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BFH A BIBLIA FALA HOJE Ä Mensagem de Daniel Ronald S. Wallace ------------------- Editor —Antigo "testamento------------------- J. A. Motyer

BFH A BIBLIA FALA HOJE Ä Mensagem Daniel de · 2017. 4. 15. · A mensagem do passado e do futuro, revelada por Deus a Daniel, ... A Mensagem do Sermão do Monte (CONTRACULTURA CRISTÃ

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BFH A BIBLIA FALA HOJE

Ä Mensagem deDaniel

Ronald S. Wallace------------------- Editor — Antigo "testamento-------------------J. A. Motyer

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A Mensagem de Daniel

D permitiu que acontecesse o impossível.Seu povo estava no exílio, as promessas de Deus pareciam

ter perdido o valor. Será que Deus ainda estava no controle da História? Era fiel? Importava-se com seu povo?

O jovem Daniel ousava afirmar que Deus ainda controlava todas as coisas.

A mensagem do passado e do futuro, revelada por Deus a Daniel, ainda era a mesma proclamação triunfante:

O Senhor reina — inclusive na Babilônia!

Ronald S. Wallace estudou na Universidade de Edimburgo, onde recebeu o doutorado. Serviu como pastor em várias igrejas na Escócia antes de se tornar professor da Teologia Bíblica no Seminário Teológico de Golumbia, EUA, onde lecionou dez anos até aposentar-se.

ABU Editora

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A Bíblia fala hoje Editores da serie: J. A. Motyer (AT)

John R. W. Stott (NT)

A MENSAGEM DE DANIEL

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Outros livros nesta sérieA Mensagem de Amós (O DIA DO LEÃO) - J. A. MotyerA Mensagem do Sermão do Monte (CONTRACULTURA CRISTÃ John R. W. StottA Mensagem de 2 Timóteo (TU, PORÉM) - John R. W. Stott A Mensagem de Apocalipse (em preparação) - Michael Wilcock

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A Mensagem de“ aniel

ABU Editora

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Traduzido do original em inglês THE LORD IS KING Inter-Varsity Press, Inglaterra © Ronald S. Wallace 1979Direitos reservados pela ABU Editora S/C Caixa Postal 30505 01051 - São Paulo , SP CGC 46.394.169/0001-74A ABU Editora é a publicadora daAliança Bíblica Universitária do Brasil - A.B.U.B.Tradução do Gordon ChownRevisão de Milton A. Andrade e Silêda SteuernagelO texto bíblico utilizado neste livro é o da Edição Revista e Atualizada no Brasil, da Sociedade Bíblica do Brasil, exceto quando outra versão é indicada.

ISBN 85-7055-001-4 1? Edição — 1985

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Prefácio Geral

A Bíblia Fala Hoje constitui uma série de exposições, tanto do Velho como do Novo Testamento, caracterizadas por um triplo objetivo: exposição acurada do texto bíblico, relacionar o texto com a vida contemporânea, e leitura agradável.

Esses livros não são, pois, “comentários”, já que um comen­tário busca mais elucidar o texto do que aplicá-lo, e tende a ser uma obta mais de referência do que literária. Por outro lado, esta série também não apresenta aquele tipo de “sermões” que, pretendendo ser contemporâneos e de leitura acessível, deixam de abordar a Escritura com suficiente seriedade.

As pessoas que contribuíram nesta série unem-se na convicção de que Deus ainda fala através do que ele já falou, e que nada é mais necessário para a vida, para o crescimento e para a saúde das igrejas ou dos cristãos do que ouvir e atentar ao que o Espí­rito lhes diz através da sua velha (e contudo sempre atual) Palavra.

J. A. MOTYER J. R. W. STOTT Editores da série

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ÍNDICE

Prefácio geral ............................................................................ vPrefácio do autor ..................................................................... xiiiIntrodução ................................................................................. 1O contexto histórico .................................................................. 1O conceito tradicional do livro ................................................ 4A teoria da orientação macabéia do livro ................................. 5A resposta do ponto de vista conservador ............................... 7O tema central do livro: sua unidade e integridade ............... 8Daniel dentro da tradição bíblica .............................................. 11

a. Daniel dentro da tradição profética ............................... 11b. Daniel dentro da tradição apocalíptica .......................... 13c. Daniel e a tradição sapiencial em Israel .......................... 16

Daniel 1: Os fatos e a resposta ................................................ 20O povo de Deus: novas questões em teologia e em política . 20Nabucodonosor: benevolência e despotismo .......................... 22A prática: cooperação ou afastamento? .................................... 25Os guardas do verdadeiro Israel ................................................ 27Sim e não! .................................................................................... 30O primeiro encontro .................................................................. 31A questão em pauta, e traçando os limites ............................... 33Um modelo para hoje? ................................................................ 34O voto e o apelo .................. ....................................................... 37Deus assume o comando ............................................................. 39

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Daniel 2: A pedra e os reinos destruídos .................................. 41A crise no palácio e na cidade ................................................... 41Questões básicas ........................................................................ 43Daniel, o mediador ..................................................................... 44O mistério do sonho do rei ........................................................ 47A proclamaçffo do reino de Deus .............................................. 49Os pormenores da imagem ........................................................ 51A pedra da montanha ................................................................ 52A primeira reaçãto do rei ............................................................. 54Daniel 3: A fornalha de fogo ................................................... 56A necessidade do cimento social .............................................. 56A festa da Nova Babilônia ........................................................... 58O milagre da resistência ............................................................. 59A resposta .................................................................................. 60O milagre da sobrevivência ........................................................ 62Nabucodonosor: o momento da verdade ................................. 64Nabucodonosor: o momento do arrependimento .................. 66Daniel 4: “Eu, Nabucodonosor” .............................................. 68A evaçãto ....................................................................................... 68A rejeição do semeador com a semente .................................... 70O barro na mãfo do oleiro ........................................................... 72O Pai que nos disciplina .............................................................. 74Daniel: companheiro e sinal ...................................................... 76Daniel: fidelidade no conselho ................................................. 78A liçSo .......................................................................................... 80O testemunho pessoal de uma alma convertida: sua paz . . . . 81O testemunho pessoal de uma alma convertida:

sua nova vida em Deus ........................................................... 82

Daniel 5: A festa de Belsazar ................................................... 85Nabucodonosor e Belsazar: um notável contraste .................. 85Nabucodonosor e Belsazar e Daniel: até a mudança

pode mudar! .......................................................................... 87A atitude de Daniel ..................................................................... 88Nabucodonosor e Belsazar: o eleito e o rejeitado ..................... 90O rejeitado escolhe a sua rejeiçío .............................................. 91Nabucodonosor: misericórdia e julgamento ............................ 92

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Belsazar: julgamento e misericórdia ......................................... 93A escritura na parede .................................................................. 93O ato de sacrilégio ........................................................................ 95Os vasos do Senhor ..................................................................... 97A essência do pecado .................................................................. 99A palavra pastoral na undécima hora ......................................... 100A honestidade e a severidade do amor ...................................... 102O pano de fundo da tragédia humana ...................................... 103Daniel 6: A cova dos leões .................... ................................... 106O mistério da iniqüidade ........................................................... 106Quem odiar o seu irm âo................................................................ 107O testemunho inabalável de Daniel ........................................... 108O ponto de ofensa ....................................................................... 110A injustiça da acusação ............................................................. 112Assassinato sob o sistema! ........................................................ 114A graça salvadora da disciplina ................................................... 115Nós precisamos de hábitos ........................................................ 116A arapuca da lei e da ordem ...................................................... 118A ressurreição de Daniel ............................................................. 119Dario ............................................................................................ 120Daniel 7: Os animais e o Filho do homem ............................... 123Uma nova olhada na potência mundial .................................... 123Questões paia hoje ..................................................................... 125O problema fundamental ........................................................... 127Visando uma resposta final ........................................................ 129O reino do Filho do homem ...................................................... 131O filho do homem e os servos do Altíssimo ............................ 132Os misteriosos detalhes do último animal ................................. 134Os dez chifres ............................................................................... 136A necessidade da perspectiva ...................................................... 137Percebendo os sinais hoje ........................................................... 138Depressão justificável? ................................................................ 140A necessidade da vigilância ........................................................ 142Daniel 8: O bode e o chifre pequeno ...................................... 144A visâo: Alexandre Magno e Antíoco Epifânio ....................... 144Uma história sem um indício: o absurdo do resultado final . . 146

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Um antegozo e um prenúncio do Anticristo ............................ 150De volta aos negócios do rei! ...................................................... 153Daniel 9: Uma oração e uma profecia .................................... 155Daniel, a comunidade e os livros .............................................. 155Os livros e a presença de Deus ................................................... 156A busca hoje ................................................................................ 158A presença, os livros e a oração ................................................. 160Um indivíduo na comunidade ................................................... 161A realidade e a liturgia na Bíblia .............................................. 163Datas.. . ou certeza? ................................................................... 165O homem amado como sacrifício aceitável ............................... 166Os anjos e a resposta ................................................................... 169O Deus dos anjos e da humanidade ............................................ 171Será que o nosso Deus é pequeno demais? ............................... 173Setenta semanas de anos! ........................................................... 174O alvo da História ........................................................................ 175O prenúncio dos eventos vindouros ......................................... 177O desenvolvimento do propósito de Deus ............................... 179Daniel 10: “Eu, Daniel” ........................................................... 183O encontro final .......................................................................... 183A presença que esmaga e que exalta ......................................... 185O custo do envolvimento e o dom da compreensão ................ 187Ainda hoje o custo é o mesmo ................................................... 189A comunhão entre o céu e a terra no conflito cósmico .......... 192A decisiva guerra no céu ............................................................. 193Daniel 11: A história registrada no livro ................................. 195A palavra falada assume a direção .............................................. 195A história do império dividido e o seu desfecho ..................... 195Deus traça o padrão dos nossos caminhos ............................... 196Nós também somos responsáveis .............................................. 200A transição para “o tempo do fim” ......................................... 201

203Daniel 12: Vigiando e esperando pelo fim ............................ 205O tempo do fim .......................................................................... 205O Anticristo .................................................................................. 206A tribulação .................................................................................. 206

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A separação .................................................................................. 208O final: a lacuna entre ver e entender ....................................... 209É preciso perseverar com paciência ............................................ 211A necessidade de sabedoria ........................................................ 213A palavra pastoral final: o caminho e o destino ............. .. 215A palavra pastoral final: a promessa do descanso .................. 216

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A Shorn

Kirsty Ann Stewart Murray e Craig

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PREFÁCIO DO AUTOR

No início do meu ministério, quando eu tinha de gastar uma boa parte das minhas energias no preparo de dois sermões para o do­mingo, às vezes usava o livro de Daniel nas classes bíblicas e nas reuni­ões de oração do meio da semana. Já que me achava tjo ocupado, eu ensinava a partir deste livro apenas o que me ocorria como pastor ao ir lendo o texto nas traduções disponíveis, e meditava acerca de nos­sa situação como grupo de pessoas comuns que, de alguma forma, es­forçava-se para conhecer e praticar a vontade de Deus em nossos dias. Mais tarde, pude fazer melhor uso dos comentários que entJo obtive para a casa pastoral, e passei a pregar o livro todo, capítulo por capítulo, em nossos cultos da noite. Numa etapa ainda posterior, quando comecei a lecionar num seminário, também passei pelo livro todo várias vezes em cursos de preleções noturnas preparadas especi­almente para estudante primeiranistas e para leigos. E claro que, a es­sa altura, eu já tinha à minha disposição os recursos de uma boa bi­blioteca, e consultava tudo quando ali havia com respeito a introdu­ção, contexto e comentários.

Foi nesta última etapa que tive que me defrontar realmente, pela primeira vez e de maneira incisiva, com os problemas acadêmi­cos e pastorais de interpretar este livro no contexto de hoje. Daniel, a esta altura, já se tornara para mim um velho amigo fidedigno, em­bora, naturalmente, n5o fosse do tipo que se tornasse familiar assim tao facilmente. Ele sempre tinha muita coisa para me ensinar, e ao meu povo, acerca de Deus, de Cristo, da oração, do futuro da Histó­ria e da maneira de viver a vida crista. O impacto que ele me deu não foi menor do que o causado por homens como Abraão, Moisés e Eli­

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as. Eu sempre tinha acreditado que ele tinha sido um líder do povo de Deus no exílio. Mas agora, na biblioteca, eu era informado por uma batelada de livros de exegese moderna que o livro do qual eu tanto gostava realmente não dizia respeito ao exílio, e que Daniel teria sido uma figura de segunda categoria. Não somente nunca teria estado na Babilônia, mas nem mesmo teria existido. A idéia referen­te a ele teria surgido (as implicações prosseguem) de alguma maneira para que ele constituísse um fator comum, na concepção de um edi­tor, de um grupo de lendas desconexas de vários países do Oriente Médio. O retrato resultante da “composição fotográfica” seria assim tao obviamente artificial que, até mesmo com um mínimo de discer­nimento, eu nunca deveria ter sido induzido ao “erro” como fui.

Entüo tive de perguntar a mim mesmo se eu estava enganado com respeito a Daniel e seu livro, e voltei-me para ele disposto, se necessário, a me arrepender, a consultar seriamente a pilha impressio­nante de notas que fizera, e procurar acomodar numa nova exposi­ção tanto quanto pudesse aquilo que lera. Li e reli o texto do livro várias vezes. Era como voltar a um velho amigo acerca de quem eu vinha ouvindo histórias estranhas, para entüo descobrir que elas não tinham fundamento algum.

O resultado final foi a exposição que agora é feita neste livro. Preciso reconhecer que descobri que o livro de Daniel foi muito mais incisivo do que eu esperava contra toda aquela enxurrada de coisas que eu lera a seu respeito, e revelou-se ainda mais decisivo com res­peito a outras passagens das Sagradas Escrituras com as quais eu ti­nha passado por uma experiência semelhante. Tive que deixar de la­do boa quantidade do material cuja engenhosidade cheguei até mes­mo a admirar. Descobri, também, que simplesmente não poderia iso­lar o livro de Daniel, como tantos estudiosos pretendem fazer, de seu lugar no cânon das Sagradas Escrituras, avançando ele em direção ao Novo Testamento e tendo o seu cumprimento em Jesus Cristo. E quanto a Daniel, mais uma vez achei ali na Babilônia, em carne e os­so, com mãos e pés, e com um rosto verdadeiro, numa luta bem se­melhante àquela da nossa igreja de hoje, inspirando confiança e dan­do orientação. Descobri, também, que a verdade soa muito mais for­te quando o pastor assume tanto responsabilidades pastorais quanto acadêmicas.

É sempre justificável procurar publicar exposições atuais das Escrituras Sagradas, e quando a Inter-Varsity Press demonstrou in­

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teresse, com prazer deixei-a ler o primeiro manuscrito da obra. Es­ta editora tem me encorajado muito. Recebi muita ajuda de Alec Motyer, ora na solução de quais seriam as melhores formas de ex­pressão, ora sugerindo acréscimos que depois se revelaram úteis. Minha filha Heather também me ajudou, de modo nâo menos eficaz, na redação, na disposição e na datilografia também. Sou grato ao Seminário Teológico de Colúmbia por me ter dado o tempo e a licença para escrever.

R.S.W.

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O contexto históricoO livro de Daniel começa com Nabucodonosor no trono da

Babilônia. A dinastia babilónica substituíra a assíria como potência dominante na região oriental do Mediterrâneo durante o último quar­to do século VII a.C., e, quando Nabucodonosor derrotou os egíp­cios em Carquemis em 605 a.C., já estava firmemente estabelecida. Em 604 ele sucedeu a seu pai no trono. Expandiu mais ainda as con­quistas do seu pai e, conforme o relato do livro de Reis, em 587-586 finalmente subjugou Judá e saqueou Jerusalém, levando de volta consigo para a Babilônia uma grande parte da população. O livro de Daniel pressupõe que tenha havido uma invasão anterior de Judá, quando alguns cativos foram levados, inclusive Daniel.2

Depois da morte de Nabucodonosor em 562, seus filhos e ne­tos revelaram-se incapazes e, em 556, uma revolução por fim colocou no trono alguém que não pertencia à família real, chamado Nabôni- do. Seu filho era Belsazar que, segundo parece, remava na Babilônia como preposto de seu pai quando o império caiu sob os persas do rei Ciro, em 539. Depois disso, o Oriente Próximo foi governado duran­te dois séculos por uma sucessão de soberanos persas. Destes, Dario I foi historicamente o mais conhecido. Logo após, em fins do século

1 Para uma discussão integral dos problemas relatados com a história, autoria, data etc., do livro de Daniel, ver J.G.Baldwin, Daniel, (Edito­ra Mundo Cristão, 1984), Introdução e Comentário. A matéria intro­dutória aqui é limitada àquilo que diretamente serve aos propósitos ex- positórios da presente série.

2 a . 1:1, i.é, c. de 605 a.C.

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IV, veio a derrota dramática do Império Persa por Alexandre Magno, que estabeleceu a supremacia grega sobre toda a área do império, em 331 a.C. Alguns anos depois da morte de Alexandre, seu reino no Oriente Próximo foi dividido em dois. A dinastia ptolomaica, cujo nome se deve ao seu primeiro soberano Ptolomeu I Soter, governou a área ao redor do Egito, e a dinastia selêucida, iniciada pelo soberano Seleuco I Nicator, tendia a dominar a Síria e a Palestina. Entre as duas casas reais, às vezes havia casamentos, e às vezes conspirações e traição. Os ptolomeus egípcios dominaram até que, em 198 a.C., o selêucida Antíoco Magno derrotou Ptolomeu Epifânio e finalmente obteve incontestada ascendência sobre a Palestina. O acontecimento mais importante, no que dizia respeito aos judeus, ocorreu em 175 quando, depois de algumas intrigas, Antíoco IV Epifânio conseguiu o trono dos selêucidas. À pessoa, à carreira e às ambições deste sobe­rano, muita atenção é dada no livro de Daniel.

Durante este período, as circunstâncias do povo de Deus mu­daram consideravelmente. Como exilados na Babilônia sob o governo de Nabucodonosor, tiveram de enfrentar os problemas de se estabe­lecer em uma terra estranha, dominada por uma religião pagS, e tam­bém de permanecerem fiéis ao Deus de seus pais, embora nZo tives­sem templo nem ritual de sacrifícios. Daniel e seus três companhei­ros são exemplos de como os que foram fiéis conseguiram fazer isso de modo triunfante. Depois da ascensão de Ciro, o Persa, ao trono em 539, alguns dos exilados voltaram à Palestina e, por terem au­mentado em número edificaram primeiro o templo e depois os muros. Os imperadores persas eram, de modo geral, amistosos, e a comuni­dade que voltou desfrutava, em boa medida, de liberdade religiosa. Já sob o império grego, porém, tiveram de enfrentar uma ameaça muito mais severa do que tinham tido até então, até mesmo no exí­lio. Alexandre Magno tinha a ambição não somente de conquistar o mundo, como também “helenizá-lo” , isto é, submeter tudo àinfluên- cia do espírito grego. Colocou o processo de helenização em anda­mento, e os que vieram depois, conseguiram um notável sucesso.

Os costumes gregos e a maneira grega de encarar o mundo fo­ram amplamente difundidos. Parecia que tudo quanto era grego im­pregnava as coisas com sua presença e ia se tomando universal. A in­fluência da cultura grega penetrou nas antigas religiões do Oriente e produziu as religiões helenísticas de mistério.

Durante muitas gerações, a naçâo judaica como um todo con­

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seguiu resistir a este movimento, pois na Palestina, sob o governo ptolomaico, nenhuma pressão externa foi imposta à população para fazê-la adotar os costumes gregos. Mas dentro da própria comunida­de judaica, especialmente nos círculos intelectuais e sacerdotais, e entre aqueles que estavam envolvidos na política do poder daqueles dias, surgiu um forte partido helenizante.

Quando Antíoco Epifânio alcançou o poder na Síria e na Pa­lestina, lançou-se numa campanha resoluta e inescrupulosa para impor o helenismo a toda a populaçJo, usando engodos, subornos e intrigas, além de destruir impiedosamente toda a resistência aberta. A história de suas manobras, de seus sucessos, e de seu fracasso final pode ser lida nos livros dos Macabeus. Até mesmo antes de iniciar-se o seu reinado, o cargo de sumo sacerdote em Jerusalém ficou vago, e ele recebeu suborno para nomear Jason, um dos líderes do partido helenizante. Este passo foi seguido pelo estabelecimento de uma es­cola em Jerusalém para que jovens judeus pudessem ser treinados nos costumes gregos, participando de jogos gregos e adotando modas gregas. À medida que o programa de helenizaçSo avançava, havia intrigas mais profundas, e um impostor inescrupuloso, Menelau, su­plantou Jasom nas boas graças do rei. Sob Menelau como sumo-sa- cerdote, houve mais contendas e intrigas, levando a massacres nas ruas, ao estabelecimento de uma guarnição síria na cidade, à fuga de refugiados e à publicação de decretos que proibiram as práticas reli­giosas do povo judeu. O castigo para tais infraçOes era a morte. Ordens foram dadas para o templo ser dedicado à adoração de Zeus do Olimpo, e no ano de 168, um altar foi erigido no templo para honrar a Zeus e realizar sacrifícios para ele. Os deuses pagãos deviam ser honrados noutras localidades; comer alimentos imundos era com­pulsório. Os decretos foram executados com brutalidade. Houve muitos massacres e muitos mártires.

Entretanto dois partidos ofereceram resistência. O partido dos macabeus, sob a inspiração e liderança de Matatias, um sacerdote do interior, e seus filhos, despertou a resistência armada, entrou no cam­po de batalha, e finalmente foi bem sucedido. O outro partido de re­sistência foi o dos hasidins, ou santos. Tratava-se de um partido sepa­ratista cuja política era a resistência passiva e a rigorosa fidelidade à lei, especialmente em certos pontos que lhes pareciam questOes cru­ciais, tais como as leis que proibiam comer certos alimentos. Mesmo durante as lutas, os hasidins se recusavam a lutar no dia do sábado e

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eram impiedosamente trucidados. Estes dois partidos se juntaram por algum tempo. A certa altura, por exemplo, os macabeus chega­ram a suspender a observância do sábado, para assim encorajar os hasidins a vencer um de seus escrúpulos. De modo geral, no entanto, estes últimos desejavam permanecer independentes do apoio políti­co, somente confiando em Deus. Havia profundas diferenças entre as idéias e os pontos de vista desses dois grupos.

Este período, de 605 até 165 a.C., compreende o período his­tórico que é objeto imediato da detalhada exposição feita pelo autor do livro de Daniel. Pode haver ainda referências a outros eventos, mas de modo bem mais obscuro e oculto.

O conceito tradicional do livroTradicionalmente aceita-se o livro pelo que ele declara ser, ou

seja, que foi escrito na Babilônia por um certo Daniel que era um modelo de fidelidade, de sabedoria e de piedade em seu tempo. O propósito do livro é mostrar como Daniel e seus amigos triunfaram pela graça de Deus durante o exílio ;como a grande tradição dos seus antepassados foi preservada pela piedade e pela disciplina rigorosa; e como a perseguição foi vencida pela fidelidade, pela coragem e pela sabedoria. A esperança foi conservada viva e sóbria por uma série de visões proféticas dadas a Daniel. Estas delineavam o curso difícil e che­io de mudanças que a História mundial seguiria no seu desenvolvi­mento, e previam, especialmente, o período de severa perseguição que sobreviria à nação sob o domínio estrangeiro posterior. Descre­viam, também, as tribulações e os triunfos de que o povo de Deus participaria à medida que se aproximassem os dias do fim do mundo e da vinda do Messias.

Os estudiosos que sustentam este conceito geral sobre a origem e o propósito do livro divergem entre si na interpretação de grande parte dos pormenores. Divergem, por exemplo, quando procuram definir que sucessão de impérios mundiais é referida nas descrições dos vários símbolos de poder, como na descrição dos vários metais que compõem a enorme estátua no sonho de Nabucodonosor no se­gundo capítulo, ou como no caso dos vários animais que surgem, um após o outro, no centro da História mundial no sétimo capítulo. Há desacordo, além disso, sobre quem seria o governante contrário de

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Deus que foi originalmente aludido na descrição do chifre pequeno, que deslocou os demais chifres do quarto animal ao crescer até pro­porções gigantescas, e que blasfemou de forma tão sinistra (7:20-21). Há, também, uma divergência marcante sobre se uma descrição da obra de Cristo foi diretamente pretendida, ou não, na profecia do que haveria de acontecer no fim das setenta semanas em Daniel 9:24, e sobre se, perto do fim do capítulo 11, há uma repentina transição de pensamento passando do tempo de Antíoco Epifânio para o futu­ro messiânico distante (em 11:36).

A teoria da orientação macabéia do livroAtualmente é bastante difundida, também, a tese de que o li­

vro de Daniel não poderia ter sido escrito no século VI a.C., e que nunca pretendeu ser um relato histórico fiel do tempo de exílio. A forma como o autor trata a história do período babilónico é con­siderada, segundo este ponto de vista, vaga e insegura. Alega-se, por exemplo, que o livro começa com a suposição errônea de que houve um primeiro cerco de Jerusalém no terceiro ano do reinado de Jeoa- quim em 605 a.C. (1:1). É ressaltado que Belsazar não era o filho de Nabucodonosor mas, sim, de Nabonido (5:11), e que ele nunca foi realmente rei da Babilônia conforme a narrativa de Daniel. Insiste-se que não há evidência histórica, fora do livro de Daniel, em prol de um “Dario, o medo” que o livro relata ter sucedido Belsazar (5:31); nem de um império medo entre o da Babilônia e o da Pérsia, confor­me os sonhos e as visões do livro parecem indicar.

Concluem os que argumentam assim que é claro, entao, que era bem pouco o conhecimento que o escritor tinha da Babilônia do século VI! Por outro lado, quando se trata de descrever o período do domínio da Palestina pelos selêucidas, é alegado que suas refe­rências são muito mais pormenorizadas e exatas, o que demonstra um conhecimento bem de perto da história que levou à ascensão de An­tíoco Epifânio e dos detalhes da sua carreira e da sua política. Argu­mentos que seguem esta linha levam muitos estudiosos à conclusão de que o livro teve a sua origem não na Babilônia mas, sim na Pales­tina e nos tempos dos macabeus.

Para sustentar este ponto de vista, outras evidências são cita­das. Argumenta-se que se um judeu com o nome de Daniel realmente

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ocupou uma posição de tanto destaque no Império Babilónico, con­forme o livro descreve, então necessariamente deveria haver algumas referências a ele na literatura profética daquela época. Porém as úni­cas outras referências a uma pessoa chamada Daniel, na literatura do Antigo Testamento, são achadas em Ezequiel,3 onde o nome Daniel parece referir-se a um sábio que vivera no passado distante e que já ficara, mediante uma longa tradição, classificado na mente dos he­breus juntamente com homens tais como Noé e Jó. É ressaltado que as referências mais antigas ao próprio livro de Daniel acham-se somen­te depois do período dos macabeus.

Sustenta-se que o estudo da linguagem utilizada indica que o livro deve ter sido escrito muito tempo depois do século VI a.C. O emprego de certas palavras gregas no texto parece indicar uma data posterior à conquista de Alexandre, e o emprego de certas pala­vras persas é considerado impossível no tempo do cativeiro na Babi­lônia. Além disso, toda uma seção central do livro é escrita não em hebraico mas, sim, em aramaico, e assevera-se que a forma do ara- maico usado nesta seção é semelhante àquela empregada na Palesti­na do século II a.C. Por que, pergunta-se, um exilado na Babilónia no século VI, teria apelado para o uso de tal linguagem? E o hebrai­co do livro, assevera-se, é muito mais semelhante ao hebraico posteri­or do que ao hebraico exílico.

Mais argumentos a favor de uma data posterior são derivados da posição do livro no cãnon judaico. Nas edições hebraicas massoré- ticas o livro não é colocado entre os Profetas mas, sim, entre os Es­critos. Esta fato, segundo se sustenta, indica que, no tempo em que o livro de Daniel apareceu, o cânon profético hebraico tinha sido en­cerrado. Este ponto de vista é reforçado pelo argumento de que o li­vro é um exemplo típico, embora destacado , do tipo de literatura apocalíptica pseudonímica que começou a ser produzida no séculoII a.C. e que floresceu por um período considerável somente após esta data.4 Além disso, argumenta-se que alguns dos pontos teológi­cos expressados no livro, especialmente a crença numa ressurreição dos justos e dos ímpios dentre os mortos, são posteriores.

Aqueles que acreditam que tais evidências são decisivas susten­tam que o livro de Daniel foi publicado originalmente como um fo-

3 Ez 14:14,20; 28:3.4 Ver adiante, págs. 13ss.

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lheto, escrito provavelmente por um membro do partido dos hasi­dins, para lembrar os seus contemporâneos sob perseguição que Iavé, o seu Deus, entendia a triste situação; para dar-lhes a certeza, com base nestas histórias tradicionais, de que grandes homens ti­nham superado de modo triunfante tais coisas em séculos passados, mediante a graça de Deus; para colocar diante de seus contemporâ­neos um ideal de fidelidade à lei e de sofrimento paciente; e para en ­corajá-los com visões do controle soberano de Deus, e do seu propó­sito futuro de glória para o seu povo. Estas verdades e lições perma­necem intatas, é lógico, segundo qualquer destas interpretações, po­rém, no que diz respeito à data macabéia, diz-se que o escritor queria esconder a sua identidade e assim disfarçar a mensagem de tal ma­neira que não fosse entendida pelos perseguidores mas, sim, que pudesse ser compreendida quanto ao seu significado, oculto no tex­to, somente pelo círculo que visava ajudar. Em resposta às objeções de que parece que o próprio Senhor Jesus acreditava que Daniel erao autor do livro,5 e que essa teoria tende a estigmatizar o livro como uma falsificação, argumenta-se que atribuir os escritos de alguém a uma grande figura da história mais antiga era uma moda aceitável e respeitável nos dias dos escritos apocalípticos, e que mesmo o Senhor aceitava deliberadamente certos limites dentro do domínio do seu conhecimento humano no que diz respeito a tais questões.

A resposta do ponto de vista conservador6A reação que cada um de nós terá a tal teoria do livro de Da­

niel dependerá, até certo ponto, da nossa crença acerca da natureza das Sagradas Escrituras. Muitos acham extremamente difícil, por exemplo, não considerar uma fraude (por mais piedoso que seja o motivo) procurar fazer passar o livro de alguém como sendo da au­toria de outro mais influente. Um livro em tais condições, dentro das Sagradas Escrituras, parece-lhes que conspurca a santidade de Deus, assim como os erros quanto aos fatos ou à História parecem ser in­compatíveis com o Deus “que nunca mente” .7 Levados a seguir5 Mt 24:15; Mc 13:14.6 Ver mais D.J. Wiseman e outros, Notes on some Problems in the Book

o f Daniel (Inter-Varsity Press, 1965).7 Tt 1:2.

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esta linha, somos obrigados, por exemplo, a reunir argumentos a fa­vor do texto nos pontos em que a sua veracidade tem sido desafiada. Não é realmente muito difícil defender a noçSo de uma invasão babi­lónica de Judá em 605 a.C., ou a existência de Dario, o medo. Na realidade, nenhuma prova foi levantada no sentido de que nao houve, nem poderia ter havido, aquela invasão, e de que não houve, nem poderia ter havido, tal pessoa. O fato de o livro de Daniel não ter sido mencionado até o século II a.C. nao significa que não exis­tisse anteriormente. Além disso, podemos argumentar que o autor estava falando de maneira informal e costumeira quando chamou Belsazar filho de Nabucodonosor, não querendo dizer isto literal­mente. “Dario, o medo” , também, muito bem pode ter sido um nome honroso para algum regente temporário que tomou o controle da Babilônia em nome de Ciro. Assim continuam os contra-argu- mentos; e é bom que reconheçamos que são inculcados com uma demonstração tão impressionante de erudição quanto a que é usada pelo outro lado, especialmente quando se trata da discussão das pos­síveis vezes em que as palavras gregas ou persas teriam sido usadas. Alguns estudiosos conservadores parecem dispostos a concordar que algumas das palavras em aramaico empregadas no livro pode­riam ter sido alteradas nas edições posteriores, de modo que o texto menos antigo que agora possuímos é diferente do texto original.

O tema central do livro: sua unidade e integridadeSeja qual for a nossa decisão quanto à origem do livro de Da­

niel, devemos levar em conta que o seu tema central, de início ao fim, difere daquele que é sugerido pela teoria de ser um panfleto para os tempos dos macabeus, e que devemos considerar que o livro pos­sui uma unidade e integridade que não é explicada por dita teoria.

A teoria, por exemplo, deixa de tratai de modo adequado as histórias do início do livro, e n3o leva a sério o impacto e a men­sagem delas. Coloca a totalidade do centro de gravidade na segunda metade do livro. A porção “babilónica” tende a tomar-se, para al­guns, um mero arcabouço introdutório, acrescentado depois de o livro ter sido escrito, para fornecer o nome de um autor anônimo para as visões posteriores. Alega-se que estas histórias originalmente não tinham estreita ligação entre si. Seriam histórias antigas que

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circulavam originalmente na Babilônia e que teriam atingido in­diretamente a Palestina por volta dos tempos em que o autor ma- cabeu escreveu a sua obra. Diz-se que ele alterou algumas das his­tórias para servirem ao seu propósito. Teria havido, por exemplo, uma história em que Nabônido foi atacado durante dez anos por uma doença mental, e da qual foi curado por um exorcista judeu. Diz-se que o escritor adotou esta história e a enxertou no mais fa­moso Nabucodonosor para formar a base do quarto capítulo. Além disso, a história acerca de Belsazar no quinto capítulo é às vezes considerada um acréscimo posterior, inserida sem muita finalidade.

No entanto, surge imediatamente a pergunta: se o livro vi­sasse ser um panfleto, traçando paralelos entre os dias do cativeiro na Babilónia e os da perseguição dos macabeus, por que o escritor nao procurou fazer com que a história babilónica se encaixasse melhor nos tempos para os quais supostamente estava escrevendo? Por que não escolheu histórias mais relevantes; e se pretendia alte­rá-las, por que não fez um trabalho completo com a matéria toda?

O livro retrata Nabucodonosor como sendo alguém que se tornou basicamente um soberano benévolo, temente a Deus, dis­posto a escutar a palavra de Deus e a arrepender-se com ela. Pare­ce impossível que um escritor de panfleto então tivesse inventado um paralelo tão inadequado às circunstâncias para as quais estava querendo escrever.

A questão em pauta aqui se torna simples e decisiva: a teoria da origem macabéia do livro deixa de perceber a unidade integral e sutil existente no livro todo. Quando, a partir do início, estudamos cuidadosamente os capítulos, absorvemos o seu significado, procu­ramos obter a sua mensagem e, a partir daí avançamos para os ca­pítulos posteriores, descobrimos que, de começo a fim, o livro tem uma unidade extremamente sólida que satisfaz. Os defensores da te­oria macabéia acham embaraçosa esta unidade. Originalmente, divi­diam o livro em duas seções distintas, fazendo com que os seis últi­mos capítulos formassem o núcleo macabeu, e os primeiros seis uma introdução periférica. Mas chamou-se a atenção para o fato de o sé­timo capítulo do livro, como os cinco anteriores, estar escrito em aramaico, sendo obviamente vinculado, na mais estreita unidade de pensamento, com o segundo capítulo. Como resposta a esta óbvia dificuldade, a divisão foi alterada para sugerir que os capítulos de

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8 a 12 é que formariam o panfleto original. Mas um exame demons­trará que estes capítulos posteriores são simplesmente variaçOes do tema enunciado no sétimo capítulo; desenvolvem-se a partir dele, e o relembram. Além disso, os relances que temos de Daniel nestes capítulos são todos sutilmente entretecidos com os quadros dele nos primeiros capítulos.

Quando a unidade do livro é reconhecida, então os primeiros capítulos, que são em si mesmos tão vívidos e profundos no seu pen­samento e tão dinâmicos na sua mensagem, tendem a dominar a ex­posição do restante do livro e, portanto, a alterar a abordagem intei­ra aos capítulos posteriores.

Pelo livro todo evidencia-se que a obra foi escrita como men­sagem, não especialmente para aqueles que estejam sofrendo no meio de uma perseguição mortífera mas, sim, para aqueles que es­tejam vivendo numa condição estável, porém dentro de uma cultura estrangeira. Noutras palavras, não numa situação como a dos maca­beus, mas, sim, numa situação do tipo babilónico. Nesta situação, o que se requer é a procura perseverante de uma vida virtuosa dentro daquilo que o meio ambiente permite, a cooperação fiel com aqueles que estão em posição de autoridade dentro dos limites admitidos pe­la consciência, a aderência rígida aos costumes da lei a despeito da oposição que possa ocorrer, o cultivo de hábitos regulares de devoção, o orgulho das tradições religiosas da nação, uma disposição para ouvir o relato de visões e sonhos, e uma participação ativa na vida política, inclusive assumindo um alto cargo. Na realidade, quando chegamos aos assim chamados capítulos apocalípticos na segunda parte do livro, achamos a mesma mensagem da perseverança em le­var a efeito os negócios seculares do governo, da importância da ora­ção e do estudo bíblico regulares. A mensagem deles não é a de co­mo viver nos últimos dias sob severa tribulação mas, sim, a de como viver em tempos estáveis, mantendo uma visão séria dos possíveis desenvolvimentos do mal no futuro, e trabalhar para impedir, se possível, esses desenvolvimentos. Este não parece ser o tipo de men­sagem, ou o tipo de livro, que alguém deliberadamente escreveria para quem vivesse nos dias de Antíoco.

Podemos, portanto, aceitar que o livro tenha de fato existido, circulando de alguma forma, talvez sem ser apreciado até mesmo por aqueles para os quais tenha sido originalmente escrito. Seria sela-

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do, por assim dizer,8 mas, mesmo assim, genuína palavra de Deus, proveniente da tradição dos dias de Israel na Babilônia, para todo o tempo do porvir para o povo de Deus, que porventura venha a achar-se como comunidade no deserto, ou no exílio. Na situação que sobreveio ao povo de Deus nos dias de Antíoco Epifânio, o livro, escrito especialmente para os dias do exílio, adquiriu outras possibilidades de aplicação (talvez nem imaginadas até então) na no­va situaçSto do povo de Deus. Embora originalmente dirigido a cir­cunstâncias diferentes, transmitiu de modo muito poderoso, mais tarde, naquele tempo de grande perseguição, uma mensagem de en­corajamento e de sabedoria, especialmente por dar certeza de que Deus tem controle e presciência das forças que, segundo parecia, do­minavam a História humana. NSfo há dificuldades em sustentar que, ao ser publicado de novo para aplicar-se às circunstâncias daqueles dias, passou por uma nova versão.

Daniel dentro da tradição bíblicaNa ordem dos livros do Antigo Testamento, conforme apare­

cem no cânon hebraico, Daniel está colocado na terceira divisSo, na dos Escritos, e nS.o entre os Profetas. Na Septuagjnta no entanto, aparece no mesmo lugar das versões da Bíblia em português. Esta va­riação de lugar talvez indique que se achou difícil definir o lugar exa­to deste livro dentro do cânon. Dificilmente pode ser sustentado que Daniel escreve como profeta. Embora haja elementos no seu pensa­mento e no seu ministério que possam justificar tal classificação, ele personifica mais claramente as características do verdadeiro sábio, conforme a descrição que dele é feita na tradição bíblica; e a mensa­gem e o ponto de vista de Daniel freqüentemente são tidos atualmen­te como sendo apocalípticos. Devemos, portanto, voltar a nossa atençSto para ver como o livro de Daniel relaciona-se com estes três tipos de pensamento e de literatura.a. Daniel dentro da tradição profética

Pode-se justificar, até certo ponto, a inclusão de Daniel entre

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os Profetas. Ele meditava sobre os livros deles. A principal preocupa­ção de sua vida era a mesma de todos os profetas, e ele vivia e orava por ela, tal como eles: que as promessas de Deus em prol do seu po­vo como nação se cumprissem integralmente a despeito de todos os pecados.9 Daniel, com a sua atitude para com as questOes seculares e com o seu ponto de visto quanto ao futuro deste mundo, comparti­lhava de muitas das características da tradição profética. É nosso propósito na seção seguinte descrever a cosmovisão e o ponto de vista sobre o futuro que freqüentemente é chamado de apocalíptico, a fim de contrastá-lo com a cosmovisão e com o ponto de vista sobre o futuro proféticos. Além disso, pretendemos aqui destacar certas características do ponto de vista profético sobre o futuro que, se­gundo cremos, também inüuiram na visão de Daniel.

Quando descrevem o que há de acontecer no futuro, os profe­tas às vezes pintam um quadro bem diferente daquele que é pintado pelos apocalípticos (judaicos). Enquanto antevêem o que vai acon­tecer nos últimos dias nesta terra, freqüentemente nos dão quadros do paraíso sendo restaurado dentro do desenvolvimento e da trans­formação da própria história desta terra, de uma era de ouro que sur­ge da presente era, ou a ela se misturando, ou desenvolvendo-se lado a lado com ela.10 Às vezes retratam o Messias que remará nesses dias como um príncipe terrestre e soberano ideal provindo da casa de Da­vi.11 Conclamam os seus leitores a fazerem disto o seu alvo e, muito mais, a buscarem a sua realização, enquanto esperam em Deus e, com verdadeiro arrependimento,12 buscam a justiça de Deus e a presença divina no seu meio,14 acreditando que o Espírito de Deus tem a ca­pacidade de levar a efeito tal realização. Desta maneira, tomax-se-ão uma luz para os gentios.15

Daniel obviamente é um homem que está à vontade com este conceito e ponto de vista proféticos. Sua oração longa e intensa, ins­pirada pelos escritos proféticos e especialmente pela leitura de Jere­mias, demonstrava a sua solicitude para com o cumprimento das promessas messiânicas e davídicas.16 O pecado, a justiça, a misericór­dia e o perdão são seus temas, assim como eram dos profetas. Com-

9 Cf. 9:3ss. 13 Am 5:14ss., 24.10 Is 2:lss; 11:6-8; Am 9:13ss. 14 Is 58.11 I s l l : l s s . 15 Is49:6ss.12 Os 14:lss. 16 Dn 9:1-19.

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partilha da preocupação deles em prol da justiça social e do alívio dos oprimidos e, quando a oportunidade se apresentava, podia pregar exatamente como profeta.17

b. Daniel dentro da tradição apocalípticaO livro de Daniel às vezes é classificado como livro apocalíp­

tico, o que indica que compartilha da tradição do pensamento e do estilo da redação que recebem este nome. Já no século II a.C. ficou claro que a voz viva da profecia, que tinha inspirado e dominado a vida religiosa e moral em Israel, cessara completamente. Neste tempo apaxeceu, em seu lugar, uma nova série de escritos, todos com aspec­tos semelhantes na sua forma, na sua técnica, e no seu ponto de vis­ta comum. Estes escritos eram populares, influentes e seguiam o estilo agora conhecido e classificado como apocalíptico. Os autores acreditavam que o fim desta era estava se aproximando. Ao trans­mitir e defender sua mensagem alegavam que as revelações que estavam pondo em circulação foram originalmente dadas no passado distante a alguma personagem bem conhecida na História. Havia, por exem­plo, os livros de Enoque, e apocalipses atribuídos a Baruque, a Moi­sés e a Abra2o. A mensagem ficava com muito mais autoridade quando o escritor ocultava a sua identidade e expressava a sua men­sagem como se fosse uma profecia ou uma visão que tinham sido recebidas anteriormente, há vários séculos no passado. Os eventos históricos e contemporâneos podiam ser referidos, destarte, como se tivessem sido profetizados há muito tempo. As revelações passavam, entío, a descrever o plano secreto de Deus para o fim das eras com o emprego de termos e símbolos semelhantes àqueles usados no livro de Daniel.

Este pensamento e esta literatura apocalíptica floresceram espe­cialmente durante o período intertestamentário, mas a ótica apoca­líptica existente na maior parte da literatura então produzida empar- te tinha raízes nos ensinos dos grandes profetas de Israel, bem como no livro de Daniel. Além disso, mais tarde, alguns aspectos dos ensina­mentos destes escritos apocalípticos foram adaptados por Jesus na sua pregação acerca do reino e do fim do mundo.18 Por outro lado,

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uma tradição apocalíptica crista se apresenta nas demais partes do Novo Testamento, 19 e, logicamente, recebe a sua maior expressffo no livro de Apocalipse. Podemos notar, portanto, que havia elemen­tos no desenvolvimento do ponto de vista apocalíptico que encon­traram apoio no próprio Jesus.

