lentamente, é verdade, e sem fazer alarde disso.

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5. “Enquanto não for corrigido.” Proibição de caráter supostamente temporário.[N. dos T.]

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Por volta do final do século XVII, Bossuet encarava a questão co-mo resolvida por meio de uma decisão peremptória e irrevogável, enão desdenhava de aludir a isso quando escrevia:

Não existe corrida tão impetuosa que a onipotência di-vina não detenha quando lhe apraz. Considerai o Sol, comque impetuosidade ele percorre este imenso caminho quelhe foi aberto pela Providência! No entanto, vós não ig-norais que Deus o fixou outrora no meio do céu apenaspela palavra de um homem.6

Fénelon, é verdade, sem contradizer formalmente uma decisão queele respeitava, exprime-se de uma maneira menos peremptória e ad-mite a possibilidade de um erro. “Onde vai esta chama?”, diz ele.“Quem ensinou-a a girar incessantemente e tão regularmente nos es-paços onde nada a incomoda? Ela não circularia em torno de nós ex-pressamente para nos servir?” Mas ele acrescenta: “Se esta chama nãogira, e se, ao contrário, somos nós que giramos, eu pergunto de on-de vem que ela esteja tão bem colocada no centro do Universo, paraser como a lareira e o coração de toda a natureza?”

Cinqüenta anos mais tarde, a inflexível sentença ainda alarmava osprudentes e os simplórios, e eram inscritos regularmente na lista dasobras proibidas: Libri omnes que affirmant telluris motum.7

O padre Boscovich, em uma dissertação impressa em Roma, em1746, procura determinar a órbita de um cometa de acordo com trêsobservações: problema completamente impossível, quando se supõeque a Terra está imóvel. Boscovich não teve, entretanto, a perigosa

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6. Trata-se de Josué. [N. dos T.]7. “Todos os livros que afirmem o movimento da Terra.” [N. dos T.]

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audácia de confessar-se partidário de Copérnico: “Por mim”, escre-veu, “cheio de respeito pelas sagradas Escrituras e pelo decreto daSanta Inquisição, eu vejo a Terra como imóvel.” Porém, uma vez empaz com sua consciência, o sábio jesuíta, empregando precisamente omesmo subterfúgio que Osiander, logo acrescenta: “Todavia, parasimplificar as explicações, farei de conta que ela gira; porque estáprovado que, nas duas hipóteses, as aparências são semelhantes.”

Tornando-se mais livre, após a supressão da sua ordem, ele reim-primiu a mesma dissertação em Veneza, em 1785, acrescentando-lhea seguinte nota: “O leitor, ao ler essa passagem, não deve esquecer olugar e a época da primeira publicação.”

As proibições, hoje em dia, não têm mais nada de absoluto, e aIgreja tolera os livros que afirmam o movimento da Terra.

Entretanto, quando, em 1829, a cidade de Varsóvia ergueu ummonumento ao fundador da astronomia moderna, a Sociedade dosAmigos das Ciências esperou em vão, na igreja de Santa Cruz, as ce-rimônias anunciadas por meio de uma solene convocação: nenhumpadre apareceu. O clero não havia acreditado, no último momento,que lhe fosse permitido consagrar com sua participação as homena-gens prestadas a um homem cujo livro foi posto no Index e que mor-reu sem corrigi-lo.8

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8. Esse estranho fato, pormenorizadamente relatado por Czinski em sua obra sobrea vida de Copérnico, foi-me confirmado pelo sábio Prazmowski, antigo diretor doObservatório de Varsóvia. [N. do A.]

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Após haver lido as vagas e incertas teorias de Descartes sobre osistema do mundo, Pascal escreveu com desânimo: “É preciso dizergrosso modo: ‘Isso se faz por figura e movimento’. Porém, dizer quaise compor a máquina, isso é ridículo.”9

Quando o ilustre pensador traçava essas linhas – apagadas, é ver-dade, logo depois de escritas –, ele já não achava mais que “toda a fi-losofia valia uma hora de esforço”.10 Seu espírito doente podia mal-dizer a ciência e condená-la, mas o autor do tratado sobre o vazio sa-bia melhor do que ninguém que é impossível agir dessa maneira. Osdetalhes mais minuciosos e os mais humildes na aparência podemmostrar sozinhos, grosso modo, como as coisas se passam e servir depedra de toque para as teorias. Se nós os negligenciamos, podemosmergulhar – como temia Pascal –, com uma confiança que só eles po-dem fazer desaparecer, na contemplação de sistemas inexatos ou deconcepções ridículas. Ao lado, embora um pouco abaixo, dos grandes

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TYCHO BRAHE E SEUS TRABALHOS

9. Pensamentos, § 79 (edição Brunschvicg). [N. dos T.]10. Idem. Eis o pensamento completo: “Descartes – É preciso dizer grosso modo: ‘Issose faz por figura e movimento’, porque isso é verdadeiro. Porém, dizer quais e com-por a máquina, isso é ridículo. Porque isso é inútil, incerto e penoso. E mesmo queisso fosse verdadeiro, nós não consideramos que toda a filosofia valha uma hora deesforço.” [N. dos T.]

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homens que, pouco a pouco, constituíram a verdadeira teoria dosmovimentos celestes, é justo colocar aqueles que, compenetrados deantemão da necessidade de observações precisas e numerosas, labo-riosa e engenhosamente prepararam os materiais para a construçãodo edifício. Seu papel também é indispensável e seu gênio, emboramenos fulgurante, talvez seja igualmente raro.

Tanto pela data quanto pelo número, a exatidão e a importância his-tórica de seus trabalhos, o primeiro dos grandes observadores moder-nos que realizou essa tarefa – mais útil do que ilustre – é Tycho Brahe.

Tycho Brahe nasceu em Knudstorp, na Dinamarca, em 15 de outubrode 1546. Era o segundo dos dez filhos que sua rica e nobre família edu-cou sem dificuldades e colocou sucessivamente em altas posições. Desdeo nascimento de Tycho, seu tio, George Brahe, que não havia tido filhos,pediu para encarregar-se completamente dele. Porém, seu pai e sua mãesó consentiram nisso muitos anos depois, quando o nascimento de umsegundo filho deixou-os seguros de manterem perto de si um represen-tante do nome Brahe, para educá-lo de acordo com seus próprios obje-tivos. Eles encaravam a carreira das armas como a única digna de um fi-dalgo, e o estudo das letras como absolutamente supérfluo.

Tais não eram, felizmente, as idéias de George Brahe. Após ter ins-truído cuidadosamente a criança até a idade de doze anos, ele enviou-aa Copenhague para fazer os cursos de retórica e de filosofia. Versoslatinos elegantes e fáceis, freqüentemente misturados às suas produ-ções científicas, são um testemunho do sucesso desta primeira edu-cação e honram a Universidade de Copenhague.

Não somente Tycho tornou-se sábio e letrado, a despeito de seus pais(que achavam mais nobre não saber nada), mas Sophie Brahe, a mais no-va das suas irmãs, animada pelo mesmo espírito e superando, sem dúvi-da, obstáculos muito maiores, cultivou também os estudos mais eleva-dos: tornou-se, ainda jovem, hábil em astronomia e compôs, como seu

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irmão, um grande número de versos latinos. Conservamos dela uma pe-ça de seiscentos versos dedicada ao seu esposo ausente, ao qual ela soli-cita, com muita graça, não uma resposta, mas um pronto retorno: Urâ-nia, conforme diz ela, foi o nome que escolheu em alusão aos seus estudos,Nil sibi rescribi, te sed adesse cupit.

Durante sua estada em Copenhague, Tycho observou um eclipsedo Sol anunciado com muita antecedência pelos astrônomos. A rea-lização precisa das predições produziu no jovem estudante, entãocom treze anos de idade, uma forte e durável impressão: um instin-to secreto levou-o a obter as efemérides11 que apresentavam dia a diaa situação dos astros. Voltando todas as noites seu olhar em direçãoao céu, ele verificava grosseiramente sua exatidão com uma muda, po-rém insaciável admiração. Adquiriu assim, rapidamente (embora acusta de muito trabalho), as primeiras noções de astronomia.

Quando Tycho atingiu a idade de dezesseis anos, seu tio, que odestinava ao estudo do direito, enviou-o para Leipzig, para ali com-pletar sua educação sob a orientação de um preceptor. Levado, entre-tanto, por uma curiosidade cada vez mais erudita, ele continuou a es-tudar o céu, dedicando a maior parte de suas economias à compra delivros de astronomia.

Em 1565, quando tinha dezenove anos, ele observou a conjunção(ou seja, o encontro no céu) dos planetas Saturno e Júpiter. As tabe-las estavam erradas em vários dias com relação à data do fenômeno,ao qual as idéias supersticiosas daquele tempo atribuíam uma gran-de e misteriosa influência. Isso não era tolerável. Tycho prometeu asi próprio confeccionar tabelas novas, mais extensas e mais exatas.Gloriosamente fiel a esta resolução, ele fez da sua realização umapreocupação constante e a obra laboriosa de toda a sua vida.

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11. Tabelas astronômicas com a indicação diária das posições relativas dos astros.[N. dos T.]

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Sua assiduidade nas observações não o afastava dos prazeres típi-cos da sua idade. Tycho, jovem e rico, era convidado para festas, dasquais gostava de tomar parte. Uma delas, na pequena cidade de Ros-toch, teve para ele deploráveis conseqüências. Ele entabulou, com umfidalgo dinamarquês, uma discussão na qual um dos dois adversários– provavelmente Tycho – mostrou bastante desdém pelos conheci-mentos matemáticos do outro. O amor-próprio foi melindrado combastante força para levar a um duelo imediato. Às sete horas da noi-te, no mês de novembro, eles foram para um jardim e, sem esperarque fossem trazidas tochas, bateram-se com sabres. Tycho teve o na-riz cortado. Ele o substituiu por um nariz de prata, fabricado, segun-do dizem, com bastante arte para que a deformidade fosse poucochocante. Entretanto, este acidente, diminuindo para ele os atrativosdo mundo, aumentou seu ardor pelos estudos astronômicos, dando-lhe tempo livre para aplicar-se inteiramente a eles.

Após vários anos de viagens pela Itália, Suíça, Alemanha e Suécia,Tycho retornou a Copenhague. Seus trabalhos astronômicos eramsempre, aos olhos de seus nobres pais, uma recreação passageira e in-digna da sua posição no mundo. Entretanto, seu tio, vencido por suaperseverança, habituou-se pouco a pouco com a idéia de ter um as-trônomo na família e chegou a favorecer os seus gostos, mandandoconstruir para ele um observatório e um laboratório de química –que, tanto no seu pensamento quanto no de Tycho, devia ser o seucomplemento necessário. Pois, como os planetas e os metais tinhamafinidades que eram, então, incontestadas, seu estudo devia prestar-se a uma colaboração mútua.

A perseverança de Tycho conseguiu diminuir as prevenções de suafamília contra a cultura das ciências, mas as máximas e o espírito de-la não deixaram também de exercer influência sobre o jovem astrôno-mo e fizeram com que ele hesitasse por longo tempo em publicar suaprimeira obra.

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Rica em numerosas observações relativas a uma nova estrela, subi-tamente surgida no céu e assiduamente observada durante dezoitomeses, ele temia publicá-la. Não é que – como ocorreu mais tardecom Newton – ele se considerasse ainda muito jovem para dirigir-seao público; porém, o título de autor lhe parecia comprometedor pa-ra sua dignidade de fidalgo. Pedro Oxonius, aliado de sua família eque, como chanceler da Coroa, achava-se revestido com a mais altadignidade a que um súdito podia aspirar na Dinamarca, aconselhou-o a mostrar-se menos escrupuloso e a publicar o livro, limitando-sea ocultar, por conveniência, seu nome e seu alto nascimento. Tychoseguiu seu conselho, mas no último momento, contente com a obra,decidiu-se a escrever na primeira página o ilustre nome dos Brahe.

O céu, segundo Aristóteles, recebeu logo de início toda a sua per-feição e os corpos celestes não podem nascer nem perecer. Os peri-patéticos recusavam, segundo Tycho, qualquer discussão sobre esseponto e só respondiam com zombarias aos seus contraditores. Osexemplos de estrelas aparecidas subitamente são, no entanto, nume-rosos na história da astronomia. Tycho não o ignora e, referindo-seao princípio de Aristóteles, ele faz judiciosamente observar que osabismos da natureza são insondáveis. Sem procurar penetrar nosmistérios da geração dos mundos, ele acredita, com um refinamentoum pouco sutil, conciliar tudo e evitar todos os inconvenientes su-pondo que a nova estrela seja de natureza artificial, assemelhando-seàs estrelas que a cercam sem partilhar da sua imutável solidez – co-mo o ouro dos alquimistas (quando eles o tiverem obtido) será se-melhante ao ouro natural, mantendo com relação a ele notáveis dife-renças que Tycho tem a ousadia de precisar.

Ele se permite igualmente pesquisar – porém, com desconfiança –a influência que um fenômeno tão considerável deve exercer sobre ascoisas do mundo. O acontecimento, por sua própria raridade, escapainfelizmente às regras da arte, que só permitem prognósticos tími-

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dos e duvidosos. Felizes, no entanto, aqueles que nasceram no mo-mento da aparição da estrela! Se eles chegarem a atingir a idade de48 anos, a influência energética produzirá sobre eles todo o seu efei-to, e eles farão grandes coisas.

Sem ousar afirmar nada de preciso, ele não pode, enfim, dispen-sar-se de citar uma passagem de Isaías, que lhe parece relativa ao no-vo astro: “Eu farei vir o ouro no lugar do bronze, a prata no lugar doferro, o bronze no lugar da madeira e o ferro no lugar da pedra, e eufarei com que a paz te governe e com que aqueles que te cobrem osimpostos não façam senão a justiça.”12

A obra de Tycho é, na sua parte astronômica, uma mistura confu-sa de observações exatas e de apreciações errôneas. Ele afirma – e temrazão – que esta estrela está situada bem além do nosso sistema pla-netário e incomparavelmente mais distante que Saturno, mas a de-monstração que apresenta sobre isso deixa subsistir muitas dúvidas.Busca, com efeito, a paralaxe da estrela, ou seja, o ângulo sob o qualum de seus habitantes pode perceber o raio da nossa Terra: ele achaque este ângulo é completamente nulo, de onde ele conclui que a dis-tância é como que infinita. Porém, com a ajuda do mesmo método,ele obtém para Saturno uma paralaxe de 1/3 de minuto. O verdadei-ro valor, bem conhecido hoje em dia, é, no máximo, de um segundo,e o resultado de Tycho é vinte vezes maior: isso não nos dá confian-ça nos outros.

A obra, no seu conjunto, pareceu excelente e fez a reputação doautor em toda a Europa. Admirou-se nela, sobretudo, a análise críti-ca dos numerosos escritos publicados sobre a mesma questão: Tychoelogia, corrige e repreende os mais célebres astrônomos com muitorefinamento e superioridade, resolvendo uma multidão de dificulda-des cuja seleção já descortinava a penetração do seu espírito exato e

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12. Isaías, 60, 17. [N. dos T.]

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preciso. Viram, no novo livro, a revelação de um talento de primeiraordem e não se enganaram.

A modéstia do fidalgo astrônomo foi logo submetida a uma se-gunda prova: os estudantes de Copenhague solicitaram-lhe um cur-so público sobre as matérias que ele havia aprofundado. Secretamen-te lisonjeado, sem dúvida, com tal empreitada, ele temia, entretanto,perder os privilégios da nobreza ao aceitá-la.13 Porém, como o pró-prio rei juntou seu pedido ao da Universidade, Tycho logo cedeu, ede muito boa vontade. Foi conservada a sua primeira lição: “Homensilustres e estudiosos alunos”, diz, “fui solicitado, não somente poralguns amigos, mas por nosso próprio sereníssimo rei, a vos dar al-gumas lições públicas de astronomia. Embora esta tarefa convenhapouco à minha condição e esteja, talvez, acima das minhas forças, nãopude declinar da honra do convite real nem quis recusar-me a aceitaro vosso pedido.” Ele entra, em seguida, na matéria, exaltando a im-portância dos estudos astronômicos e a certeza das informações quea astrologia pode fornecer sobre os acontecimentos de toda nature-za: “Porém, por que bizarra injustiça esta ciência tão nobre e tão útilencontra tantos incrédulos, enquanto a aritmética e a geometria ja-mais encontraram um único?” Tycho pergunta isso muito seriamen-te e, forçado a reconhecer que a ciência dos prognósticos tem adver-sários, ele esforça-se para combatê-los e convencê-los:

E, primeiramente, se as estrelas e os planetas não têminfluência sobre os nossos destinos, para que servem eles?É possível, no entanto, ser bastante ímpio para acusarDeus de injustiça e de iniqüidade, supondo que ele criouem vão o grande e belo espetáculo dos céus e o inumerá-vel exército das estrelas? Podemos, é verdade, utilizar sua

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13. No Antigo Regime, um membro da nobreza corria realmente esse risco, se exer-cesse uma profissão que fosse considerada indigna da sua condição. [N. dos T.]

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marcha para a medida do tempo, mas seria razoável con-siderar o mundo inteiro como um gigantesco relógio? O quê! A erva mais humilde, a pedra mais grosseira ou oanimal mais vil terão sempre neste mundo, para quem saibaencontrá-la, uma propriedade útil ou preciosa; e seria pos-sível admitir que as substâncias eternas e incorruptíveisque rolam sobre nossas cabeças são destituídas pela Provi-dência de qualquer ação benfazeja? Quem não conhece,aliás, a influência do Sol sobre a substância cerebral e so-bre a medula dos ossos, assim como sobre a das árvores esobre a carne dos lagostins? Ignora-se a influência da Luasobre os movimentos do oceano? Quem não sabe que achuva, o vento, o trovão e o raio acompanham a aproxima-ção entre Marte e Vênus? Que não se objete a variedadeinfinita dos fenômenos terrestres que, causados assim poraparições periódicas, deveriam renovar-se, sempre os mes-mos e na mesma ordem. Seria possível negar a influênciados pais sobre os filhos só porque os filhos do mesmo paie da mesma mãe não se parecem? Jacó e Esaú, nascidos nomesmo momento e submetidos às mesmas influências si-derais, tiveram destinos bem diversos; isso é certo, seriainútil dissimular a objeção, mas a resposta não pertence àfísica. As intenções misteriosas do Criador não conhecemobstáculos, e aquele a quem a natureza está submetidadisse: “Eu tive adoração por Jacó e tive ódio por Esaú,Jacob dilexi, Esau autem odio habui.”14

Abreviei bastante essas citações, que são textuais, e que dão umaidéia suficiente da condição dos espíritos em 1574.

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14. A história de Esaú e Jacó é narrada no Gênese. [N. dos T.]

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Tycho, como se vê, estava imbuído da importância de sua nobrecondição e do sentimento de sua superioridade sobre os plebeus. O resto da sua vida – que não desmente esse juízo – dificilmentepermite compreender o casamento que ele contratou, naquela época,com uma simples camponesa. O muito prolixo historiador da sua vi-da, Gassendi, fala sobre isso com uma tal brevidade que parece com-partilhar a indignação inspirada por esta união tão desigual nos no-bres parentes do seu herói. “Tycho”, diz, “pensava em voltar para aItália e a Alemanha, mas dois impedimentos o retiveram: primeira-mente a febre e depois o seu casamento, que parece ter ocorrido nes-sa época.” Outros biógrafos acrescentam que a plebéia Cristina erade grande beleza, e esta conjectura, se é que não passa de uma, é pe-lo menos bastante verossímil.

Menos de um ano depois do seu casamento, encontramos Tychoem Cassel, junto ao landgrave15 de Hesse. Esse príncipe, ele próprioapaixonado pelo estudo do céu, passou várias noites fazendo obser-vações junto com Tycho, mas suas relações duraram apenas poucosdias. O landgrave perdeu uma de suas filhas e Tycho, para não per-turbar sua dor, deixou Cassel e dirigiu-se a Bâle, onde tinha a inten-ção de fixar-se. Porém, o landgrave, encantado por sua conversação epor sua erudição, escreveu ao rei da Dinamarca para felicitá-lo por terum tal homem entre os seus súditos. O rei Frederico, já animado porsentimentos bastante benevolentes para com a família Brahe, resol-veu empregar Tycho definitivamente. Enviou-lhe um mensageiro pa-ra apressar seu retorno a Copenhague, onde o aguardava a posiçãomais brilhante e mais favorável ao trabalho que talvez já tenha sidooferecida a um homem de ciência.

O rei Frederico concedeu a Tycho, por toda a vida, a livre dispo-sição e a propriedade da ilha de Hueno, situada a três léguas de Co-

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15. Título que recebiam alguns príncipes soberanos da Alemanha. [N. dos T.]

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penhague. Esta ilha, cuja circunferência é de cerca de duas léguas, éfértil, rica em caça de todos os tipos e contém um grande número delagos com peixes.

O estabelecimento principal, que recebeu o nome de Uraniburgo,era um verdadeiro castelo, construído sobre o planalto central dailha, a 1/4 de légua do mar. Com o luxo de um grande senhor e a in-teligência de um astrônomo consumado, Tycho reuniu às conveniên-cias de uma existência faustosa todas as disposições favoráveis ao es-tudo da astronomia. Nos apartamentos decorados com pinturas e es-tátuas, engenhosas inscrições recordavam os progressos da ciência docéu e a memória dos mais ilustres astrônomos. É neste retiro queTycho, elevando-se acima dos prazeres do mundo e do tumulto im-portuno da corte, devia adquirir uma nova nobreza, desconhecida dosseus ilustres ancestrais, dando ao seu nome mais brilho do que aque-le que havia recebido deles.

Em torno do castelo logo se ergueram oficinas de construção e dereparação, um prelo para a publicação dos trabalhos concluídos econstruções de todos os tipos, destinadas a receber os numerososinstrumentos, cuja rigorosa precisão teria sido prejudicada pela tre-pidação do piso dos outros aposentos. Laboratórios de química per-mitiam, enfim, conforme as idéias da época, misturar ao estudo dosastros o dos metais submetidos à sua influência. Duas dezenas de jo-vens, escolhidos entre os mais competentes das universidades dina-marquesas, eram utilizados nas observações e nos cálculos. Verda-deiros aprendizes de astrônomo, eles instruíam-se vendo o seu mes-tre trabalhar. Guiados pelo espírito ardente e comunicativo do seu lí-der, a pequena colônia logo parecia constituir uma única família. Seminquietudes e sem ambição, esses jovens da elite, unidos pelo mesmolaço que os ligava à ciência, preocupados com os mesmos problemase atentos aos mesmos fenômenos, animavam-se uns aos outros, pres-tando-se a uma mútua e cordial assistência.

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Tudo parecia, em torno deles, conspirar para o mesmo desígnio econvidá-los para o trabalho. Respirando, por assim dizer, o amor pelaastronomia, eles se apressavam em juntar ao tesouro comum as rique-zas que acumulavam a cada dia, felizes de pensar que ele deveria sobre-viver para sempre, e sem se preocuparem em fixar seus nomes nele.

Incitando seus esforços pela irresistível atração do seu exemplo,aquecendo os tépidos com o seu contínuo ardor, emprestando aosfracos o apoio da sua força e suavizando, por meio da sua eqüidadeconciliadora, as contrariedades das naturezas opostas, Tycho faziareinar ao seu redor uma concórdia muito raramente perturbada.

Querendo renovar e reformar a astronomia por inteiro, seu pri-meiro cuidado devia ser o de fixar com precisão a posição dos círcu-los fundamentais da esfera celeste, medindo exatamente a altura dopólo acima do horizonte. Ele realizou esse trabalho com dois méto-dos distintos, ambos seguidos com um extremo cuidado e assentan-do-se sobre numerosas observações, que deviam controlar-se mutua-mente e conduzir à mesma finalidade por vias muito diferentes. Esseduplo trabalho, iniciado com cuidados minuciosos – dos quais ele re-lata escrupulosamente os detalhes –, apresentava constantemente re-sultados discordantes. Atormentado por esta contradição imprevista,que vinha logo no início interromper todos os seus projetos, Tychoestuda com impaciência todas as causas de erro. Acusava os instru-mentos e os corrigia incessantemente. Tão hábil quanto engenhoso,e não poupando nem esforço nem despesas, chegou a mandar cons-truir até dez modelos diferentes. Tudo foi inútil, e um intervalo dequatro minutos, que subsistia obstinadamente, provou-lhe com se-gurança que um dos métodos era errôneo.

Depois de muitas tentativas e conjecturas, ele buscou a causa desse er-ro na refração. Os raios luminosos, quando penetram em nossa atmosfera,após terem atravessado os espaços vazios, são efetivamente desviados desua rota e nos mostram os astros mais altos do que eles realmente estão.

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Eis aí um fato da mais alta importância, cujo estudo atento é umdos grandes serviços que Tycho prestou à astronomia. Esta descober-ta, entretanto, deve ter causado inicialmente um profundo desânimona ilha de Uraniburgo: se, com efeito, os raios enviados pelos astroschegam até nós desviados, e desviados de forma tão desigual; se a at-mosfera que nos cerca só nos deixa ver o céu desfigurado, por assimdizer, como em um espelho infiel; se as aparências diferem da reali-dade, de que servem tantos cuidados para observá-las com minucio-sa exatidão? Como é possível esperar construir solidamente sobre ba-ses tão frágeis? Tycho viu claramente o perigo e, para remediá-lo,ocupou-se – antes de mais nada – em construir uma tabela de corre-ção, que ocupa em seu livro um quarto de página, mas que custou-lhe longos trabalhos e que, aperfeiçoada pelos mais ilustres astrôno-mos, deve ser aplicada a todas as observações astronômicas.

Copérnico havia determinado a altura do pólo sem levar em contaas refrações: ele devia, portanto, ter-se enganado sobre esta base fun-damental de todas as determinações astronômicas. O ilustre polonêsera um dos luminares da ciência, e a autoridade do seu nome faziacom que fossem aceitos sem controle todos os resultados inscritos emseu livro. Era preciso saber que posição adotar sobre um ponto tãoimportante. Tycho enviou um de seus colaboradores a Frauenburgo,para lá medir diretamente a latitude do observatório, abandonado des-de a morte do ilustre cônego. As previsões estavam, infelizmente, bemfundadas e foi constatado um erro de quatro minutos.

Os cônegos poloneses foram cheios de atenções para com o envia-do de Tycho. Eles o encarregaram, quando os deixou, de levar paraUraniburgo um presente muito precioso, que causou ali uma grandealegria: eles enviaram a Tycho as réguas de madeira, grosseiramentedivididas à tinta, que, construídas por Copérnico, tinham sido sufi-cientes para todas as suas observações. Piedosamente conservadas atéentão, essas preciosas relíquias achavam-se ameaçadas de perecer pe-

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la negligência de algum sucessor esquecido ou indiferente. Tycho foijulgado digno de ser o seu depositário: sua chegada foi uma festa pa-ra todos os habitantes da ilha. Tycho pendurou-as como um troféuno salão de honra, talvez secretamente lisonjeado por opor, à suasimplicidade grosseira, a delicada precisão dos instrumentos que ascercavam.

Ele compôs, para celebrar a sua posse, uma peça em versos latinosonde transpira por Copérnico uma viva e legítima admiração.

Amontoando montanhas sobre montanhas, os gigantesnão puderam escalar os céus. Confiando nos recursos doseu espírito, Copérnico, guiado por esses leves pedaços demadeira, soube penetrar nas abóbadas celestes. Eles são demadeira, mas o próprio ouro invejaria a sua glória, se elepudesse conhecê-la.

Apesar da sua admiração pelo ilustre polonês, Tycho não admitiao sistema de Copérnico, e a doutrina do movimento da Terra pare-cia, para ele, ser contestada pelas experiências cotidianas.

As objeções ao movimento da Terra que Tycho acredita serem asmais fortes são tiradas da mecânica. Elas se desvanecem diante dosprimeiros princípios desta ciência, que ainda não existia e que, cria-da por Galileu, deveria fornecer, ao contrário, argumentos irresistí-veis a favor do sistema de Copérnico e convencer os mais teimosos,muito tempo antes que, em nossos dias, Léon Foucault viesse, pormeio das suas belas e engenhosas experiências, mostrar que a sua evi-dência era igual a uma certeza.

A grandeza que era necessário atribuir às estrelas havia igualmen-te preocupado Tycho, como sendo um argumento muito sério contrao movimento da Terra. Se nós giramos, com efeito, em torno do Sol,esse deslocamento, do qual não temos consciência, deve dar nasci-

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mento a um movimento aparente, igual e contrário, de todos os as-tros que observamos. E como os instrumentos mais precisos não re-velam nenhum movimento desse gênero entre as estrelas, é precisosupor que sua distância é bastante grande para tornar esse desloca-mento imperceptível. Deve-se, portanto, admitir, segundo a expres-são de Arquimedes, reproduzida por Pascal, que o vasto giro da Terranão passa de um ponto muito delicado em relação ao giro dos astrosque rodam no firmamento.

Apesar dessa imensa distância, Tycho, enganado pela imperfeiçãodos seus instrumentos, acredita perceber nas estrelas de primeira gran-deza um diâmetro aparente de três minutos. Ele conclui que, contra-riamente a qualquer verossimilhança, suas dimensões deveriam ultra-passar em muito a distância entre o Sol e a Terra. Esse resultado fun-damenta-se em uma ilusão: longe de sustentar um ângulo de três mi-nutos, as estrelas não são para nós senão pontos brilhantes, cujo diâ-metro aparente parece diminuir sem limite com o aperfeiçoamentodos instrumentos que nos mostram esse diâmetro. Porém, mesmoque elas fossem ainda mais imensas do que supunha Tycho, devemosnos espantar de que ele tenha visto nisso uma dificuldade. Habitua-do a contemplar tantas maravilhas incompreensíveis, ele deveria ter,mais do que qualquer outro, conservado a audácia de assinalar limi-tes para a imensidão da natureza.

Apesar de seu desacordo com Copérnico sobre o movimento daTerra, o livro das Revoluções havia esclarecido Tycho, e as objeções do ju-dicioso cônego contra o sistema de Ptolomeu pareciam-lhe decisivas.

Atormentado pelas razões irresistíveis que destruíam, aos seusolhos, a verdade de ambos os sistemas, ele tomou, depois de muitashesitações, o partido de dividir-se entre eles, adotando, de cada um,aquilo que lhe parecia claramente demonstrado.

Os planetas giram, segundo ele, em torno do Sol, e nisso ele ado-tou o sistema de Copérnico. Porém, subtraindo a Terra dessa lei co-

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mum e deixando-nos imóveis – para fazer girar em torno de nós nãosomente o Sol, mas o Universo inteiro –, ele destruiu a unidade queproduzia a beleza e a força deste sistema. Ao lado desta hipótese re-trógrada com a qual ele se extravia – e que, para a sua glória, seriapreciso esquecermos – vêm colocar-se teorias importantes e traba-lhos para sempre ilustres.

A mais célebre descoberta de Tycho é a da variação da Lua. Paraexpô-la com detalhes seria necessário entrar em longas explicaçõesque não teriam lugar aqui. Assim, devo limitar-me a tentar oferecersomente uma idéia clara da questão.

O Sol e a Lua giram, nas idéias de Tycho, assim como nas de Pto-lomeu, em torno da Terra, que ambos consideram imóvel. E as leisprecisas desta dupla revolução são um dos resultados mais importan-tes que a astronomia tem para nos ensinar.

Hiparco havia reconhecido facilmente que os dois movimentosnão são uniformes: ele acreditava, todavia, explicar as desigualdadessupondo que cada um dos dois astros move-se, na realidade, em umcírculo uniformemente percorrido, do qual a Terra não ocupa o cen-tro. Eles estão, então, alternativamente mais afastados e mais aproxi-mados de nós, e é por isso que, sem mudar de velocidade, eles nosparecem ir mais lentamente ou mais rápido.

Essa teoria satisfaz grosseiramente as aparências e conduz a posi-ções praticamente exatas por ocasião das luas cheias e das luas novas– e, por conseguinte, ao momento dos eclipses, cuja observação de-veria, sobretudo, conduzir à sua verificação.

A teoria de Hiparco foi admitida sem dificuldade até a época emque Ptolomeu quis submetê-la a um exame mais severo: ele determi-nou com cuidado a época das quadraturas, ou seja, o instante em queo raio vetor que reúne a Terra à Lua é perpendicular ao que se dirigepara o Sol. Porém, a teoria harmonizava-se mal com as observações,e a diferença entre a época calculada e a que ele determinava direta-

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mente elevava-se algumas vezes a cinco horas: seria necessário, por-tanto, modificar a teoria. Foi o que ele fez, introduzindo nela umadesigualdade que foi depois chamada de evecção e cuja característicaprincipal é a de anular-se quando das conjunções, adquirindo seumaior valor na época das quadraturas.

Tycho, retomando por sua vez a teoria de Ptolomeu, fez com queela fosse submetida a uma nova prova, estudando particularmente osoitantes, ou seja, a época em que os dois raios vetores formam umângulo de 45o ou de 135o. A diferença entre a época observada e aépoca calculada eleva-se até uma hora e vinte minutos. Corrigindo, emconseqüência disso, a lei do movimento, ele sujeita a regra às novasobservações, introduzindo na teoria a desigualdade denominada va-riação, que depende não somente da distância entre a Lua e o Sol, masde sua posição em relação ao ponto variável da órbita lunar, que échamado de perigeu. Esse ponto é aquele em que a Lua mais se apro-xima da Terra.

Todas essas correções sucessivamente feitas à teoria do movimen-to da Lua não representam a lei matemática do fenômeno, tornando-se insuficientes a partir do momento em que observações mais pre-cisas permitem um controle mais rigoroso.

A correção feita por Tycho ainda não satisfazia plenamente a preci-são de suas observações e deixava subsistir um erro variável, que eledescobria ser, em alguns casos, igual a 4,5 minutos, e que, independen-temente da posição da Lua em sua órbita, dependia unicamente da po-sição do Sol. A Lua é retardada quando o Sol vai do perigeu ao apo-geu; ela avança, ao contrário, durante a outra metade do ano: esta de-sigualdade, apenas entrevista por Tycho, é chamada de equação anual.

A essa vieram juntar-se depois muitas outras, cujo número parecedever aumentar ilimitadamente. A Lua tem escapado, até aqui, das ta-belas mais exatas, mas as desigualdades – é preciso observar bem –não são de forma alguma desajustamentos. Mais felizes do que Ty-

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cho, conhecemos hoje os seus princípios. As leis do fenômeno, tãocomplicadas quanto sejam, nem por isso deixam de ser absolutas eimutáveis, e o acordo cada vez mais perfeito entre a teoria e a obser-vação é uma das provas mais decisivas da perfeição de ambas.

O plano da órbita da Lua forma (como se sabe) um ângulo deaproximadamente 50o com o da órbita terrestre, habitualmente chama-do de eclíptica. Porém, conservando uma inclinação quase constante,esta órbita gira com tal velocidade que sua interseção com a órbitaterrestre, que é denominada linha dos nodos, realiza uma revolução com-pleta em dezoito anos e oito meses.

Tais eram as leis simples descobertas por Hiparco e aceitas pelosseus sucessores.

Tycho, querendo verificá-las, foi levado a corrigi-las. A inclinaçãoda órbita da Lua sobre a eclíptica, medida por sua maior latitude, nãoé constante como Hiparco havia acreditado: ela varia de 5o17,5’ a 4o58’. A inclinação maior tem lugar quando o nodo corresponde à si-zígia, quer dizer, à Lua cheia ou à Lua nova, e a inclinação menorquando o nodo corresponde às quadraturas.

Tycho descobriu, por fim, que o movimento retrógrado do nodorealiza-se em 18 anos e 2/3, como reconhecia Hiparco, mas que, du-rante esse período, ele está longe de ser uniforme. Calculando as po-sições sucessivas na hipótese de uma rotação uniforme, o erro come-tido pode elevar-se a quase dois graus: ele adquire seu maior valorquando, passando pelo seu nodo, a Lua está em um oitante. Ele é nu-lo, ao contrário, quando o nodo está em sizígia – e como era sobre-tudo para essa época que Hiparco (preocupado com os eclipses) vol-tava suas atenções, explica-se que a desigualdade tenha lhe escapado.

Os trabalhos de Tycho sobre a Lua asseguram-lhe um lugar entreos inventores, mas foi sobretudo por sua aplicação paciente e sua as-siduidade incansável nos pormenores das operações regulares de to-dos os dias que ele fez por merecer o seu lugar entre os astrônomos.

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Sua mais cara ambição era a constituição de tabelas exatas dos movi-mentos planetários, e sua vida inteira foi uma longa preparação paraessa obra imensa, que ele não pôde concluir, mas da qual deixou to-dos os elementos.

Ele trouxe para a construção e para o emprego dos instrumentosuma perfeição desconhecida antes dele e que permanece sendo umdos seus principais méritos, apesar dos imensos progressos realiza-dos pelos seus sucessores. Compreendendo desde o começo toda aimportância das circunstâncias nas quais as medidas eram tiradas, elenão temia em recorrer a determinações indiretas, utilizando o cálcu-lo para as grandezas cuja observação direta lhe parecia pouco preci-sa. Ele substituiu a esfera armilar de Ptolomeu e do rei Afonso pelocírculo mural, para determinar diretamente a declinação dos astros.A imperfeição dos seus instrumentos de relojoaria não lhe permitiu,é verdade, medir diretamente as ascensões retas. Ele devia obtê-laspor meio da resolução de um triângulo esférico, e os valores encon-trados, embora pouco precisos, ultrapassavam bastante, por sua exa-tidão, todos aqueles que haviam sido obtidos até então.

Após treze anos de trabalhos levados incansavelmente adiante comuma infatigável paciência, a morte do rei Frederico veio inquietar apequena colônia astronômica e perturbar sua laboriosa e doce tran-qüilidade. O herdeiro do trono foi o jovem Cristiano IV, que deuprovas, inicialmente, de uma afetuosa estima por Tycho. Porém, em-bora conservando suas vantagens oficiais, os habitantes de Uranibur-go, atormentados por cruéis inquietudes, não tinham mais toda a li-berdade de espírito necessária para os seus trabalhos. Tycho haviaconservado todo o orgulho de sua raça. Consagrando sua vida à ciên-cia, ele acreditava não ter diminuído o seu valor nem a sua dignida-de. Embora naturalmente cordial e cheio de cortesia, ele sabia, nosmomentos certos, lembrar aos senhores mais arrogantes que a vonta-de do rei o havia feito todo-poderoso em sua ilha, retribuindo-lhes

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o desdém com o desdém. Ele havia feito muitos inimigos. Os médi-cos, de outro lado, não lhe perdoavam os conselhos muitas vezes fe-lizes que ele dava aos doentes, nem os remédios secretos que ele pre-parava e distribuía generosamente bem além dos limites da sua ilha.Essas temíveis inimizades não se manifestaram imediatamente emplena luz. Limitavam-se, misturando artificiosamente o verdadeirocom o falso, a desacreditá-lo no espírito do rei, com a vaga expressãode uma malevolência quase generalizada: ressaltavam as pequenas fra-quezas do seu orgulho, acusando-o de aparentar uma completa inde-pendência e de atribuir-se, em sua ilha, uma autoridade excessiva esem limites. Enumeravam-se os favores e as liberalidades ininterrup-tas, recebidas ao longo de quinze anos; adicionavam-se as somas des-pendidas para satisfazer uma vã obstinação e uma inútil curiosidade.Insinuava-se que já seria o tempo de pôr fim a tanta profusão e pro-digalidade; criticava-se com azedume a ostentação e o espírito degrandeza de Tycho, o esplendor e a ordenação das suas construções,a riqueza do seu mobiliário e até a suntuosidade da sua mesa de jan-tar. Após oito anos de intrigas e de contínuas inquietudes, como aopinião pública se manifestasse contra ele, uma comissão foi nomeadapara decidir se o estabelecimento de Uraniburgo, cujo brilho atraíaos olhares de toda a Europa, havia trazido para a astronomia progres-sos suficientes para justificar a generosidade do falecido rei. Tycho,desdenhando uma luta inútil, não apresentou defesa nem resposta aseus inimigos. A comissão, completamente ignorante em astronomiae incapaz de compreender as descobertas feitas em Uraniburgo, eraainda mais incapaz de compenetrar-se das suas conseqüências. Eladeclarou-as, sem hesitar, completamente estéreis e infrutuosas para oEstado: retirou-se de Tycho a pensão real. Era o mesmo que expulsá-lo de sua ilha, onde as despesas obrigatórias ultrapassavam bastanteos recursos que lhe restavam. Tycho, indiferente aos seus interessese pouco atento aos seus negócios, havia misturado sem calcular suas

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próprias riquezas à abundância dos benefícios do rei. Tendo vendidopouco a pouco o seu patrimônio para recolhê-lo ao tesouro comum,ele estava, portanto, ameaçado de uma ruína completa. Entretanto,cheio de dignidade em sua dor e envolvendo-se num profundo silên-cio, ele fez imediatamente seus preparativos para a partida. Protegi-do pelo seu renome e como um rei expulso dos seus Estados, ele es-tava seguro de encontrar em toda parte um asilo e uma honrosa hos-pitalidade. Suas misérias eram, aliás, as misérias de um grande se-nhor. Equipou um navio para ele e os seus e, embarcando com suamulher, seus nove filhos e alguns discípulos devotados, deixou parasempre esse templo da astronomia onde não lhe era mais permitidoterminar seus dias. Foi para a casa de seu amigo, o conde de Rantzau,governador de Holstein, levando consigo o seu consolo e a sua gló-ria – quero dizer, os preciosos instrumentos e os manuscritos acu-mulados durante 21 anos de observações assíduas e de laboriososcálculos.