A origem de muita coisa que é válida neste ponto de vista apo­calíptico (justamente aqueles elementos que encontraram apoio em Jesus) pode ser achada nos escritos dos profetas do Antigo Testa­mento. Já notamos um aspecto distinto no pensamento dos pro­fetas acerca do futuro, destacando aquelas passagens em que freqüen­temente os profetas expressam a sua esperança de ver o reino de Deus vindo a esta terra pelo desenvolvimento e transformação da História humana, com a restauração do paraíso perdido.20 Há, no entanto, um segundo aspecto distintivo do pensamento acerca do futuro que se entretesse com este, e que parece desenvolver-se com ele, mas nunca unindo-se com ele para fornecer um só quadro simples e satisfatório de como a História avançará finalmente para o seu clímax, e como o reino de Deus virá. É neste segundo modo de pensar e de escrever acerca da História da era do porvir que achamos a fonte daquilo que é o melhor na literatura apocalíptica.

Neste ponto de vista apocalíptico acerca do futuro, a era do porvir é pensada somente como sendo posterior a um período de julgamento em que os maus serão consumidos e até mesmo a terra inteira será destruída.21 Às vezes até mesmo os grandes profetas têm experiências de visões do outro mundo e de além do que está pre­sente no cenário terrestre da História.22 Parecem ver a Deus neste âmbito “acima” , em pé ou sentado, dirigindo seus mensageiros celestiais.23 Às vezes, eles têm visões tão estranhas e difíceis que seres celestiais são necessários para interpretá-las.24 Por vezes, também, dao quadros vívidos, porém vagos, de uma história do fim do mundo que já está sendo planejada e posta em movimento a partir daquele outro mundo, invocando distúrbios cósmicos que abrangem todas as nações; invocando também um conflito tremendo entre forças bo­as e forças estranhas, que devem ser sofrido antes do fim desta era e da nova era a ser introduzida.2519 P.ex.: 2 Ts 2:1-1220 Ver pág. 12.21 Is 24:lss.22 Is 6:1 ss.

23 P. ex.: 1 Rs 22:19; Ez 1 :lss.; 8:lss.24 P. ex.: Zc l:8ss.; 2:2ss.25 P. ex.:Ez 38, 39; Zc 12-14.

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Os escritos apocalípticos posteriores, extrabíblicos, que apare­ceram perto do fim do século II a.C., adotaram semelhantes carac­terísticas dos escritos proféticos e as desenvolveram de maneira tal que nem sempre davam uma expressão verdadeira do pensamento dos profetas hebreus. Em tais escritos posteriores, uma clara distin­ção também é feita entre o âmbito da terra e o do céu. Este mundo presente é considerado como sendo a esfera de um conflito intenso entre Deus e as forças sinistras do mal. Este conflito envolve tanto o âmbito celestial como o terrestre. O reino de Deus é considerado como sendo totalmente diferente do que qualquer reino terrestre poderia vir a ser em qualquer hipótese, e espera-se que ele irrompa repentinamente do além. O fim da era antiga envolverá intensa ati­vidade pelos poderes malignos sobrenaturais que já a dominam. Quando a nova era irromper, haverá sinais de distúrbios cósmicos na natureza e grandes cataclismos na História. A história da terra avançará numa série de eventos dramáticos e facilmente identifi­cáveis de acordo com o padrão predeterminado e em períodos re­conhecíveis. Tudo quanto é antigo e maligno finalmente passará num cataclisma que sacudirá todos os alicerces e que deixará so­breviver somente o que é da vontade de Deus.

O conhecimento destes eventos e a chave para o seu enten­dimento podem ser comunicados de antemão para servos que te­nham recebido percepção quanto ao mistério do propósito de Deus e sabedoria no que diz respeito ao que ele vai fazer. Estas revelações são comunicadas por visões, sonhos e mensagens angelicais cuja veracidade e significado são revelados no decorrer do tempo. Núme­ros sagrados misteriosos e animais estranhos simbólicos, que repre­sentam várias agências e poderes terrestres, sao empregados.

O livro de Daniel obviamente tinha uma posição central na formação da tradição apocalíptica. Boa parte dele era obviamente colocada numa forma literária que veio a ser um modelo para escri­tores posteriores. O próprio Daniel emprega números 26 e símbo­los27 misteriosos, recebe visões,28 e prevê a História de maneira muito semelhante à dos autores das obras-padrüo da literatura apo­calíptica judaica.29 Há outras afinidades formais entre ele e aqueles que desenvolveram o ponto de vista apocalíptico posterior. Por ê-

26 P. ex.:9:24ss. 28 P. ex.: i0:5ss.27 8:3ss. 29 P. ex.: ll:2 ss.

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xemplo, o pano de fundo das visOes de Daniel é pintado de maneira que enfatiza muito claramente a distinção entre os dois âmbitos do céu e da terra,30 e na sua visito do futuro vê o reino vindouro de Deus contrastando-se muito dramaticamente com os atuais reinos deste mundo.31

Mesmo assim deve ser notado que, embora Daniel ajudasse tato decisivamente a dar forma a esta tradiçato importante, conservou os seus pensamentos rigorosamente de acordo com a palavra de Deus conforme era expressa na tradição profética, e nato permitiu os de­senvolvimentos indesejáveis que ocorreram dentro da literatura apo­calíptica no período judaístico posterior.

Ao lermos esta literatura, torna-se claro onde estes escritores posteriores se desviaram. O pensamento deles está freqüentemente marcado por um profundo abismo, desprovido de qualquer esperan­ça, entre a era presente e a do porvir. A era presente é normalmente considerada tato plenamente dominada pelo mal que já foi entregue ao mal, para entato continuar o seu curso até acabar-se quando, en­tão, o reino de Deus irromperá inteiramente do além. Um ponto de vista muito fatalista freqüentemente é adotado sobre como as coi­sas forçosamente hao de desenvolver-se na História, e o valor deste mundo, da sua cultura e das suas possibilidades é avaliado de um ponto de vista muito pessimista.

É realmente notável que mesmo havendo todas essas seme­lhanças formais entre os escritos de Daniel e os destes últimos auto­res, ele evita toda divergência séria em relaçato ao que é básico e cen­tral nos conceitos da criação, da providência e da História, sustentados pelos outros textos do cânon bíblico. Nato faz concessão alguma ao conceito pessimista para o mundo nem à visato dualista final do re­lacionamento entre o bem e o mal incorporados em algumas dessas obras “apocalípticas” . Além disso, vê o reino de Deus poderosamen­te em operaçato dentro dos processos históricos atuais. Sua afinida­de principal sempre está com os grandes profetas que eram seus ante­cessores e contemporâneos.c. Daniel e a tradição sapiencial em Israel

Quando lemos o primeiro capítulo de Daniel, não podemos

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deixar de notar os paralelos que há entre Daniel na corte de Nabuco­donosor e José na corte do Faraó. Os dois foram exilados, demons­traram lealdade exemplar a Deus e à sua lei, passaram por profunda humilhação por serem falsamente acusados e, no final, foram vindi­cados. Ambos obtiveram reconhecimento por causa de seus dons, mediante a capacidade de interpretar um sonho importante que per­turbara grandemente o rei, e que nenhum mágico conseguirá desven­dar de modo satisfatório. Os dois tomaram-se homens de confiança do rei, e receberam um caigo imediatamente abaixo dele no reino. Os dois foram ainda conhecidos como detentores de dons extra­ordinários da parte de Deus, foram destacados entre aqueles que eram sábios, e se posicionaram entre os demais sábios da corte.

Em todas as partes do Oriente Próximo, sempre que havia um centro de governo forte e próspero, o normal era desenvolver-se ali uma tradição de sabedoria, tendo muita coisa em comum com ou­tras capitais, mas também conservando características locais. Esta ampla tradiçSo de sabedoria deu origem a uma literatura particular, na forma de provérbios, enigmas, fábulas, histórias e conselhos de sabedoria. Esta literatura tomou forma num período remoto da His­tória. Era usada nas escolas de sabedoria ligadas aos círculos da cor­te. O objetivo dessas escolas era ensinar regras para o sucesso e feli­cidade na vida, e prudência nos negócios para ajudar e orientar reis, e também para treinar outros a posição de liderança e respon­sabilidade na corte. O treinamento incluía educação em todos os campos gerais do conhecimento, as perícias que se esperavam de um escriba naqueles dias, e também os ensinos esotéricos como a interpretação de sonhos e a astrologia. Era um ensino essencialmente secular, pois as associações religiosas não o afetavam profundamente.

Os escritos sapienciais saio conhecidos, tanto no Egito e na Mesopotâmia, quanto no Extremo Oriente, desde 2500 a.C., e não há motivo para se ser cético quanto à tradição bíblica muito forte que associa Davi, e especialmente SalomSo, a esta tradição de sa­bedoria. Os produtos literários da sapiência israelita acham-se nos livros de Eclesiastes, Jó, Provérbios e Cantares, e sábios que davam conselhos aparecem ocasionalmente em personagens tais quais Ai- tofel e Husai.32 À medida que foi sendo absorvida na literatura de Israel, no entanto, a tradição sapiencial geral das nações circunvi­

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zinhas foi purificada da sua profunda secularidade e orientada em di­reção à fé em Deus como seu âmago. Isto nSo envolvia necessaria­mente muita alteração no seu conteúdo prático de bom senso, e há muitos paralelos entre o livro bíblico de Provérbios, por exemplo, e os da sabedoria egípcia. A sabedoria israelita, no entanto, elevou o tom ético da tradição e ressaltou o fato de que, para as introspec­ções mais verazes e a orientação prática mais sábia, era necessário a inspiração do Espírito de Deus. Personagens tais como José e Daniel mostram-nos como o sábio recebe do alto inspiração e força para po­der servir a Deus e conduzir os seus negócios pessoais e os seus de­veres políticos de forma muito melhor do que aqueles que mera­mente sSo treinados nas escolas da sabedoria do mundo.33 A melhor e mais prática sabedoria vem do alto, e o temor do Senhor é o seu princípio. 34 Este é o aspecto central do ensino dos livros sapienciais do Antigo Testamento. Antes de procurar interpretar o sonho de Nabucodonosor, a oração de Daniel, pedindo iluminação, é feita de textos tirados da literatura sapiencial da sua própria nação. Daniel des­creve a sua experiência de iluminação em termos exatamente parale­los com aqueles que se usam ali, e demonstra mais entendimento prático e político dos negócios de estado do que qualquer dos peri­tos em seu redor,35 pois esta esfera, assim como todos os demais as­pectos da vida, pertence a Deus. Daniel os sobrepuja na prudência e no tato, que também s3o aspectos da sabedoria.36 Além disso, ele é a corporificaçSo de uma piedade profunda e genuína em que todo problema é relacionado com Deus, a Palavra é perscrutada na busca de conselho e de orientaçato, e a própria lei é vista como fonte de inspiraçato e de comunhão com Deus.37

33 Gn41:lss.; D nl2:27ss. 36 l:8ss.; 2:27ss.; 6:3ss.34 Dn 12:20ss. 37 16:10ss.; 9:2ss.35 2:20.

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Nota ao leitorEste livro foi escrito fazendo-se referências contínuas ao pró­

prio texto do livro de Daniel. A exposição será melhor entendida se o texto dos respectivos capítulos da própria Bíblia for lido de ante­mão, deixando-se a Bíblia aberta, de forma a ser constantemente consultada. As referências aos demais capítulos de Daniel, e a outras partes da Bíblia (freqüentemente nas notas de rodapé), também de­vem ser consultadas.

Todos que são beneficiados pelo que faço, fiquem certos que sou contra a venda ou troca de todo material disponibilizado por mim. Infelizmente depois de postar o material na Internet não tenho o poder de evitar que ' alguns aproveitadores" tirem vantagem do meu trabalho que é feito sem fins lucrativos e unicamente para edificação do povo de Deus. Criticas e agradecimentos para: mazinhorodriguesQyahoo. com. br

Att: Mazinho Rodrigues.

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Daniel 1

OS FATOS E A RESPOSTA

O povo de Deus: novas questões em teologia e em políticaNo ano terceiro do reinado de Jeoaquim, rei de Judá, veio Na­

bucodonosor, rei da Babilônia a Jerusalém, e a sitiou. 0 Senhor lhe entregou nas mãos a Jeoaquim, rei de Judá, e alguns dos utensílios da casa de Deus; (vs. l-2a).

Quando tudo isso realmente aconteceu a maioria do povo de Judá teve que mudar sua ótica sobre como Deus iria realizar o seu propósito com relação a eles dentro da História e como iria cumprir as suas promessas. Eles haviam sido levados a pensar e a planejar erra­damente, interpretando a Palavra de Deus de acordo com os seus próprios desejos egocêntricos. A maneira de ler e interpretar suas es­crituras e tradições levava-os a pensar que seria a partir de certos princípios inalteráveis que Deus cumpriria os seus propósitos. A li­nha real de Davi deveria continuar ininterruptamente, sem nenhuma interrupção, até que o segundo glorioso Davi, o Messias prometido, descendente do primeiro, aparecesse no trono de Judá. Sob este reinado Israel experimentaria o triunfo e a satisfação de ser o centro de uma comunidade de um grande e novo estado mundial, onde a paz e a prosperidade floresceriam para a alegria de todos. Mas até que chegasse esse dia, Jerusalém, a cidade santa, e o templo deveriam permanecer livres e invioláveis, como nos bons tempos de Davi e Salomão, sendo assim um sinal de que aqui Deus realizaria essas coi­sas maravilhosas.

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Portanto quando tudo aconteceu às avessas, quando a cidade e o templo invioláveis foram destruídos, foi difícil para eles admitirem que o futuro pretendido por Deus pudesse envolver tanto a humilha­ção como a glória, o exílio e a vergonha, bem como a segurança e a prosperidade. Será que Deus poderia realmente usar um pagão como Nabucodonosor como instrumento para o bem e a educação do seu povo? Será que Deus esperava que acreditassem que, enquanto esta­vam nas mãos brutais do rei, eles ainda estariam nas mãos de Deus?

Em particular era-lhes muito difícil ver o templo arruinado e os utensílios da casa de Deus profanados. Tinham-se curvado em temor perante o que acreditavam e sentiam ser a presença de Deus na­quele templo, onde estes utensílios eram usados e santificados. A tradição era permeada de histórias que advertiam que a ninguém seria permitido sequer tocar nesses utensílios com mãos profa­nas sem sofrer pavorosa e imediata puniç3o. Mas agora um monarca pagão atreveu-se, e teve permissão, de fazer exatamente isso!

Precisavam de uma nova teologia, e o seu desenvolvimento se­ria um processo moroso, envolvendo introspecção e muita discus­são. O livro de Daniel leva-nos para um mundo no qual estes proble­mas estavam sendo enfrentados e dissecados em toda a sua amplitu­de. Mas além dos problemas de uma nova teologia tinham também que definir como viver naquela situação. Deveriam viver como um grupo minoritário dentro de um ambiente ora ameaçador, ora ami­gável, mas sempre alienado de sua cultura e de sua fé religiosa. Um pastor trabalhando entre imigrantes que moram numa grande cidade resumiu o problema básico de tal grupo: “Como podemos nos ajustar sem sermos tragados?”

Como povo escolhido de Deus jamais deveriam ter-se permi­tido esquecer, mesmo lá na Babilônia, das promessas específicas de Deus sobre o futuro, feitas primeiramente a Abraío, e freqüentemen­te repetidas e ampliadas nos tempos cruciais de sua história. Estas promessas asseveravam-lhes que possuiriam a terra de Canaã. Lá cons­truiriam uma cidade e uma casa para o Deus vivo; produziriam uma linhagem de reis que culminaria com o rei divino; seriam abençoados e tornar-se-iam bênção para todas as nações da terra. Para mantê-los unidos era necessário acreditar nesse processo, o que os preservaria ante todas as outras naçOes. Mas como seria cumprido agora este destino, sob o governo de Nabucodonosor, sob a incerteza da situação mun­dial, e ante as sublevações destes novos tempos? Será que haveria

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uma m ínim a possibilidade da promessa feita a Abraão e aos patriar­cas de realizar? Eles haviam sido arrancados da terra em que foram plantados. Estavam dispersos em países distantes. Será que valia a pena apegar-se a esta tradição do passado e procurar permanecer fiel ao chamado que os patriarcas ouviram tantas vezes? Poderiam atrever-se a esperar que o milagre do grande êxodo do Egito vies­se a se repetir num novo êxodo da Babilônia naqueles dias?

Nabucodonosor: benevolência e despotismoO livro de Daniel é, desde o início, um livro extremamente

otimista. O escritor está certo de que a partir do momento em que o povo de Deus foi posto sob o poder de Nabucodonosor, este em cada pensamento e capricho seu, em cada plano e decreto do seu conselho estava bem perto e firmemente amarrado ao controle do Senhor. O imperador surgira para preservar e não para destruir Is­rael. A afirmação com respeito aos utensílios, de que ele os pôs na casa do tesouro do seu deus (v.2) é para ser vista como sinal do controle divino. Nabucodonosor poderia facilmente tê-los des­truído, ou profanado (como o fez o seu perverso sucessor) mas, sob as mãos de Deus, suas decisões aqui, bem como em outros acontecimentos, são para o bem e para a preservação do povo de Deus no cumprimento do seu destino. Os quatro primeiros capí­tulos do livro de Daniel procuram mostrar, com maior destaque, Deus trabalhando cuidadosamente no controle deste homem, Na­bucodonosor, inspirando as suas decisões, dirigindo a sua loucura, dando-lhe visões e sonhos, tornando-o louco quando não coope­ra e devolvendo-lhe a sanidade quando se arrepende.

Quando disse o rei a Aspenaz, chefe dos seus eunucos, que trouxesse alguns dos filhos de Israel, assim da linhagem real como dos nobres (v.3) a fim de estabelecer uma escola e ensinar aos jovens israelitas a cultura e a língua dos caldeus (v.4), podemos notar uma mudança na política e na visão do rei. Podemos imagi­ná-lo agora como um homem de guerra tentando honestamente tomar-se um homem de paz. Suas guerras mostraram o pior dele e daqueles que estavam com ele. Onde quer que os levasse, seus exércitos eram devastadores; queimavam casas e cidades, demo­liam palácios e templos; assassinavam, violentavam e saqueavam.

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Vítimas humanas eram conduzidas como manadas para a Babilô­nia imperial.

Mas se a guerra para ele era uma coisa, a paz era-lhe algo bem diverso, e as tarefas da paz mostraram um outro lado da sua complexa personalidade. A Babilônia tinha que ser replanejada. Uma nova e grande sociedade tinha que ser criada, melhor e mais estável que aquelas destruídas tão fácilmente sob as suas tropas no campo; de fato, deveria ser melhor do que qualquer sociedade do passado. Ele assumiu este desafio também. O livro de Daniel descreve-o como alguém que gostava mais de construir do que de destruir. Os primeiros capítulos do livro descrevem um processo em que ele se toma um estadista sábio e moderado, perspicaz e de visão. Agora ele pretende seriamente assumir a sua responsabi­lidade pelo levantamento e pelo desenvolvimento das suas popu­lações escravizadas. Procura explorar as possibilidades sociais e humanas de suas conquistas, pois vê grande potencial em todo es­te material humano trazido para a Babilônia. O seu programa não se limita apenas a esclarecimento, melhoria social e unificação dos povos cativos pela babilonização, mas ele quer também absorver o máximo das boas coisas do mundo para a própria Babilônia. Es­tes jovens nobres, por exemplo, sem nenhum defeito, de boa apa­rência, instruídos em toda a sabedoria, doutos em ciência, e versa­dos no conhecimento, e que fossem competentes para assistirem no palácio do rei (v.4), poderiam acrescèntar esplendor e efici­ência à sua própria administração babilónica, e levantar os padrões da cultura local quando enviados às províncias.

Além disso, precisamos interpretar como um gesto benevo­lente e inspirado a sua decisão de estabelecer a universidade he­braica perto do palácio. Quando arrola os jovens hebreus no seu curso de três anos de treinamento em sabedoria, cultura a polí­tica babilónica, não os conscreve por força bruta, mas os induz a se matricularem com atraentes descrições dos privilégios e pers­pectivas do curso. As finas iguarias e o vinho da casa real, e a se­gurança de um emprego na assessoria pessoal do rei são simples­mente alguns dos itens do prospecto de uma faculdade a que qual­quer homem livre daqueles dias gostaria de pertencer.

É claro que o escritor do livro não encobre o fato de Nabu­codonosor ainda permanecer um déspota, com elementos tirâni­cos na lei. Mas pode-se desculpá-lo. No segundo capítulo ele de-

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cai numa fúria incontrolável, com ameaças de torturas horroro­sas; mas esta decaída acontece num momento de cansaço psicoló­gico e é devida à sua incerteza básica sobre si mesmo. O terceiro capítulo mostra-o rígido em matéria de lei e ordem e enfurecido com divergências; mas ele viveu numa época em que visões liberais e permissivas eram desconhecidas, e numa região onde apenas a ditadura era a forma de se trabalhar com grandes populações, e ele tinha que manter sob rígido controle uma situação política potencial­mente vulcânica. Acreditava honestamente ser necessário que os dis­sidentes deveriam ser sacrificados para o bem-estar de todos. 0 quar­to capítulo focaliza-o ensoberbado em um ou dois momentos com intensa vaidade acerca do estonteante pensamento de ser o cons­trutor da Babilônia. Mas ele paga caro por esta queda, e finalmente o vemos terminar a carreira como um homem humilde, arrepen­dido e temente a Deus. Além disso, no sonho que lhe foi dado por Deus, no segundo capítulo, o seu império é dado como tendo o valor do ouro,1 e de muito mais qualidade que os poderes mundiais que o sucederiam no Oriente Médio.

Talvez, então, ao lermos o livro, devamos pensar no rei mais como paternalista do que como tirano. Ele nunca duvidou do que achava ser o melhor para aqueles a quem governava. Suas ambi­ções imperialistas estavam sutilmente combinadas e, acreditava ele, santificadas com um puro zelo missionário. Mas a sua preocu­pação foi sempre muito mais compartilhar privilégios do que me­ramente exercitar poder em causa própria.

Ao lermos o livro todo, sentimos que foi trágico sua experi­ência terrestre ter terminado tão mal. Vemos que ele foi sucedido por um tolo que passou a vida dissipando o que o predecessor con­seguira e arrasando o que ele construíra. Sua dinastia foi sucedida por outras de menor valor e, a despeito das histórias sobre ela nes­te livro, a Babilônia tomou-se mais tarde um nome a ser ligado à grande e orgulhosa cidade anticristã que nos últimos dias da terra tentará todos os povos e nações a encontrar a unidade no que é vil e repugnante, condenada a cair sob a capa de sua magnificên­

c ia enganosa.2Ainda assim entendemos, ao ler os primeiros capítulos do

1 Dn 2:37, 382 Ap 1 6 :1 7 -1 8 :2 4

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nosso livro, que estes jovens, sob a égide de Nabucodonosor, en­frentaram um sistema que, embora sendo estrangeiro, oferecia a promessa de uma carreira valiosa, sob a liderança de alguém que, por todos os padrões humanos, possuía grandes e louváveis quali­dades de estadista.

A prática: cooperação ou afastamento?Procuremos imaginar como os exilados enfrentaram a situa­

ção. Quando tiveram que decidir quanto às ofertas e aos planos de Nabucodonosor, muitos deles se dispuseram a tentar se estabe­lecer, com todo o conforto e sem escrúpulos, na nossa Babilônia. Sem dúvida alguns argumentavam que aqueles que perdem as suas vidas é que as encontram; além disso ao perderem a sua prõpria identidade nacional estariam fazendo uma contribuição suprema ao grande estado cosmopolita emergente. O mundo estaria melhor servido se na Babilônia eles se esquecessem de Sião. Além do mais, como indivíduos, devem ter visto que a vida na Babilônia oferecia uma medida de riqueza e satisfação que ultrapassava os padrões puramente judeus. Quando correu a notícia de que Nabucodono­sor estava à procura de recrutas na universidade, é fácil imaginar aquela gente fazendo tudo para colocar seus filhos, a quem já ti­nham dado novos nomes babilónicos. Libertaram-se de seus es­crúpulos quanto a que tipo de comida seria servida ou que tipo te­riam que evitar. Os tempos estavam mudando depressa e eles acre­ditavam ter que acompanhar essas mudanças.

Houve, contudo, quem reagisse fortemente a isso. Jamais deixou de haver em Israel pessoas como os recabitas,3 ou como os zelotes, ou como os fariseus,4 sinceros e dedicados, rígidos ao mínimo detalhe da tradição e profundamente precavidos ante qualquer mudança até mesmo em aspectos culturais; eram sempre os primeiros a se recusarem a curvar os joelhos perante Baal. E muito provável ter havido pessoas assim entre os exilados. Pode­mos imaginá-los sustentando firmemente a crença de que não po­deria haver conciliação alguma com os babilônios, em nenhum as-

3 Cf. Jr 354 Cf. Mt 15:1; 23:13-26

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pecto da vida. Olhavam sempre as tentativas, do lado babilónico, de conseguir algum meio de integração como sendo uma instiga­ção para o mal. Sentiam que sob o paternalismo de Nabucodono­sor, com suas ofertas de educação para a liderança, com os seus programas de aculturação e planos para unificar e abençoar todos os povos sob a sua égide, os judeus corriam grande perigo, maior do que seus antepassados correram sob a terrível tirania do faraó no Egito. Deparavam agora com algo essencialmente hostil em espírito a tudo quanto haviam suportado como nação; algo que, com suas seduções, teria um poder de destruição muito maior do que tiveram o açoite e a tortura no vale do Nilo. Eles prefeririam muito mais o Egito do que a sua atual situação. Este ponto de vista foi muito bem expresso num dos últimos salmos:

“Às margens dos rios de Babilônia nós nos assentáva­mos e chorávamos, lembrando-nos de Sião. Nos sal­gueiros que lá havia pendurávamos as nossas harpas, pois aqueles que nos levaram cativos nos pediam can­ções, e os nossos opressores, que fôssemos alegres, di­zendo: Entoai-nos algum dos cânticos de Sião. Como, porém, haveríamos de entoar o canto do SENHOR em terra estranha?”5Outros, porém, que pertenciam também à comunidade cati­

va, consideravam esta atitude muito radical. Alguns deles, como Daniel, certamente tinham sido profundamente influenciados por uma carta que lhes fora enviada pelo profeta Jeremias, não muito depois de terem sido levados cativos:

“Edificai casas, e habitai nelas; plantai pomares e co­mei o seu fruto. Tomai esposas e gerai filhos e filhas, tomai esposas para vossos filhos, e dai vossas filhas a maridos, para que tenham filhos e filhas; multiplicai-vos aí, e não vos diminuais. Procurai a paz da cidade, pa­ra onde vos desterrei, e orai por ela ao SENHOR; por­que na sua paz vós tereis paz.”6O que precisamente esta mensagem queria dizer? É óbvio

que Jeremias não pretendia que esquecessem a sua herança ou o

5 SI 137:146 Jr 29:5-7

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seu destino e perdessem a sua identidade. Ninguém mais do que Je­remias tinha resistido à adulteração dos elementos únicos da sua fé. Ninguém fora mais não-conformista em seu próprio caminho. Para seguir este seu conselho, teriam que dar um jeito de se estabe­lecerem por um longo período na Babilônia e cooperarem no contex­to de suas estruturas políticas e sua atmosfera cultural, ganhando, se possível, alguns dos prêmios e recompensas por serem leais como cidadãos e, contudo, reter a comunhão com o Deus de seus pais e preservar tudo o que era essencial à sua fé e ao seu testemunho pe­culiares.

Os guardas do verdadeiro IsraelAlguns jovens são citados no livro de Daniel por terem conse­

guido seguir o conselho de Jeremias quanto a se estabelecerem e cooperarem na Babilônia, permanecendo contudo sempre fiéis à tradição de seus pais: Entre eles se achavam, dos filhos de Judá, Daniel, Hananias, Misael e Azarias (v.6).

Parece que todos eles eram leigos. Não há menção de sacer­dote ou mesmo de profeta como participante do movimento reli­gioso representado aqui por estes homens. Toda a estrutura de adoração e sacrifícios da comunidade havia sido destruída. Sabe­mos que os profetas continuaram a ensinar e a pregar durante o exílio, e é certo que a comunidade tinha professores da Palavra de Deus, treinados na tradição profética ou sacerdotal. Contudo, o livro de Daniel lembra-nos que a continuidade de uma fé depen­de, em última instância, da realidade do testemunho e da religião leigas, mais do que da sobrevivência do clérigo oficial ou de suas instituições.

Deve ter havido algum tipo de adoração e ensino em comu­nidade por trás da vida destas jovens testemunhas leigas, e é ób­vio, a partir dos três primeiros capítulos de Daniel, que de certa forma eles praticavam religião em grupo. Eles fortaleciam-se ao dis­cutir, orar, estudar e decidir juntos na comunhão de uma peque­na “célula” de crentes. Isto ajuda a explicar o poder do seu teste­munho solitário, quando tiveram que dá-lo. É quase impossível para qualquer um manter uma fé vital em Deus e um forte teste­munho no seu modo de vida, sem a força, sem a sabedoria, e sem

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a comunhão que provêm de uma comunidade. Mesmo um ou dois juntos podem formar essa comunidade poderosa. Davi, sendo um solitário fora-da-lei fugindo de Saul, teve um ponto crucial em sua vida quando “se levantou Jônatas, filho de Saul, e foi pa­ra Davi a Horesa, e lhe fortaleceu a confiança em Deus” .7 Em de­terminada ocasião, Daniel mostrou-se também dependente da cora­gem e das orações de seus companheiros.®

Mas é óbvio, segundo o livro, que estes leigos foram por ve­zes separados uns dos outros e forçados a tomar importantes de­cisões perante Deus em situações em que estavam isolados. As circunstâncias de sua comunidade então implicavam, para eles, uma grande responsabilidade individual. O próprio Daniel apa­rece freqüentemente sem qualquer companhia em suas lutas polí­ticas e em suas práticas e experiências religiosas.9 Ele obtinha po­der e certeza de perdão quando orava sozinho.10 De fato, ele tinha que se manter em comunhão com Deus pelo cultivo de uma vida devocional intensamente real e pessoal calcada na oração em particu­lar.11

0 livro de Daniel dá-nos a impressão de que o que realmen­te importava na vida religiosa dos exilados naquele tempo era a disciplina de vida moral e devocional em relação à lei de Deus. Es­te exilado descobriu que ao se voltar para a lei de Deus, estudá-la, meditar nela por si mesmo ou em comunhão com o pequeno gru­po, ao devotar a sua vida à observância da mesma, passava a entrar num novo e intenso relacionamento pessoal e real com o Deus que criara a lei também para este fim. Voltar-se, então, para a lei duran­te o exílio era um sinal de retorno pessoal ao Deus que tão severa­mente os julgara como nação.

Mas isso requeria disciplina. A prática religiosa de Daniel ga­nha estabilidade e poder a partir tão somente de práticas de devo­ção. Ao aderir escrupulosamente à lei este ato transforma-se num meio de alcançar bênçãos.

No decorrer do livro, Daniel aparece executando vários e di­ferentes papéis. Toma-se inesquecível pelos sonhos e visões apoca-7 1 Sm 23:16.8 2:17ss.9 5 :13ss.; 6:10ss.

10 9:20ss.; 10:10ss., 18.11 6:10ss.

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lípticas do futuro que incendiaram a imaginação e guiaram os pen­samentos de gerações de devotos estudantes da Bíblia. A sabedo­ria e o tato com que lida pastoral e diplomaticamente com as si­tuações que passam a ocorrer no panorama da corte do seu tempo, forçam-nos a colocá-lo juntamente com José, como um dos maio­res sábios da História. Ele é notável como um modelo vivo de piedade, tendo um comportamento louvável e sendo um leal obser­vador da tradição. Aparece, porém, nos quatro primeiros capítu­los como o líder de um grupo significativo de homens que, com simples, quietos e determinados atos de protesto e de não-coope- ração, fizeram com que a fé e a tradição de pelo menos uma par­te da nação fossem guardadas de forma distinta e vigorosa por uma geração ou mais. De fato, o livro de Daniel nos mostra que, neste particular, ele exerceu um importante papel ao manter viva a verda­deira fé num tempo de grande provação.

Embora fossem em número de quatro os que mantiveram tal padrão, eles estavam obviamente sob a liderança de um deles, que era bem mais proeminente, e portanto também um pouco so­litário. Daniel projetou-se e foi de grande influência simplesmen­te porque antes de tomar uma decisão esperava tão somente em Deus, e recusava-se a fazer o que outros, na mesma posição que ele, acatavam mansamente. Não é este um desafio para nós hoje? Não é de nossa responsabilidade modificar o ambiente em que vivemos ao invés de sempre sermos nós os que mudamos com ele? Ao invés de termos a direção de nossas vidas ditada por pressões sociais, comunitárias e até eclesiásticas, não temos cada um de nós a responsabilidade séria e muito individual de escutarmos a voz de Deus, de planejarmos nossas coisas sem procurar saber co­mo é que os outros planejarão, e decidirmos sem estarmos sem­pre esperando para saber como os outros o farão? Foi isso que Abraão fez, e Moisés também. Foi o que Elias teve que fazer, so­zinho, embora houvesse sete mil outros que pensavam como ele.12 Esta foi a linha seguida por Josué, demonstrada aos seus ouvintes ao terminar o seu grande sermão: . . escolhei hoje a quem sir­vais. . . Eu e a minha casa serviremos ao SENHOR” .13

0 Antigo Testamento ainda hoje, através do apelo e do exem-

12 1 Rsl7:l; 19:10,18.13 Js 24:15.

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plo, conclama o indivíduo a permanecer firme onde outros estão cedendo, sendo levados pelas circunstâncias.14 O Novo Testamen­to aconselha-nos contra aquiescermos e nos conformarmos com este mundo15 tão seriamente quanto o Antigo nos adverte contra seguirmos a “multidão” para fazermos o mal.16 É importante nun­ca esquecermos que o próprio Jesus foi contra procedimentos e padrões então aceitos, e reuniu em seu redor outros para ficarem consigo em sua missão. O mesmo padrão foi seguido na vida de Daniel.

Sim e não!Daniel e seus companheiros agarraram avidamente os privi­

légios que lhes foram oferecidos na escola aberta por Nabucodo­nosor. O procedimento deles, como vemos no livro, era cooperar mas sem desviar-se da sua linha. Isto significava dizer sim! aos de­safios e convites da vida babilónica. Significava enfrentar, realisti­camente, a situação presente, e que necessitava de ação, de teste­munho e de amor por parte do povo de Deus. A visão deles era tão ampla que não fizeram qualquer objeção ao ganharem nomes babilónicos em lugar dos seus próprios nomes (v.7). Aceitaram prontamente altos encargos na administração imperial pagã.17 Da­niel, no auge do sucesso, pôde até aceitar de Nabucodonosor, sem protestos, uma oferta de incenso, o que poderia parecer um tanto suspeito, como uma adoração.18

Ainda que fizessem tais concessões, sempre tinham um espí­rito de imparcialidade que, a qualquer momento, a resposta não! podia ser dada, clara e abertamente, a qualquer custo.19 No seu in­terior eles se mantinham estranhos à vida e à cultura com que evi­denciavam estar inteiramente envolvidos. Nunca negaram a pro­funda convicção de que pertenciam de corpo e alma a outro rei­no. Além disso, eles cuidavam de nunca perder o contato com a

14 P.ex.: SI 1.15 Rm 12:216 Êx 23:217 1:19; 2:49.18 2:4619 3:18; 6:10.

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singular e poderosa Palavra de Deus que os alcançava quando se reuniam para ler, estudar as Escrituras e orar no sentido de que pu­dessem compartilhar da mesma visão e esperança que havia inspi­rado reis, profetas e sábios da sua nação. Eles disciplinavam de tal forma as suas vidas e mentes que, mesmo vivendo em meio a uma Babel de outras vozes, mantinham-se sempre abertos para ouvir o que a Palavra de Deus tinha para lhes dizer. O propósito que tinham ao participarem da escola de Nabucodonosor era certamente para assistir diante do rei (vs.5 e 19), mas estavam determinados a fazê- lo não como babilônios mas como dedicados israelitas. Portanto, mesmo se estabelecendo na vida da Babilônia, permaneciam sem­pre conscientes de que em todos os seus deveres e tentações, eles estavam sendo provados, não por Nabucodonosor, mas pelo Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó, a quem pertenciam e a quem de­viam servir e amar antes de tudo o mais. Permaneciam profunda­mente convictos de que o futuro deles como nação e, portanto, o futuro de outras nações, dependia de permanecerem separados, e da sua volta final para casa, atravessando os desertos em direção a Jerusalém, para retomar mais uma vez a sua própria vida nacio­nal.

Estavam, portanto, dispostos a servir a Babilônia, a edificar- lhe a sociedade e a traçar-lhe a história, mas nunca ao ponto de sacrificar a sua própria história nacional em prol daquela da Babi­lônia. Estavam dispostos a prestar homenagem a Nabucodonosor, mas nunca ao ponto de diminuir a dedicação que davam ao Deus de seus pais. Consideravam que não era impossível nem sequer difícil cooperar, mantendo as suas consciências fiéis em sua leal­dade à Palavra de Deus. Chegavam até mesmo a gostar da sua vi­da na Babilônia; mas sempre estavam dispostos a resistir quando os interesses da Babilônia entrassem em conflito com os interesses do reino de Deus; e eles podiam sempre dizer a palavra não! de modo bem claro e decisivo, mas com polidez.

O primeiro encontroOs primeiros capítulos do livro de Daniel contêm incidentes

memoráveis em que ouvimos nitidamente eles dizerem não! de modo dramático e público. Foi o que aconteceu com três deles quan-

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do foram ameaçados com a fornalha ardente caso não se curvassem diante da imagem de Nabucodonosor.20 Daniel disse não! mesmo sob a ameaça de ser jogado aos leões se continuasse a orar ao seu Deus.21 Mas toda esssa resistência começou muito antes, numa entrevista bem tranqüila e sem dramatizações que ocorreu dentro da intimidade do gabinete do chefe dos eunucos, cujo dever pare­ce ter sido muito semelhante ao do reitor ou diretor de uma fa­culdade moderna. Uma decisão foi tomada ali e, naquela hora, exigiu tanta coragem e colocou as suas vidas sob um risco tão gran­de quanto as suas façanhas posteriores mais dramáticas. Pode-se dizer que, se esta primeira decisão não tivesse sido tomada, mais tarde não teria havido resistência alguma à fornalha de fogo ou à ameaça de ser lançado na cova dos leões. Dentro do contexto da totalidade das Escrituras, a dedsão de Daniel no sentido de não comer as finas iguarias do rei deve ser comparada, em importân­cia, com a dedsão de Abraão quando ele optou por deixar a sua pátria em obediênda à palavra de Deus,22 ou com a decisão de Moisés na sarça ardente quando finalmente aceitou a responsa­bilidade de levar o seu povo para fora do cativeiro.23 Todas es­tas três grandes decisões surgiram de idêntica e profunda convic­ção interior e, em todos estes casos, foram dedsões de que o pró­prio destino dependia.

Naquela calma entrevista com Aspenaz, Daniel estava tão poderosamente sob a inspiração e orientação divina como qual­quer um dos que aparentemente tinham sido de maior destaque do que ele em outros pontos cruciais da história de Israel; e esta inspiração continuou com ele ao dedicar a totalidade da sua men­te e da sua vida à tranqüila e constante carreira de fidelidade e de perseverança que, segundo parecia, se desdobrava diante dele. Por ter sido basicamente um homem de estatura e talhe comum, cujo segredo era simplesmente a obediência e a lealdade, Daniel é retratado aqui como um modelo e uma fonte de inspiração para as gerações futuras.

20 3:16-18.21 6 :10.22 Gn 12:lss.23 Êx 3:lss.

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A questão em pauta, e traçando os limitesNos tempos de Daniel, o perigo que a sua própria nação

corria e que devia ser enfrentado pelos seus líderes era ir descam­bando aos poucos, em seus costumes e tradições, conformando-se com o mundo ao seu redor, alterando, assim, inteiramente o seu rumo e a sua direção na História, e perdendo de vista os propósi­tos para os quais Deus a trouxera à existência. Pois os homens que estavam colocados numa posição como a de Daniel, e que pensa­vam como Daniel, sentiam que não poderiam servir a Deus com uma consciência pura a não ser que algum limite fosse estabeleci­do, e que uma posição firme fosse adotada em certos aspectos. Deveriam ser definidos e estabelecidos para aquele dia princípios constantes de conduta e de crença e, como já vimos, a adesão a es­tes princípios teria que ser uma questão de consciência para ca­da um. Daniel nem fazia idéia de que era o guardião das tradi­ções e do destino da sua nação!

A questão era: em que ponto estabelecer um limite? On­de seria possível o meio-termo, e onde não? Daniel estava convic­to de que, nas circunstâncias do exílio, não se poderia transigir com as leis dietéticas tradicionais. Talvez pressentisse que a abo­lição das leis dietéticas abriria a porta para os casamentos mistos e para a transigência em questões religiosas e financeiras. De qual­quer maneira, a esta altura, ele sentia que até a existência da sua nação como tal dependia deste sinal visível de diferenciação e de separação. Desta maneira, fez dele uma questão de consciência e de confissão. Acreditou que a fidelidade até mesmo na obser­vância dos regulamentos quanto a aspectos visíveis era importan­te, pois os verdadeiros e superiores aspectos invisíveis internos te­riam uma sutil dependência dos aspectos visíveis externos.

Resolveu Daniel firmemente não contaminar-se com as finas iguarias do rei, nem com o vinho que ele bebia; então pediu ao chefe dos eunucos que lhe permitisse não contaminar-se (v.8). Certamente isto parece ser um tanto supersticioso. Que contami­nação real poderia advir só por comer e beber? Não seria isto ain­da legalista demais? Jesus não condenou esta atitude quando disse: “Nada há fora do homem que, entrando nele, o possa contaminar; mas, o que sai do homem é o que o contamina”?24

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Em certas circunstâncias, porém, questões que normalmente poderiam ser consideradas triviais podem adquirir grande impor­tância. O uso de um pequeno emblema, a prestação de uma con­tinência, cantar uma breve cançSo de libertação, por mais inferio­res que sejam a música e a letra, podem inspirar resistência herói­ca ou incitar oposição demoníaca. Acabamos de passar por um pe­ríodo da história da cultura ocidental em que o comprimento dos cabelos de um rapaz podia assumir tanta importância simbólica que às vezes se tornava uma questão quase de vida ou de morte num lar. E, sob a providência e bênçãos de Deus, atos triviais tais como a distribuição do pão e do vinho numa congregação cristã ou o uso de um pouco de água num ato de batismo podem tomar- se atos de relevância e de poder insuperáveis. Nas circunstâncias do exílio, Daniel sentia que qualquer tendência potencialmente desastrosa somente poderia ser contida tomando-se uma posição firme na lei, até mesmo em questões que em outras ocasiões talvez parecessem estranhas e sem conseqüência.

A preocupação de Daniel era não contaminar-se. Isso não significa que ele acreditasse que literalmente alguma contamina­ção física pudesse advir-lhe por ingerir alimento proibido, e que disso resultasse, também, alguma mácula moral em sua alma. 0 seu pensamento seguia uma linha bem diferente. Simplesmente ele acreditava que a fé em Deus e o perdão de Deus já o tinham tornado limpo. Esta era uma purificação da idolatria existente no mundo em derredor, e da contaminação moral que a acompanha­va. Significava uma chamada para uma vida nova e diferente. Es­tas leis dietéticas e outros costumes que o diferenciavam eram para ele o sinal e o símbolo desta purificação interior. Mas se ele transigisse no caso destas leis, e permitisse que estes marcos de diferenciação, que preservavam a sua atitude interior distin­tiva, fossem removidos, aí então inevitavelmente ele se deixaria levar pela enxurrada de costumes dos quais ele tinha sido purifi­cado, e já não seria plenamente útil como um instrumento ade­quado nas mãos de Deus.

Um modelo para hoje?É significativo que Daniel, por sua atitude quanto a esta

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questão, tomou-se o modelo de comportamento para muitos ju­deus fiéis no tempo em que estavam sendo perseguidos sob o rei­nado de Antíoco Epifânio no século II a.C. O próprio Antíoco reconheceu que, para ter sucesso em destruir o testemunho distin­tivo da comunidade judaica e absorvê-la na sua cultura helenísti- ca, teria que levá-la a abrir mão, dentre outras coisas, dos costu­mes distintivos referentes à alimentação que tanto a caracteriza­vam. Na tentativa de quebrar a resistência judaica nesse ponto, decretou leis que condenavam os regulamentos cerimoniais judai­cos em questões de alimentação, exigindo conformidade às prá­ticas seculares a respeito. O assunto tornou-se uma questão con­fessional, um teste que determinava se a pessoa era leal à totalidade da tradição judaica, e disposta a lutar e morrer por ela. Os escritos daquela época nos dizem que muitos judeus recusaram-se a conta­minar-se, e preferiram morrer ao invés de ceder nesta questão. Mui­tos estudiosos acreditam que o livro de Daniel foi recomposto e no­vamente lançado ao público então, por alguém pertencente ao círcu­lo dos fiés, para ajudar na inspiração e na sustentação do movimento de resistência a Antíoco.

Hoje em dia está surgindo em muitas partes do mundo oci­dental uma situação semelhante àquela que então era confrontada por Daniel. Como cristãos, somos forçados a sentir freqüentemen­te a mesma tensão que ele sentia ao enfrentarmos, ao nosso redor, um mundo que se transforma rapidamente quanto ao ponto de vista ético e religioso, e quanto aos costumes aceitos. A corrente­za é tão poderosa que tende a levar consigo qualquer coisa, a menos, que esteja fortemente ligada a um outro ponto de vista. Sem dúvi­da, devemos fazer algumas concessões à mudança. Não podemos permanecer exatamente onde estávamos há uma geração atrás. No entanto, muitas das mudanças com freqüência são tão radicalmen­te estranhas ao nosso enfoque cristão que não podemos, de modo algum, segui-las na íntegra sem perdermos o nosso poder para tes­temunharmos com clareza o que, cremos, é a natureza de Deus e do evangelho, e o significado da vida na terra.

Assim, numa situação em que alguma mudança é inevitável, devemos perguntar até que ponto podemos ir, quando vamos di­zer não! tomando uma posição firme. Ainda que as questões do comer e do beber não sejam agora, em nossa tradição cristã, ques­tões básicas de nossa fé e prática como eram para Daniel, há, mes-

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mo assim, certas coisas que também nos contaminam, da mesma forma como aquelas coisas nos dias do exílio. O propósito da vida, da morte e do ensino de Cristo foi purificar a raça humana e liber­tá-la dos costumes e dos caminhos que corrompem os homens e as mulheres moral e espiritualmente, e que contaminam a vida co­munitária. Ele mesmo pleiteou com os seus seguidores no sentido de tirarem de suas vidas as atitudes e os hábitos que contaminam o coração e a mente:

“Se o teu olho direito te faz tropeçar, arranca-o e lan­ça-o de ti; pois te convém que se perca um dos teus membros, e não seja todo o teu corpo lançado no in­ferno. E se a tua mão direita te faz tropeçar, corta-a e lança-a de ti; pois te convém que se perca um dos teus membros e não vá todo o teu corpo para o inferno” .25O Novo Testamento, vez após outra, nos leva de volta à ques­

tão levantada por Jesus com estas palavras, advertindo-nos a não nos esquecermos da nossa purificação,26 e de “odiarmos o mal” .27 Para encorajar-nos e para advertir-nos, a cruz é demonstrada como sendo o preço que ele pagou a fim de que ficássemos limpos e ín­tegros, e assim permànecêssemos.

A obra de Jesus, porém, é negada e seus rogos desatendidos se nos conformarmos descuidadosamente com qualquer coisa do tipo “todo o mundo faz” dentro da permissividade que arrasta a nossa sociedade em direção a mudanças morais e espirituais. O novo espírito dos tempos nem sempre é o de Cristo. Forçosamen­te chegaremos à conclusão de que Cristo morreu para nos purifi­car deste modo de vida que nos apresentam e que, portanto, não poderemos avançar mais nesta direção e ainda sermos fiéis ao nos­so Deus. Não há dúvida de que, entendendo as coisas desta manei­ra, há “sujeira” em certas formas de atividade política, em certos aspectos do mundo das diversões e das publicações, em certos meios de propaganda, que não devemos tocar, a fim de não nos contaminarmos. Além disso, muitas coisas na vida têm sido está-

25 Mt 5:29,30.26 P.ex.: 1 Co 6:6:9-11; 2 Pe 1:5-927 Rm 12:9.

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veis e sadias tanto para nós mesmo quanto para as gerações antes de nós - no casamento e na vida do lar, por exemplo — as quais somente podem ser conservadas se traçarmos os limites em algum ponto e soubermos dizer, quando necessário, aquele não! Não devemos subestimar a importância desta tomada de posição que talvez estejamos sendo conclamados a adotar. Quando Daniel tran­qüilamente tomou a decisão de dizer não!, ele não sabia que esta­va desempenhando um papel de tão grande relevância na reorien- tação da vida da sua nação no sentido de ela descobrir de novo o seu verdadeiro lugar no serviço de Deus.

0 voto e o apeloÉ importante notar que a questão foi resolvida, tendo sido

argumentada de modo convincente, e o protesto teve seu pleno efeito, simplesmente porque Daniel, mediante um voto prévio, resolvera fazer dela uma questão de princípio inabalável. A ERC reflete o hebraico mais literalmente quando registra que Daniel assentou no seu coração (v.8) que não transigiria nesta questão. Destarte, Daniel nada deixou em aberto para uma decisão momen­tânea feita num impulso repentino.

Devemos, portanto, entender que o curso da sua ação tinha sido cuidadosamente analisado e determinado de antemão confor­me a iluminação e a sabedoria que o Espírito de Deus lhe dera. Podemos acreditar que pela oração, com a sua mente e o seu cora­ção, Daniel procurou a orientação de Deus sobre como a vida de fé deveria ser vivida nos seus dias e na sua geração. Ele chegou a certas conclusões, acreditando que as suas orações foram respondidas, e obrigou-se mediante um voto solene ser fiel às suas decisões. Po­demos até mesmo imaginar que passou por uma intensa experiên­cia religiosa ao fazer este voto. De qualquer maneira, fez do seu comportamento nestes pontos uma questão de princípio. Tais de­cisões eram demasiadamente importantes para serem deixadas à inspiração no momento em que o assunto viesse à tona. Assim, ele resolveu levantar a questão no seu próprio tempo e lugar, declarar no que ele cria, e indicar o que haveria de fazer. Exigiu uma imen­sa coragem por parte dele. Não teria conseguido ter tanta cora­gem se não estivesse obrigado pelo voto.

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O seu exemplo nos desafia a pensar novamente no valor de nos dedicarmos a Deus com um voto e até mesmo agirmos às vezes com base em princípios estabelecidos. Tendemos a censu­rar tal comportamento, e ressaltamos o fato de que na complexi­dade e na realidade da nossa situação ética, às vezes a ação por princípio torna-se inadequada. É verdade que os princípios éti­cos que vieram a nós de gerações passadas sempre precisam ser reexaminados e às vezes descartados. A natureza de cada situa­ção concreta, conforme ocorre em nossa jornada pela vida, deve ser levada em conta em nossas decisões quanto às nossas reações e ao que fazer. Mas, em tudo isto, também importam as regras e os princípios que fomos levados a adotar. Importa também o pensamento racional que previamente desenvolvemos acerca de tais princípios e regras. Se formos sérios em nossa vivência, tere­mos, também, momentos para fazermos nossos votos.

Devemos notar o modo meigo e cortês, e, portanto, tão atraente, com que Daniel levantou as questões com Aspenaz, esco­lhendo o lugar e o momento, procurando convencê-lo pela sabe­doria e pelo tato (vs. 8ss.). Não levantou suspeita alguma de que estava esperando da parte do seu supervisor a adoção de algum conceito novo ou extremado. Tudo quanto pediu da parte do seu ouvinte era que este entendesse a força da tradição e da convic­ção com que apelava. E agiu com deferência. É subentendido no texto que até mesmo pediu misericórdia (v. 9). Rogou que lhe fosse concedido o benefício de um teste pelos resultados. Agiu com calma e com humildade, e Deus complementou com o que foi necessário.

Suas opções, naturalmente, eram poucas. Naquele tempo os que queriam protestar não carregavam cartazes pelas ruas, nem organizavam marchas, nem se deitavam em lugares inconvenientes. Ninguém pensaria em chamar de “gorila” uma pessoa revestida de autoridade. Mesmo assim, a história parece subentender que, quan­do as pessoas têm a razão do seu lado, esforçam-se por tomar cla­ro o seu testemunho, e apresentam o seu argumento de modo tão racional, lógico e cortês quanto possíveis; então seguem o cami­nho da verdadeira sabedoria, deixando espaço para que Deus entre na situação e trabalhe segundo a sua divina vontade.

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Deus assume o comandoO livro de Daniel não diz respeito apenas ao testemunho e

à resistência de um pequeno grupo corajoso dentro de uma civili­zação estrangeira e em tempos maus. Diz respeito a como o pró­prio Deus opera em tais circunstâncias. Foi escrito principalmen­te para mostrar-nos como ele entra nas vidas e nas circunstâncias das pessoas, sejam elas crentes, ou não; como, quando parece que os eventos estão indo contra os propósitos de Deus, ele intervém e altera as coisas para fazê-las funcionar do seu modo; como leva à destruição e à morte qualquer objeto ou pessoa, conforme a sua vontade; e como levanta da destruição e da morte o objeto ou a pessoa que ele quer.28

O autor do livro está especialmente interessado na maneira com que Deus opera de modo milagroso e meticuloso nos pensa­mentos e nos sentimentos das pessoas, alterando-lhes as intenções, os corações e os planos e, desta forma, alterando a História. Es­tejam elas despertadas ou adormecidas, não importa. Deus opera na esfera subconsciente da mente tão poderosamente quanto na mente consciente e, em última análise, faz surgir sonhos ou visões de profunda relevância para as decisões e o destino delas.29

No entanto, Deus opera principalmente enquanto as pessoas estão despertas e alertas, colocando nelas novos pensamentos, e dirigindo sutilmente as preferências delas de uma maneira ou de outra. Às vezes quando estão pensando sozinhas, calmamente, acerca da vida e da História, outras vezes enquanto estão orando, e ainda quando estão dando entrevistas ou deliberando em concí­lios, ou tratando de outros tipos de negócios. O Senhor reina, go­vernando a História, controlando os pensamentos e os apetites dos leões e dos homens!30

Destarte, os negócios de estado da Babilônia são levados a desenvolver-se em favor do povo de Deus e do cumprimento dos propósitos de Deus, e não por meio de uma única intervenção es­petacular de Deus na História mas, sim, por meio de uma série de decisões tomadas sem estardalhaço dentro dos negócios rotineiros

28 Cf. 2:20-22; 3:28; 6:26,27.29 C f.2:2; 4:5.30 1:19; 2:25ss., 46; 3:24; 6:22.

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da administração do serviço público da Babilônia. Ora, Deus conce­deu a Daniel misericórdia e compreensão da parte do chefe dos eu­nucos. . . e ele atendeu (vs. 9,14).

É lógico que o Deus que o livro de Daniel testemunha tam­bém pode operar milagres espetaculares do reino físico. O fogo não chamusca os três jovens mártires,31 e aqui neste capítulo te­mos um milagre não menos maravilhoso: No fim dos dez dias, as suas aparências eram melhores; estavam eles mais robustos do que todos os jovens que comiam das finas iguarias do rei (v. 15).

Tais milagres físicos notáveis, no entanto, são para serem en­tendidos como sinal de que milagres muito mais notáveis estão sen­do operados por baixo da superfície dos negócios humanos, enquan­to os burocratas babilônios tomam o café da manhã e fazem suas reuniões de trabalho, e enquanto os jovens estudantes cujo futuro está em jogo tomam decisões acerca da política e da ética. A re­solução que Daniel adotou no seu coração quanto a dizer não! foi uma obra de Deus não menos milagrosa do que a sua sobrevi­vência na cova dos leões. Disse Jesus: “A vida do Reino de Deus nao e coisa que se possa ver.

O capítulo termina com uma observação acerca da capacida­de de perseverança deste homem Daniel: Daniel continuou até ao primeiro ano do rei Gro (v.21). Representa o que sobrou do povo de Deus depois do colapso do templo e do eclipse da linhagem real de Davi. Embora estas coisas tenham desmoronado, nada foi capaz de destruir esse indivíduo que confia nas promessas de Deus e que obedece à lei de Deus. E é esse homem que permanece por mais tempo do que os impérios babilónico e medo, e sobrevive a duas ou três dinastias reais.

31 Cf. 3:24ss.32 Lc 17:20 (BLH).

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Daniel 2

A PEDRA E OS REINOS DESTRUÍDOS

A crise no palácio e na cidade

No segundo ano do reinado de Nabucodonosor teve este so­nho; o seu espírito se perturbou, e passou-se-lhe o sono (v. 1).

Por que Nabucodonosor teve tais sonhos? Nada no mundo poderia apresentar qualquer ameaça real à sua segurança. Detinha poderes e riquezas enormes. Popular, respeitado e temido, sua pa­lavra nunca era questionada nem sua vontade disputada. Seus exér­citos no campo de batalha acabavam de conquistar alguns de seus maiores sucessos. Mesmo assim, noite após noite ele tinha este so­nho! Dias após dia despertava obcecado por uma suspeita um tan­to vaga, porém sempre crescente, de que o seu bem-estar pessoal e a segurança do seu reino estariam sendo ameaçados por alguma coisa fora de seu controle, alguma coisa fora da esfera visível deste mundo. Sentia-se cada vez mais inseguro. À medida em que a au­mentava a sua inquietude, o seu senso de frustração e a sua ira tam­bém cresciam.

Ficou enfurecido ao descobrir que nenhum dos sábios, cujos serviços pagava regiamente, podia explicar a causa real do seu esgo­tamento e desequilíbrio mental e emocional, e trazer a lume o que estava à espreita no seu subconsciente. Ostentou dinheiro diante dos olhos dos seus mágicos, astrólogos e filósofos. “Se me decla­rardes o sonho e a sua interpretação, ” exclamou, “recebereis de

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mim dádivas, prêmios e grande honras” (v. 6). E, caso seu subomo não funcionasse, pronunciou a ameaça final: “Se não me fizerdes saber o sonho e a sua interpretação, sereis despedaçados, e as vos­sas casas serão feitas monturo ” (v. 5).

Tudo em vão! Aqui havia algo que, apesar de todo o seu poder e a sua influência nas artes da Babilônia, Nabucodonosor não conseguia dominar; algo que pertencia a um âmbito no qual suas ordens não recebiam a mínima prioridade. E isso aumentou a sua frustração e ira para um nível ainda mais sério.

Suas experiências começaram a alterá-lo. Abandonava-se ago­ra muito mais a crises sombrias de ira e depressão, e suspeitava de todos. Acusou a seus conselheiros de conspirarem para enganá-lo e atormentá-lo (v.8). O ambiente na sua corte mudou também. Seus antigos amigos começaram a andar aterrorizados. Podemos imaginar que a sua própria família tenha ficado cheia de aflição, perguntando que sonhos seriam estes que estavam tomando em monstro aquele que tinha tido um coração tão caloroso e humani­tário. As coisas precipitaram-se quando deu ordens a Arioque no sentido de envolver todos os sábios num banho de sangue (vs. 12ss.).

Talvez possamos reconhecer em Nabucodonosor um pro­tótipo de muitos outros que têm se envolvido em política. Reinhold Niebuhr tem razão de achar este sentimento de insegurança, este complexo de ansiedade na raiz de boa parte da nossa tirania polí­tica moderna. A concupiscência pelo poder no homem, ele con­clui, é induzida por um “reconhecimento obscuramente consci­ente” da insegurança de sua existência. “O homem é tentado pe­la insegurança básica da existência humana a tornar-se duplamente seguro,” 1 e assim procura agarrar-se à posição, à fama, às riquezas e ao poder. Mas quanto mais consegue galgar, e quanto mais alto sobe, mais sente que a sua posição é basicamente insegura, pois a sua queda pode ser muito mais terrível. Logo, quanto mais alcan­ça, mais desesperada e ansiosamente é impulsionado a lutar para alcançar mais! E assim temos o círculo vicioso que produz o dita­dor moderno, e que força o ditador, no seu governo, a tornar-se cada vez mais severo, brutal, irado e desconfiado. E temos mino­rias raciais e sociais que são forçadas a tornar-se cada vez mais ir-

1 R. Niebuhr, The Nature and Destiny o f Man, I (Nisbet, 1944), págs 201-203.

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racionais e opressivas no exercício do poder enquanto este estiver em suas mios, por causa de uma consciência medrosa da sua total fraqueza diante do decurso inevitavelmente esmagador que os even­tos devem seguir em algum tempo do futuro.

Não precisamos, no entanto, confinar-nos a tiranos ou a gru­pos políticos quando procuramos exemplos modernos daquilo que a Bíblia tipifica para nós na pessoa de Nabucodonosor com seus sonhos inquietantes. Ele nos ajuda também a explicar algumas das nossas tragédias individuais e domésticas. Ele é um exemplo do sentimento de insegurança, profundamente oculto, que pode levar à bebida, à ganância nunca satisfeita, à busca desordenada do prazer, à ira irracional, a um estranho e sinistro comportamento para com amigos e familiares.

Questões básicasNaturalmente, em meio a todas as perguntas subconscien­

tes de Nabucodonosor quanto à estabilidade do seu império e das suas construções, defrontava-se ele também com as mesmas ques­tões básicas que são levantadas todos os dias por pessoas comuns em posições modestas desprovidas de riquezas e de poder, que às vezes ficam com uma profunda consciência da sua finitude trági­ca e passam por aquilo que um certo teólogo moderno chama de “o choque da possível não-existência” . Qual é o propósito da vi­da e da existência? Para onde vai, e onde terminará? Por que, também, nos melhores e mais sublimes momentos da vida, me vem o estranho e perturbador pensamento de que talvez até mesmo eles sejam a causa da tragédia? Por que tanta coisa que é boa e be­la é marcada de modo tão profundo e indelével com sinais claros de instabilidade e de fragilidade? Até mesmo Salomão, depois de prover o seu coração com alegrias e prazeres, com vinho e com sabedoria, depois de edificar grandes obras e de plantar jardins de prazer, depois de reunir e passar em revista os seus servos, as suas servas e o seu gado, depois de admirar os seus tesouros, com o acompanhamento de cantores e músicos, até mesmo ele contem­plou, das alturas da sua grandeza, todas as obras que suas mãos tinham feito, para apenas descobrir que “tudo era vaidade e correr

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atrás do vento, e nenhum proveito havia debaixo do sol”.2É significante que Nabucodonosor, nesta crise da sua vida,

clama não só para ser informado sobre a interpretação de um so­nho que, conforme ele mesmo sabe, vem dos recessos profundos do seu próprio subconsciente mas, sim, clama para ser informa­do quanto ao conteúdo do próprio sonho. Isto lembra-nos de que, quando chegarmos a ser confrontados com esse mesmo tipo de problemas básicos que tanto o preocupavam, nós também nada possuímos dentro do mundo do nosso próprio pensamento, cons­ciente ou subconsciente, seja um sonho, seja uma pergunta ou uma filosofia experimental de vida, que possa até mesmo nos levar em direção da luz da resposta final pela qual o nosso coração clama. Não sabemos formular as perguntas básicas para recebermos esta resposta final. Toda a luz e a sabedoria que buscamos deve vir de uma fonte bem diferente de nós mesmos, e precisamos ter ao nos­so redor não somente os que são peritos em responder questões humanas como também aqueles que podem colocar-nos em conta­to com a Sabedoria e Palavra que vem inteiramente do além.

Daniel, o mediador

É interessante comparar a reação de Daniel ao saber agora do problema e das ameaças de Nabucodonosor, com aquela que ele teve ao confrontar-se com a situação do capítulo um (vs.14-16). Lá ele disse não! de modo claro e irrevogável: não se conformaria nem participaria. Aqui, porém, ele diz sim! de modo igualmente claro e irrevogável. Aceita envolver-se nesta situação humana agu­da e trágica, e do modo mais prático dedica-se a corresponder a este clamor de coração desesperado, e achar uma resposta, procu­rando fazer algo de positivo em prol daqueles que estão ao seu re­dor.

Se assim ocorreu com Daniel no seu mundo, isso não pode acontecer também conosco em nosso mundo? Às vezes nós assu­mimos com muita facilidade e eficiência a tarefa de preceituar o

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tipo de comportamento que esperamos que os outros, e nós tam­bém, devamos ter ao servir a Cristo. Às vezes até mesmo tende­mos a fazer com que palavras tais como “envolvimento” e “sepa­ração” fiquem sendo simples e exclusivos princípios centrais de conduta. Certamente, conforme já vimos,3 princípios e regras bem definidos podem nos ajudar em certas ocasiões a seguir cer­to curso com força e com firmeza. Além disso, regras são tão necessárias para a nossa orientação que Deus nos deu um código inesquecível e simples de mandamentos claros e marcantes que devemos sempre escutar com temor e tremos. Mas Aquele cuja voz procuramos escutar em nossas decisões éticas, e cujo exem­plo sempre devemos seguir, foi infinitamente separado dos peca­dores,4 mas, ao mesmo tempo, foi profunda e apaixonadamen­te envolvido com a vida e com os pecadores também. Para nós, em circunstâncias diferentes, há horas em que sabemos que so­mos chamados a expresssar-lhe o nosso testemunho de várias ma­neiras.

A lição principal na história é que Daniel, neste momento, se toma um homem-chave. Somente ele consegue agir com deci­são e com sagacidade enquanto os outros se acham desesperada­mente incapazes e ficam paralizados. Por um ato de liderança so­litária ele consegue evitar a desgraça que ameaça Nabucodonosor e seus conselheiros. Aproveita esta oportunidade, e descobre que Deus lhe dá a sabedoria e o poder para controlar a situação. Tudo isso pode ser entendido como sendo o cumprimento da promessa de Deus de que, através dos descendentes de Abraão, até mesmo os pagãos serão abençoados.5 Daniel certamente tem vários moti­vos. A ameaça pessoal à sua própria segurança compele-o a agir para salvar a sua própria vida e as dos seus amigos. Mas não está agindo simplesmente por si só mas, sim, pela fé em Deus que ele sabe estar operando nesta situação, e embora ele tenha tido apenas uma vaga consciência da importância do que estava acontecendo, deve ter se sentido agora tão certo da sua vocação divina para dar testemunho do poder de Deus como se sentira certo da sua voca­ção para protestar contra o alimento imundo.

3 Ver supra, págs. 36-38.4 Hb 7:26.5 Cf. Gn 12:1, 2 etc.

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Sem dúvida Daniel reage nessa situação de modo diferente de todos os demais homens religiosos da Babilônia porque somen­te ele está em contato com um Deus que se importa e que ope­ra de modo prático e maravilhoso. É por causa disso que, neste momento, ele deve se envolver, ao invés de permanecer à parte. Realmente, é porque está em contato com o Deus de Israel que se sente constrangido a servir não somente o povo de Israel, como também o império pagão da Babilônia. O Deus de Israel, pois, interessa-se por este imperador pagão e por sua paz de espírito, e até mesmo se interessa pelo destino daquele pequeno grupo dos assim-chamados “sábios” , mas que eram pobres e perdidos, um pouco mais do que um bando de magos iludidos. A luz que Deus tinha derramado sobre Israel durante os últimos séculos agora co­meça a incidir em pessoas tais como Nabucodonosor e seus má­gicos.

A atitude de Daniel, enquanto enfrenta a crise política na Babilônia e cumpre a sua tarefa de mediador, apresenta dois ou­tros aspectos altamente contrastantes. Ele age com extrema cir­cunspecção e prudência. É cauteloso. Não há indicação alguma de que tenha tido uma confiança superficial. Ele toma o cuidado de não ofender. Não há nenhuma tentativa impetuosa de evange­lizar. Durante o tempo todo está em temor e tremor e, até o mo­mento em que começa a ter a revelação do mistério, a sua agonia vai aumentando. Daniel suplica veementemente a seus três compa­nheiros para não o desapontarem, nem desapontarem a causa de Deus deixando de orar, enquanto ele mesmo busca a misericórdia ao Deus do céu, sobre este mistério (vs. 17, 18). Quando vem a resposta a esta oração Daniel, maravilhado e humilde, irrompe es­pontaneamente em ações de graças (v. 20). A resposta somente chega quase quando não há mais tempo. A tensão é mantida até o último momento possível e Arioque tem de correr depressa ao rei mentalmente perturbado para contar-lhe que agora tudo está bem.

Em todo o tempo, embora ele mesmo não tivesse visto ne­nhuma saída possível, Daniel agiu com total confiança de que Deus lhe daria, no momento da necessidade, sabedoria para solu­cionar qualquer problema, e forças para enfrentar qualquer amea­ça. Acreditava que, embora ele mesmo no começo não enxergas­se algum possível caminho através dos dilemas e complexidades

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da situação, Deus tinha um caminho e uma solução para tudo, o tempo todo; e seguramente Deus tomaria claro esse caminho mesmo no momento da mais terrível perplexidade. Daniel teve a certeza de que, na crise, ele e seus amigos poderiam orar como nenhuma das outras pessoas envolvidas sabia fazer, e orar a um Deus que nunca falharia. Daniel dedicou-se a isso, confiante de que haveria de ser o agente de um verdadeiro milagre. Apesar de ser fraco e nada saber, mesmo assim este homem era forte e sabia tudo porque estava confiando no Deus vivo.

O mistério do sonho do reiNuma visão de noite (v.19) o mistério ou segredo do sonho

do rei foi revelado a Daniel. Isto quer dizer que, de um modo ou de outro, Daniel começou a receber um novo entendimento dos planos, dos propósitos e dos assuntos de Deus na terra que estão profundamente ocultos à sabedoria humana. Significa, também, que ele começou a receber algum indício de como ele mesmo e Nabucodonosor, com o sonho dele, estavam envolvidos no desen­volvimento e no cumprimento deste propósito. Não pode haver dúvida, lendo o capítulo todo desde o início, de que o mistério dizia respeito a como Deus muda o tempo e as estações, remove reis e estabelece reis (v.21) e assim faz com que a História sirva à sua vontade, à sua glória e ao seu amor.

Mais tarde Daniel, freqüentemente sozinho e muitas vezes em oração,6 recebe muitas outras revelações do curso que os acon­tecimentos tomarão à medida em que a História avance para o fim. Às vezes, números específicos de anos são citados para definir a duração de intervalos de tempo, mas estes números são usados de modo tão ambíguo e misterioso que se as coisas forem postas na sua exata seqüência, chega-se a uma impossibilidade desespera- dora. Outras vezes a revelação é dada mediante o emprego de for­mas sobrenaturais e símbolos estranhos. O sonho de Nabucodono­sor é a primeira dessas visões simbólicas acerca deste mistério, e nos ajuda a entender todas as demais. Oferece-nos simplesmente um esboço preliminar de um aspecto do curso total da História

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que culmina no reino de Deus. Este sonho concretiza a primeira revelação a Daniel, vaga, porém emocionante e satisfatória, acerca da maneira pela qual Deus ainda vai cumprir a promessa dada a Abraão7 desde o início.

Ao buscar em Deus a compreensão do mistério, Daniel esta­va meramente seguindo muitos dos seus antecessores, os profetas. Eles mesmos8 sabiam que, à medida que a História fosse revelan­do a promessa, Deus procuraria cumprir fielmente a sua parte da aliança que fora dada tão espontaneamente a Abraão9 e renovada no Sinai,10 e eles firmavam a sua crença nas promessas do estabe­lecimento do trono de Davi para sempre.11 A chamada deles para o ministério envolvia a tarefa de manter as promessas diante do po­vo, lembrando-os do seu papel no cumprimento delas, e procuran­do explicar como Deus iria operar no meio deles para fazer a sua parte, e também de como a maravilha da obra de Deus seria gloriosa­mente revelada nos últimos dias. Estes mesmos profetas, como Daniel neste capítulo, tiveram percepções parciais deste mistério, e os vestiram em forma de oráculos inesquecíveis.12

Daniel, porém, a esta altura, estava em condições de desco­brir, com uma clareza até então desconhecida em Israel, exatamen­te como Deus estava operando com este propósito. Não somente operava nos próprios pensamentos e na vida de Israel, como também aqui e ali no mundo pagão em derredor, e até mesmo na Babilô­nia, especialmente nos sonhos do seu imperador. Havia indícios anteriores de que Deus tinha a intenção de revelar o mistério dos seus propósitos para aqueles que não faziam parte do povo da ali­ança,13 mas de modo geral os grandes profetas tinham sentido que, quando Deus tinha coisas importantes para fazer e dizer, ele as re­velaria aos profetas de Israel.14 Daniel, portanto, de modo notá­vel, desenvolve um pensamento surpreendentemente ousado. Iden­tificou o mistério (v. 18) com o conteúdo oculto do sonho do rei,

7 Gn 12:lss.8 Ver supra, pág. 13.9 Gn 15,17.10 Êx 19ss.11 2 Sm 7:16.12 Jr 31:1 ss.; Is 9:1 ss.; Am 9:11 ss.; Mq 4:11 ss.; J12:28ss.13 P.ex.: Gnl2:17ss.; Nm 22ss.14 Am 3:7; mas cf. Is45:lss.

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ou este caso do rei (v. 23). Assim, ele abordou todo esse problema com a crença firme de que este perturbado gentio estava recebendo da parte do Deus de Israel alguma compreensão profunda do futu­ro final da raça humana e que, tanto em sonhos como quando acor­dado, estava fazendo uma tentativa genuína, à sua própria maneira, de resolver o mesmo problema que, durante séculos, tinha sido a preocupação dos profetas e dos grandes homens de Israel. Ao ro­gar aos seus companheiros que o ajudassem a entender o que estava se passando na mente de Nabucodonosor, Daniel esperava desco­brir algo vital e novo que enriqueceria as tradiçSes da sua própria nação já que ela, também, encarava o seu futuro.

Para conhecer e entender a revelação deste mistério, Daniel insistia que dependia inteiramente da inspiração divina. Roga aos seus companheiros que orem pedindo a ajuda divina enquanto a sua mente procura sondar o mistério (v. 18). Mais tarde, quando se dispSe a falar e explicar esse mistério ao rei (vs. 27ss.), reco­nhece que é somente o próprio Deus que dá sabedoria aos sábios e entendimento aos entendidos. Ele revela o profundo e o escondi­do; conhece o que está em trevas, e com ele mora a luz (vs. 21,22).

Nem encantadores, nem magos nem astrólogos podem ofe­recer a menor ajuda (v. 27) na obtenção do entendimento que Da­niel está procurando. Inúteis também seriam quaisquer pesquisas humanas, consultas em grupos, ou o uso de toda a perspicácia pa­ra entender as forças normais que produzem mudança dentro da sociedade secular. Daniel está plenamente consciente de que, ao procurar este “entendimento” , o que deseja é a pura luz divina, uma visão e compreensão que é puro milagre e que surge median­te a comunhão com o próprio Deus que vê as coisas do alto. Sua única esperança de obter esse entendimento depende de admitir que chegou ao fim de todos os seus próprios recursos mentais e fazer a oração de um cego que pede o milagre da visão.

A proclamação tlo reino de DeusAssim que o mistério lhe foi revelado, Daniel se sentiu con­

fiante de que era isso que Nabucodonosor tinha visto, de alguma forma, no seu sonho. Ao explicá-lo ao rei, procurou interpretar a questão com palavras que Nabucodonosor entenderia. Daniel

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descreve uma estátua de dimensões enormes (vs. 31 ss.), sendo que a cabeça era de fino ouro, o peito e os braços de prata, o ventre e os quadris de bronze. Ela impressiona com a sua força e firmeza, com a sua aparência terrível, até o ponto de se ver que os seus pés são feitos de uma mistura fraca e totalmente sem valor de ferro e de barro. A estátua é instável. Não pode mover-se um só centí­metro. Mas não foi a fraqueza das pernas e dos pés a causa princi­pal e derradeira que provocou a queda deste grande símbolo da realização humana na História: Quando estavas olhando, umapedra fo i cortada sem auxilio de mãos, feriu a estátua nos pés de ferro e de barro, e os esmiuçou. Então fo i juntamente esmiuçado o ferro, o barro, o bronze, a prata e o ouro, os quais se fizeram co­mo a palha das eiras no estio, e o vento os levou, e deles não se viram mais vestígios, (vs. 34-35). Este fim foi muito mais dramáti­co e inesperado do que os pés de barro poderiam por si só causar, pois aquela grande, estátua foi totalmente pulverizada em fino pó pelo impacto da pedra, como se fosse por uma explosão nuclear, e a pedra, que feriu a estátua, se tomou em grande montanha que encheu toda a terra (v. 35).

Daniel foi extremamente franco ao explicar ao rei o signifi­cado do sonho. O prazo que ainda sobrava para o império que estava edificando agora era relativamente curto. Naturalmente ele completaria o seu desenvolvimento no processo da História. Contribuiria para o surgimento posterior de três ou quatro outros impérios, os quais seriam cada um deles à sua própria maneira, im­pressionantes e poderosos. Mas mesmo este desenvolvimento aca­baria revelando que toda a grandeza e magnificência da estrutura se alicerçava em frágeis pés de barro que não poderiam sustentá-la por muito' tempo. O fim, no entanto, não viria por causa destes pés de barro mas, sim, porque toda esta estrutura estava no cami­nho de outro reino que haveria de vir no futuro, e estava bloque­ando o progresso deste. Porque este reino futuro se aproximava, e porque o seu triunfo era inevitável, o império e a dinastia de Nabucodonosor seriam desfeitos.

Quando estudamos o sonho do rei conforme Daniel lhe re­latou, podemos perceber a esta altura que a explicação do mis­tério de como a história humana haveria de desdobrar-se foi co­locada numa forma que seria facilmente compreensível, tanto ao rei Nabucodonosor com a sua cultura pagã, quanto a Daniel

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e aos outros em seu redor, que viviam na sua própria tradição. Ha­via uma tradição corrente no mundo daqueles dias que dizia que a história humana consistiria de quatro grandes eras, e que cada era seguinte seria menos feliz do que a anterior, e que elas pode­riam ser caracterizadas por uma série de metais, sendo cada um de­les de menor valor do que o metal anterior. Sem dúvida Nabuco­donosor conhecia este mito, que certamente incorporava muito da experiência humana, e fadlmente compreendeu a mensagem.

Mas é possível que Daniel tenha se lembrado de dois gran­des eventos do passado quando a visão assumiu a sua forma final e o seu significado foi percebido. Um deles, certamente, foi a his­tória de Davi que matou Golias, o gigante filisteu que se postou de modo tão zombeteiro no caminho do povo de Deus, a fim de bloquear o cumprimento do propósito de Deus que era dar ao seu povo integralmente a terra que começara a conquistar.15 Séculos mais tarde, esta grande história é retomada e contada de novo pa­ra assegurar não apenas ao povo de Deus, mas a outras pessoas também, que nenhum poder terrestre deve ousar ficar assim no caminho do povo de Deus. O outro grande evento é a visão de Isaías e de Miquéias de como o monte da casa do Senhor será es­tabelecido acima de todos os demais montes, e todas as nações subirão nele em busca de orientação e de comunhão.16

Os pormenores da imagemDaniel não explica com detalhes que metal representa que

império futuro na sucessão terrestre dos reinos simbolizados na imagem. Parece sugerir simplesmente que haverá quatro impérios notáveis e diferentes antes do reino de Deus finalmente entrar no mundo com novo poder dinâmico como fator decisivo na História. A mensagem é repetida no capítulo 7, onde o decurso da História é representado por quatro animais sucessivos ao invés de quatro seções descendentes de uma estátua. Visto que o versículo 44 do presente capítulo declara que nos dias do último destes impé­rios o Deus do céu suscitará um reino que não será jamais destrui-

15 1 Sm 17:31ss.16 Is 2:1 ss.; Mq 4:1 ss.

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do, muitos comentaristas têm sugerido que deve tratar-se do nascimento, morte e ressurreição de Jesus no império romano, e que os impérios referidos são, portanto: (1) o babilónico, (2) o medo-persa, (3) o grego, (4) o romano. Muitos estudiosos moder­nos, no entanto, pensam que o que se refere no versículo 44 aconte­ceria, conforme a expectativa do escritor, por volta do tempo de Antíoco Epifânio (175-163 a.C.) na era da Grécia. Outros pensam que o versículo 44 se refere à segunda vinda de Cristo na consuma­ção dos séculos. Aqueles que adotam tais pontos de vista fazem listas levemente diferentes da sucessão dos reinos. Podemos dei­xar o nosso julgamento final pelo menos até que tenhamos estuda­do o livro inteiro, especialmente o capítulo 7. Além disso, deve­mos lembrar que o que importava para Daniel, ao falar acerca da visão, não era definir com exatidão os quatro impérios mas, sim, fixar a mente de Nabucodonosor na inevitabilidade da vinda e do triunfo do reino de Deus.A pedra da montanha

Quanto ao significado da pedra não podemos ter dúvida al­guma. O reino cortado de uma montanha sem o auxílio de mãos humanas (vs. 34, 45) pertence a Cristo. Este reino virá irrompen­do na História, alterando-a, trazendo julgamento devastador a tudo o que se põe no seu caminho para impedi-lo. Daniel procla­ma que a principal causa dos cataclismos da História não se acha nem nas falhas morais (os pés de barro) que forçosamente mar­cam toda a sociedade humana, nem nos fatores sociais e econômi­cos que podem ser cuidadosamente analisados pela pesquisa huma­na mas, sim, acha-se no progresso do reino invisível de Cristo que vem entrando com força em nosso mundo presente, vindo de fora deste mundo, com efeitos poderosos e até -mesmos devastadores sobre as coisas que acontecem ao nosso redor. Daniel proclama para os seus próprios dias a mensagem de João Batista: “Arrepen­dei-vos, porque está próximo o reino dos céus” .17 O que Nabuco­donosor vira no sonho, e que Daniel mostrou na interpretação, foi realmente o reino de Deus interferindo nos assuntos deste mun­do com um poder irresistível e sempre crescente, esmagando e ani­

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quilando tudo o que procura impedir o seu progresso, e finalmen­te estabelecendo-se, sem rival e sem ameaça de oposição, como o que deve permanecer e crescer até que “toda criatura reconheça o seu domínio” .

Este é o Cristo que devemos proclamar hoje a este mundo cheio de sonhos intranqüilos, às suas instáveis e não permanentes dinastias, aos seus impérios que se desfazem, aos seus tiranos mesqui­nhos com pés de barro. No Novo Testamento, o próprio Cristo é descrito como “pedra de tropeço” e “rocha de ofensa” ,18 que traz ruína para aqueles que não a levam em conta e que esmaga to­dos os Golias que desafiam os exércitos do Deus vivo.19 Ele é a pedra preciosa, angular20 que deve definir o formato e preencher o lugar supremo dentro de toda a edificação dos impérios terres­tres; e ai dos edificadores estultos se se deixarem ser tentados a rejeitá-lo a fim de realizar outros planos! A este Homem, que en­trou em nosso meio em carne e sangue e que, com a sua vinda, introduziu o seu reino em sua plena realidade, devemos atribuir toda a importância que esta pedra voadora tem neste grande even­to no Antigo Testamento. Aqui certamente está sendo indicado o significado da sua encarnação, morte, ressurreição e segunda vinda. •

O que, pois, esta estátua colossal representa em nossos tem­pos? Pode representar aquilo que há de pior no meio do melhor de quase tudo no mundo político e cultural. É possível, natural­mente, que esteja falando de alguma coisa do passado. Pode repre­sentar o Império Giego, o Império Romano, o Império de Napoleão, o imperialismo britânico, o império de Hitler. Pode, porém, tam­bém representar coisas do mundo contemporâneo. Talvez seja uma advertência ao capitalismo americano ou ao comunismo rus­so. Talvez represente qualquer sistema que tenda a fechar-se para a influência viva do Espírito de Jesus Cristo. E talvez conte a ca­da um de nós, de modo claro, o que está reservado para o nosso futuro, se ousarmos colocar-nos atravessados no caminho do pro­gresso da Palavra de Deus mediante a qual Cristo reina. O seu rei­no forçosamente há de adquirir impulso e crescer em força e em

18 1 Pe 2:6-8.19 1 Sm 17:41ss.20 Is 28:16.

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poder não manifestos. Tudo quanto não possa ser abrangido e in­corporado nele será finalmente desmascarado como sendo vaida­de, como palha que desaparece quando o vento sopra. Não preci­samos atribuir um significado somente político a esta estátua co­lossal. Pode representar os nossos pequenos impérios domésticos, sociais, comerciais, financeiros ou eclesiásticos, no meio dos quais alguns de nós ficam entronizados, procurando em vão obter segu­rança e satisfação. Pode simplesmente representar a imagem do nosso próprio futuro.

Mas nunca teremos paz até que realmente tenhamos perce­bido e reconhecido que este nosso império, qualquer que ele seja, deve ceder diante da chegada do reino de Deus.A primeira reação do rei

O rei, ao escutar Daniel, sentiu-se confrontado com a reali­dade da verdade. Enquanto ouvia, sentado, sentia que ah, naquela hora, ele estava sendo confrontado pelo próprio reino que estava sendo mencionado. Quando Daniel apontou para cima e para o futuro, indicando a glória que ainda haveria de ser vista, Nabuco­donosor pôde erguer os olhos. Também ele recebia a visão e o antegozo de alguma coisa mais gloriosa, mais sólida e mais dura­doura do que a glória, o poder e os negócios do trono da Babilô­nia que ele vinha ocupando com tanta perturbação.

O capítulo termina com à descrição da homenagem que o rei prestou a Daniel (v.46), o tributo que deu ao Deus de Daniel (v.47), e a nomeação de Daniel e seus três amigos a cargos elevados no império (vs. 48-49). Mas o rei não reagiu à verdade de maneira suficientemente profunda para transformá-lo radicalmente, e não podemos dizer que foi um ato de verdadeiro arrependimento ou de conversão religiosa, pois no capítulo seguinte vemos que ele lo­go volta ao seu paganismo e ao seu orgulho.

O comportamento de Nabucodonosor nos ajuda a reconhe­cer que às vezes uma experiência religiosa pode estimular uma for­te reação em nível superficial, sem atingir a profundidade. Nabuco­donosor certamente pronunciou palavras impressionantes em favor do Deus de Daniel, mas mesmo neste panegírico rebaixou Deus ao

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nível de um deus entre outros seres divinos (v.47). Certamente, também, passou pela experiência emocional de quem se sente na presença da Divindade. O comentário de Calvino22 é que Nabuco­donosor, na sua confissão de crença no Deus de Israel, simplesmen­te foi tomado por um impulso violento ou repentino que não se constituiu em base real para o arrependimento, e que ele não esta­va totalmente senhor de si. Apesar disso, Calvino reconheceu que, levando em consideração o forte orgulho que os reis normalmente têm, é notável vê-lo ir até o ponto de dar este sinal de piedade e mo­déstia. Calvino acrescenta uma nota dizendo que até mesmo faraó, no meio da sua luta contra Moisés, ficou em certo momento tão profundamente impressionado por aquilo que viu do “poder de Deus de Israel” que imediatamente deu glória a Ele.23

Mesmo assim, Nabucodonosor começou bem no caminho pa­ra a verdadeira fé. Ao estimarmos a relevância da experiçncia do rei, devemos notar que pelo menos em nível psicológico ela veio trazer-lhe a cura dos seus sonhos perturbadores. Isso porque ele pôde tirar os olhos de si mesmo e dos negócios triviais do seu pró­prio reino. É, pois, porque os homens não têm nada de “alto e sublime” para onde levantar os olhos, nada de maior do que eles mesmos e do seu próprio mundo para adorar, nada mais certo do que as suas próprias idéias para orientar o seu destino, nada mais inspirador do que a sua própria bondade para levá-los ao arrependi­mento, é por isso que a vida se lhes torna sem graça, febril e frustra­da, e os pesadelos ficam sendo uma coisa rotineira. Seria bom pa­ra alguns de nós hoje se pudéssemos simplesmente começar por on­de Nabucodonosor começou naquele dia (ainda que, naquela oca­sião, ele não prosseguiu pelo caminho até o fim). Uma nova vida e a cura podem vir a nós somente quando começamos a achar al­gum propósito a seguir, não os nossos alvos egocêntricos mas, sim, a glória do próprio Deus; quando achamos descanso em certezas que estão completamente além das mudanças e dos riscos da histó­ria humana; e quando descobrimos que possuímos a justiça e a paz somente quando as possuímos como dons do próprio Deus. Na- bucodonosor foi trazido, por um momento, até o limiar desta pos­sibilidade, o que lhe trouxe pelo menos alguma satisfação e alívio.