A celebridade de Uraniburgo ainda atraiu, durante algum tempo,raros visitantes para a ilha de Hueno, mas as marcas de sua grande-za passada desapareceram rapidamente: as construções não tardarama cair em ruínas. Os materiais foram levados pelos pescadores. Em1671, quando a Academia de Ciências de Paris enviou Picard paradeterminar a latitude do observatório de Tycho, como o próprio Ty-cho havia enviado um emissário para determinar a de Frauenburgo,não se viam mais, na ilha, os menores vestígios do castelo. Foi neces-sário escavar o solo para encontrar suas fundações.

O conde de Rantzau ofereceu à pequena colônia uma afetuosa eampla hospitalidade. O imperador da Alemanha, Rodolfo, era então,para os sábios, um protetor generoso e esclarecido. Rantzau conhe-cia a sua paixão pela ciência dos astros e teve a idéia de invocar o seuapoio. Tycho, de acordo com o conselho de seu amigo, dedicou a elesua obra sobre os instrumentos astronômicos, enviando-lhe, junto

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com o manuscrito, o catálogo de mil estrelas. Ele lhe fez conhecer,ao mesmo tempo, sua triste condição, exprimindo o desejo de entrarpara o seu serviço. Rodolfo acolheu esta abertura não somente combondade, mas com alegria. Convidou Tycho a ir imediatamente parajunto dele, oferecendo todas as facilidades para os seus trabalhos evantagens iguais àquelas que havia desfrutado na Dinamarca.

Esse príncipe fraco e logo desafortunado ainda estava em condi-ções de satisfazer seus gostos pela ciência. Mais preocupado, aliás,em satisfazer os compromissos assumidos para com um grande se-nhor como Tycho do que o foi, mais tarde, para fiscalizar a concre-tização dos favores concedidos ao humilde Kepler, Rodolfo cumpriutodas as suas promessas. Tycho chegou a Praga em 1599. Para ele,havia sido preparada uma rica residência na cidade, deixando-lhe a es-colha entre vários castelos para estabelecer o seu observatório nocampo. Ele escolheu o castelo de Renach e instalou-se nele quase deimediato. Seus vencimentos foram fixados em 3.000 escudos de ou-ro. Logo descontente com sua estada em uma região da qual ignora-va a língua, ele desejou voltar para Praga e transportar para lá seusinstrumentos. Foi dada imediatamente a ordem de pôr à sua dispo-sição os jardins reais e as construções adjacentes, ao mesmo tempoem que uma casa vizinha era comprada pelo imperador, para que ne-la fossem alojados Tycho e sua família.

Quando, depois de tantas liberalidades e benefícios, o imperadorquis recebê-lo em pessoa, conta-se que, não sabendo como exprimirtodo o seu reconhecimento e identificando-se com a ciência que elehavia tão fortemente e tão constantemente amado, Tycho encarregou,em algumas palavras comovidas, a própria astronomia de saldar suadívida para com ele.

Tycho fez um nobre uso do seu crédito junto a Rodolfo. Fiel à as-tronomia, ele chamou a Praga, para associá-los a suas pesquisas, osastrônomos mais eminentes da época: Muller, Fabricius (ambos ex-

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celentes na arte de observar) e o ilustre Kepler que, perseguido peloscatólicos da Estíria, estava então submetido a um grande incômodoe a fortes inquietações.

Sempre apaixonado pela ciência, Tycho favorecia sem segundas in-tenções aqueles que, como ele, cultivavam-na com ardor. Seu talentopessoal preservava-o de qualquer inveja mesquinha, e sua alta estirpeestabelecia, no seu pensamento, uma linha de demarcação intranspo-nível, que não teria permitido que o mérito alheio pudesse obscure-cer o seu.

Entretanto, a nova associação talvez tivesse trazido dificuldades:Tycho não podia encontrar, entre seus novos auxiliares, a docilidadepontual e voluntária a que estava habituado. Em Uraniburgo, ne-nhum empreendimento era iniciado sem a sua ordem e todos os re-sultados eram publicados com o seu nome. As observações podem serdirigidas assim, mas não as idéias, e sábios já célebres, que não apro-vavam suas visões teóricas, não podiam deixar de discuti-las e de lo-go tratar com ele de igual para igual. Kepler, sobretudo, não era ho-mem de conter-se na obediência e de se deixar desviar do seu cami-nho, renunciando à orientação do seu próprio gênio. Porém, Tychonão teve tempo para estabelecer em Praga a ordem e a disciplina doobservatório de Uraniburgo. Por uma estranha fraqueza de nossa na-tureza, a tristeza e a inquietude, que ele soubera dominar durantesuas desgraças, triunfaram sobre ele na prosperidade: Tycho não sehabituava ao exílio; não podia desvencilhar sua lembrança da sua pá-tria de adoção, que ele havia denominado “a ilha do céu”. Sua alma,abatida e distraída, atormentada por um desgosto invencível, conser-vava apenas algumas fagulhas do grande fogo que tinha sido suficien-te para animar Uraniburgo. Uma cruel doença da bexiga logo o tor-nou incapaz de continuar com os seus trabalhos. Forçado a deter-sena trilha em que há 38 anos marchava incansavelmente, ele compreen-deu que o fim se aproximava. Preparou-se para ele com coragem e

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morreu, em 24 de outubro de 1600, quinze meses após sua chegadaa Praga, fazendo com que Kepler prometesse terminar suas tabelas ezelar por sua publicação.

Kepler manteve a palavra. Fez ainda mais: recolhendo os frutos daobra, ele lealmente associou Tycho à partilha de sua glória. Antes depublicar as cifras, ele quis ordená-las e compará-las, elevando-se bas-tante alto para contemplá-las com uma única mirada. Uma tabela, tãoperfeita quanto ela fosse, não era para Kepler, com efeito, senão umenigma do qual era preciso encontrar a chave, um rio do qual era pre-ciso descobrir a fonte, uma letra morta à qual era preciso dar vida.Ele encontrou, nessas investigações, o emprego mais útil para o seugênio, e quando, após nove anos de trabalho, deduziu daí a demons-tração de suas leis imortais, o primeiro nome inscrito no frontispí-cio de seu livro foi o de Tycho Brahe. Tycho, entretanto, jamais ha-via tido semelhantes aspirações. Seus registros ajudaram Kepler seminspirá-lo. Um tão alto empreendimento teria, sem dúvida, parecidoquimérico e estéril para ele. Quando Tycho possuía os números pre-cisos, não havia mais, segundo ele, mistério a ser descoberto. Absortopela observação dos movimentos celestes, ele não tinha tempo de so-bra para contemplar as suas harmonias – nem ousadia para procuraro seu motor invisível. Esses sublimes devaneios jamais perturbaramsua tranqüilidade. Dando uma minuciosa e paciente atenção aos de-talhes do edifício, ele deixava para o tempo e para a acumulação dosdocumentos o cuidado de revelar sua ordenação e seu plano. Mais curioso de fatos exatos do que de teorias engenhosas, ele passou a vi-da recolhendo observações. E quando, justamente orgulhoso com oseu número e a sua precisão, ele exclamou, em sua dolorosa agonia (e na presença de seus discípulos desolados), Non frustra vixisse videor[“Não creio ter vivido inutilmente”], pareceu-lhes que ele fazia jus-tiça a si próprio. A posteridade ratificou esse julgamento.

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As maiores leis do mundo físico foram demonstradas pelos geô-metras. As hipóteses sobre as quais elas se apóiam só adquirem realimportância depois de terem sido submetidas ao controle deles. Noentanto, os progressos da filosofia natural teriam sido impossíveis seos grandes homens, aos quais eles são devidos, penetrados unicamen-te pelo espírito geométrico, tivessem respeitado sempre o seu infle-xível rigor.

Imaginemos um geômetra iniciado nas teorias mais elevadas daciência abstrata. Não estou falando somente de um discípulo deEuclides e de Arquimedes, mas de um leitor inteligente de Jacobi ede Abel. Suponhamos que, tendo permanecido estranho a qualquernoção de astronomia, ele pretenda compreender (valendo-se apenasdos seus esforços) a estrutura geral do Universo e a disposição dassuas partes. Vamos colocá-lo, aliás, nas condições mais favoráveis.Admitamos que, com uma liberdade de espírito igual à de Copérnico,ele não se detenha nas enganosas aparências dos sentidos que, escon-dendo-nos o movimento da Terra, fizeram com que sua imobilidadefosse encarada durante tanto tempo como um axioma: quantas im-possibilidades se apresentariam, então, à sua imaginação! Levado porum movimento desconhecido, não percebendo nenhuma direção fixa,nenhuma base imóvel na qual apoiar-se para determinar as distâncias,

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KEPLER E SEUS TRABALHOS

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faltar-lhe-iam os dados para a resolução do problema. Nosso geôme-tra talvez conseguisse elevar seu pensamento até o sentimento denossa inexprimível pequenez. Porém, não percebendo nenhuma rotasegura, ele se deteria de repente para afirmar, em nome de uma ciên-cia que acreditava ser infalível – porque ela não deixa nada para o aca-so –, que, quaisquer que sejam o gênio do homem e a perfeição quea arte possa emprestar aos seus órgãos, nosso caminho através do es-paço é tão impossível de descobrir quanto, para os átomos que o ha-bitam, o de um grão de poeira carregado pelo vento.

Felizmente, Pascal foi longe demais ao afirmar que aquilo que pas-sa da geometria nos ultrapassa. Esta apreciação tão desencorajadoranão leva em conta um sentimento que vai ser buscado nas profunde-zas da alma humana, e que sustentou Copérnico após haver inspira-do Pitágoras. O homem crê, com efeito, fora de qualquer demons-tração, na harmonia do Universo e na simplicidade do seu mecanis-mo. E, embora a imaginação seja muito oposta à geometria, a histó-ria da astronomia nos mostra as duas unidas por um laço muito es-treito. A primeira, sustentada por uma razão que é exercida indo, dealguma maneira, adiante da verdade para revelar, como por intuição,a beleza e a ordem geral do sistema do mundo; a segunda, esforçan-do-se, em seguida, para experimentar o verdadeiro e o falso e discer-ni-los um do outro, fixando afinal a certeza.

A situação do astrônomo que procura adivinhar a ordem simétri-ca e regular dos corpos celestes não deixa de ter analogia com a dofilólogo que, na presença de caracteres desconhecidos, esforça-se pa-ra reconstituir as palavras e as idéias que eles exprimem. Tanto parao filólogo quanto para o astrônomo, o problema é logicamente inde-terminado, e seria possível provar que a sua solução é arbitrária: oque assegura, com efeito, que essas figuras bizarras não sejam sim-ples desenhos decorativos, caprichosamente traçados sem ordem esem finalidade? E se eles têm realmente um sentido, nenhuma se-

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qüência de deduções rigorosas poderá revelá-lo, conduzindo do co-nhecido para o desconhecido por meio de um encadeamento lógico eseguro. É necessário, em uma tal investigação, proceder às apalpade-las, aceitar adivinhações baseadas em fugidias e longínquas analogias,estabelecer sistemas que o estudo posterior dos fatos virá muitas ve-zes demolir, formular hipóteses que serão logo rejeitadas, mas que sesubstituirá pacientemente por outras, sem nunca se desanimar, por-que a solução verdadeira, a partir do momento em que for encontra-da e de qualquer maneira que seja obtida, oferecerá – podemos ficarcertos disso de antemão – um tal caráter de certeza que não deixarámais lugar para a dúvida. Acontece a mesma coisa com o verdadeirosistema astronômico; é impossível estabelecê-lo por meio de uma se-qüência de deduções rigorosas e demonstrar sucessivamente as diver-sas partes dele seguindo o método dos geômetras. Porém, quandoum homem de gênio tiver, por qualquer via que seja, adivinhado osprincípios que conciliam a realidade uniforme e simples com as apa-rências complexas e variáveis, os espíritos justos a aceitarão imedia-tamente como verossímil, sem procurar saber que caminhos puderamconduzir a ela e sem esperar as provas sólidas e luminosas que serãoacumuladas ao longo dos séculos, para convencer os mais rebeldes eesclarecer os mais cegos.

Não desejo retraçar aqui a história das tentativas que foram su-cessivamente feitas, e que é a da astronomia. Dentre os grandes gê-nios que, rasgando os véus que o escondem, mostraram pouco a pou-co o Universo em sua “alta e plena majestade”, escolhi somente, pa-ra esboçar o papel que ele desempenhou, o mais ousado, o mais per-severante e o mais inspirado de todos: convoquei Kepler.

Johannes Kepler nasceu em Weil, no Württemberg, em 27 de de-zembro de 1571, 28 anos depois da morte de Copérnico. Seu pai,Heinrich Kepler, que pertencia à nobre família dos Keppel, não eradigno de tal filho: ele abandonou por diversas vezes a sua mulher –

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que tinha, ela própria, uma reputação muito ruim – e quase não seocupou dos seus quatro filhos. A primeira educação de Johannes foi,portanto, muito negligenciada. Sua mãe, que não sabia ler, mandava-o, é verdade, para a escola, mas retinha-o em casa todas as vezes queera possível utilizá-lo para o serviço do albergue que os revezes dafortuna a haviam reduzido a dirigir. A débil compleição da criançatornava-a, afortunadamente, pouco adequada para semelhante ofício,e ela foi destinada à teologia. Kepler foi recebido gratuitamente, coma idade de treze anos, no seminário protestante de Maulbronn. Umtal favor era obtido com facilidade. A instrução, naquela época, já es-tava espalhada pela Alemanha protestante com um grande zelo e umaextrema liberalidade: “É a cabeça e não o braço que governa o mun-do”, dizia, em 1578, o reitor da Universidade de Maulbronn: “Sãonecessários, portanto, homens instruídos, e tais frutos não crescemem árvores.”

Kepler fez brilhantes estudos. Passou de Maulbronn para o semi-nário de Tubingue, onde estudou teologia, sem todavia devotar-se in-teiramente a isso. Foi lá que compôs uma peça em versos latinos so-bre a ubiqüidade do corpo de Jesus Cristo, da qual o secretário dosdeputados nacionais admirou a elegante precisão. Entretanto, quan-do deixou a escola de Tubingue, com a idade de 22 anos, não foi jul-gado apto a trabalhar para a glória da Igreja. Munido apenas de umatestado lisonjeiro de eloqüência e de capacidade, foi nomeado pro-fessor de matemáticas e de moral no colégio de Graetz, na Estíria.

O arquiduque Carlos da Áustria, que governava então a Estíria,professava a religião católica. Porém – coisa bastante rara e bem pou-co durável naquela época –, ele era absolutamente tolerante com osheréticos. Os protestantes, então em maioria nas classes ricas e esclarecidas, tinham toda a liberdade de chamar para junto deles, e paraexercerem todas as funções, correligionários instruídos no exterior.Assim, Kepler foi chamado a Graetz. Como o ensino da astronomia

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fazia parte dos seus deveres, ele foi encarregado da redação de um al-manaque. Muito naturalmente, numa terra católica, ele teve de ado-tar a reforma gregoriana, que os protestantes repudiavam obstinada-mente – preferindo, como se dizia, “estar em acordo com o Sol a estarem acordo com o papa”. Kepler, que jamais consentia, mesmo nas cir-cunstâncias mais difíceis, em transigir sobre a livre expressão dosseus sentimentos religiosos, separou-se dessa vez dos seus correligio-nários. É que, segundo ele, a questão era puramente científica. Eleencontrou-a por diversas vezes, no decorrer da sua carreira, e sua opi-nião jamais variou. Dezesseis anos mais tarde, em 1613, para con-vencer a Alemanha a aceitar o novo calendário, ele compôs, a pedidodo imperador Matias, um diálogo entre dois católicos, dois protes-tantes e um matemático que os esclarece e consegue convencê-los.Porém, Kepler foi menos feliz junto à dieta à qual a questão foi sub-metida. Apesar dos seus esforços, a adoção da reforma gregorianaainda foi adiada por um longo tempo.

Para aumentar a venda dos seus almanaques, Kepler não temia in-serir neles previsões supostamente astrológicas sobre o tempo e osacontecimentos políticos, das quais algumas se realizaram quase notempo indicado, de modo a dar-lhe um grande crédito. Seus biógra-fos, entretanto, têm afirmado que, superior aos preconceitos do seuséculo, ele não acreditava de modo algum na astrologia divinatória.Porém, sua correspondência mostra, ao contrário, que naquela época– e mesmo vários anos depois – ele estava persuadido da influênciados astros sobre os acontecimentos de qualquer natureza. Em umade suas cartas, ele aplica seus princípios ao filho de seu mestreMoestlin, que havia nascido há poucos meses, e que ele declara estarsendo ameaçado por um grande perigo. “Duvido”, diz, “que ele pos-sa viver.” A criança efetivamente morreu. Na mesma época, Keplerperdeu um dos seus e quando, nesse encontro de dores, exprimindopor seu mestre o mais afetuoso interesse, ele fala novamente dos te-

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mores que havia concebido, como acreditar que ele não esteja falan-do a sério? Porém, suas previsões nem sempre se realizaram com tan-ta exatidão e, quase sempre desiludido, Kepler tornou-se cada vezmenos crédulo. Aconteceu, portanto, com a astrologia o mesmo quecom muitos erros que atravessaram seu espírito sem fincar raízes ne-le. Kepler dizia, é verdade, que, filha da astronomia, a astrologia de-via alimentar sua mãe. E continuou, durante toda a vida, a fazer – pa-ra aqueles que lhe solicitavam e mediante pagamento – previsões ehoróscopos em conformidade com as regras da arte. Porém, longe deabusar da credulidade de seus clientes, ele lhes declarava que essasconclusões deviam ser consideradas, em sua opinião, como incertas esuspeitas. Dizia-lhes, como Tirésias a Ulisses: Quidquid dicam aut erit,aut non – “Aquilo que eu disser acontecerá ou não”.

A primeira obra científica de Kepler é intitulada Mysterium cosmo-graphicum. Ela foi composta durante os primeiros tempos de sua es-tada em Graetz. Ele diz no prefácio:

Pretendo provar que Deus, criando o Universo e regulan-do a disposição dos céus, teve em vista os cinco corpos regu-lares da geometria, célebres desde Pitágoras e Platão, e queele fixou, de acordo com suas dimensões, o número dos céus,suas proporções e as relações entre os seus movimentos.

É impossível não ficar impressionado com o fervor confiante dojovem autor e com sua entusiástica admiração pela sabedoria que re-ge o mundo e pela majestade dos problemas aos quais ele devia dedi-car sua vida:

Bem-aventurado aquele que estuda os céus: ele apren-de a dar menor importância ao que o mundo mais admi-ra. As obras de Deus estão para ele acima de tudo, e seu

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estudo lhe fornecerá a alegria mais pura. Pai do mundo, acriatura que tu te dignaste elevar à altura de tua glória écomo o rei de um vasto império; ela é quase semelhante aum Deus, visto que sabe compreender teu pensamento!

A teoria que inspira tais arrebatamentos é hoje negada pela ciên-cia. Esse brilhante edifício devia desabar pouco a pouco, por falta defundamentos seguros. Nessa época, Kepler se parece ainda, segundoa feliz comparação de Bacon, com a cotovia que se eleva aos céus, massem nada trazer da sua jornada.

Kepler sempre teve, no entanto, um grande carinho pelo seu pri-meiro trabalho e embora, numa segunda edição, ele próprio tenha as-sinalado graves erros, declara que jamais houve na ciência um inícioque fosse mais feliz do que esse. Não restam dessa obra senão algunssólidos e poderosos argumentos em favor do sistema de Copérnico.Kepler não teme censurar energicamente, em uma nota, o tribunal queousou colocar no Index os escritos do ilustre polonês. “Quando se ex-perimentou”, diz, “a lâmina de um machado contra o ferro, ele nãopode mais servir nem mesmo para cortar madeira.” Porém, foi sobre-tudo para o seu próprio autor que o livro de Kepler foi útil. Os cál-culos que efetuou naquela ocasião serviram, por assim dizer, para des-bravar o campo que devia fornecer-lhe abundante colheita. O mundoerudito, não menos encantado com a forma agradável e brilhante desua exposição do que surpreendido pela novidade das suas idéias, tornou-se atento ao que o jovem astrônomo lhe submeteria como novidade.

Tendo adquirido uma modesta fortuna, graças ao seu casamentocom a jovem e bela Bárbara Müller, já viúva de um primeiro maridoe separada de um segundo pelo divórcio, Kepler parecia ter-se fixadopara sempre na Estíria, entregando-se, sob os aplausos de todos, aoestudo da ciência que ele adorava. Sua correspondência mostra-o, na-quela época, plenamente satisfeito com os seus trabalhos e gozando

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de toda a serenidade da felicidade doméstica. Esse período de docetranqüilidade e de estudiosos lazeres aparece em sua vida como um pa-cífico oásis, no qual ele só pôde repousar por bem pouco tempo (e queele jamais reencontraria). O arquiduque Carlos teve como sucessor seufilho Ferdinando que, muito melhor católico do que o pai, escolheu co-mo generalíssimo das suas tropas a Santa Virgem e fez um voto de ex-tinguir a heresia nos seus Estados: o meio mais simples era expulsar osheréticos, e foi o que ele tentou. Kepler, protegido por jesuítas erudi-tos que sabiam apreciar o seu mérito, foi tratado com excepcional in-dulgência. Após ter sido forçado a deixar Graetz, permitiram que eleretornasse, com a condição de que se mostrasse prudente e reservado.É necessário crer que ele não o foi o suficiente, pois, pouco tempo depois, foi novamente banido, tendo-lhe sido concedidos, todavia, 45 dias para vender ou arrendar as terras de sua mulher. É, sem dúvi-da, em tais atos de indulgência que pensava um ilustre historiador, aoescrever que, sem alarde e sem crueldade, Ferdinando conseguiu supri-mir na Estíria o culto protestante.

Seja como for, Kepler, arruinado, privado de seus meios de subsis-tência, banido da Estíria – onde numerosos amigos já o rodeavam –,permaneceu inabalável em sua crença. O conselheiro Herwart pro-pôs-lhe em vão uma acomodação, mas não conseguiu dobrar sua re-tidão. Kepler, tão engenhoso em seus trabalhos, não o era para enga-nar sua consciência: não podendo submeter sua razão à fé católica,recusou-se obstinadamente a reverenciá-la. Os motivos nos quais eleapoiava sua resolução, igualmente afastados da fraqueza que cede àperseguição e da arrogância que a desafia, são marcados por uma dig-nidade suave e calma. Escreveu a Herwart:

Eu sou cristão, ligado à confissão de Augsburgo porum exame aprofundado da doutrina, não menos do quepela educação recebida dos meus pais. Eis aí a minha fé;

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já sofri por ela, e ignoro a arte de dissimular. A religião é,para mim, um assunto sério que eu não posso tratar levia-namente.

Ele continuou, sem se deixar abater, a buscar um refúgio na ciên-cia, dedicando-lhe seus trabalhos, suas vigílias e os impulsos entu-siásticos da sua inteligência. Porém, ao lado das alegrias e dos triun-fos passageiros da invenção, vinham colocar-se a amargura do exílioe os pesares incessantes da pobreza. Pouco abalado por esses malescom relação a si próprio, Kepler estava cheio de inquietude a respei-to do futuro de sua família. “Eu vos suplico”, escreveu a seu mestreMoestlin, “que, se houver um cargo vago em Tubing, faça com queeu o obtenha. Faça-me saber o preço do pão, do vinho e das coisasnecessárias à vida, pois minha mulher não está habituada a alimentar-se com favas.” Nessas tristes circunstâncias, o célebre Tycho Brahe,informado dos aborrecimentos de Kepler, propôs a ele que se asso-ciasse aos trabalhos astronômicos dos quais havia sido encarregadopelo imperador Rodolfo. Kepler não hesitou e transferiu-se paraPraga com sua família.

Nada podia ser mais feliz para a astronomia do que a reunião deKepler com tal homem, cujos trabalhos – talvez menos brilhantes doque os seus – distinguiam-se por uma laboriosa precisão, com um ní-vel de perfeição que nenhum astrônomo pudera atingir antes dele. O próprio Kepler parecia prever todas as vantagens disso quando, fa-lando das numerosas observações acumuladas por Tycho, escrevia,um ano antes, a Moestlin: “Tycho está carregado de riquezas dasquais, como a maior parte dos ricos, não faz uso.” Ele observava, comefeito, há 35 anos, sem nenhuma idéia preconcebida, e mantendo umregistro exato e minucioso das condições do céu. São esses resulta-dos acumulados que, sem mostrarem diretamente a verdade, deviamresguardar Kepler do erro, fornecendo um apoio sólido à audácia do

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seu espírito inventivo e como que um limite estabelecido de antemãopara deter seus excessos.

Tornando-se logo depois, com a morte de Tycho, possuidor dos pre-ciosos materiais que deviam fecundar seu pensamento, ele compreen-deu que na confusão desses elementos – que ele poderia ter compara-do às folhas dispersas da sibila16 – escondia-se uma ordem eterna eimutável. Ele buscou-a durante nove anos, com a vontade paciente quetriunfa sobre o desânimo e a força que faz chegar ao sucesso.

Porém, para proceder com ordem, querendo eliminar logo de iní-cio uma causa de erro já assinalada por Tycho – com a qual estão ma-culadas todas as observações astronômicas –, ele estudou as leis darefração.

Hiparco relata que, num mesmo dia, observou o Sol duas vezes noequador e, por conseguinte, dois equinócios. Ptolomeu concluiu sim-plesmente que uma dessas observações era errônea. Porém, a mesmasingularidade apresentou-se várias vezes a Tycho, que, seguro de suahabilidade e da precisão dos seus instrumentos, não podia admitir talexplicação. Ele identificou a verdadeira causa disso na refração dosraios luminosos que, nula no zênite, adquire no horizonte o seu va-lor máximo. Quando, portanto, o Sol está, pela manhã, um poucoabaixo do equador, a refração pode, realçando seus raios, fazer comque se creia estar observando o equinócio. Algumas horas mais tar-de, quando o Sol vai se aproximando do zênite, a refração é menor.Esta causa de rebaixamento, compensando o caminho que o astro per-corre em algumas horas na sua órbita, pode fazê-lo ser observado no-vamente no equador.

Plínio relata uma outra contradição não menos sensível que, de-monstrando igualmente a importância do fenômeno da refração, de-

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16. Personagem da mitologia greco-romana, que tinha o poder de predizer o futu-ro. [N. dos T.]

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veria ter levado os antigos astrônomos a fazerem dela o assunto deseu estudo: “Observou-se um eclipse da Lua, no momento em que oSol ainda estava visível acima do horizonte.” A Lua desapareceu, porconseguinte, sem que a linha reta que reúne seu centro com o do Solparecesse encontrar a Terra. O fato é constatado; ele foi observadonotadamente por Moestlin e por Tycho. Existe, por outro lado, a ne-cessidade evidente de que a Terra, para eclipsar a Lua cobrindo-a coma sua sombra, esteja colocada entre ela e o Sol, numa mesma linha re-ta. É necessário, portanto, admitir que os três corpos estão realmen-te em linha reta no momento do eclipse, e explicar por intermédio darefração, que realça os dois astros, sua presença aparente e simultâ-nea acima do horizonte.

Deve-se, como se vê, levar muito seriamente em conta essa causa deerro na discussão das observações. O astrônomo árabe Alhazen e o po-lonês Vitellion foram os primeiros a chamar a atenção dos astrônomospara esse ponto, e Tycho, que sentia toda a importância disso, apresen-tou mais tarde uma tabela de refração relativa às diversas inclinações.

Porém, compreende-se a dificuldade de semelhante trabalho, jáque logo de início qualquer determinação direta é impossível. A re-fração é o ângulo formado pela linha reta que junta realmente um as-tro com o nosso olho, com a direção na qual ele é percebido. Ora,dessas duas direções, apenas a segunda é acessível às nossas observa-ções. Não é possível, portanto, medir o ângulo que ela forma com aoutra. É preciso calculá-lo por meio de um procedimento indireto. A observação contínua de uma estrela, seguida desde o zênite até ohorizonte, poderia conduzir a isso. O movimento diurno, cujas leisnão são contestadas, faz, com efeito, com que ela descreva no céu umcírculo perfeito e, sabendo a cada instante onde ela deve estar, é pos-sível atribuir à refração as irregularidades observadas.

O procedimento seguido por Tycho é um pouco diferente, mas eleficou longe de atingir sua finalidade. A refração da luz das estrelas

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cessava completamente, segundo ele, aos 20o do horizonte; a do Solera mais considerável, e só se tornava nula aos 45o. Tudo isso é ine-xato: a refração segue as mesmas leis para todos os astros e só se tor-na nula no zênite. Kepler retoma, portanto, a questão em sua inte-gralidade, compondo, com o modesto título de Paralipomena ad Vite-llionem, um tratado completo de óptica. Essa obra, que contém errosgraves, é notável para a época em que foi composta. Encontra-se ne-la a verdadeira teoria das lunetas, regras exatas para determinar a dis-tância focal das lentes e o poder de aumento de um instrumento. É aí que, pela primeira vez, foi apresentada a descrição exata do olhoe a explicação exata do seu mecanismo. Encontra-se aí, por fim, a ex-plicação da luz acinzentada da Lua, lealmente atribuída a seu mestreMoestlin. Embora tenha sido levado a uma lei elementar de refraçãocompletamente inexata, Kepler calcula finalmente uma tabela das re-frações astronômicas que, desde o zênite até os 70o, não difere emmais do que 9’’ daquela que é adotada atualmente. Porém, aproxi-mando-se do horizonte, as diferenças tornam-se mais consideráveis.É reconhecível nesse livro a mão de um grande mestre; sua leitura éagradável e fácil e, embora o joio esteja abundantemente misturadocom o bom grão, aquele que quisesse provar de tudo poderia encon-trar nele, ainda hoje, uma útil colheita para ser feita. Descartes, queo cita honrosamente em sua Dióptrica, reconhece expressamente oproveito que tirou dele.

Porém, embora marchando com fervor para a finalidade que ha-via se proposto, Kepler devia, como astrônomo imperial, permane-cer atento aos acontecimentos que se sucediam no céu. Ele escreveu,em 1606, uma longa dissertação sobre uma estrela surgida na cons-telação da Serpente e que, após ter brilhado com um fulgor superiorao de Júpiter, logo desapareceu para nunca mais voltar. Esse fenô-meno curioso, do qual existem outros exemplos, causou uma gran-de comoção.

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Se me perguntarem: O que acontecerá? O que pressa-gia esta aparição? Responderei sem hesitar: antes de maisnada, uma nuvem de escritos, publicados por numerososautores, e muito trabalho para os impressores. Se alguémse queixar de que minha dissertação passa com demasiadaligeireza pelas conseqüências teológicas e políticas, res-ponderei que meu cargo me obriga, segundo minhas for-ças, a aperfeiçoar a astronomia, e não a preencher a fun-ção de profeta público. Estou muito satisfeito com isso:se eu tivesse de falar livremente de tudo aquilo que se pas-sa na Europa e na Igreja, estaria muito exposto a chocartodo o mundo, pois, como diz Horácio: Iliacos intra murospeccatur et extra.17

Não se poderia adivinhar, lendo essas linhas, que elas foram escri-tas em 1606!

Ele se pergunta, mais adiante, como a estrela pôde nascer e de quematéria é formada; mas não consegue descobrir e conclui apenas quea força cega dos átomos fortuitamente emaranhados não tem nenhu-ma participação nisso. Era também a opinião de sua esposa Bárbara.Kepler nos informa isso em uma dessas digressões pessoais, tão vivase tão animadas que, ao lê-las, imaginamos escutá-lo e vê-lo, e, aomesmo tempo, tão naturais que não nos espantamos em encontrá-lasmisturadas aos sérios pensamentos que o absorvem.

Ontem, fatigado de escrever e com o espírito perturba-do pelas meditações sobre os átomos, fui chamado parajantar, e aquela que eu acabo de mencionar trouxe para amesa uma salada. – Tu pensas, disse-lhe eu, que se, desde

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17. Citação das Epístolas: “Peca-se tanto dentro dos muros de Tróia quanto fora de-les.” [N. dos T.]

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a criação, os pratos de estanho, as folhas de alface, os grãosde sal, as gotas de azeite e de vinagre e os pedaços de ovoscozidos flutuassem no espaço, em todos os sentidos e semordem, o acaso poderia tê-los aproximado hoje para for-mar uma salada? – Não tão boa, seguramente, respondeuminha bela esposa, nem tão bem-feita quanto essa.

O tratado sobre a nova estrela, que tem trinta capítulos, deixa o lei-tor no mesmo estado de ignorância em que estava (e em que nós esta-mos ainda hoje) sobre a natureza e as causas da catástrofe que, segundoa distância presumida das estrelas, pode ter acontecido no céu e pertur-bado sistemas de mundos vários séculos antes das observações de Kepler.

Após nove anos de esforços continuados com uma aplicação infa-tigável e uma contenção de espírito que, por vezes, como ele mesmodiz, “diu nos torserat pene ad insaniam” [o atormenta quase até a demên-cia], Kepler consegue representar exatamente o movimento de Martepor duas das leis que, reconhecidas em seguida como aplicáveis aosoutros planetas, imortalizaram seu nome.

Sua obra é intitulada Astronomia nova, ou Física celeste, fundada sobre oestudo do movimento de Marte, deduzida das observações de Tycho Brahe. O pre-fácio, dirigido ao imperador Rodolfo, é muito notável como signo doespírito da época, bem mais ainda que do caráter de Kepler:

Trago a Vossa Majestade um nobre prisioneiro, frutode uma guerra laboriosa e difícil, empreendida sob os seusauspícios. E eu não temo que ele recuse o nome de cativoou que fique indignado com isso. Não é a primeira vezque ele pode ser assim chamado; já outrora o terrível deusda guerra, depondo alegremente seu escudo e suas armas,deixou-se prender nas redes de Vulcano.

Ninguém havia, até aqui, triunfado mais completamen-te sobre todas as invenções humanas. Em vão, os astrôno-

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mos prepararam tudo para a luta; em vão, puseram todosos seus recursos em ação e suas tropas em campo. Marte,zombando das suas tentativas, destruiu suas máquinas earruinou suas esperanças. Tranqüilo, entrincheirou-se noimpenetrável segredo do seu império e escondeu sua sábiamarcha das investigações do inimigo. Os antigos, mais deuma vez, lamentaram-se disso, e o infatigável exploradordos mistérios da natureza, Plínio, declarou Marte inob-servável pelos olhos humanos.

De minha parte, devo antes de tudo louvar a atividade ea devoção do valente capitão Tycho Brahe que, sob os aus-pícios dos soberanos da Dinamarca, Frederico e Cristiano,estudou durante vinte anos consecutivos, todas as noites equase sem descanso, todos os hábitos do inimigo, desven-dou seus planos de campanha e descobriu os mistérios dasua marcha. Suas observações, que ele me legou, ajudaram-me a banir esse temor vago e indefinido que se experimen-ta, de início, por um inimigo desconhecido.

Durante as incertezas da luta, quantos desastres, quan-tos flagelos não desolaram nosso campo? A perda de umchefe ilustre, a sedição das tropas, as doenças contagiosas,tudo contribuía para aumentar nossa aflição. As alegrias,assim como as infelicidades domésticas, roubavam dos tra-balhos um tempo que lhes era devido. Um novo inimigo,assim como relato em meu livro sobre a nova estrela, veioprecipitar-se sobre a retaguarda do nosso exército. Os sol-dados, privados de tudo, desertavam em massa; os novosrecrutas não estavam a par das manobras e, para cúmuloda miséria, carecíamos de víveres.

Por fim, o inimigo quis fazer a paz, e por intermédiode sua mãe, a Natureza, enviou-me o reconhecimento de

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sua derrota, entregando-se como prisioneiro sob palavra.A aritmética e a geometria escoltaram-no sem resistênciaaté o nosso acampamento.

Desde então, ele mostrou que é possível confiar na suapalavra. Ele pede apenas uma graça a Vossa Majestade: to-da a sua família está no céu; Júpiter é seu pai, Saturno seuavô, Mercúrio seu irmão e Vênus sua amiga e sua irmã.Habituado à sua augusta companhia, ele tem saudade de-les, anseia por reencontrá-los e desejaria vê-los junto a si,usufruindo, como ele hoje faz, a vossa hospitalidade. É necessário, para isso, tirar proveito de nossos sucessose prosseguir na luta com vigor. Ela não oferece mais peri-gos, já que Marte está em nosso poder. Porém, suplico aVossa Majestade que se lembre de que o dinheiro é o com-bustível da guerra, e que queira ordenar ao seu tesoureiroque entregue ao vosso general as somas necessárias para orecrutamento de novas tropas.

Kepler, começando o estudo do movimento de Marte, teve de bus-car com precisão a duração de sua revolução que, embora fosse bemconhecida por Tycho, também havia sido conhecida quase com a mes-ma exatidão por Ptolomeu. É um problema cuja solução, apesar dasaparentes dificuldades, é das mais fáceis. É possível, com efeito, com-parar a linha reta denominada “raio vetor” – que une o centro fixodo Sol ao centro móvel de Marte – ao ponteiro de um relógio, e otempo que ele leva para percorrer seu imenso mostrador é o tempoda revolução de Marte. Podemos considerar o raio vetor que une aTerra ao Sol como um ponteiro mais curto do que o precedente e gi-rando no mesmo sentido. O movimento desse último é bem conhe-cido; ele dá a sua volta em um ano. Suponhamos agora, embora issonão seja absolutamente exato, que os planos das duas órbitas coinci-

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dam – ou, em outros termos, que os dois ponteiros, de comprimen-to desigual, marchem sobre o mesmo mostrador. Colocados, comoestamos, na extremidade do ponteiro menor, será fácil para nós assi-nalar seus encontros com o maior, e os astrônomos que observarematentamente o Sol e o planeta Marte saberão dizer em que momen-to nos encontramos sobre a linha que os une. Eles descobriram hámuito tempo que essas oposições entre Marte e o Sol ou – o que dáno mesmo – os encontros dos dois ponteiros ocorrem em média a ca-da 795 dias. O maior dá, portanto, em 795 dias, uma volta a menosque o menor. Como o movimento desse último nos é conhecido, omais simples estudante poderá deduzir daí o movimento suposta-mente uniforme, ou seja, o movimento médio do outro. Foi assim quese descobriu que a duração da revolução de Marte é igual a 687 dias.

Como esse resultado era bem conhecido de Kepler, ele teve a idéiade comparar, nas observações de Tycho, aquelas que diferiam preci-samente desse número de dias, e pelas quais, por conseguinte, Marte,após ter dado uma volta, havia retornado ao mesmo ponto da sua tra-jetória. Assim, ele estudava, muito engenhosamente, a dificuldade, naaparência intransponível, que resulta do seu contínuo deslocamentono espaço. Como as duas posições da Terra em sua órbita são conhe-cidas pelo estudo prévio que foi feito do seu movimento, a linha queas une torna-se a base nas duas extremidades da qual podemos noscolocar para observar um planeta que, retornando à mesma posição,pode ser considerado imóvel. Encontraremos, assim, uma das posi-ções de Marte, com a data das duas épocas, separadas por 687 diasde intervalo, nas quais ele veio aí se colocar. Fazendo intervir outrasobservações, separadas da primeira por um período de duas ou trêsrevoluções do planeta, deveremos obter o mesmo resultado – o quefornece, ao mesmo tempo, um meio para verificar os cálculos e umaconfirmação bem mais preciosa da hipótese adotada para a lei do mo-vimento da Terra.