22 J. Calvino, Commentary on Daniel, ad loc.23 Êx 9:27; 10:16.

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Daniel 3

A FORNALHA DE FOGO

A necessidade do cimento social

Foi pelo sonho e sua interpretação que Nabucodonosor foi trazido por um momento ao limiar de grandes e novas possibili­dades para uma dedicação pessoal. Teve percepções que poderiam contribuir para um novo entendimento de si mesmo, e obteve, pelo menos, uma cura temporária de seus sonhos perturbadores.

Não fez, porém, uma plena dedicação de sua vida a Deus, o que então seria possível, e portanto não ficaremos surpresos ao lermos o que acontece no presente capítulo. Nabucodonosor ago­ra reage contra o reino de Deus com o mesmo grau de tensão com que anteriormente se sentira atraído em direção a ele. Fez uso da ajuda que Deus lhe dera para avançar cada vez mais para uma po­sição de independência de Deus. Logo permitiu que o sistema em que estava vivendo o tragasse de novo, e imediatamente o acha­mos pervertendo a própria mensagem através da qual Deus procu­rara ganhá-lo. Agora, facilmente excluiu da sua mente a parte mais distante e desagradável da mensagem, o trecho acerca da pedra e do seu impacto esmagador sobre todas as estruturas terrestres;1 e começou a regalar-se no encorajamento que a parte agradável do sonho lhe deu, no louvor indubitável dos esforços que estava fa­

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zendo.2 Aquela mesma palavra da parte do Deus de Daniel, tu és a cabeça de ouro, veio a ser para ele uma nova licença para conti­nuar com as suas obras!

Mas pelo menos lembrou-se da única parte da visão que de imediato era relevante à tarefa de construir a grande nova socie­dade. Era a parte dos pés muito frágeis sobre os quais a cabeça de ouro e o restante do corpo se firmavam, e a mistura de ferro e barro que não se ligam mas que se desintegram facilmente, com a qual, eles foram moldados. Tomou esta parte do sonho como uma advertência a si mesmo quanto à falta de coesão na sociedade que estava reestruturando. Pensando nisso ficava perturbado e era im­pulsionado para a frente. Talvez acreditasse que ele mesmo pudes­se ver a tendência à desintegração, ilustrada pela estátua, já ope­rando ao seu redor no seu império de ouro. Sentia que devia ga­rantir a seus sucessores um desenvolvimento melhor. Tinha de in­jetar um cimento forte, durável, que formasse uma boa liga naquela sociedade em desenvolvimento.

Que cimento melhor e mais durável poderia haver do que uma só religião para todos e uma cultura profundamente influ­enciada por essa religião em comum? Nisso, acreditava ele, con­seguiria o núcleo em redor do qual uma consciência comunitária verdadeiramente forte poderia desenvolver-se e crescer. Organi­zaria as coisas em prol desse desenvolvimento.

Não é, portanto, surpresa alguma, depois do sonho, vermos Nabucodonosor com um novo ímpeto de planejamento social, levado a efeito com urgência, idealismo e convicção. O que mais o preocupa agora é acabar com todas as possíveis fontes de divi­são e de desintegração. Sendo ele um militar, podemos até mes­mo imaginar que desejava criar na vida civil o mesmo sentimento de união e comunhão que decerto experimentara nas suas campanhas militares! De qualquer maneira, cada um deve ser levado a sentir que pertence a alguma coisa que vale a pena, que é vital e basica­mente atraente. O alvo de Nabucodonosor é desenvolver e unifi­car a cultura. Mas, antes de tudo, precisa de uma religião unifican- te, já que religião era definida, naquele mundo antigo, como sendo “aquilo que liga” e era amplamente reconhecida como sendo o me­lhor cimento para conservar unida a sociedade.

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A festa da Nova BabilôniaO que surgiu do novo ímpeto de planejamento social da parte

de Nabucodonosor foi o tipo de coisa que hoje seria chamada de “a festa da Nova Babilônia” . Era proclamada com muita ostenta­ção. O rei Nabucodonosor fez uma imagem de ouro que tinha ses­senta côvados de alto e seis de largura (v.l). Era um obelisco excep­cionalmente delgado. Deve ter parecido um pouco grotesco com trinta metros de altura e apenas três de largura, mas possivelmen­te fosse apoiado na sua posição ereta por uma base grande cujas dimensões não estão incluídas na especificação dada no texto. Certamente a imagem teria um custo imenso se fosse de ouro ma­ciço, e deve ter dado uma impressão espantosa mesmo se fosse apenas revestida de ouro. Sem dúvida, era para ser saudada como sendo uma obra notável em técnica de edificação e com um novo conceito em seu projeto arquitetônico.

Os comentaristas dividem-se quanto ao fato da estátua ser a imagem do próprio Nabucodonosor ou de algum deus babilóni­co. Mas certamente a questão foi deixada vaga de propósito. A es­tátua poderia representar qualquer coisa que se quisesse simbo­lizar. Poderia representar o espírito da Babilônia, ou o próprio imperador, ou um dos deuses nacionais tradicionais, ou poderia constituir-se num ponto de enfoque sincretista para todas as reli­giões do império. Nabucodonosor sabia que a maioria pensaria que a estátua era para estimular a devoção comum aos deuses da Babilônia, aos quais ele esperava que todas as pessoas servissem, de alguma forma. Mesmo assim, ele queria deixar livres as comu­nidades minoritárias do seu império cosmopolita, para adaptarem o ritual externo à sua consciência acerca das imagens e da idolatria.

Ele esperava uma boa aceitação. 0 seu programa teria sido destruído se qualquer grupo relevante começasse a proclamar re­sistência ou deixasse de participar. Para ajudar a ganhar o entu­siasmo de todos, ele deu muita ênfase ao aspecto cultural do acon­tecimento. A parte musical foi desenvolvida com cuidado especial. Podemos facilmente imaginar Nabucodonosor pondo em andamen­to programas intensivos para ensinar os vários instrumentos (v.5) que iriam ser tocados, deixando os compositores em plena ativi­dade, e convocando novos membros para aumentar as orquestras. E possível até mesmo que procurasse conseguir uma boa mistura

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de música folclórica tradicional de todos os tipos, com novos te­mas numa nova linguagem musical!

O seu programa foi apoiado pela sanção que todos espera­vam naqueles dias: uma fornalha de fogo ardente (v.6) seria ace­sa se necessário fosse. Mesmo assim, Nabucodonosor sabia que nenhuma sociedade poderia ser mantida unida, em última análi­se, pelo terror. A fornalha era somente para o caso de uma pos­sível aparição de lunáticos e excêntricos anti-sociais. 0 pensamen­to de que pessoas sensatas pudessem colocar-se dentro do alcance das chamas dificilmente lhe passaria pela mente. Esperava que a fornalha não seria necessária nesse programa que permitia tanta flexibilidade de interpretação. Até mesmo aquelas pessoas muito religiosas que trouxera da província de Judá, com o seu assim cha­mado “Deus supremo” , certamente não negariam que os deuses da Babilônia tinham o direito de receber destaque dentro dos li­mites do seu próprio território. A festa seria a coisa certa a fazer; seria a inauguração solene e gloriosa do culto; seria a música, as procissões para a planície de Dura, os atos de devota celebração comunitária.

0 milagre da resistênciaTudo começou bem. Os primeiros relatórios eram emocio­

nantes. Aqui, decerto, uma resposta condigna estava sendo dada por Nabucodonosor ao enigma e à pergunta que o seu sonho lhe apresentara: já seria possível surgir uma sociedade de ouro, com pés sólidos, com uma base larga e indestrutível?

Chegou então ao rei o relatório de que ‘há uns homens ju­deus, que tu constituíste sobre os negócios da província de Babi­lônia: Sadraque, Mesaque e Abede-Nego; estes homens, ô rei, não fizeram caso de ti, a teus deuses não servem, nem adoram a imagem de ouro que levantaste” (v. 12).

Os três que foram apanhados talvez não tivessem procurado um conflito aberto com a autoridade de Nabucodonosor. É possível que até mesmo tivessem procurado discretamente evitar qualquer demonstração ostensiva de rebeldia. Talvez achassem que ninguém daria muita atenção ao fato de freqüentemente não estarem pre­sentes quando sabiam que a música iria começar, e que quando

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envolvidos, absterem-se sem estardalhaço das partes mais compro­metedoras do ritual do rei. Mas já tinham analisado todas as ques­tões pertinentes, tinham tomado decisões, e estavam bem prepara­dos caso surgisse um desafio direto. Não houve hesitação em suas respostas quando foram acusados. Recusaram-se a dar o mínimo sinal de que haveria qualquer possibilidade de um meio-termo ou de um diálogo. “Fica sabendo, ó rei, que não serviremos a teus deuses, nem adoraremos a imagem de ouro ” (v. 18).

A respostaA resposta deles, diante de uma ameaça tão forte e resolu­

ta, exigiu muita coragem, e foi dada com extraordinária dignida­de. Ilustra mais uma vez como o comportamento fiel e leal, man­tido durante as decisões de questões menos importantes, pode che­gar à frutificação num testemunho espetacularmente corajoso a Deus na hora da provação mais severa, perante outros.

Eles ressaltam que não vão discutir com o rei. “Não neces­sitamos de te responder” (v.16). Esta resposta, na realidade, é uma afirmação de que agora é a hora de responder, não com pa­lavras, mas com ações. Nabucodonosor teria de aprender que o Deus de Israel não era mero assunto de conversa para um debate religioso mas, sim, o Senhor vivo da História. Ele precisava, acima de tudo, saber que o Deus de Daniel e destes três homens pode revelar, não meramente o sonho de um rei, mas também conferir resistência real, fé e coragem invencíveis. O rei entendeu a men­sagem deles com muito mais clareza e intensidade, por terem per­manecido à sua frente em pacífica resistência, enfrentando a forna­lha, do que entenderia se tivessem pregado um longo sermão. Ele já sabia o que eles com dificuldade poderiam ter expressado com as melhores palavras. Já tinha escutado demais a Daniel. Já tive­ra um sonho notável. Sabia o suficiente acerca da lei e da tradição deles. Neste momento, o que mais se exigia era que as palavras que tinham sido faladas com bastante freqüência e liberdade, fos­sem agora postas à prova.

Há “tempo de estar calado, e tempo de falar” .3 Precisamos

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de sabedoria para saber quando calar e quando falar, e coragem pa­ra não negligenciar a ação devida. Muito freqüentemente é hora de falar, e como deixamos de proclamar e de discutir simplesmente por estarmos envergonhados, amedrontados e sem convicção. Mas, ocasionalmente, como agora acontece com estes homens, não im­porta falar, mas o que se crê deve ser demonstrado por ações. A não ser que esta evidência seja dada em carne e osso quando necessário, todo o nosso falar anterior revela-se um verdadeiro “papo furado” .

Jesus dedicou-se a um ministério que consistia, em grande parte, no falar. Quando, porém, aproximava-se o momento da sua crucificação, com muito mais freqüência guardava silêncio. Ao ficar diante dos juizes, refreava-se de falar muita coisa.4 Quando compareceu diante de Herodes, recaiu em silêncio total.5 Poucas e breves foram as palavras que vieram da cruz. Sua resposta defini­tiva, sem palavras, estava para ser dada como acontecia também com estes três jovens, com fidelidade, com amor, e com sofrimento. Mesmo assim, as poucas palavras de testemunho a Deus que eles chegam a proferir são maravilhosas e de profunda relevância. Cha­mam-no de nosso Deus (v.17). Deus lhes pertence, e eles são de Deus, pois a esperança de que Deus os salvaria da fornalha é ba­seada na profunda aliança e no relacionamento pessoal que, como indivíduos e como membros do povo de Deus, eles sabem que têm diante de Deus. Ele é o nosso Deus, a quem servimos.6

Tal confissão de fé pessoal, e mais o relacionamento profun­do e estreito que cada um deles tem com Deus, fazem com que eles avancem na confiança no poder de Deus como potente para fazer tudo quanto prometera fazer por eles como seu Deus. Ele nos livrará (v.17). Sempre fez parte da crença deles, desde o iní­cio da vida da sua nação, que nada é impossível para Deus. Deus mesmo falou tais palavras para Sara.7 Moisés vivia conforme tais palavras e elas foram comprovadas maravilhosamente no Mar Ver­melho.8 Jeremias também fez suas estas palavras, naqueles mes­mos dias, e descobriu serem elas verdadeiras.9 Agora estão sendo reecoadas por essas três testemunhas diante de Nabucodonosor; e ressurgirão nos ensinos de Zacarias,10 e finalmente com Jesus114 Mc 14:60-61; Jo 19:9-10. 8 Éx 14:21s*.5 Lc 23:9 9 Jr 32:17,27.6 Cf. Êx 19:5; 20:2; Jr 31:33; Gn 17:7. 10 Zc 8:67 Gn 18:14. H Mc 9:23.

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quando ele enfrentou sua prova de fogo no jardim do Getsêmani.12Tão forte é o sentimento de estarem perto de Deus, e tal a

fé de que o seu bem-estar está seguro nas mãos de Deus, que os três jovens não podem imaginar que qualquer forma de dano pode­riam lhes sobrevir das mãos de um mesquinho imperador pagão. “Ele nos livrará . . . das tuas mãos, ó rei” (v.17). Como pode Deus abandonar aqueles que lhe pertencem, em qualquer hipótese? Como poderia o amor de Deus faltar agora, depois de ter sido já tantas vezes, comprovado? Mesmo assim, nesse momento eles ressaltaram a sua disposição para com a glória e a vindicação do próprio Deus. Demonstraram a mesma deferência à sabedoria de Deus somente, conforme vimos ilustrada no capítulo anterior. Por si mesmos, não sabem decidir se é melhor para eles sobreviver ou perecer. Crêem que Deus corresponderá à esperança de que sairão vivos; mas se não é a mesma coisa para eles, pois a sabedoria, a glória e o poder em tudo advêm dele.

O milagre da sobrevivênciaMuitos de nós temos disposição de aceitar a história da pre­

servação destes três homens na fornalha como uma descrição fiel do que então lá aconteceu. Se cremos no Deus vivo da Bíblia não há razão por que devamos pensar que foi impossível tal evento ter acontecido. Mas não há motivo, especialmente neste acontecimen­to, para ficarmos desnecessariamente ofendidos ou perturbados se alguém achar difícil encarar a narrativa como um relato próprio e exato de como a sentença à morte pelo fogo realmente foi execu­tada pelos' algozes do rei. Perderemos o primordial se ressaltarmos demasiadamente os pormenores do milagre da sobrevivência. Con­forme Jacques Ellul destaca no seu comentário à história de Jonas:

“O alvo principal da história não é dar informações his­tóricas, embora o milagre do peixe seja perfeitamente aceitável, e eu, da minha parte, não vejo objeção alguma à possibilidade de um milagre como este. É óbvio que o poder de Deus pode manifestar-se desta maneira. A li-

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çío principal a ser considerada, no entanto, é o que sig­nifica o milagre.”13Devemos tomar cuidado, no entanto, para não nos envolver­

mos demasiadamente com o que, para nós que lemos a narrativa, são questões secundárias e não primárias: o ponto principal da his­tória é que eles saíram totalmente ilesos da perseguição de fogo conseqüente ao seu ato de coragem e de testemunho. Este capí­tulo de Daniel repete na forma de uma narrativa histórica o que um hino daqueles tempos expressava:

“Não temas, porque eu te remi; chamei-te pelo teu nome, tu és meu. Quando passares pelas águas, eu serei con­tigo. . . quando passares pelo fogo, não te queimarás, nem a chama arderá em ti.” 14O que impressionou Nabucodonosor, ao vê-los, foi que esta­

vam “sem nenhum dano” (v.25). A resistência e a reação deles so­mente poderiam ser atribuídas a alguma fonte sobrenatural de for­ça e de conforto. O rei sabia que, apesar de tudo que ele pudesse fazer, nada os poderia separar de modo algum deste socorro divi­no. Quanto mais os perseguisse, tanto mais confirmaria o teste­munho deles. “NSo lançamos nós três homens atados dentro do fogo?. . . Eu, porém, vejo quatro homens soltos, que andam passe­ando dentro do fogo. . . e o aspecto do quarto é semelhante a um filho dos deuses" (vs. 24,25).

A presença da figura divina sem dúvida deve ser entendida como o cumprimento da promessa de Deus quanto à sua compa­nhia com os seus ao passarem por uma tribulação. Em muitas ou­tras histórias na Bíblia, Deus dá sinais de sua presença manifestan­do-se sob a forma de um ser angelical. É naturalmente instintivo para o cristão pensar ter sido uma visão da presença do Cristo pré- encamado lado a lado com aqueles que sofrem por amor ao reino de Deus. O escritor da Epístola aos Hebreus, numa lista das gran­des testemunhas que houve no passado de Israel, inclui aqueles que, pela fé, “extinguiram a violência do fogo” enquanto eles,

13 The Judgement o f Jonah (Eerdmans, 1971), pág. 45.14 Is 43 :1 ,2 .

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também, corriam na sua carreira, “olhando firmemente para Je­sus” .15

É notável, também, que o fogo da ira de Nabucodonosor também foi apagado pelo que viu ao olhar para esses três homens, e então começou a entender.

Nabucodonosor: o momento da verdadeVoltando, porém, para um ponto anterior na narrativa, o

testemunho triunfante de Sadraque, de Mesaque e de Abede-Nego relembrou a Nabucodonosor, com renovado vigor, acerca do que anteriormente lhe trouxera tanta agonia, especialmente aquela par­te a respeito da pedra que representava o reino do além que não se encaixaria no esquema de coisas montado pelo homem, até mes­mo com os melhores e maiores esforços de edificar um império. Talvez agora se lembrasse de modo vívido como, vez após outra, tinha visto e sentido o seu poder penetrante e fragmentador de- fazendo a fragmentando até mesmo o estabelecimento terrestre mais forte que o homem pudesse construir. E aqui estava ele, sen­do atingido, por aquela mesma pedra! Agora ele sabia que na re­sistência, no poder dinâmico e no zelo indestrutível destas três testemunhas, com toda a calma e a paz com que demonstravam desinteresse para com todas as recompensas ou ameaças da pró­pria Babilônia, ele mesmo estava tendo uma experiência deste novo e estranho reino sobre o qual Daniel lhe pregara com base no sonho. E agora já não era um mero quadro num sonho ou palavras num sermão mas, sim, estava aqui diante dele como uma força política e pessoal a ser levada em conta nos negócios do seu próprio império. Talvez, portanto, começasse a fazer a si mesmo perguntas profundamente perturbadoras. Esta confrontação dolo­rosa não poderia ser o começo do choque e da luta que finalmen­te redundaria no esfacelamento de todos os seus grandiosos esque­mas visando um domínio universal e duradouro? A resistência des­tes três homens aqui e agora não poderia ser a pressão deste rei­no eterno, evidenciando-lhe que, ao sacrificar tanta coisa de si mesmo em prol da nova Babilônia, tenha cometido um dos pio-

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res erros da sua vida? .De qualquer maneira, sua reação começou com uma explo­

são de fúria loucamente irracional. Então Nabucodonosor se en­cheu de fúria, e, transtornando o aspecto do seu rosto. . . (v.19). Estava se enfurecendo com aquilo que descobrira acerca de si mes­mo neste momento de verdade? Talvez agora percebesse que seus planos não eram tão perfeitos quanto pensara, e que escolhera um fundamento frágil demais para a sua construção. Sentia que inves­tira demais na escolha errada. Tinha sido um tolo, cego e descuida­do ao continuar a edificar o seu império como fizera, sem lem­brar-se do reino de Deus.

Quando, porém, deu vazão à sua ira, dirigiu-a, não contra si mesmo, mas, sim, contra os três homens que estavam diante dele: cheio de fúria . . . ordenou que se acendesse a fornalha sete vezes mais do que se costumava, e foi uma ordem que, muito ironicamen­te, causou mais danos aos algozes reais do que àqueles que preten­dia que fossem as vítimas (v.22). Esta não é a primeira vez que a Bíblia chama á nossa atenção ao fato de que o ódio e a ira dentro de nós (que tão facilmente chegam ao nível da “fúria”) freqüen­temente têm como vítima não quem deveria sê-lo mas, sim, alguém que não tem nada a ver com o dano que imaginamos ser o objeto da nossa vingança. Esta é apenas uma das muitas ocasiões em que a ira irracionalmente desencaminhada pode levar à estultícia e à tragédia. Temos a história da Caim, zangado com Deus e desenca­deando o seu ódio contra Abel;16 a dos dez irmãos que demons­traram ira contra José sem a mínima justa causa para isso;17 e a história de Jonas, que ficou zangado com a planta, quando deveria ter ficado zangado com ele mesmo por causa da sua própria ira.18 E tudo isto avança (assim como avança tão grande parte da Bíblia) para o que aconteceu quando Jesus veio e irrompeu sobre si a pres­são da totalidade da grande massa sem alívio de frustração e de ódio humanos, acalentados durante séculos no coração de uma humanidade cuja maldição mais profunda sempre foi o seu pró­prio ódio a Deus e à verdadeira bondade. Não pode haver cura para nós até que reconheçamos o que a nossa doença realmente é.

16 Gn 4:8.17 Gn 37:19ss.18 Jn 4 :1 ,9 .

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Nabucodonosor: o momento do arrependimentoAo defrontar o momento da verdade, Nabucodonosor pas­

sou por um momento de perigo. De repente, teve que escolher en­tre deixar-se humilhar ou ofender-se pela verdade diante de si. Por fim, conforme sabemos, deixou-se humilhar. Parou de resistir. Aceitou a ferida mortal que infligia sobre o seu orgulho e a sua auto-confiança, e rendeu-se. Sua própria fúria acabou sendo nada mais do que a última defesa do seu orgulho antes de ceder. Mas, ao mesmo tempo, havia outro caminho aberto diante dele. Pode­ria ter-se ofendido ao invés de humilhar-se. Poderia ter fechado a sua mente, endurecido o seu coração, e se firmado em sua orgulho­sa resistência. A violência da sua ira é prova de quâo intensa e críti­ca foi a luta que enfrentou para deddir-se.

Sua reação em tal momento pode muito bem ilustrar para nós o que Jesus pretendia quando disse: “Bem-aventurado é aque­le que nâo achar em mim motivo de tropeço” .19 Jesus ensinava que sempre que ele estava presente, o reino de Deus estava presen­te “dentro em vós” ,20 e as pessoas eram desafiadas a entrar nele ou a rejeitá-lo. Jesus sabia que para os que estavam profundamen­te comprometidos com as estruturas, com a riqueza, com o poder e com as concupiscéncias deste mundo presente, a presença e o de­safio do reino de Deus exigiriam uma mudança radical, e seriam tio profundamente perturbadores e ameaçadores quanto aqueles três homens o eram para Nabucodonosor, e quanto aquela pedra no sonho deste último foi para os impérios terrestres que acabou esmiuçando. Jesus, portanto, ensinou que aqueles que se vêem confrontados com a presença do reino através do que ele fez e en­sinou tendem a ficar ofendidos, a lutar com ira contra a verdade que os confronta e a resistir com paixão, conforme fez Nabucodo­nosor no inído. Bem-aventurados serâo eles se, neste momento de ofensa, pararem para pensar outra vez, abrandarem-se, e muda­rem!

A emoção fiiiaí de Nabucodonosor, ao mudar o seu pensa­mento e deixar o séú coração ser compungido e levado ao arrepen­dimento, foi de grande temor. Nâo há dúvida alguma de que o que fi-

19 Mt 11:6.20 Lc 11:22; 17:21.

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nalmente o levou à fé e à dedicação foi a visão do personagem ce­lestial que acompanhava e sustentava os três a quem ele perseguia. A ERAB nos demonstra bem o estado de espírito do rei: “Nabuco­donosor se espantou ” (v. 24). No dia de Pentecoste, nos tempos do Novo Testamento, três mil pessoas reagiram com a mesma angús­tia e arrependimento ao reconhecerem, através da pregação de Pe­dro, que Deus ressuscitara o mesmo Jesus a quem eles tinham perse­guido até à morte. Eles, também, tinham se enganado com respei­to ao que era mais importante para a vida neste mundo. Tinham cometido o maior erro em suas vidas, ao rejeitá-lo. E foram igual­mente confrontados com a prova inegável e viva do seu erro e da sua estultícia. O escritor disse que “compungiu-se-lhes o coração” no processo de chegarem ao arrependimento.21

O rei rendeu-se e irrompeu numa doxologia: “Bendito seja o Deus de Sadraque, Mesaque e Abede-Nego, que enviou o seu anjo, e livrou os seus servos, que confiaram nele” (v. 28). A so­brevivência daqueles jovens significava a libertação pessoal dele, também! E por ser ele um imperador, aceita as implicações polí­ticas práticas da sua conversão e, de acordo com o entendimen­to que tem, começa imediatamente a fazer a devida reparação. Portanto faço um decreto, pelo qual todo o povo, nação e língua que disser blasfêmia contra o Deus de Sadraque, Mesaque e Abe- de-Nego, seja despedaçado, e as suas casas sejam feitas em montu­ro; porque não há outro Deus que possa livrar como este. Então o rei fez prosperar a Sadraque, Mesaque e Abede-Nego, na pro­vinda de Babilônia (vs 29,30).

21 At 2:37

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Daniel 4

“EU, NABUCODONOSOR”

A evasão

Mesmo uma leitura superficial deste capítulo evidencia que Deus tinha uma exigência a fazer para com Nabucodonosor, uma lição para ensinar-lhe e uma pergunta a fazer-lhe antes que o seu relacionamento com este homem, que começara de modo tão promissor, realmente pudesse tomar-se estável e frutífero. A exi­gência era a dedicação total da sua mente, do seu coração e da sua vida ao próprio Deus. A lição acha-se três vezes claramente no tex­to (vs. 17, 25, 32), de que o Altíssimo tem domínio sobre o reino dos homens, e o dá a quem quer. A pergunta é, óbvia e simplesmen­te, aquilo que Deus procura perguntar a todos nós quando nos vê vivendo como se ninguém especificamente governasse o reino dos homens: Qual é o seu alvo, e para onde você pensa que está indo, com todo este planqamento e construção febril e orgulhoso? É exatamente a pergunta que Jesus, numa de suas parábolas, imagi­

nou que Deus fez ao rico louco que — tão semelhante a Nabucodo­nosor nesta etapa da sua vida — tinha tanta riqueza que destruiu os seus celeiros e construiu outros maiores, e ficando tão impressiona­do com a óbvia grandeza e segurança que todas estas coisas lhes davam, disse: “minha alma. . . descansa, come e bebe, e regala-te”.1

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A pergunta de Deus levava consigo sua própria resposta: “Louco, esta noite te pedirão a tua alma; e o que tens preparado, para quem será?”2

Este capítulo trata de como Deus imprimiu sua exigência pessoal em Nabucodonosor nos anos posteriores da vida dele, co­mo ensinou-lhe sua lição final, e como confrontou-o com esta úl­tima pergunta. Parece que Nabucodonosor estava consciente ou inconscientemente evitando a exigência, a lição e a pergunta. Pa­rece reconhecer isto nas palavras: Eu, Nabucodonosor, estavatranqüilo em minha casa, e feliz no meu palácio (v. 4). Esta decla­ração deve ser lida não apenas como informação quanto aos fatos, mas também como indicação de onde estava a origem do seu proble­ma e como confissão de onde desencaminhou-se na sua estultícia. Sua prosperidade era o seu perigo e veio a ser a sua maldição; sua aceitação da tranqüilidade ilusória que esta prosperidade podia trazer-lhe ficou sendo a sua trágica ruína. Não podemos imaginá-lo olhando para “a grande Babilônia” , que edificara, com uma cres­cente convicção interior de que esta sua realização devia ter sido o resultado da sua fé no Deus Altíssimo e, ademais, uma recompen­sa por seu serviço a ele?3 Decerto, tamanha autoridade externa somente poderia ser dada a alguém cujos caminhos agradassem a este Deus a favor de quem publicara o seu grande decreto impe­rial! Não estava justificado pela grandeza de ter conseguido na Babilônia, ter certo orgulho de si mesmo como um homem reli­gioso? É verdade que, a despeito de todo o seu progresso no ca­minho e na adoração do Deus Altíssimo, permanecia alguma coisa do velho paganismo, atraindo a sua vida para longe da verdade.4

E, naturalmente, no seu próprio zelo pela tarefa em anda­mento, agora tão cheia da aprovação divina, a sua mente ficou tão dominada pela ambição falsa e pela preocupação egoísta, que nela não sobrou lugar para pensamentos verdadeiros acerca de Deus; e o seu tempo foi todo tomado, não sobrando nenhum mo­mento para escutar a voz dele. Destarte, ficou-lhe sendo mais fá­cil evitar a Deus.

Nós podemos ficar tal como Nabucodonosor, especialmente

2 Lc 12:20.3 3:28ss.4 Cf. v. 8.

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se o nosso trabalho com muito esforço nos deu alguma realização aparentemente sólida, e talvez se, de alguma maneira, a nossa car­reira começou a ser coroada com o sucesso. Nós, também, talvez tenhamos edificado alguma coisa que pareça impressionante, não importando que o nosso mundo seja acadêmico, ou comercial, ou profissional ou eclesiástico. Cercados pelas nossas realizações, es­pecialmente se temos tendências religiosas, podemos começar a pensar que tais realizações externas realmente devem ter sido o resultado e até mesmo a recompensa proveniente de alguma retidão interior básica em nossa vida como um todo. A prosperidade e o sucesso sempre são perigosos se nos levam à “tranqüilidade” ; e são especialmente perigosos para aqueles dentre nós que crêem em Deus. A tentaçffo, pois, é sempre imaginar que a nossa própria prosperidade e o nosso sucesso são sinais de que Deus está especial­mente satisfeito conosco; e, assim, iludirmo-nos até termos um fal­so senso de felicidade e segurança que nos desvia da necessidade de enfrentarmos a verdade, possivelmente insuportável, quanto a nós mesmos. A nossa vida e o nosso esforço, e até mesmo a nossa vida e o nosso esforço religiosos, ficam, portanto, cheios de eva­são.

A rejeição do semeador com a sementeO diálogo é sempre o modo mais simples e mais radonal de

solucionar uma disputa: conversando sobre o caso e encarando-o de todos os ângulos. E certamente as diferenças mais profundas entre Deus e nós mesmos podem ser melhor definidas, enfrentadas e vencidas ao conversarmos juntos e nos tratarmos como seres ra­cionais.

Então, quando Deus quer nos ensinar, nos converter, e nos alistar em seu serviço, ele primeiro sempre experimenta este mo­do, o mais brando possível. Procura primeiramente lidar conosco simplesmente nos contando os seus desejos e o tipo de reladona- mento que deseja que haja entre nós e ele. Ele é um Deus que, para exercer a sua vontade ou conseguir o que deseja, emprega palavras, e prefere empregar palavras. Prefere nos atrair para fo­ra de nós mesmos, em direção a ele, com o nosso livre assentimento e cooperação em vez de nos moldar segundo o seu próprio padrão,

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forçando-o sobre nós a partir do lado de fora. Prefere plantar uma boa semente em nosso coração para que ela crie a sua própria e li­vre ação, em vez de nos pegar com as suas mãos e nos dar um tra­tamento bem mais rude. Deus optou por este caminho mais sua­ve, por exemplo, quando chamou Abraão para sair de Harã,5 e assim agiu com Moisés quando o mandou de volta ao deserto para conduzir o seu povo para fora do Egito.6 Até mesmo quando en­viou Isaías à nação pecaminosa, sabendo que ela talvez precisasse de um tratamento duro, o seu primeiro apelo foi: “Vinde, pois, e arrazoemos” .7 A mesma suavidade divina é achada nas palavras: “Serei para Israel como orvalho” .8

Com Nabucodonosor, portanto, era necessário primeiramente agir com a razão. Deus quer que ele escute e enfrente a sua real situação dentro deste relacionamento de maneira a evitar qualquer possibilidade de uma confrontação mais severa. Mas a mente do rei está tão atravancada com os negócios, dias após dia, que não tem tempo, quando está acordado, para qualquer pensamento sé­rio ou conversa com Deus. Deus, portanto, lhe deu um sonho. A Palavra veio certa noite de modo inesquecível, e penetrou onde nenhuma palavra falada diretamente teria entrado de outra forma, e a lembrança persistente e clara desta Palavra paulatinamente fixou sua atenção até que ficou dominante em sua mente, dia após dia, a questão: O que pode significar tudo isto?

O sonho estava cheio de pormenores estranhos. Nele ele se via representado por uma grande e viçosa árvore com abrigo abun­dante para a multidão de animais e aves que veio para ela (vs. 20-22). Mas, no máximo da sua majestade e prosperidade, um vigilante, um santo, desceu do çéu e ordenou que fosse derrubada. Sua folha­gem deveria ser destruída até que nada sobrasse senão uma cepa desolada, e os animais e as aves tivessem que fugir. Assim aconte­ceria até que passem sobre ele sete tempos, o que se presume ser um período de sete anos (v. 23). Era uma advertência para Nabu­codonosor no sentido de que ele mesmo, grande como aquela ár­vore, mas ainda altivo e obstinado no seu orgulho, estava para so­frer, se não alterasse os seus caminhos e respondesse ao desafio e5 Gn 12:1 ss.6 Éx 3:lss.7 Is 1:18.8 Os 14:5.

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à pergunta de Deus; seria uma trágica experiência de ser ferido com uma desgraça pessoal, num período de prolongada loucura e isolamento até que ele se tornasse verdadeiramente humilhado e renovado (vs. 24-26). E a advertênda é franca: “Portanto, ô rei, ” disse Daniel, “aceita o meu conselho, e põe termo em teus peca­dos pela justiça, e às tuas iniqüidades usando de misericórdia para com os pobres; e talvez se prolongue a tua tranqüilidade ” (v. 27).

Quão gracioso foi Deus em procurar penetrar e infiltrar na mente deste homem de modo tão franco, porém manso e sutil, como o semeador com a semente!9 E deu bastante tempo para a semente deitar raízes e crescer até que a sua influênda interior fosse dedsiva. Foi-lhe dado um ano inteiro para aprender a li­ção e transformar a sua atitude de coração.

Foi durante este ano que Nabucodonosor consdentemen- te disse não! Ou deliberadamente negligenciou ou esmagou10 a semente com suas possibilidades de vida em desenvolvimento. Além disso, ao agir assim, estava rejeitando não somente a men­sagem que Daniel claramente expressou, como também o caminho suave, simples e direto que Deus estava tão pacientemente procu­rando imprimir ao lidar com o rei.

O barro na mão do oleiroDeus, portanto, teve de apelar a um plano mantido na reser­

va, e adotar um caminho bem diferente; não foi ele provocado a agir assim?

Certo dia, Nabucodonosor estava andando no telhado do seu palácio real, gabando-se audivelmente acerca da grande Babi­lônia que edificara para a glória da sua própria majestade (v. 30), e uma voz veio do céu: “A ti se diz, ó rei Nabucodonosor: Já passou de ti o reino" (v.31). A ameaça do sonho foi cumprida. Com for­ça esmagadora, um fardo de sofrimento implacável e muito cruel caiu sobre ele. Foi expulso de entre os homens, e passou a comer erva como os bois, o seu corpo fo i molhado do orvalho do céu, até que lhe cresceram os cabelos como as penas da águia, e as suas

9 Mt 13:3ss.10 Mt 13:7; cf.D n 4:20-22.

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unhas como as das aves (v. 33). Seja qual for o sentido exato disso, devemos entender que passou sete anos em terrível confinamento solitário, que a sua personalidade total parece ter sido tragicamen­te deformada com a mais severa doença mental que o homem po­de conhecer

Assim como já comparamos com o semeador e a semente a abordagem que Deus adotou com Nabucodonosor, podemos agora assemelhar esta nova abordagem ao oleiro e o barro. Foi bem pa­recido com o caminho que já adotara em anos recentes com o seu povo de Israel, e a história que Jeremias aprendera acerca de Deus na casa do oleiro em Jerusalém era, sem dúvida, corrente entre o povo de Judá que estava na Babilônia. Quando tudo estava desan­dando ao seu redor, e Jeremias esiava desesperado, pensando que nada voltaria a endireitar-se, recebeu ordens no sentido de ir olhar o oleiro trabalhando com barro e com rodas.11 O oleiro estava trabalhando com um pedaço de barro que não cedia ao ser amas­sado, e que desenvolvia falhas ao ser trabalhado. Mas o oleiro não jogou fora o material. Começou outra vez com o mesmo barro, com outro plano e outro toque, e “tomou a fazer dele outro vaso, segundo bem lhe pareceu” .12 O segundo plano certamente envol­veu um tratamento mais pesado e mais prolongado com o barro, e produziu uma obra nova e perfeita.

Tal como no caso do barro, assim seria com Israel, e assim seria com Nabucodonosor. Deus disse através de Jeremias: “Não poderei eu fazer de vós como fez este oleiro, ó casa de Israel?”13 O trato paciente e meigo fracassara no caso de Israel. Agora vi­riam o exílio, a ruína, e a perda terrível. O trato paciente e meigo fracassara no caso de Nabucodonosor. Agora teriam de vir os se­te anos de angústia mental, até que aprendesse a lição e se pronti­ficasse a dedicar-se a Deus. Deus nunca será frustrado pela resis­tência humana; sua sabedoria nunca deixará de projetar uma nova maneira; e a sua paciênda na obra perdurará por muito tempo de­pois de nós mesmos termos ficado cansados e desesperados.

11 Jr 18:1,212 Jr 18:4.13 Jr 18:6.

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O Pai que nos disciplinaNão há dúvida de que, hoje, o que há de errado com muitos

de nós, quer pertençamos à igreja, quer não, é que não queremos escutar a palavra de Deus; não queremos enfrentar com cuidado todas as questões que precisam ser resolvidas entre ele e nós, e não queremos parar para perguntar, com razão e bom senso, qual é o modo melhor e mais bem-aventurado de viver. Parece que muitos de nós ficamos incapazes de tais discussões abertas e sa­dias, especialmente com respeito à nossa fé e ao nosso modo par­ticular de viver. Talvez estejamos passando agora pela etapa do pesadelo, como aconteceu com Nabucodonosor. Muitas pessoas, portanto, estão inquietas acerca de si mesmas, desnorteadas quan­to ao propósito e significado da sua vida e do seu destino, e são forçadas a perguntar, com muita freqüência, “Quem sou eu?” sem saber para onde levar tal pergunta. E, sem terem certeza de coisa alguma, senão de que estão perturbadas, consultarão quase qual­quer pessoa que alegue ser um “conselheiro” . Seria bom se esta perturbação profunda em nossa consciência nos sonhos pudesse realmente levar muitos de nós a escutar de novo a Palavra de Deus que fala de várias maneiras e com palavras claras e compreensíveis, e procura conclamar-nos a uma nova vida de dedicação e obediên­cia a Deus. Mas se não quisermos ser razoáveis, Deus ainda fará valer a sua vontade. Se nós, no mundo ocidental, com toda a nos­sa tradição cristã, com as nossas igrejas que ainda funcionam, e com toda a nossa erudição e ciência, insistirmos em continuar a construir a nossa Babilônia sem a orientação e a inspiração de Deus, poderá vir, da mesma mão e providência que antes nos ajudou a produzir tantas coisas em prol das quais vale a pena viver, um tempo de gran­de privação e de trevas sem similar desde há muitos séculos, até que aprendamos de novo os seus caminhos. Talvez seja necessário voltarmos para o pó e o barro antes de sermos remoldados à imagem de Deus; o pó e o barro dos quais fomos criados no princípio.

Mais um pensamento poderá nos dar algum consolo se por­ventura nos acharmos passando por aquilo que sentimos ser disci­plina com mão forte da parte de Deus. Lembremo-nos de que ain­da estamos nas mesmas mãos daquele que sempre foi paciente e meigo. Foi isto que Jeremias também implorou que Israel reco­nhecesse. “Como o barro na mão do oleiro, assim sois vós na mi-

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nha mão, ó casa de Israel” .14 Foi esta a verdade que também Na­bucodonosor captou. “Não há quem lhe possa deter a mão”(v.35). As mãos que esmagavam o barro foram as mesmas que antes esti­veram estendidas num prolongado e meigo apelo. Deus não alte­rou a sua natureza quando tomou sobre si o papel do oleiro, mas permaneceu o mesmo no seu propósito de amor e de graça. Logo:

“Filho meu, não menosprezes a correção que vem do Senhor, nem desmaies quando por ele és reprovado; porque o Senhor corrige a quem ama, e açoita a todo filho a quem recebe.” 15

Depois de tudo isto ter sido dito com base na história de Nabucodonosor, resta-nos dar uma olhada momentânea em mais luzes sobre o problema do sofrimento, que nos advêm de outras par­tes da Bíblia, e especialmente do Novo Testamento. Existe no mun­do, numa medida maior do que alguns de nós fazemos idéia, um so­frimento puramente inocente. Nós mesmos, até, talvez sintamos que esta história não está completamente à altura do nosso pró­prio problema. Talvez sintamos que já correspondemos tão com­pletamente quanto nos é possível aos modos brandos de Deus, e ficamos perplexos sobre a razão por que as coisas parecem tão du­ras e cruéis para nós. Devemos lembrar-nos da história de Jó, o ho­mem perfeitamente justo que sofreu mais do que os ímpios, e da história do Crucificado. Temos, portanto, pelo menos dois outros para contemplar lado a lado com Nabucodonosor.

Seja o que for que nos aconteça, pelo menos podemos segu­rar firme o fato de; que estamos nas mãos de Deus. É neste ponto que basicamente ficamos tal como Nabucodonosor, ou Jó e ou Jesus. Quando Jesus estava sendo crucificado, não teve dúvida alguma de que estava nas mãos do seu Pai e assim contou aos seus discípulos.16 Além disso, temos a sua palavra de que sempre esta­mos nas suas mãos (e nas mãos do meu Pai) e de que nada tem po­der para nos arrancar das mãos dele.17

14 Ji 18:6.15 Hb 12:5, 6; cf. Pv 3:11,12.16 Jo 16:32; Lc 22:42; 23:46.17 Jo 10:27-30.

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Como se ilumina a nossa experiência e o nosso entendimento quanto ao significado de todo sofrimento, quando podemos escu­tar a Jesus e olhar para Jesus ao lermos acerca de Nabucodonosor!

Daniel: companheiro e sinalNabucodonosor saiu do outro lado do seu longo período de

provação e trevas. Aprendeu a sua lição e veio a ser uma nova pes­soa.

Em testemunho à sua libertação, expressa gratidão pelo úni­co ser humano que tivera capacidade de ajudá-lo: “Por fim se me apresentou Daniel, cujo nome é Beltessazar, segundo o nome do meu deus, e no qual há o espirito dos deuses santos; e eu lhe contei o sonho” (v.8). Reconhece que Daniel lhe contara a verdade com clareza, antes de ele mesmo a captar e permitir que ela reformas­se a sua vida.

Tão decisivo é este louvor a Deus que é razoável supor que ele estaria presente, anos mais tarde, para ajudar o rei ao sair do seu período de loucura. Havia certo perigo para Nabucodonosor naquilo que teve de sofrer. Poderia ter entendido tudo de modo errado e ter ficado amargurado. Poderia ter fracassado na tenta­tiva de achar uma saída triunfante da experiência desnorteadora e devastadora, e poderia ter-se perdido dentro dela. Sua grande necessidade, portanto, em enfrentar aquilo que veio a ele, e em interpretá-lo, era ter alguém com ele, para explicar o seu signifi­cado, para ajudá-lo a adotar a atitude certa e a chegar às decisões certas. Precisava de um companheiro para conversar e orar ao contender' com o problema do seu pavoroso sofrimento. Deus, portanto, deu-lhe Daniel.