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Encorajado por esse primeiro sucesso, Kepler recomeçou a opera-ção um grande número de vezes, seguindo, por assim dizer, passo apasso o planeta para demarcar sua rota no espaço. Porém, quantospontos são necessários para determinar a natureza geométrica deuma curva? A geometria rigorosa responde que, qualquer que seja es-se número, ele não pode ser suficiente, e que pelos pontos dados ésempre possível fazer passar um número infinito de curvas distintase de propriedades muito diversas. É por isso que tantas tabelas ad-miravelmente precisas obtidas pelos físicos jamais puderam, apesardos seus esforços, ser convertidas em leis matemáticas. A incerteza ea impotência da ciência diante de tal problema forçam a paciência avir em auxílio do gênio. Kepler experimentou primeiramente a veri-ficação das hipóteses admitidas até então, procurando colocar todosos seus pontos sobre um mesmo círculo. Porém, seus esforços foraminúteis; seus cálculos deixavam subsistir erros de sete a oito minu-tos, e ele provava que não era possível fazer coisa melhor. Oito mi-nutos, isso é bem pouco! É cerca de um quarto do diâmetro aparen-te do Sol, mas é sobretudo na astronomia que é possível dizer: aque-le que despreza as pequenas coisas cairá pouco a pouco. Kepler sabiadisso, e esse pequeno erro que ele não quis aceitar tornou-se consi-derável pelas suas conseqüências.

“A bondade divina”, diz ele, “nos deu em Tycho um observador detal modo exato que um erro de oito minutos é impossível.” A hipó-tese de uma órbita circular era, portanto, inaceitável. Porém, Keplernem por isso deixa de ter esperança de vencer, e sua confiança nemmesmo é abalada. Ele pensa que, como a maliciosa Galatéia,18 Martefoge e se esconde, mesmo desejando ser notado: Et fugit ad salices, et secupit ante videri.19

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18. Personagem das Bucólicas de Virgílio. [N. dos T.]19. “Ela corre para esconder-se atrás dos salgueiros, mas primeiro quer ser vista.”(Virgílio, Bucólicas, égloga III, verso 65). [N. dos T.]

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Eis a primeira linha do 58o capítulo.Após numerosas tentativas e penosos cálculos, Kepler descobriu,

enfim, que uma órbita elíptica satisfazia todas as observações deTycho. Foi então que, como diz no seu prefácio, ele considerou Mar-te como prisioneiro sob palavra. Com plenas condições, então, parainterrogá-lo à vontade, ele continuou a guardá-lo de perto, assinalan-do os lugares que a nova teoria lhe impunha no futuro. E ele teve aalegria de ver o planeta, comparecendo pontualmente ao encontroque ele havia marcado, respondendo, por assim dizer, ao seu apelo,como as estrelas ao Senhor no livro de Baruch, que La Fontaine tan-to admirava: “Vós me haveis chamado: eis-me aqui!”

Essa completa e persistente obediência era o testemunho manifes-to da exatidão das duas célebres leis que ele pôde, enfim, enunciarcom segurança: “Marte descreve uma elipse da qual o Sol ocupa umdos pontos fixos” e “As áreas traçadas pelo raio vetor são proporcio-nais ao tempo”.

Porém, esta exposição da grande descoberta de Kepler seria bastan-te incompleta se não insistíssemos em duas circunstâncias notáveisque, vindo fortuitamente ajudar a perspicácia do seu espírito, condu-ziram-no mais facilmente à finalidade da qual poderiam tê-lo afastado.

O movimento da Terra, cujo conhecimento presumido serviu debase para todos os seus cálculos, era teoricamente tão mal conheci-do quanto o de Marte. O círculo no qual Kepler faz nosso planeta semover deve ser substituído por uma elipse. Mas essa elipse, para suagrande felicidade, difere muito pouco de um círculo para que a subs-tituição de um pela outra faça alguma diferença no grau de aproxi-mação que seria necessário adotar. Se fosse de outro modo, o méto-do se tornaria inexato e os números, ao se contradizerem, teriam ad-vertido e desencorajado o judicioso e sincero inventor.

A segunda circunstância, talvez ainda mais notável, é a imperfei-ção dos métodos de observação e dos instrumentos de Tycho.

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Kepler pôde afirmar, é verdade, que um erro de oito minutos eraimpossível, e essa confiança foi o que salvou tudo. Se ele tivesse po-dido dizer a mesma coisa de um erro de oito segundos, tudo estariaperdido. O órgão interior do juízo teria deixado, segundo uma ex-pressão de Goethe, de estar em harmonia com o órgão exterior da vi-são, tornado muito delicado e muito preciso.

Kepler enganava-se, com efeito, encarando a importante vantagemobtida sobre o planeta rebelde e teimoso como uma dessas vitóriasdecisivas que terminam para sempre com a luta; essas grandes leis,eternamente verdadeiras nos seus justos limites, não são rigorosas ematemáticas. Numerosas perturbações afastam incessantemente Mar-te de sua rota, libertando-o pouco a pouco dos delicados laços comos quais o feliz calculador tinha acreditado tê-lo amarrado para sem-pre. Para quem penetrar mais a fundo, essas irregularidades explica-das e previstas confirmam com brilho, é verdade, a teoria da atração,que elas ampliam e esclarecem. Porém, o conhecimento prematurodessas perturbações – conseqüência necessária de observações maisprecisas –, envolvendo a verdade em inextricáveis embaraços, talveztivesse retardado por muito tempo os progressos da mecânica do céu.Kepler, rejeitando então a órbita elíptica do mesmo modo e pelosmesmos motivos que a órbita circular, teria sido forçado a procurardiretamente as leis do movimento perturbado, com o risco de esgo-tar, contra obstáculos intransponíveis, todos os recursos de sua pers-picácia e a teimosia de sua paciência.

Kepler quis penetrar mais fundo nos mistérios da natureza e des-cobrir a causa dos movimentos cujas leis ele havia revelado. Depoisde ter destruído para sempre o velho erro das órbitas circulares obri-gatórias, ele enunciou o princípio simples e verdadeiro sobre o qualrepousa até hoje toda a mecânica racional: o movimento natural deum corpo é sempre retilíneo. Porém, infelizmente, ele acrescenta: “Seele não tiver uma alma que o dirija.” Esta restrição estraga tudo. Nego

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ullum motum perennem non rectum a Deo conditum esse, praesidio mentali desti-tutum. É necessária, de acordo com esse princípio, uma força inces-sante para conduzir o planeta em sua órbita curva, e esta força resi-de no Sol. Kepler afirma-o expressamente: Solis igitur corpus esse fontemvirtutis quae planetas omnes circumagit.

É a doutrina de Newton – ou, melhor dizendo, é a verdade.Admiradores de Kepler têm visto nas duas frases que acabamos de

citar uma das mais belas razões para a sua glória. Não posso, com re-lação a isso, concordar com eles. Kepler, impaciente com o mistério dosmovimentos planetários, não se prendeu a essas idéias de gênio; incer-to e irresoluto, ele tentou, pelo contrário, todas as explicações, semadotar e sem justificar nenhuma delas; e quando a idéia verdadeira atra-vessou o seu espírito, ele não soube apreendê-la nem explorá-la.

Após ter dito que a causa do movimento está no corpo do Sol, elesupõe que a rotação deste astro seja transmitida aos planetas e os ar-raste. Ele admite, mais adiante, uma força magnética dependente daorientação do eixo do corpo atraído. Em outros momentos, visõesextremamente vagas sobre a natureza da atração levam-no a acreditarque ela é inversamente proporcional à distância. Foi observado que,com uma modificação bem leve, seu raciocínio – que nem por issoseria melhor – teria conduzido à lei verdadeira. Isso não o impede deacreditar que o planeta, estando ora mais perto, ora mais longe doSol, deve ser alternadamente atraído e repelido por ele. Por uma con-tradição que mostra melhor do que todo o resto a incerteza de suasidéias, ele ainda se pergunta se o planeta, concentrando sua força emsi mesmo, não seria dotado de um princípio ativo que o move aomesmo tempo em que o governa e, sem chegar ao ponto de conce-der-lhe o raciocínio, lhe empresta uma alma que, instruída do cami-nho que deve seguir para conservar a ordem eterna do Universo, di-rige-o para lá continuamente e conserva-o lá sem descanso, com umaimortal potência e um inesgotável vigor. Porém, como compreender,

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nesta hipótese, que ela consiga reconhecer sua rota? A expressão desua velocidade contém, por mais que se faça, senos. E, admitindocom todo o rigor – aquilo que já parece difícil – que essa alma tenhaa sensação dos ângulos, por meio de que misteriosa operação ela po-deria, pergunta ele, calcular seus senos? Voltando, enfim, à idéia deuma atração magnética, ele teme um conflito entre a potência mag-nética e a potência animal, que – no entanto – deve prevalecer. Essasdivagações confusas nas quais se atrapalha o gênio de Kepler fazempensar involuntariamente nas palavras que já citamos: Torquebar penead insaniam. Elas nada acrescentam à sua glória. Pouco importa que,dividido entre essas opiniões, que não passam de erros, ele tenha al-guma vez enunciado a verdade sem fundamentá-la em sólidas razões.Quando um viajante busca o seu caminho nas trevas de uma noitesem luz e, vacilante em todos os seus passos, exclama a cada instan-te, com inquietude, “Talvez seja ali!”, exaltaremos a sua perspicáciaporque lhe acontecerá, alguma vez, de encontrar o caminho certo ede passar adiante?

Seria, portanto, injusto reivindicar para Kepler a descoberta daatração universal, mas não há motivo para nos surpreendermos comisso. A mecânica, apenas na infância, não lhe permitia, por mais cla-rividente que ele fosse, testar suas idéias sobre as forças motrizes etransformá-las em teorias precisas e calculadas. Os trabalhos de Ga-lileu e de Huyghens eram necessários para preparar o de Newton, doqual essa foi a obra imortal.

Os estudos e as meditações de Kepler foram muitas vezes inter-rompidos e constantemente perturbados por desgostos e embaraçosinumeráveis.

Os herdeiros de Tycho deviam partilhar a propriedade das tabelasastronômicas que Kepler havia prometido; eles se queixavam de queele adiava a sua publicação, ocupando seu tempo com investigaçõesde física e com vãs especulações. O célebre astrônomo Longomonta-

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nus fez-se mesmo o intérprete de suas censuras e de suas injuriosassuspeitas. Em uma carta – no início da qual ele o trata, no entanto,de homem doutíssimo e de velho amigo – Longomontanus acusa-ode usar de “um zelo exagerado na refutação das teorias de Tycho”, dedeixar-se distrair das ocupações de seu cargo pela “paixão de tudocriticar” e de “romper”, atacando os trabalhos de seus amigos, “oslaços de afeição que os uniam a ele”. Diz Longomontanus, com cres-cente aspereza:

Se minhas ocupações me permitissem, eu teria ido aPraga expressamente para entender-me contigo sobre isso.Porém, pelo que tu tanto te aplaudes, meu caro Kepler?(...) Todo o teu trabalho repousa sobre as bases estabele-cidas por Tycho e das quais tu nada modificaste. Busquepersuadir os ignorantes, mas deixe de sustentar absurdosdiante daqueles que sabem o fundamento das coisas.

Tu não temes comparar os trabalhos de Tycho ao es-terco dos estábulos de Augias, e declaras te pôr, como umnovo Hércules, em condições de limpá-las. Porém, nin-guém se enganará com isso e te preferirá ao nosso gran-de astrônomo. Tua impudência desgosta todas as pessoassensatas.

Acusações tão distanciadas da verdade não podiam ferir Kepler.Ele desprezava todo esse vão estrépito que, sem direito nem razão,faziam ressoar em torno dele. Algumas notas lançadas à margem dacarta de Longomontanus mostram o caso que ele fazia dela: “Injúriaencantadora”, escreve ele. E, mais adiante: “Envolve teu fel em belasfrases.” Sua resposta, na qual ele recusa uma discussão inútil, é deuma incomparável bondade. Vê-se nela toda a serenidade de sua al-ma e a moderação do seu caráter:

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No momento em que eu recebia tua epístola militante,a paz já estava feita há muito tempo com o genro de Tycho.Pareceríamos, querelando sobre isso, com os navios portu-gueses e ingleses que se batiam na Índia, quando a paz jáestava assinada... Tu censuras minha maneira de acusar e derefutar. Rendo-me, embora não pense ter merecido as tuasreprovações. De ti, amigo, não existe reprimenda que eunão aceite. Lamento que tu não tenhas podido vir a Praga;eu teria te explicado as minhas teorias e tu terias, espero,partido satisfeito. Tu zombas de mim. Que seja! Vamos rirjuntos. Mas, por que me acusas de comparar os trabalhosde Tycho ao esterco das cavalariças de Augias? Tu não ti-nhas minhas cartas diante dos olhos: tu terias visto queelas não continham nada semelhante a isso. O nome deAugias entrou sozinho no teu espírito. Eu não desonromeus trabalhos astronômicos com injúrias.

E concluindo: “Adeus, escreva-me o mais rápido possível, para queeu possa constatar que a minha carta modificou tuas disposições ameu respeito.”

A paz com os herdeiros de Tycho não passou de uma curta trégua.Eles se dirigiram ao próprio imperador. Rodolfo, embora bastanteincapaz como imperador e como rei, tinha pelas ciências um amor es-clarecido e sincero. Ele afastou todas essas dificuldades aborrecidas.Porém, incessantemente cercado de inimigos e de rebeldes, o impera-dor da Alemanha podia apenas fazer com que fossem dados a seu as-trônomo alguns pequenos adiantamentos por conta da considerávelsoma que ele havia fixado como seu ordenado; e Kepler, para alimen-tar sua família, teve de aceitar trabalhos de qualquer tipo, compor al-manaques, calcular horóscopos e pôr sua erudição a serviço de qual-quer um que pudesse pagar por ela.

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Após a morte de Rodolfo, seu sucessor, Matias, menos devotado àciência, e não menos embaraçado pelas irremediáveis divisões quesubvertiam o império, abandonou completamente o observatório dePraga, cujos trabalhos foram interrompidos pela falta dos recursosmais indispensáveis. Kepler teve de renunciar a um emprego que nãolhe dava nem mesmo o pão e aceitar as funções de professor no gi-násio de Linz. Foi nessa cidade que ele perdeu sua mulher Bárbara.Pouco tempo depois, para dar, como diz ele, uma mãe a seus três fi-lhos, casou-se novamente – sem pretender com isso, aliás, ter feitopor eles um sacrifício excessivo. Depois de ter cuidadosamente com-parado, com muito espírito e fineza – como se vê em uma de suascartas –, os méritos e a beleza de onze moças que haviam sido suge-ridas pelos seus amigos, ele desposou Suzanne Reutlinger, filha órfãde um simples artesão, que havia recebido uma educação distinta nomais célebre pensionato do país:

Sua beleza, seus hábitos, seu porte, tudo nela me con-vém. Paciente no trabalho, ela saberá dirigir uma casa mo-desta e, sem estar na primeira juventude, ainda está naidade de aprender tudo aquilo que poderia lhe fazer falta.

Esse casamento foi a ocasião de um trabalho importante, no qualKepler mostra, por meio de um novo exemplo, que, dominando todaa ciência, seu gênio abrangia igualmente todas as suas partes. Ele dizno prefácio:

Como eu acabara de me casar, sendo abundante a vin-dima e o vinho estando barato, era o dever de um bom paide família aprovisionar-se dele e guarnecer minha adega.Tendo, portanto, comprado diversos tonéis, alguns diasdepois vi chegar meu vendedor para fixar o preço, medin-

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do sua capacidade: sem executar nenhum cálculo, ele mer-gulhava uma vareta de ferro em cada tonel e declarava ime-diatamente o seu conteúdo.

Kepler recorda-se, então, de que nas margens do Reno – sem dúvi-da porque ali o vinho tinha maior valor – tem-se o trabalho de esva-ziar a barrica para contar exatamente o número de potes que ela con-tém. O método austríaco, muito mais rápido, seria suficientementeexato? “Eis aí uma questão cujo estudo não desconvém a um geômetrarecém-casado”, ele diz. Para resolvê-la, ele trata de problemas de geo-metria que podem ser incluídos entre os mais difíceis que haviam sidoabordados até então. E chega pois a esta conseqüência singular:

Sob a influência de um bom gênio, que sem dúvida erageômetra, os construtores de tonéis deram-lhes precisamentea forma que, por um mesmo comprimento da linha medidapelos aferidores de tonéis, assegura-lhes a maior capacidadepossível. Como nas vizinhanças do máximo as variações sãoinsensíveis, os pequenos desvios acidentais não exercem ne-nhuma influência apreciável sobre a capacidade, da qual a me-dida rápida é, por conseqüência, suficientemente exata.

Esta idéia sobre os máximos, lançada de passagem, mas em termostão seguros por Kepler, foi desenvolvida vinte anos mais tarde porFermat, do qual ela é um dos motivos de glória.

Kepler acrescenta: “Quem pode negar que a natureza sozinha, semnenhum raciocínio, possa ensinar a geometria, quando se vêem nos-sos toneleiros, levados apenas por seus olhos e pelo instinto do be-lo, adivinharem a forma que melhor se presta a uma medida exata?”

Fiel ao hábito de misturar a todos os seus trabalhos as lembran-ças dos poetas clássicos, Kepler termina essa obra sobre a Arte de me-dir os tonéis com dois versos imitados de Catulo, que, livremente inter-

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pretados, significam que, quando se trata de beber, não se devem contaros copos: Et quum pocula mille mensi erimus / Conturbabimus illa, ne sciamus.

Essa obra eruditíssima não devia ajudá-lo a sustentar a família, acada ano mais numerosa. Kepler vivia, portanto, com uma grande eco-nomia e em contínuas inquietações quanto ao futuro, quando doresainda mais pungentes vieram envenenar seus derradeiros anos. Umacarta de sua irmã informou-lhe que sua velha mãe, com a idade de se-tenta anos, acabava de ser jogada na prisão, acusada do crime de fei-tiçaria. Indignada com o impertinente absurdo das questões que lhehaviam sido dirigidas pelo juiz de instrução, Katharina Kepler haviaagravado sua situação, fazendo-se de acusadora e censurando o juiz,com um injurioso desprezo, por sua fortuna adquirida com demasia-da rapidez depois que ele se tornara magistrado. Infelizmente, a opi-nião pública a condenava. Sem alegar nenhum fato preciso, ela pedia-lhe satisfações por todas as calamidades públicas ou privadas. Levan-tava-se contra ela, por todos os lados, com um implacável furor. Foiatribuído que ela nunca encarava as pessoas no rosto e que jamais atinham visto verter uma lágrima. Esses indícios não eram suficientes.Porém, como para com tais acusados o juiz não tinha nenhuma me-dida a guardar e seu único temor era aparentar carecer de zelo aopoupá-los, o uso era então o de arrancar pela tortura as confissõesque conduziriam a vítima para a fogueira. Kepler acudiu e durantecinco anos, repletos das mais cruéis apreensões, lutou sem descansopara salvar sua mãe. Demonstrando, com a ascendência de um reno-me já imponente, que “essas provas, mais de paciência do que de ver-dade”, como havia dito o nosso Montaigne, expõem o juiz a conde-nações mais criminosas do que o crime, ele não pôde impedir quefossem mostrados à velha Katharina os instrumentos do suplício, ex-plicando-lhe seu uso e ameaçando utilizá-los para vencer a obstina-ção do seu silêncio. Não conseguiram, no entanto, abalar sua cons-tância; ela declarou-se pronta para suportar tudo. Sua atitude altiva

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e resignada salvou-a do suplício, mas não da vergonha que recaiu la-mentavelmente sobre seu filho.

Durante esses tempos de perturbação e angústia, a Alemanha in-teira, cheia de desordem e de confusão, e como que agitada por umaviolenta tempestade, nada mais era, segundo a expressão de Schiller,que um armazém de víveres para os exércitos. Uma das mais terríveisguerras que já aconteceram, a Guerra dos Trinta Anos, levava para to-das as províncias a miséria e o contágio das mais horríveis doenças.Nesses cruéis extremos, Kepler – que, para assistir sua mãe, havia re-nunciado às funções de professor – estava mergulhado em uma cres-cente miséria, contra a qual sua ardente vontade lutava sem descan-so. Porém, uma última aflição lhe estava reservada: ele perdeu uma fi-lha de dezessete anos. Entorpecendo-se, então, contra a dor, e refu-giando-se nessas regiões serenas onde os desgostos da Terra não têmacesso, rejeitou o peso importuno dos trabalhos obrigatórios ou lu-crativos para absorver todos os seus pensamentos na composição deuma obra que lhe causou, diz ele, mais prazer do que o que a sua lei-tura proporcionará a todos os leitores reunidos. É que esses espaçosinfinitos que nos encerram, cujo eterno silêncio assustava a razão cé-tica de Pascal, encantavam – pela harmoniosa diversidade dos movi-mentos que ali se realizam – a imaginação mística de Kepler; e comoele acreditava, há muito tempo, escutar, no fundo de sua alma, o co-ro permanente das vozes misteriosas da natureza, tentou registrá-lona estranha obra intitulada Harmonices mundi libri quinque [Os cinco li-vros da harmonia do mundo].

Kepler primeiro estuda geometricamente diversas figuras regula-res, e as observações analíticas às quais ele é levado teriam sido sufi-cientes, como disse um dos nossos mais ilustres confrades,20 para

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20. Michel Chasles, no seu admirável Aperçu historique sur l’origine et le développement desméthodes en géométrie [Resumo histórico sobre a origem e o desenvolvimento dos mé-todos em geometria]. [N. do A.]

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preservar sua obra do esquecimento. Ele equaciona o problema e in-terpreta exatamente todas as soluções; isso ainda é tudo aquilo quepodemos fazer hoje em dia. Porém, tal resultado não satisfazia Ke-pler. Ele diz:

Está provado que os lados dos polígonos regulares de-vem permanecer desconhecidos e que são, por sua próprianatureza, inencontráveis. E não há nada de espantoso nofato de que aquilo que pode ser encontrado no arquétipo do mundonão possa ser expresso na conformação das suas partes.

Ocupando-se, em seguida, da música humana e retomando a idéiade Pitágoras – que comparava, segundo dizem, os planetas com as se-te cordas da lira –, ele quer mostrar como o homem, imitando oCriador por um instinto natural, sabe, nas notas de sua voz, fazer amesma escolha e observar a mesma proporção que Deus quis colocarna harmonia geral dos movimentos celestes. O mesmo pensamentodo Criador traduzindo-se assim em todos os seus desígnios, dosquais um pode servir de intérprete e de figura para o outro.

Buscando as harmonias em toda parte onde elas fossem possíveis,Kepler dedica um capítulo à política:

Ciro viu em sua infância um homem de grande estatu-ra vestido com uma túnica curta e, perto dele, um anãocom uma roupa longa que se arrastava pelo chão. Mani-festou a opinião de que eles deviam trocar suas roupas, afim de que cada um ficasse com aquela que convinha aoseu tamanho. Porém, seu mestre declarou que se deviadeixar a cada um aquilo que lhe pertencia. Seria possívelconciliar as duas opiniões, ordenando ao primeiro quedesse ao anão, após a troca, uma certa quantia em di-nheiro.

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Todo o mundo vê claramente, com este exemplo, queuma proporção geométrica também pode ser harmônica:assim como é 1, 2, 4, ou ainda o feliz arranjo que dá aomais alto a roupa mais comprida. Uma proporção aritmé-tica também pode ser harmônica: assim como é 2, 3, 4, ouainda a útil troca que permite ao anão, possuidor de umaroupa comprida, não perder o seu bem, mas trocá-lo pordinheiro que ele poderá aplicar em um melhor uso.

Esta passagem, que traduzo da melhor maneira que posso e – nãotenho necessidade de dizê-lo – sem compreender bem o seu sentido,é suficiente, creio, para dar uma idéia do capítulo sobre a política.

O último capítulo, enfim, determina a natureza dos acordes pla-netários: Saturno e Júpiter são os baixos, Marte é o tenor, Vênus ocontralto e Mercúrio o falsete.

Essas idéias obscuras e quiméricas, nas quais o espírito de Keplerse fatiga e se extravia, parecem ser o inútil e vão divertimento de umaimaginação liberta do jugo da razão. Avançamos com tristeza, semousar sondar as misteriosas profundezas dessa grande inteligência le-vada, por uma inspiração sem luz, ao puro domínio da fantasia.

Porém, nas últimas páginas do livro, o gênio do sonhador inspira-do desperta subitamente para ditar-lhe soberbas e magníficas ento-nações, que se tornaram não menos imortais que a descoberta queelas anunciam:

Há oito meses, vi o primeiro raio de luz; há três meses,vi a claridade; enfim, há poucos dias, eu vi o Sol da maisadmirável contemplação. Entrego-me ao meu entusiasmo,quero desafiar os mortais com a ingênua confissão de queroubei os vasos de ouro dos egípcios, para com eles cons-truir para o meu Deus um tabernáculo longe dos confins

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do Egito. Se vocês me perdoarem, me rejubilarei com is-so; se vocês me fizerem uma censura, eu a suportarei. A sorte está lançada. Escrevi meu livro; ele será lido pelotempo presente ou pela posteridade, pouco importa; ele po-derá esperar pelo seu leitor: Deus não esperou 6 mil anospor alguém que pudesse contemplar suas obras?

Depois, voltando à linguagem precisa da ciência, ele revela a céle-bre lei que, encadeando todos os elementos do nosso sistema, vincu-la os grandes eixos das órbitas planetárias à duração das revoluções:nada mais inesperado do que essa luz viva que parece arrojar-se docaos. O leitor espantado se pergunta como essas regras precisas e es-sas proporções matemáticas aparecem subitamente em um mundoonde Kepler parecia entrar como que sonhando. Como tanta clarida-de súbita depois de obscuridades tão profundas? Como essa melodiapura depois das harmonias duvidosas que a precedem? Ninguém ho-je saberia dizê-lo. Kepler enuncia sua lei, verifica-a sem pensar em dara conhecer, como de hábito, a história das suas idéias. Depois, encan-tado com a plena e completa posse de um dos segredos por mais tem-po e mais ardentemente desejados, a alegria penetra-o com demasia-da abundância para que ele se contente com as expressões humanas.Todas as potências de sua alma prorrompem em ações de graças, e odevoto Kepler, tomando emprestadas as palavras majestosas das Es-crituras, exclama, como o Salmista:

A sabedoria do Senhor é infinita, assim como sua gló-ria e seu poder. Céus, cantai seus louvores! Sol, Lua e pla-netas, glorificai-o em vossa inefável linguagem! Harmo-nias celestes, e vós todos que sabeis compreendê-las, lou-vai-o. E tu, minha alma, louva teu Criador! É por ele e ne-le que tudo existe. Aquilo que nós ignoramos está encer-

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rado nele, tanto quanto a nossa vã ciência. A ele, louvor,honra e glória na eternidade!

Em uma nota não menos comovida, e talvez mais tocante que opróprio texto, ele acrescenta: “Glória também ao meu velho mestreMoestlin!”

O imperador Matias havia morrido. Seu sucessor no império foiseu sobrinho Ferdinando da Áustria, cuja devota energia, querendoaniquilar na Estíria o culto protestante, já havia, vinte anos antes, per-turbado a vida de Kepler. Seu zelo não havia afrouxado. A perseguiçãoreacendeu-se cada vez mais violenta: “Onde me refugiar?”, escreveKepler a um amigo. “Devo procurar uma província já devastada ouuma daquelas que não tardarão a sê-lo?” Felizmente, ele havia conser-vado relações amistosas com os jesuítas mais distintos, e como a in-fluência deles sobre o espírito de Ferdinando era poderosa, eles obti-veram, quando Wallenstein foi nomeado duque de Friedland, que umartigo do decreto assegurasse o futuro de Kepler, destinando-o ao ser-viço do duque e estipulando que os atrasos do seu soldo, como astrô-nomo imperial, fossem pagos com as rendas do ducado. Porém, novasdificuldades logo vieram lançá-lo em novos embaraços: o terno e do-ce Kepler, separado com pesar de sua mulher e de seus filhos, não po-dia acostumar-se com o tumulto e a desordem dos acampamentos.Pouco adequado para o ofício de cortesão, ele não tinha, aliás, bastan-te solicitude e subserviência para obter os favores e merecer as graçasde um senhor imperioso e arrogante, cuja proteção era um jugo dis-farçado. Wallenstein, vendo com uma extrema impaciência a pouca féna linguagem dos astros daquele que ele considerava como seu astró-logo, não tardou a demitir Kepler e o substituiu pelo veneziano Seni,cuja ciência enganosa e complacente nutriu, até o derradeiro dia, a im-prudente ambição de um senhor “que queria – como diz Schiller – fa-zer com que sua vontade prevalecesse até no céu”.

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Kepler não temia defrontar-se, em sua fraqueza, com o ressenti-mento do homem onipotente que havia imposto suas leis ao próprioimperador: ele reclamou com insistência o pagamento da soma esti-pulada no decreto imperial. Porém, esgotou em vão suas forças nasnumerosas viagens que eram acarretadas por suas incessantes diligên-cias. Morreu em Ratisbona, em 15 de novembro de 1630, com a ida-de de 59 anos.

Pela reunião das qualidades mais opostas, Kepler ocupa na histó-ria da ciência um lugar excepcionalíssimo. Mostrando, desde os seusprimeiros passos no estudo da astronomia, a presunçosa esperança dedecifrar o enigma da natureza e de elevar-se, mediante o puro racio-cínio, ao conhecimento das visões estéticas do Criador, ele parece deinício extraviar-se com uma audácia insensata, sem encontrar fundonem margens, nesse mar tão vasto e tão agitado no qual Descartes,perseguindo o mesmo objetivo, logo deveria perder-se para sempre.Porém, no ardente e sincero impulso da sua alma em direção à verda-de, a curiosidade de Kepler o agita e o arrasta sem que o orgulho ja-mais o cegue. Não considerando como certo senão aquilo que estavademonstrado, ele estava sempre pronto a reformar seus juízos, sacri-ficando com isso as mais caras invenções do seu espírito, assim queum laborioso e severo exame recusava-se a confirmá-las. Porém, quesublimes emoções e que entonações de entusiasmo e de alegre em-briaguez, quando o sucesso justifica suas temeridades e quando, de-pois de tantos esforços, ele atinge finalmente a sua meta! O nobreorgulho que, por vezes, eleva e exagera sua linguagem não tem nadaem comum com a vaidosa satisfação de um inventor vulgar. Soberboe audacioso quando procura, Kepler torna-se novamente modesto esimples a partir do momento em que encontrou; e, na alegria do seutriunfo, é somente a Deus que ele glorifica. Sua alma, tão grandequanto elevada, foi sem ambição e sem vaidade; não desejou as hon-rarias nem os aplausos dos homens. Não ostentando nenhuma supe-

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rioridade sobre os sábios, hoje em dia obscuros, aos quais sua corres-pondência era endereçada, ele demonstra constantemente a mesmadeferência respeitosa pelo velho Moestlin – cuja única glória, aosnossos olhos, é a de haver formado um tal discípulo. Quando, já se-nhor de suas maiores descobertas, era-lhe necessário, todos os dias,descer das alturas do seu pensamento para lutar contra as vulgaresnecessidades da vida, ele jamais se queixava por ver o seu mérito nãoser reconhecido ou ser contestado e sempre, enfim, aceitou simples-mente, sem murmúrio nem pesar, os trabalhos ou empregos, quais-quer que fossem, que pudessem ajudá-lo a sustentar a família.

As leis de Kepler são o fundamento sólido e inabalável da astro-nomia moderna, a regra imutável e eterna do deslocamento dos as-tros no espaço. Talvez nenhuma outra descoberta tenha gerado maisnumerosos trabalhos e maiores descobertas; mas a longa e penosa ro-ta que conduziu a isso não é conhecida senão de uma minoria. Ne-nhum dos numerosos escritos de Kepler é considerado como clássi-co, e suas obras são bem pouco lidas hoje em dia. Somente sua gló-ria será imortal: ela está escrita no céu. Os progressos da ciência nãopodem diminuí-la nem obscurecê-la, e os planetas, pela sucessão sem-pre constante de seus movimentos regulares, a proclamarão no decor-rer dos séculos.

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I

Quando a extrema lentidão de uma mudança no céu deixa os as-trônomos indecisos sobre a própria existência do fenômeno e sobreo sentido no qual ele ocorre, eles comparam duas observações afas-tadas; se a dúvida subsiste, é possível afirmar com certeza que o ele-mento medido, não sofrendo nenhuma alteração regular e permanen-te, é invariável (ou pouco falta para isso).

Tal método, aplicado à história do espírito humano, forneceria gra-ves motivos de tristeza e de desencorajamento. A ignorância e a ceguei-ra dos homens são coisas presentes em todos os tempos. Sempre amesma intolerância, as mesmas ilusões temerárias, as mesmas preocu-pações teimosas: sempre os mesmos atores na mesma comédia!

Três séculos antes da nossa era, um filósofo denominado Clean-to solicitava que Aristarco fosse chamado perante a justiça porblasfemar, por haver acreditado que a Terra estava em movimento eousado fazer do Sol o centro imutável do Universo. Dois mil anosmais tarde, a razão humana permanecia estacionada no mesmo pon-to. O desejo de Cleanto realiza-se e Galileu, por sua vez, é acusa-do de blasfêmia e de impiedade. Um tribunal temido por todoscondena seus escritos, obriga-o a uma retratação desmentida pelasua consciência e, julgando-o indigno da liberdade da qual ele abu-

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GALILEU E SEUS TRABALHOS

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sou, arrebata-a parcialmente e crê fazer com isso um ato de indul-gência.

Porém, não é assim que é necessário julgar a história. Os aconte-cimentos são pouca coisa: a impressão que eles produzem revela so-mente a consciência pública – e, talvez, jamais a sua generosa aversãopela intolerância tenha se manifestado mais fortemente do que emtorno do nome de Galileu. A narrativa de suas infelicidades, exagera-da como uma lenda devota, consolidou – vingando-o – o triunfo dasverdades pelas quais ele sofreu. O escândalo de sua condenação per-turbará para sempre, em seu orgulho, aqueles que ainda quiseremopor a força à razão. A justa severidade da opinião conserva a sualembrança importuna como uma eterna censura que lhes é atirada norosto, para envergonhá-los. É preciso dizer tudo: essa grande liçãonão custou tristezas muito profundas, e a longa vida de Galileu, to-mada em seu conjunto, é uma das mais doces e das mais invejáveisque nos é contada pela história da ciência.

Galileu nasceu em Pisa, em 15 de fevereiro de 1564. Seu pai,Vincenzo Galilei, era um homem de grande mérito: ele deixou umdiálogo sobre a comparação entre a música antiga e a música moder-na que é estimado pelos conhecedores. Sua fortuna era modesta, e aeducação de seus quatro filhos exigia pesados sacrifícios, que ele nãohesitou em se impor. Com a idade de dezenove anos Galileu era ver-sado nas letras gregas e latinas. Muito hábil tanto na teoria quantona prática da música, ele havia, além disso, se exercitado nas artes dodesenho (os mais célebres artistas consideravam bastante a pureza doseu gosto para receber e buscar os seus conselhos). Galileu era, co-mo se vê, tal como seu compatriota Leonardo da Vinci, uma dessasbelas inteligências sobre as quais a Natureza parece ter espalhado seusdons com as mãos abertas. Tais homens podem escolher livremente,nenhum caminho lhes é imposto. Leonardo, orientando de outro mo-do as forças de seu grande espírito, teria podido requerer sua glória

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à ciência sem deixar, talvez, um nome menos ilustre; e Galileu, quese parece com ele pela solidez do juízo, assim como pela graça deuma imaginação brilhante e fecunda, teria podido, se assim o quises-se, tornar-se um grande artista.

Vincenzo Galilei morava em Florença. Desejando uma profissãolucrativa para o filho, enviou-o para estudar medicina na Universi-dade de Pisa. Acostumado a sobressair-se em tudo, Galileu não obteve,de início, os sucessos que devia esperar: deixando sua curiosidade er-rar de objeto em objeto, estudava a filosofia mais assiduamente doque a medicina. As falsas sutilezas da escola não podiam alimentar ofogo do seu espírito. Transpassando as abstrações metafísicas, eleprocurava as idéias sob as palavras e rompia a cadeia dos raciocíniossofísticos e mal fundamentados, para interrogar curiosamente a ex-periência e não ceder senão a ela. Seus mestres, ao contrário, envol-viam sua inteligência na vaga obscuridade de uma doutrina que elesacreditavam ter sido fixada para sempre, vendo como coisa impossí-vel inventar e aperfeiçoar. Aristóteles era para eles um espírito divi-no e acima da humanidade, quase um ídolo; eles agarravam-se apenasa ele. Seus escritos, sempre lidos e sempre citados, continham a per-feição da ciência e a plenitude dos conhecimentos humanos. O com-pleto entendimento dos seus textos era a finalidade para a qual erapreciso orientar-se e o meio de conquistar um grande renome. Nasvãs alturas onde eles acreditavam estar elevados, os espíritos, mergu-lhados em um repouso que mais parecia um sono, permaneciam in-diferentes aos assuntos negligenciados pelo mestre. Ninguém ousa-va resolver aquilo que ele não tinha resolvido.

Galileu, no entanto, já atormentado pelos grandes segredos da na-tureza, elevava mais alto seu espírito e sonhava com novas conquis-tas. Revoltado com a estéril tirania sob a qual sucumbia a razão, ou-sava apontar desrespeitosamente as incertezas do peripatetismo eatacar francamente as suas quimeras. Sua livre e judiciosa crítica era

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tratada como uma louca arrogância e parecia quase um sacrilégio. Osperipatéticos mais exagerados, gabando-se de desprezar as objeções,consideravam como honroso não responder a elas. Eles nem sempreconsentiam sequer em ouvi-las, e o desdém ultrajante dos mais indul-gentes, encarando a oposição do jovem filósofo como o vão pretextode um aluno preguiçoso, não queria ver na vivacidade do seu espíritooutra coisa além da presunçosa singularidade de um indócil chicaneiro.

Quando Galileu voltou a Florença, com a idade de 22 anos, o aca-so fez com que ele assistisse a uma lição de geometria. Ali, enfim, eleescutou verdades precisas, estabelecidas por raciocínios claros e inte-ligíveis. Compreendendo, então, que as matemáticas – e não a lógica– ensinam a arte de raciocinar, entregou-se a elas com uma vigorosae exclusiva aplicação e fez rápidos progressos.

Vincenzo Galilei tinha outros objetivos para o futuro de seu filho;ele tentou lutar, mas tinha muita ciência e juízo para deixar de reco-nhecer e para combater por mais tempo uma vocação tão pronuncia-da. Quando o jovem Galileu, tendo descoberto elegantes teoremassobre os centros de gravidade, recebeu dos mais célebres juízes sinaislisonjeiros de estima e de admiração, seu pai rendeu-se de boa von-tade e sem queixas.

Em seus primeiros trabalhos, Galileu mostra-se discípulo de Ar-quimedes. O espírito do mestre, pelo qual ele está penetrado, transpa-rece na elegância engenhosa com a qual sabe tirar do sofista mais su-til a possibilidade de uma objeção. Sua dissertação sobre os centrosde gravidade é suficiente para mostrar as qualidades de invenção e dejulgamento que teriam bastado, no campo das matemáticas puras,para elevá-lo à categoria dos mais ilustres. Em suas pesquisas sobrea balança hidrostática, que datam da mesma época, ele mostra comoArquimedes pôde pesar facilmente e com precisão o ouro roubadopelo ourives do rei Hierão. A prática, desta vez, está associada com ateoria, que serve apenas para orientá-la.

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Muito amigo da convivência social, como sempre foi, e apaixonadopelos prazeres, Galileu freqüentava os jovens da sua idade: como osmais distintos dentre eles, compunha espirituosamente versos em lín-gua vulgar. Possuímos dele uma invectiva cômica contra o costume deandar vestido. Sua musa, é preciso confessá-lo, junta o exemplo ao pre-ceito; mais grosseira do que alegre, ela não deixa nada para ser adivi-nhado. O assunto dessa brincadeira, um pouco longa demais, provoca– por infelicidade – uma comparação bem perigosa: nas primeiras es-trofes de Namouna, nosso encantador Alfred de Musset lidou com asmesmas dificuldades com menos licenciosidade e muito mais graça.Galileu, revirando o assunto em todos os sentidos, não encontra umaúnica dessas entonações que, por um brilhante contraste com o restoda peça, elevem-se de improviso para as mais altas regiões e fiquem gra-vadas na memória. Ele não exclama, como Musset: “Todos os coraçõesverdadeiramente belos deixam ver a sua beleza.” É somente o corpoque o ocupa ao longo de trezentos versos.

A coleção de suas obras contém, além disso, um plano de comédiae um soneto a uma dama cruel, cuja indiferença, ao ver seu coraçãose queimar, recorda-lhe Nero contemplando o incêndio de Roma.Tudo isso não tem nenhuma importância e é apenas a prova do zeloimpiedoso dos editores que o publicam.

Embora já célebre por seus primeiros trabalhos, Galileu solicita, semobtê-lo, um lugar de professor em Florença. Pouco tempo depois, lhe éconcedida a cátedra de matemáticas na Universidade de Pisa. Sacudindoa poeira da escola e condenando, logo de início, o respeito pela tradiçãocomo um obstáculo ao progresso, do alto de sua cátedra ele se manifes-ta com toda a força contra as impertinências escolásticas. Apoiando-seem um guia que jamais engana – estou falando da experiência –, ousaavançar para fora dos caminhos já abertos, contestando a seus colegas,espantados com tanta audácia, a verdade de suas doutrinas e, ao mesmotempo, o título de discípulos de Aristóteles. Ele dizia:

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Aristóteles deixou-nos as regras imutáveis do raciocí-nio. Ensinou a arte de descobrir, de argumentar, de tirardas premissas as conseqüências exatas. Aquele que seguecom uma proveitosa curiosidade a sábia orientação deseus métodos não se mostra mais justamente seu discípu-lo do que aqueles que, detendo-se quando é preciso cami-nhar sempre, abusam do seu glorioso nome para impor er-ros e ilusões?

Dentre as teorias aceitas então – cujos fundamentos o jovem pro-fessor solapava audaciosamente –, a da queda dos corpos é a mais importante e a mais célebre. Já se contou muitas vezes como, deixan-do cair do alto da torre de Pisa corpos de pesos desiguais, ele de-monstrou, para todos os que quisessem ver, que a velocidade adqui-rida não é proporcional ao peso, e que um corpo duas vezes mais pe-sado não cai duas vezes mais rápido. Mas aí está uma verdade muitofácil de constatar para que se possa dar a ela grande importância. E se os sábios, com base na palavra de Aristóteles, concordavam obs-tinadamente em negá-la, muitos ignorantes tinham podido percebê-la. Galileu vai muito mais longe e descobre, desde aquela época, asleis matemáticas da queda dos corpos e as propriedades do movimen-to uniformemente acelerado. Ele compôs, sobre esse assunto, umdiálogo que permaneceu inédito até há poucos anos, e no qual encon-tramos um esboço muito preciso e muito consistente das teorias quedeveria expor, cinqüenta anos mais tarde, na última e mais perfeitadas suas obras.

É à época de sua estada em Pisa que é preciso igualmente referiros primeiros trabalhos de Galileu sobre o pêndulo. Um dia, quandoele assistia – pouco atento, é preciso crer – a uma cerimônia religio-sa na catedral, seu olhar foi impressionado por uma lâmpada debronze (obra-prima de Benvenuto Cellini) que, suspensa por uma

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longa corda, oscilava lentamente diante do altar. Talvez, com os olhosfixos nesse metrônomo improvisado, ele misturasse sua voz à dosoficiantes. A lâmpada foi parando pouco a pouco e, atento aos seusúltimos movimentos, ele reconheceu que ela batia sempre no mesmocompasso. A duração da oscilação é independente da amplitude. Ga-lileu espantou-se com essa uniformidade constante, da qual ele logoentreviu as belas e úteis conseqüências. A primeira aplicação na qualele pensou foi inspirada por seus estudos de medicina. Já se apalpa-va há muito tempo o pulso dos doentes e, para designar o resultadodesse exame, a linguagem médica – como nos ensina Molière – eramesmo de uma grande riqueza. Porém, não se media, pela falta deinstrumentos adequados, a duração exata de uma pulsação. Galileupensou em compará-la com a das oscilações de um pêndulo. Um dis-positivo, fácil de imaginar, permitia alongar ou encurtar o fio de sus-pensão para obter o acordo desejado. Quando um doente tinha febre,em vez de dizer, como hoje, “seu pulso bate a 140 pulsações por mi-nuto”, dizia-se: “ele marca seis polegadas e três linhas21 no pulsílo-go”. Diversos médicos célebres apressaram-se a adotar esta idéia e al-guns chegaram a fazer-lhe a honra de apropriarem-se dela.

A teoria matemática do movimento estava atrasada demais paraconduzir à lei precisa da oscilação. A Huyghens estava reservada ahonra de descobri-la, vinculando-a aos princípios de Galileu sobre aqueda dos corpos. O ilustre italiano limitou-se a demonstrar experi-mentalmente que a duração da oscilação cresce como a raiz quadradado comprimento da corda – concluindo, a partir disso, que era possí-vel medir a altura de um edifício de acordo com o tempo de oscilaçãode uma corda suspensa na sua parte superior. A importante aplicaçãona relojoaria só veio a preocupá-lo mais tarde, quando, perto do fimde sua vida, ele foi reconduzido a ela por outros problemas.

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21. Antiga medida de comprimento, equivalente a 1/12 de polegada. [N. dos T.]

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As novas idéias de Galileu espalhavam-se pouco a pouco, e o brilhodo seu ensino parecia prometer-lhe uma fácil carreira na Universidadede Pisa, quando o grão-duque Ferdinando de Médicis, que apreciava seuvalor, deu-lhe infelizmente uma demonstração de confiança cujas con-seqüências se tornariam deploráveis. Giovanni de Médicis, filho naturaldo duque, tinha inventado uma máquina para dragagem, que ele queriaempregar no porto de Livorno. Antes de ordenar as despesas necessá-rias, Ferdinando consultou Galileu, que declarou o projeto impraticá-vel. A máquina não foi construída, e a poderosa inimizade do jovempríncipe perseguiu em todas as ocasiões o autor do judicioso relatório.Por outro lado, o apego cego dos peripatéticos a Aristóteles transfor-mava-se em aversão por aquele que o contestava, e a oposição deles –que não cessavam de representá-lo como um inimigo da ciência – cau-sava para Galileu, com um prazer maligno, as contínuas dificuldades deuma guerra sem trégua. Tantas injustiças tornaram insuportável suapermanência em Pisa. Ele solicitou a cátedra de matemáticas de Pádua,que, disponível há dois anos, foi-lhe facilmente concedida. A carta naqual o doge de Veneza informa à Universidade da escolha que ele acabarade fazer mostra qual era já a reputação de Galileu, então com 28 anos.

Com a morte do professor Moleti, a cátedra de mate-máticas da Universidade está vaga há muito tempo. Co-nhecendo toda a importância desses estudos e sua utilida-de para as ciências principais, temos adiado o seu preen-chimento, por falta de uma pessoa com suficientes méri-tos. Hoje, apresenta-se o senhor Galileu, que ensina emPisa com um grande sucesso e é justamente consideradocomo o mais competente nessas matérias. Nós o encarre-gamos, por conseguinte, da cátedra de matemáticas porum período de quatro anos, com vencimentos de 180 flo-rins por ano [cerca de 1.800 francos].

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O sucesso do jovem professor ultrapassou as expectativas. A sala ha-bitual ficou logo muito pequena. Teve de ser trocada duas vezes e 2 milouvintes fizeram repercutir até em Veneza sua reputação de eloqüênciae de grande saber. Seu espírito amável e gracioso fez com que ele fos-se procurado pelos mais ilustres patrícios, e é uma honra para o Senadotê-lo favorecido liberalmente em todas as circunstâncias. Sua contrata-ção de quatro anos foi renovada e seus vencimentos sucessivamente au-mentados até a soma de mil florins, que lhe foi assegurada em carátervitalício. Vários desses aumentos eram recompensas pelas descobertasúteis e excelentes por meio das quais o seu gênio inventivo marcava,por assim dizer, todos os passos de sua carreira. A origem de um delesfoi, no entanto, completamente diferente. Uma jovem veneziana, pelaqual ele estava perdidamente apaixonado, tinha seguido Galileu até Pá-dua, onde seu relacionamento era público. Embora não se gabassem,então, de uma grande severidade de costumes, esta situação irregularfoi denunciada ao Senado, que não acreditou – diz um autor italiano– dever punir esse crime de um novo gênero. Querendo, ao contrário,em sua sabedoria, cobrir de confusão os invejosos delatores, virou a fa-vor de Galileu o fato alegado para perdê-lo: visto que, não estando so-zinho, ele tinha o dobro de despesas a fazer, foram dobrados os seusvencimentos.

Apesar desse acréscimo de renda, o jovem professor devia dedicar àsaulas particulares grande parte do seu tempo. A morte do seu pai o ti-nha tornado chefe de uma família numerosa, a qual era necessário au-xiliar. Suas cartas, sem exprimir uma grande ternura, mostram senti-mentos generosos e altruístas. Ele faz pausadamente e sem arrebata-mento, é verdade, tudo aquilo que é útil e necessário. É assim, porexemplo, que por ocasião de um casamento proposto para Lívia, a maisjovem das suas irmãs, ele escreve à sua mãe que, naquele momento,obrigado a ajudar seu irmão Michelangelo, que acabara de obter umemprego na Polônia, seria impossível para ele arcar com as despesas ne-

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cessárias. O partido parece, aliás, pouco vantajoso, e os recursos do fu-turo casal não permitiriam administrar uma casa. Mas ele acrescenta:

Entretanto, quando Michelangelo tiver devolvido o di-nheiro, se Lívia ainda quiser afrontar as misérias do mun-do, poderemos ocupar-nos dela. Até lá, eu queria somen-te que ela fosse mudada de convento. É melhor para elaesperar: poderiam citar-lhe, para convencê-la disso, damasdo mais alto nascimento e até mesmo rainhas que, para secasarem, esperaram ter o dobro da sua idade.

Quando Galileu chegou a Pádua, suas idéias sobre o sistema domundo estavam inteiramente formadas. É a ele próprio, sem dúvida,que se refere a seguinte narrativa, colocada na boca de um dos inter-locutores de seus diálogos:

Quando, ainda jovem, eu terminava meu curso de filo-sofia, um estrangeiro chamado Cristiano Urstino deu naAcademia algumas lições públicas sobre o sistema de Co-pérnico, do qual ele era partidário. A afluência foi grande,mas eu me dispensei de ir escutar a defesa de uma opiniãoque poucas pessoas aprovavam, e que me parecia comple-tamente absurda. Urstino, aliás, teve pouco sucesso. Seusouvintes permaneciam incrédulos e concluíam todos con-tra ele: um único dentre eles ousou afirmar-me que suateoria não era de forma alguma ridícula. Porém, como es-se era precisamente um homem de grande bom senso, la-mentei não ter assistido às lições. Interrogando, então, ospartidários de Copérnico, soube que todos haviam estadoinicialmente em oposição à sua doutrina e só a tinhamadotado forçados por argumentos sem réplica.

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Galileu pensa então que, nesse ponto, como em muitos outros,mais valia seguir o pequeno do que o grande número. Esta inclina-ção um pouco vaga, fortificada por contínuas meditações e pela lei-tura atenta do livro de Copérnico, logo se tornou para ele uma ina-balável convicção. Uma carta a Kepler, datada de 6 de agosto de1597, mostra suas opiniões bastante determinadas. Após haver rece-bido o Prodromo, no qual estão reunidos os mais fortes argumentosque haviam sido apresentados em favor de Copérnico, ele lhe escreve:

Lerei vosso livro com o máximo de bom grado, já quehá muito tempo sou partidário de Copérnico. Encontreinas suas idéias a explicação de um grande número de efei-tos naturais que, de outra forma, seriam inexplicáveis. Euescrevi tudo isso, mas me preservo de publicá-lo; a sortede Copérnico me assusta, eu o confesso: ele era digno deuma glória imortal, e tem sido colocado entre os insensa-tos. Eu seria mais ousado se existissem muitos homensassim como vós.

Sempre instado pelo desejo de propagar a verdadeira doutrina, Ke-pler responde:

Tenha confiança, Galileu; poucos matemáticos, tenhocerteza disso, se recusarão a marchar conosco. Se a Itáliacoloca obstáculos a tuas publicações, a Alemanha talvez teofereça maior liberdade, e se nada quiseres publicar, co-municai-me ao menos, em particular, aquilo que tiveresdescoberto de favorável a Copérnico.

Galileu em sua cátedra desfrutava, aliás, de grande liberdade. Osreformadores venezianos aplaudiam as ousadias que enriqueciam a

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Universidade, aumentando o número de seus alunos. Príncipes egrandes senhores de todas as partes da Itália e da Europa eram atraí-dos pela crescente reputação do ilustre professor; mesmo durante asférias, Galileu era mandado a Florença para dar lições ao jovem Cos-me, filho do grão-duque da Toscana. Embora se tivesse, então, sobre-tudo na Itália, grande cuidado para educá-los nas letras, esses nobresalunos, como se deve compreender, dedicavam apenas uma parte doseu tempo ao estudo. Eles queriam saber muito aprendendo pouco,e requeriam na ciência, como o rei Ptolomeu a Euclides, caminhosconfortáveis e fáceis. Galileu só exigia um pouco de confiança paraconduzi-los sem fadiga até as aplicações úteis que interessavam à suacuriosidade. Foi, como ele mesmo dizia, para semelhantes discípulosque ele inventou o compasso de proporção, instrumento hoje esque-cido e que, embora fundamentado em princípios completamente di-ferentes, poderia, de acordo com a sua utilidade, ser comparado à ré-gua de cálculo. Diz Galileu:

Ele permite evitar os longos estudos e ensinar em pou-cos dias aquilo que a aritmética e a geometria têm de maisútil para os trabalhos militares ou civis. Mas é necessárioum ensinamento de viva voz. O instrumento é difícil dedescrever e seus detalhes não podem ser facilmente apreen-didos por aqueles que não o viram em funcionamento.

Não tentaremos, como é compreensível, lutar contra essa dificul-dade e explicar apenas pelo discurso uma invenção engenhosa, masdepois eclipsada por tantas outras mais brilhantes. Galileu, entretan-to, dava importância a ela. É reclamando-a contra um obscuro pla-giador que ele mostra, pela primeira vez, sua verve de panfletário e ovigor da sua dialética. Nada se equipara à veemência de suas censu-ras e das ignomínias que ele inflige a Baltasar Capra. O público, su-

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perabundantemente esclarecido, tomou o partido de Galileu, e o li-vro de Capra, tornando-se tristemente célebre, foi proibido comodifamatório.

Entre as ciências acessórias que Galileu ensinava, figurava em pri-meiro lugar a arte da fortificação e da defesa das fortalezas. Galileucompôs sobre esse assunto um tratado completo que, recentementepublicado, honra o seu espírito sagaz e lúcido. Ele expõe muito cla-ramente os princípios dessa ciência nascente, tais como eles acaba-vam de ser estabelecidos pelos engenheiros italianos durante a segun-da metade do século XVI. A forma bastionada, os caminhos cober-tos, as tenazes,22 os cavaleiros23 ou posições defensivas exteriores sãoali descritos – com seus defeitos, é verdade. Porém, os profissionaisficam surpreendidos por encontrarem na obra de Galileu, sobre se-melhantes questões, muito mais senso prático do que nos outrospredecessores de Vauban.24

A invenção do termômetro, como a do compasso de proporção,data dos primeiros anos de sua estada em Pádua. Embora, nas obrasimpressas de Galileu não se trate deste instrumento, foram estabele-cidos muito claramente seus direitos de prioridade. O termômetrode Galileu compunha-se de um tubo de pequeno diâmetro termina-do por uma grande bola, mais ou menos do tamanho de um ovo degalinha. Após haver sido introduzida água nele, ele era virado, fazen-do-o mergulhar em um vaso também cheio d’água, e de modo a dei-xar bastante ar no tubo para que o líquido se elevasse apenas algumas

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22. Termo que se refere a uma obra de fortificação que apresenta um ângulo reen-trante, diante do inimigo. [N. dos T.]23. Obra de fortificação dominando as posições defensivas, na parte posterior. [N.dos T.]24. Sébastien Le Prestre, Senhor de Vauban (1633-1707), célebre engenheiro mili-tar francês que, durante o reinado de Luís XIV, exerceu a função de comissário defortificações, construindo diversas fortalezas. [N. dos T.]

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polegadas. Contrariamente ao que acontece com os instrumentosatuais, o ar, dilatando-se, abaixava a coluna líquida. A pressão baro-métrica e a tensão variável do vapor d’água perturbavam, como se vê,o instrumento, que, desprovido de pontos fixos, não podia oferecerindicações comparativas. Galileu construiu um grande número deles,e seu ensinamento difundiu rapidamente o seu uso nos hábitos da vi-da comum.

Em meados do ano de 1609, espalhou-se por Veneza a notícia deque certos instrumentos, fabricados na Holanda, permitiam perceberdistintamente os objetos afastados. Tal prodígio, do qual não se di-vulgava o segredo, encontrava muitos incrédulos. Galileu, aplicando-se em reproduzi-lo, imaginou a luneta que leva o seu nome. A arte detrabalhar o vidro tinha sido levada, então, em Veneza, mais longe doque em qualquer outra região. O precioso instrumento foi rapida-mente oferecido à admiração do Senado e à solicitude dos particula-res. Uma luneta, instalada no alto do campanário de São Marcos,causou uma alegria pública e universal. Os venezianos, tomados deespanto e de admiração, não deixavam de procurar e de descobrir, aolonge, navios completamente invisíveis aos olhos mais penetrantes.Tal segredo parecia assegurar a superioridade das esquadras que pu-dessem servir-se dele, permitindo-lhes surpreender à vontade um ini-migo ou evitar sua aproximação. O Senado, justo apreciador do ser-viço prestado à República, dobrou os vencimentos de Galileu, asse-gurando-lhe o usufruto deles pelo resto da sua vida.

A invenção não era tão nova quanto se acreditava em Veneza. Elajá havia sido verificada e difundida na Holanda e na França, embora commenos arte e sucesso. Mas estava reservada a Galileu a honra de sero primeiro a construir aparelhos de grande potência e de voltá-los pa-ra o céu, a fim de sondar os seus abismos. Quem poderia descreversua alegria e seu encantamento na presença desse grande e novo es-petáculo, quando – com os astros baixando, de alguma maneira, pa-

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ra revelar-lhe o segredo do seu esplendor e de sua imensidade – eleviu os limites do Universo subitamente recuarem, abrindo para osseus pensamentos, assim como para a sua vista, um caminho novo einfinito! Isaías havia dito: Ecce enim ego creo novos coelos et gaudebitis etexultabitis.25 O ditoso Galileu via a predição literalmente realizada:Deus havia criado para ele novos céus e sua alma flutuava na alegria.Dez meses depois da invenção da luneta, ele começava a fazer impri-mir o Sidereus Nuntius [Mensageiro celeste], tratando de escolher, en-tre as novas maravilhas que se ofereciam conjuntamente à sua visão,aquelas das quais era preciso apressar ou adiar a revelação. Mais pró-xima e mais acessível à nossa visão, a Lua devia ser o primeiro obje-to do seu estudo. A doutrina dos peripatéticos era, então, incontes-tada: imortal e inalterável como os outros corpos celestes, somente aforma esférica convinha, de acordo com os seus princípios, à perfei-ção imaginária de sua essência. O adversário perseverante e um tan-to passional de Aristóteles viu, com tanta alegria quanto admiração,o globo da Lua recoberto, ao contrário – tal como o da Terra – demontanhas e vales que, diversamente iluminados pelo Sol, manifes-tam, pelo alcance de suas sombras, sua elevação ou sua profundida-de. A luz do Sol, após haver dourado os cumes elevados, espalha-segradualmente sobre as planícies e até o fundo dos precipícios que ascircundam. Apontando em seguida sua luneta na direção das estrelas,ele percebe uma multiplicidade infinita de astros brilhantes que, per-didos nas profundezas do céu, enviam aos nossos olhos apenas raios

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25. Isaías, 65, 17-18. A citação completa e correta é a seguinte: “Ecce enim ego creocaelos novos et Terram novam et non erunt in memoria priora et non ascendent su-per cor; sed gaudebitis et exultabitis usque in sempiternum in his quae ego creo quiaecce ego creo Hierusalem exultationem et populum eius gaudium.” [Eis que eu voucriar novos céus e uma nova Terra. Dos primeiros não haverá memória nem mais vol-tarão ao pensamento. Por isso, alegrai-vos pelos séculos dos séculos com as coisasque vou criar, pois serão para Jerusalém uma alegria e para o seu povo, motivo de re-gozijo]. [N. dos T.]

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invisíveis. Eles tornavam-se distintos sem adquirir um diâmetro apre-ciável. O das estrelas de primeira grandeza mal parece aumentado. A explicação desse fato, que não escapou a Galileu, está na auréolaque as acompanha e as amplia sem deixar ver contornos precisos e deforma claramente definida. Ao contrário, os planetas, cujo diâmetro apa-rente é sensível, parecem arredondados como pequenas luas.

A Via Láctea atraiu particularmente a atenção de Galileu: em vezde uma nuvem sem forma distinta, formada por um vapor luminoso,ele mostrou ali a aglomeração irregular de grupos confusos de estre-las que o telescópio tornava distintas. Tal demonstração contrariavaa doutrina dos astrólogos, segundo a qual essas nebulosas obscure-ciam as inteligências submetidas à sua influência, enquanto as peque-nas estrelas assinaladas por Galileu não podiam desempenhar maisnenhum papel. Porém, a mais brilhante descoberta anunciada peloSidereus Nuntius é a dos satélites de Júpiter. Galileu confundiu-os noinício com pequenas estrelas, junto das quais Júpiter tinha vindo for-tuitamente colocar-se. Mas ele logo reconheceu que, ora adiante, oraatrás, eles não abandonavam o planeta e giravam incessantemente emtorno dele. Esses pequenos astros eram realmente, portanto, novosplanetas, até então invisíveis a todos os olhares. Ele lhes deu o nomede “astros de Médicis”, que o divino arquiteto parecia, diz ele, ter di-tado por si próprio. A adulação nos parece inocente, mas um poucoforte – embora essa não fosse a opinião de Belisário Vinta, secretá-rio e cortesão do grão-duque, que considerou a idéia de Galileu ge-nerosa, heróica e plenamente digna do seu admirável gênio.

Todas essas novidades espantavam os espíritos, e a singularidadede semelhantes resultados subvertia as regras da tradição. Em Pádua,elas eram recebidas com aplausos. A palavra clara e penetrante doilustre professor cativava seus ouvintes e arrebatava-os. Porém, noresto da Itália, numerosos contraditores resistiam com obstinação,chegando a opor as descobertas – para negá-las em conjunto – umas

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às outras. Como o telescópio fazia aparecer estrelas em todos os pon-tos do céu, dizia-se que eram falsas imagens, aparências duvidosas ouinteiramente vãs, criadas pelo próprio instrumento, que desfigura o es-petáculo dos céus, escondendo-o mais do que o mostrando para nós.Um professor de Bolonha alegava ter percebido três sóis ao mesmotempo: era fácil responder que nenhuma luneta mostrava satélites emMarte ou em Vênus, e que todas estavam de acordo em deixar vê-losao redor de Júpiter. Deus, dizia-se ainda, não cria nada em vão, e oUniverso – disso ninguém duvida – foi feito para o homem. Ora, pa-ra que podem servir tais planetas? Colocados fora do alcance da nossavisão e condenados à inação pela sua pequenez, eles permaneciam ocio-sos e supérfluos. – Isso é culpa da natureza, e não minha, respondiaGalileu; por que, aliás, recusar-lhes tão temerariamente um papel nagrande máquina celeste? Nada é senão aquilo que deve ser: quantos via-jantes têm descrito humildes plantas cuja utilidade é desconhecida eduvidosa! Ousar-se-á concluir, por isso, que elas não existem?

Um dos mais fervorosos contestadores de Galileu foi o húngaroHorki, a quem Kepler, seu amigo e mestre, censurou severamente apresunçosa ousadia. Sua obra arrogante e incisiva ofendeu vivamenteos amigos de Galileu e, provavelmente, o próprio filósofo ilustre que,cedendo – entretanto – aos apelos de Kepler, consentiu em não res-ponder a ela. “Não é da vossa dignidade”, escreveu Kepler, “custeardespesas de impressão para refutar semelhante adversário. Não quei-ras descer para a arena logo que o primeiro recém-chegado grite, co-mo nos bancos da escola: Responde, responde! De suggestu descende!”26

Antonio Roffini, de Bolonha, discípulo e amigo de Galileu, pen-sava em uma réplica de uma outra natureza. “Horki tem muita sor-te”, escreve ele a Galileu, “por ter reconhecido algumas pessoas ho-nestas que ele tinha visto em minha companhia e por ter sabido a

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26. “Responde, responde! Desce da tribuna!” [N. dos T.]

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profissão delas. Percebendo que elas o seguiam, ele fugiu.” Nós nãotemos a resposta de Galileu e eu não ouso assumir a responsabilida-de de adivinhar o sentido disso. Todo ofício deve sustentar seu ho-mem, e para que as pessoas honestas, das quais fala Roffini, pudes-sem viver do seu, seria necessário que não se tivesse, então (com re-lação à intervenção dos argumentos que eles administravam), o mes-mo modo de ver que nos dias atuais.

Alguns peripatéticos, aceitando a nova invenção, reivindicavam-napara seu mestre. Aristóteles diz, com efeito, em um de seus livros,que um homem, no fundo de um poço de grande profundidade, po-de ver as estrelas em pleno dia: a identidade entre esse poço e o te-lescópio parecia-lhes manifesta. Outros, menos engenhosos, mas nãomenos devotados ao mestre, recusavam-se a perder seu tempo discu-tindo descobertas que eles consideravam como fábulas, e simples-mente desviavam os olhos, desdenhando ver aquilo que Aristótelesnão havia ensinado. Tal era a conclusão de um panfleto de FrancescoSizy, ao qual Galileu não respondeu, limitando-se a escrever nas mar-gens de suas páginas esses quatro versos de Ariosto:

Soggiunse il duca: – Non sarebbe onestoche noi volessen la battaglia torredi quel che t’offerisco manifesto,quando ti piaccia, inanzi agli occhi porre.27

Esse pobre Sizy foi para a França buscar outros temas de controvérsia, eescolheu-os com tanta infelicidade que, em 19 de julho de 1618, foi enfor-cado e queimado na praça de Grève,28 por causa de seus erros filosóficos.

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27. “Não é necessário, responde o duque, expor ao acaso de uma batalha uma ver-dade que eu posso, quando vos aprouver, pôr diante dos vossos olhos.” LudovicoAriosto, Orlando furioso, canto V, estância 40. [N. do A.]28. Local, em Paris, onde eram executados os grandes criminosos. [N. dos T.]

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Opunham ainda a Galileu objeções de outra natureza: existem ape-nas sete metais, o candelabro do templo tem apenas sete braços e a ca-beça tem apenas sete aberturas. Por que existiriam mais de sete plane-tas? – Outros, enfim, diziam-lhe com seriedade: “Será crível que exis-tam astros no céu sem que Ptolomeu e seus sucessores os tenham co-nhecido?” O próprio Kepler, preocupado com suas idéias sobre o har-monioso concerto dos movimentos celestes, dificilmente devia apreciaras descobertas que pareciam perturbar a sua majestosa simplicidade.Uma única olhada em uma boa luneta foi o bastante para dissipar suasdúvidas. Sempre simples e direto, esquecendo por uma pronta mudan-ça todas as idéias preconcebidas, ele exclamou, cheio de admiração, to-mando emprestadas as palavras atribuídas a Juliano moribundo: Vicisti,Galilaee!29 Em seu entusiasmo, e sem preocupar-se com as questões depropriedade literária, Kepler fez imprimir em Praga o Sidereus Nuntius,acrescentando-lhe um belo prefácio que Galileu logo reproduziu. Ke-pler queixava-se a Galileu: “Eu tinha mandado imprimir vosso livro àsminhas próprias custas, e eis que o editor de Florença enviou à Ale-manha alguns exemplares da sua edição. Eu tinha, no entanto, o privi-légio. Se vós reconheceis em Florença a autoridade do imperador, eutenho o direito de queixar-me.” Porém, ele logo acrescenta, como parafrisar o tom da reclamação: “Vosso editor de Florença bem deveria en-viar-me, como indenização, uma boa lente convexa com doze pés de fo-co, porque é difícil conseguir uma por aqui.”

Embora o número de oponentes diminuísse pouco a pouco, Galileusempre temia os críticos e, quanto mais importante era uma descober-ta, mais ele hesitava em publicá-la. De outro lado, o emprego da lune-ta começava a difundir-se, e numerosos rivais poderiam arrebatar-lhe

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29. “Venceste, ó galileu!” – Últimas palavras atribuídas a Juliano, imperador deRoma entre 361 e 363, que tentou restabelecer o paganismo (sendo, por isso, cha-mado de “Juliano o Apóstata”). [N. dos T.]

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os direitos de prioridade. Ele conciliou tudo isso exprimindo seus re-sultados por intermédio de frases muito curtas, cujas letras trans-postas (as únicas que ele entregava ao público) deviam ocultá-los,embora assegurando-lhe a sua posse. Duas grandes descobertas fo-ram, assim, anunciadas nas seguintes linhas: Smaismn milne poeta leumibune leuctavinas; haec immatura a me jam frustra leguntur oy. Não é possíveldecifrar tais enigmas. Kepler, entretanto, tentou fazê-lo. A dificuldadede um problema era para ele um atrativo a mais. Não foi bem-suce-dido; da primeira linha, ele fez sair este verso bizarro: Salve umbisti-num Martis geminata proles.

E, contente com a sua perspicácia, sem deter-se para buscar o sen-tido da palavra umbistinum, ele concluiu que a descoberta era relativaao planeta Marte. Reorganizando as letras do segundo enunciado,também fez sair dele alguns fragmentos de frases que simulam umsentido astronômico. Uma delas começava assim: Solem gyrari. Ele nãopôde continuar. Porém, esta falsa e incompleta adivinhação é anteriorem vários meses à descoberta das manchas e da rotação do Sol. Elapareceria bem notável, se ignorássemos que o próprio Kepler haviachegado, por suas idéias teóricas, a acreditar na rotação do Sol. A sig-nificação verdadeira das duas linhas de Galileu era:

Altissimum planetam tergeminum observavi.Cynthiae figuras aemulatur mater amorum.

A primeira significa: “Eu observei o mais alto planeta [ou seja,Saturno] e o achei triplo.” E a segunda: “As formas de Vênus rivalizamcom as de Diana”, ou seja, o planeta Vênus tem fases como a Lua.

O anel de Saturno, como se sabe hoje em dia, apresenta-se a nóssob aparências muito diversas. Galileu, enquanto o observava, acredi-tou perceber dois satélites, situados de ambos os lados do planeta, eque algumas vezes desapareciam, como se Saturno devorasse seus fi-

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lhos.30 Ele só fez, portanto, entrever – sem compreendê-la – esta es-tranha e única singularidade cujo mistério só foi resolvido por Huy-ghens. A observação das fases de Vênus impressionou mais ainda osastrônomos. Elas eram a conseqüência necessária do sistema deCopérnico. Seus adversários haviam notado isso e tiravam vantagemda ausência dessas fases. A nova observação derrubava, portanto, umade suas fortalezas. Galileu não deixou de constatá-lo, mas sem acre-ditar por isso – como alguns de seus admiradores – que ele havia ex-tirpado as últimas dúvidas e fechado a boca dos contraditores. Escre-veu a um amigo:

Que minhas observações forneçam belas conseqüên-cias! Mas vós me fazeis rir acreditando que elas vão dissi-par todas as nuvens e fazer cessar todas as discussões. A demonstração foi levada há muito tempo à derradeiraevidência. Nossos adversários já teriam sido persuadidos,se eles pudessem sê-lo; mas eles querem enganar a si pró-prios. Sua obstinação é cega e sua ignorância, invencível.As estrelas, descendo do céu, proclamariam elas mesmas averdade sem que eles se decidissem a reconhecê-la.

As insinuações dos invejosos, misturando-se aos clamores dos pe-ripatéticos, não podiam, no entanto, obscurecer a glória de Galileu eimpedir que seu nome crescesse. Sua fama espalhava-se por toda aItália. O grão-duque da Toscana – feliz em fazer, com isso, recair obrilho sobre sua pátria – acolhia com solicitude as proposições doilustre astrônomo, que desejava trocar a cátedra de Pádua por uma

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30. Saturno (ou Crono, na mitologia grega) era o antigo rei dos deuses. Sabendo queum de seus filhos tomaria o seu lugar – e não querendo perder seu trono – ele trata-va de devorá-los logo que eles nasciam. No entanto, sua esposa Réia conseguiu salvartrês das crianças, entre as quais estava Júpiter, que destronou o pai. [N. dos T.]

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posição menos laboriosa. “Durante os melhores anos de minha vida”, es-creveu Galileu a um amigo, “contei as horas do dia pelas do trabalho,dissipando sem descanso, para o uso alheio, aquilo que a natureza eo estudo me deram de habilidade e de ciência.” Trinta anos mais tar-de, pensando nos dias de esperança, de trabalho e de doce segurançatranscorridos em uma cidade onde, sem temor e sem inquietude, elehavia contemplado tantas maravilhas e proclamado tantas verdadesilustres, ele escreveu: “Foi em Pádua que eu passei os melhores anos deminha vida!” Sob as mesmas palavras, que diferença de tom!

Galileu não tinha a pretensão insensata de obter um ordenado dogrão-duque sem prestar-lhe nenhum serviço. Sentindo em si umafonte sempre abundante de invenções e de verdades novas, não dese-java o repouso para descansar seu espírito, mas para requerer dos es-tudos mais continuados e mais livres inspirações ainda mais elevadase trabalhos mais aperfeiçoados. “O príncipe a quem eu estiver ligadonão lastimará sua liberalidade”, escrevia. “Minhas invenções lhe perten-cerão e poderão prestar-lhe grandes serviços.” Seu amigo Sagredo, noentanto, deplorava sua resolução e previa infelizes conseqüências:

Para retornar à vossa pátria, vós deixais o lugar que vosconvinha. Vós seguis um príncipe ilustre, cheio de virtu-de e de grandes esperanças. Porém, comandando aqui aque-les que comandam os outros, vós não tendes de obedecersenão a vós mesmos. A Corte é um mar tempestuoso, on-de ninguém pode vangloriar-se de sempre evitar os esco-lhos e os naufrágios.

Galileu, não levando em conta esses sábios conselhos, partiu paraFlorença. Ao título de matemático do grão-duque, Cosme de Mé-dicis juntava, segundo o seu desejo, o de filósofo. Seus vencimentosforam fixados em mil escudos [11 mil francos atuais] por ano, e dois

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anos graciosamente pagos antecipadamente permitiram que ele qui-tasse o dote prometido a suas irmãs, do qual uma parte – garantidapor seu irmão Michelangelo – ainda era devida a seus cunhados.

II

Galileu era conhecido há muito tempo na corte de Florença. Elehavia estado lá por diversas vezes, durante as férias da Universidade,para dar lições ao jovem filho do duque. As cartas escritas durantesua permanência em Pádua atestam relações contínuas e íntimas comaqueles que estavam em torno do príncipe. Algumas são relativas àcompra de uma pedra ímã muito singular, cujas propriedades extraor-dinárias, claramente descritas por Galileu, pareciam difíceis de serexplicadas pelos físicos. Esta pedra, pela qual o grão-duque pagou200 escudos de ouro, atraía o ferro à distância e o repelia de perto.Galileu, que durante quatro dias pôde estudá-la atentamente, decla-rou que ela diferia de todos os outros ímãs conhecidos. A pedra in-felizmente foi perdida e já no tempo de Leibniz – que deplorou es-ta perda – ignorava-se o que havia acontecido com ela.

O ilustre astrônomo amava os esplendores do mundo e o convíviocom os grandes. Ele achava-se muito feliz em Florença: a íntima fa-miliaridade com o grão-duque e a profusão de seus favores davam-lhe muito crédito na corte, onde todos o aplaudiam e o cercavam deamabilidades. Poucos dias após a sua chegada, Cosme de Médicisofereceu-lhe, para passar o fim da primavera, aquela de suas vilas quemelhor lhe conviesse. Infelizmente, o governo de Florença estava lon-ge de ter, diante da corte de Roma, a mesma independência que o deVeneza: Galileu deveria aprender isso depois de uma triste experiên-cia. Como se ele previsse que as dificuldades viriam daquele lado, umdos primeiros usos que fez de sua liberdade foi ir até Roma, desejo-so de estabelecer ali amizades úteis entre os conselheiros da Santa Sé

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e de fazê-los aderir à verdade das suas descobertas. Ele foi acolhidocom grande consideração. A Academia dos Lyncei, fundada pelo prín-cipe Cesi, apressou-se em abrir-lhe suas fileiras. Ela deve à sua incor-poração a mais bela parte de sua glória. Galileu aceitou o título delynceus, do qual constantemente ufanou-se, inscrevendo-o em todasas suas obras, e no fim de sua vida, após ter perdido a visão, ele gra-cejava tristemente sobre o deplorável destino de um lince31 tornadocego.

Galileu viu o papa e foi bem recebido por ele. Beijou-lhe os pés,segundo o costume. Porém, o santo padre fez com que ele se levan-tasse imediatamente e, por uma deferência que foi atentamente ob-servada, não admitiu que ele dissesse uma única palavra de joelhos.Ele deixou em Roma numerosos amigos, e os próprios adversáriosdas suas idéias não pensaram de forma alguma em persegui-lo. O car-deal del Monte escreveu ao grão-duque:

Galileu deu uma grande satisfação aos que o viram eespero que ele próprio tenha partido satisfeito. Suas des-cobertas, apreciadas pelos homens instruídos e eminentesda cidade, foram consideradas tão exatas quanto maravi-lhosas. A antiga Roma, reconhecendo o seu raro mérito,teria erguido para ele uma estátua no Capitólio.

O tempo de sua estada em Roma não foi perdido para a ciência.Foi lá que, pela primeira vez, nos jardins do cardeal Bandini, Galileumostrou distintamente as manchas do Sol. Já no ano precedente, eleas tinha percebido em Pádua. Porém, combatido incessantemente, eletemia a contestação e guardava para si mesmo uma verdade tão nova,enquanto não tinha dela uma demonstração mais do que certa. Um

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31. Esse felino era conhecido por sua extraordinária capacidade visual. Contam aslendas que ele podia até mesmo ver através das paredes. [N. dos T.]

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erro seu teria sido censurado como um imperdoável engano. A exis-tência das manchas era indubitável: ele percebia-as tão distintamen-te quanto a tinta sobre o papel branco. Era sobre a sua verdadeira na-tureza e sobre as leis do seu movimento que ele acreditava dever man-ter seu julgamento em suspenso. Esta prudência permitiu que o ho-landês Fabrícius e o jesuíta alemão Scheiner se antecipassem na pu-blicação da descoberta que Galileu considerava – muito sem razão,ao que parece – como o maior segredo existente na ordem da natu-reza. Scheiner, utilizando o pseudônimo de Appelles, publicou, em1611, as cartas endereçadas a Marcos Velser, de Augsburgo, nas quaisele assinala as manchas do Sol. Porém, não podendo admitir a obs-curidade no próprio seio da luz, ele as explica por meio da suposiçãoinadmissível de planetas que se projetam sobre o disco do Sol, circu-lando por baixo dele. Fabricius, mais atrevido, em uma obra publica-da igualmente em 1611, havia ousado afirmar que as manchas faziamparte da substância do Sol e que o seu deslocamento contínuo e re-gular provava a rotação do Sol sobre si mesmo. É somente em 1613que Galileu, sem ter lido Fabricius e para retificar os erros de Schei-ner, escreve a Marcos Velser três cartas sucessivas, nas quais ele fazconhecer suas próprias observações. Salienta, antes de mais nada, osingular raciocínio de Scheiner que, na pura e inalterável substânciado Sol, não quer admitir nada de tenebroso. “Como sua perfeição ex-clui qualquer natureza cambiante, a luz que nele reside, como em suafonte, deve subsistir em sua integridade e seu brilho, sem jamais so-frer declínio.” Galileu limita-se a provar que as manchas engendram-se e dissolvem-se continuamente como as nuvens acima de nossas cabeças, e que essas nuvens, se a Terra fosse luminosa, poderiam im-pedir a passagem dos raios e produzir, para um observador distante,aparências quase semelhantes. Fabricius, na obra publicada em 1611,em Wittemberg, havia chegado às mesmas conclusões. Ele admite arotação do Sol, da qual o movimento das manchas é a prova. A im-

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portante descoberta pertence-lhe, portanto, sem contestação possí-vel. Porém, Kepler a havia adivinhado e Galileu, sem publicá-la, haviachegado a ela na mesma época e talvez, provavelmente, alguns mesesantes.