É claro por que procurou Daniel. Sabia que somente um ho­mem que tivesse, conforme suas palavras, o espirito dos deuses santos (vs. 9, 18) poderia ajudá-lo. Descobriu mais uma vez quão incapazes eram seus mágicos e feiticeiros, os magos, os encantado­res, os caldeus e os feiticeiros (v.7), quando se tratava do tipo de questão que agora tinha diante de si. Precisava de um homem que sabia mais, e que podia falar muito mais do que tinham capacida­de até mesmo os melhores peritos assalariados da sua própria gran­de Babilônia. Destarte, voltou-se finalmente, e mais uma vez, pa-

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ra o homem que certa vez anteriormente falara das coisas do além e que parecera ter um Deus a quem se podia orar com certo senso de realidade.

Além disso, o fato de que Daniel estava presente com este homem'neste tempo é uma lembrança para nós acerca da nossa necessidade uns dos outros quando as coisas, de modo semelhan­te, são difíceis para nós, e de difícil entendimento. Deus nem sem­pre quer que desembaracemos os nossos problemas sozinhos, e freqüentemente não nos deixa termos que procurar muito longe a ajuda que deseja que tenhamos. Quando ele está operando em nos­sa vida, e deseja que tenhamos entendimento, freqüentemente pro­verá na forma de amigos (às vezes próximos de nós em nossa famí­lia, às vezes na forma do pastor) o conselho e o cuidado suficientes para nos ajudar a passar por nossas tristezas e dificuldades e sair­mos triunfantes. Não devemos ser por demais orgulhosos ou ner­vosos para procurar semelhante ajuda e fazer uso dela. Freqüen­temente. Deus deseja dá-la a nós dentro da comunidade eclesiás­tica em nosso redor. O que é importante é que procuremos desco­brir o que o próprio Deus tem para nos dizer e, para isto, o perito que declara dar conselhos num nível puramente secular nem sem­pre é o mais útil.

A presença de Daniel lado a lado com Nabucodonosor pode ser bastante significativa para nós. Pode ser para nós um sinal da própria presença de Deus ali com o rei no seu sofrimento. Quando o rei teve que passar pela experiência mais dura da sua vida, Deus lhe deu um pastor. Quando pensamos em Daniel como sendo um representante de Deus, ajuda-nos a compreender o que o salmista quis dizer quando /alou do Senhor como sendo o pastor que “es­tá comigo” ao passar pelo “vale da sombra da morte” .18 Devemos lembrar-nos de que até no meio de todas as aflições que ele mesmo enviara a Israel no exílio, ele mesmo “foi angustiado, e o Anjo da sua presença os salvou”.19 Devemos lembrar-nos, também, que assim como Deus deu a Nabucodonosor um Daniel, assim também nos dá, hoje, o Cristo.

18 SI 23:4.19 Is 63:9.

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Daniel: fidelidade no conselhoQuando foi confrontado com a tarefa de interpretar o sonho

do rei, Daniel esteve atônito (v. 19). Certamente, era uma honra para ele mas, obviamente, desde o começo, sente-se incapaz. Seu aconselhamento é dado com o mesmo senso que Paulo sentia de insuficiência para a tarefa. Oferece a sua ajuda sem o mínimo in­dício de autoconfiança, sem a intenção de desempenhar o papel de um perito treinado mas, sim, em amor misturado com “fraque­za, temor e grande tremor” .20 Somente Deus pode fazer a luz di­vina brilhar na vida desta pobre alma em trevas. Somente Deus po­de plantar a semente de uma nova vida no seu coração, tão vazio e estéril. Somente Deus pode sondar até chegar à causa real da doença deste homem, e somente Deus pode curar. É puro privi­légio ser conclamado a fazer as vezes de ajudador para outra pes­soa em prol da qual Deus está procurando fazer tais coisas — para ficar ao lado dela, ou em pé ou sentado — até mesmo para fazer o trabalho de uma parteira! Mas quem dentre nós, mesmo com o melhor treinamento do mundo, pode em qualquer tempo realmente deixar de sentir-se inadequado e incapaz quando é chamado para semelhante obra?

A incapacidade de Daniel ao enfrentar a sua tarefa era mistu­rada (como a de Paulo) com temor. Esteve atônito por algum tem­po, e os seus pensamentos o turbavam (v.19). Está relutante e até quer recuar! Sabe muito bem que aquilo que terá que dizer ao rei, baseado num texto tal como este sonho, produzirá feridas e será de difícil aceitação, e não sente o mínimo vestígio de prazer, por­que ama o homem com quem se confronta, e acredita que o pró­prio Deus não tem prazer em tais ameaças. Tem horror à idéia de envolver qualquer pessoa num possível julgamento tal como a Pa­lavra de Deus pronuncia sobre a desobediência e a falta de escutar.

Na sua incapacidade, tudo quanto sente que pode fazer é confiar em Deus e indicar ao seu companheiro em sofrimento que ele, também, deve desviar a sua atenção do seu próprio problema e fraqueza, e olhar para Deus. Sendo somente Deus quem pode fazer o que precisa ser feito, Daniel não interpõe sua personalidade entre o rei e o seu sonho. Compete-lhe apenas agir como um ami-20 1 Co 2:3; Ef 4:2.

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go que espera, ajudando o rei a enfrentar com total honestidade a Palavra de Deus que até então lhe tinha sido endereçada de mo­do tão direto da parte do próprio Deus. Na tentativa de levar Nabu­codonosor a levantar os olhos ao céu (cf. v. 34ss.), faz suas palavras avançarem em direção a duas declarações: “O Altíssimo tem domí­nio” (v.25), e “O céu domina” (v.26). É um problema em muito “aconselhamento pastoral” por aí focalizar muito mais os olhos do paciente nos seus próprios problemas e estado interior, e mui­tíssimo pouco no próprio Deus. Nunca, porém, seremos bons con­selheiros cristãos até que possamos, de alguma maneira, dar às pes­soas a ajuda de que precisam mais urgentemente, a ajuda para olhar para fora de si mesmas, das suas emoções e da sua disposição de âni­mo, das suas dificuldades e problemas mentais, e “fitar os dois olhos” (conforme João Calvino enfatizava tão fortemente)21 na mi­sericórdia de Deus somente, e no seu poder também, conforme é revelado em Cristo. O problema de para onde, em última análise, vamos ensinar as pessoas a olhar é de importância vital nesta ques­tão de ajudar as pessoas nos seus problemas.

Mesmo assim, no meio de todo o seu “temor e tremor” a res­peito do aspecto severo da mensagem, Daniel nada reteve. Como Samuel quando recebeu a mensagem de condenação para Eli, e “te­mia relatar a visão”,22 Daniel deve ter sido severamente tentado a esconder algo do aspecto mais severo da palavra. Com simpatia, expressou o desejo de que a maldição do sonho tivesse recaído so­bre outros e não sobre o seu rei (v.19). Sabia, porém, que somente palavras de franqueza brutal poderiam ter a força suficiente para evitar a calamidade vindoura. Não poderia haver qualquer consolo barato e imediato para o homem diante dele nesta ocasião, e não deveria ser deixado com ele agora qualquer impressão de que tal coisa seria impossível. Logo, a completa abordagem de Daniel e todas as suas palavras fazem refletir diante do rei a natureza crí­tica da sua posição diante de Deus, e a urgência com que deve en­frentar a mensagem. A mensagem severa tinha de envolver o men­sageiro, também, com severidade.

Além disso, no meio de toda hesitação, Daniel se forçou a ser bem específico e deliberado na sua mensagem: “És tu, ó rei”

21 Instituías 3 .43 .22 1 Sm 3:15.

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(v.22), diz-lhe enquanto o ataca especificamente por causa do seu orgulho. “Portanto, ó rei", conclui, “põe termo em teus pecados pela justiça. . . e misericórdia para com os pobres” (v.27). Nabu­codonosor não podia interpretar este sonho como sendo algo sim­plesmente com o fim de apresentar-lhe algumas verdades novas e generalizadas sobre a vida mas, sim, como sendo algo para con­frontá-lo pessoalmente com um desafio específico e decisivo acer­ca dos pormenores do seu estilo de vida, da exata atitude mental que estava adotando naquele momento, e acerca daquilo que Deus queria que ele fizesse ali e então. Um homem menos corajoso do que Daniel teria embotado o fio da espada com que Deus estava procurando penetrar o coração para começar o processo da cura. Seria muito mais fácil e confortável fazer com que a mensagem fosse dissolvida em generalidades que deixassem uma boa impres­são momentânea mas que, no fim, nada realizassem de útil.

“Tu és o homem,” disse Natã a Davi23, e somente então o sermão eloqüente e hábil começou a realizar a sua obra. Tende­mos a esquecer-nos deste fato quando a nossa tarefa é entregar a Palavra. Aqueles dentre nós que somos pastores, quando começa­mos a pregar nossos sermões, muito freqüentemente deslisamos para uma aplicação da Palavra que é tão geral e vaga que ninguém poderá, de modo algum, ficar ofendido, e que nenhuma vida, de modo algum, poderá ser transformada. Tendemos a esquecer-nos deste fato também quando escutamos a Palavra. Com grande fre­qüência ouvimos (e lemos!) sermões baseados em textos que, leva­dos inteiramente a sério, deveriam vitalmente afetar o nosso pró­prio modo de viver mas, lastimavelmente, tudo que acontece é a nossa mente tornar-se muito ativa em aplicá-los ao mundo em ge­ral, ou a quem chamamos de “gente comum” .

A liçãoO que Deus quis dizer a Nabucodonosor mais do que qual­

quer outra coisa é resumido e declarado três vezes neste capítulo (vs. 17, 25, 32), que o Altíssimo tem domínio sobre o reino dos homens; e o dá a quem quer.

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0 SENHOR REINA! Nabucodonosor sabia disso. Mas onde? Nabucodonosor respondia: “Lá em cima!”

Ele estava errado, disse Daniel: “Aqui em baixo!” Era noReino dos homens que Deus queria que a sua vontade fosse feita: na Babilônia! Ardia com zelo para que os homens e mulheres, na­ções e reis ficassem à disposição dele para saberem o que deveriam fazer, e para que fizessem da sua palavra e vontade a base do plane­jamento político e social e das próprias vidas pessoais. Quão perto do Novo Testamento a palavra de Deus nos traz! Na mesma oração em que somos ensinados a dizer: “Pai nosso que estás nos céus” , também somos ensinados a dizer: “Faça-se a tua vontade, assim na terra como no céu” , pois o Deus Altíssimo se importa com a ma­neira de nos tratarmos uns aos outros em nosso lar, com o que faze­mos com o nosso corpo, e como tratamos dos corpos de outras pes­soas e lhes fazemos provimento com a política, com o sexo e com as diversões, e também com as igrejas, assim como Deus se impor­tava com a Babilônia.

Além disso, Deus dá a quem quer. “Quem pode herdar rei­nos?” pensava Nabucodonosor antes deste sermão ter-lhe sido pregado. E, naturalmente, respondia: “Os de nascimento nobre, os grandes, os poderosos, os autoconfiantes” ; e orava por este tipo de reino e por ele procurava.

Mas agora já passou por sua longa agonia, e um reino muito melhor do que aquele que procurava e estimava está-lhe sendo da­do de fato agora — assim como ele é - a um pobre homem que­brantado, objeto somente da graça de Deus, e disposto agora a vi­ver pela graça de Deus. “Ele o dá a quem quer, e até ao mais humil­de dos homens constitui sobre eles” (v. 17). Agora que ele mesmo lecebeu esta humildade, sendo levado ao ponto de saber, sem som­bra de dúvida, que nada tem para dar, nada para trazer, e que nada merece, então ele descobre que recebeu o reino. “Bem-aventurados os humildes de espírito, porque deles é o reino dos céus. . . Bem- aventurados os mansos, porque herdarão a terra.”24

O testemunho pessoal de uma alma convertida: sua pazA seção final deste capítulo assemelha-se a um dos salmos

24. Mt 5:3, 5.

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de açSes de graças pela libertação, que são tão freqüentes na Bí­blia. Mas o capítulo inteiro está na forma de carta. Quando come­çamos a lê-la pensamos que estamos para receber uma encíclica formal e paternal cheia de observações acerca do estado do mun­do, acerca das esperanças de uma sociedade humanitária, do bem- estar e da fraternidade. O rei Nabucodonosor a todos os povos, nações e homens de todas as línguas, que habitam em toda a ter­ra: Paz vos seja multiplicada! (v. 1). Já ouvimos outros sermões ou discursos que começavam assim, e imediatamente nos dispo­mos a adormecer!

O que se segue, no entanto, não diz respeito ao estado do mundo. Diz respeito, pelo contrário, ao estado da própria alma de Nabucodonosor. É uma história verdadeiramente pessoal acer­ca da sua conversão; de uma experiência religiosa que abriu os seus olhos, e transformou todo o seu ponto de vista e suas maneiras de viver. Diz respeito ao que Deus lhe fez como indivíduo. Sua ecumênica preocupação é simplesmente que o mundo inteiro saiba acerca dele mesmo e, através deste testemunho, saiba acerca de Deus e venha a conhecer, cada um por si, a paz que o escritor re­cebeu. “Paz vos seja multiplicada!” é para ele agora muito mais do que uma saudação epistolar formal. Significa que solucionou, no que diz respeito a si mesmo, a questão da sua própria falta de paz.

Sua evasão de Deus tem sido também uma evasão desta ques­tão em particular. Mas agora que a enfrentou, quer ajudar outras pessoas a enfrentá-la também; e tudo isto por quem edificou tanto, lutou tanto, possuía tanto, e já estava tão bem-sucedido! Mas nun­ca tinha achado em lugar algum coisa tão maravilhosa, que quer escrever sobre ela desta maneira ao mundo inteiro.

O testemunho pessoal de uma alma convertida: sua nova vida em Deus

Tendo podido levantar os olhos ao céu (v. 34) tomou-lhe a vir o entendimento. Duas vezes este fato é mencionado (vs. 34, 36), pois este tem sido o milagre físico e psicológico de que depen­deu tudo o mais. É possível que aqui esteja sendo dado um indício de que chegamos a estar em nosso juízo certo quando começamos

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a encarar e avaliar tudo o mais à luz das realidades celestiais.O teor inteiro do salmo sugere que a sua vida recebeu uma

nova orientação, e que assim foi libertado de uma vida sem alvo: “Tomou-me a vir o entendimento, e eu bendisse o Altíssimo (v. 34) . . . Agora, pois, eu, Nabucodonosor, louvo, exalço e glorifico ao Rei do céu” (v. 37). Achou alguma coisa maior do que a sua própria pessoa como alvo da vida; alguma coisa maior até mesmo do que o seu poderoso império. Ele mesmo está tio cativado e suas energias e capacidades e riquezas agora estão tão plenamente dedi­cadas a este alvo e fim, que é como se a totalidade do seu propó­sito para a vida se transformasse.

Foi libertado do isolamento, também. Detém-se a falar da transformação que, segundo ele sabe, todas as pessoas em seu re­dor viram acontecer em sua personalidade como resultado desta nova orientação em direção a Deus. “Buscaram-me os meus conse­lheiros e os meus grandes; fü i restabelecido no meu reino, e a mim se me ajuntou extraordinária grandeza” (v.36). Quase todos os ou­tros relances que temos deste homem é de alguém que vive em iso­lamento trágico, havendo pessoas em seu redor somente porque tem poder para compelir e recompensas para dar. Mas agora aconteceu alguma coisa que as pessoas podem sentir e ver, e as barreiras do iso­lamento no seu próprio ser estão sendo rompidas e as pessoas o pro­curam, assim como ele procura a elas. Ficou sendo aberto ao con­vívio, e reconhece que é chamado para ele.

Termina o salmo com um testemunho à sua libertação da soberba (v. 37). Este pecado já arruinou tudo quanto fez, separou-o de Deus, tomou-o difícil para conviver com ele, e deixou-o preo­cupado apenas com a sua própria glória. O começo deste salmo está estreitamente vinculado ao fim. Foi o que viu quando levan­tou os olhos ao céu (v.34) que o levou a tão profunda auto-humi- lhação. O grande sermão de Massillon no funeral do Luiz XIV, pregado em Notre-Dame e sem dúvida pregado à plena vista do caixão aberto do rei morto, começou com a exclamação, duas ve­zes repetida: “Somente Deus é grande!” Nabucodonosor desco­brira este fato e, portanto, descobrira o ponto de partida para uma vida de humildade “Seu domínio é sempiterno, e seu reino é de geração em geração” (v.34).

Jesus chamou de ‘Vida” o que Nabucodonosor achou. Fez alusão precisamente à questão que Nabucodonosor enfrentou

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aqui, ao falar acerca de como as pessoas poderiam perder, ou achar, e assim ganhar a sua vida.25 E insistiu na importância das questões acerca das quais lemos neste testemunho pessoal quando disse: “Que aproveita ao homem, ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?”26 Nabucodonosor, encaminhando-se para a conquista do mundo inteiro, foi salvo da desgraça pessoal. Para nós, ganhar o mundo e sofrer a perda da nossa vida pode ser muito fácil. É ca­so de deixarmo-nos ficar completamente absorvidos em solucionar toda questão ao nosso redor, menos esta questão ulterior que é negligenciada com demasiada freqüência.

Talvez para enfatizar as questões pessoais levantadas neste capítulo, o mesmo tema é retomado outra vez no capítulo seguin­te, e lá é inculcado com força ainda maior como questão de vida ou morte. Realmente, o alvo inteiro desta seção central do livro de Daniel é levantar esta questão da salvação pessoal. Neste capí­tulo, um rei é salvo porque a enfrenta frontalmente e responde com arrependimento e fé. No capítulo seguinte, seu sucessor é condenado porque recusa-se a agir assim. A despeito de toda a urgência dos negócios da comunidade ou do estado, até mesmo o rei nâo pode fugir a este desafio.

25 Mt 10:39; Lc 14:26; Io 12:25-26.26 Mc 8:36.

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Daniel 5

A FESTA DE BELSAZAR

Nabucodonosor e Belsazar: um notável contrasteA esta altura, vale a pena fazer uma pausa, a fim de obser­

varmos certos problemas críticos que precisam ser levados em con­sideração para maior exatidão histórica do texto de Daniel, no que diz respeito à época em que foi escrito, se no século VI a.C. ou em algum outro período. Convém notar que, embora estas ques­tões tenham certa importância, elas não afetam tão radicalmente a própria mensagem do livro, como muitas pessoas imaginam. Ao ler o quinto capítulo, tem-se a impressão de que o novo rei Belsazar (v. 1), era realmente filho de Nabucodonosor, que o suce­deu depois de sua morte. Quando Daniel se dirige a ele, refere-se a Nabucodonosor como sendo “teu pai" (v. 18). O texto sugere também que, no final do incidente em que fo i morto Belsazar, hou­ve um golpe militar pelo exército do imperador medo, Dario, que assumiu o poder na cidade (vs. 30,31).

Entretanto, todas as pesquisas históricas até agora nos dizem que na verdade Nabucodonosor não foi sucedido por qualquer parente consanguíneo mas, sim, por um usurpador chamado Nabo- nido; que o filho de Nabonido, Belsazar, nunca foi rei da Babilô­nia, e que ninguém chamado “Dario, o medo” , foi descoberto nos registros históricos; e que a Babilônia foi tomada por Ciro, o persa. Um dos relatos afirma que não houve luta quando a Babilônia caiu, e que o povo saudou a Ciro como herói. Outro relato nos conta

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que os invasores entraram na cidade às ocultas, e que Ciro, junta­mente com os seus oficiais, tomou o palácio real de surpresa, ma­tando o rei após uma fraca resistência.

Diante de tais evidências, a historicidade de Daniel pode ser defendida a partir de certos pontos. Por exemplo, a palavra “pai” pode ter sido usada no sentido não-específico de “predecessor” . Sugere-se também que o verdadeiro pai de Belsazar, Nabonido, por estar doente e ausente, teria provavelmente nomeado Belsazar co­mo regente quando a Babilônia caiu. Nestas circunstâncias, por­tanto, Belsazar seria reconhecido como “rei” . Pode-se também afir­mar que “Dario, o medo” , era outro nome de Gobiras, um oficial de Ciro, o rei persa, a quem este nomeara para governar a Babilô­nia por um período interino, depois de conquistar a província. Alguns procuram solucionar o problema de “Dario, o medo”, su­gerindo que era realmente Cambises, filho de Ciro, ou Astiages, o último imperador dos medos, que neste tempo era prisioneiro de Ciro, e que pode ter sido solto e colocado sobre o trono da Babilô­nia por um curto tempo.

Mas o mais provável é que, ao escrever esta parte do livro de Daniel, o maior interesse do autor não fosse relatar uma histó­ria em seqüência mas, sim, selecionar os fatos que conhecia de tal maneira que pudesse transmitir uma mensagem: os contrastes tão marcantes e que se destacam quando dois homens, historicamente tão próximos entre si, recebem a Palavra de Deus e a ela correspon­dem.

Se nos ativermos demais às questões levantadas pelos proble­mas históricos, talvez deixemos de observar o notável contraste que o livro tenta nos transmitir a esta altura: o contraste entre a palavra final de Deus a Nabucodonosor e a sua palavra final a Bel­sazar. Foi portanto de propósito que a tradicional história de Bel­sazar, com sua visão, seu julgamento e seu triste fim, foi colocada lado a lado com a história de Nabucodonosor, com seu sonho, seu julgamento e seu final feliz. Isto foi feito para demonstrar que, mesmo no mundo pagão, fora da esfera da vida interior de Israel, alguns homens parecem ser eleitos por Deus, ao passo que outros, paralelamente, parecem ser rejeitados. A intenção é ilustrar, da maneira mais vívida, que a Palavra que traz a vida a um pode tra­zer a morte a outro, e que a forma da Palavra de Deus é diferente em cada caso.

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Nabucodonosor, Belsazar e Daniel: até a mudança pode mudar!A lição que mais se destaca no contraste destes dois sobe­

ranos é a deteriorização que pode ocorrer até mesmo no rastro de uma reforma comunitária boa e sadia. É certo que da conversão de Nabucodonosor resultou uma mudança na Babilônia, tanto ética quanto nas atitudes, e o levou, sem dúvida alguma, a praticar a justiça e a demonstrar misericórdia aos oprimidos.1

Sabe-se que ao fim dos seus dias, enquanto ele colocava em prática sua culta diplomacia, muitos dos seus conselheiros e gran­des ficaram profundamente impressionados,2 e, sem dúvida, depois da sua morte procuraram seguir o seu exemplo. Mas parece que a visão se perdeu, que a força do movimento esgotou-se, que a pa­lavra originalmente inspirada perdeu vida pela repetição meramente imitativa. A história da conversão do imperador, que antes fora manchete, acabou se tomando uma vaga lembrança histórica, sem relevância aparente.3

Há um ponto de diferença central e decisivo ao passarmos do relato do reino de Nabucodonosor para o do seu sucessor. Ob­servamos que Nabucodonosor tratou com respeito e decência os vasos sagrados do Deus de Israel.4 Agora, vemos Belsazar usan­do-os de modo sacrílego, para acrescentar um pouco de novidade à sua última orgia de bebedeira (v. 3). Este tipo de comportamen­to, bem como qualquer consenso a ele, teria sido inadmissível no reinado anterior. A mudança de atitude foi radical, e veio a reali­zar-se com notável rapidez (pois apenas uns poucos anos separamo último sonho de Nabucodonosor deste acontecimento final). E, lendo nas entrelinhas, podemos ver outras tendências significa­tivas na mudança do estilo de vida e do conceito cultural. Nabu­codonosor tinha para com a educação um zelo que dificilmente podemos atribuir ao seu sucessor. Na realidade, parece que a per- missividade tomou o lugar da disciplina; e podemos imaginar que poucos dos conselheiros e grandes, que foram atraídos por Nabu­codonosor quando fez a sua última reforma, estariam entre os

1 4:27.2 4:36.3 5:18-23, esp. 22.4 1:2.

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cortesãos e libertinos que deram louvores aos deuses de ouro, de prata, de bronze, de ferro, de madeira, e de pedra (v 4), enquanto bebiam até ficarem ébrios na festa de Belsazar.

Os homens que levaram a efeito esta transformação adicio­nal na vida da Babilônia, Belsazar e seus pares, não eram fanáticos convictos, empreendendo uma campanha planejada contra Deus. Eles simplesmente deixaram as coisas correr e, muito casualmen­te, Daniel foi posto de lado. Nem sequer tinham respeito sufici­ente por ele, a ponto de se darem ao trabalho de persegui-lo.

A atitude de DanielA atitude de Daniel é notável. Ele devia ter motivos para

profunda preocupação, e provavelmente esperava que a obra de Deus, tão bem começada na geração anterior, se revelasse com uma influência certamente mais duradoura. Sem dúvida, a a decepção ensinou-lhe a saudável lição de evitar as rápidas avaliações feitas pelos meios de comunicação de massa quanto a mudança morais ou espirituais. Mas obviamente sua experiência não o tornou cíni­co, nem pessimista, nem retraído. Ele prosperou durante o reina­do seguinte. Continuou disponível o tempo todo e, tão logo foi chamado de volta ao cargo, reiniciou o seu trabalho, ainda procu­rando mudar as coisas para melhor.

Também aqui a Bíblia nos ensina a sermos tão otimistas quanto sóbrios nas expectativas que acalentamos quanto à reforma social, política e até mesmo eclesiástica. Não há necessidade de nos tomarmos cínicos quando procuramos transformar pessoas e situações. ■ Deus é o Deus que realmente opera as transformações. A Bíblia e a totalidade da experiência cristã dão testemunho de muitas reformas que ocorreram em vidas de pessoas e até mesmo em estruturas sociais, mudanças estas que sobreviveram a todos os ataques do tempo e a todos os testes da História. Mas às vezes a mudança, mesmo ocorrendo sob a intervenção direta de Deus, não cumpre suas promessas. Isto ocorre principalmente nos casos de rápidas transformações que são realizadas na “moral” de comuni­dades, e pode até mesmo aplicar-se às mudanças de estrutura em qualquer sociedade. Muitas vezes a situação levada a efeito por uma revolução, depois da primeira emoção do sucesso, decline pa-

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ra um nível inferior àquele que existia antes da mudança, e ali es­tagna. Tudo depende de se a visão que resultou nessa mudança pode ser mantida, e se a força da Palavra que a inspirou continua nova e poderosa, e se as pessoas envolvidas continuam a lutar em prol de mudanças ainda melhores.

Não devemos, portanto, confiar na mudança mas, sim, no Deus que a efetua e na Palavra que a comanda. Não devemos dar­nos por satisfeitos com uma transformação até certo ponto mas, sim, devemos procurar sempre levar o que foi efetuado à renovada crítica, a renovado poder e à renovada inspiração da Palavra de Deus. Devemos tomar o cuidado de nunca basearmos demasiada­mente as nossas esperanças nos sucessos que já tivemos.

Jesus disse muita coisa encorajadora acerca de sermos “sal”, “luz” e “fermento” ,5 e podemos, assim, exercer forte influên­cia no lugar onde estamos; mesmo assim, advertiu-nos de que, à medida que a História fosse avançando, o mal se desenvolveria la­do a lado com o bem,6 e delineou um quadro um pouco sombrio quanto ao tipo de governo a que seríamos submetidos com o decor­rer do tempo.7 O ensino do Novo Testamento, tanto quanto o do restante do próprio livro de Daniel, também nos adverte. Os gover­nantes podem ser muito bons e prestativos,8 mas, afinal de contas, o espírito anticristão que vive espreitando a igreja, e que até mes­mo vive dentro dela, pode facilmente introduzir a era da persegui­ção, que os cristãos também devem aguardar com paciência.9 De­vemos estar sempre alertas para o fato de que as pessoas ao nosso redor, conforme Deus advertiu a Ezequiel, podem ouvir ou deixar de ouvir.10 Qualquer que seja a esfera em que se acha a nossa ta­refa — no governo, na igreja ou na família — às vezes o que dize­mos e fazemos é muito aplaudido, realmente escutado e aceito. Mas outras vezes podemos nos sentir completamente “inoportu­nos” ,11 e isto pode significar que o nosso tempo realmente já pas­sou. Mesmo assim, devemos trabalhar com a mesma urgência e

5 Cf. Mt 5:13-16; 13:33.6 Cf. Mt 13:30.7 Cf. Lc 21:12ss.8 Rm 13:lss.9 Ap 13; 17:1 Oss.10 Ez 2:5.11 2 Tm 4:2.

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zelo, seja qual for a resposta visível, e esperar, vigiar e orar com a mesma confiança. Daniel aprendeu a esperar assim, e veio a hora em que as pessoas realmente o buscaram e o escutaram uma vez mais. As coisas ao nosso redor podem avançar tão rapidamente numa direção quanto na outra.

Nabucodonosor e Belsazar: o eleito e o rejeitadoOs dois homens em questão ficam no contexto de uma ltíjl-

ga série de personagens contrastantes dentro da Bíblia.As Sagradas Escrituras freqüentemente nos fazen /e:

traordinária natureza do efeito da graça de Deus sobr^ al^tis/ dos seus grandes eleitos, ao contrastá-los com outrasjpáàqa^ que pa­recem ter, em razão do próprio contraste, g m ^ \ b r á de rejei­ção lançada sobre elas. Ao lado de M ^ p o K e ^ m ip lo , temos Caim, que odiava a Deus e cometeu unria^m ihato. Paralelamen­te com Jacó, que depois de longaslumWfrègou-se a Deus, temos Esaú. Ao lado de Davi, há Saül. Épra-e os onze discípulos fiéis, há Judas. E assim temos Nabu^pdojwsdr e Belsazar.

O que é que, em .• ima análise e de modo básico, determi­na a diferença i íti c í s homens tais como Nabucodonosor e Bel- sazar, ou entre Jacó (eNB&àúv Entre aquele para quem Deus é predo- minanteme^eHmSjMgo misericordioso e salvador, e aquele outro, para quem^pèmyparece predominantemente como um juiz inexo­rável qüi. ibjjxiena? As Sagradas Escrituras atribuem toda a dife-

'soberania, sabedoria e graça de Deus. sempre um mistério por que um parece ser eleito e o outro

èitado. Um dos aspectos do mistério é a inescrutável decisão de Jeus: “Amei a Jacó, porém me aborreci de Esaú” . “Ele tem mise­

ricórdia de quem quer, e também endurece a quem lhe apraz” .^ Quando voltamos à narrativa bíblica e lemos de novo as histórias dessas personalidades contrastantes, somos obrigados a reconhecer este lado do mistério. Parece realmente que Deus escolhe e rejeita, levanta e abate. Não estamos sendo fiéis às Sagradas Escrituras se deixarmos de fazer esta ênfase.

Enquanto lemos essas histórias, porém, não podemos dei-

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xar de notar que também foi através de decisões pessoais e reais de cada pessoa diante do Deus gracioso que os propósitos dele fo­ram alcançados: a justiça total da operação da graça soberana édemonstrada ao deixar-nos ver que cada um recebeu aquilo que a resposta mereceu. A decisão humana, portanto, é vista como um fa­tor, ainda que secundário, que ajuda a determinar qual aspecto da dupla obra de Deus haveria de ter a preeminência dentro do relacio­namento divino-humano.

Parece não haver dúvida alguma de que a abordagem adota­da por Deus para com cada um destes dois, o eleito e o rejeitado, foi a mesma desde o início. Não é da vontade dele que ninguém pereça.13 Ele sempre prefere um ato de misericórdia a um ato de julgamento. A misericórdia é própria dele; ele se deleita nela. O julgamento lhe é estranho;14 é o lado dele onde cai a sombra, e deseja que sempre seja assim. Logo, ele vem primeiramente e sem­pre aos homens e às mulheres em misericórdia; e já vimos como Na- bucodonosor abriu a sua vida, e descobriu que realmente a estava abrindo em resposta à misericórdia de Deus.

O rejeitado escolhe a sua rejeiçãoO que se diz de Belsazar? O próprio fato de ser colocado

tão de perto, lado a lado com Nabucodonosor, permitindo-nos fazer uma total comparação, autoriza-nos a asseverar que ele esta­va em condições de receber exatamente a mesma graça, embora, talvez, numa forma diferente. Temos uma indicação de que ele sabia (v. 22) da notável experiência de Nabucodonosor e não ig­norava o seu testemunho. É razoável supor que, ao começar o seu reinado, ele poderia ver é ouvir, se assim o desejasse, o bastante pa­ra convencer-se da autenticidade dos motivos de seu predecessor. No entanto, recusou-se a corresponder de qualquer forma a esta graça que havia ao seu redor. À palavra não foi concedido nenhum lugar interior onde pudesse operar, nenhuma base para raízes. Lo­go, pela graça de Deus, o absurdo teve de acontecer. O lado som­brio ou lado de baixo da obra e da atividade de Deus teve que as-

13 Ez 18:23, 32.14 Mq 7:18; Is 28:21.

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sumir a preeminência. Belsazar, ao optar pela sua livre vontade, viu-se de encontro com um Deus que resolvera adotar um cami­nho que lhe era “estranho” ; assim, deliberadamente, escolheu con­templar o rosto da ira e não o da graça de Deus.

Aquele que foi rejeitado é considerado responsável por ter escolhido esta condição. Isto sempre aconteceu a cada um que claramente justificou o que aconteceu. As Escrituras Sagradas, no entanto, não procuram dar quaisquer razões para a salvação dos eleitos. Nem sequer procuram colocar tudo junto, para de­monstrar como o mistério da escolha do homem se encaixa de mo­do lógico, ou até mesmo justo, no mistério da decisão de Deus. As realidades da vida e da fé, conforme se demonstra nesta ques­tão, não se enquadram na nossa lógica humana.

0 que parece estar bem claro nesta confrontação dinâmica é que, quando Belsazar disse não a Deus, de modo tão perverso, a sua recusa serviu somente para demonstrar, justificar e selar por seus atos o fato de que Deus lhe estava dizendo não! E Deus esta­va dizendo não com o seu poder onipotente e o seu zelo indestru­tível a que correspondia também por outro lado o seu desejo de salvar esse homem perdido. Deus sempre é Senhor, mesmo quando o homem está sendo perverso e condenando-se à perdição porque se recusa a ser salvo. Portanto, Belsazar foi rejeitado, ao passo que Nabucodonosor foi eleito. Porém aquele que foi rejeitado delibe­radamente escolheu a sua rejeição, e o que foi eleito, deliberada­mente correspondeu à graça que o salvou.

Nabucodonosor: misericórdia e julgamentoNão podemos encarar unilateralmente qualquer encontro

que tenhamos com Deus. Não importa o que Deus diga e faça ao falar com homens e mulheres: quer ele os salve, quer os condene com uma palavra ou ação, sempre parecem surgir diante de nós dois lados da atividade e da existência de Deus; um deles revela misericórdia, e o outro, justiça. Na misericórdia encontramos o julgamento justo. Não somos “aceitos” por Deus sem, ao mesmo tempo, sermos julgados e condenados pelo mesmo Deus que nos está justificando. Ele nunca nos toma íntegros sem, ao mesmo tempo, quebrar-nos, pois, quando nos tomamos uma “nova cria-

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tura” , as coisas velhas são “passadas” .15Contudo, mesmo quando a nossa experiência é dominada

pelo julgamento temível e esmagador de Deus, como pode acon­tecer, de modo algum podemos deixar de encontrar o seu aspec­to misericordioso.

Até este ponto, a narrativa do livro de Daniel nos tem mos­trado que, no caso de Nabucodonosor, a misericórdia atua ao la­do do julgamento. Através de todas as experiências que ele teve, sob a pressão da graça de Deus, não há a mínima dúvida de que este homem é paulatina e suavemente conquistado para o serviço de Deus. A palavra é até mesmo “soprada” , por assim dizer, de dentro da sua mente para os seus sonhos. Mesmo quando o obser­vamos passando pelo duro tratamento de choque no fim dos seus dias, não há alteração alguma no fato de que Deus então encami­nha as coisas para um propósito positivo. Não deixa de desempe­nhar o papel de alguém que se importa e que está ali para conquis­tar pela amizade este homem para si mesmo. A misericórdia está em primeiro plano, e o julgamento, em segundo.Belsazar: julgamento e misericórdia

Mas quando passamos de Nabucodonosor para Belsazar nos seus últimos dias, a abordagem de Deus parece ser completamen­te diferente. O julgamento está em primeiro plano, e a misericór­dia em segundo. Este não é um caso de amizade mas, sim, de julgamento frio, inabalável, cuidadosamente calculado. O clima é o de um tribunal; ou, melhor, de uma antecâmara de carrasco. Desta vez a Palavra de Deus não vem, como no caso de Nabucodo­nosor, associada a algo familiar: as imagens de seu próprio sonho. Agora ela irrompe sobre Belsazar, confrontando-o duramente com a escritura na parede, de uma forma estranha, ameaçadora e infle­xivelmente objetiva. Vem com uma estranheza tão ameaçadora que a reação dele só poderia ser de medo supersticioso e de terror. O contraste é tão notável que até parece ser um “Deus diferente”.

E foi isso que aparentemente aconteceu, naquele último dia de vida de Belsazar. Sabemos que não se tratava de um “Deus di­ferente”, e que no meio de tal juízo final houve pelo menos um

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sinal de misericórdia, pois Daniel estava presente para ajudá-lo a arrepender-se, se ele quisesse. Podemos seguramente afirmar que o incidente da escritura na parede foi apenas o clímax de um lon­go processo através do qual este homem agora veio saber exatamen­te o que estivera rejeitando quando recusou-se a seguir pelo cami­nho de Nabucodonosor. O Deus que tanta severidade mostrou a Belsazar era o mesmo que usara de misericórdia para com Nabuco­donosor. Tanto o caminho de um homem quanto o do outro re­velam aspectos verdadeiros e dignos do mesmo Deus amoroso e gracioso.

Quando Paulo escreveu, dando exemplos da bondade e se­veridade de Deus, acrescentou uma advertência: “Não te ensober­beças, mas teme” .16 Quando a Bíblia nos mostra, de modo tão claro e deliberado, histórias de degradação, de tragédia e de desgra­ça, como o caso de Belsazar, lado a lado com histórias tais como a de Nabucodonosor, não devemos imaginar que somente esta últi­ma tenha relevância e que não há possibilidade alguma de seguirmos pelo caminho de Belsazar. Este homem também está aqui para que aprendamos com ele. Sua história destaca-se como um aviso no al­to de uma rocha perigosa, advertindo-nos a manter distância e mos­trando-nos a direção do canal onde a navegação é segura. Adver­te-nos de que todos nós podemos facilmente deslizar para o hábi­to de não levar Deus a sério, o que pode levar paulatinamente, atra­vés do contínuo descuido e de um endurecimento silencioso e infle­xível da mente e das atitudes, a formas mais profundas e sérias de resistência, até cessarmos de nos importar com o que anteriormente nos teria comovido, e de ter vergonha ou de enrubescer17 diante do que antes nos teria chocado.

Podemos chegar cedo demais a este ponto de desastre, a não ser que conheçamos a nossa fraqueza, precavendo-nos contra ela. É por esta razão que a história de Belsazar está aqui; não simples­mente para ser lida com interesse como uma descrição vívida (po­rém irrelevante para nós) do caminho dos ímpios mas, sim, para fi­car como firme advertência àqueles que dentre nós crêem ainda es­tarem na graça. Nós devemos ficar “atentando diligentemente por que ninguém seja faltoso separando-se da graça de Deus” .1816 Rm 11:20-22.17 Cf. Jr 6:15.18 Hb 12:15.

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A escritura na paredeBeberam o vinho, e deram louvores aos deuses de ouro, de

prata, de bronze, de ferro, de madeira, e de pedra. No mesmo ins­tante apareceram uns dedos de mão de homem, e escreviam, de­fronte do candeeiro, na caiadura da parede do palácio real; e o rei via os dedos que estavam escrevendo. Então se mudou o semblan­te do rei, e os seus pensamentos o turbaram; as juntas dos seus lom­bos se relaxaram, e os seus joelhos batiam um no outro (vs. 4 a 6).

É um quadro inesquecível. 0 clima do dia da condenação fi­nal vem à tona tão logo a mão começa a escrever. É por sentir isto que todo o ser físico de Belsazar é tão profundamente convulsio­nado. Daniel explica claramente a desgraça iminente, ao ler e tra­duzir: MENE, MENE, TEQUEL e PARSIM (v. 25).

As três palavras aqui empregadas são interpretadas por al­guns como representando três pesos numa escala descendente: “uma tonelada, um quilo e uma grama” , ou “mil cruzeiros, um cru­zeiro, um centavo” . A simples leitura destas palavras com tal senti­do teria sido suficiente para advertir o rei de que ele realmente es­tava no caminho da degeneração e que aviltara a totalidade da con­dição e do valor do seu reino, a ponto de ser rejeitado por Deus.

Tendo lido as palavras apenas superficialmente, Daniel então passa a acrescentar-lhe um significado misterioso a partir das con­soantes que compõem cada palavra, voltando-se para os significa­dos originais contidos na sua raiz. Surge, portanto, para Belsazar, um tríplice significado adicional:

MENE = contado, e pronto para a vendaTEQUEL = pesado, e achado em falta quanto à subs­

tânciaPARSIM = dividido, i.é, entregue aos medos e aos persas

O ato de sacrilégioUm fato notável no sermão de Daniel é que o único pecado

específico pelo qual Belsazar é condenado não é a sua intemperan­ça nem a sua livre entrega às coisas sensuais, mas simplesmente o seu deliberado ato de sacrilégio. Mesmo assim, talvez fiquemos

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perplexos, sem entender por que uma ação tão aparentemente tri­vial trouxe consigo tão severo julgamento. Por que Deus faria tanto alarde por causa do uso de um jogo de taças de ouro prove­nientes de um templo que, segundo parecia, ele havia abandonado, e que pertencia a uma era que já estava no passado? Além disso, poder-se-ia argumentar que nenhum ser humano foi diretamente lesado pelo que foi feito. O fato não envolveu crueldade alguma, nem qualquer desumanidade da parte daqueles homens.

Que relevância especial, portanto, tinham estes vasos sagra­dos, a ponto de o abuso deles ser considerado um pecado tão se'rio? A tradição de Israel ensinava que Deus escolhia certas pessoas e certos objetos para seu próprio uso especial. Simplesmente por cau­sa da escolha dele, e não devido a qualquer qualidade inerente que possuíssem, estas pessoas ou coisas deviam ser consideradas sagra­das e eram chamadas santas. Por exemplo, o povo de Israel como nação é chamado na Bíblia de povo santo, porque Deus assim o chamou.19 O templo é chamado o lugar santo, porque Deus o es­colheu como sua habitação, onde se encontraria com o seu po­vo.20 Ale'm disso, Deus estabelecera para este templo um culto com um ritual esmerado. Havia certas coisas e pessoas especialmen­te separadas e consagradas exclusivamente para serem usadas no culto do templo. Essas pessoas e coisas — o sacerdócio, as vestes, o altar, os vasos usados sobre este, os candelabros — eram conside­radas como tendo uma santidade especial, simplesmente porque Deus as escolhera, declarando-as separadas e destinando-as para este tipo de serviço.21 Quando o templo ficou pronto, com os acessórios que lhe foram dedicados, o próprio Deus veio numa nuvem e encheu todo o lugar com a sua glória, como que acei­tando todas estas coisas para o seu culto para sempre.22

Outra maneira de indicar que o altar e os vasos do templo tinham uma santidade especial era dizer que Deus colocara o seu nome sobre ele,23 de modo que, quando fossem usados no culto e o seu nome fosse invocado na oração e na adoração, ele honra­ria e abençoaria o uso santo para o qual foram separados.19 P.ex.: Dt 7:6-8.20 Cf. £ x 29:43-46; 1 Rs 8:10; 9:321 P.ex.: Éx 40:9-11.22 C f.É x40:34, 35; 1 R s8 :1 0 ,11.23 a . Dt 12:11.

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Belsazar tinha feito mal uso daqueles acessórios que tinham sido separados para o uso exclusivo de Deus, aqueles com os quais Deus ligara o uso do seu nome de uma maneira tão graciosa. Tra­tar tais vasos com desprezo era um desafio contra o terceiro man­damento: “Não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão, por­que o Senhor não terá por inocente o que tomar o seu nome em vão”.24 Este mandamento não é simplesmente uma proibição do praguejar ou do perjúrio. É uma proibição a qualquer tipo de uso pervertido ou vão daquilo que Deus nos deu visando ao propósito de buscarmos a sua presença e de conclamarmos o seu nome na oração e na adoração.