De volta a Florença, e sem abandonar a astronomia, Galileu ocu-pou-se, a pedido do grão-duque, da questão, já tratada por Arqui-medes, do equilíbrio dos corpos flutuantes. Na obra que publicou, opoder do seu gênio se mostra sob uma nova faceta. Afastando-secompletamente do método experimental, ele não vai mais buscar nasexperiências a solidez e a consistência dos princípios, e é em nomede uma lei geral, admitida a priori, que ele demonstra e prevê, ao con-trário, os resultados necessários da experiência. Esta lei, afortunada-mente, mostrou-se verdadeira; é o célebre princípio das velocidadesvirtuais. Galileu havia adivinhado há muito tempo o seu enunciado eo seu alcance. Já em Pádua e no arsenal de Veneza, na presença de po-derosas máquinas, com o auxílio das quais a fraqueza produzia osefeitos da força, ele havia compreendido que é possível transformar– mas não criar – a potência motriz, e que nenhuma invenção conse-gue enganar a natureza. Em um tratado, publicado pela primeira vezem francês pelo padre Mersenne, em 1632, ele afirma formalmenteque uma grande obra exige necessariamente um grande trabalho eque uma pequena força, por mais que se faça, não pode produzir se-não pequenos efeitos. Esta verdade fundamental é exposta por ele emtermos formais. No tratado dos corpos flutuantes, ele invoca o mes-mo princípio, e a aplicação engenhosa que faz dele mostra toda ageometria do seu espírito. Lagrange, 200 anos mais tarde, devia se-guir os mesmos passos. O princípio da sua imortal obra sobre a me-cânica analítica é precisamente o de Galileu, ao qual ele acrescentaprofundos e brilhantes desenvolvimentos. Porém, esses métodos,vinculando todos os fenômenos a um princípio distante, não ofere-cem – é preciso reconhecer – senão vagas noções sobre as causas pró-

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ximas e sensíveis. Mesmo hoje em dia, quando os progressos da ciên-cia tornaram esta regra única e universal tão sólida quanto ela é su-blime e importante pelas suas conseqüências, ela não fornece, no en-tanto, senão explicações imperfeitas, demonstrando a necessidadedos resultados sem fazer com que possamos perceber a razão disso.Galileu talvez tenha encontrado esses inconvenientes sem dar-se con-ta exatamente deles. É provável, pelo menos, que, entrando mais fun-do na análise das forças que estão em jogo e das pressões que elasproduzem, ele tivesse tirado de Torricelli32 a glória de inventar o ba-rômetro. Ele narra, com efeito, num diálogo publicado dez anos maistarde, que uma bomba aspirante, instalada na casa de um de seus ami-gos, fazia facilmente a água subir até uma certa altura, mas que a co-luna, tendo atingido 32 pés, recusava-se absolutamente a elevar-seacima disso. É ao estudo desse fato, como ninguém ignora, que sedeve a invenção do barômetro. Apesar da perspicácia do seu espírito,Galileu, habituado a eliminar, no estudo dos fluidos, a consideraçãodas forças postas em jogo, não reconheceu a verdadeira causa do fe-nômeno. Ele explica a ascensão da água por intermédio da “atraçãodo vazio”, que puxa a coluna de baixo para cima e se encontra, segun-do ele, medida pela sua altura, de modo que, para diferentes líquidos,as colunas estariam na razão inversa das densidades. Porém, ele logoabandona esse tema, sem perceber a bela descoberta da qual chegoutão perto.

As tentativas de Galileu de explicar o fenômeno das marés são damesma época. Ele pensava que a rotação do nosso globo produzia,agitando as ondas do mar, o seu eterno fluxo e refluxo, e suas agita-ções tão bem reguladas se pareciam, segundo ele, com as oscilaçõesda água em um vaso continuamente em movimento. Esta teoria nãoresiste a um exame atento e sério. Galileu a incluía, entretanto, na re-

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32. Evangelista Torricelli, físico italiano (1608-1647). [N. dos T.]

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lação das provas decisivas do movimento da Terra; apesar da habili-dade que demonstra ao defendê-la, é de se lamentar que tenha con-cedido a ela lugar em um dos seus mais excelentes escritos.

É preciso citar, por fim, entre as investigações que o ocupavam du-rante esse período, o estudo dos movimentos aparentes da Lua. Em-bora ela nos apresente sempre praticamente a mesma face, é possívelobservar, olhando-a de perto, variações e oscilações importantes. É ofenômeno da “libração”, estudado depois com tanto zelo e sucessopor Helvétius e por Cassini. Porém, Galileu, que foi o primeiro a as-sinalá-lo, não reconheceu o seu alcance e a sua verdadeira natureza.O fenômeno reduzia-se, segundo ele, ao que os astrônomos denomi-nam um efeito de paralaxe. Ele é devido à nossa posição variável comrelação ao centro da Terra. De acordo com esta explicação, a linha re-ta que une o centro da Terra ao da Lua atravessa sempre a superfícieda Lua no mesmo ponto, de modo que, para um observador coloca-do no centro da Terra, não haveria nenhuma oscilação aparente. Quan-do a Lua está no zênite, nós a vemos precisamente como esse obser-vador fictício; em qualquer outro caso, ela se mostra em uma direçãodiferente e não volta para nós a mesma porção de sua superfície. Eisaí uma explicação real, mas insuficiente, e os trabalhos de Galileu nãonos fazem perceber qualquer outra.

Partidário zeloso da doutrina de Copérnico, Galileu propagava-aincessantemente por meio de conversações e de correspondência. Ascópias de suas cartas tinham circulado por toda a Itália e levantarampoderosos contraditores. Eis o que ele dizia:

As Escrituras são sempre verdadeiras. Têm toda a au-toridade sobre as questões de fé, mas sua misteriosa pro-fundidade é muitas vezes impenetrável para o nosso fracoespírito. Cometemos um grande erro em procurar nelaslições de física, que não estão lá ou que não podem ser

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compreendidas. Se a verdade encontra-se nos livros sagra-dos, ela não é clara para todos, sendo necessário servir-se,para percebê-la, da inteligência e da razão que Deus nosdeu. O Espírito Santo ditou-as e é muito verdadeiro queele jamais nos engana. Mas, quando nós interrogamos aNatureza, é ele também quem nos responde e nos ensina.(...) Por que, aliás, recusar a discussão dos fatos? Se vóssois os mais fortes e os mais bem fundamentados a res-peito dessas matérias, que vantagens não tereis vós quan-do nós as estudarmos juntos! As obras de Deus não sedesmentem umas às outras; as contradições são apenasaparentes. É preciso conciliá-las, porque a ciência não po-de ser um enfraquecimento da fé.

O próprio Galileu põe em prática suas recomendações. Certo desair-se vitorioso, ele segue seus adversários no terreno onde eles seentrincheiraram e anula todas as suas objeções. O próprio milagre deJosué não o assusta e ele encontra um meio de tirar vantagem dele.

O Sol, ao se deter, teria diminuído e não aumentado aduração do dia. Qual é, com efeito, o movimento do Sol?É o seu deslocamento anual na eclíptica. A revolução quefaz com que a noite se suceda ao dia é a da esfera estrela-da que arrasta, é verdade, o Sol, mas que não pertencepropriamente a ele. Deter o Sol é, portanto, impedi-lo deretrogradar na eclíptica sem, por isso, suspender o seumovimento diurno. Ao obedecer à ordem de Josué, ele te-ria iluminado durante alguns minutos, pelo menos, o ex-termínio dos amorreus. Está escrito, aliás, que Josué de-teve o Sol no meio do céu; o que devemos entender porisso? Que ele estava no meridiano? A quantidade dos tra-

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balhos realizados não permite acreditar nisso. A noite es-tava próxima, o Sol estava perto do horizonte. Se asEscrituras o colocam no centro do mundo, é para confir-mar o sistema de Copérnico, do qual elas nos fornecem,assim, uma nova comprovação.

Tudo isso é dito com a seriedade que a prudência recomenda.Quando a ironia aparece, ela dirige-se aos contraditores, jamais aosescritos sagrados, e não encontramos nele, em nenhum grau, o tomque – lembrando-nos de Voltaire – somos involuntariamente tenta-dos a imaginar. Galileu, como bem demonstra a sua correspondência,pouco se interessava pela letra das Escrituras. Porém, sem pensar deforma alguma em fazer zombarias, ele só quer conquistar o direitode propagar livremente a sua doutrina.

Os teólogos, no entanto, longe de aprová-lo, perseguiam-no do al-to de suas cátedras, com um ódio cego e violento. Um capuchinho,pregando na igreja de Santa Maria di Novella, em Florença, escolheucomo texto as seguintes palavras do Evangelho: Viri galilaei, quid statisaspicientes in coelum?33 Bradando contra as curiosidades vãs e supérfluase as sutis invenções dos matemáticos, ele levanta-se com escárniocontra a orgulhosa confiança que elas alimentam. Embora o líder daordem lhe pedisse desculpas por este insulto público e se declarasseenvergonhado por ter de responder por todas as bobagens saídas doscérebros de 30 mil ou 40 mil monges, Galileu não estava tranqüilo.Todo esse barulho pressagiava a tempestade. Ele acreditava na exis-tência de uma liga organizada por inimigos invisíveis para desacredi-tá-lo e prejudicá-lo. Na esperança de conhecer suas forças e desco-brir suas maquinações, para com isso frustrar as tramas secretas, eleviajou para Roma uma segunda vez.

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33. “Varões galileus, por que estais olhando para o céu?” (Atos, I, 11). [N. dos T.]

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Os sentimentos dos príncipes da Igreja estavam longe de ser favo-ráveis a ele. A doutrina do movimento da Terra, debatida nos sacrosconselhos, havia sido solenemente reprovada e condenada sem apela-ção. Depois de haver consolidado suas convicções pelo consentimen-to unânime dos mais célebres teólogos, Paulo V decidiu, com sua au-toridade soberana e infalível, que a opinião que coloca o Sol no cen-tro do mundo era um erro e uma impiedade. Sustentar que a Terranão está colocada no centro do mundo e que ela não é imóvel eratambém, segundo ele, uma opinião falsa em si mesma e, no mínimo,errônea na fé. Uma decisão tão formal impunha o silêncio aos con-traditores. Não era mais permitido duvidar, muito menos discutir eexaminar um erro que havia se tornado sagrado e inviolável. Galileu,entretanto, considerando a verdade como a causa comum de todas aspessoas honestas, tentou fazer com que fosse revogada uma senten-ça tão absurda quanto definitiva. O embaixador da Toscana, Guicciar-dini, aconselhou prudentemente o grão-duque a moderar um zeloinútil e a apressar a partida do ardoroso astrônomo. “O papa”, diziaele, “é notoriamente inimigo tanto do pensamento quanto da ciên-cia. Para fazer parte da sua corte é preciso mostrar-se ignorante, e omomento é mal escolhido para proclamar uma idéia filosófica.” Po-rém, Galileu não queria ouvir nada. Sem escolher seus adversários esem temê-los, ele fazia – nas suas conversas e nos numerosos círcu-los – uma propaganda incessante e, por vezes, eficaz. Mesmo refu-tando com paciência as mais ridículas objeções, ele lamentava, em no-me da honra do espírito humano, ter de responder seriamente a to-das as extravagâncias que chegavam aos seus ouvidos. “Os animais”,diziam-lhe com gravidade, “têm membros e articulações para se mo-verem. A Terra, que não tem nada disso, não pode mover-se comoeles.” “A cada planeta, como se sabe, está ligado um anjo especial-mente encarregado de conduzi-lo, mas, no caso da Terra, onde pode-ria habitar o seu condutor? Na superfície? Então, ele poderia ser

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visto. No centro? Esta é a morada dos demônios.” “A corrida causafadiga nos animais; se a Terra se deslocasse com um movimento tãorápido quanto aquele que lhe atribuem, ela há muito tempo estariafatigada por um tão grande esforço, tendo de repousar.”

Escutando essas objeções incríveis e insensatas, Galileu nem sem-pre se incomodava de rir e de fazer rir à custa daqueles que ousavamproduzi-las. Sua maneira de discutir era das mais brilhantes. Aparen-tando compartilhar da opinião de seus adversários, ele os deixava ex-por e desenvolver suas idéias com plena confiança, esperando, paradar início à sua argumentação e às suas zombarias, que eles tivessemfornecido uma abundante matéria-prima. Conquistava, assim, pode-rosos inimigos. O grão-duque, cheio de afeição e de solicitude paracom ele, fez com que seu secretário lhe escrevesse: “Sua Alteza pen-sa que, permanecendo por mais tempo em Roma, vós podereis encon-trar graves desgostos. Visto que vós vos saístes de vosso assunto comhonra, ele vos aconselha a voltar a Florença o mais cedo possível, semdespertar o gato que dorme.” Seguindo esse sábio conselho, Galileufez com que o célebre Belarmino34 lhe desse um atestado que o isen-tava de qualquer responsabilidade nas questões debatidas e soberana-mente resolvidas.

Pouco tempo depois de retornar a Florença, ele enviou ao prínci-pe Cesi um microscópio. A carta que acompanhava a remessa e aque-la que ele recebeu como resposta são os únicos vestígios desta inven-ção, que – no entanto – não lhe é contestada. Sempre atento aosacontecimentos do céu, a aparição simultânea de três cometas nãopoderia deixar de preocupá-lo. Bastante adoentado, nessa época, eobrigado a poupar suas forças, ele não pôde observá-los com regula-ridade. Mas seus amigos, que o mantinham informado sobre suasaparências, recolheram cuidadosamente suas idéias sobre a natureza

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34. Cardeal e teólogo jesuíta. [N. dos T.]

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do misterioso fenômeno. O resumo dessas conversações, publicadopor Mario Guiducci, deu lugar a uma polêmica que se tornou célebre.Os jesuítas do Colégio Romano, considerando-se implicitamente ata-cados por Guiducci, responderam em um longo panfleto intitulado LaBilancetta, publicado com o pseudônimo de Fossario Sarsi, que atraiupara eles a vigorosa réplica intitulada por Galileu Il Saggiatore.

Il Saggiatore contém observações de um grande senso sobre a físicae sobre o método experimental. Os italianos consideram-no, alémdisso, como um modelo de bom humor. É uma obra clássica e, ape-sar da aridez do tema, bons juízes não temeram colocá-la ao lado dasobras-primas de Pascal e de Molière. Seria necessário, para que eupudesse contestá-los, um conhecimento mais aprofundado da línguaitaliana. Devo dizer, entretanto, que, numa primeira leitura, o Saggia-tore parece-me um tanto longo. Galileu, que quer dizer tudo, carecemuitas vezes de vivacidade e de precisão. Ele balança por demasiadotempo o dardo, antes de lançá-lo. Longe de abreviar seu pensamen-to, ele estende-o, desenvolve-o e arrefece suas brincadeiras, prolon-gando-as demais. Citemos um exemplo: Guiducci faz observar quealgumas estrelas invisíveis a olho nu são percebidas muito claramen-te com a luneta, e para essas, diz ele, o aumento de dimensão é infi-nito. O autor da Bilancetta critica essa linguagem. De acordo com osprincípios de Galileu, o aumento, diz ele, é o mesmo para todos osastros. Ele deve, portanto, ser infinito em todos os casos, e a mani-festa extravagância desta conclusão assegura-lhe um fácil triunfo.Galileu responde-lhe:

Quando Guiducci falou de um aumento infinito, elenão supôs que um leitor pudesse ser bastante implicantepara tomar a expressão ao pé da letra e atacá-lo com basenisso. Ninguém se espanta com esta maneira de falar nema acha obscura, e se diz a todo instante “infinito” em vez

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de “imenso”. Porém, eu vos pergunto, senhor Sarsi: se osábio se levantasse para vos dizer que o número dos tolosé infinito, o que vós lhe responderíeis?

A tirada é mais mordaz do que delicada e, mesmo a um jesuíta,Pascal talvez tivesse hesitado em fazê-la. É possível afirmar, pelo me-nos, que ele teria ficado nisso, sem acrescentar – como Galileu – que,sendo a Terra limitada, o número de seus habitantes também o é ne-cessariamente e, por conseguinte, também o dos tolos, tão grandequanto se queira supor a proporção deles.

No momento em que o Saggiatore era entregue ao público, o cardealBarberini acabava de ser chamado ao trono pontifical com o nome deUrbano VIII. Ele conhecia e gostava há muito tempo de Galileu, quese apressou a dedicar sua obra a ele e foi para Roma, para felicitá-lo pe-la sua elevação. Ele obteve diversas audiências particulares, nas quais fi-cou muito contente com o santo padre e o santo padre com ele. Seucrédito e a consideração de que ele desfrutava foram notados e inveja-dos. Urbano VIII fez-lhe muitos agrados, concedendo uma pensão aseu filho Vincenzo e acrescentando-lhe, por sua própria conta, umgrande número de agnus Dei.35 Suas conversas giravam em torno do mo-vimento da Terra. O santo padre dignou-se demonstrar-lhe seus erros.Embora conservando uma atitude submissa e respeitosa, Galileu opôsaos seus raciocínios objeções modestas, com as quais Urbano VIII nãopareceu de forma alguma ficar ofendido; declarando-o, ao contrário,tão sábio quanto devoto, conservou por ele sua afeição e sua estima.Quando da sua partida, ele escreveu ao grão-duque:

Foi com uma afeição paterna que nós recebemos nossoquerido filho Galileu. Sua glória brilha no céu e sua repu-

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35. Medalhão bento que trazia a efígie do cordeiro místico. [N. dos T.]

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tação enche a Terra. Ao mérito das letras, ele reúne o ze-lo de uma sincera devoção. A abundância de nossos votosacompanha-o até sua pátria, para onde, chamado por vós,ele hoje retorna.

Sem se preocupar com os empecilhos e os perigos, Galileu, semprepremido pelo mesmo zelo para com o verdadeiro sistema do mundo,trabalhava sem descanso para esclarecê-lo e prová-lo. Irresistíveis ar-gumentos fermentavam no seu pensamento, e ele suportava impacien-temente a lei do silêncio imposta por Paulo V. Tranqüilizado pela ami-zade de Urbano VIII, ousou pela primeira vez, em uma obra impres-sa, tratar dessas perigosas questões, publicando seus diálogos sobre ossistemas de Copérnico e de Ptolomeu. O malicioso refinamento doprefácio é extremamente habilidoso e compreende-se que ele tenhapodido iludir a prudência de censores desatentos ou pouco inteligen-tes, que aprovaram o livro em nome da corte de Roma.

Foi promulgado em Roma, há alguns anos, um édito sa-lutar que, para prevenir um perigoso escândalo de nossoséculo, impôs silêncio aos partidários da opinião pitagó-rica sobre o movimento da Terra. Diversas pessoas têm te-merariamente afirmado que esse decreto é o resultado deuma paixão mal informada e não de um exame judicioso.Sustentam que os teólogos, ignorantes das observaçõesastronômicas, não deviam cortar as asas dos espíritos es-peculativos. Tais queixas incitaram meu zelo. Plenamenteinstruído acerca desta prudente determinação, quero darmeu testemunho da verdade. Quando a decisão foi toma-da, eu estava em Roma, onde fui aplaudido pelos maiseminentes prelados. O decreto não foi publicado sem queeu fosse informado disso. Meu objetivo, nesta obra, é

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mostrar às nações estrangeiras que, sobre esta matéria, sa-be-se na Itália tanto quanto é possível imaginar em outroslugares. Reunindo minhas especulações sobre o sistemade Copérnico, quero fazer com que saibam que todas elasjá eram conhecidas antes da condenação e que se devem aesta Terra não somente os dogmas para a salvação da al-ma, mas também as descobertas engenhosas para as delí-cias do espírito.

Embora os diálogos de Galileu sejam compostos com uma grandearte e se encontrem neles, juntas em cada página, a clareza e a graçado seu espírito, os progressos das luzes e da razão tornaram, temosde reconhecer, a sua leitura um pouco difícil e cansativa: Galileu na-da omite e sente prazer em dizer tudo. A causa já foi ganha há mui-to tempo para que uma defesa tão longa possa ainda interessar – e,muitas vezes, o leitor pode achar que, para insistir tanto, é precisoter bem pouca consideração pela sua inteligência. A grande extensãoé desculpável, é verdade, pelo próprio plano do livro. Galileu confe-re aos seus diálogos o movimento e a vida de uma conversação inte-ressante e variada. As interrogações e as reflexões do peripatéticoSimplício justificam os dois interlocutores, Sagredo e Salviati, cujainalterável paciência acumula tantos minuciosos detalhes. Misturan-do as comparações mais familiares aos argumentos mais claros e a ra-zões irresistíveis, retificando seus pontos de vista ou confirmando-os mutuamente, eles se põem judiciosamente de acordo sobre todasas questões debatidas. De tempos em tempos, eles se reúnem parapressionar Simplício com uma força irresistível. Atormentam-no ale-gremente e fazem-no perder a paciência, mas não conseguem conven-cê-lo. Quando, por fim, seu adversário, imolado ao riso do leitor, pa-rece não ter mais nenhum refúgio, os dois filósofos não ousam, en-tretanto, ir até o fim. O simplório Simplício, obstinado ao ponto de

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fechar os olhos, admira mais do que nunca Aristóteles e continuaacreditando que a Terra está imóvel. A obra termina como começou,por um ato de prudência. E, como resposta ao último argumento deSalviati: “Vossos raciocínios”, diz Simplício, “são os mais engenho-sos deste mundo, mas eu não os considero nem verdadeiros nem concludentes.” E, pensando em uma reflexão que considera muito sábia, feita outrora diante dele por uma pessoa eminente, diante daqual é necessário inclinar-se: “Nós não observamos”, diz, “senão asaparências: com que direito pretendeis vós limitar o poder de Deus,determinando as vias pelas quais é do agrado dele produzi-las?” –“Vós tendes razão”, respondem os outros dois, “admiremos juntos asabedoria infinita que tudo criou e não tentemos penetrar em seusabismos.”

É com esta prudente reflexão que os três amigos se separam e opróprio autor, sem nada assegurar nem nada negar, entrega – comoele teve o cuidado de dizer – a decisão aos mais competentes. To-davia, tal comedimento não podia desarmar seus adversários. Essasdissimulações não podiam esconder um desprezo manifesto pela teo-ria de Ptolomeu, e a ironia transparece em cada página do livro.Havia, aliás, uma evidente temeridade em debater questões já julga-das, e inusitada insolência, da parte de um leigo, em reproduzir ob-jeções rejeitadas há muito tempo por uma autoridade infalível. A ex-posição detalhada e complacente de uma doutrina já fulminada pelasexcomunhões de Roma era uma desordem que alimentava o espíritode independência. Os inimigos de Galileu fizeram repercutir pelaItália os seus murmúrios e as suas acusações. Teólogos e peripatéti-cos disputavam para ver quem se insurgiria contra ele. Os primeiros,apoiados na palavra de Deus, desprezavam as dificuldades baseadasno simples raciocínio e, com zelo amargo, o atormentavam com ascondenações das Escrituras. Foi dito, por exemplo: “O céu está no al-to e a Terra embaixo. Se a Terra girasse em um círculo que abranges-

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se Mercúrio, Vênus e o Sol, ela estaria realmente situada embaixo?”“Quando Josué proibiu o Sol de mover-se na direção de Gabaon,Deus, obedecendo à sua voz, o deteve no meio do céu. Não é possí-vel ignorar nem esquecer isso. É, portanto, o Sol que se move; é pos-sível deter aquilo que está imóvel?” “Quando a sombra retrograda so-bre o quadrante de Achias, o Sol ascende dez graus. Segundo os par-tidários de Copérnico, foi a Terra que retrocedeu, não o Sol; a difi-culdade de uma tal interpretação é manifesta. Isaías, inspirado porDeus, estava penetrado por uma sabedoria da qual nada estava ocul-to; ele sabia a verdade. O que teria lhe custado dizê-la claramente?”Todos esses argumentos, misturados com injúrias e ultrajes, erambuscados no livro em cujas palavras é necessário crer sob pena de sermaldito. Impressos, além do mais, com aprovação da corte de Roma– cujo examinador, que as havia lido com muita atenção e prazer, de-clarava-as sólidas e bem apoiadas nas Escrituras –, eles eram publi-cados, aliás, sob a proteção pessoal de Urbano VIII. Vêem-se, comefeito, no frontispício da obra que os resume, as três abelhas dosBarberini apoiarem com força suas antenas sobre o globo da Terra,lendo-se acima: His fixa quiescit [Fixado por elas, ele repousa].

Galileu nada respondeu. Foi mais ousado diante dos peripatéticos,que lhe opunham a autoridade de Aristóteles. A refutação era fácil, esua ignorância, igual ao seu arrebatamento, parecia ser mais digna dedesprezo do que de uma resposta séria. Podemos julgar isso pelasanotações justas, embora um tanto mordazes, escritas pela própriamão de Galileu nas margens do tratado do peripatético Rocco: “Ó ele-fante”, diz ele, dirigindo-se ao autor. Depois, ele o chama sucessiva-mente de “pezzo di bue”, “animalaccio”, “ignorantissimo”, “castro-ne”, “meschino”, “capo grosso”, “animale”, “balordone”, “ignorantis-simo bue”, “capo durissimo”, “grandissimo bue”, “sopra gli ignoran-ti ignorantissimo”, “arcibue”, “bue” – tudo isso apenas para ele pró-prio, fique entendido, e escrito à mão nas margens do seu exemplar.

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Tal livro teria sucumbido por conta própria. Porém, Galileu teve otrabalho de combatê-lo. Um pouco irônico, mas cortês, ele desta vezchama o autor de “mio dolce” e “mio bello” e, se chega ao ponto demostrar todo o seu pensamento, atenua a sua expressão. “Deus queira”,diz ele, “que a obstinação seja a única causa de vossos erros! É possí-vel curar-se disso, enquanto a estupidez e a fraqueza são incuráveis.”

Tudo isso não era feito para acalmar as oposições furiosas, levan-tadas de todos os lados pela publicação dos seus Diálogos. Ameaçadopor tantos inimigos, Galileu tinha como refúgio a proteção do san-to padre, cuja apática condescendência fazia murmurarem todos oscardeais. Infelizmente, fiando-se sem reservas na sua amizade, Gali-leu tomava pouco cuidado para conservá-la. Suas maliciosas zomba-rias seguiam seus adversários por todos os caminhos onde eles se ex-traviavam e, passando em revista todas as suas más razões, sem des-denhar nenhuma delas, ele não tinha tido o cuidado de esqueceraquelas que o papa lhe tinha apresentado quando de sua viagem aRoma. As farpas direcionadas com tanta arte contra o simplório Sim-plício caíam, portanto, em parte sobre o suscetível amor-próprio dosanto padre. Urbano VIII acreditou ter sido desprezado. Sua cólera,irritada com tanta irreverência, fez com que ele se esquecesse de que,inacessível às injúrias, ele devia conformar-se com elas e perdoá-las.Ninguém o lembrou disso. Soltando as rédeas ao furor dos inimigosde Galileu, ele empurrou-o para o abismo.

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IIIGalileu foi chamado a Roma. Em vão, o grão-duque fez com quefosse exposto ao santo padre que o livro pelo qual vinham censurare incomodar repentinamente o autor tinha sido publicado há doisanos, com a aprovação expressa dos censores romanos, que haviamcorrigido o texto em diversos lugares e exigido a supressão de váriaspassagens. Em Florença, além disso, um novo exame eclesiástico ha-via precedido a impressão, que oferecia assim todas as garantias.Galileu parecia, portanto, estar isento de culpa. Ele se propunha,aliás, prestar contas da sua conduta e dos seus escritos diante de umenviado da Santa Sé, submetendo humildemente ao julgamento deseus superiores tudo o que havia dito, escrito ou ensinado, e renun-ciando a qualquer erro do qual ele tivesse se tornado culpado, assimcomo a qualquer opinião reconhecida como perigosa ou suspeita. Osmédicos alegavam, enfim, sua saúde debilitada e quase sem esperan-ças. Com a idade de setenta anos, em seu estado de sofrimento e defraqueza, ele não poderia realizar sem perigo a viagem até Roma.Urbano VIII foi implacável. Galileu teve de partir em pleno inverno.Uma doença contagiosa que reinava, então, na Toscana obrigou-o auma quarentena de vinte dias. Chegou a Roma em 19 de fevereiro.Afetuosamente recebido na casa do embaixador da Toscana ele ficouali até o mês de abril. Cercado de constantes cuidados, estava com-pletamente livre; mas julgava prudente não sair, e diversos cardeais,dos quais ele recebia visitas oficiosas, ratificaram esta idéia. Ele tinhapressa em acabar com aquilo e insistia com os amigos para que con-cluíssem o seu caso. Recebeu a ordem de comparecer ao palácio dainquisição, onde permaneceu dezenove dias – muito bem tratado,aliás – alojado no próprio apartamento do fiscal, livre para ir e virnesse vasto palácio, e desfrutando de boa comida graças à cortesia doembaixador, que todos os dias enviava-lhe refeições. Logo depois, foi

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enviado de volta à embaixada, com a proibição, sob pena de excomu-nhão, de revelar qualquer coisa sobre os interrogatórios. Sua saúdeestava, aliás, muito boa, até mesmo melhor do que antes. Durante se-te semanas, ele não escutou mais falar do santo ofício; o embaixadorapressava o papa e os cardeais, que prometiam uma solução para bre-ve. Três dias antes da conclusão do processo, esse embaixador rela-tou ao grão-duque uma importante entrevista que acabara de ter comUrbano VIII. Diz ele:

Novamente, solicitei que a causa de Galileu fosse des-pachada. Sua Santidade informou-me que, no decorrer dapróxima semana, ele será convocado em uma manhã aosanto ofício para ouvir pronunciar a decisão ou a senten-ça. Diante disso, supliquei à Sua Santidade que quisesse– em consideração à Sua Alteza Sereníssima, nosso sobe-rano – mitigar o rigor que a santa congregação acreditas-se dever usar neste caso, em que Sua Alteza já havia rece-bido dela tantos favores, pelos quais testemunhava-lhepessoalmente o seu reconhecimento.

O papa respondeu que tinham sido concedidas todas as facilida-des possíveis. E acrescentou:

Quanto à causa, o mínimo que se pode fazer é proibiresta opinião, porque ela é errônea e contrária às santasEscrituras – que foram ditadas pela boca do próprioDeus, ex ore Dei.

Na segunda-feira, 20 de junho, Galileu foi chamado ao santo ofí-cio, apresentando-se ali apenas na manhã seguinte. Foi detido e naquarta-feira, dia 22, conduzido à igreja da Minerva, perante os car-

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deais e os prelados da congregação, para que a sentença fosse lida pa-ra ele e para fazê-lo abjurar sua opinião. A sentença determinava aproibição do seu livro e sua própria condenação à prisão do santoofício durante um tempo determinado pela vontade de Sua Santi-dade. Foi preciso, além disso, que ele pronunciasse em voz alta a ab-juração que lhe foi ditada:

Eu, Galileu, no septuagésimo ano de minha vida, dejoelhos diante de vossas eminências, tendo diante de meusolhos os santos Evangelhos, que eu toco com minhas pró-prias mãos, abjuro, maldigo e detesto o erro e a heresia domovimento da Terra.

Pretende-se que, após haver pronunciado essas palavras, Galileu,levado ao seu limite, bateu com o pé na Terra, deixando que sua im-paciência e seu desprezo se manifestassem em uma exclamação quese tornou célebre: “E pur si muove.” Ele pensava isso, sem nenhumadúvida, mas não ignorava que existe um tempo para calar-se e umtempo para falar. Tanta franqueza o teria exposto a grandes perigos,e o caráter de Galileu dificilmente permite acreditar em tal arrebata-mento. Não encontramos nele nem esse nobre vigor que as provaçõesfortificam nem o generoso ardor que a ameaça incita e sustenta. Pelocontrário, o temor abatia as forças de sua alma: ele temia o martírio,julgava inútil enfrentá-lo e não escondia isso. Eis o pensamento que,diante do tribunal, orientou toda a sua conduta. Humildemente sub-misso em palavras, ele havia aparentado e prometido em todas asoportunidades uma completa obediência. Nenhum de seus interroga-tórios acusa o menor propósito de resistência. Após haver satisfeitoo exame rigoroso de seus juízes, não há nenhum indício de que, me-diante uma última palavra de zombaria, ele tenha ousado desafiá-los.Diversos biógrafos têm afirmado que esse rigoroso exame do santo

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ofício nada mais era do que a tortura, e que exerceram sobre Galileuos rigores extremos: esta suposição não tem fundamentos sérios.Tudo prova, ao contrário, que as torturas morais foram as únicas queele teria sofrido e, ao interditarem severamente as atas do processo,devem ter querido (como supôs, com muita verossimilhança, Troues-sard) esconder não a severidade, mas a indulgência. O santo ofício,que tinha como missão submeter os espíritos pelo temor, não podiarenunciar à sua reputação de implacável rigor. Se a amizade vigilantedo grão-duque da Toscana conseguiu fazer com que Galileu fossetratado com indulgência, era útil deixar que acreditassem no contrá-rio. Quando, aliás, conforme os hábitos que tinham de ser seguidos– como disse, recentemente, o prefeito dos arquivos secretos daSanta Sé –, Galileu foi ameaçado com a tortura se não dissesse a ver-dade, ele respondeu com terror: “Eu não mantenho e não mantive es-ta opinião de Copérnico desde que fui intimado a abandoná-la.Quanto ao mais, estou em vossas mãos; fazei de mim o que quiser-des. Estou aqui para vos demonstrar a minha submissão; eu nãomantive esta opinião depois que ela foi condenada.” Por que teriamusado de violência para com aquele que, protestando contra qualqueridéia de rebelião, declarava-se em alto e bom som o filho submisso eobediente da Igreja, curvando-se com resignação diante do tribunal,do qual não implorava senão clemência? Apesar dessas razões decisi-vas, sinto-me perturbado, confesso, por uma lembrança já antiga.Ainda bastante jovem, encontrava-me em Roma, com o amável e sá-bio Ampère. Cheio de confiança, então, no raciocínio, acontecia-mequase sempre de demonstrar-lhe que algumas coisas deviam ser outer sido de tal maneira e não de outra. Porém, ele, com uma única fra-se, demolia toda a minha dialética. “Você se esquece”, dizia-me ele,“de que nós não estamos na Terra da lógica.” Feita a verificação, elequase sempre tinha razão. Como minha confiança nas demonstraçõesrenascia incessantemente, sua máxima logo se tornou, entre nós, de

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um uso bastante comum para que pudesse ser reduzida sem inconve-niente a uma única palavra, pronunciada em tom de advertência: “A lógica!”

Deixemos, portanto, de lado os raciocínios e não nos vanglorie-mos de invocar a lógica, que não pode provar nada quando se tratade Roma. Repitamos somente que nenhum documento positivo oumesmo verossímil obriga-nos a crer que Galileu tenha sido tortura-do. A abjuração vergonhosa que lhe impuseram foi o seu único mar-tírio. Esse é o sentimento comum de todos aqueles que estudaram ediscutiram os fatos com imparcialidade. A sentença não foi executa-da no seu máximo rigor: Urbano VIII não levou sua vingança até acrueldade; o Sol havia se posto muitas vezes sobre sua cólera. VendoGalileu abatido e humilhado, ele lembrou-se de que tinha sido seuamigo e teve piedade das suas angústias. Em vez de uma prisão, eledesignou-lhe como residência o palácio de Piccolomini, arcebispo deSiena. Galileu ficou cinco meses em Siena. Por volta dos primeirosdias de dezembro, o embaixador da Toscana, sempre fervoroso emservi-lo, obteve para ele a permissão de residir em sua casa de campode Arcetri, perto de Florença, com a única condição de receber pou-cas pessoas e de não manter assembléias acadêmicas. Ajudado e ani-mado, entretanto, no seu retiro, pela amizade perseverante do grão-duque e de seu digno irmão Leopoldo, rodeado incessantemente dediscípulos estudiosos e devotados, ele retomou – para aperfeiçoá-las– as grandes idéias para as quais o haviam preparado as reflexões detoda a sua vida. Ele havia, já há muito tempo, concebido o projeto deutilizar a observação dos satélites de Júpiter para determinar as lon-gitudes no mar. Tal era a finalidade de tantos estudos assíduos e es-crupulosos que lhe revelavam, enfim – pelo menos, ele assim acredi-tava –, a lei de sua inconstância e de suas irregularidades, permitin-do que ele predissesse seus freqüentes eclipses por intermédio dasleis imutáveis que regem seus movimentos. Ele esperava, com a aju-

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da desses quatro pequenos corpos, indicar com a máxima precisão omomento de uma observação. O rei da Espanha e os estados da Ho-landa haviam acolhido sucessivamente suas proposições e, até nos ex-tremos da velhice, ele ocupou-se sem descanso em acolher os melho-ramentos sugeridos pela experiência dos navegadores mais hábeis emais perspicazes.

Como a determinação da hora exata no local da observação era umdos elementos essenciais do método, era necessário aperfeiçoar a re-lojoaria, ainda muito imperfeita: Galileu retomou as observações so-bre o pêndulo e descreveu, com precisão, o mecanismo apropriadopara manter o movimento, transmitindo-o aos ponteiros sem alterar-lhe a uniformidade. A questão, por muito tempo discutida, está ho-je completamente esclarecida. É possível ver em Paris, no Conser-vatório das Artes e Ofícios, um relógio construído de acordo com asindicações fornecidas por Galileu a Viviani (publicadas por ele mui-tos anos antes dos trabalhos de Huyghens sobre o mesmo assunto).Galileu sempre acreditava estar nas vésperas de resolver definitiva-mente – e na prática – o célebre e importante problema das longitu-des. Ele se ocupava com isso sem descanso, com uma confiança per-severante, até o dia em que a perda da visão, interrompendo doloro-samente seus esforços, arrebatou-lhe ao mesmo tempo todas as suasesperanças e o fruto de tantos trabalhos.

Mesmo perseguindo a solução do problema das longitudes, Gali-leu havia retomado com ardor – como uma lembrança embelezada desua juventude – os trabalhos sobre o peso que em Pisa, cinqüentaanos antes, haviam despertado a admiração de seus discípulos. Ele re-digiu cinco Diálogos sobre duas novas ciências, publicados pela primeiravez em Leida, em 1638, três anos antes da sua morte. O livro atém-se ao que promete o título. Os dois primeiros diálogos, relativos àresistência dos materiais, não têm todo o rigor que parecem preten-der: diversos resultados distanciam-se da verdade e a experiência lhe

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teria facilmente demonstrado isso. Porém, nos seus derradeiros diá-logos, só o raciocínio é invocado, e o criador da física experimentalmostra-se um teórico ousado e inovador. Os erros, inevitáveis em taisquestões abordadas pela primeira vez, não diminuem a grande impor-tância do conjunto. Galileu foi o primeiro a ver que esses fenômenostão complexos estão submetidos a leis certas e precisas. Abriu e mos-trou o caminho, e foi seguindo os seus princípios que se conseguiucorrigi-lo.

O terceiro e o quarto diálogos são relativos ao movimento doscorpos pesados. Galileu lança aí os verdadeiros fundamentos da ciên-cia do movimento (juízes ilustres têm considerado essa como a suaobra capital). No diálogo sobre o movimento, assim como no estu-do da resistência dos materiais e no tratado sobre o equilíbrio doscorpos flutuantes, a experiência raramente é invocada. Embora, noespírito de Galileu, ela domine tudo e deva pronunciar-se em últimainstância, a teoria é inteiramente construída sem ela. Ele diz:

As leis da natureza são as mais simples possíveis. Não épossível nadar melhor do que os peixes ou voar melhor doque os pássaros. Elevemos, portanto, nosso pensamento atéa regra mais perfeita e mais simples: nós elaboraremos a maisverossímil das hipóteses. Sigamos curiosamente as suas con-seqüências. Que as matemáticas transformem-nas sem escrú-pulo em elegantes teoremas: não corremos nenhum risco. A geometria já estudou muitas curvas desconhecidas pela na-tureza e cujas propriedades, nem por isso, são menos admi-ráveis: é somente a ela, também, que pertencerão os nossosresultados, se a experiência não confirmá-los.

Essa boa-fé para consigo mesmo, que subordina tudo à experiência,é a característica distintiva do método de Galileu. Mas por que, dirão,seguir laboriosamente as doutrinas de um princípio ainda duvidoso?

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A verdadeira filosofia natural não exigiria, pelo contrário, que ele fos-se verificado logo de início pelo estudo direto da Natureza? Galileurespondeu, como acabamos de dizer, a esta objeção – que ele previa –reclamando para o físico os direitos concedidos ao geômetra, de exer-citar-se sobre as criações do seu espírito, sem exigir que a própria Na-tureza as apresentasse a ele. Esta resposta desculpa o seu método, semfazer compreender todo o alcance dele. A verificação direta de um prin-cípio – é preciso observar – é quase sempre inacessível tanto à obser-vação quanto à experiência. Como verificar, por exemplo, que a veloci-dade de um corpo pesado é proporcional ao tempo da queda? Ondeapreender, para medi-la a cada instante, essa abstração que nós chama-mos de velocidade e que só é real no pensamento? É preciso necessa-riamente transformar o princípio e, na longa seqüência de suas conse-qüências, encontrar, enfim, algumas que sejam acessíveis à observação.Quando Galileu mostrou que essa lei da velocidade, colocada a priori,exige que os espaços percorridos sejam proporcionais ao quadrado dotempo, e que a mesma lei deve estender-se à queda sobre um plano inclinado, resta-lhe constatar que um trajeto quatro vezes mais longoé realizado em um tempo duplicado. E os raciocínios transformaramem prova decisiva uma experiência que, realizada a priori, teria forneci-do, ao contrário, apenas um fato curioso, mas sem importância.Acontece a mesma coisa com o movimento parabólico: um projétil noar não deixa rastros, e a determinação gráfica da curva que ele descre-ve seria difícil. Galileu não se preocupa de maneira alguma com isso:seus raciocínios, fundamentados nos princípios que lhe parecem plau-síveis, mas que ele sabe que são duvidosos, conduzem-no a descobrirque a trajetória é parabólica e revelam, ao mesmo tempo, as leis preci-sas segundo as quais ela é percorrida. Uma vez que essas leis sejam es-tabelecidas, resultam daí numerosas conseqüências, entre as quais en-contram-se algumas cuja fácil verificação serve como demonstração tãorigorosa quanto a impraticável determinação direta da trajetória. Julgar

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os princípios por meio da verificação experimental das conseqüênciasmais remotas é, como se vê, o método constante de Galileu e o funda-mento sólido da ciência moderna.

Dentre os jovens que, admitidos na sua íntima familiaridade, au-xiliavam nos derradeiros trabalhos de Galileu, esforçando-se parasubstituir os olhos que lhe faltavam, Viviani distingue-se, sobretudo,por sua viva afeição pelo ilustre ancião. Ele glorificou-se por toda asua vida de ter sido o último discípulo de um tão grande mestre. Ga-lileu, de sua parte, dando ao mesmo tempo testemunho do seu amá-vel caráter e da distinção do seu espírito, escrevia a um amigo que oscuidados dispensados a tal aluno eram para ele um prazer sem fadi-ga. Uma intimidade de quatro anos confere um grande valor aos do-cumentos que ele teve o cuidado de recolher e que nos transmitiu.

Galileu tinha aparência jovial, sobretudo na velhice. De uma compleição naturalmente muito forte, estava en-fraquecido pelos trabalhos do espírito e pelas fadigas do cor-po. O gozo do ar livre parecia, para ele, o melhor alíviopara as paixões da alma e o melhor preservativo da saúde.Assim, depois do seu retorno de Pádua, ele morou quasesempre longe da agitação de Florença. A cidade parecia serpara ele, de alguma forma, como a prisão dos espíritos es-peculativos, e ele considerava o campo, ao contrário, co-mo o livro da natureza sempre aberto para aqueles quegostam de lê-lo e de estudá-lo. Tinha poucos livros, massomente os mais excelentes. Seu gosto pela solidão e pe-la calma do campo não o impedia de desfrutar o relacio-namento com seus amigos. Gostava de reunir-se com elesem torno da mesa e apreciava particularmente a excelênciae a variedade dos vinhos de todas as regiões, dos quais ti-nha sempre uma provisão vinda da própria adega do grão-

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duque. Era ele próprio que podava e atava as vinhas, comum cuidado e uma destreza bastante incomuns. Tinha gos-to pela agricultura e via nela, ao mesmo tempo, um pas-satempo e uma oportunidade para filosofar sobre a vege-tação, a nutrição das plantas e sobre outras maravilhas dacriação. Inimigo da avareza, gastava generosamente parafazer experiências, consolar os infelizes, receber e honraros estranhos e ajudar aqueles que se sobressaíam em umaarte ou em uma profissão qualquer. Mantinha-os em suaprópria casa até que tivesse lhes assegurado sua subsistên-cia. Lá, eu vi um grande número de jovens alemães, fla-mengos e outros, escultores, pintores e matemáticos.

Só acrescentarei umas poucas palavras a esse retrato tão claramen-te traçado: Quando Viviani conheceu Galileu, o ilustre ancião, ator-mentado por dores e enfermidades, tinha conservado a serenidade doseu espírito e a afabilidade de suas maneiras. Um caráter tem uma ex-celente têmpera, quando permanece amável e encantador, apesar detantos motivos de tristeza e de impaciência.

Estudando a vida e o caráter de um grande homem do passado, te-nho percebido algumas vezes, entre os nossos contemporâneos, algu-ma figura que pode ser comparada com a dele, e quando um estudoatento, multiplicando as analogias, vem confirmar esta primeira im-pressão, parece permitido – na ausência de documentos completos eprecisos – aceitá-la como o guia menos incerto que nos seja possívelseguir para completar o retrato. É assim que, apesar da diferença dosobjetos de estudo, a fisionomia de Kepler aproxima-se, para mim, dado ilustre físico inglês Faraday. Porém, para encontrar uma seme-lhança com Galileu, tive necessidade de imaginar Ampère, conservan-do a profundidade e a solidez do seu gênio e dotado, superabundan-temente, do espírito lúcido e brilhante de Arago.

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Oautor – muito esquecido, hoje em dia – de um poema sobre aastronomia havia pedido o conselho de Poinsot, solicitando-lhe umaopinião sincera. O espirituoso e profundo geômetra respondeu comalgumas críticas gerais e vagas, que não parecem ter exigido uma lei-tura muito atenta da obra. Depois, a propósito de uma passagem so-bre os mais ilustres representantes da ciência, ele acrescentou:

É preciso tomar cuidado com a proporção que deve serobservada entre os epítetos aplicados aos grandes nomes.Esta distinção é importantíssima para a dignidade do poe-ma. Ilustre confidente é uma expressão que não convémsenão a Newton. Ele é o único de quem se pode dizer querecebeu realmente uma confidência, porque ele expõe edesenvolve a Natureza com a maior facilidade, enquantoos outros têm muita dificuldade para arrancar dela algunssegredos particulares.

Essas poucas linhas, nas quais “os outros” significa Copérnico,Kepler, Galileu e Huyghens, dão a mais alta idéia, assim como a maisverdadeira, da glória de um homem cujo nome desafia todos os lou-vores. Ao escrevê-las, Poinsot, que sempre gostava de citar Voltaire,lembrava-se, sem dúvida, de que o ilustre poeta havia dito:

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Confidentes do Altíssimo, substâncias eternas,Que queimais com vossos fogos, que cobris com vossas asasO trono onde vosso mestre está sentado, perto de vós,Falai: do grande Newton, não tendes inveja?

Esses belos versos também exprimem dignamente a que incompa-rável altura é justo colocar o ilustre nome de Newton. Diante dele –como Voltaire nos faz compreender – ninguém tem o direito de terinveja, e os mais ambiciosos não podem senão repetir a exclamaçãoresignada de Lagrange: “Newton foi bem feliz por ter tido um siste-ma do mundo para explicar. Infelizmente, existe apenas um céu!”

O pai de Newton morreu poucos meses após casar-se, e o jovem Isaacnasceu em 25 de dezembro de 1642, em Woolstrop, no Lincolnshire,em meio às tristezas de um luto ainda recente. Ele não parecia destina-do a sobreviver. Duas mulheres que foram mandadas à cidade vizinha, afim de buscar alguns medicamentos para ele, acreditavam que o encon-trariam morto ao retornarem e julgaram inútil ter pressa. Ele, no entan-to, viveu, e seus parentes, cuidando do seu corpo com mais solicitudedo que da sua inteligência, conseguiram fazer dele uma criança robusta.

Sua mãe, que não tardou a casar-se de novo, confiou-o a uma avóe a uma tia, e acompanhou seu novo esposo, que residia a algumas lé-guas da fazenda onde ficara o pequeno Isaac, mandado à escola do vi-larejo. Depois, com a idade de doze anos, foi colocado como pensio-nista na casa de um boticário, para seguir os cursos do colégio deGrantham. Ele era no início, e permaneceu durante algum tempo, umdos últimos alunos da sua classe. Porém, um pouco mais de atençãoaos ensinamentos do professor logo fizeram com que ele chegasse aoprimeiro lugar, que não mais deixou. A súbita superioridade do jo-vem estudante tem sido vinculada a uma aventura cuja lembrançapermaneceu viva na sua família, mas que não parece grande coisa pa-ra ter exercido tal influência. Como um de seus colegas tinha batido

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nele no momento de entrar na sala de aula, Newton esperou-o na saí-da da escola e provocou-o para um duelo de socos, no qual, emboraele fosse menos robusto, sua tenacidade deu-lhe vantagem. Seu adver-sário reconheceu-se vencido e, usando do direito que lhe era confe-rido pelo costume, Newton agarrou-o pela orelha, sob os aplausos daclasse inteira, e, por várias vezes, obrigou-o a beijar o chão.

Foi então que, envergonhado, segundo dizem, por não ter nosexercícios da sala de aula a mesma superioridade que no pugilato,Isaac resolveu fazer alguns esforços e tornou-se o melhor aluno docolégio de Grantham. Verdadeira ou falsa, esta anedota não pode darnenhuma idéia justa do verdadeiro caráter do jovem vencedor.

Newton sempre foi, por uma questão de princípios, essencialmentepacífico. Sua vontade, sustentada pelo sentimento religioso, moderavaem todas as ocasiões as explosões de seu temperamento irascível.

Após dois anos de estudos em Grantham, sua mãe, tornando-seviúva pela segunda vez, levou-o para viver junto com ela em Wools-trop. O jovem Newton mostrou-se pouco competente no ofício defazendeiro e pouco preocupado em vir a sê-lo. Meditando incessan-temente ou lendo alguns velhos livros, negligenciava os trabalhos dafazenda. Newton não sabia vender nem comprar e era imprudente en-viá-lo ao mercado. Depois de alguns anos de inútil espera, seus pa-rentes resignaram-se a fazer dele um sábio e, para prepará-lo para ospesados estudos de Cambridge, enviaram-no uma segunda vez a Gran-tham. Quando, com a idade de dezoito anos, ele deixou para sempreesse palco dos seus primeiros trabalhos, seu velho mestre dirigiu pu-blicamente algumas palavras de despedida e de saudade ao excelentealuno, apresentado como modelo para todos os outros. Não é forço-so concluir daí que ele pressentira o glorioso futuro do jovemNewton. Os “newtons”, quando se sabe julgá-los, não são apresenta-dos como modelos, e estudantes de aldeia correriam um sério riscoao tentarem seguir os seus passos.

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Numerosas construções mecânicas, para as quais Isaac Newtonmostrava uma enorme habilidade, haviam-no muitas vezes distraído,até então, de seus estudos regulares. Um moinho, um relógio d’á-gua,36 pipas, um velocípede e um relógio de Sol, desenhado duranteas férias nos muros da pequena propriedade materna, são o testemu-nho do seu espírito engenhoso e, ao mesmo tempo, prático.

Desdenhando as brincadeiras das crianças de sua idade, era emmeio aos martelos e às plainas que ele passava seus momentos de re-creio. Por vezes, no entanto, os livros o arrancavam de perto das suasqueridas ferramentas. Ignoramos quais seriam. A Lógica de Sounder-son é o único citado pelos biógrafos.

Em 1661, com a idade de dezenove anos, Newton foi mandadopara Cambridge. Foi admitido como sub-sizar e depois como sizar. Os sizars eram, de alguma maneira, os servidores dos estudantes, e umjovem que se destinasse a uma profissão liberal acreditaria estar se re-baixando, hoje em dia – diz um autor inglês –, ao realizar as humil-des tarefas das quais eles estavam encarregados. Porém, os estudan-tes do século XVII não se ofendiam com esse título. Newton rece-beu-o sem nenhuma repugnância.

As universidades inglesas davam, já naquela época, uma grande li-berdade aos seus jovens estudantes. Longe de submetê-los conjunta-mente ao estudo de um programa obrigatório, cada um deles era en-corajado a dedicar-se aos trabalhos e às leituras de sua escolha.Newton leu avidamente a geometria de Euclides, que logo abando-nou por achá-la muito fácil. A de Descartes ocupou sua atenção poralgum tempo, mas ele a compreendeu sozinho. Estudou em seguidaa óptica de Kepler e a aritmética dos infinitos de Wallis. Os conse-lhos de seus professores eram-lhe pouco necessários e quando, na suapresença, uma dificuldade apresentava-se, ele a resolvia antes deles.

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36. Também conhecido como clepsidra. [N. dos T.]

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Porém, Barrow, seu professor de matemáticas, um homem de gran-de mérito, não compreendeu de imediato a genialidade de seu jovemaluno. Newton não sabia como passar em um exame. Interrogadouma primeira vez sobre os elementos de Euclides, obteve o título descholar, sem que nada o distinguisse de seus companheiros. Dois anosmais tarde, o encontramos classificado apenas em 24o lugar, numa re-lação de 140 concorrentes. Mesmo assim, ele estudava as matemáti-cas mais elevadas e comunicava a seu mestre, de tempos em tempos,resultados importantes e originais, sem mostrar nenhuma tendênciapara publicá-los.

Ele tinha uma grande repugnância a fazer com que falassem dele.Essa aversão à publicidade, que foi sempre um dos traços do seu cará-ter, contribuiu para tornar incertas todas as datas dos seus trabalhos.Seria difícil dizer, hoje em dia, em que ordem sucederam-se suas trêsgrandes descobertas: o método das fluxões, a decomposição da luz e aatração universal. É necessário relacionar todas as três, como foi pro-vado, aos primeiros anos da estada de Newton em Cambridge, mas apublicação delas ainda teria de esperar muito tempo.

Em 1666, estando Newton com 24 anos, Mercator publicou aLogarithmotechnia, onde se encontra o primeiro exemplo de uma sérieinfinita empregada para o cálculo de uma função desconhecida. Bar-row logo reconheceu ali um método que já há bastante tempoNewton lhe havia comunicado. A descoberta era considerável e deviadespertar a admiração mesmo daqueles que não suspeitavam da suageneralidade. Já bastante adiantado, e podendo reconhecer as conse-qüências dela, Newton entregou a Barrow uma redação do seu méto-do que, sob o título Analysis per aequationes numero terminorum infinitas,só foi publicado em 1704.

O opúsculo foi comunicado a diversos geômetras, dos quais pro-vocou a admiração. Porém, longe de ser estimulado por tais apoios,Newton interrompeu, logo depois, o curso de suas idéias, persuadi-

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do de que Mercator encontraria facilmente o resto antes que ele pró-prio estivesse numa idade bastante madura para publicar alguma coisa.

Depois de ter estudado a óptica de Kepler, Newton havia lido osescritos de Descartes sobre a luz e prestado seu auxílio a Barrow, pa-ra a publicação da obra intitulada Lectiones opticae. Tão sagaz quantocurioso, ele dedicara-se a repetir as principais experiências e, seguin-do seu costume, não demorara a ultrapassar o mestre.

Newton fez com que um raio de luz solar penetrasse em uma câ-mara escura e, fazendo-o atravessar um prisma, produziu em umatela as cores vivas e brilhantes das quais Grimaldi já havia admiradoo fulgor. Porém, não viu nisso, como haviam feito seus predecesso-res, apenas um divertimento inútil e um espetáculo para os olhos.Atento aos detalhes isolados que conduzem às grandes descobertas,ele notou, sobretudo, a forma alongada da imagem, reconhecendoque, para produzi-la, os raios primitivamente inclinados uns sobreos outros em, no máximo, 30’’ deviam, após a refração, formar umângulo de 2,5°, ou seja, mais ou menos cinco vezes maior. Essesraios, diferenciados por suas cores, também o são pela sua refrangi-bilidade. Não era, como se acreditava, o vidro que lhes comunicavao seu fulgor. Eles estavam reunidos na luz branca sem serem perce-bidos. É ao separá-los que o prisma os torna visíveis. Com a ajudade telas convenientemente localizadas, é possível estudá-los separa-damente e constatar que eles se refratam diferentemente. Um raiode luz branca é, portanto, composto de sete raios diferentes. Paraapresentar uma nova e irrecusável prova disso, Newton conseguiureuni-los por intermédio de uma nova refração, reconstituindo a luzbranca, da qual ele fez, assim, a análise e a síntese. Esta verdade inteiramente nova mudava a face da dióptrica. Como esperar, comefeito, fazer convergirem conjuntamente, no mesmo foco, raios di-ferentemente refrangíveis, para cada um dos quais seria convenien-te uma lente de forma especial?

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Newton, pensando então que os espelhos poderiam oferecer resul-tados mais satisfatórios, estudou-os com ardor e construiu o teles-cópio que leva o seu nome. Tem-se repetido muitas vezes, com rela-ção a isso, que, chegando ainda mais longe, ele havia afirmado a im-possibilidade de construir lunetas acromáticas, corrigindo o defeitoprovocado pela refrangibilidade desigual dos raios. O contrário apa-rece muito claramente em uma carta datada de 11 de julho de 1672.

Eu afirmei que o aperfeiçoamento das lunetas por re-fração não deve ser buscado, como acreditavam os ópti-cos, apenas no aperfeiçoamento da forma das lentes. Po-rém, não perdendo a esperança de conseguir isso por meiode outras construções, tomei o cuidado de não dizer na-da que pudesse fazer com que pensassem o contrário.

Refrações sucessivas, todas no mesmo sentido, devemnecessariamente aumentar cada vez mais o erro provoca-do pela primeira, mas não me parece impossível que as re-frações contrárias corrijam as desigualdades. (...) Exa-minei, com esse objetivo, aquilo que é possível obter nãosomente com as lentes, mas com a reunião sucessiva de di-versos meios. (...) Mas, talvez eu tenha uma oportunida-de melhor para apresentar o resultado dos meus trabalhose das minhas experiências.

Após alguns anos de permanência em Cambridge, a invasão dapeste dispersou os alunos da Universidade. Newton retornou, porcerca de dois anos, para a sua pequena propriedade de Woolstrop. Foilá, segundo dizem, que ele ousou, pela primeira vez, procurar mediras forças que governam e mantêm o movimento dos corpos celestes.

A curiosidade de Newton, aguçada pelo estudo e pela meditação,não tinha podido deixar de defrontar-se com esse grande problema.

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Se formos forçados a crer em uma tradição bastante verossímil, elesempre pensava nisso. Sentado, um dia, em seu jardim, ele viu umamaçã desprender-se de uma árvore e cair na terra, aos seus pés. Esteincidente banal conduziu seus pensamentos para o caminho que lheera tão familiar. Ele indagou-se qual seria a causa – para sempre ocul-ta, sem dúvida – do poder misterioso que precipita todos os corposem direção ao centro da nossa Terra. Esta força, qualquer que fossea sua natureza, teria limites? Ela atua sobre as mais altas montanhas,mas se exerceria a uma altura dez, cem ou mil vezes maior? Ela se es-tenderia à Lua? Tal é a questão que um pensador menos perspicaz te-ria facilmente proposto a si próprio, para logo responder, com umaaparente certeza, que se a Lua, não sendo sustentada, pesasse em di-reção à Terra, nada a impediria de cair sobre ela, e que, por conse-guinte, nossa esfera de ação não se estende à Lua. Newton pensou to-talmente o contrário. Não sabemos, por meio da experiência cotidia-na, que um projétil lançado horizontalmente vai cair tanto mais lon-ge quanto maiores são a altura e a velocidade com que ele partiu? Senos colocarmos, em pensamento, no alto de uma torre de 90 mil lé-guas de altura (que é a distância da Lua) para lançar esse projétil comuma velocidade de um quarto de légua por segundo (que é aproxi-madamente a velocidade da Lua), não é evidente que ele cairá a umadistância maior do que o raio da Terra, que é de apenas 1.500 léguas?Como, nesse movimento, ele não perde nada da sua velocidade, eleserá, de alguma maneira, incessantemente lançado horizontalmente.Logo, o mesmo peso que faz com que uma pedra caia na superfícieda Terra mantém, ao contrário, a Lua a uma distância constante, semjamais poder trazê-la para o nosso globo, cujas dimensões são mui-to pequenas. Tais considerações são apenas o começo da demonstra-ção. A verdade havia sido encontrada, mas, não podendo assegurá-lacom uma certeza infalível, Newton considerava indigno da parte de-le publicar alguma coisa. Confiando em sua força, não viu em sua

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descoberta nada além do fundamento bastante sólido de um edifícioque ele levou vinte anos para construir. Retornou a Cambridge paraconcorrer ao grau de fellow e, das onze vagas, obteve a décima primeira.

Pouco tempo depois, em 1669, com a idade de 27 anos, Newtonfoi nomeado professor. Morando e fazendo suas refeições no colégio,ele tinha, além disso, 100 libras de ordenado. Suas obrigações resu-miam-se a uma aula pública de uma hora, uma vez por semana, e qua-tro horas de explicações, a serem dadas aos alunos que viessem soli-citá-las. Essas novas funções orientaram seus estudos para as mate-máticas puras e, mais particularmente, para a álgebra.

Suas cartas, nessa época, tratam sobretudo da teoria das equaçõese da teoria das séries. Ele autoriza, em uma delas, seu corresponden-te Colin a fazer com que seja impressa uma descoberta que ele lhecomunicou: “Mas, tomai cuidado”, acrescenta, “para que o meu no-me não seja conhecido. Isso poderia aumentar o número das minhasrelações, aquilo que eu me empenho particularmente em evitar.”

No entanto, Newton, sem nada publicar, tornava-se célebre de algu-ma maneira, mesmo contra a sua vontade. Em 1672, foi nomeadomembro da Sociedade Real de Londres. Foi a ela que ele endereçou suaprimeira comunicação pública. Porém, como um avarento que retém,enquanto pode, o seu tesouro, ele escolheu a menor de suas descober-tas, enviando ao presidente Oldenburg o telescópio que leva seu nome.

O instrumento causou tanta admiração que Newton deu mostrasde haver ficado muito sinceramente surpreendido com isso. Mas, co-mo para demonstrar que não existe, em sua obra, nenhuma premedi-tação de modéstia, ele acrescentou:

Se a Sociedade prosseguir com reuniões semanais, pro-ponho-me comunicar-lhe a descoberta que me deu a idéiade construir um telescópio. Ela vos agradará, tenho certe-za, muito mais do que o próprio instrumento; porque ela

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é, segundo penso, a mais inusitada, quando não a maisconsiderável que jamais foi feita na ordem da natureza.

A descoberta da qual Newton oferece, assim, uma tão grande idéiaera a da decomposição da luz. Ela produziu uma grande sensação,mas nem todos os físicos aceitaram-na de imediato. Seguindo umcostume que não deixa de ter os seus inconvenientes, a Sociedade en-tregou o trabalho a uma comissão e escolheu Robert Hooke para sero juiz de Newton. Hooke era partidário da hipótese ondulatória – enisso, é preciso admitir, os progressos da ciência deram-lhe comple-ta razão. Porém, o raciocínio nada pode contra fatos constatados ebem observados. Mesmo fazendo grandes elogios ao seu inventor,Hooke cometeu o erro de admitir ou de rejeitar os fatos que Newtonhavia descoberto, conforme eles pareciam acomodar-se ou não àssuas opiniões prévias.

Cheia de consideração para com Newton, a Sociedade Real nãoquis refutar, ao publicá-la, uma teoria que, poucos dias antes, ela ha-via acolhido com tanta simpatia. Recusou-se a imprimir de imediatoo relatório de Hooke. Newton respondeu, aliás, de maneira a assegu-rar o apoio dos juízes competentes. A filosofia mais segura e melhor,diz, é aquela que busca, de início, curiosamente os fenômenos, esta-belecendo-os com base na experiência. As hipóteses chegam mais tar-de, para explicar os fatos, e é necessário que elas se acomodem a elessem jamais precedê-los.

As cartas trocadas pelos dois adversários, por intermédio de Ol-denburg, sem serem precisamente amistosas, mostram – e isso deveser dito – um igual amor pela ciência e pela verdade. Não são de for-ma alguma ofensivas. Mas, a essas primeiras críticas, várias outras sesucederam, sem dar descanso ao pobre inventor. O jesuíta Pardies fezalgumas objeções leves, que Newton teria podido desprezar. Ele, noentanto, respondeu, e de maneira a encerrar a discussão. Hallucinatus

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est reverendus pater, diz ele logo de início. Sua resposta foi de tal modoperemptória que, sem fazer de conta que ignorava sua força, seu lealadversário, aceitando a lição, declarou-se plenamente satisfeito. Al-guns sábios hoje em dia obscuros – como Linus, Gascoin e Lucas –atacaram-no em seguida. Indiferente à sua orgulhosa ignorância,Newton desdenha, desta vez, de conduzi-los ao bom caminho e ins-truí-los. Porém, quando Huyghens vem contestar a exatidão dos fatos e da nova teoria, o ilustre inventor, cheio de impaciência e de-sânimo, esquece-se de que os contestadores de uma grande descobertatambém contribuem para consolidá-la e promete a si mesmo evitarno futuro tais aborrecimentos, nada publicando. Suas queixas teste-munham, assim como os seus desgostos exagerados, uma inquietudequase doentia. “Fui de tal modo perseguido por causa da teoria daluz”, escreveu alguns anos mais tarde, “que muito lastimei a impru-dência com a qual abandonei um bem tão substancial quanto o re-pouso para correr atrás de uma sombra.” E, em outra carta: “Devotei-me à filosofia, mas quero dizer-lhe um eterno adeus. Se eu continuara cultivá-la, daqui para a frente, será apenas para o meu próprio pra-zer e levado apenas pela atração da verdade. Porque eu vejo que, aopublicar uma nova idéia, nos tornamos imediatamente seus escravose obrigados a defendê-la.” Escreveu ainda a Oldenburg: “Não mepreocupo mais com matérias filosóficas. Não levai a mal, portanto,se eu não vos fizer mais comunicações. Sede bastante bom para pou-par-me, no futuro, das objeções e das cartas sobre ciência que pode-riam dizer-me respeito.” Ele pede, enfim, para ser retirado da listados membros da Sociedade Real. Foi dispensado de pagar a anuida-de e não insistiu mais nisso.

Apesar da resolução tomada e comunicada aos amigos, a corres-pondência de Newton, durante os anos que se seguiram ao envio deseu primeiro trabalho à Sociedade Real, mostra a atividade das suaspesquisas e seu interesse pelas descobertas que não cessavam de ser

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comunicadas. Depois de haver percebido, desde o ano de 1666, a ver-dadeira explicação dos movimentos planetários, não é possível acre-ditar que ele tenha deixado de meditar sobre as suas conseqüências ede procurar as provas disso. Porém, ignoram-se os caminhos secretosque ele seguiu e a época precisa na qual suas idéias sobre esse pontotomaram uma forma rigorosa e definitiva. Para tratar de tal assunto,mesmo para o maior dos gênios, é indispensável o conhecimentoaprofundado dos princípios da mecânica. Uma carta repleta de errose de incerteza – que parece não ter sido observada com bastante aten-ção – mostra que, em 1674, Newton ainda ignorava-os, e de umamaneira absoluta. Por ocasião do recebimento de uma obra publica-da por um autor chamado Anderson, ele escreve a Colin:

Eu vos agradeço por vosso precioso presente. O livrodo Sr. Anderson é muito curioso e logo se tornará útil, seos princípios que ele pressupõe forem verdadeiros. Mas,tenho dúvidas sobre alguns dentre eles e, em especial, so-bre o movimento parabólico da bala de canhão. Ele seriadessa maneira se a velocidade horizontal da bala de ca-nhão fosse constante. Porém, eu penso que esta velocida-de diminui, ao contrário, rapidamente etc.

Aquele que assim fala ignora e desconhece, evidentemente, o prin-cípio da inércia. A seqüência da carta mostra muito claramente queNewton não leva em conta a resistência do ar. Ora, esta verdade, quenos parece tão constatada que a afirmamos hoje sem apresentar pro-vas, é o fundamento de toda a mecânica. Newton, no livro dos Prin-cípios, fez um constante uso dela (e a dúvida que ele exprime a Colinteria abalado todo o seu edifício). Newton era bastante capaz, ape-nas com seu espírito penetrante, de encontrar por si próprio todas asluzes. Porém, o livro de Huyghens, De Horologio oscillatorio, com o qual

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a mecânica deu um tão grande passo, chegou no momento certo pa-ra ajudá-lo. Nós temos o seu próprio testemunho disso em uma car-ta a Oldenburg, escrita em 1673. Ele diz:

Recebi o precioso presente do Sr. Huyghens e o per-corri com grande prazer. Está repleto de belas e úteis es-peculações, inteiramente dignas do seu autor. Fico muitocontente de que ele nos prometa um outro discurso sobrea força centrífuga. Esse é um tema de grande importânciapara a filosofia natural, a astronomia e a mecânica.

Porém, a influência que semelhante testemunho estabelece, deuma maneira decisiva, não foi imediata: somente o enunciado dosteoremas sobre a força centrífuga havia impressionado Newton. Asdemonstrações não são apresentadas no livro de Huyghens. Evi-dentemente, quando escreveu a carta a Colin, Newton não as haviaencontrado nem, sem dúvida, procurado. Mas a dificuldade não erao suficiente para detê-lo. Uma comunicação de Robert Hooke talveztenha sido a oportunidade que o conduziu para esse caminho. Ele ha-via se proposto, com efeito, em 1679 (ou seja, cinco anos depois dacarta a Colin), estudar a queda de um corpo caindo de uma grandealtura, para reconhecer aí a influência e, em conseqüência disso, aprova do movimento de rotação da Terra.

Newton escreve-lhe que, com relação à rotação da Terra, o movi-mento deve fazer-se em uma espiral. Hooke afirmava, ao contrário –o que é exato –, que, não se levando em conta a resistência do ar, atrajetória seria uma elipse. Os admiradores de Newton, não admitin-do que ele tenha podido enganar-se, alegaram que, tendo traçadocom a mão a forma da trajetória, ele fez inadvertidamente um traçoa mais com a sua pena, e que o doutor Hooke – que, na sua qualida-de de adversário de Newton, deve sempre estar errado – terá visto de-

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sajeitadamente o desenho de uma espiral. Esta história não mereceser refutada. Devemos acrescentar, no entanto, que, em uma carta aHalley, Newton declara positivamente que acreditou, de início, que acurva era uma espiral.

Naquela época – ou seja, seis anos depois da publicação da obrade Huyghens – Newton, que em 1674 era um simples novato emmecânica, ainda não havia feito grandes progressos.

Após haver concebido, em 1666, a idéia fundamental da atração,ele permaneceu durante treze anos incerto em sua marcha; e suas re-flexões mais proveitosas sobre a filosofia natural são posteriores a1679. O problema proposto por Hooke foi, provavelmente, a faíscaque acendeu essa grande chama.

Algumas inadvertências cometidas em uma primeira abordagem, edescuidadamente confiadas a uma correspondência familiar, não di-minuem em nada a sua glória. Newton mostrou sempre – não esque-çamos disso – uma excessiva severidade para com seus próprios tra-balhos. Os escritos científicos que ele voluntariamente entregou aopúblico trazem, sem exceção, o caráter de perfeição e de força no qualBernouilli via a garra do leão; ninguém pôde, até aqui, acusá-los se-riamente de erro.

Foi durante os anos de 1684 e 1685 que Newton parece ter com-posto a sua admirável obra sobre os Princípios matemáticos da filosofia na-tural e colhido os frutos de uma preparação tão longa e tão forte. Seuespírito, consolidado pela prática assídua da geometria mais profun-da, ousou buscar as forças que regem o sistema do mundo com umatão delicada precisão. Jamais, no decorrer dos séculos, foi dado a ou-tro homem o privilégio de ser o primeiro a penetrar em uma minamais abundante e mais rica. Dois séculos de trabalhos perseverantesnão esgotaram o seu tesouro. Durante dois anos inteiros, essas gran-des descobertas, que pareciam chamar umas pelas outras como osabismos de que falam as Escrituras, cativaram e encantaram a imagi-

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nação e a razão de Newton. Inebriado com os altos pensamentos queaplicava com toda a força às dificuldades sempre crescentes e sempreexitosamente superadas, ele era visto como que ofuscado pelo exces-so de luz interior, não tendo consciência das horas que sempre escoa-vam muito rápido nem dos dias que sempre acabavam muito cedo.Suas necessidades corporais, constantemente esquecidas, não podiamdistraí-lo: o homem havia desaparecido e é sem nenhum exagero que,pensando nesse êxtase contínuo e sem par, Halley pôde exclamarmagnificamente: “Nec fas est propius mortali attingere divos.”37

A grande descoberta exposta e demonstrada no livro dos Princípioscom a mais luminosa clareza é a da atração universal. O Sol atrai osplanetas, que se atraem mutuamente. Esta secreta e misteriosa virtu-de penetra as profundezas da matéria, estabelecendo uma dependên-cia mútua e como que um vínculo, que nada pode romper, entre to-dos os elementos desse vasto Universo. Cada parte reage sobre o todo,e o menor átomo atrai indistintamente todos os outros, sem preferirnem escolher nenhum deles. Porém, entre a divergência e a contrarie-dade de tantas forças, como descobrir a lei que as dirige? Como des-vendar, em tal confusão, o papel e a grandeza de cada uma delas e separar, enfim, por meio de deduções rigorosas, aquilo que está tãoestreitamente unido?

Querer resolver tal problema teria sido tentar o impossível. New-ton devia, antes de qualquer coisa, simplificá-lo. Ele substituiu, pri-meiramente, as órbitas dos planetas por círculos que tinham comocentro o Sol; e a da Lua por um círculo traçado em torno da Terra,fixo em relação a ela. Os teoremas de Huyghens permitem calcular aforça direcionada para o Sol capaz de perpetuar esses movimentossimples, e a terceira lei de Kepler mostra em qual proporção ela deveenfraquecer-se com a distância.

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37. “Nenhum mortal é mais capaz de aproximar-se dos deuses.” [N. dos T.]

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Esse primeiro passo oferecia pouca dificuldade.Três eminentes sábios de Londres – Hooke, Wrenn e Halley –, que

haviam tentado dá-lo com sucesso, haviam chegado a conclusões se-melhantes. Todos três haviam percebido a importância do princípioe a grandeza do edifício do qual ele devia ser o fundamento, mas to-dos três haviam-no levantado em suas cabeças sem poderem susten-tar o seu peso. Eles tiveram a oportunidade de se encontrar e de dis-cutir sobre a descoberta comum. O jovem Halley, apaixonado pelaciência, desejava – sobretudo – obter dos outros dois esclarecimen-tos e revelações. O espírito exato e prudente de Wrenn não ousavaaventurar-se em um terreno tão desconhecido quanto difícil. Hooke,ao contrário, disfarçando por algum tempo sua impotência sob o exa-gero de suas promessas, fingia uma aparência de grande saber, esbo-çando complacentemente as belas conseqüências do princípio. Po-rém, infelizmente, suas demonstrações só comprovavam a esterilida-de de seus laboriosos esforços. Halley não ficou deslumbrado comisso, e sua viva e séria atenção reduziu-os bem rapidamente ao seujusto valor.

Embora Newton, satisfeito com sua vida tranqüila e retirada, nãocomunicasse nada ao público, o brilho de seus trabalhos não podiapermanecer completamente oculto. Sabendo que ele se ocupava domesmo problema e perdendo a esperança nas promessas de Hooke,Halley partiu para Cambridge. Ele expunha-se fortemente a ser repe-lido, já que Newton não tinha – por hábito – muita disposição paraprodigalizar, assim, os seus tesouros. Porém, tocado por esse arden-te desejo de verdade e talvez sensibilizado por uma admiração tãobem merecida, que vinha encontrá-lo como que por si própria, elefoi, ao contrário, além das esperanças de Halley. Abrindo-lhe, comuma magnífica profusão, a fonte inesgotável desses segredos de umagrandeza até então sem igual, rasgou todos os véus e introduziu onoviço no santuário. Halley pôde contemplar, em seu esplendor pri-

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meiro e original, essas belas demonstrações, que apontam a atraçãocomo o motor tão simples dessa máquina tão composta – quero di-zer, o Universo – cujas misteriosas complicações são por ela expli-cadas, sem enfraquecer-lhe o prodígio. Ele aprendeu com uma admi-ração sempre crescente como, fazendo rolar os astros em sua rotacostumeira e ensinando-lhes onde eles devem se pôr a cada dia, elaassegura para sempre sua boa ordem e sua justa harmonia. Como elalevanta e abaixa alternadamente a massa imensa do oceano, manten-do em limites inflexíveis as agitações regulares de suas vagas sub-missas. É por intermédio da atração que Newton explica, com umaciência consumada, as marchas desiguais da Lua em sua órbita sem-pre cambiante – e que pode ser prevista, hoje em dia, até nas suasmais imperceptíveis particularidades. É ela, enfim, que regula sozi-nha, com uma exata disciplina, o deslocamento secular dos planosonde se movem esses planetas, a alteração insensível mas constantede suas órbitas e o movimento lento e regular do eixo da Terra, queela vincula tão distintamente, por uma relação imediata e necessária,à forma achatada de sua superfície. Enfim, todos os grandes fenô-menos do sistema do mundo acham-se, assim, encadeados com umaadmirável unidade. A teoria física do Universo é reduzida a um úni-co princípio.

Porém, fiel à resolução que havia tomado, Newton não queria publicarnada. Ele não era daqueles que podem ser levados para onde se quer comelogios. A respeitosa e premente insistência de Halley, no entanto, venceu-o. Newton prometeu confiar-lhe a impressão do seu livro. O jovem ini-ciado, transportado de reconhecimento e de alegria, voltou a Londres,cheio do espírito novo, para anunciar e espalhar a boa nova, comparandoa si mesmo com Ulisses levando Aquiles de volta ao combate.

A Sociedade Real, animada pelo seu entusiasmo, votou os fundosnecessários para a impressão da obra, da qual ele exaltava com tantaveemência as sábias maravilhas. Porém, quando chegou o precioso

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manuscrito, a caixa estava vazia. Não querendo aceitar nenhum retar-do, Halley começou imediatamente a impressão e terminou-a às suaspróprias custas, acrescentando-lhe um prefácio em versos latinos quenão carecem de precisão nem de harmonia, dentre os quais alguns setornaram célebres.

A obra foi publicada em 1687. Não conhecemos com maior pre-cisão essa data, que deveria, no entanto, permanecer eternamente me-morável na história da ciência.

Nem todos os olhos se abriram para a luz. Newton ignorava a ar-te de instruir os espíritos comuns descendo ao nível deles. Ele ensi-nou por trinta anos em Cambridge, sem formar ali um único discí-pulo digno dele. A sala de aula ficava muitas vezes deserta no dia dasua aula, e Newton voltava, então, tranqüilamente aos seus trabalhos.É em um outro ambiente que o livro dos Princípios deveria, pela pri-meira vez, servir de pretexto para eloqüentes e sólidos discursos. O célebre químico Boyle havia legado uma renda de cinqüenta libraspara retribuir cada ano das pregações sobre a existência de Deus. O douto e eloqüente Bentley, a quem esta tarefa foi inicialmente con-fiada, escolhendo como texto o célebre e majestoso versículo Cœlienarrant gloriam Dei,38 mostrou na teoria da atração o seu mais magní-fico comentário. E a boca de um pregador protestante, juntando aautoridade da cátedra à certeza das demonstrações, expôs publica-mente o sistema de Newton, cem anos antes da época em que o pa-dre Boscowich, em Roma, nem mesmo ousava confessar-se partidá-rio de Copérnico. O livro dos Princípios causou uma grande impres-são sobre o célebre filósofo Locke, que o leu avidamente. MasNewton, em seu vôo tão firme e tão alto, nem sempre pensa no lei-tor que o acompanha e que seria preciso sustentar. Locke não pôdeacompanhar todos os detalhes das demonstrações. Sem deixar-se de-

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38. “Os céus contam a glória de Deus.” [N. dos T.]