Além disso, quando Belsazar ostentou os vasos na sua mesa e fez do abuso deles o ponto alto da sua orgia, houve desafio e pre­sunção no seu ato. Era realmente um sinal de que acreditava que esse Deus, de cujos vasos estava abusando e cujo nome estava in­sultando, não tinha agora na Babilônia qualquer realidade ou po­der. Belsazar contava com a ausência desse Deus. Havia, portan­to, na sua ação, um desafio ao Deus de Israel. Belsazar desprezou as coisas santas porque desprezava a Deus; e espatifou-se contra a rocha do Deus de Israel. Agora Belsazar teria de aprender que esse Deus era o Deus vivo, sempre vigilante quanto aos seus pró­prios interesses, bem como aos interesses do seu povo e da huma­nidade, nunca descartando facilmente aquilo que reservara para a sua propriedade exclusiva, e que, portanto, dotara de santidade e separara para o seu uso especial ao aproximar-se dos homens e das mulheres.

Os vasos do Senhor1Em todas as eras, os homens e as mulheres são submetidos

ao mesmo teste. Ainda hoje Deus tem vasos santos e nós também, freqüentemente, somos testados quanto ao seu uso ao abuso, quan­to ao nosso cuidado ou descuido para com eles. Hoje costuma­mos chamá-los de meios de graça, aos quais Deus de modo defini­tivo e decisivo atribuiu o seu nome quando, em Jesus Cristo, veio, viveu, morreu e ressuscitou. Estes meios de graça são a Palavra

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e as ordenanças (o batismo e a Ceia do Senhor). Nós os recebe­mos da parte de Deus como sinais aos quais ele resolveu vincular a sua presença e o seu poder na nossa adoração. O perigo para a maioria de nós, hoje, não é tanto o de cometer o tipo de sacrilé­gio de Belsazar. Tal comportamento grosseiro é hoje geralmente castigado pela lei como delito criminoso. Nossa tentação é simples­mente usar descuidadamente e negligenciar de forma leviana estes meios da graça de Deus. Tratamos a igreja, os cultos e a adoração como se não tivessem maior relevância do que a lanchonete ou o bar; e às vezes falamos como se eles tivessem perdido sua relevância até mesmo para o próprio Deus.

No Novo Testamento, os membros da igreja são advertidos nos termos mais severos contra este tipo sutil de sacrilégio,25 espe­cialmente contra o descuido no uso da Ceia do Senhor,26 contra uma aproximação casual da vida e da adoração em comunidade.27 Não devemos imaginar tão facilmente que, porque nós mesmos es­tamos ávidos pelo progresso e pela mudança, isto signifique neces­sariamente que Deus perdeu a sua solicitude e o seu cuidado para com as coisas que nomeou para serem dele e que destinou para serem os meios de Sua graça. É certamente verdade que o próprio Deus tem Uberdade para limpar os seus armários, por assim dizer, e descartar como obsoleta qualquer coisa que já honrou e usou no passado. Nós mesmos, porém, nunca estamos livres para des­cartar, como Nabucodonosor, ou para abusar, como Belsazar, da­quilo que Deus santificou pela sua própria escolha e uso. E, por nossa própria iniciativa, nunca devemos pressupor que ele aja assim,

Podemos pensar numa aplicação ainda mais ampla da expres­são “vasos do Senhor” . Na vida da igreja há uma gama inteira de vasos que,.para ele, são mais sagrados do que imaginamos. Um co­mentarista recente assemelha o jogo de vasos que Belsazar profa­nou às formas de linguagem conceituai e de linguagem figurada que Deus empregou na Bíblia, e tem empregado na igreja também, no decorrer dos séculos. Semelhante aplicação pode ter especial relevância para todos nós que trabalhamos freqüentemente com as Sagradas Escrituras, e em estreita conexão com elas, à medida

25 Mt 21:13.26 1 Co ll:27ss.27 1 Co ll:17ss.; 10:21; At 5:lss.

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que debatemos e formulamos nossa teologia e ética, e enquanto ensinamos e pregamos. Em todos estes processos, a Bíblia, ao ser usada, deve ser analisada e estudada de modo científico. Du­rante este processo, olhamos para ela a partir de todos os pontos de vista que usaríamos no exame de qualquer outro livro. No meio desta atividade, porém, o modo de manusearmos as Sagra­das Escrituras pode tomar-se um verdadeiro reflexo da nossa pró­pria atitude, profunda e interior, diante de Deus. Mesmo ao usar­mos a melhor erudição do mundo, enfrentamos o desafio: estamos, ao mesmo tempo, atribuindo a ela uma reverência sem igual como sendo realmente santa, ou a estamos profanando? Devemos lem­brar, também, que não somente as palavras como também a forma de pensar e a linguagem figurada que nos são dadas através do li­vro têm a sua própria santidade e podem, portanto, ter uma vali­dade sem igual para nós, em todas as eras. O passar do tempo não faz com que Deus se esqueça do que é antigo e o descarte, co­mo nós (com a nossa febril ânsia de mudanças) constantemente imaginamos.

Tampouco devemos esquecer que Deus empresta a sua pró­pria imagem a todos os homens e mulheres, e que o abuso da perso­nalidade e da liberdade pode tornar-se um ato tio sacrílego quanto o que levou Belsazar à ruína. Nem devemos esquecer-nos de que, por pertencermos a ele, os nossos corpos são “os membros de Cris­to” , e o “templo do Espírito Santo” dentro de nós.28

A essência do pecadoO comportamento de Belsazar e a interpretaçlo que Daniel

faz dele ajudam-nos a compreender o ensino bíblico acerca do que o pecado realmente é em essência. Daniel enfatiza que Bel­sazar conhecia plenamente as implicações do que estava fazendo: iSabias tudo isto. E te levantaste contra o Senhor do céu (vs. 22. 23). Seu pecado foi uma escolha absurda e deliberada a favor das trevas, em contraste com o pleno brilho da luz.

No Novo Testamento, o apóstolo Paulo define este caráter essencial do pecado como sendo “inimizade contra Deus” ,29 e mos-

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tra que, nessa hostilidade, o homem deliberadamente perverte qual­quer verdade de Deus que conhece, transformando-a em mentira.30 O apóstolo Jo£o o define como sendo “transgressão da lei” ,31 e amor às trevas mais do que à luz.32 Aqui, já no livro de Daniel, descobrimos que o que faz com que o pecado seja realmente peca­do é a decisão da vontade, à plena luz do conhecimento, no senti­do de não receber a graça de Deus, nem reconhecer a sua luz, nem guardar a sua lei mas, sim, com ódio dele, preferir as trevas e a trans­gressão. Em tal atitude e decisão da vontade contra o Deus vivo, há sempre o elemento irracional, demoníaco e absurdo (conside­ração esta que retomaremos em nossa próximo estudo).

Jesus, quando estava caminhando para a cruz, expressou cla­ramente o seu próprio sentimento profundo a respeito daquilo que lhe faziam as pessoas ao seu redor. O que o horrorizava na atitude deles era exatamente o que horrorizava Daniel quando à atitude de Belsazar para com Deus. Era a escolha absurda e deli­berada das trevas ante o pleno brilho da luz, sua absurda e delibe­rada escolha do caos ao invés da ordem; da morte ao invés da vida. Nas suas advertências, Jesus ressaltava que eles deliberada­mente exerciam uma vontade maligna. “Não quereis vir a mim” .33 “Quantas vezes quis eu reunir os teus filhos . . . e vós não o qui­sestes!”34 No clímax da sua parábola dos lavradores maus, ele demonstrou aos homens que detinham o poder em Jerusalém que a decisão absurda e perversa de rejeitá-lo e matá-lo era feita de ple­na consciência. “E por último enviou-lhes o seu próprio filho, di­zendo: ‘A meu filho respeitarão’. Mas os lavradores, vendo o filho, disseram entre si: ‘Este é o herdeiro; ora, vamos, matemo-lo, e apo- deremo-nos da sua herança’.”35

A palavra pastoral na undédma horaDaniel estava presente para Belsazar assim como estivera pre­

sente para Nabucodonosor. Apenas aguardava ser chamado; estava pronto para falar. Estava ali para representar o próprio Deus, e

30 Rm 1:18-25. 33 Jo5:40.31 1 Ho 3:4. ■ 34 Mt 23:37.32 Jo 3:19. 35 Mt 21:37,38.

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possuía o socorro divino para o miserável homem que se encontra­va diante dele. Não seria este um sinal de que Deus ainda espera­va até mesmo o arrependimento da undécima hora por parte desse homem, mesmo diante do desafio brutalmente definitivo da escri­tura na parede? Os expositores às vezes seguem esta linha, e ofe­recem ilustrações como, na Bíblia, outros homens chegaram a Deus, arrependidos, no último momento. Se tal reviravolta tives­se acontecido (e quem pode dizer que não, poderia ter aconteci­do?), Daniel falaria o mesmo tipo de palavra pastoral salvadora que falara a Nabucodonosor anos antes.

Mas tal palavra não veio a Daniel, e não poderia vir. A ati­tude dele agora é estranha. Para com Nabucodonosor, demonstra­ra profunda preocupação. Até mesmo pronunciara o desejo de queo julgamento que estava anunciando da parte de Deus caísse so­bre os inimigos de Nabucodonosor e não sobre ele.36 Para Belsa­zar, prega como alguém que está em pé no outro lado de um gran­de abismo. Da parte de Nabucodonosor, aceita recompensas e honrarias. Perante Belsazar, no entanto, sua primeira reação é di­zer bruscamente: Os teus presentes fiquem contigo, e dá os teus prêmios a outrem (v. 17). A Nabucodonosor faz um apelo evange- lístico, para uma transformação da mente, do coração e da vida. A Belsazar prega um sermão sem indícios de qualquer apelo. Tudo, quanto faz é relatar os fatos que justificam a condenação pronun­ciada na escritura da parede. Belsazar conhecia a verdade que o poderia ter salvo, e não obedecia a ela.

Podemos entender o que Daniel está fazendo. Não está ali para dar expressão aos seus próprios sentimentos e pensamentos. Está ali, como estivera diante de Nabucodonosor, para testificar daquilo que acreditava ser a palavra e a atitude de Deus. Não ou­sou dizer nada a mais e nada a menos do que disse. Mas não pode­mos deixar de acreditar que Daniel estivesse angustiado quanto à sua própria pessoa ao agir assim, sabendo que ele também compar­tilhava da mesma humanidade que havia nesta vida dissipada e con­denada; sabendo, também, que somente a graça incompreensível de Deus salvaria o rei da condenação que agora pronunciava; e ora­va para que Deus ainda tivesse misericórdia desse infeliz Belsazar, de sua parte, adotara uma posição e escolhera um destino em cuja

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direção Daniel certamente não poderia deixar o seu coração e sua mente se inclinarem com simpatia, e em que não poderia entrar em nome de Deus.

A honestidade e a severidade do amorQuanto a nós, devemos perguntar-nos se podemos refletir

com fidelidade a verdade de Deus, pois apenas em seu nome po­demos adorar, orar e trabalhar com pessoas, a não ser que, eventu­almente, e em certas circunstâncias, estejamos dispostos a ficar à parte, como fez Daniel, pleiteando a uma certa distância e apre­sentando o mesmo tipo de severa advertência. Há atitudes, com­prometimentos e estilos de vida que alienam desesperadamente de Deus os homens e as mulheres. Devemos lembrar-nos de que até mesmo Jesus ficou em silêncio quando ao ser julgado enfrentou um homem como Herodes.37 A mensagem do evangelho para tais homens não é que Deus se reconcilia com eles, nem que se “iden­tifica” com eles onde estão mas, sim, que ele os conclama a aban­donarem os seus caminhos e a se reconciliarem com ele. A não ser que aprendam a aceitar a Deus como ele é e as coisas conforme ele determina, não poderão ter qualquer esperança de vir a ele, conviver com ele e estar em comunhão com aqueles que o amam.

Logo, não devemos julgar Daniel com tanta severidade por não ter feito qualquer apelo evangelístico direto. Devemos, pelo contrário, admirar a sua ousadia e coragem. Assim como aparece às vezes um lado sombrio na Palavra de Deus, assim também pode aparecer, às vezes, uma sombra nos cuidados pastorais dados em no­me de Deus, bem como, eventualmente, um caso raro e raras cir­cunstâncias em que o pastor, se for honesto, pouco mais terá a fa­zer senão advertir.

A própria igreja sempre reconheceu que, lado a lado com um simpático cuidado pastoral e sua receptividade evangélica, tam­bém deve eventualmente exercer uma disciplina muito mais seve­ra. Esta inclui o recusar-se a fechar os olhos diante do desafio fla­grante, aberto e persistente contra aquilo que Deus ama e ao qual já disse ‘sim’ em Cristo. Envolve a severa repreensão contra a apro-

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vação daquilo que Deus odeia e ao qual já disse ‘não’ em Cristo, e contra a persistente entrega a tal fato. Envolve a ordem dada aos homens e às mulheres no sentido de desistirem de tal compor­tamento, e uma advertência referente a suas conseqüências. A igreja, ao exercer este tipo de cuidado pastoral, às vezes tem che­gado não somente ao ponto de repreender e advertir as pessoas, como também de excomungá-las, excluindo-as da comunhão da mesa do Senhor até que expressem arrependimento e se disponham a uma mudança. A igreja primitiva punha em prática tal discipli­na porque o próprio Jesus a ensinou, e suas palavras sempre eram citadas:

“Se teu irmão pecar contra ti, vai argüi-lo entre ti e ele só. Se ele te ouvir, ganhaste a teu irmão. Se, po­rém, não te ouvir, toma ainda contigo uma ou duas pes­soas, para que, pelo depoimento de duas ou três teste­munhas, toda palavra se estabeleça. E, se ele não os atender, dize-a à igreja; e, se recusar ouvir também a igreja, considera-o como gentio e publicano.”38O objetivo de tal disciplina era sempre que o transgressor

chegasse a uma compreensão realista e pessoal da verdade de Deus, voltando-se finalmente a ele com um verdadeiro arrependimento, pois não pode haver qualquer comunhão ou amor que não esteja na verdade. A esta altura, devemos olhar mais uma vez para Da­niel, e no múiimo reconhecer que ele está apontando numa dire­ção saudável e correta.

O pano de fundo da tragédia humanaBeber o vinho junto com os seus mil convidados foi o pon­

to culminante da festa, como deliberadamente é destacado: enquan­to Belsazar bebia e apreciava o vinho é que ele teve a ousadia de ir mais longe do que iria se estivesse sóbrio; foi quando ele chegou ao ponto de mandar trazer os vasos do templo de Jerusalém, a fim de lançar publicamente um desafio ao Deus de Israel (vs. 1-3).

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Não é o fato de beber vinho que a Bíblia condena. Ela nun­ca afirma que o álcool em si é essencialmente mau. Há na verdade até um texto que dá graças a Deus pelo “vinho, que alegra o cora­ção do homem”.39 E há outro texto que recomenda o seu uso pa­ra animar quem está em amarga angústia.40 E não ignoramos que Jesus, decerto para salvar a situação numa festa de casamento, transformou água em vinho, em Caná.41

Mesmo assim, a Bíblia nos adverte com muito mais freqüên­cia que a embriaguez é a causa de um número enorme de tragédias humanas. Torna Noé42 e Ló43 desavergonhados e vergonhosos na sua vida familiar. Toma Assuero primeiramente alegre e depois cruel e insensato no modo de tratar a esposa.44 Traz a Ben-Hada- de uma denota militar totalmente sem razão de ser.45 Isaías men­ciona que ela é uma das causas principais da injustiça social e da ruína nacional.46

A história de Belsazar enfatiza todas estas advertências, e vai além. No momento em que tudo poderia ter-se alterado, caso Belsazar tivesse se arrependido, o seu estado mental e físico foi um fator, talvez até mesmo o principal fator, que contribuiu para que ele deixasse de salvar-se, face à crise espiritual que se apossou dele. No momento em que Deus fazia a sua chamada final, Belsazar es­tava bêbado. Talvez até mesmo o seu ato final de vestir Daniel com honra fosse uma encenação teatral produzida pela bebedeira, e quem sabe ele nem sequer sabia o que estava fazendo. O vinho, que usara de modo tão eficaz para ajudá-lo e desligar-se da vida e da realidade, agora contribuía para cortá-lo da graça de Deus.

Poderemos avaliar mais exatamente o que a Bíblia diz em geral acerca do uso do vinho se deixarmos de nos preocupar com a questão,de ser certo ou errado. A Bíblia não discute isso nes­ses termos. No livro de Provérbios, porém, muitas das grandes questões da vida são discutidas a fim de demonstrar o que é sá­bio, o que é perigoso, o que é loucura e o que é fatal. O uso do álcool é bastante discutido neste contexto.4® Vale a pena citar uma dessas passagens inesquecíveis:

39 SI 104:15. 44 Et l:10ss.40 Pv 31:6. 45 1 Rs 20.41 Jo 2:1-11. 46 P. ex.: Is 5:11,22; 2 8 :1 ,7 ,842 Gn 9:20ss. 47 P v20:1; 23:19ss.; 31:4ss.43 Gn 19:30ss.

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“Para quem são os ais? para quem os pesares?para quem as rixas? para quem as queixas?

Para quem as feridas sem causa? e para quem os olhos ver­melhos?

Para os que se demoram em beber vinho,para os que andam buscando bebida misturada.

Não olhes para o vinho, quando se mostra vermelho, quando resplandece no copo, e se escoa suavemente

Pois ao cabo morderá como a cobra, e picará como o basilisco.

Os teus olhos verão coisas esquisitas, e o teu coração falará perversidade.

Será como o que se deita no meio do mar, e como o que se deita no alto do mastro,

e dirás: Espancaram-se, e não me doeu;bateram-me, e não o senti; quando despertarei?

Então tomarei a beber.”48

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Daniel 6

A COVA DOS LEÕES

O mistério da iniqüidade

Então o mesmo Daniel se distinguiu destes presidentes e sá- trapas, porque nele havia um espirito excelente (v.3). Ele tinha alguma coisa que faltava nos outros, aquele algo mais carismático, um revestimento do Espírito de Deus, sob cuja inspiração Daniel fazia continuamente o seu trabalho. Assim, isto o tornava sempre extraordinário no enfrentar e vencer dificuldades. Essa inspira­ção revelava-se até mesmo em tarefas que eram em si mesmas bem comuns. Expressava-se especialmente na pura força do seu cará­ter, na sua personalidade atraente, na integridade com que se condu­zia nas tarefas administrativas e na sabedoria sobrenatural com a qual via o âmago das situações e fazia julgamentos práticos. A Ba­bilônia tinha necessidade deste excelente espírito. Logo, Daniel atraía a atenção da maioria dos reis para quem trabalhava, e estes lhe confiavam importantes cargos administrativos.

Confiavam nele como se fosse um bom babilónico, e em tudo Daniel era leal à sua pátria adotiva. Servia-a com genuína solici­tude e afeição, e teria passado em qualquer teste que lhe fosse fei­to. Seu estilo de vida, sob diversos aspectos, era o mesmo daque­les que o rodeavam. Seu sotaque era nativo e, à primeira vista, nenhum de seus filhos podia ser distinguido dos demais da rua. Fizera tudo quanto era possível para qualificar-se como cidadão.

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Daniel era um cidadão da Babilônia, um babilônio.Mesmo assim, era odiado, especialmente por seus colegas, ou­

tros estadistas da administração; e este ódio era frio e decidido, visando a sua destruição. Era o que o Novo Testamento chama de “o mistério da iniqüidade” .1 Não havia motivo algum para que este homem fosse perseguido e acossado até à morte, a não ser por ele ser bom e colocar-se diante dos homens como um sinal da existência e da graça de um Deus bom. 0 mistério da iniqüi­dade acha-se no fato de que, através do mistério da liberdade dada à criatura na sua criação para corresponder em amor, em liberda­de e em alegria ao seu Criador, surgiu neste universo, criado bom em todos os seus aspectos, uma reação cegamente perversa e ab­surda que somente pode ser chamada de satânica e que não tem lugar no propósito original de Deus, não podendo ter participa­ção alguma no seu triunfo final, embora lhe seja permitido fazer sua obra devastadora até o tempo da sua destruição final.

Daniel foi odiado pelos seus contemporâneos, foi vítima de complôs e condenado a morrer simplesmente porque era partidá­rio da verdade; amava o que Deus amava e vivia à altura. Sua his­tória é uma dentre uma longa série de histórias na Bíblia sobre o ódio irracional dirigido contra o irmão, contra o próximo ou contra o profeta, por aqueles que são contra Deus. Há o ódio de Caim por Abel;2 o ódio dos filhos de Jacó pelo seu irmão José;30 ódio de Saul por Davi;4 o ódio de seus contemporâneos por muitos profetas e mensageiros de Deus; e tudo culmina no ódio demonstrado contra Jesus, na ocasião da sua crucificação, por aque­les que representavam a raça humana.5

Quem odiar o seu irmão . . .0 ódio dos companheiros de Daniel na corte podia achar

somente sua plena expressão e satisfação no assassinato dele. As­sim acontece em todos os relatos bíblicos onde há semelhante ódio; é sempre mortífero, sempre procurando vibrar o golpe mortal. Os irmãos de José pretendiam matá-lo. 0 povo apedrejava os profetas

1 2 T s2:7. 4 1 Sm 18:8,9 etc.2 Gn 4:lss. 5 P. ex. At 3:13-15.3 Gn 37:4.

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até morrerem.6 “Todo aquele que odeia a seu irmão é assassino” .7 Matar é natural de todo ódio verdadeiro.

É a crucificação do próprio Jesus que nos mostra de fato o que é o nosso ódio, e qual o resultado final quando se busca por sua realização.

É dirigido essencialmente contra Deus. Lá no fundo de to­do coração humano há o mesmo ressentimento contra a verdade de Deus, o mesmo amor por tudo que é oposto a Deus.8 Esta opo­sição culmina na própria cruz. Estávamos ali quando ele foi cru­cificado, e estávamos no lado errado. Quando a verdade de tudo isto é inculcada em nós, ficamos nos conhecendo corretamente pe­la primeira vez.

As Sagradas Escrituras indicam que o ódio não pode surgir da bondade da criação tal como Deus a fez; sua origem somente pode ocorrer quando há a intrusão de uma mente, ou espírito ou poder satânico na vida deste mundo. Foi pelo erro do homem, pela queda, pelo abuso da liberdade que o homem foi levado a es­cravizar-se a este espírito, trazendo morte e destruição para todo o mundo.10 Tal presença, portanto, é tão absurda quanto sua nature­za é irracional. Mas sua obra é real, terrível e de escala gigantesca;11 na realidade é tão gigantesca e devastadora que Deus precisou co­locar toda a sua força num novo grande esforço de reconciliação e redençáo para endireitar as coisas.

O testemunho inabalável de DanielA história sugere que foi por Daniel ter sido, tão desavergo­

nhada e declaradamente piedoso que os seus oponentes o odiavam. Por mais babilónico que fosse o seu estilo de vida, por mais leal que fosse em todos os seus principais deveres para com a sua pá­tria adotiva, Daniel nunca deixou de testificar de que tudo quanto havia de mais excelente nele derivava-se, não da própria Babilônia mas, sim, de Jerusalém, a cuja cultura e religião voltava-se constan­temente à procura de inspiração. Diante dos olhos de todos na Ba­

6 2 Cr 24:20ss.; Mt 23:34-37. 9 G n l:31 .7 1 Jo3:15. 10 Cf. Ef 2:1-3.8 Cf.Rm 1:25-32; 2T s2:10-12 etc. ■ 11 Cf. 2 C o4:3 ,4 .

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bilônia, representava de modo corajoso e integral essa Jerusalém, com tudo quanto ela significava, ao ser construída em prol do ser­viço de Deus. Seu hábito de orar diariamente, que não ocultava a ninguém (v.10), mostrava a todos quantos o conheciam onde acre­ditava que a verdade podia ser achada, e para onde acreditava que todos, em todos os lugares, deveriam olhar, para receber a salvação.

Tinha em cima, no seu quarto . . . janelas abertas da banda de Jerusalém, e ali, três vezes no dia se punha de joelhos, e orava ao Deus que escolhera Abraão e Isaque e Jacó, conduzira Israel para fora do Egito e fundara a cidade eterna no reinado de Davi. Aquela cidade e tudo quanto ela representava era o ímã para o qual sempre se voltava a sua mente. A direção das janelas do seu quarti­nho de oração era um símbolo da tendência contínua da sua mente e do seu pensamento, quando não absorvido com a própria Babi­lônia, de voltar-se para tudo quanto havia nos livros sagrados, que falava de Iavé e do seu templo; da terra cujo centro era esse templo, da chamada dos patriarcas que tinham viajado como peregrinos em direção a ela; dos oráculos dos profetas, especialmente Isaías, nas suas visões do seu grandioso futuro. Daniel tinha a certeza de que um dia todas as pessoas, de alguma maneira, encontrariam a uni­dade ao subirem ao monte do Senhor Deus de Israel.12 Ali adora­riam a Deus, que falaria no seu novo templo.13 Aprenderiam a co­nhecer suas leis e a andar nos seus caminhos, e então converteriam as suas espadas em relhas de arados, e suas lanças em podadeiras, e não aprenderiam mais a guerra.14 Para Daniel, o futuro da humani­dade estava vinculado, não à grande cidade que Nabucodonosor edificara mas, sim, àquela que destruíra. Para ele, a humanidade nunca se levantaria do pó até que Jerusalém começasse novamente a se movimentar. Nunca cessava de orar que Deus lhe restaurasse as ruínas, reedificasse os seus muros e retomasse o propósito que, segundo acreditava Daniel, fora suspenso apenas por um tempo.

As pessoas sabiam que ele orava, e sabiam por que orava três vezes por dia! Quando lhe perguntavam o que significava tudo aqui­lo, ele era franco em dizer no que acreditava. A nenhum exilado legítimo era permitido, pela sua fé, escondê-la a qualquer tempo.

12 Cf. Is 2:2, 3; Zc 8:20ss.13 Zc 6:12-15.14 Is 2 :3 ,4 .

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Além disso, havia as estranhas leis dietéticas e as práticas peculia­res do dia do sábado que se tomaram importantes à nação, agora que grande parte das outras coisas tinha sido destruída. Visto que não possuía um templo para onde subir a fim de testificar do triun­fo do seu Deus, Daniel abria suas janelas três vezes ao dia em dire­ção à cidade santa (v.10)

Mas foi exatamente esta persistente lealdade aos antigos mo­dos de Judá, esta constante recusa de separar-se de Jerusalém, es­ta repetida alegação de que a verdade e a salvação para o mundo achavam-se ali e em nenhum outro lugar, que levaram muitas pes­soas poderosas na Babilônia a odiá-lo. Odiavam-no, não meramente por ser estrangeiro e forasteiro, não simplesmente porque tinham ciúmes da sua extraordinária capacidade, mas principalmente por­que, a despeito do fato de ser ele tão impecavelmente leal e útil à Babilônia, toda a orientação da sua destacada vida tendia a indicar, não a Babilônia mas, sim, Sião. De modo muito claro, sua con­versa e seu modo de vida dàvam testemunho da sua crença de que a salvação para a humanidade somente poderia advir do Deus que escolhera Sião para sua habitação.

O ponto de ofensaEles poderiam ter perdoado Daniel mesmo se tivesse falha­

do em alguns dos seus deveres, ou até mesmo deixado de manter sua excelência de espírito; mas a idéia de que os deuses de todas as nações não eram deuses de modo algum, que não havia, em última análise, outro nome divino que importasse, a não ser o de Iavé de Jerusalém, era algo que, segundo pensavam, não podiam per­mitir que tivesse livre curso no seu meio.

Era inevitável que a fidelidade ao Deus de Israel naquele mun­do antigo ofendesse tanto àqueles que acreditavam muito no valor da sua própria religião nativa e sistemas de pensamento. As Sa­gradas Escrituras insistem em que a verdade não é algo amplamen­te difundido entre todas as nações e raças, nem algo que o homem, pelo exercício de suas capacidades, inatas ou faculdades religiosas, possa atingir ou excogitar, mas, sim, algo que foi preparado, traba­lhado e vivido pelo próprio Deus vivo, dentro do contexto da vida daquela única nação específica que ele escolheu, pela sua graça,

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para ser uma luz para todas as demais.15 0 povo de Israel, no de­correr da sua história e à medida em que a nação se tomava cada vez mais consciente do poder e da grandiosidade do Deus em cu­jas mãos estava, tomou-se também cada vez mais consciente de que todas as demais religiões eram vazias e que todos os deuses das nações em derredor nada eram. Nos tempos de Samuel, quan­do a arca de Deus foi colocada pelos filisteus no templo do seu deus Dagom, depois da primeira noite o ídolo foi achado de rosto para o chão e removido do seu pedestal. Recolocaram-no na sua posição, para então descobrir, no dia seguinte, que o ídolo fora despedaçado ,16

Com Daniel, portanto, tratava-se da velha história de um homem que não pode evitar ser motivo de ofensa, porque se sub­meteu ao constrangimento daquilo que crê ser a verdade definiti­va, exclusiva e esmagadora de qualquer outro sistema que dese­je coexistir com ela, e totalmente intolerante à possibilidade de que qualquer outra coisa possa reivindicar a mesma qualidade de­finitiva.

Quando alguém faz esta reivindicação para a sua religião no mundo atual, terá forçosamente de enfrentar os mesmos proble­mas que Daniel enfrentou. Jesus advertiu seus discípulos de que, se testificassem claramente dele, com fidelidade, e o servissem com lealdade, eles nunca poderiam deixar de apresentar o mesmo tipo de ofensa, nem de ter o mesmo impacto esmagador sobre um mundo tão rico e variado em tradições culturais e religiosas. Te­riam de pregar que ele é o Bom Pastor e que todos quantos vieram antes dele eram “ladrões e salteadores” ;17 que somente ele é “o caminho, e a verdade, e a vida” ,18 que ele é o único salvador,19 e que todos os demais homens precisam da salvação;20 que apenas ele é o bom médico, e que todas as demais pessoas estão doentes e precisam dele.21 Teriam de insistir que a verdade é o que final­mente aconteceu uma vez só, e por todas as pessoas, quando ele nasceu na manjedoura, viveu uma vida humana perfeita, morreu na cruz para reconciliar todos os homens com Deus, e ressuscitou dentre os mortos.2215 Dt 4:5-8. 19 . P. ex.: At 4:12.16 Cf. 1 Sm 5:1-5. 20 P. ex.: Rm 3:23.17 Jo 10:7-11. 21 Cf. Mc 2:17.18 Jo 14:6. 22 P. ex.:Ef 4:17-21; 1 Jo 5:20,21.

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A injustiça da acusaçãoÉ claro que eles nunca poderiam achar base para argumen­

tar que um homem com os pontos de vista de Daniel fosse obje­to de desconfiança, digno de ser perseguido ou castigado. Não po­deriam apresentar uma acusação racional ou justa contra ele. Ne­nhum ataque frontal honesto seria possível contra este homem ou contra o que ele representava. A fim de prendê-lo numa armadilha, tinham de apelar para um subterfúgio perverso e oculto.

A lição que se destaca neste capítulo através deste inciden­te parece ser que, quando se testemunha com clareza e fidelidade acerca do Deus de Isarael, tanto pela vida como por palavras, a ver­dade demonstrada não pode ser contestada por qualquer crítica ho­nesta. Para qualquer mente aberta e racional, esta verdade carrega tão claramente consigo a evidência e a pureza do seu próprio valor, que é necessário colocar a perversidade contra a evidência da pró­pria razão a fim de se poder negar que se trata do que é definitivo na verdade sobre o homem e Deus. Somente a irracionalidade de­liberada e cega pode recusar-se a reconhecer a verdade.

Daniel, portanto, só poderia ser condenado por leis que vio­lassem os direitos humanos básicos e que fossem grosseiramente desarrazoadas. Seus acusadores tinham de levar o rei estulto a de­cretar e assinar uma lei deste tipo antes de poderem prender a sua vítima na armadilha. Depois de um exame minucioso, Daniel per­manecia irrepreensível. Tinham de cegar-se a si mesmos para negar este fato e continuar acusando a Daniel.

Será que não somos obrigados a crer que nisto reside a glória da verdade que veio a nós diretamente de Jerusalém através de Je­sus Cristo: que nenhum homem honesto pode argumentar hones­tamente contra ela; que, para odiá-la e persegui-la, deve haver sem­pre uma certa dose de amor às trevas mais do que à luz, e uma re- jeiçffo, feita de olhos abertos, daquilo que é sempre, e em todos os aspectos, excelente? Noutras palavras, a fé em Jesus Cristo envol­ve a crença de que nada há na fé cristã, tal como é concretizada na pessoa, nos atos, ou no ensino de Jesus, que validamente ofenda a mente humana. Apenas a maldade e a perversidade podem ficar ofendidas em Jesus. Na verdadeira apresentação do evangelho e na sua plena aceitação pelos homens está o caminho, a verdade e a vida para todos os homens e mulheres, para todo tipo de comu-

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nidade, para os negócios internacionais, para o futuro da História, de forma perfeita e certa. Se o verdadeiro cristianismo causa ofen­sa, é somente para o falso orgulho humano e para a maldade esta­belecida. Ficar ofendido com Cristo é opor-se à verdade, à humani­dade e à própria vida.

Podemos traçar uma válida analogia entre os subterfúgios per­vertidos e irracionais planejados pelos inimigos de Daniel para prendê-lo na armadilha, e o que aconteceu na traição e no julgamen­to do próprio Jesus. Qualquer análise jurídica justa desse julgamen­to demonstra que tudo que os homens tiveram de fazer para des­truir Jesus foi, afinal de contas, visivelmente injusto. Todo o pro­cesso era ignóbil com fraudulência, com ilegalidade, com irraciona­lidade. Seus juizes só podiam ser homens cínicos, corruptos e fracos. Se uma só personagem em todo aquele processo tivesse defendido o que era razoável e justo, Jesus teria sido solto.

Hoje em dia, nossos valores e nossos meios vêm se transfor­mando rapidamente, pelo desejo de criticar e de peneirar tudo que não tinha valor, herdado do passado. O anseio por boas mudanças é sadio, e freqüentemente a crítica é justa. Mas às vezes, e espe­cialmente quando a crítica é dirigida contra a igreja, contra os va­lores que esta galgou quase sempre com sacrifícios, ela é feita sem um raciocínio válido, apenas com uma olhadela parcial nos fatos e sem tentar compreender em profundidade as questões em pau­ta. Assim acontece porque, nos cataclismos desta era, não há so­mente um espírito que está operando o bem, como também há um espírito que opera para destruir o bem. É por esta razão que o próprio evangelho cristão, bem como a humanidade e o ensino do próprio Senhor, e p que há de melhor nos valores tradicionais que a civilização tem herdado dele e do seu evangelho, ora são distorci­dos de modo trágico e perverso a fim de serem mostrados como desprezíveis, ora são abertamente desafiados e caluniados. Deve­mos estar dispostos a escutar as críticas feitas em nossos tempos, e ficar de ouvidos abertos diante das questões levantadas, muitas vezes por um coração desesperado e sincero. Mas também devemos ter consciência de que a natureza humana não se alterou muito desde os tempos do rei Dario!

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Assassinato sob o sistema!Os homens que tramavam contra Daniel não queriam se

responsabilizar pelo derramamento de sangue. Logo, a questão de assassiná-lo numa reunião do conselho, cada um com seu pró­prio punhal, conforme os senadores romanos fizeram com César, nunca passou por suas cabeças. Nem sequer procuraram contratar assassinos. A política deles foi fazer a mesma coisa, mas de um mo­do muito mais sutil e complexo. Sua intenção ardilosa era reves­tir-se de inocência ostensiva e colocar a culpa pela morte de Daniel no rei inocente. Ajustaram o código jurídico e suas penas de tal maneira que Daniel pudesse ser condenado à morte. Fizeram os planos para que ele fosse apanhado. Tudo foi cuidadosamente planejado e claramente cogitado em todos os pormenores. O siste­ma faria por eles aquilo que eles mesmos ficariam por demais hor­rorizados em fazer; afinal, todos eram homens honrados!

Então estes presidentes e sátrapas foram juntos ao rei, e lhe disseram:... Agora, pois, ó rei, sanciona o interdito, e assim a es­critura, para que não seja mudada, segundo a lei dos medos e dos persas, que se não pode revogar. Por esta causa o rei Dario assinou a escritura e o interdito (vs. 6-9).

Tudo isto permanece ainda hoje, nem sempre como resulta­do de um planejamento tão deliberado visando a destruição de um certo homem mas, sim, como resultado de planejamento e de legis­lação realizados sem cuidado e onde se esquecem os direitos e o bem-estar das possíveis vítimas mais fracas. Ou, ainda, porque pes­soas responsáveis (tais como o rei Dario) permanecem culpavelmen- te inconscientes das tendências ao dano e à corrupção que estão inerentes nos novos planos e leis com os quais consentem com de­masiada facilidade, deixando assim que as coisas à sua volta acabem provocando danos devastadores às pessoas que deveriam ter sido protegidas e receberem providências em seu favor.

Destarte, temos nossos sistemas estabelecidos por lei e tão for­temente sustentados por nossas instituições como sendo invioláveis, que podemos prender na armadilha e ameaçar, tanto quanto o sis­tema na Babilônia prendeu Daniel, sentendando-o à morte. Aquilo que resolve os problemas econômicos de alguns faz escravos econô­micos de outros. Aquilo que permite a uns realizar sua vontade, a travar suas batalhas e a realizar suas conquistas, leva outros à escra-

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vidão e à morte. Isto não pesa muito na consciência das pessoas, já que podem culpai o sistema. Portanto, damos tranqüilamente o nosso voto nas eleições, negamo-nos a reclamar mudanças ou até mesmo a criticar, e permitimos que o sistema deixe as pessoas de­sempregadas, sem lar e sem seus entes queridos, destruindo sua humanidade e decência. Se tudo isso acontecesse abertamente dian­te de nossos olhos, ficaríamos horrorizados e nos recusaríamos a ter qualquer participação na prática de tais coisas. É muito mais fá­cil para nós colocar a culpa no sistema.

A graça salvadora da disciplinaQuando Daniel soube que o estavam fazendo de vítima e que

o documento fora assinado, foi para sua casa, abriu as janelas e deu graças, como costumava fazer.73 Não há dúvida de que o que pre­servou Daniel quando da sua provação foi este hábito rígido e inin­terrupto. Disciplinara-se a praticá-lo, dia após dia, durante anos, e na hora da crise o próprio ritmo do costume teria sido suficiente para conservá-lo fiel, mesmo que não tivesse havido, no momento, qualquer viva inspiração. Tendo feito hábito uma parte tão inte­grante de si mesmo, teria traído a si, bem como a Deus, se não ti­vesse aberto suas janelas, pondo-se de joelhos.

É claro que ele sempre se sentia restabelecido como conse­qüência do seu tempo de oração. No momento em que se ajoelhou sentiu-se arrebatado pela realidade da presença divina; sentiu que alguém lhe falava e a resposta veio, sincera, viva e verdadeira. Sua mente se inspirou e se aclararam os problemas para os quais busca­va solução. Sua resolução tomou-se firme e ele saiu de lá mais for­te.24 Mas bem poderia acontecer que, em muitas ocasiões, o costu­me não lhe trouxesse satisfação imediata, e que nem sempre ele saísse de lá abençoado. Será que às vezes ele não era tentado a pen­sar que Deus era surdo, descuidado ou que estava dormindo? Sabe­mos que em certa ocasião, na sua velhice, ele ficou quase desespe­rado por não saber se estava sendo ouvido, e Deus teve de lhe conce­der a visita especial de um anjo, que lhe disse que não deveria temer,

23 6:10.24 Cf. 9:3, 4, 20-23; 10:12-18.

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pois estava tomando nota de tudo quanto Daniel estava dizendo.25 Se ele não tivesse deliberadamente se disciplinado na oração, o que acabou se tomando uma questão de rotina, não teria então man­tido a realidade e a força da sua comunhão com Deus.

Nós predsamos de hábitos.Talvez esta história de Daniel nos dê um vislumbre do tipo

de coragem, de estabilidade moral e de vigor espiritual de que mui­tos de nós precisamos, e que também desejamos e não temos. Pode­ríamos sentir-nos muito mais livres e capazes de servir com eficiên­cia a Deus e a outras pessoas — e descobriríamos que a nossa fé es­taria se tomando algo muito mais vital e real — se nos dispusésse­mos a aprender alguma coisa nesta área. Hoje, às vezes, procuramos desesperadamente colocar mais dinamismo e realidade, espontanei­dade e criatividade em nossas novas formas de adoração, porque tu­do quanto é tradicional acabou se tomando muito enfadonho pa­ra nós. Mas, afinal, devemos aprender que as coisas mais preciosas, espontâneas, reais e criativas na vida cristã podem ganhar um lugar vital em nossa vida somente se forem cultivadas e protegidas pela disciplina, especialmente em nossas devoções particulares. Não há dúvida de que Deus, às vezes genuinamente, se encontra conosco e nos inspira, e até mesmo nos reaviva, nas experiências espontâ­neas que temos, independentemente de qualquer rotina discipli­nada de religião particular ou comunitária. Mas até mesmo esta no­va vida, que nos vem num reavivamento espontâneo, não perdurará, a não ser que esteja engrenada e conservada dentro de um âmbito de hábito pessoal: a lealdade à igreja e a freqüência a ela, fielmen­te observadas, podem-nos ajudar a manter o hábito pessoal. Deus não pretende que vivamos constantemente confiando neste rea­vivamento mas, sim, que cultivemos hábitos de adoração e de comu­nhão com ele mesmo. Devemos refletir, de modo sereno, racional e sóbrio, quais os hábitos básicos, regulares e rotineiros, de disci­plina, de oração, e de adoração que sempre nos conservarão no ca­minho que nos faça entrar em contato com a realidade da presen­ça de Deus. Devemos descobrir em que podemos confiar para con-

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tinuarmos evoluindo, quando tudo é tão difícil. O próprio Deus nos revivificará no devido tempo.

Mas o cultivo de qualquer hábito implica tirar tempo de ou­tras ocupações e cultivar o hábito da oração, da adoração e da de­voção, tal como o vemos em Daniel; pode, por exemplo, levar-nos a passar deliberadamente menos tempo diante da televisão, ou me­nos tempo na cama. Ou exigir que desviemos nossas energias de atividades que vêm a nós e nos trazem sua recompensa de modo muitos mais fácil e simples. É por isso que a oração, no ensino e na vida de Jesus, é sempre mencionada como sendo algo que exi­ge um esforço persistente e difícil,26 e é vinculada ao “vigiar” ,27 estando, portanto, freqüentemente associada com o “jejum” .28

Devemos lembrar-nos das próprias palavras de Jesus, dirigi­das àqueles que criticavam João Batista por impor a seus seguido­res uma disciplina de jejum. De fato, quando lhe perguntaram so­bre isto, ele disse simplesmente: “Podem, porventura, jejuar os convidados para o casamento, enquanto o noivo está com eles? . . . Dias virão, contudo, em que lhes será tirado o noivo; e nesse tem­po jejuarão.”29 O que disse quanto a ser tirado o noivo e ao perío­do subseqüente de jejum talvez se refira a todo o período entre a crucificação e a segunda vinda. Neste caso, a sua palavra seria uma chamada para todos os cristãos fazerem da rigorosa disciplina e do jejum parte da rotina da sua vida cristã normal. Jesus, porém, quis talvez afirmar aos seus discípulos que a vida daqueles que o seguem pode ser marcada por períodos alternados de diferentes disposições de ânimo e de experiências: ora regozijando-se devi­do à proximidade do noivo e o calor e a força que sentem por cau­sa da sua presença; tora lamentado porque toda a sensação ou senso da presença de Deus esteja faltando, o coração esteja frio e a mente tenda à perplexidade. Neste caso, Jesus estaria ressaltando que exatamente em tais períodos da nossa vida a nossa fé só poderá permanecer forte mediante a ajuda da disciplina e do hábito. “Se seus atos de oração são a coisa mais regular na sua vida” , escreveu W. E. Orchard, “creio que você descobrirá que eles regulam tudo o mais” .26 Lc 11:1-12.27 P. ex.: Mt 26:28ss.28 SI 35:13; At 14:23; cf. 1 Co 7:5.29 Mc 2:18-20.