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sanimar nem decepcionar, teve de contentar-se em comparar comuma atenção assídua e perseverante a ordem e o encadeamento dosdiversos capítulos e as fortes e sóbrias reflexões que cintilam, dequando em quando, em meio às fórmulas algébricas. Não menos co-movido que esclarecido pelos raios, mesmo enfraquecidos, destagrande e bela luz, ele não exigiu mais nada. A admiração tomou, pa-ra ele, o lugar das provas e, sem acompanhar em seu sutil rigor os ra-ciocínios profundos que os estabelecem, ele ousou afirmar, com umarefletida convicção, a completa exatidão dos princípios, dos quais aeqüidade natural do seu espírito era capaz de avaliar a força e afecundidade.

Vocês me perguntarão, talvez, por que algumas citações escolhidasnão poderiam dar aqui mesmo, com uma idéia do método, o espíri-to e o que há de essencial no livro, guiando de longe o leitor nos pas-sos de Newton, sem impor-lhe a linguagem intraduzível e desconhe-cida da álgebra. Mas isso seria compreender mal o trabalho difícil esério ao qual o grande filósofo, sem dúvida, dedicou muitos meses.Locke, não é possível esquecer, não era estranho às matemáticas e(por que não dizê-lo) sua inteligência, acostumada à meditação, ul-trapassava em muito a média.

Não faltaram aplausos para o livro dos Princípios, mas reclamaçõese objeções perturbaram, ao mesmo tempo, o espírito inquieto e des-confiado de Newton. Depois de haver enunciado a lei da atração, eleacreditara fazer suficiente justiça a Hooke mencionando seca e fria-mente – segundo o seu costume – as idéias anteriormente emitidassobre o mesmo assunto, misturando em uma mesma frase os nomesde Hooke, Wrenn e Halley. Hooke lamentou-se amargamente. Eleera, é justo dizê-lo, um homem de grande valor intelectual e de umsaber extremamente diversificado. Era capaz de inventar e, acerca demuitos assuntos, havia tido pontos de vista bastante felizes. Aplicadoaos mesmos estudos que Newton, Hooke havia, como ele, durante

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sua infância medíocre e doentia, espantado aqueles que o cercavamcom o sucesso de suas invenções mecânicas. Mais tarde, ele (tambémcomo Newton) perceberia na atração mútua dos corpos celestes aforça que mantém os seus movimentos. Tal como Newton, e inde-pendente dele, Hooke havia afirmado que esta força varia na razão in-versa do quadrado das distâncias. Como Newton, enfim, ele haviafeito importantes descobertas no campo da óptica. Depois de haverassinalado o fenômeno dos anéis coloridos, ele ousara afirmar que aluz acrescentada à luz pode produzir obscuridade. Suas experiênciascom as molas haviam-no conduzido à lei exata da proporcionalidadeentre o esforço e o alongamento. Desta lei, expressa pela célebre fór-mula ut tensio sit vis, ele havia deduzido um meio para regular os reló-gios, e seu nome é mencionado com honra – embora misturado a ar-dentes discussões sobre prioridade – na história do progresso maisimportante da relojoaria.

Hooke era, enfim, um competente arquiteto. A cidade de Londres,após o incêndio de 1666, fez bem em ter seguido os seus conselhos.Porém, as qualidades brilhantes desse homem singular, que poderiater sido o rival de Newton, eram prejudicadas por um grave defeito.Seu gênio empreendedor carecia de perseverança e tinha mais arreba-tamento do que força. Seu temperamento curioso contentava-se emter entrevisto confusamente a verdade, sem submetê-la às provas ri-gorosas da geometria, e seu ardor muito precipitado, deixando sem-pre suas descobertas imperfeitas, não dava senão frutos que não ama-dureciam. Ele havia encontrado – ou, antes, adivinhado por meio deum feliz e súbito esforço – a lei exata da atração. Em seu prementedesejo de assegurar-se da sua posse, ele proclamou-a bem rapidamen-te e chegou a expô-la em lições públicas, apoiando-se em experiên-cias sedutoras e fáceis, que não passavam de engenhosas mas imper-feitas comparações. Em seu impulso brilhante, mas mal regulado,Hooke contentava-se em ter percebido a luz.

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Newton, mais penetrante e mais forte, soube apoderar-se dela esegui-la. Enquanto ele erguia lentamente um monumento imortal,Robert Hooke perseguia, com uma perpétua inconstância, o encadea-mento infinito de suas invenções temerárias. Ele havia imaginado,entre outras excentricidades, um sistema de óculos que mostrava osobjetos invertidos, e aconselhava as pessoas que quisessem servir-sedele a se exercitarem de antemão na leitura às avessas. Os aplausosdados a Newton foram insuportáveis para Hooke. Ele achava-os in-justamente usurpados e cansava todos os ouvidos com seus direitosde prioridade, reclamando obstinadamente a sua parte neles. Newtonfugia das discussões. Mas, quando era forçado a suportá-las, sua có-lera chegava bem rápido aos extremos. Ele raramente mostrava-sejusto. Irritado com a atitude hostil de Hooke, esqueceu-se – comofez, mais tarde, com Leibniz – de que havia reconhecido e proclama-do a independência e a anterioridade de suas idéias. Sem apresentarnenhuma prova, não temeu acusá-lo formalmente de plagiato. “A idéianão era nova”, diz ele, numa carta a Halley.

Eu havia enviado a Oldenburg uma carta destinada aHuyghens e seu hábito era, em semelhantes casos, guar-dar o original, do qual ele remetia uma cópia. É nessa car-ta que Hooke foi buscar a idéia da atração. Ele teve à suadisposição os papéis de Oldenburg e, reconhecendo a mi-nha escrita, deve ter lido a carta, na qual eu apresentava osmeios de comparar a força motriz dos planetas na hipóte-se do movimento circular.

Depois de tal carta, os dois adversários ficaram irreconciliáveis.Hooke lastima-se com mais veemência – dessa vez, não sem algu-

ma razão – e proclama-se, ainda com mais azedume e impaciência, oprimeiro e único inventor. Esqueceu-se de que, por uma lei tão cer-

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ta quanto as da mecânica, ninguém pode – por mais consideração quetenha por si próprio – reger, misturando a ele sua voz, o concerto delouvores que o torna ilustre. Apesar de sua alta posição, suas queixasincessantes foram em vão. Todos os dardos lançados por Hooke vol-taram-se contra seu autor, rebatidos pela glória de Newton, e a cele-bridade de um homem que tinha muitos méritos científicos foi eclip-sada pelo esplendor de um tão grande nome. Os admiradores de seuilustre adversário trataram Hooke como um verdadeiro inimigo e,sob a aparência de desprezarem suas queixas, insultaram sem qual-quer justiça a sua memória. Seu único erro foi, no entanto, obstinar-se insensatamente – na sua presunçosa satisfação consigo mesmo –em medir forças com um gigante, com o qual, ainda hoje, somos for-çados a compará-lo.

A teoria da atração foi aceita quase imediatamente na Inglaterra,mas os sábios do continente resistiram por mais tempo. De início,Newton não teve a seu favor nem o maior número nem os maisilustres.

Dois dos maiores espíritos daquela época e de todos os tempos –Leibniz e Huyghens –, ambos perfeitamente preparados para com-preender a teoria da atração, rejeitaram-na sem exame. Huyghens, cujas descobertas mecânicas haviam aberto o caminho para Newton,acolheu o livro dos Princípios com uma leviandade mais do que desde-nhosa. Não é sem um penoso espanto que, em sua correspondênciacom Leibniz (publicada pela primeira vez em 1834), nós lemos:“Desejo ver o livro do Sr. Newton. Aceito com gosto que ele não se-ja cartesiano, contanto que não nos apresente suposições como a daatração.” E, depois de ter lido o livro:

No que tange à causa do refluxo, apresentada pelo Sr.Newton, não me contento de forma alguma com ela nemcom todas as outras teorias que ele constrói com base no

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seu princípio da atração, que me parece absurdo. (...) Tenhomuitas vezes me espantado de como ele pôde dar-se ao tra-balho de fazer tantas pesquisas e cálculos difíceis que nãotêm outro fundamento senão esse mesmo princípio.

Leibniz pensava do mesmo modo. Dois anos depois da publicaçãodo livro dos Princípios, nas Acta eruditorum de fevereiro de 1689, ele ha-via declarado isso publicamente, sem suavizar com uma única palavrade cortesia o seu tom desdenhoso e indiferente. Assumindo, ao con-trário, o papel de discípulo de Descartes e acreditando dar maior pre-cisão às vãs quimeras desse espírito soberbo, ele havia buscado na im-pulsão de um turbilhão a causa dos movimentos planetários. E, ca-sualmente, após ter chegado à conclusão – por meio de suposiçõesmais do que contestáveis – de que a expressão da força é inversamen-te proporcional ao quadrado da distância, ele acrescenta: “Vejo, pelaresenha apresentada nesta coletânea, que o célebre Isaac Newton che-gou ao mesmo resultado. Ignoro sobre quais princípios ele se funda-menta.”

A obra de Newton havia sido publicada dois anos antes. Enquan-to Huyghens não via nela nada além de uma letra morta e estéril, a curiosidade de Leibniz – no entanto, tão facilmente despertada – nãohavia sido capaz de obter para si um exemplar dela!

Newton, aparentemente indiferente, segundo seu costume, nãobuscou desenganar os leitores das Acta. Porém, uma crítica rigorosa esevera – na qual ele triunfa sobre os erros acumulados por seu adver-sário, que agira com inacreditável leviandade – foi encontrada, escri-ta pela sua própria mão, e publicada, pela primeira vez, em 1850.

A despeito dos dois belos gênios que, julgando a conclusão estra-nha e incrível, vendaram os olhos para não verem as provas dela, es-sa força de atração é incontestável e sua comprovação é levada às úl-timas conseqüências. Newton evita, aliás, com uma grande circuns-

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pecção, procurar a secreta e mútua comunicação pela qual um átomoinanimado pode influenciar um outro e fazê-lo sentir o seu poderatravés dos imensos espaços que os separam: ele estuda os efeitosdas forças e não a sua natureza. Ele jamais teve a pretensão de reve-lar a causa profunda e a própria essência das coisas, nem deixou suaimaginação extraviar-se para esses problemas infinitos – e talvezinacessíveis ao espírito humano. O fato de que as moléculas tendamumas para as outras em virtude de uma lei necessária e primordialou impulsionadas por um mecanismo desconhecido que sua presen-ça faz agir é, para ele, uma questão ao mesmo tempo impossível einútil de ser esclarecida. Apesar desta lacuna – ou, talvez fosse ne-cessário dizer, por causa desta prudência –, o livro dos Princípios é,para quem sabe compreendê-lo, uma das obras-primas e talvez omaior esforço realizado pelo pensamento humano. A dignidade dosresultados é incomparável, assim como sua precisão e sua certeza. E o imenso talento – evidentemente acessório, do seu ponto de vis-ta – que Newton nele ostenta como geômetra eleva sua grandeza aomais alto ponto.

A teoria das fluxões é rapidamente indicada, em uma nota queNewton chama de escólio, mas ela penetra e domina toda a obra, daqual é, ainda hoje, a maior e mais bela aplicação. Quando foi publi-cado o livro dos Princípios, esta teoria – inventada, mas não divulgadavinte anos antes por Newton – não era mais novidade para os geô-metras. Leibniz havia escrito, em 1684, nas Acta eruditorum, uma no-ta de seis páginas que contém, sob uma outra forma, princípios equi-valentes. O próprio Newton reconheceu isso de uma maneira muitoexpressa. Nada parece, portanto, mais simples e mais claro que a his-tória dessa dupla descoberta, sobre a qual, no entanto, tanto se temdiscutido.

Nada poderia fazer prever que haveria nisso matéria para um lon-go processo que, mais de um século depois, ainda seria debatido com

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paixão. A questão da prioridade só foi levantada, com efeito, bemmais tarde. É porque, sem dúvida, a forma tão modesta pela qualLeibniz apresenta sua descoberta dá a medida da importância que ele,de início, atribuía a ela. A grandeza de sua obra foi crescendo poucoa pouco, aos olhos dos inventores e aos de seus discípulos; e, quan-do o método infinitesimal modificou a face da ciência, eles examina-ram seus direitos com mais atenção, os reivindicaram estritamente elogo entraram em uma guerra aberta. Sem tomar partido nessa que-rela, que ainda não está pacificada, limitemo-nos a narrar alguns fa-tos demasiado célebres para que seja possível deixá-los passar em si-lêncio. As minuciosas pesquisas que têm sido realizadas em diversasocasiões levaram, aliás, a questão de volta ao seu ponto de partida. A posteridade, igualmente respeitosa para com a memória dos doisilustres inventores, concedeu a cada um deles a parte de glória que deinício lhe cabia, segundo o reconhecimento de seu próprio rival. E osgeômetras, mesmo considerando as duas teorias como equivalentes,estudam cada uma delas em sua fonte própria, tirando proveito da di-versidade dos pontos de vista, que facilita a sua compreensão e escla-rece a sua filosofia.

Eis aqui quais foram as circunstâncias do célebre debate, ao qualalguns amigos muito fervorosos deram o caráter e a importância deum verdadeiro processo.

Jean Bernoulli – iniciado por seu irmão Jacques nos métodos in-finitesimais –, ao propor aos geômetras o célebre problema da bra-quistocrona,39 havia anunciado (seguindo um costume que, na época,era muito difundido) que lhes dava seis meses para apresentaremsuas soluções, comprometendo-se ele próprio a manter a sua em se-gredo durante esse tempo.

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39. Do grego brakhisto (o mais curto) e chronos (tempo). Trata-se de um tipo de cur-va. [N. dos T.]

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Leibniz foi o único a responder ao apelo de Bernoulli. Mas, comu-nicando-lhe o seu método, ele pedia, no interesse da ciência, que oprazo fosse prorrogado, para permitir que outros geômetras pudes-sem mostrar sua sagacidade. Ele acrescentava que a dificuldade daquestão parecia de tal ordem, que ele acreditava poder designar deantemão os quatro ou cinco geômetras capazes, então, de superá-la,se eles consentissem em assumir esta tarefa.

Fatio de Duillier, membro da Sociedade Real de Londres – que,como testemunham vários de seus trabalhos, tinha feito grandes pro-gressos no conhecimento dos novos métodos –, ficou (ao que pare-cia) profundamente magoado por não ter sido incluído entre os ho-mens hábeis dos quais Leibniz havia dado os nomes. Queixou-seamargamente disso em um escrito publicado em 1699, com o títuloLineae brevissimi descensus investigatio geometrica duplex, no qual ele censu-ra, ao mesmo tempo, o hábito de Leibniz de sempre dirigir-se ao pú-blico. Declara, além disso, que ele próprio, em 1687, encontrou, apartir de suas próprias reflexões, os princípios e as regras principaisdo cálculo das fluxões inventado por Newton, do qual Leibniz nemmesmo chega a ser, diz ele, o segundo inventor.

Como única resposta, Leibniz opôs os testemunhos de estima queele tinha, em todas as ocasiões, recebido de Newton, comprazendo-se ele próprio em exprimir sua admiração pelo autor do livro dosPrincípios e contestando a Fatio o direito de representá-lo em uma dis-cussão que parecia não ter fundamento.

A controvérsia não foi mais longe. Os adversários depuseram asarmas, diz o Dr. Brewster, embora prontos a retomá-las na primeiraoportunidade.

Poucos meses antes da publicação do livro dos Princípios, Newtonteve de abandonar por algum tempo os estudos que tinham sido, atéentão, toda a sua vida. Um caso, em si mesmo insignificante, desper-tava então as paixões da Universidade e inflamava os espíritos de

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fora. O rei James II havia desejado que um velho fidalgo católico, pe-lo qual ele tinha interesse, fosse admitido como pensionista no hos-pital da Universidade. A corporação inteira opôs-se a uma tal novi-dade, afirmando energicamente – e com sucesso – seu direito à orto-doxia. Apesar dessa resistência, o rei quis infringir por uma segundavez a regra, autorizando um beneditino a candidatar-se ao título demestre em artes sem prestar o juramento de fidelidade e de suprema-cia. Esse favor não tinha nada de excessivo. A Universidade haviamesmo concedido, livre e graciosamente, um título semelhante a ummuçulmano. Porém, o muçulmano residia no Marrocos, e o protegi-do de James II solicitava um título real, que lhe teria dado o direitode voto, autorizando para o futuro uma tolerância que não era dese-jada a nenhum preço – e que duzentos anos de progresso não pude-ram, ainda hoje, promover.

O senado do colégio levantou-se veementemente contra a ordemreal. A alta comissão de Westminster, surpreendida por uma resistên-cia tão renitente, convocou o vice-chanceler e oito membros do sena-do. Newton foi um dos oito. O terrível presidente Jeffrys recebeu-oscom a costumeira insolência. Após ter lido para eles, a fim de con-fundi-los, uma passagem da Bíblia que demonstrava claramente a im-pertinência de suas pretensões, ele recusou-se a escutá-los e destituiuo vice-chanceler. A Universidade, sempre firme, escolheu um outroque, mais enérgico ou mais influente, terminou por obter ganho decausa. Sem sair do seu papel modesto e mudo, Newton, nesse episó-dio, por sua energia passiva e sua firmeza em recusar qualquer acor-do, conquistou a confiança de seus colegas. Em 1689 eles o nomea-ram representante da Universidade na Câmara dos Comuns.

A carreira política de Newton teve pouco brilho e, apesar do inte-resse que se tem pelos menores atos de um tão grande homem, ja-mais se tentou fazer a história dela. O professor tímido e despreocu-pado com o sucesso que, enriquecido com tantas descobertas admi-

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ráveis, mal conseguia reunir alguns raros ouvintes jamais tentou en-frentar as tempestades de uma discussão pública. Tranqüilo, em meioàs agitações políticas, ele assistia sem emoção aos acontecimentosmais graves. Após a queda de James, prestou juramento a William,convidando por carta seus colegas de Cambridge a fazer o mesmo:

A fidelidade e a proteção são recíprocas. Como o reiJames deixou de nos proteger, nós deixamos de dever-lhealguma coisa. Hoje, é William quem nos protege e é a eleque nós devemos obediência. Não cabe a mim julgar osoponentes. Se o fato é repreensível, ele está consumado, elimito-me a dizer: Quod fieri non debuit, factum valet.40

Newton atravessou a sessão sem falar e sem agir, sem misturar-seàs intrigas e, talvez, sem conhecê-las; sem tomar o partido de ne-nhum dos lados. Perdido em uma terra estranha, estava no meio da-quelas coisas como se lá não estivesse. É muito natural e bastante di-toso que, com os olhos fixados em uma luz mais elevada, Newton,indiferente às inquietações da ambição e à estafante multiplicidadedas preocupações mundanas, tenha desdenhado todas essas gravesquestões que o tempo carrega sem deixar nenhum vestígio delas. Maspor que, então, aceitar um papel na vida pública? Quando alguém sechama Isaac Newton, não seria trabalhar contra a sua própria glóriaprocurar outras honrarias?

A tolerância de Newton para com as opiniões alheias era absoluta.Contam que, tendo convidado alguns amigos para jantar, na hora

da sobremesa, segundo o costume inglês, ele ergueu um brinde à saú-

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40. “Aquilo que não deveria acontecer, uma vez que acontece, é um fato consuma-do.” [N. dos T.]

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de do rei. Porém, logo percebendo entre os convivas alguma repug-nância em associarem-se a ele: “À saúde de todos os homens hones-tos, cavalheiros” – ele lhes disse. “Nesse ponto, somos todos da mes-ma opinião.” Esses princípios não agradavam a todo o mundo, eNewton não foi reeleito. Ele voltou a Cambridge para tomar posseda sua cátedra e continuar seus trabalhos. A química, naquela época,ocupava-o ainda mais do que a astronomia e as matemáticas. Essaciência, que sempre teve para ele um grande atrativo, estava entãoapenas na infância. Os químicos tateavam nas trevas. A quimérica es-perança de transmutar os metais sustentava e inflamava os mais ar-dentes. Newton compartilhou-a durante toda a sua vida. Em umacarta, escrita em 1668, a um jovem viajante, ele já assinala a “grandeobra” como o assunto que seu correspondente deve particularmenteestudar. Ele próprio procurou-a com paciência e passava uma partedo seu tempo no laboratório. Tantos esforços não resultaram em ne-nhuma descoberta real, mas, sobre a filosofia química, ele erigiuidéias bem superiores às de seus contemporâneos. Nas questões co-locadas na seqüência do tratado de óptica, publicado em 1704, a afi-nidade eletiva dos corpos é claramente formulada como a causa dascombinações químicas, independentemente de qualquer estruturamecânica ou física. Se a água-forte dissolve a prata e não o ouro, en-quanto a água régia, pelo contrário, dissolve o ouro e não a prata, po-de-se dizer que a água-forte é bastante sutil para penetrar no ourotanto quanto na prata. Porém, ela é destituída da força atrativa queseria necessária para introduzir-se nele. A distinção entre as proprie-dades físicas e químicas é, como se vê, claramente e pela primeira vezformulada. Isso é o bastante para assegurar a Newton, na história daquímica, um lugar digno do seu nome. Seus erros são aqueles do seuséculo, e suas esperanças quiméricas, que haviam cegado antes deleos seus predecessores, foram aceitas, ainda muito tempo depois, co-mo incontestáveis verdades.

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Durante os anos que se seguiram a seu retorno a Cambridge, New-ton deixa transparecer, em sua correspondência, uma melancolia euma inquietude doentias que foram crescendo pouco a pouco, até aperturbação. Alguns amigos poderosos haviam feito com que ele es-perasse uma mudança de situação. Sempre tímido e discreto, ele evi-ta solicitações importunas, mas se entristece com as demoras e repe-te muitas vezes que prefere renunciar a tudo. O incêndio do seu la-boratório veio roubar-lhe sua única distração e destruiu papéis degrande valor, entre os quais se encontrava uma parte do seu tratadode óptica. Este último abalo abateu as forças esgotadas de Newton.O excesso de tristeza levou dele, junto com o repouso, o sono. E, se-melhante ao Sol, que desaparece quando completa o seu percurso,sua inteligência, eclipsada por um tempo e enfraquecida, talvez, parasempre, deixou de compreender as demonstrações profundas, das quaissua memória vacilante perdia a todo instante o rastro. Os contempo-râneos de Newton jogaram um véu sobre essa triste época de enfra-quecimento e de prostração, e alguns de seus admiradores ainda fa-zem vãos esforços para contestar a evidência dos testemunhos quenos restam. A dúvida, infelizmente, é impossível. A biblioteca deLeida possui um manuscrito autógrafo de Huyghens, publicado pe-la primeira vez em 1821, por Biot, na sua excelente biografia deNewton – depois da qual não ousaríamos mais abordar o mesmo as-sunto, se numerosos documentos, longamente comentados pelo pró-prio Biot, não tivessem esclarecido muitas questões que eram, então,duvidosas.

Em 29 de maio de 1694, o Sr. Colin, escocês, contou-me que o ilustre geômetra Isaac Newton caiu, há dezoitomeses, em demência, seja em conseqüência de um enormeexcesso de trabalho, seja pela dor que sentiu por ter vistoserem consumidos por um incêndio o seu laboratório de

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química e diversos manuscritos importantes. O Sr. Colinacrescentou que, em seguida a este acidente, tendo-se apre-sentado na casa do arcebispo de Cambridge e tendo feito al-guns discursos que demonstravam a alienação do seu espíri-to, seus amigos, apoderando-se dele, assumiram a tarefa decurá-lo, e tendo-o mantido trancado no seu apartamento,administraram-lhe, por bem ou por mal, remédios por meiodos quais ele recobrou a saúde, de modo que atualmente elerecomeça a compreender seu livro dos Princípios.

Se a autoridade de tal testemunho não parecer decisiva, bastarialer algumas das cartas escritas por Newton durante esse triste perío-do. Em 13 de setembro de 1693, ele escreve a Locke:

Cavalheiro, minha opinião é de que vós haveis procura-do pôr-me de mal com as mulheres. Fiquei tão afetadocom isso que, quando me disseram que vós estáveis doen-te e que não viveríeis, respondi que seria melhor que vósjá estivésseis morto. Rogo-vos que me perdoe essa faltade caridade, porque agora estou persuadido de que aqui-lo que vós fizestes foi justo. Peço-vos perdão pelos meusmaus pensamentos a esse respeito, e de vos haver censu-rado por ter atacado as bases da moralidade com um prin-cípio do vosso livro das Idéias, e de vos ter tomado por umhobbesiano. Eu vos peço também perdão por haver ditoou pensado que vós tínheis o objetivo de vender-me umcargo ou de meter-me em alguma confusão.

Surpreso com semelhante carta, como podemos imaginar, Locke,que há muito tempo conhecia e gostava de Newton, respondeu ime-diatamente com doçura e afeição, pedindo explicações.

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Em 11 de outubro, Newton responde:

Cavalheiro, no inverno passado, cochilando muitas ve-zes junto à lareira, adquiri o mau hábito de dormir, e umadoença – que foi epidêmica nesse verão – aumentou mi-nha indisposição, de modo que, quando vos escrevi, nãohavia dormido mais do que uma hora por noite durantequinze dias, e, durante os cinco últimos dias, não tinhafechado os olhos. Lembro-me de que vos escrevi, mas nãome recordo daquilo que vos disse. Se vós quiserdes reme-ter-me uma cópia desses trechos, eu vos darei uma expli-cação, se puder.

Seria preciso mais para confirmar a verdade, tão evidentementeatestada pela nota de Huyghens? A demência passageira de Newtoné um fato constatado. É impossível ocultá-la ou dissimulá-la: o gran-de Newton era um homem, e sua fraqueza estava submetida a todasas misérias da humanidade.

A luz de sua inteligência libertou-se pouco a pouco das nuvensque a haviam encoberto. As forças desconcertadas de seu espírito,reagrupadas pouco a pouco pelo repouso, deram-lhe ainda alguns cla-rões brilhantes. Porém, a partir de 1692, Newton não fez mais gran-des descobertas.

Por volta de meados de 1694, Lorde Halifax, que gostava muitode Newton e tinha, pelo que dizem, ainda mais interesse pela sua so-brinha, chegou ao ministério e fez com que ele fosse nomeado con-trolador da Moeda de Londres. Seus estudos de química tornavamNewton plenamente capaz de ocupar esse cargo e, poucos anos de-pois, seu nobre protetor pôde, sem despertar reclamações, promovê-lo ao posto importante e lucrativo de diretor da Moeda. Seus novosdeveres, sempre exatamente e cuidadosamente cumpridos, não faziam

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com que Newton se esquecesse de suas pesquisas científicas. Ele sepreocupava, sobretudo, com a teoria da Lua: um dos mais admiráveiscapítulos do livro dos Princípios é dedicado a isso, sem explicar todasas bizarras irregularidades que, após terem atormentado durante 2 mil anos os observadores mais competentes e mais pacientes, conti-nuam a desafiar ainda hoje a ciência da nossa época. A determinaçãodo movimento da Lua, submetida às ações simultâneas do Sol e daTerra, é o célebre problema dos três corpos, cuja solução, não menosdifícil e muito mais importante que a da quadratura do círculo, ter-minará, sem dúvida, da mesma maneira (para a satisfação dos espíri-tos razoáveis), com uma aproximação indefinida que, sem superar asdificuldades teóricas, permitirá aos calculadores pacientes aumenta-rem ilimitadamente a exatidão e a extensão das tabelas. Newton já ha-via mensurado, em seus esforços, a dificuldade do problema. Não po-dendo resolvê-lo com um completo rigor, ele considerava as observa-ções como um modo de manter em equilíbrio suas conclusões mui-tas vezes ousadas. Queria, antes de arriscar um novo passo, confir-mar a exatidão de todos os precedentes. As tabelas da Lua eram, en-tão, muito imperfeitas. Foi justamente sabendo disso que o rei Car-los II havia criado, principalmente para aperfeiçoá-las, o observatóriode Greenwich. O astrônomo real Flamsteed, ao qual foi confiada asua direção, era competente e cheio de zelo. Ele conhecia o gênio deNewton e fazia-lhe justiça. Embora disposto a fornecer as informa-ções, ele desejava, no entanto (e com justa razão), dar a elas, antesde qualquer coisa, a perfeição da qual ele se considerava capaz.Porém, o impaciente Newton desejava-as imediatamente e, parecen-do exigi-las como uma dívida, pressionava e importunava incessante-mente Flamsteed – não fazendo uso, é preciso admiti-lo, em suas re-lações com um sábio distinto e da mesma idade que ele, de toda acortesia da qual seu mérito superior e incontestado não deveria tê-lodispensado. Recebendo de Flamsteed, após pedidos prementes e rei-

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terados, 150 observações da Lua, Newton, como único agradecimen-to, escreveu-lhe:

Depois que eu vos ajudei, quando estáveis atolado emvossas três grandes obras (a teoria dos satélites de Júpiter,vosso catálogo das estrelas fixas e vossa empreitada paracalcular o lugar da Lua); depois que eu vos comuniqueiaquilo que era perfeito no seu gênero (tanto quanto pu-de julgá-lo) e de maior valor que várias observações, aqui-lo que (em um dos casos) custou-me mais de dois mesesde trabalho árduo – que eu jamais teria realizado se nãofosse por vossa causa – e que eu vos disse haver realizadopara ter alguma coisa para vos oferecer em troca das ob-servações que vós me fizestes esperar. Todavia, fazendo is-so e não tendo a aparência de obtê-las ou de ter as cópiasde vossas observações retificadas, eu perdi as esperançasde organizar a teoria da Lua. (...) Porém, agora que vós meofereceis as observações anteriores a 1690, aceito vossaoferta com reconhecimento.

Flamsteed, querendo discutir novamente o seu trabalho e revê-locuidadosamente, havia exigido que ele não fosse comunicado nem pu-blicado sem a sua autorização. Newton cometeu o grave erro de esque-cer esta condição ou de não levá-la em conta. Foi ele, no entanto, quemse queixou. Flamsteed havia remetido a Wallis uma nota destinada àimpressão na qual, falando de suas observações, ele anunciava ao públi-co – como era verídico – que elas haviam sido entregues a Newton pa-ra ajudá-lo em seus trabalhos sobre a Lua. Newton soube disso pela in-discrição de um amigo de Wallis e, como sua imaginação doentia vissenesse fato inconvenientes que nós não podemos adivinhar, escreveu aFlamsteed com mais do que mau humor:

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Não gosto de ver meu nome ser impresso em qualqueroportunidade e menos ainda de ser importunado e ator-mentado por estranhos sobre questões matemáticas, oude dar a impressão a meus concidadãos de que eu desperdi-ço o tempo que deve ser empregado nos assuntos do rei.Por conseguinte, pedi ao Dr. Gregory que escrevesse aWallis, para impedi-lo de imprimir a passagem que tinharelação com esta teoria e de falar de qualquer forma emmim. Vós podeis, se quiserdes, fazer saber ao público quevós possuís um grande número de observações de todosos tipos e que cálculos vós haveis feito para retificar asteorias dos movimentos celestes. Porém, os trabalhos devossos amigos não deveriam ser publicados sem a permis-são deles. Espero que vós resolvais o assunto de modo aque, nesta ocasião, eu não seja posto em cena.

Apesar das censuras que lhe dirigia, Newton, que tinha necessida-de de Flamsteed, voltou várias vezes a visitá-lo em Greenwich e con-vidou-o para jantar em sua casa, em Londres. Ele pressionava-o a pu-blicar a totalidade de suas observações. Mas Flamsteed, que sempredesejava completá-las e corrigi-las, recusava-se a isso com obstinação.Para obrigá-lo, contra a sua vontade, Halifax, junto a quem Newtontinha todo o crédito, fez com que o príncipe George da Dinamarca,esposo da rainha Ana, concedesse uma importante soma destinada apagar os custos da publicação. Esta soma foi confiada a uma comis-são da qual Flamsteed não fazia parte e que lhe solicitou a comuni-cação de seus registros. Flamsteed recusou. Para vencer sua oposição,obteve-se uma ordem da rainha, e a publicação começou sem queFlamsteed fosse chamado até mesmo para corrigir suas provas. Elequeixava-se amargamente e, em uma reunião na casa de Newton, che-gou a dizer que seu trabalho estava sendo roubado. Diante disso,

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Newton, deixando-se levar – diz Flamsteed – pela violência naturaldo seu caráter, cobriu-o de injúrias que ele não ousou reproduzir, edas quais a mais suave foi chamá-lo de puppy.41 A impressão conti-nuou sem a participação de Flamsteed. Halley compôs e fez impri-mir o prefácio. Halifax era onipotente e nada recusava a Newton.Flamsteed queixava-se inutilmente, até o dia em que a morte da rai-nha Ana, levando ao poder alguns de seus amigos, permitiu que eleobtivesse justiça. Foi dada ordem para que lhe fossem entregues osexemplares da obra na qual ele tinha uma tão grande participação. Eleapressou-se a examiná-la com pouca benevolência, devemos crer. E, achando-a defeituosa e cheia de erros, ele queimou com suas pró-prias mãos os quatrocentos exemplares.

Em todo este episódio, o amor pela ciência parece – é preciso re-conhecer – ter feito com que Newton perdesse, junto com os hábi-tos de calma e de moderação sistemáticas, o próprio sentimento dejustiça e dos direitos de cada um. Porém, Flamsteed, que, nas suasmemórias, conta minuciosamente todos esses detalhes, mostra-se –pelo seu lado – demasiadamente passional para que possamos acre-ditar em todas as suas acusações contra o caráter de Sir Isaac (ouaceitar, sem desconfiança, o retrato severo que dele esboça).

Flamsteed não é o único contemporâneo de Newton que o admi-rou sem gostar dele. O Dr. Whiston, inicialmente suplente e depoissucessor de Newton em Cambridge, havia emitido, sobre algunspontos do Novo Testamento, algumas opiniões heterodoxas. Ele contanas suas Memórias que, tendo sido apresentado por Halley e Hookecomo candidato à Sociedade Real, Newton, que era o presidente daentidade, declarou que nunca, com o seu consentimento, seria no-meado um herético, e que se Whiston fosse nomeado, ele deixaria apresidência. Whiston, querendo – como diz ele – poupar uma con-

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41. “Cachorrinho”. [N. dos T.]

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trariedade a um tão grande homem, logo renunciou à sua candida-tura. Ele escreveu:

Se o leitor deseja saber a verdadeira causa da inimiza-de de Newton por mim, recordarei que, durante mais devinte anos, fui honrado com a sua consideração e a sua es-tima. Porém, como ele exigia uma submissão completa eabsoluta, da qual eu algumas vezes me afastava, e como euchegava ao ponto de contestá-lo, ele afastou-se de mim.Durante os últimos trinta anos de sua vida, eu não torneimais a vê-lo. Seu temperamento era o mais tímido, o maiscircunspecto e o mais prudente que jamais conheci. Nun-ca, enquanto ele estava vivo, eu teria ousado publicar a re-futação tão completa e tão triunfante do seu sistema decronologia: com seu caráter, que eu bem conhecia, um talgolpe o teria matado.

Depois da publicação do livro dos Princípios, Newton, como já dis-semos, não fez outras grandes descobertas. Porém, ele ainda tinha depublicar diversas obras-primas compostas na sua juventude que, emseu amor inquieto pelo repouso, tinha posto tanta obstinação emconservar inéditas. Foi somente em 1704 que ele entregou ao públi-co a primeira edição da sua óptica. As principais partes desse belo li-vro haviam sido sucessivamente apresentadas, uma trintena de anosantes, à Sociedade Real de Londres. Encontra-se aí, além disso, a ex-posição da célebre teoria dos acessos – que não é outra coisa que aexpressão bastante detalhada e bastante clara do fenômeno dos anéiscoloridos produzidos em torno do ponto de contato de duas lentesligeiramente curvadas. Não existe no livro, propriamente falando,nem teoria nem explicação, apenas o enunciado do fenômeno, elegan-temente reproduzido em outros termos. Só um século mais tarde o

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Dr. Young e o nosso ilustre Fresnel, vinculando esses curiosos fenô-menos à teoria das ondulações, fizeram deles – ao mesmo tempo –uma das provas decisivas da teoria que os explica.

A opinião de Newton sobre a natureza da luz não era absoluta-mente oposta ao sistema das ondulações. Um meio etéreo é, segun-do ele, absolutamente necessário à produção dos fenômenos ópticos– sem que, no entanto, as vibrações desse meio constituam a luz. Nasua opinião, a luz consistia, ao contrário, no envio incessante de par-tículas infinitamente tênues, emanadas de corpos luminosos e que,movendo-se no éter, deviam fazer nascer nele vibrações cuja reaçãoinfluía novamente sobre as aparências observadas. Porém, a partemais inovadora do tratado de óptica, no momento de sua aparição,era inegavelmente a célebre série de questões que o concluem e que,no seu conjunto, abrangem com ousadia os problemas mais misterio-sos e mais elevados da física, da química e do sistema do mundo.Laplace, no começo desse século, havia proposto a Biot, já célebre pe-los seus primeiros escritos, que redigisse as Respostas do século XIX àsquestões de Newton. O último defensor da teoria da emissão talveznão fosse o homem mais apropriado para semelhante tarefa: o proje-to não teve prosseguimento. Porém, após cinqüenta anos de novostrabalhos e do triunfo manifesto e completo da teoria ondulatória,seria possível, talvez, retomá-lo utilmente hoje em dia e, mesmo dei-xando numerosos pontos de interrogação, inscrever nesse quadromais de uma bela página.

A obra era seguida de um tratado sobre a quadratura das curvas,composto cerca de quarenta anos antes. Na introdução que o prece-de, Newton declara – sem, desta vez, citar Leibniz – que o métododas fluxões havia se apresentado no seu espírito durante os anos de1665 e 1666. Fazendo a resenha dessa obra, o redator das Acta erudi-torum – que, muito provavelmente, não era outro que o próprio Leib-niz – dá a impressão, ao contrário, de falar dos “diferenciais do

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Sr. Leibniz”, que Newton “substitui e sempre substituiu pelas flu-xões”, e de que ele faz um elegante uso em sua obra sobre os princí-pios da filosofia natural.

Um amigo de Newton, chamado Keil, vendo nessa passagem umaacusação perfidamente dissimulada, logo publicou, nas Transações filo-sóficas,42 uma carta sobre as leis da força centrípeta, cuja principal fi-nalidade parece ser a de falar casualmente da teoria das fluxões, acu-sando Leibniz de plágio. Leibniz dirigiu-se, então, à Sociedade Real,da qual era membro, contestando a um homem jovem como Keil odireito de pronunciar-se tão ousadamente sobre matérias nas quaisele não podia estar instruído e solicitando que se pusesse fim a essesvãos e injustos clamores, censurados, sem dúvida – acrescenta ele –pelo próprio Newton. Porém, nisso ele se enganava. Embora Newtontenha evitado aparecer pessoalmente no debate, está provado que Keilagia com seu consentimento e não escrevia nada sem consultá-lo.Seja como for, a Sociedade, intimada a se pronunciar, nomeou umacomissão que, menos de um ano depois, publicou um relatório bas-tante curto, precedido de um volume várias vezes reimpresso com otítulo Commercium epistolicum43 J. Collins e aliorum de varia re mathematicainter celeberrimos praesentis seculi mathematicos, una cum recensione praemissa in-signis controversiae inter Leibnitium et Keilium de primo inventore methodiFluxionum; et judicio primarii, ut ferebatur, mathematici subjuncto, iterumimpressum.

Essa coletânea, preciosa para a história da ciência, contém umgrande número de comunicações matemáticas trocadas pelos geôme-tras ingleses – seja entre eles, seja com Leibniz. Porém, a maior par-te dessas peças é estranha ao debate; complicam muito mais a ques-tão do que a esclarecem.

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42. Philosophical Transactions of the Royal Society of London. [N. dos T.]43. Esse título, da segunda edição, foi redigido por Newton, que experimentou, co-mo prova o exame dos seus papéis, até doze redações diferentes. [N. do A.]

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Após terem recordado a história de uma descoberta anunciada porLeibniz, e que dera lugar a uma reclamação de prioridade reconhecida-mente fundamentada, os comissários decidem sobre seus direitos à des-coberta do cálculo diferencial com uma autoridade que não convinha nema homens pessoalmente tão obscuros nem aos amigos de seu rival, traba-lhando sem confessá-lo sob os olhos de Newton, que os auxiliava (e issofoi depois comprovado) com a sua ativa colaboração. Sua obra, que mos-tra mais paixão do que zelo pela verdade, já seria o suficiente para preca-ver-nos contra as asserções injuriosas a Leibniz que ali estão escritas.

Em uma obra cujo caráter deveria ser o da mais imparcial sinceri-dade, eles substituíram os papéis de acusadores e de advogados pelode juízes, não temendo apresentar suas predisposições ou suas con-jecturas como verdades constatadas. Seria, portanto, imprudente con-ceder-lhes uma confiança absoluta, e os materiais que eles nos trans-mitiram devem ser submetidos a uma crítica severa.

De acordo com o seu relatório, as pretensões de Leibniz não teriamnenhum fundamento. Ele queixava-se em vão. Escreveu a Chamber-layne:

Mas eu não sei por qual chicana e por qual embuste al-guns fizeram de modo com que se tomasse a coisa comose eu me queixasse perante a Sociedade e me submetesseà sua jurisdição, aquilo em que jamais pensei. De acordocom a justiça, deveriam ter-me feito saber que a Sociedadequeria examinar a fundo esse caso e deviam ter-me dado aoportunidade de declarar se eu queria apresentar minhasrazões e se eu não considerava algum dos juízes comosuspeito. Assim, o que foi pronunciado não passa de unaparte audita,44 de uma maneira cuja nulidade é visível. Não

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44. Quando, num procedimento judicial, apenas uma das partes é ouvida. [N. dos T.]

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creio que a sentença que foi emitida possa ser encaradacomo uma decisão da Sociedade.

No entanto, o Sr. Newton fez com que ela fosse publi-cada em todo o mundo, por intermédio de um livro im-presso expressamente para desacreditar-me e enviado paraa Alemanha, a França e a Itália como se fosse em nome daSociedade. Esse pretenso julgamento e essa afronta feitasem motivo a um dos mais antigos membros da própriaSociedade – e que não causou a ela qualquer desonra –não encontrarão no mundo muita gente que os aprove. Naprópria Sociedade, espero que nem todos os membros es-tejam de acordo com isso. Alguns competentes franceses,italianos e outros desaprovam enfaticamente esse procedi-mento e surpreendem-se com ele; tenho, sobre isso, algu-mas cartas escritas por eles próprios. As provas produzi-das contra mim lhes parecem bem frágeis.

No entanto, a partir do momento em que a comissão se pronun-ciou, os geômetras ingleses adotaram suas conclusões e as conside-raram como solidamente estabelecidas. É o que Taylor admite naobra intitulada Methodus incrementorum, onde o nome de Leibniz nemmesmo é pronunciado. É o que MacLaurin confirma no Treatise of Flu-xions, publicado em 1735. É, enfim, aquilo que Buffon repete commais veemência no prefácio da tradução de uma obra de Newton.Leibniz, se aceitarmos sua narrativa, teria juntado a uma indesculpá-vel má-fé uma inabilidade quase ridícula.

A posteridade, no entanto, não ratificou a acusação de plagiato tãolevianamente lançada contra Leibniz e não existe nenhuma prova con-trária à perfeita inocência dos grandes gênios que estão em causa.Devemos, portanto, conceder a ambos a honra da descoberta que am-bos declaram haver feito.

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É insistir demais sobre essas vãs discussões, que nada podemacrescentar à ciência. Embora a publicação de Newton tenha sidoposterior à de Leibniz, está provado que ele nada lhe deve. Porém, tu-do leva a crer que ele também em nada o ajudou. Na ausência de pro-vas positivas, quem ousaria suspeitar que Leibniz, tão sincero e tãodevotado à verdade, pudesse ter dissimulado a ajuda que teria recebi-do de um rival? Toda a sua vida, tantas vezes e tão minuciosamenteestudada, absolve-o de uma tal imputação. O sistema que sustentamseus adversários é, aliás, inadmissível em si. Eles o acusam, com efei-to, de haver voluntariamente dissimulado algumas verdades que nu-merosas testemunhas teriam podido facilmente afirmar quando daprimeira publicação. Se somente a prudência, na ausência de senti-mentos mais dignos dele, não tivesse sido suficiente para impedi-lode encarar – sendo merecedor dela – uma acusação tão grave, comoacreditar que os amigos de Newton tivessem esperado 25 anos paradesmascará-lo? Suas censuras, em vez de envenenarem-se lentamentepela acrimônia de uma longa e tardia discussão, teriam logo de iní-cio se manifestado para desconcertá-lo.

Leibniz e Newton partilham, portanto, a glória de terem inventa-do o cálculo diferencial e, embora diversamente ilustres, cada um de-les deve considerar-se honrado por ter encontrado semelhante êmu-lo. Embora no fundamento eles estejam completamente de acordo,encontram-se – na forma que eles adotaram – as marcas de seus gê-nios tão dessemelhantes. Um, mais preocupado com as leis doUniverso do que com as do espírito humano, parece ver nos novosmétodos, sobretudo, o instrumento de seus esforços para penetrar anatureza e, designando-lhe uma finalidade mais elevada, mostroumelhor todo o seu alcance. O outro, que punha sua glória em aper-feiçoar a arte de inventar, marcou mais claramente o caminho, e nósseguimos ainda hoje os traços luminosos que ele deixou. O primei-ro, só produzindo suas descobertas depois de ter amadurecido lon-

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gamente a forma delas, pôde conferir a seus trabalhos alguma coisade mais acabado e de mais sólido, fazendo brotar de seu pensamen-to todas as verdades que ele continha.

O segundo, mais hábil em assinalar as linhas gerais, gostava de en-volver-se em questões mais variadas, despertando idéias justas e fe-cundas, e deixando para outros o cuidado de segui-las e desenvolvê-las. Newton raramente acreditava ser obrigado a enunciar a regra, antes de fazer a sua aplicação. Leibniz, ao contrário, gostava de darpreceitos e mostrava-se mais solícito em propor belos problemas doque em seguir os pormenores de suas soluções. Se Newton, mais di-ligente, houvesse publicado dez anos mais cedo sua teoria das flu-xões, o nome de Leibniz permaneceria um dos maiores na história doespírito humano. Mas, mesmo incluindo-o entre os geômetras deprimeira ordem, é sobretudo às suas idéias filosóficas e à universali-dade dos seus trabalhos que a posteridade vincularia a sua glória. SeLeibniz, ao contrário, abordando mais cedo o estudo das matemáti-cas, pudesse ter arrebatado de seu rival a honra pela sua descobertacomum, nem por isso se admiraria menos no livro dos Princípios, jun-to com a majestosidade dos resultados obtidos, o incomparável bri-lho dos detalhes. Mesmo perdendo seus direitos à invenção do mé-todo que aí se encontra empregado com tanta arte, Newton perma-neceria na mesma posição que hoje ocupa entre os geômetras, querodizer, ao lado de Arquimedes e acima de todos os outros.

Longe de poder, neste curto esboço, analisar todos os escritos deNewton, nem mesmo tentaremos citá-los. Existem dois, no entanto,nos quais dificilmente se reconheceria a mão do autor dos Princípiose que, por esta mesma razão, nós não podemos deixar de mencionar.

Newton considerava as coisas divinas como as mais dignas de ocu-par os seus cuidados e era tido como muito habilidoso nas contro-vérsias religiosas. Compôs grande número de escritos teológicos, nosquais os juízes competentes encontraram mérito e saber. O mas cita-

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do é um comentário sobre o Apocalipse e sobre as profecias de Daniel.Tem-se buscado fazer com que a composição dessa obra, da qual nãoquero me fazer juiz, remonte ao triste período do seu enfraqueci-mento mental. Esta conjectura não é fundamentada. Porém, as pro-vas concludentes que têm sido apresentadas sobre isso teriam sidoconsideradas inúteis, se estivéssemos tratando da Óptica ou do livrodos Princípios.

Muita gente fica espantada, sem tê-lo lido, por ver semelhante li-vro ser assinado por Newton. Outros têm censurado com amargurao fato de ele haver assinalado a Igreja romana no décimo primeirochifre da quarta besta de Daniel. É justo acrescentar que, ridícula ounão, esta interpretação não é dele. A obscuridade do Apocalipse tempermitido, através dos tempos, que o fervor dos sectários distorça oseu sentido de acordo com a sua fantasia. Desde o começo da Refor-ma não se deixava de mostrar a condenação da Igreja romana e oanúncio de sua ruína bastante próxima. Todas as lojas dos livreirosestavam repletas, diz Bossuet, de livros semelhantes.

Ao lado do tratado sobre o Apocalipse coloca-se naturalmente, nasobras de Newton, uma longa carta ao geólogo Burnet,45 autor da teo-ria bíblica da Terra. A complicação e a vasta extensão do Universotornam, segundo o devoto bispo, a sua organização bem difícil emseis dias. Newton, para contentá-lo, observa doutamente que é pos-sível, sem impiedade, supor esses dias tão longos quanto seja neces-sário. Na origem dos tempos, como a eternidade sempre permanen-te não tinha medida nem termo, não contavam-se os dias. Foi a rota-ção do globo que os distinguiu, medindo-os. Ora, não é possívelacreditar que uma massa como a da Terra tenha adquirido imediata-mente uma enorme rapidez e a força – qualquer que ela seja – que

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45. Thomas Burnet (1635?-1715), teólogo e autor dos livros Telluris theoria sacra eArchaeologiae philosophicae. [N. dos T.]

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produziu a rotação do globo, imprimiu-lhe um movimento unifor-memente acelerado. Se admitirmos que, no primeiro ano, a Terra rea-lizou apenas uma única volta, segundo as leis da mecânica ela terá da-do três no segundo ano, cinco durante o terceiro e foi após 182 anosde revoluções que, tendo adquirido a velocidade definitiva de 365voltas por ano, a força pôde interromper sua ação. Os dias, na ori-gem das coisas, eram, portanto, muito longos. Esta engenhosíssi-ma hipótese aumentaria a vida de Adão em cerca de noventa anos.Porém, como observa Newton, isso não vem ao caso (“it is not suchgreat business”).

Sinto toda a minha incompetência e tenho pressa em acabar comsemelhantes questões. No entanto, não há como não mencionar apassagem, tantas vezes lembrada, na qual Newton, dominado pelamagnitude do tema, após haver revelado o segredo dos movimentoscelestes, tenta, terminando seu belo livro, elevar-se ainda mais alto,até a fonte de toda a verdade. Diz ele, falando de Deus:

Aquele rege tudo, não como alma do mundo, mas co-mo Senhor universal de todas as coisas. Por causa de suasoberania ou senhorio, tem-se o costume de chamá-lo deSenhor Deus. Porque Deus é um termo relativo pelo qualse designa a relação entre o amo e o escravo e a deidade éa soberania de Deus; não aquela que ele exerceria sobreseu próprio corpo – como querem os filósofos que fazemde Deus a alma do mundo –, mas aquela que ele exerce so-bre os seus escravos. Esse Deus supremo é um ser eterno,infinito, absolutamente perfeito: porém, um ser que nãotem nenhuma soberania, ainda que seja perfeito, não é demodo algum um Senhor Deus. Com efeito, nós dizemos:Meu Deus, vosso Deus, o Deus de Israel, o Deus dosDeuses e o Senhor dos Senhores. Mas não dizemos: Meu

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Eterno, vosso Eterno, o Eterno de Israel ou o Eterno dosDeuses; nós não dizemos “meu Infinito” ou “meu Perfei-to”, e a razão disso é que esses títulos não designam demodo algum um ser como soberano sobre escravos. Emgeral, a palavra Deus significa Senhor; mas nem todo se-nhor é Deus. É a soberania, na qualidade de Ser espiritual,que constitui o Deus. Se ela é real, ele é real; se ela é su-prema, ele é supremo; se ela é imaginária, ele é imaginá-rio. Do fato de que esta soberania é real, segue-se queDeus é real, que ele é vivo, inteligente, poderoso. De suasoutras perfeições, segue-se que ele é supremo ou supre-mamente perfeito. Ele é eterno e infinito, onipotente eonisciente, ou seja, perdura desde a eternidade, preenchea imensidão com sua presença, rege tudo e conhece tudo,aquilo que acontece e aquilo que pode acontecer. Ele nãoé a duração e o espaço, mas dura e está presente, durasempre e está presente em toda parte, constitui a duraçãoe o espaço. Como cada parcela do espaço está sempre e co-mo cada momento indivisível da duração está em toda par-te, é impossível que o fabricante e Senhor soberano de to-das as coisas deixe de estar em algum momento ou em al-gum lugar. Toda a alma pensante é a mesma pessoa indi-visível em diversos tempos, em seus diferentes sentidos,nos diferentes movimentos de seus órgãos. Se existempartes sucessivas em nossa duração e simultâneas em nos-sa extensão, não existem partes de nenhuma espécie – nemsucessivas nem simultâneas – em nossa pessoa, quer dizer,em nosso princípio pensante. Com mais forte razão, nãoexistem partes na substância pensante de Deus. Todo ho-mem, enquanto coisa pensante, é um único e mesmo homem ao longo de toda a duração de sua vida, em todos

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os seus órgãos e em cada um dos seus órgãos. Do mesmomodo, Deus é um único e mesmo Deus sempre e em todaparte. Ele é onipresente, não somente por sua potência ativa,mas ainda por sua própria substância; porque a potência nãopode subsistir sem a substância. Todas as coisas estão conti-das n’Ele e movem-se n’Ele, sem que nem Ele nem elas expe-rimentem qualquer impressão. Porque Ele não é afetado demodo algum pelos movimentos dos corpos, e os corpos nãoencontram nenhuma resistência na onipresença de Deus.

Esta passagem, cuja obscura sutileza contrasta singularmente coma luminosa precisão do resto da obra, não se encontra na primeiraedição. Terá sido útil acrescentá-la?

Newton havia sido nomeado, em 1703, presidente da Sociedadede Londres. Desde 1701, havia sido chamado de volta ao parlamen-to; ele conservou as duas funções até a morte. Sua velhice foi feliz; aadmiração de seus contemporâneos igualou a da posteridade. O mar-quês de L’ Hôpital perguntou um dia a um inglês que conheciaNewton se o autor do livro dos Princípios, submetido às necessidadesda humanidade, dormia, comia e bebia como os outros homens. Elepôde continuar, até o derradeiro dia, com seus estudos e trabalhos,sem temer as contestações que tanto o haviam assustado na sua ju-ventude e das quais, doravante, estava preservado pela autoridade im-ponente do seu nome. Cercado pela família de suas sobrinhas, quesabia ter orgulho dele, alcançou pacificamente e sem enfermidades aidade de 84 anos, e morreu após uma dolorosa moléstia suportadacom coragem e resignação, sem queixas e sem impaciência.

O nome de Newton é de tal modo grande, que somos tentados,quando o pronunciamos, a esquecer as palavras de Pascal: “Os gran-des homens, por mais elevados que estejam, são sempre semelhantesaos menores em alguma coisa.”

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Newton não escapou à lei comum. Seu gênio científico é incompa-rável, assim como a importância e a majestosidade das questões aindaintactas sobre as quais ele se debruçou. Porém, sua superioridade e suagrandeza ficam limitadas a isso. Para todo o resto, ele em nada ultrapas-sa o nível comum, e esse espírito, tão claro e tão firme quando se tratada ciência, parece, nas questões de uma outra ordem, tímido, bizarro e,apesar de sua irrepreensível virtude, algumas vezes até mesmo medíocre.

Durante sua longa carreira, tantas vezes e tão minuciosamente es-tudada, não se conhece dele nenhuma amizade profunda e sincera.Um de seus visitantes mais assíduos era, em Cambridge, o químicoVigani, com o qual ele gostava de conversar. Newton rompeu com elepor tê-lo escutado contar uma história um pouco licenciosa.

Quando as cartas de Newton saem do círculo das suas idéias ha-bituais, elas parecem pouco dignas de um tão grande espírito. Em1704, ele escrevia a uma jovem viúva, Lady Norris:

Madame, vosso grande pesar pela perda de Sir Williammostra que, se ele tivesse recuperado a boa saúde, vós te-rieis ficado feliz de viver com um marido e, por conse-guinte, vossa aversão por vos casar novamente, agora, nãopode provir de outra coisa além da lembrança daquele quevós haveis perdido. Pensar sempre nos mortos é levar umavida melancólica em meio aos sepulcros. E a doença à qualo pesar vos conduziu, quando vós recebestes a primeiranotícia de vossa viuvez, mostra a que ponto ele é inimigode vossa saúde. Podeis vos decidir a passar o resto de vos-sos dias no pesar e na doença? Podeis vós decidir a usar otraje de viúva, um traje que é menos agradável à socieda-de, um traje que vos recordará sempre do marido que vóshaveis perdido e que, por isso mesmo, ocasionará vossopesar e vossa indisposição até que vós o tiveres deixado?

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O remédio adequado para todos esses males é um no-vo marido, e saber se vós deveis aceitar o remédio para es-sas moléstias é uma questão sobre a qual, eu espero, vósnão tereis necessidade de refletir por muito tempo. Saberse vós deveis usar constantemente o triste traje de viúvaou brilhar ainda entre as outras damas; se vós deveis pas-sar o resto de vossos dias alegremente ou na tristeza, comboa saúde ou doente, são questões que não pedem muitaconsideração antes de serem decididas. Aliás, vossa vidapoderá estar em melhor relação com vossa qualidade coma ajuda de um marido do que vivendo sozinha com vossosbens. E, uma vez que a pessoa proposta não vos desagra-de, não duvido que, dentro em pouco, vós me comuni-queis vossa inclinação para vos casar ou que, pelo menos,vós me deis a permissão de conversar convosco sobre isso.

Tem-se suposto que Newton, nessa carta, estava defendendo suaprópria causa e que ele mesmo era o pretendente tão singularmenteoferecido a Lady Norris; outros afirmaram que, absorvido em seusgrandes pensamentos, ele jamais conheceu o amor: as duas tradiçõespodem conciliar-se. Se a carta a Lady Norris pode ser, a rigor, um pe-dido de casamento, ela não é certamente uma carta de amor.

Newton, como se pode ver por sua carta a Lady Norris, conhe-cia bastante mal o papel de consolador. Mas era compassivo por na-tureza, e sua mão abria-se facilmente para assistir aos infelizes.Temendo acima de tudo os importunos, ele preferia, sem dúvida,desembaraçar-se deles rapidamente, mandando-os embora satisfei-tos. Porém, sua benevolência nem sempre esperava até ser solicita-da e, mesmo muito tempo antes que tivesse ficado rico, ele foi vis-to provendo as necessidades de toda uma família subitamente caí-da em desgraça. Apavorando-se com a simples idéia de uma discussão,

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ele aparentava uma inalterável paciência, e as contestações pareciamdeixá-lo impassível. Ele não as esquecia, no entanto, nem as perdoava.Seu orgulho, timidamente medroso, tinha por vezes singulares mo-mentos de despertar. Em 1721, cinco anos depois da morte de Leibniz,Bernoulli havia manifestado o desejo de possuir o seu retrato. Newtonrespondeu:

Demoivre disse-me que Bernoulli desejava ter a minharetratação; porém, ele ainda não reconheceu publicamen-te que eu possuía o método das fluxões em 1672, comoestá dito no elogio de Leibniz, publicado na história devossa Academia. Ele ainda não reconheceu que eu apresen-tei, na primeira proposição do livro das Quadraturas, pu-blicado em 1683 por Wallis, e que em 1686, lem. 2, livroII dos Princípios, eu demonstrei sinteticamente a verdadei-ra regra para diferenciar as diferenças e que eu possuía, noano de 1672, a regra para determinar a curvatura das cur-vas. Ele ainda não reconheceu que, no ano de 1669, quan-do escrevi a análise por séries, eu tinha um método paraquadrar exatamente as linhas curvas, quando isso pode serfeito, que está explicado em minha carta a Oldenburg, da-tada de 24 de outubro de 1676, e na quinta proposiçãodo livro das Quadraturas. E também que tabelas de curva-tura, que poderiam ser comparadas com seções cônicas,foram compostas por mim naquela época. Se ele admitis-se essas coisas, isso poria fim a todas as disputas, e entãoeu não poderia recusar-lhe facilmente a minha retratação.

Acrescentemos, como um último exemplo, a seguinte carta que, deacordo com os editores que a publicaram, contém uma interessanteopinião de Newton sobre a pena de morte:

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Milorde, não conheço de forma alguma Edmund Met-calf, condenado pelas cortes de Derby por ter falsificadodinheiro. Porém, já que ele é evidentemente culpado, mi-nha opinião é de que mais vale fazer com que ele seja pre-so do que expor-se a que ele continue a falsificar dinhei-ro, ensinando os outros a fazerem o mesmo, até que sejacondenado novamente – porque é bem raro que essas pes-soas não recomecem e é difícil surpreendê-las. Digo issocom a mais humilde submissão à vontade de Sua Ma-jestade, e sou, Milorde etc.

O Sol, dizia Galileu, tem manchas tão aparentes, para quem sabeolhá-las, quanto a tinta sobre o papel branco. Não aconteceria o mes-mo com o espírito tão elevado, tão extenso e tão reto do grandeNewton? E, nas cartas que reproduzimos, quem pode ser tão cego aponto de não ver, não ouso dizer as limitações, mas as lacunas?Estamos perdendo muito tempo com esse assunto. Quando falamosde Newton, pensamos no livro dos Princípios; edifício único e incom-parável que dois séculos de estudos e de progressos, deixando-o in-tacto, nada mais fizerem do que ampliar e consolidar; e que La-grange, o ilustre Lagrange – quase equivalente a Newton –, pôde cha-mar, sem que ninguém ousasse contestá-lo, de “a mais alta produçãodo espírito humano”.

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Apesar da admiração despertada pelo livro dos Princípios de New-ton, apenas os geômetras mais hábeis podiam compreender a novadoutrina. A luz não era daquelas que qualquer olho pode ver e quedissipa imediatamente as trevas.

A ciência imaginária e frágil de Descartes conserva ainda numero-sos partidários. Não menos deslumbrados pela falsa universalidadede suas explicações do que pela autoridade de um grande nome e pe-la audaciosa confiança do presunçoso reformador, parece-lhes cômo-do tornarem-se, em poucos dias e sem estudos prévios, filósofos esábios sobre todas as coisas. Geômetras competentes, é justo dizê-lo,permanecem entre os cartesianos, sem que seja possível supor o mo-tivo que eles têm para isso. A questão filosófica seria, entretanto,digna de ser colocada entre os dois sistemas? É necessário, comoquer Newton, calcular as menores irregularidades do movimento dosastros submetidos a forças exatamente conhecidas, ou contentar-se,como Descartes, com indicações vagas e gerais, sem que exista ne-nhuma lei precisa e rigorosa? Após ter dito, grosseiramente, em qualsentido são feitos os movimentos e mais ou menos com quais velo-cidades, talvez fosse possível nos contentarmos em acrescentar:

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Todos esses diversos erros dos planetas, que se afastamsempre, mais ou menos em todos os sentidos, do movi-mento circular ao qual eles estão principalmente determi-nados, não darão nenhum motivo para admiração, se con-siderarmos que todos os corpos que estão no mundo en-trechocam-se sem que possa haver entre eles nenhum va-zio. De modo que, mesmo os mais afastados, agem sem-pre um pouco uns contra os outros, pela mediação daque-les que estão entre dois deles, embora seu efeito seja me-nor e menos sensível.

Descartes, o autor dessas palavras, estava muito ocupado em admi-rar as suas próprias idéias para ter tempo de examinar os fenômenos edescer aos detalhes minuciosos: as vagas conjecturas, que ele tomavapor realidades, não fornecem nenhuma resolução precisa, e sua doutri-na, que a tudo se acomoda, mas que nada faz prever, escapa a qualquercontrole rigoroso. Uma árvore, dizem, deve ser julgada pelos seus fru-tos; o sistema de Descartes não produziu nenhum. É possível mostrarsuas fraquezas, mas não seus erros. E como ele se apóia apenas na suaprópria autoridade e como suas concepções, segundo ele, justificam-sepor si próprias, é difícil encontrar raciocínios para contradizê-las.

Newton, elevando-se, ao contrário, ao conhecimento das leis ge-rais, faz da astronomia a mais exata de todas as ciências. Sua teoriacompleta e rigorosa não deixa nada ao acaso e pretende explicar asparticularidades mais minuciosas dos movimentos celestes. Esse em-preendimento, que até então não tinha similar, foi coroado de plenosucesso, e as admiráveis deduções de seus princípios concordam tan-to melhor com a observação conforme seu cálculo torna-se mais per-feito e mais preciso.

Enquanto Descartes, como um piloto que abandona o leme, en-trega os planetas aos caprichos de seus vagos turbilhões, Newton se-

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gue-os passo a passo no céu, submetendo-os tanto à precisão de seucálculo quanto ao rigor de seus raciocínios.

A indecisão não poderia se prolongar. A observação em semelhan-tes matérias é, queiram ou não, a única regra superior e infalível; elafala ainda mais alto do que os raciocínios mais sutis. A teoria new-toniana, conferida nos próprios astros com um sucesso sempre cres-cente, deveria abalar pouco a pouco – e condenar, enfim, a um eter-no esquecimento – esse pomposo edifício sem solidez e sem funda-mento, que não deixou nem mesmo ruínas. Porém, foi necessáriomais de meio século para fazer com que a hipótese dos turbilhões de-saparecesse sob os raios penetrantes da verdade. Pronunciando o elo-gio de Newton, diante da Academia de Ciências de Paris, Fontenelleainda procura contentar os dois partidos. Sem nada refutar e semprocurar convencer, ele os coloca em pé de igualdade e crê dignificaro autor do livro dos Princípios fazendo dele, como astrônomo, o rivalde Descartes. Essa divisão demasiado longa entre os melhores espí-ritos não retardou os progressos da mecânica celeste. Newton havialevado de tal modo longe a aplicação dos métodos de que ele dispu-nha (e que ele criou), que o aperfeiçoamento da análise era indispen-sável para preparar novas conquistas, acrescentando à clara com-preensão das causas o cálculo numérico e preciso dos efeitos. Entreaqueles que, preocupados somente com a ciência abstrata, prepara-ram com o maior sucesso o instrumento das descobertas que esta-riam por vir, é necessário citar, em primeiro lugar, os irmãos Ber-noulli e Euler, seu ilustre discípulo (que logo se tornaria seu êmu-lo). Os Bernoulli rejeitaram a atração até o fim de suas carreiras, e opróprio Euler começou por mostrar-se cartesiano. Porém, a força daverdade – e talvez, também, a oportunidade de fazer belos cálculos –logo o atraiu para o campo oposto.

Clairaut e D’Alembert entraram na corrida quase ao mesmo tem-po que ele. Suas descobertas, complementadas pelos admiráveis tra-

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balhos de Lagrange e de Laplace, permitiram que a teoria dos movi-mentos celestes seguisse – antecipando-os, quando isso era necessá-rio – os progressos tão admiráveis das observações.

A história desses grandes homens, aos quais seria preciso acres-centar o ilustre Bradley, daria um quadro dos progressos mais impor-tantes da ciência e a indicação dos principais centros em torno dosquais agrupam-se outros trabalhadores muito dignos de respeito,embora relativamente de segunda ordem.

A teoria lunar de Newton constitui, no livro dos Princípios, um doscapítulos mais justamente admirados. As características principais domovimento de nosso satélite encontram-se aí explicadas pelas açõessimultâneas da Terra e do Sol, com demasiados rigor e precisão paraque subsista a mais leve dúvida sobre a exatidão da teoria que as pre-vê e do princípio que as encadeia. Newton está longe, entretanto, deter dito a última palavra sobre um problema que as pesquisas inces-santes dos mais competentes geômetras habituaram-nos, atualmente,a considerar insolúvel. A determinação do movimento da Lua, atraí-da ao mesmo tempo pela Terra e pelo Sol, é o célebre problema dostrês corpos cujo enunciado ressoa nos ouvidos de um geômetra qua-se como o da quadratura do círculo. O cálculo matemático e rigoro-so ultrapassa as forças da ciência e não se alcança o objetivo senãopor meio de aproximações sucessivas. De progresso em progresso, noentanto, ele um dia será resolvido, como o célebre problema de Ar-quimedes, com uma aproximação indefinida que ultrapassará as ne-cessidades dos astrônomos e os desejos mais exigentes.

D’Alembert e Clairaut ocuparam-se, ao mesmo tempo, do proble-ma dos três corpos, e as soluções de ambos foram apresentadas àAcademia de Ciências de Paris, em meados de 1745. Sessenta anoshaviam se passado desde a publicação do livro de Newton e era, noentanto, a primeira vez que um progresso importante era trazido pa-ra as suas grandes teorias. Clairaut e D’Alembert, abrangendo em sua

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análise todas as condições do problema, obtiveram ambos, com os re-sultados encontrados por Newton, outras irregularidades bem co-nhecidas dos astrônomos, que o método sintético não havia assina-lado. Ao lado dessas minuciosas concordâncias, sinais seguros deuma teoria exata, uma única diferença ainda subsistia – leve, é verda-de, mas que eles acreditavam certa. Apesar da evidência e da força dasprovas que ele tão bem conhecia, Clairaut, confiando demasiadamen-te em seus cálculos, ousou apontá-los como um testemunho decisi-vo contra a lei da atração que, segundo ele, era apenas aproximativa.Os geômetras inclinavam-se a acreditar nele; D’Alembert e Euler,lançando mão de diferentes meios, encontraram a mesma dificuldade– que Newton, aliás, já havia percebido, sem espantar-se com issonem dar-lhe grande importância. O ilustre Buffon, pouco conhecidonaquela época, ousou erguer-se contra esse desânimo precipitado. O abandono do ponto capital de uma doutrina apoiada em tantas ra-zões precisas e demonstrativas chocava-o ainda menos, no entanto,que a complicação da nova hipótese – que, segundo ele, vinha cor-romper a admirável simplicidade dos caminhos da Natureza.

A ciência de Buffon não era bastante sólida nem bastante podero-sa, e ele era muito pouco instruído sobre essas questões para retifi-car D’Alembert e Clairaut, seguindo-os em seu próprio território.Ele não falava a linguagem deles, e a luta era impossível. Era por meiode vagos princípios metafísicos, bem pouco persuasivos para os geô-metras, que Buffon estabelecia a integridade e a pureza da teorianewtoniana, afirmando que a nova dificuldade seria resolvida comoas precedentes. O próprio Clairaut não tardou a dar-lhe razão. Ele re-conheceu e, ao mesmo tempo, corrigiu um erro provocado pela insu-ficiência dos cálculos cuja exatidão ele havia tão positivamente afir-mado. A lei da atração triunfava uma vez mais, e a objeção tornava-se uma comprovação dela. A luz, por um instante obscurecida, atra-vessou enfim todas as nuvens, e a teoria – doravante inatacável –

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permanecerá a regra imutável e eterna de todos os movimentos celes-tes. O cálculo e a observação deveriam, a partir daí, darem-se as mãose auxiliarem-se mutuamente. As débeis diferenças que hoje os sepa-ram provam apenas a imperfeição de ambos.

No entanto, nem tudo havia sido feito. As observações antigas eprecisas da Lua, representadas em seus aspectos gerais, não o eramem seus minuciosos detalhes. Não somente o erro das tabelas deClairaut ultrapassava algumas vezes os 30’’, mas a aceleração secu-lar do movimento médio da Lua dava, ainda aos cálculos mais pre-cisos, um derradeiro e inexplicável desmentido. Halley, que a haviaassinalado, fixava-a em cerca de 11’’ para um século inteiro. Em-bora ela crescesse bem mais rapidamente que o número dos sécu-los, uma tal cifra fala por si, e é inútil insistir sobre a exatidão e aperfeição dos cálculos, assim como sobre a escrupulosa consciênciados geômetras que tiveram a honra de encontrá-la em suas fórmu-las. A questão foi apresentada duas vezes como tema de premiaçãopela Academia de Ciências de Paris e, por duas vezes, Lagrange me-receu sua aprovação e seus louvores – sem revelar, no entanto, acausa exata.

Laplace, passando em revista as grandes questões do sistema domundo, não podia deixar de encontrar uma dificuldade que haviaposto à prova e embaraçado tantos grandes homens. Pensando deinício, como Clairaut, em modificar a lei de Newton, ele se pergun-ta se a atração é instantânea. O menor retardo produziria, segundoos cálculos, efeitos de tal modo consideráveis, que uma propagação8 milhões de vezes mais rápida que a da luz explicaria a aceleraçãodo movimento médio da Lua. Porém, quantos embaraços eram oca-sionados por esta explicação, em algumas teorias até então irre-preensíveis! Laplace, juntando todas as suas forças para evitar esteextremo, encontrou enfim, na própria lei de Newton, a origem e acausa da aceleração, sem chegar a ferir, com isso, a força e a pure-

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za dos princípios. A elipse percorrida pela Terra modifica-se de sé-culo para século sob a influência incessante dos planetas que nosatraem. Sua excentricidade aumenta. Esta variação reage para pro-duzir a aceleração assinalada por Halley, de modo que, por meio deum singular circuito de reações, os planetas, cuja ação direta é in-significante para perturbar o movimento de nosso satélite em tor-no da Terra, modificam, ao contrário, o da Terra em torno do Sol,de maneira a aumentar por contragolpe, de uma maneira sensível, avelocidade média da Lua. Esta aceleração não será indefinida. La-place determinou a sua duração, mas é em alguns milhões de anosque ela terá a sua completa conclusão. A desaceleração que lhe acon-tecerá, realizando esta tão longínqua previsão, virá trazer às regrasinvioláveis da teoria newtoniana uma nova confirmação, emborasupérflua.

A teoria dos planetas apresenta um problema bem semelhante aodo movimento da Lua, e a necessidade de lidar com diversas massasperturbadoras parece aumentar ainda mais a sua complicação: nadadisso acontece, no entanto. Se estivéssemos tratando de um cálculomatemático rigoroso, a grandeza ou a pequenez das massas em ques-tão não modificariam em nada a sua dificuldade. Os problemas se-riam resolvidos com as mesmas fórmulas, com simples modificaçõesnos valores numéricos das letras. Porém, quando procedemos poraproximação, a coisa é totalmente diferente: a importância dos erroscometidos varia com a grandeza dos efeitos a serem calculados. Apli-cando à Lua os métodos simples que fornecem com uma aproxima-ção suficiente as leves perturbações dos planetas, correríamos o sériorisco de nos perder completamente. É ainda à Academia de Ciênciasde Paris que cabe a honra de haver suscitado as pesquisas dos geô-metras sobre esta grande questão. O estudo das perturbações de Jú-piter e de Saturno foi apresentado duas vezes como tema de premia-ção, em 1748 e 1752, e Euler foi premiado nas duas ocasiões.

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Lagrange, seguindo o mesmo caminho, conferiu aos métodos deaproximação – que, nesta teoria, não podem ser evitados – toda a ele-gância e a precisão das teorias matemáticas mais puras. Foi ele o pri-meiro que, calculando as variações do grande eixo da órbita de umplaneta, provou, por meio de um raciocínio tão simples quanto rigo-roso, a ausência necessária de qualquer perturbação que crescessecom o tempo. A distância entre cada astro e o Sol deve permanecereternamente compreendida dentro de estreitos limites, e o tempo darevolução – que uma das grandes leis de Kepler vincula intimamentea ela – é constante como ela no decorrer dos séculos.

A obliqüidade da eclíptica sobre o equador, submetida a incessan-tes mudanças, também deve ficar contida nos limites necessários,igualmente fornecidos por Lagrange.

Newton, no livro dos Princípios, abordou a questão da figura daTerra. Engenhosas considerações revelaram-lhe o achatamento neces-sário de nosso globo, considerado originariamente como fluido. Osprimeiros trabalhos da Academia de Ciências de Paris haviam apre-sentado um resultado totalmente oposto. Ela permaneceu, por longotempo, dividida acerca desta grande e importante questão cuja solu-ção ela perseguiu com tanto ardor quanto perseverança durante qua-se um século.

Duas comissões foram enviadas, em 1735 e 1736 (uma ao póloe outra ao equador), para verificarem, fazendo medida direta dedois arcos do meridiano, a exatidão das deduções teóricas. La Con-damine e Bouguer foram para o Peru, Maupertuis e Clairaut para aLapônia. As duas missões foram cumpridas com tanto devotamen-to e coragem quanto ciência e habilidade, e a concordância comseus trabalhos é, ainda hoje, uma das condições essenciais as quaisdeve satisfazer qualquer teoria proposta para a solução de um pro-blema cuja complicação aumenta com os elementos de que dispo-mos para resolvê-lo.

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Dentre os missionários da Academia, apenas Clairaut era um gran-de geômetra. Depois de ter fornecido a sua contribuição para a obracomum, ele realizou o estudo teórico da questão, na obra tão justa-mente célebre intitulada Teoria da figura da Terra, que, por sua formaprecisa e rigorosa – mais ainda do que pelo emprego, tão difícil, dasíntese nessas altas questões –, quase se parece com uma obra-primade Newton que tivesse sido redescoberta.

A teoria da atração fornece, ao mesmo tempo, a regra imutável e oprincípio universal dos movimentos celestes. Todos os fenômenos dosistema do mundo estão unidos, com ela, por um laço muito estrei-to. A teoria da Lua, assim como a da precessão dos equinócios, logodeveria encontrar, nos trabalhos dos astrônomos franceses, uma ma-nifesta confirmação das previsões do livro dos Princípios.

Se a Terra fosse esférica e homogênea, ela giraria invariavelmente emtorno do mesmo eixo, sem que a atração dos corpos celestes tivesse opoder de modificar alguma coisa. Porém, por causa da forma achatadade nosso globo, e de sua densidade irregular, as ações da Lua e do Solnão passam pelo centro da Terra e, ao mesmo tempo em que a trans-portam pelo espaço, elas tendem a imprimir-lhe uma rotação que, com-binada com aquela que ela já possui, modifica a cada instante a direçãodo eixo em torno do qual ela gira. São forças bem pequenas e modifi-cações bem leves. São necessários 26 mil anos para fazer com que elaexecute uma revolução em torno do eixo da eclíptica. A causa desse len-to movimento – atribuído por Hiparco à abóbada estrelada e assinala-do por Copérnico como pertencente ao eixo da Terra – era para Keplerum mistério impenetrável. Newton assinalou a sua causa, mas sem cal-cular os seus efeitos. Foi D’Alembert quem primeiro estabeleceu a suateoria exata e precisa. Euler, logo depois, seguiu o mesmo caminho, esua elegante análise pode ser considerada como o ponto de partida daadmirável memória apresentada cem anos mais tarde, sobre o mesmoassunto, por nosso ilustre contemporâneo Poinsot.

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Se a forma achatada do globo influi sobre as ações que ele sofre,ela modifica ao mesmo tempo aquelas que ele próprio exerce, sobretu-do sua atração sobre a Lua, diante da qual – por causa de sua grandeproximidade – não é permitido considerá-lo como um simples pon-to destituído de qualquer forma.

Laplace, que parece ter nascido para tudo aprofundar na teoria docéu, demonstrou no achatamento terrestre a origem de uma nova de-sigualdade da Lua, que, medida diretamente, forneceu-lhe uma ava-liação indireta, mas bastante segura da relação entre os dois eixos donosso planeta.

Eu estaria saindo do quadro bastante elementar deste volume seprocurasse levar mais adiante a enumeração dos grandes trabalhosde mecânica celeste. O menor dos astros no céu realiza hoje, exata-mente e do princípio ao fim, as previsões dos geômetras. Laplaceresumiu essas grandes teorias, aperfeiçoando-as em todos os pon-tos, na admirável obra que tem sido chamada, com justiça, de oAlmagesto dos tempos modernos. A opinião unânime dos geômetras co-loca-o, com razão, no ponto culminante da ciência, e a leitura in-teligente da Mecânica celeste assegura, ainda hoje, o direito à livre cir-culação entre os adeptos incontestes dos segredos mais ocultos dageometria.

Na relação dos progressos reservados para a nossa época, não se-ria permitido esperar, no entanto, a melhora desses árduos caminhose também explicações mais simples e mais acessíveis ao raciocínio?

Os inventores fizeram o que tinha de ser feito: antes de qualquercoisa, era preciso chegar, pouco importa por quais atalhos. Estamosbastante avançados, hoje em dia, para podermos olhar para trás epensar em dissipar as trevas, mostrando a estrada mais reta para averdade. Tal obra, se podemos acreditar em Lagrange (que não tinha,dizia ele, a temeridade de encarregar-se dela), honraria tanto o nos-so século quanto o livro dos Princípios honrou o século passado.

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Essa obra-prima, sonhada em 1786 pelo mais ilustre sucessor deNewton – e da qual Poinsot escreveu alguns belos capítulos –, aindaestá por ser feita em nossos dias.

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ESTE LIVRO FOI IMPRESSO EM ABRIL DE 2008

NA CIDADE DE SÃO PAULO,

PELA PROL GRÁFICA PARA EDITORA CONTRAPONTO,

COM MIOLO EM PAPEL PÓLEN BOLD 70G/M2,

USANDO A FONTE VENETIAN.

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