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A arapuca da lei e da ordemFoi possível dar continuidade à montagem do crime porque

Dario, com toda a inocência, acreditava firmemente na inviolabi­lidade da lei e da ordem. Para ele, este era o segredo de todo go­verno bom e saudável e a única maneira de evitar o crime numa grande sodedade cosmopolita de pessoas de todos os tipos. Tal era a tradição, também consagrada pelo tempo, dos medos e dos persas (cf.vs. 8 ,12 ,15).

As regras de conformidade eram cuidadosamente preceitua­das com muitos pormenores; as penas pela violação eram definidas com cuidado; quando a lei era quebrada, a penalidade era rigorosa­mente aplicada, sem levar em conta as circunstâncias particulares de cada caso. Nenhum recurso era permitido, nenhuma suspen­são da sentença podia ser concedida. Nem mesmo o rei tinha auto­ridade para outorgar misericórdia ou fazer exceções (cf. v. 14).

Era uma forma muito simples de política. Evitava petições e apelos emotivos complicados. Poupava aos soberanos a indigni­dade de terem que mudar de opinião, e mostrava-se especialmen­te útil numa comunidade propensa à ilegalidade e à permissivida- de, que seguia o rastro de uma administração como a de Belsazar. Impunha respeito ao governo. Dario gostava do sistema. Muitos devem ter ficado contentes ao se estabelecer este tipo de regime.

Chegou-se, porém, a uma situação absurda: Daniel contra a lei e a ordem! E, tragicamente tarde demais, o rei compreendeu que tornara a lei e a ordem mais importantes do que Daniel! “Sa­be, ô rei, que ê lei dos medos e dos persas que nenhum interdito ou decreto, que o rei sancione, se pode mudar” (v. 15). Daniel, o inocente, talvez o melhor entre os amigos e partidários fiéis do rei, era agora vítima da sua mania de submeter tudo a severos e rígidos regulamentos.

Dario sentiu-se cair na armadilha tanto quanto Daniel; ficou penalizado e até ao pôr do sol se empenhou (v.14) por evitar aqui­lo que, segundo sabia, seria um crime. No fim, viu-se forçado a cometer uma injustiça vergonhosa em nome do seu sagrado e útil sistema da lei e da ordem. Teve que enfrentar a conclusão um pouco paradoxal de que aqueles que eram, ao seu redor, os zelo­sos defensores partidários da lei e da ordem, também eram os defen­sores da pior injustiça que já passara pelos seus tribunais. Começou

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a perceber que “a lei e a ordem” é um lema perfeito e um princípio inviolável somente onde o sistema é bom e as leis são perfeitas.

O diabo pode prosperar e operar tão eficazmente sob a más­cara da lei e da ordem quanto o faz sob a forma da permissividade. Quando Jesus foi crucificado, seus principais oponentes eram os fa­riseus e os saduceus, dois partidos que defendiam fortemente a ques­tão da lei e da ordem. Ao diabo tanto faz vestir uma máscara con­servadora quanto uma máscara revolucionária. Se às vezes trabalha com êxito nos bordéis e nas espeluncas, também pode realizar tra­balhos muito eficientes nas câmaras municipais e nos tribunais de justiça. Foi talvez pensando neste fato que um dos evangelistas relembrou as palavras de um defensor da crucificação de Jesus: “Te­mos uma lei e, de conformidade com a lei, ele deve morrer.”30

A ressurreição de DanielEles fizeram questão de aplicar a Daniel o mesmo processo

de execução utilizado para qualquer criminoso comum, e que na­da de mudasse (v.17) por ser ele de alta posição e amigo do rei.

Mas Deus enviou o seu anjo, e fechou a boca dos leões (v.22), e, de manhã, quando a pedra foi rolada do túmulo, Daniel saiu in­cólume (v.23).

Para nós, os que podemos e ousamos crer que este evento aconteceu, o milagre por si só é pleno de significado. Nada poderia salvar este homem, a não ser algum poder que controlasse os instin­tos de leões desesperadamente esfomeados, prontos para abocanhar sua presa. Eis aqui outro momento em que Deus dá sinal de seu po­der sobre os animáis, mostrando-os sensíveis às suas ordens, fazen­do-os discernir, ainda que de modo vago, algo do seu propósito, fa­zendo-os sempre mais ansiosos pelo seu cumprimento do que a maio­ria dos homens. Esta não é a primeira vez em que as Sagradas Es­crituras nos mostram que, quando Deus está operando, os animais agem às vezes melhor do que os seres humanos;31 e também pode­mos entender que o que aconteceu foi uma antevisão do dia vindou­ro, em que “o leão comerá palha como o boi” .32

30 Jo 19:7.31 P. ex.: 1 Sm 6:12; Nm 22:27; Is 1:3.32 Cf. Is 11:6 ss; 65:25.

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Como retrato e prefiguração do que há por vir, o salvamento de Daniel da cova dos leões foi muito empregado nos afrescos e nas catacumbas da igreja primitiva para ilustrar a ressurreição den­tre os mortos. Aqueles que consideram o livro como sendo um pan­fleto posto em circulação nos tempos dos macabeus, pensam que o objetivo desta história era, especialmente, consolar os que enfren­tavam a morte e o túmulo, lembrando-lhes a esperança da ressur­reição. Na opinião dos expositores da tradição cristã, os pormeno­res da pedra posta sobre a boca da cova, a qual o rei selou com o seu próprio anel (v.17), e depois a libertação de Daniel, fazem com que este seja um dos grandes incidentes do Antigo Testamento que prenunciam a ressurreição do próprio Jesus.

A experiência de Daniel, sob diversas formas, aplica-se em mui­tas e diferentes situações de nossa vida no dia-a-dia. Nos Salmos, ver-se livre de perseguições e aflições às vezes é descrito como um livramento dos leões.33 Da mesma maneira, podemos acreditar que, embora nossos inimigos ocasionalmente coloquem armadilhas em nossos caminho e nos façam tropeçar, Deus nunca permitirá que nos mantenham presos em seus ardis.34 E, também num nível mais cor­riqueiro, ele pode controlar as línguas caluniadoras de “leões huma­nos” e salvar as suas vítimas.

DarioNão podemos conhecer tão profundamente a mente de Dario

quanto a de Nabucodonosor.Vamos aos fatos. Dario foi facilmente persuadido a assinar o

primeiro decreto, colocando Daniel em perigo (v.9). Fica profun­damente aflito ao perceber o perigo que trouxe para Daniel, e, de­sesperadamente, passa um dia inteiro procurando evitar a execução (v.14). Passa a noite da provação sem dormir e, em jejum (v.18), vai para a cova dos leões tão cedo quanto possível, perguntando, com voz triste, como está Daniel (v.20). Regozija-se do livramento de­le e, num só golpe, vinga-se dos inimigos de Daniel, fazendo o tes­te para ver se os leões realmente eram ferozes e famintos (v.24).

33 P.ex.: SI91:13; 57:4-6.34 SI 124:6.

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E então proclama um decreto impressionante a favor do Deus de Daniel (vs. 25-27).

É difícil dizer o que significam todos estes fatos. Ao assi­nar o decreto, talvez o fizesse movido pelo prazer da adulação, far­tamente distribuída por aqueles que apresentaram a proposta. As­sim, sua aflição e o esforço de salvar a vítima talvez tenham sido mo­tivados pela ira por ter sido tão facilmente logrado. Isto explica também a rapidez com que comprovou aos que o enganaram que os leões eram realmente perigosos. Pode-se alegar, porém que, pe­lo menos agora, nesta conjuntura, ele está agindo a serviço da ver­dadeira lei e ordem, administrada de modo justo para a proteção e o bem-estar dos justos e não apenas como uma finalidade em si mesma. E pode-se notar que, com este tipo de lei e ordem, Daniel nada tinha a temer.

Na realidade, o fato mais importante é que, quaisquer que fossem os seus motivos, finalmente Dario protegeu a manteve Da­niel no seu elevado cargo. O versículo mais significativo na parte final deste capítulo é o v. 28: Daniel, pois, prosperou no reinado de Dario, e no reinado de Ciro, o persa. Depois de Belsazar, Da­niel prosperou novamente. 0 milagre da cova dos leões e a aber­tura do rei para julgar justamente entre ele e seus inimigos provo­cou uma nova mudança no seu destino. Isto indica o quanto im­porta, agora e no futuro, na providência divina de ordenar todas as coisas, que os soberanos pagãos que têm poder sobre o povo de Deus tratem-nos pelo menos com justiça, senão mesmo com favor, a fim de que se cumpram as promessas de Deus. O povo de Deus vai depender do favor e da proteção de outros a fim de cumprir o seu destino, assim como Deus vai exigir que o seu povo receba jus­tiça e proteção, sempre cuidando para que assim aconteça. É o li- vro de Isaías que, mais do que qualquer outro livro do Antigo Tes­tamento, ressalta esta verdade. Fala a Ciro, o persa, em nome de Deus, chamando-o de ungido de Deus e nomeando-o pastor e li­bertador do povo de Deus. Ciro ajudará a livrar o povo de Deus do jugo da Babilónia e a enviá-lo de volta à sua pátria, apesar de ser um pagão, que nada sabe de Deus.35 E, mais tarde, anuncia a Is­rael que os reis da terra serão inspirados e levados não somente a proteger e nutrir o povo de Deus mas, também trazer gloriosos tri-35 Is 4 4 :2 8 - 45:6.

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butos (as riquezas das naçSes), para que façam parte da sua vida.36Ao que tudo indica, este capítulo parece dizer que os impé­

rios sobem e mudam, os reis vêm e vão, as modas e os estilos de vida se alteram, mas a única coisa estável em meio a tudo isso é o pró­prio Daniel: o homem de Deus que pratica a justiça, que ama a misericórdia, e que anda humildemente com o seu Deus.37

36 Is 60.37 Cf. M q6 :8 .

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Daniel 7

OS ANIMAIS E O FILHO DO HOMEM

Uma nova olhada na potência mundial

Chegamos agora à parte menos conhecida e decididamente a mais assustadora do livro de Daniel. É uma série de visões mui­to complexas quanto à sua natureza e, a princípio, bastante obs­curas no seu significado. Os estudiosos debatem, as mentes mais imaginativas deliciam-se na especulação, e o leitor comum tende a desviar-se rapidamente em alguma outra direção. Mesmo assim, toda a matéria versa sobre a Palavra de Deus e pode instruir-nos para a salvação.1

Ao interpretarmos a primeira visão da série, devemos ter em mente a data da sua ocorrência, pois notamos que o primeiro ano do reinado de Belsazar teve profundo significado para Daniel.2 Parece ser exatamente esta a ocasião em que, após a morte de Na­bucodonosor, ele presenciou o início de uma profunda mudança no estilo, no espírito, no ponto de vista e na moral da Babilônia e das suas classes governantes. Estava sendo tentado a se desviar do seu caminho. Viu passar o poder daqueles que, quando a Babilô­nia parecia grande e estável, tinham se reunido ao redor de Nabu­codonosor, para aqueles que cercavam Belsazar nos dias finais da

1 2 Tm 3:15.2 Ver supra, págs. lOlss.

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rápida e trágica queda do império. Sem dúvida, aquelas mudanças poderiam ter levado Daniel a reavaliar o valor da obra de toda a sua vida como um poderoso político que procurava moldar o cur­so dos negódos neste mundo. Seu forçado período de reflexão so­bre o que realizara começou a revelar-lhe terríveis possibilidades de um desenrolar de eventos que, por alguma estranha e perversa razão, ameaçavam apoderar-se do mundo todo e controlar o futu­ro da História. Era o mesmo tipo de alerta que poderia ocorrer ho­je quando, por exemplo, um dentista nuclear fica subitamente per­turbado ao perceber as conseqüências que poderiam advir das suas pesquisas.

Até este período da sua vida, talvez Daniel tivesse razões pa­ra imaginar que a tarefa política, independentemente das circuns­tâncias, depende em muito da vontade de quem a exerce, podendo até ser uma arte nobre, se desempenhada por um homem bom. 0 imperador em cuja adminstração ele havia servido era um homem politicamente esclarecido e de consciência razoavelmente sensível, disposto a escutar protestos e capaz de reconhecer os seus próprios erros3 — um chefe político que, até o final de seus dias, jamais conseguiu esquecer o seu famoso sonho da colossal estátua de qua­tro partes, alertando-o sobre o inevitável triunfo do reino de Deus e a fatal destruição de tudo quanto os homens construíssem para bloquear o seu progresso.4 Daniel acabara descobrindo, que a cooperação com semelhante líder não trazia às suas convicções morais e religiosas qualquer conflito insolúvel.

Mas logo nos primeiros dias do reinado de Belsazar, Daniel sentiu uma diferença no tipo de administração e na vida da cor­te. N<ío seria exagero imaginar que Daniel tenha dado uma nova olhada nos negócios do governo, percebendo, como nunca o fize­ra antes, o demoníaco potencial para o mal que jaz por trás de to­do o sistema de controle mundano. Pela primeira vez na vida ele começou a enxergar a face oculta da história mundial (o lado “Wa­tergate”) e tomou consciênda de que, na polícia, qualquer batalha pode ser tranqüilamente vencida pelas potestades e poderes das tre­vas, sempre prontos a se manifestar na História com a maior inten­sidade possível. E assim a História, a política e a própria Babilô-

3 4:34-37.4 2:36ss.

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nia passaram a ter um novo enfoque para Daniel.A sua interpretação do primeiro sonho de Nabucodonosor

demonstra que, já naquela ocasião, ele tinha uma profunda cons­ciência da pura vaidade que pode caracterizar qualquer tentativa de se edificar um império.s Agora, porém, tendo adquirido uma nova e mais sombria visão da História, em lugar de ver, como an­tes, a sucessão de impérios mundiais vindouros como sendo qua­tro partes em deterioração de um colosso magnífico, porém ins­tável, viu-os como uma série de quatro animais imundos e cruéis, surgindo do mar bravio e lodoso da vida turbulenta deste mundo (v.3), conhecendo somente este caos como sua origem e ambicio­nando apenas, com um desejo insaciável, espalhar crueldade e mais caos; cada um era o predador do seu antecessor e existia principal­mente para lutar e devorar. À medida que esse doloroso drama se desenrolava ante os olhos de Daniel, o seu horror aumentava, pois cada novo animal que surgia era ainda mais cruel e monstruoso que o anterior. E, nessa luta, o quadro da humanidade se eclipsou. Apenas o primeiro animal tinha alguma nobreza de porte e até che­gou a ficar sobre dois pés, assumindo, por instantes, a aparência de um homem (v.4). Mas a crueldade foi se tomando mais cruel e a força bruta mais sinistra, e tudo culminou num quarto animal, cuja selvageria ultrapassou em tal medida a de qualquer animal conhecido na terra, e era tão diferente de qualquer um deles, que não haver como compará-lo (v.7). Tudo quanto escapava aos seus grandes dentes de ferro era implacavelmente pisado aos pés até mor­rer. O que havia de mais grotesco eram seus dez chifres, dos quais brotou outro pequeno, tendo olhos, como os de homem, e uma boca que falava cojn insolência (v. 8). Sua altivez, portanto, com­pletava sua crueldade. Se Daniel fosse descrevê-lo hoje, diria que os olhos dele emitiam raios mortais e que as suas narinas exalavam um veneno nuclear.

Questões para hojeCada época deve ter suas próprias perguntas quanto à valida­

de de seus alvos e das realizações da .sua própria vida política. Vi­

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mos, no capítulo 2, que os sistemas políticos carregam consigo, inevi­tavelmente, as sementes da sua própria decadência. Não levariam eles também, ao mesmo tempo e de igual forma, as sementes de um desenvolvimento demoníaco, tal como Daniel vislumbrou na sua visão? Não podemos esquecer que o próprio Novo Testamento, no terceiro capítulo do Apocalipse, nos apresenta o quadro da gran­de besta que aparece na terra, simbolizando a ascensão final de um governo anticristão, desenvolvendo-se a enormes proporções dentro da História, incentivado pelo ódio satânico a tudo que é bom e cris­tão, disposto a perseguir e a extinguir o povo de Deus. Será que isto acabará ocorrendo na terra com o decorrer da História, sendo permitido às comunidades e às nações que sobreviverem que desen­volvam suas tendências naturais internas conforme o que são, reve­lando assim a sua própria natureza? Será que os nossos sistemas políticos — se é que conseguirão sobreviver — precisam crescer e sucumbir dessa forma?

Para esta pergunta há várias respostas. Na opinião de alguns, Deus constituiu os governos de forma a serem muito mais propen­sos para o bem do que para o mal. Outros acham que o tipo de ani­mal retratado na primeira visão de Daniel 7 e depois em Apocalip­se 13 vive a espreitar constantemente por detrás dos bastidores, onde quer que se reúnam as cortes e os parlamentos. E ainda há quem pense que é a vaidade e pecaminosidade do homem, mani­festa nas potências e nos sistemas terrestres, que determina a sua atitude frente ao governo civil.

A espada e a coroa e a glória terrestre,O orgulho do homem, pra que hão de servir?

Se em autoconfiança constrói templos, torres,É vão seu trabalho: tudo há de ruir!

A resposta final de Daniel a esta questão é bem clara. Mes­mo depois dessa terrível visão, ele continuou servindo aos impera­dores com a maior coragem e dedicação. Isto significa que ele ain­da acreditava que a política pudesse ser neutra, não precisando as­sumir as formas demoníacas reveladas na sua visão. O Novo Testa­mento nos apresenta dois importantes quadros do governo civil. Em Apocalipse 13 ele é mostrado como algo que se degenerou a ponto de transformar-se numa ávida besta devoradora, provenien-

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te do abismo. Em Romanos 13, no entanto, mostra-se como um instrumento nobre nas mios de Deus, promovendo o desenvolvi­mento da humanidade e da bondade e capaz de refrear o mal. Por­tanto, não precisamos fechar o livro de Daniel neste ponto, conclu­indo que a política é sempre diabólica, que as Nações Unidas são o Anticristo e que o Mercado Comum Europeu é obrigado a brotar dez chifres. “Vós sois o sal da terra” , disse Jesus aos seus discípu­los; “vós sois a luz do mundo” .6 O sal impede que a corrupção inerente assuma o controle. A luz tende a conservai as trevas do la­do de fora, evitando assim que as forças malignas se reúnam para conspirar e provocar danos. Com estas palavras Jesus está dizen­do aos seus discípulos que, onde quer que eles marquem presença com seu testemunho e uma liderança decisiva, a corrupção e as trevas não precisam assumir o controle, nem mesmo na política e na administração! Como vimos bem claramente no capítulo 6, a própria presença de Daniel no sistema que o envolvia era a garan­tia de que, pelo menos durante os seus dias, jamais faltaria algum elemento de justiça, de humanidade e de verdade, até mesmo en­tre os poderes dominantes.7

O problema fundamentalO capítulo que estamos considerando, e que contém a extra­

ordinária visão dos quatro animais e do Filho do homem que final­mente triunfaria, divide-se em duas partes claramente distintas. Pri­meiramente se descreve a visão, mas sem incluir qualquer explica­ção (vs. 1-14). Segue-se uma interpretação proferida por um dos que estavam perto, dada somente em palavras (vs. 15-27). Esta ex­plicação entra em detalhes quanto a certos aspectos que desperta­ram a curiosidade de Daniel. Mesmo assim, ele já havia captado a mensagem principal antes de procurar ajuda na interpretação adi­cional desses pormenores. Aqui, a nossa primeira preocupação se­rá mostrar como esta visão acabou por trazer-lhe finalmente a res­posta a uma das mais profundas e fundamentais perguntas que sem­pre afligiram a mente humana: a questão da origem e do destino

6 Mt 5:13,14.7 Cf. 1 Rs 18:3,4; Fp 4:22.

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dessas estranhas e sinistras potências que, segundo ele agora via, estavam ameaçando o bem. De onde provinha esse mal e para onde se dirigia?

E, a esta altura, acabamos descobrindo o quão profundamen­te o próprio Daniel, embora a sua mente fosse embebida das Sagra­das Escrituras, era influenciado pelos estranhos mitos correntes na Babilônia e em toda aquela região do Oriente Médio, acerca das coisas ocorridas antes da criação. Predominava naquela época a crença de que, antes de fazer este mundo, o Criador tinha de con­trolar um mar bravio e primitivo, assolado por ventos caóticos e furiosamente chicoteado por monstros e dragões. Alguns deles até sSo mencionados na Bíblia, como Leviatã e Raabe.8 Já que os babilônios supunham que esses monstros tinham poder para destruir as coisas boas, acreditavam que a criação do mundo só poderia ocorrer depois que eles fossem caçados e destruídos, se­não o caos e a iniqüidade se espalhariam quando tais serpentes malignas aparecessem para operar a destruição. Portanto, os babi­lônios viviam o mito de um conflito que se repetia continuamen­te, e no qual os monstros do abismo eram caçados, conquistados e feridos. E havia uma festa anual que celebrava a repetição dessa luta entre os seus deuses e as potências malignas; os rituais prati­cados na festa, segundo se acreditava, ajudavam os deuses nessa luta contínua.

Este conceito sobre a realidade é freqüentemente chamado de conceito dualista do bem e do mal, ão passo que a visão bíbli­ca, chamada monista, indica que “no princípio” está o próprio Deus, sozinho, com sua bondade e seu amor. O conceito dualista nos diz que, em contraste com o próprio Deus, há também uma força maligna equivalente, ou um deus maligno igual, de modo que, como base da constituição deste universo, há uma eterna luta en­tre o bem e o mal.

Este ponto de vista é profundamente deprimente e pessi­mista. Levá-lo a sério significaria que tudo quanto é puro e bom estaria eternamente sujeito à ameaça; e que a História não tem ou­tro curso a não ser continuar indefinidamente na turbulência de uma guerra em que nenhum dos dois lados pode esperar uma vitó­ria definitiva. Certamente, com tais pressuposições, o mal nunca

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poderia ter um fim, já que nunca teve um princípio.Daniel não poderia ter ficado mais imune do que nós à influ­

ência e às pressões do seu ambiente e do espírito da era. Dificilmen­te poderia ter evitado pelo menos um lapso ocasional na forma babilónica de pensar; e talvez até tudo isto tenha sido uma das cau­sas da séria depressão que ele sofreu mais tarde.9 Também hoje muita gente entrega com muita facilidade a sua mente a este tipo de cosmovisSo, totalmente estranha à nossa tradição cristã, sofren­do, de igual forma, conseqüências bastante amargas. Para Daniel, no entanto, a visão serviu para trazê-lo de volta à sensatez e à ver­dade.

Visando uma resposta finalEm primeiro lugar, nesta visão, é declarada a soberania do

Deus de Israel: antes da criação, no decorrer de toda a História e por toda a eternidade. Os quatro ventos que agitam o mar são pro­venientes do cm (v. 2). É sob a força destes ventos controladores que o mar se agita e os animais saem. O espaço e a duração de cada animal na terra são limitados (cf. vs. 12, 25), e cada um deles é fir­memente controlado. A visão trouxe de volta à mente de Daniel a história da criação nas Escrituras: “No princípio, Deus. . .”10 Se ele tivesse vivido numa época posterior, teria dito: “No prin­cípio era o Verbo , e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.”11 Aqui, não há mal, nenhum mar original de caos: somen­te o Senhor!

A mente de Daniel volta a Gênesis, num mundo de pensamen­tos que nos indicam fielmente a realidade da qual ele fala. Depois volta ao Êxodo, onde, no Mar Vermelho, exatamente quando as circunstâncias terrestres pareciam refletir os antigos mitos, os ma­res e as suas potências malignas não significaram para Deus sequer um café pequeno.12 E à memória de Daniel voltam os pensamentos dos grandes profetas e escritores da sua própria nação, que afirmam que “as águas” sempre têm medo do Deus de Israel,13 que ele agiu

9 10:2 ,3 . 12 Cf. Éx 14:13-14, 16,21-31.10 Gn 1:1 13 a . SI 77:16; 93:3 ,4; 104:6-911 Jo 1:1.

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decisivamente e para sempre até mesmo com Raabe,14 e que pode até divertir-se pegando Leviatã com um anzol.15

Na visão de Daniel é assegurado não apenas o soberano contro­le de Deus sobre o mal, como também a sabedoria e a exata justiça do seu propósito, visando a um bem final. O Senhor não somente está no controle, mas também o seu controle é sábio. Mesmo em meio aos conflitos, ele observa exata e rigorosamente cada agente. Guia os passos e os caminhos daqueles que confiam nele e acaba­rá pronunciando o infalível juízo final.

Quando o enfoque da sua visão passou do mar caótico para o que estava mais acima, Daniel notou que foram postos uns tronos no âmbito celestial (v. 9). Antes que aparecesse no cenário qualquer ser vivo, eles permaneceram vazios, como eloqüentes sinais de espe­rança. E quando finalmente apareceu para ocupá-los o Senhor Juiz com seus assessores, veio como um Ancião de dias (v. 9), sábia figura de um juiz cheio de entendimento e de experiência. Milha­res de milhares o serviam, e miríade de miríade estavam diante de­le (v. 10). Cada veredito seria ouvido por todos e fatalmente seria executado. E se abriram os livros (v. 10). Os babilônios acredita­vam na existência de “tábuas do destino” que continham o futuro, tudo já registrado. Se partirmos desta analogia, os tais livros pode­riam indicar que o futuro será determinado, não pelo acaso mas, sim, segundo a mente e a sabedoria de Deus, cujos planos e propó­sitos já estão preparados. Outra alternativa seria supor que esses livros continham o registro dos atos passados de todos aqueles que, em pé, ali aguardavam o veredito; um registro escrito de forma tão clara e irretorquível que nenhuma testemunha seria necessária e nenhuma intercessão teria qualquer valor.16

Quando as páginas dos livros iam sendo viradas e os juízos eram pronunciados e as ordens eram dadas, todo o cenário na esfe­ra do conflito terrestre começou a se alterar. Fogo irrompeu do trono a fim de consumir o grande animal, cuja própria agonia e ira o incitavam a maiores espasmos de crueldade e de violência; e, em­bora parecesse prolongar-se a destruição operada pelos animais an­teriores, foi-lhes tirado o domínio (vs. 11,12).

14 Is 51 :9 ,10 .15 Jó 41: lss. - Veja nota de Jó 40:25 da BJ.16 Cf. Ap 20:12.

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0 reino do Filho do homemDaniel conhecia as Escrituras, por isso já sabia alguma coisa

sobre estas respostas definitivas a antigas perguntas. Agora simples­mente estava sendo lembrado, de uma forma vívida, daquilo que ti­nha propensão de esquecer. Contudo, no final da visão aparece, co­mo resposta final para o seu problema, algo to talmente diferente de toda a tradição que sempre lhe fora tão familiar:

Eu estava olhando nas minhas visões da noite, e eis que vinha com as nuvens do céu um como o Filho do homem, e dirigiu-se ao Ancião de dias, e o fizeram chegar até ele.Foi4he dado domínio e glória, e o reino,para que os povos, nações e homens de todas as línguas o servissem; o seu domínio é eterno, que não passará, e o seu reinojamais será destruído (vs. 13,14).

Há, entre os estudiosos, muita discussão acerca de quem é, de fato, simbolizado por esta figura do Filho do homem vindo com as nuvens do céu. Seria apenas uma personagem divina em forma humana? Ou é uma personagem coletiva que simboliza o povo de Deus, significando que, no final das contas, Deus vai outorgar a so­berania e a glória ao seu povo oprimido? (O v. 27 ajuda a sustentar este ponto de vista.) Ou não seria esta uma visão do Messias? Al­guns estudiosos dizem que não; outros, que sim. De qualquer for­ma, um dos principais impactos da passagem é bastante claro. No final, a vitória não ficará com as forças representadas pelos animais- reinos, com toda a sua desumanidade mas, sim, com aquilo que é representado na personagem do “Filho do homem” . O reino vin­douro pertencerá, inevitavelmente, não àqueles que acreditam na opressão e na crueldade, cujo evangelho é a força bruta e cega e cuja política leva à perversão daquilo que é verdadeiramente huma­nitário e bom. O rosto do homem pode ficar obliterado por algum

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tempo, por uma ou duas gerações, ou quem sabe até mesmo três; mas, no final, tudo se afirmará. O Filho do homem virá com as nuvens do céu!

Esta é decerto a resposta final. É a resposta do Novo Tes­tamento, expressa de medo claro e deliberado no segundo capítu­lo da epístola aos Hebreus. Esta carta foi escrita para pessoas cu­ja tendência era se desanimarem e perderem o zelo,17 tornando-se tristes e deprimidas. Afinal de contas, elas tanto haviam esperado a vinda poderosa do reino de Deus já nos seus dias! Esperavam ver a Cristo já reinando sobre tudo. O escritor argumenta que, um dia, Deus irá sujeitar tudo ao “Filho do homem” , e cita o Salmo 8 pa­ra comprovar este fato, insistindo que esse Filho do homem é o próprio Jesus.18 Reconhece também que, no mundo de seus dias, “ainda nâó vemos todas as coisas a ele sujeitas” .19 Isto era óbvio para qualquer pessoa, pois em todos os lugares perseveravam os soberanos perversos, ao passo que os homens de bem eram perse­guidos; a besta ficava cada vez mais violenta. “Todavia” , acres­centa o autor de Hebreus, “vemos Jesus . . . coroado de glória e de honra” .20 Jesus ressuscitou! Jesus é Senhor! E isto, do seu ponto de vista, já é um sinal suficiente para qualquer pessoa que duvide que Cristo já reina e que, no final das contas, ele é quem estará em pleno controle de tudo.

A razão pela qual Jesus tio freqüentemente se chamava “o Filho do homem” é porque ele acreditava que esta figura do Filho do homem, do sétimo capítulo de Daniel, referia-se ao que ele mesmo haveria de fazer e ser. Qualquer que tenha sido a idéia que passou pela mente de Daniel, foi através desta passagem que Jesus ensinou sobre a sua segunda vinda e o seu triunfo supremo.

O Filho do homem e os servos do AltíssimoSurge, a esta altura, um aspecto importante e de grande aju­

da para a compreensão do que diz a Bíblia sobre a relação entre

17 Hb 12:3.18 Hb 2:6-9.19 Hb 2:8.20 Hb 2:9.21 P. ex.: Mt 24:30.

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Cristo e o seu povo. Toda e qualquer pessoa que viva neste mun­do como povo de Deus, a ele pertencendo e estando unida, pode considerar-se incluída nele e nele representada. A primeira coisa que notamos, nos versículos 13 e 14, é que uma única personagem vem com as nuvens, um como o Filho do homem, a quem é dado o reino. Nos versículos 18 e 27, no entanto, o mesmo reino não é dado a um como o Filho do homem, mas, sim, aos santos do A l­tíssimo, isto é, ao povo de Deus. 0 mesmo pensamento é expresso no livro de Isaías, quando se emprega o termo servo de Deus. Às vezes a palavra servo é usada num sentido coletivo, referindo-se a Israel como nação;22 mas a mesma palavra é também usada para um indivíduo em especial, a quem a igreja reconhece como sendo o Cristo.23

SupSe-se que, naquela época, era natural falar de uma comu­nidade como sendo uma “personalidade coletiva” . Mas esta for­ma de falar abrange muito mais do que tal suposição pressupSe. É o Novo Testamento que nos dá a melhor ajuda neste sentido. Je­sus disse certa vez: “Eu sou a videira, vós os ramos” .24 Ele não declarou ser meramente o tronco mas, sim, toda a videira. Eis aqui um mistério. Os ramos são considerados parte integrante da tota­lidade da pessoa de Cristo, antes mesmo de se unirem à pessoa de­le.

Paulo, falando da igreja e dos seus membros, disse: “Porque, assim como o corpo é um, e tem muitos membros, e todos os mem­bros, sendo muitos, constituem um só corpo, assim também com respeito a Cristo” .25 Onde acharíamos óbvio ele dizer “a igreja” , ele diz “Cristo” , pois embora, para ele, Cristo seja sempre a pessoa singular o maravilhosa que o salvou, ele percebe que Cristo é tam­bém um homem sem igual, que inclui na sua própria pessoa todos aqueles que veio representar na cruz, morrendo por eles. Paulo co­meçou a pensar nisto quando foi confrontado com Jesus na estra­da de Damasco. Ele se dirigia àquela cidade no intuito de lá perse­guir o povo de Cristo, quando não ouviu Jesus dizer: “Saulo, Sau- lo, por que persegues a minha igreja?” mas, sim, “Saulo, Saulo, por que me persegues?”26 Ele expressa o mesmo tipo de pensamento

22 Is 44:1; 45:4 etc. 25 1 Co 12:12.23 P. ex .:Is52:13 -53:12. 26 At 9:4.24 Jo 15:5.

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em Romanos e 1 Coríntios, nas passagens onde se diz que o primei­ro Adão representa e abrange toda a humanidade na sua queda e corrupção, e que o segundo Adão, o verdadeiro Homem ou “Filho do homem”, também é considerado como quem representa e abran­ge na sua pessoa todos os “santos do Altíssimo” .27

Esta linha de pensamento certamente nos coloca frente a con­ceitos difíceis de serem entendidos racionalmente (tais como a Trindade e a encarnação), mas é um aspecto das boas novas do evan­gelho em que a nossa fé pode se regozijar e onde podemos achar se­gurança e desafio. Por exemplo, ajuda-nos a viver a vida cristã se podemos assimilar o fato de que, quando ele morreu na cruz, nós também morremos nele quando ele pagou o preço da nossa salva­ção; e de que, quando ressuscitou, nós também ressuscitamos nele para a novidade de vida e para a liberdade de todos os poderes da morte e do mal.28 A libertação do mal e do pecado, portanto, já é nossa, pois já morremos nele. E, conseqüentemente, a nova vida e a liberdade já são nossas, porque assim estamos unidos a ele e incluídos nele. Este é o tema de muitas destas importantes pas­sagens neotestamentárias já mencionadas. As palavras finais desta visão de Daniel ajudaram a promover e alimentar o tipo de tradi­ção na qual Jesus, nos seus dias, conseguiu ensinar tão plena e cla­ramente sobre quem ele era, o que viera fazer e como iria salvar os seus discípulos e ajudá-los a ficar semelhantes a si.

Os misteriosos detalhes do último animalDaniel foi informado de que os quatro animais que vira subin­

do do mar eram quatro reis, que se levantarão da terra (v.17). A descrição do’ primeiro animal, humilhado, e depois andando em dois pés como homem, e depois recebendo mente de homem, parece re­ferir-se a Nabucodonosor (v. 4; cf. 4:33, 34), e é coerente com a interpretação de que este primeiro animal é o que possui a aparên­cia mais nobre de todos. Nenhuma tentativa é feita para dizer que reinos os demais animais simbolizam. Parece que nem o segundo nem o terceiro rei despertam o interesse de Daniel, mas somente o último.

27 Rm 5:12ss.; 1 Co 15:20ss.28 2 Co 5:14ss.; Cl 2:20ss.; 3:14; Rm 6:3ss.

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“Então tive desejo de conhecer a verdade a respeito do quar­to animal, que era diferente de todos os outros” (v.l 9).

A resposta dada a Daniel é enigmática e bem indefinida. Fa­la deste animal como sendo um quarto reino (v.23), produzindo uma série de reis, sendo que todos eles finalmente cedem lugar a um que seria diferente de todos os demais, e que obteria poder pe­la traição, e que seria arrogante e blasfemo (vs. 24, 25). Ressalta-se novamente que ele odeia a Deus de tal forma que desconta toda a sua ira naqueles que temem a Deus. Admite-se que ele parecerá prevalecer sobre eles por um certo período: por um tempo, dois tempos e metade dum tempo (v.25).

Quem é o rei, e qual é a potência representada por este ani­mal, e que possa se identificar com semelhante programa? A esta altura tudo é muito vago. Pode-se argumentar que os quatro ani­mais devam forçosamente referir-se à mesma sucessão de reinos alu­dida na imagem do colosso, no quarto capítulo do livro. Neste ca­so, a sucessão poderia ser: (1) o império babilónico; (2) o império medo-persa; (3) o império grego; e (4) o império romano. 0 chifre pequeno se referiria, pois, a algum grande perseguidor anticristão da verdadeira igreja, que surgiria dentro da era cristã e dentro da ci­vilização criada pelo império romano. Esta interpretação se encai­xaria perfeitamente naquela dada pelo apóstolo Paulo e pelo livro do Apocalipse.29 Pode-se entender que Paulo esperava que o “ho­mem da iniquidade”, o qual, segundo parece, identificava-se com a pessoa simbolizada por este chifre pequeno, estaria tentando se de­senvolver dentro do império romano dos nossos dias, e que realiza­ria sua devastadora obra na terra antes de ser destruído por Jesus na sua segunda vinda.30 O livro do Apocalipse também parece iden­tificar o império romano, que já perseguia a igreja cristã, com o úl­timo animal.31 A maioria dos comentaristas segue esta linha de in­terpretação, e muitos, naturalmente, desde a Reforma, têm inter­pretado o animal como sendo a própria hierarquia romana. Con­vém notar, porém, que, seguindo este ponto de vista, teríamos que supor que o chifre pequeno deste capítulo, por surgir como um desenvolvimento do império romano, difere do chifre pequeno do

29 Cf. Ap 13.30 Cf. 2 Ts 2:3-9.31 Ap 17:9ss.

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capítulo seguinte, o qual, sem dúvida alguma, refere-se a Antíoco Epifânio, do império greco-selêucida (175-163 a.C.).

Os dez chifresMuito esforço se tem feito no sentido de esclarecer que reis,

ou potências, são simbolizados pelos dez chifres, dos quais três são derrubados para dar lugar ao chifre pequeno (v.20). A totalidade do período romano que, segundo alguns expositores, estende-se até os dias de hoje, e é tio vasto e cravejado de dinastias triviais e de monarquias em ascensão e queda que não é difícil, com um pouco de engenhosidade, encaixá-las em algum padrão histórico de eventos. No período em que se pensava que Napoleão era a besta, os dez chifres e as suas aventuras podiam ser encaixados, com al­gumas manobras cuidadosas, no padrão dos reinos que ele mesmo destruiu e reestabeleceu. De igual forma, alguns expositores desta passagem ficaram bastante excitados quando o Mercado Comum Europeu estava para atingir dez membros.

A sucessão dos quatro impérios, porém, poderia ser também: (1) o império babilónico; (2) o império medo; (3) o império persa; (4) o império grego. Este é o ponto de vista adotado por aqueles que consideram o livro de Daniel como sendo um panfleto especial­mente escrito e posto em circulação no tempo da perseguição dos macabeus (cerca de 160 a.C.). Neste caso, naturalmente, o chifre pequeno se referiria, não a algum Anticristo surgindo do Império Romano, mas, de modo simples e coerente em todas as partes do livro de Daniel, a Antíoco Epifânio.

Quanto aos chifres, de acordo com este ponto de vista, pare­cem referir-se a reis pertencentes ao Império Grego. O campo de seleção de Alexandre, o Império Grego dividiu-se em duas partes principais,32 sendo uma delas a linhagem de reis que governavam a região ao redor do Egito (os ptolomeus), e a outra uma linhagem de reis que dominavam a área da Síria, inclusive a Palestina (os se- lêucidas). Não se pode deduzir pelo texto se devemos incluir nos dez uma mistura de reis ptolemaicos e selêucidas, ou se todos devem se tirados de uma só linhagem de sucessivos reis. Quando Antíoco32 Ver Introdução, págs. 1-9.

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Epifânio tomou o poder (175 a.C.), conspirou o assassinato de dois da casa real selêucida e de um dos ptolomeus; e isto pode ter rela­ção com a descrição dos três chifres que foram arrancados e substi­tuídos pelo chifre pequeno. O tempo, dois tempos e metade dum tempo (v.25) pode referir-se aos três anos e meio durante os quais o templo ficou deserto sob o reinado de Antíoco (169-167 a.C.).

A necessidade da perspectivaCitamos apenas alguns dentre os muitos e diferentes pontos

de vista sobre qual era exatamente a sucessão de impérios que Da­niel estava vendo na sua visão e quais eram precisamente os reis representados pelos dez chifres. Não subestimamos a pesquisa, o pensamento, a observação e a imaginação daqueles que se ocupam em procurar definir com exatidão estas identidades históricas. Es­se tipo de estudo tem importância própria. Devemos lembrar-nos, porém, de que nesta visão de Daniel os animais e os chifres não sim­plesmente tinham, cada um, sua própria identidade histórica, mas eram também, cada um deles, um exemplo específico do tipo de império e de potência satélite comum que poderá surgir, e que surgi­rá, aqui e ali, vez ou outra, no campo da história humana em várias circunstâncias diferentes, com o avançar do tempo para o cumpri­mento dos grandes propósitos de Deus para com a humanidade. E viu, nos estranhos desenvolvimentos que ocorreram em cada ani­mal e que formaram a sucessão de animais e chifres, modelos do ti­po de desenvolvimento que as eras que se sucedem podem esperar ver ocasionalmente repetidos à medida que a História avança para o fim. Além disso, para ele, a interação entre um animal e outro, e de cada animal com o seu ambiente, tinha o mesmo significado típico para a História como um todo, bem como uma correspon­dência mais exata com certas questões históricas específicas. Lo­go, enquanto reproduz ante os nossos olhos e para nosso espanto estas estranhas figuras em movimento preenchendo o primeiro plano da visão, faz-nos enxergar mais além e ver que o seu quadro tem uma perspectiva rica e profunda. Mostra-nos as eras do futu­ro distante, de tal maneira que este pequeno drama de uma das eras, dado em primeiro plano, pode ser um tipo de guia para ou­tros tempos, se tivermos disposição para ver e conservar esta pers­pectiva.

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Ao interpretarmos as visões, portanto, sigamos o exemplo do próprio Daniel. Quando viu quantro animais, fez uma pergunta mais ou menos generalizada sobre apenas um deles (v.19). De iní­cio, não fiquemos demasiadamente preocupados com o significado dos pormenores, mas, sim, conservemos tantos detalhes quanto pos­sível em nossa memória. Na verdade, é melhor evitarmos ao máxi­mo os detalhes, a fim de obtermos um quadro bem amplo de toda a cena. Notemos as linhas e seus movimentos na sua totalidade, e permitamos que o quadro crie em nossas mentes, também, confor­me o seu propósito, a impressão de que fomos levados até um li­miar de onde podemos olhar, a partir da própria era de Daniel, pa­ra o futuro e até para o fim de todas as eras. À luz de tudo isso, poderemos fazer julgamentos quanto ao valor e ao lugar das coisas sobre as quais lemos em nossos livros de História e também em nos­sos jornais. E estes não serão meros juízos de valores, como tam­bém julgamentos acerca de onde se situa a era dentro desta grande série de movimentos que finalmente hão de introduzir o fim desta era.

Percebendo os sinais hojeConvém agora indagarmos que relevância tem para nós esta

minuciosa descrição da última besta, se olharmos para o nosso mundo hodierno a partir de uma profunda perspectiva da visão de Daniel. Nosso papel é descobrir que semelhanças existem entre os panoramas que nos foram descortinados e a nossa atual conjun­tura. Se conseguirmos fazer isto, talvez possamos avaliar o quan­to estamos perto do fim, ou quão rapidamente nos aproximamos dele.

Muitas pessoas, ao lerem os livros de Daniel e Apocalipse, crêem que o fim do mundo está realmente próximo. Como pri­meiros sinais deste fim que se aproxima, procuram em todos os sistemas governamentais da terra o surgimento daquilo que pode­ríamos chamar de “elementos animalescos” , os quais, segundo es­peram, se ajuntarão e finalmente florescerão como um governo mundial anti-Deus. O que nos preocupa e emociona não é apenas a ascensão de governos totalitários aqui e ali, mas também o apare­cimento de associações humanas cujo objetivo seja formar organi-

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zações centrais de alcance mundial, para dar a cada grupo local alguma forma de “liderança mundial” . As suspeitas desses estudio­sos da Bíblia, tio sérios e sinceros, tendem a recair principalmente sobre os movimentos sindicais e os mercados comuns.

Se nos voltarmos novamente para o texto entenderemos co­mo podem surgir tais temores. Há aqui, certamente, uma advertên­cia quanto ao possível surgimento, vez por outra, de um único e grande “governo animalesco” (v.19), procurando dominar exclusi­vamente pela possessão e pela força bruta (v.20), a qual é emprega­da com pretensão e autoconfiança (v.20b), a fim de introduzir al­terações em leis e tradições honradas durante longo tempo, e em costumes profundamente arraigados e humanamente acalentados (v.25); e tais mudanças são impostas porque a velha ordem se colo­ca no caminho do poder autocentralizado. Somos advertidos a es­tarmos alertas, em especial quando a peçonha deste “animal” se vol­tar principalmente contra o povo de Deus, oprimindo-o numa bata­lha tão sutil e prolongada que a resistência dos fiéis será paulatina­mente quebrada, levando-os a cederem, vencidos pelo cansaço (v. 25).

É claro que todos nós devemos ficar atentos a tais sinais dos tempos. No entanto, sejamos muito cautelosos em nossas compa­rações, indagando-nos a nós mesmos se é de fato uma atitude sau­dável, por exemplo, vivermos sempre com medo de grandes movi­mentos ou de nos juntarmos a outros que, pensando da mesma for­ma, tenham objetivos de alcance mundial. É, naturalmente, um desenvolvimento demoníaco quando as pessoas são forçadas a se fi­liarem a movimentos, associações e sindicatos, simplesmente porque nenhuma decisão livre ou nenhum protesto contra a tendência pre­valecente é permitido, quando não se respeita a liberdade individual de decisão e o indivíduo não é realmente ouvido. Destarte, as pes­soas ficam com medo de reagir, já que a resistência é acompanhada de perseguição e perda. E os direitos civis são negados. Mas não é necessariamente um desenvolvimento demoníaco quando um mo­vimento se toma grande e consegue ostentar uma organização e uma liderança de alcance mundial, caso tal poder tenha sido obti­do mediante debates livres e abertos e por métodos justos, e quan­do esse poder é sustentado pelo contínuo assentimento de pessoas que estão sempre dispostas a reconsiderar sua lealdade e a dar uma resposta livre.

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Devemos tomar cuidado, portanto, ao julgarmos à luz deste capítulo, hoje, o que está realmente acontecendo à nossa volta. É plenamente justificável que o entendamos como sendo uma adver­tência a ficarmos especialmente de sobreaviso quando a política de controle de uma nação envolve uma deliberada perversão da veracidade do evangelho, bem como o controle interno da igreja, impossibilitando assim qualquer resistência a planos e programas totalitários. Justifica-se, de igual forma, que fiquemos desconfia­dos quando as potências que detêm o controle começam a reivin­dicar para si o amor e a devoção que devem ser dados somente a Deus. Não precisamos ir muito longe para encontrarmos tais exemplos, num mundo que é tardio e aprender as lições que lhe são ensinadas por carreiras como a de Adolf Hitler. Além disso, não precisamos dizer que é uma falsa interpretação se cristãos sin­ceros, apanhados nas lutas entre as grandes potências, seja no Ex­tremo Oriente, seja no Oriente Médio ou em outros lugares, ao le­rem este capítulo de Daniel, apontarem a Grã-Bretanha, os Enta- dos Unidos, a União Soviética ou a China como sendo a besta do abismo, empenhada em destruir tanto a humanidade quanto a fé cristã.

Depressão justificável?Talvez pareça um pouco estranho que esta visão gloriosa de

um como o Filho do homem vindo com as nuvens do céu (v.13) — visão da majestade de Deus, sabendo que ele está no trono, contro­lando e julgando incessantemente todas as coisas (vs. 13, 14) — não tenha curado inteiramente a Daniel de sua depressão. Os meus pen­samentos muito me perturbaram, e o meu rosto se empalideceu (vs. 15, 28). Daniel, no entanto, estava sendo realista. É terrível começar a entender o pleno e presente poder das forças demonía­cas que invadem a vida, a devastação que elas podem operar e o inferno criado pela sua presença para indivíduos e comunidades. E hoje, não seria necessário um realismo semelhante? Será que a vinda de Cristo transformou a tal ponto a situação que já não preci­samos participar de semelhante ansiedade e pesar por causa da des­truição que o mal pode causar?

Nos dias atuais muita gente afirma que, a partir da ressurrei-

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ção de Jesus, o poder do mal foi tão plenamente destruído que já não há motivo para o cristão preocupar-se com a sua extensão, de­vendo antes procurar cultivar uma atitude de alegria e serenidade, e não de pesar. Este tipo de raciocínio é muito atraente e persua­sivo, mas devemos considerar com muito cuidado dois aspectos do Novo Testamento, no que se refere a esta questão. Em primeiro lugar, não há dúvida alguma de que o mal é um poder derrotado, e que está a caminho do fim. Jesus Cristo já derrotou o poder que jaz por trás de toda força maligna nesta terra.33 O Novo Testamen­to expressa este fato de modo pitoresco, quando nos convida a ver que, desde a vinda de Cristo, os poderes do mal foram expulsos da sua fortaleza celeste. No capítulo 12 de Apocalipse há um quadro vívido da guerra no céu e do diabo sendo lançado fora do céu e jogado na terra.34 Isto nos faz lembrar a afirmação do próprio Je­sus de que, em virtude da sua obra aqui na terra, ele viu Satanás “cair do céu como um relâmpago” .35 Trata-se de uma perda radi­cal da influência do poder do mal sobre esta criação, sendo este o primeiro efeito da obra de Cristo. Se Daniel soubesse mais deta­lhadamente como ocorreria o triunfo definitivo do Filho do homem sobre o mal, talvez não tivesse passado por tanta depressão, nem teria permitido que as terríveis façanhas do último animal e do chifre pequeno absorvessem tanto a sua imaginação.

Mas, ao mesmo tempo em que enfatiza tão claramente a na­tureza completa da vitória do Filho do homem sobre o diabo, o Novo Testamento ressalta o fato de que as forças derrotadas do mal ainda não foram destruídas, e ainda possuem tal poder para causar devastação e tragédia que precisamos lutar em oração e je­jum, vigiando com “temor e tremor” .36 No capítulo 12 de Apoca­lipse o escritor afirma que, já que foi expulso do céu, Satanás desceu à terra com fúria ainda maior, resolvido a fazer coisas horríveis antes de ser finalmente destruído. Isto significa que, ao contrário do céu, que agora está livre do inimigo, a terra deverá passar por um sério período de provações provenientes deste inimigo ferido, na sua malevolência e fúria. “Por isso, festejai, ó céus, e vós os que nele habitais. Ai da terra e do mar, pois o diabo desceu até vós,33 Jo 12:31; C12:15.34 12:7-935 Lc 10:18.36 Ef 6:12; 1 Pe 5:8.

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cheio de grande cólera, sabendo que pouco tempo lhe resta” .37 Mais uma vez, isto nos faz lembrar as advertências de Jesus quanto a en­cararmos com mais seriedade os distúrbios que serio criados pelas potências malignas em todas as esferas que ainda ocupam, à medi­da que se aproxima o seu fim.38 Portanto, o que deprimia a Daniel permanece ainda hoje. O mal existente na terra ainda tem o poder de possuir e controlar indivíduos, instituições e comunidades, a tal ponto que nunca podemos esquecer a advertência do próprio Jesus: “Vigiai e orai” 39- o que dá grande destaque à bem-aventurança: “Bem-aventurados os que choram, porque serio consolados.”40

A necessidade da vigilânciaPodemos, pois, aprender alguma coisa de Daniel, mesmo na

sua depresslo. Vivendo e atuando muito mais perto das realida­des governamentais do que é possível para a maioria de nós, ele tinha plena consciência da dimenslo do terror inerente quando o poder é colocado nas mios de homens pecaminosos. Seu exem­plo pode, no mínimo, nos alertar a sermos realistas. Devemos vi­giar contra o mal, assim como vigiam os que estio pessoalmente em perigo. Aquela vislo da bestialidade em que estava envolvida a própria administração pública na Babilônia talvez despertasse em Daniel algumas dúvidas quanto à sua própria partidpaçlo nos ne­gócios públicos. Ainda hoje, cada um de nós cone o risco de se envolver demasiadamente na luta em prol do poder, da riqueza e da posiçlo social dentro da sociedade. Muitas vezes essa luta é tra­vada de uma forma tio bestial, feroz e impiedosa quanto a que se passou ante os olhos de Daniel, na vislo descrita neste capítu­lo. Se nos comprometermos com ela, a tendência é ficarmos desu- manizados no próprio decurso da luta, quer ganhemos ou nlo. E nem mesmo abrigando-nos na igreja poderemos escapar deste pe­rigo. Este mesmo espírito, que gera a bestialidade e leva um ani­mal a devorar o outro, Paulo o encontrou em plena açlo na igreja da Galácia, onde as controvérsias, bisbilhotices e processos jurídi-

37 Ap 12:12. 39 Mc 14:38.38 Mt 24:6ss, 24ss. 40 Mt 5:4.

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cos o levaram a exortar os membros, advertindo-os de que tal espí­rito poderia conduzi-los à mútua destruição: “Se, porém, vos mor­deis e devorais uns aos outros, vede que não sejais mutuamente destruídos” .41 Nosso Senhor alertou a Pedro quanto ao perigo que estava correndo, pois a tentação da parte de Satanás iria ser tão dura que a sua fé seria provada até os últimos limites, e que ele somente sobreviveria devido às orações e à graça de Cristo.42 Nunca devemos pressupor que, porque Cristo já venceu o diabo, os poderes contra os quais devemos agora nos resguardar sejam tão fracos, e o perigo tão trivial, que podemos agir como se a vida fosse uma brincadeira e não uma guerra constante e implacável. Ésta é uma esfera em que as nossas decisões sobre qual dos dois lados apoiaremos ainda estão carregadas de conseqüências infini­tamente sérias.

Mesmo assim, é significativo que o horror proporcionado pelo desenvolvimento do último animal não foi revelado a Daniel até que ele já tivesse visto o triunfo final do “Filho do homem”.

Podemos dar graças a Deus porque esta é a ordem bíblica dos fatos. A verdadeira natureza dos poderes malignos que devas­tam esta terra, o inferno que caracteriza a existência desses pode­res tanto para a humanidade quanto para eles mesmos, nunca são revelados na sua totalidade, até serem enfrentados por aquele que possui o poder para vencê-los e nos salvar deles. Um fato freqüen­temente esquecido é que muitos dos aspectos mais vívidos e pavo­rosos do tradicional quadro cristão de Satanás, e até mesmo dos tormentos do inferno, provém do ensino do próprio Jesus. Não devemos, de modo algum, negligenciar a leitura deste ensino, nem passar por cima daquilo com que visa nos confrontar, se bem que, de igual forma, não convém ficarmos absorvidos apenas neste as­pecto do evangelho. Perto do final da sua vida, o próprio Jesus colocou tudo na sua verdadeira perspectiva: “Chegou o momento de ser julgado este mundo, e agora o seu príncipe será expulso. E eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a mim mesmo.”43

41 G1 5:15.42 Lc 22:31,32.43 Jo 12:31, 32.

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Daniel 8

O BODE E O CHIFRE PEQUENO

A visão: Alexandre Magno e Antíoco Epifânio

Duas séries específicas de eventos são focalizadas neste capí­tulo. A primeira coisa que nos chama a atenção é a repentina der­rota do carneiro pelo bode, tendo como seqüela o colapso do pró­prio bode (vs. 1-8).

A história é contada de forma dramática. Enquanto Daniel estava observando o carneiro, notando sua confiante demonstra­ção de grande força, dando marradas em todas as direções (v.4), irrompeu contra ele, de onde ele menos esperava, o ataque mais repentino e devastador. Um bode surgiu do ocidente e simples­mente investiu contra ele sem qualquer aviso prévio (v. 5). Tal foi o efeito do assalto que o grande carneiro, paralisado, caiu indefeso por terra, sendo então pisoteado e esmagado pelo seu conquistador (vs. 6,7).

Se a conquista do bode foi dramática, seu eclipse também foi. No seu triunfo se engrandeceu sobremaneira (v. 8). Mas foi só por um momento. No auge da sua confiante e exuberante auto-afirma­ção, o animal de aparência nobre foi repentinamente despojado do seu poder e levado a um estado de total humilhação.

Ao contrário de outras visões no livro de Daniel, esta não dá margem a muita controvérsia sobre qual dos aspectos dramáticos corresponde a que parte da História. Quase todos os comentaris­

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tas reconhecem que a totalidade da visão, até aqui, refere-se à as­censão e queda de Alexandre Magno. O próprio texto dá claramen­te esta interpretação (vs. 20, 21). O carneiro que primeiramente domina o cenário e que dá marradas triunfantes para o ocidente e para o sul, espalhando tudo quanto acha no seu caminho, represen­ta o império persa. O bode de chifre notável, o qual, numa investi­da relâmpago, vence o carneiro mas quebra o próprio chifre no es­forço, representa Alexandre, que ganhou, vitória após vitória, dos persas, atacando com uma rapidez empolgante desde 334 a.C. Com impulso cada vez maior continuou até a índia, na conquista do mun­do dos seus dias; mas já em 325 a.C., no auge do poder, teve um re­pentino colapso.

Continuando a leitura deste capítulo, a nossa atenção é desvia­da de Alexandre para outra figura que toma o seu lugar no cenário, aparecendo depois de um certo tempo. Primeiro vemos o chifre notável, que simbolizava Alexandre, dissolver-se num grupo de qua­tro chifres notáveis (v. 8). Estes são os quatro generais que retoma­ram o poder de Alexandre, e que representam, em última análise, quatro reinos gregos. De um destes brota um chifre pequeno (v. 9). É descrito como pequeno porque, desde o início da sua carreira, não havia uma migalha de grandeza potencial na sua pessoa. Sua política era aquela que é inevitavelmente empregada por pessoas insignificantes que procuram apossar-se do poder. A astúcia e o engano (v. 25) eram suas principais armas. Tinha de se engrandecer no seu coração e, assim, apelava para a fanfarronice e a gabolice. Mesmo assim, é mencionado aqui como sendo um inimigo muito mais perigoso dos propósitos de Deus do que Alexandre ou o impe­rador persa anterior. Sua ascensão ao poder envolveu o povo ju­deu numa luta de vida ou morte pela sobrevivência e pelo suces­so do serviço de Deus.

O chifre pequeno era, sem dúvida alguma, Antíoco IV Epi­fânio. Foi pouco antes de 170 a.C., após bancar o importante de vários e mesquinhas formas, que obteve o poder na Palestina, a ter­ra gloriosa (v. 9). Uma vez instalado, dedicou-se à destruição de tu­do quanto representava a religião judaica, tendo o alvo de deitar por terra a verdade (v. 12). Quando o texto nos conta que a alguns do exército e das estrelas lançou por terra e os pisou (v. 10), a ex­pressão é usualmente interpretada no sentido de que ele delibera­damente selecionou para o martírio testemunhas destacadas da co­

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munidade, sendo este ato seguido por ataques desavergonhados e mais diretos contra o próprio príncipe do exército (v. 11). Estes ataques finais assumiram a forma de decretos que proibiam os sa­crifícios e aboliam as festas religiosas e a observância do sábado, chegando ao clímax quando ele colocou uma guarda armada na área do templo, profanando o próprio santuário.

Foi-lhe permitido operar esta horrorizante devastação duran­te um período considerável, até duas mil e trezentas tardes e manhãs (v. 14), para que então as coisas pudessem ser novamente endireita­das. Alguns comentaristas pensam que esta expressão significa li­teralmente 2.300 dias (ié ., entre seis e sete anos) e que se refere a aproximadamente todo o período de intensa perseguição aos ju­deus por Antíoco. Outros acham que significa 1.150 dias, e que diz respeito ao período específico durante o qual cessaram os sa­crifícios no templo.

Uma história sem um indído: o absurdo do resultado finalSe acreditamos em Deus, devemos crer também que há algum

significado na história humana, embora obscuro. As coisas que acon­tecem têm que ser ordenadas e controladas de tal forma que, em úl­tima análise, cooperem para o desenvolvimento dos propósitos de Deus. No final das contas, a bondade precisa ser justificada e a mal­dade destruída; e muitas vezes a leitura da História nos adverte e até mesmo nos ensina. Quando lemos o registro dos fatos ocorridos em algum lugar,em algum período distante, evantualmente podemos ver na própria História evidências de uma mão divina a esboçar pa­ra nós, hoje’, alguma lição de moral, de política ou econômica. Quan­do comparamos o destino e a sorte de diferentes sociedades e de diferentes indivíduos, percebemos como as coisas podem aconte­cer conosco em nosso tempo, e somos levados a fazer perguntas sobre o significado da própria vida.

No entanto, se nos limitarmos a interpretar a História so­mente com a nossa própria perícia, imaginação e sabedoria, a nos­sa mente acabará profundamente perturbada com perguntas que nos deixarão perplexos. As coisas que têm acontecido são às vezes tão absurdas e chocantes que ficamos imaginando se de fato exis­te algum vestígio de propósito evidente na vida humana. Com cer-

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teza não podemos ficar imaginando as razões por que tal destino ocorreu a uma pessoa, ao passo que a uma outra coube sorte dife­rente. As histórias dos malandros da vida estão cheias de bênçãos inexplicáveis; e as histórias dos heróis da vida estão cheias de inex­plicáveis tragédias.

É óbvio que Daniel pensou nisso quando, pela primeira vez, viu estas cenas históricas projetadas e encenadas na tela da sua vi­são. ficou deslumbrado, tal era a fascinação dos eventos que via. Mas também ficou perturbado, pois as perguntas que surgi­ram lhe atormentavam a mente. Mesmo assim, sentia que a visão devia ter um significado profundo, e que lhe transmitia alguma mensagem divina pois, com certo temor e surpresa, procurou enten­dê-la (v. 15). E, por fim, um indício quanto ao seu significado te­ve que ser dado por um anjo. Antes, porém, de continuarmos len­do para descobrirmos essa indicação, convém perguntar-nos a nós mesmos o que havia na visão que, nesta primeira impressão, o te­ria deixado tão perplexo e preocupado ao ver as cenas.

O triste e incongruente fracasso de Alexandre no auge da sua carreira deve ter-lhe dado o que pensar. O bode se engrande­ceu sobremaneira; e na sua força quebrou-se o grande chifre (v. 8). Este fora quebrado pela mesma intensidade do impacto que lhe conquistara o espantoso sucesso. Toda a sua força tinha sido aplica­da na conquista daquilo que ele se revelara fraco demais para man­ter. Colocara muito de si mesmo no conflito, alcançando uma vitó­ria grande demais. Desgastara tanto de si próprio e de suas ener­gias que, exausto, cavara a sua própria queda. Não se tratava de qualquer falha ou imperfeição no seu esforço mas, sim, da total dedicação à sua causa e ao seu propósito, o total brilhantismo do seu sucesso, que o levou ao fim.

Certo pregador escocês que serviu como capelão na Primeira Guerra Mundial dedicou boa parte da sua introspecção e experiên­cia ao primeiro sermão de um livro chamado Mais que Vencedores (“More than Conquerors”), publicado em 1935. Neste livro, seu autor, E.DJarvis, mostra que, embora parecesse que os britânicos tivessem vencido a guerra, a História ensina que a regra usual é que os vencedores acabam derrotando a si mesmo, em virturde das des­pesas colossais envolvidas no esforço pela vitória. Ser o conquista­dor em geral é tão dispendioso que dificilmente vale o esforço. Foi por isso, acreditava ele, que Paulo afirmou que em Cristo somos

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“mais que vencedores”,1 O mesmo Paulo, numa outra carta, exor­tou seus leitores a tomarem toda a armadura de Deus, a fim de não somente resistirem ao maligno no dia do ataque, como tam­bém, depois de tudo terem vencido, finalmente “permanecerem inabaláveis” ,2 pois com que freqüência o vencedor cai! Como é comum vermos na História homens e mulheres colocarem tudo em alguma realização da vida! A finalidade é boa; o esforço é cheio de nobreza; suas melhores habilidades e recursos são livremente dados e livremente gastos; é magnífico, e acabam por atingir o al­vo que estabeleceram, e até mais. Porém, no momento da realiza­ção, tudo entra em colapso, simplesmente porque se esforçaram demais, e se entregaram com excessivo entusiasmo. O poder para desfrutar da realização foi sacrificado pelo desgaste colossal para atingi-la.

Mesmo nos níveis mais corriqueiros da vida, vemos muita coisa dessa natureza. Com freqüência as pessoas na vida acadêmi­ca, comercial, política e social dão tudo no esforço para atingiremo alvo, com um afã que pode ser chamado bom em si mesmo. E quando o conseguem - o emprego, as honras, o grau universitário, a posição social, a reputação, a fortuna — descobrem que, com o seu esforço, fizeram danos irreparáveis ora à saúde, ora à disposi­ção de coração e espírito para desfrutarem as coisas de maneira simples e entusiástica, ora à competência para aproveitarem as no­vas oportunidades que agora existem em abundância. Descobrem que alguma coisa se rompeu como aquele chifre notável da visão, e que acabaram se destruindo.

Para Daniel, possivelmente os contrastes irônicos entre Ale- xadre e Antíoco Epifânio, apresentados nas visões, foram tão entris- tecedores e desconcertantes quanto a tragédia pessoal de Alexan­dre. Este último talvez tivesse muitos defeitos de caráter, porém, mesmo no relato mais superficial das grandes realizações e mudan­ças ocorridas em questões envolvendo campanhas militares, Ale­xandre seria selecionado com menção especial. E, comparado a Antíoco, é mostrado aqui não somente como tendo certa gran­deza, mas também alguma honra. No capítulo anterior Daniel descreveu os conflitos da História geralmente assumindo a forma

1 Rm 8:37.2 Ef 6:13.

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de uma luta entre repugnantes animais surgidos do abismo, mas o conflito de que Alexandre participa aqui é descrito como uma prova de força entre dois animais com aparência muito mais no­bre. A quem merece honra seja dada honra.3 Com todo o seu brilhantismo como general e líder, Alexandre deve ter tido tam­bém algumas outras qualidades de caráter admiráveis, pois demons­trava extraorinária força diante de dificuldades insuperáveis, e foi vencendo até o triunfo final. Nisto ele é colocado em contraste com o chifre pequeno, que seria um dos seus sucessores, e que ob­teria o poder e o sucesso somente por meio de artifícios e logro.

Decerto devemos perceber, como Daniel deve tê-lo feito, a amarga ironia do assunto: o contraste entre a maneira pela qual cada um obteve o poder e o fato de que, onde o grande e nobre fracassou, o homem mesquinho e astuto prosperou! Antíoco nos mostra um meio mais fácil do que o de Alexandre para alcançar­mos nossos objetivos nesta vida, e para sobrevivermos desfrutando aquilo que conseguimos. Ou seja, através da prática de uma polí­tica sórdida e da astúcia, ao invés de gastarmos a nossa força num conflito honesto e aberto. Antíoco é bem sucedido e desfruta do sucesso por muito mais tempo do que Alexandre. Realmente ob­tém o que quer, e isto com os nervos e a energia intatos. Quando atinge o seu alvo na terra, pode sentar-se confortavelmente e pla­nejar como começará a atacar o próprio céu; e, mesmo aí, é-lhe permitido fazer danos consideráveis! Tudo isto será feito por um homem muito pequeno, sem muita capacidade para confronta­ções abertas com seus iguais, mas que é perito em agir por baixo do pano, com o que é desleal e pervertido. E embora nâo tenha muita bravura, não lhe faltam jactância e impudência. Engana e depois surpreende suas vítimas, especialmente aquelas que espe­ram dele coisas francas e corretas.

Ao considerar tudo isto, Daniel talvez tenha refletido, tam­bém, sobre a ironia do fato de que o sucesso de Antíoco somente foi possível por ter sido Alexandre o pioneiro que lhe abriu o cami­nho. Quanta ironia há na carreira deste homenzinho cheio de as­túcia e de subterfúgios, que consegue continuamente tirar provei­to da realização e da obra do seu grande antecessor! Às vezes, é no rastro dos corajosos e bons que se faz uma entrada para os ma­

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landros e os ladrões. A obra pioneira de um David Livingstone abriu parte do continente da África para os traficantes de escra­vos e para os comerciantes de bebidas alcoólicas. Um país pode ser governado durante certo tempo por generais sábios e patriotas heróicos que obtêm novas liberdades para o povo e novas oportu­nidades para edificar uma nova sociedade, mas que, finalmente, deixam o governo cair nas mios de homens pequenos, sem ideais nem coragem, sem verdadeira visão, que estão apenas à busca do seu próprio engrandecimento e lucro.

No caráter de Antíoco Epifânio não existiram qualidades nobres para explicar como se tomou tão grande. Atingiu o poder favorecendo quaisquer pessoas que traíssem seus próprios amigos e aliados, e aquelas que não tinham escrúpulos. Até mesmo quan­do subiu à posição mais alta, comportou-se como se ainda estives­se no submundo. Naturalmente, ele é quebrado no fim, pois, de algum modo, há sempre um fim para tudo quanto existe na terra. Teve, porém, uma carreira longa e “bem-sucedida” . E é acerca de­le e de outros como ele que um grande observador da História, mui­to tempo antes de Daniel, escreveu nas suas meditações:

“Vi ainda debaixo do sol que não é dos ligeiros o prê­mio, nem dos valentes a vitória, nem tão pouco dos sá­bios o pão, nem ainda dos prudentes a riqueza, nem dos entendidos o favor; porém tudo depende do tempo e do acaso . . . Ainda há um mal que vi debaixo do sol, erro que procede do governador: O tolo posto em gran­des alturas, mas os ricos assentados em lugar baixo. Vi os servos a cavalo, e os príncipes andando a pé como servos'sobre a terra” .4

Um antegozo e um prenúndo do AnticristoDeve ter trazido algum alívio à perplexidade de Daniel ouvir

o anjo-intérprete contar-lhe que a visão se refere ao tempo do fim (v.17). Somente depois de entender o tipo de fim, ou clímax, em cuja direção a História estava avançando, é que poderia entender a visão.

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A esta altura, convém relembrar o impacto da visão registra­da por Daniel no capítulo 7. Sugere-se ali que, perto do período final da história humana, pouco antes de chegar finalmente o reino de Deus, deve surgir do meio do redemoinho do conflito entre as nações uma figura de importância infinitamente sinistra. Numa última e desesperada tentativa de estragar tudo quanto Deus tem feito, ele instigará e conduzirá as pessoas à uma rebelião final con­tra a vontade de Deus. Procurará destronar o próprio Deus e es­palhar as hostes dos céus. Este será o Anticristo final, e o tempo do fim, portanto, será um tempo de grandes conflitos. As for­ças demoníacas que surgiram do abismo, aliadas deste Anticristo, e que se incorporaram a uma potência mundial, empenhar-se-ão numa luta titânica contra a verdade e o poder de Deus e contra aqueles que se aliam a ele.

No presente capítulo, a esta altura da sua educação apoca­líptica, Daniel é chamado a ver o Anticristo final assumindo for­ma corpórea neste monarca obscuro porém pretendoso. Os mes­mos poderes demoníacos que, desta última visão, são vistos sur­gindo do caos primevo, e que finalmente hão de lançar-se contra Deus nas alturas, são aqui vistos aliando-se, no decurso da Histó­ria, com qualquer soberanozinho, administrador ou eclesiástico, qualquer terrestre mesquinho que seja sufidentemente sujo para vender-se ao serviço deles. Estes poderes demoníacos até se rebai­xam para usar o pequeno Antíoco Epifânio como um dos seus instrumentos e porta-voz! E é por causa da sua sujeição a tais poderes que este homenzinho, tão insignificante em si mesmo, tão mesquinho e astuto, pode fazer uma obra aparentemente tão grandiosa. Além disso, se a entrega da pessoa é mesmo integral, estes poderes podem reproduzir, até mesmo dentro de um espa­ço tão limitado, todos os sinais, sintomas e distúrbios que se re­velarão no fim definitivo.

O espírito que possuía Antíoco e que lhe permitiu granjear o sucesso terrestre é, portanto, o mesmo que inspirará o Anticris­to final nos últimos dias. Quando o povo de Deus, no século 11 antes de Cristo, tomou-se alvo da malevolênda e da astúda deste soberano terrestre, padeda sob um ódio muito mais intenso, trai­çoeiro e resoluto do que normalmente acontece a um povo histo­ricamente escravizado. Sofria, de fato, como o alvo imediato e fá­cil dos poderes do mal que odeiam a obra divina e cuja intenção

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é destruir tudo quanto confesse o nome de Deus. Estava sendo atacado por um Anticristo típico, até mesmo antes de Cristo ter vindo em carne! Daniel, portanto, pôde atribuir uma importân­cia sem igual a esta pequena figura, Antíoco Epifânio, surgida tão dramaticamente da dinastia grega, e cuja carrèira teve um efei­to tão maligno sobre o povo de Deus, já que conseguiu dominar os seus governantes oficiais, profanar o seu santuário e até mesmo fazer cessar o sacrifício. Era um sinal e um símbolo daquilo que há de vir no fim.

Aqueles foram dias pavorosos para os que caíram nas gar­ras deste perseguidor, e os que permaneceram fiéis e que sobrevi­veram apesar disto acharam difícil conservar a fé. Grande é o seu poder, mas nffo por sua própria força; causará estupendas destrui- ções, prosperará e fará o que lhe aprouver; destruirá os podero­sos e o povo santo. Por sua astúcia nos seus empreendimentos fará prosperar o engano, no seu coração se engrandecerá, e des­truirá a muitos que vivem despreocupadamente; levantar-se-á con­tra o Príncipe dos príncipes, mas será quebrado sem esforço de mãos humanas (vs. 24,25). Ali fica ele, ali se expande para a gran­deza pavorosa e, aparentemente, nenhuma força humana pode aca­bar com ele. Não devemos culpar as pessoas que viviam naqueles dias por acreditarem que a História não poderia continuar por mui­to mais tempo, e que o fim de todas as coisas deveria ser iminente.

Somos aqui advertidos de que isto pode acontecer em nossos próprios dias; o mesmo espírito pode corporificar-se de vez e então aqui e agora, nisto ou naquilo, atuará com tamanho sucesso que os cristãos acabarão imaginando que o fim do mundo está imi­nente, já que presenciarão todas as características que hão de mar­car os últimos dias do planeta Terra. Devemos estar de sobreaviso, prontos para julgar com discernimento cada movimento novo em nosso redor, especialmente aqueles que fazem alegações piedosas. Devemos ser sóbrios, e não imaginar cedo demais que isto realmen­te significa o fim do mundo. Devemos ser confiantes, sabendo que o poder de semelhante Anticristo já foi quebrado por mão não-humana. E, ao mesmo tempo, devemos ficar profundamen­te preocupados, como Daniel e, ainda assim, em meio à preocupa­ção, continuarmos com o trabalho que está em nossas mãos (v.27).

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De volta aos negócios do rei!A experiência desta visão específica tomou Daniel fisicamen­

te enfermo alguns dias (v. 27). Mesmo após ter conseguido colo­car-se de pé, cambaleante, e voltar para o serviço, ela permaneceu na sua mente e, por algum tempo, o espantava. Psicologicamente, passou um bom tempo profundamente deprimido e infeliz. Já não podia continuar satisfeito com a sensação superficial de bem- estar e felicidade que, até então, era-lhe comum cultivar. Sentia que agora tinha de achar um novo modo de conviver com pergun­tas sem respostas, ainda mais profundas que as que havia enfren­tado até então; deveria olhar com uma consciência mais sensível os erros e acertos da História, tendo uma maior solicitude e simpa­tia para com as vítimas dos seus caminhos e tragédias. Sua reação perante o lado sórdido da História era simplesmente de total hor­ror, destituída de todo interesse mórbido.

Descobriremos no capítulo seguinte, como toda esta pres­são levou-o a buscar a Deus com oração e súplicas, com jejum, pano de saco e cinzas.5

Daniel sentiu um fardo, porque estava perto da verdade. A esta altura, como em muitas outras, o livro de Daniel nos aju­da a entender o ensinamento de Eclesiastes:

“Apliquei o coração a conhecer a sabedoria e a saber o que é loucura e o que é estultícia; e vim a saber que também isto é correr atrás do vento.Porque na muita sabedoria há muito enfado; e quem aumenta ciência, aumenta tristeza.”6

Nota-se, no entanto, que Daniel, mesmo neste período de pro­va, não deixou na sua personalidade lugar para qualquer tipo de ci­nismo; foi apenas por alguns dias que permitiu que o fardo dos seus pensamentos o deixasse doente. Depois, diz ele: Então me levantei e tratei dos negócios do rei. Sempre estava pronto para

5 9:3.6 Ec 1:17,18.

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agir, e nunca deixou de ter esperanças. Naquele tempo o rei era Balsazar, e os negócios do rei eram o cargo governamental secun­dário que os soberanos relegavam a pessoas das quais queriam se esquecer. Daniel dedicou-se ao trabalho por amor a Deus e ao futuro que, segundo acreditava, ainda existia, até mesmo para a Babilônia.

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Daniel 9

UMA ORAÇÃO E UMA PROFECIA

Daniel, a comunidade e os livros

Aparece aqui, pela primeira vez, Daniel estudando atenta­mente o que chama de os livros (vs. 1, 2). Já vimos que três ve­zes por dia ele abria as janelas em direção a Jerusalém. Mas não temos a menor dúvida de que, com a mesma freqüência, ele abria esses livros, os rolos que os exilados tiveram o cuidado de trazer da sua pátria, e de copiar para os usarem entre si. Ao lermos o re­lato da vida de Daniel, vemos claramente que a sua religião era muito mais uma religião de livros do que de visões. As leis pre­dominantes na sua vida eram basicamente as dos livros. Observan­do as suas orações, vemos que a expressão espontânea do seu co­ração se manifesta simplesmente numa série de citações, sutilmen- te entrelaçadas, daqueles livros, os quais se tomaram uma parte bem, íntima de si mesmo.

Para toda a comunidade da Babilônia, foram os livros que lhes conservaram a tradição, a teologia e a adoração íntegras, vi­vas e fiéis. Eles não tinham templo algum. Havia com certeza algumas vozes proféticas vivas que lhes podiam trazer uma pala­vra direta e nova da parte do Senhor. Sua principal inspiração, porém, vinha do estudo, leitura e interpretação das Sagradas Es­crituras. Na opinião de um recente estudioso do Antigo Testa­mento, ao descrever a vida nas aldeias onde se estabelecia a maio-

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ria deles, o seu próprio governo interno continuava a basear-se no tradicional sistema de anciãos:

Nessas aldeias coloniais, os sacerdotes naturalmente assis­tiam quaisquer atividades religiosas que porventura ainda ocorressem (cf. Ez 8:1; 14:1), em lugares de oração à beira- -rio, ou em reuniões dirigidas por homens instruídos nas Es­crituras, ou nas suas próprias casas (cf. SI 137 e At 16:13).x Depois de alguns anos no exílio, eles ainda podiam ser desa­

fiados à fé e à ação no nome de um Deus em quem podiam con­fiar porque tinham sido ensinados acerca dele, naqueles encon­tros.2 É provável que este tipo de reunião foi o que mais tarde se tomou o serviço de adoração e de instrução na sinagoga, com o qual o próprio Jesus se familiarizou.

Os livros e a presença de DeusPrimeiro Daniel nos conta que procurava nos livros alguma

luz sobre o problema da profecia de Jeremias, segundo a qual o exílio duraria setenta anos.3 Vendo que a data da volta se apro­ximava, queria saber mais. A partir de quando, para Jeremias, de­veriam ser calculados os setenta anos? Que outras palavras das Escrituras poderiam ajudar a interpretar essas profecias7

Para Daniel, entretanto, os livros significavam muito mais do que uma forma de lhe responder quanto a datas ou teologia. Acreditava que, ao procurar neles a Palavra de Deus, poderia ser levado a uma experiência com o próprio Deus. Voltei o meu ros­to ao Senhor Deus, para o buscar com oração (v. 3). Com os li­vros abertos à sua frente, sua vida passou a voltar-se para o Deus vivo, e recebia a mesma confiança em oração antigamente experi­mentada no templo de Jerusalém.

Podemos muito bem crer que esta poderia ter sido a experi­ência de todos os exilados, como também um dos maiores frutos da experiência exílica pois, ao se voltarem para os livros, eles des­cobriam que o próprio Deus se aproximava deles. Sentiam mui-

1 W. Eichrodt,Ezekiel (SCM Press, 1970), pág. 53.2 Cf. Is 40:21,283 Jr 25:11; 29:10

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ta falta do templo, especialmente por haverem percebido que o seu ritual, o seu ensino e o seu sacrifício os traziam à comunhão com Deus. Suas orações e salmos falavam de “ver a face de Deus no templo”, de “entrarem na sua presença” ali. No início do exí­lio eles logo se sentiram cruelmente privados deste acesso à pre­sença do próprio Deus vivo, bem como de tantas coisas que con­sideravam preciosas. Com o decorrer do tempo, porém, descobri­ram que os livros, pela graça de Deus, lhes estavam trazendo aqui­lo que o templo já não podia trazer. Agora parecia que tinham, através deles, uma forma íntima de se voltarem para Deus e verem a sua face e a sua presença sem ficarem desapontados. Os livros tomaram-se para eles o lugar de encontro com esse Deus vivo. E, à medida que os escutavam ou liam, na comunidade ou até mesmo sozinhos, descobriam que estavam escutando a mesma voz viva que os seus profetas e os seus sacerdotes tantas vezes declararam ter ouvido e trazido ao povo; e isto os consolava e desafiava com o mesmo poder e relevância que atuaram na vida dos seus antepas­sados na fé. Desta maneira, foi-lhes permitido, como nação, des­cobrir aquilo que hoje continua sendo um mistério novo e mara­vilhoso: que Deus vinculou muito a Bíblia com a religião viva ereal.

Naturalmente, o próprio Jesus insistiu em que a nossa devo­ção religiosa sempre deve centralizar-se nele com o caminho para o Pai e como aquele que revela o Pai; e que o nosso culto cristão deve sempre inspirar-se na sua liderança pessoal e nas ordens dele. É isto que quis ensinar ao dizer coisas tais como: “Segue-me”,4 “Eu sou o caminho, e a verdade e a vida”,5 “Se não comerdes a carne do Filho do homem e não beberdes o seu sangue, não ten­des vida em vós mesmos” .6 Para nós, isto significa que não pode­mos achar a Deus deixando de lado a sua humanidade, ou colocan­do outra coisa em seu lugar. Não pode haver cumprimento de de­ver, nem serviço aceitável, a não ser no padrão e na atitude que ele adotou enquanto esteve na terra; e não pode haver qualquer experiência de vida no Espírito, seja ela estática ou mundana, ex­cepcional ou rotineira, que não repercuta dentro de nós a vida que havia nele. Tudo isto ele ressaltou especialmente numa pa-4 Jo 21:19.5 Jo 14:6.6 Jo 6:53.

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lavra dita a Filipe num momento crítico da vida deste. Filipe an­dava um tanto insatisfeito com o que havia experimentado até ali, depois de três anos de convivência. Não lhe acontecera o mesmo tipo de visão de Deus que Isaías tivera no templo,7 ou que Moi­sés tivera na fenda da rocha,8 ou Ezequiel no exílio.9 Estava in­quieto com a idéia de que Jesus talvez estivesse para ir embora, dei­xando-o antes que ele tivesse uma visão semelhante. “Senhor,” disse a Jesus, “mostra-nos o Pai, e isso nos basta.”10 Era um cla­mor sincero por uma vida real cofti Deus. A resposta de Jesus a Filipe ocultou apenas parcialmente a sua profunda decepção, e de­ve ter sido até certo ponto abaladora: “Filipe, há tanto tempo es­tou convosco, e não me tens conhecido? Quem me vê a mim, vê ao Pai.”11 Agora, mais do que nunca, Filipe deveria levar a sério o homem que estava diante de si, para cuja amizade e serviço fora chamado e de quem não recebera ainda o melhor que viera dar. Deveria observá-lo de tal forma que começasse a ver e receber o que realmente merecia ser visto na sua humanidade e recebido da sua presença. Precisaria manter com ele um íntimo contato, em es­pecial agora, quando ele iria entregar finalmente a sua vida na cruz. Com Jesus no cenário, todas as outras maneiras de alcan­çar visões celestiais ou uma experiência religiosa mais plena eram canceladas. “Bem-aventurados, porém, os vossos olhos” , dissera ele certa vez aos discípulos, “porque vêem; e os ouvidos, porque ouvem. Pois em verdade vos digo que muitos profetas e justos desejaram ver o que vedes, e não viram; e ouvir o que ouvis, e não ouviram.” 12

A busca hojeComo vamos, porém, achar em Jesus aquilo que ele desafia­

va Filipe a procurar nele com tanto afinco? Como podemos in­terpretar, hoje, o seu convite para “comer a carne do Filho do ho­mem e beber o seu sangue” , de modo que tenhamos a vida através dele? Esta busca forçosamente nos envolverá naquilo que Daniel

7 Is 6 :1 ,2 . 10 Jo 10:8.8 Êx 33:21-22; 34:5-8. 11 Jo 14:9.9 P .e x .: E z l . 12 Mt 13:16,17.

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fez ao estudar atentamente os livros. Sem dúvida, também nos envolve em participar da Ceia do Senhor, pois é possível que Jesus se tenha referido a ela ao falar em “comer a sua carne” e “beber o seu sangue” . Porém, no sentido mais desafiador e direto, suas palavras referem-se à busca de “carne e sangue” na sua humanida­de, no lugar onde nos é apresentado da forma mais clara e simples, a saber: nas Sagradas Escrituras. Para nós, “comer a sua carne” e “beber o seu sangue” devem significar o estudo dos evangelhos no lugar que eles ocupam no coração da Bíblia; e devemos dar graças a Deus porque nossos livros são muito mais claros e comple­tos do que os que Daniel teve na Babilônia.

Atualmente, a vida das nossas igrejas demonstra que um bom número de pessoas têm se mostrado decepcionadas com o que têm encontrado em sua peregrinação religiosa, sendo tenta­das a deixar de lado os livros e, conseqüentemente, a humanida­de daquele de quem estes testificam. Alguns são facilmente leva­dos pela crença de que o segredo da segurança definitiva na vida cristã pode ser achado em alguma experiência espiritual de êxta­se ou de inspiração, não necessariamente relacionada com a Pala­vra de Deus. Outros acham que de fato uma religião de visões ofe­rece muito mais emoção e realidade do que aquilo que imaginam ser uma mera teoria religiosa. Daniel, neste capítulo, mostra-nos um caminho bem melhor.

“Quero contar-lhes uma história da minha vida” , disse o Dr. Martin Niemoller certa vez, numa reunião da So­ciedade Bíblica Nacional. “Foi como vim a conhecer o valor deste livro. Lembro-me bem de que foi no dia 2 de março de 1938. Tinha estado na prisão em Berlim oito meses, e tinha sido julgado. Depois do julgamento, fui levado pela Polícia Secreta do Estado, que me colocou numa perua e me trouxe para um campo de concentra­ção ao norte de Berlim. Tiraram-me a carteira, o relógio de pulso e a aliança, e também a minha Bíblia de bolso, que me fora permitido conservar comigo durante os dias, semanas e meses de prisão em Berlim. Nunca me esque­cerei desta primeira noite, pois não dormi um minuto se­quer. Não achava paz alguma. Culpava a Deus e brigava com ele. Eu perdera a memória durante as extenuantes

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semanas do julgamento. Por mim mesmo, não podia lem­brar-me de um único versículo do Livro, por isso depen­dia da palavra escrita. Posso assegurar-lhes que teria da­do alegremente não apenas oito bois como também oito anos da minha vida para poder ficar com aquele livro. Na manhã seguinte, quando o comandante entrou, pedi-lhe:Por favor, devolva a minha Bíblia! 0 homem hesitou.Eu era o prisioneiro pessoal do Fuehrer. Se me tratasse severamente, poderia se dar mal; e se me tratasse bem de­mais, também não daria certo. Afinal, virou-se para o or­denança e disse: Vá ao meu escritório e traga o livro que está na minha mesa. É a Bíblia; traga-a para cá. Eu ain­da não tinha passado doze horas no campo de concentra­ção, e o Livro já havia entrado lá — a Bíblia Sagrada — o livro que dá testemunho e que testifica daquele a quem pertence todo o poder no céu e na terra, até mesmo num campo de concentração. Ali estava o Livro, e ali estava Deus com toda a sua força, com todo o seu consolo, com tudo quanto eu precisava” .13

A presença, os livros e a oraçãoE agora, com os livros, e com a presença do Deus vivo e gra­

cioso, o que pode fazer Daniel senão prorromper em mais orações, num dilúvio de petições que simplesmente eram parte do aconteci­mento? Voltei o meu rosto ao Senhor Deus, para o buscar com ora­ção e súplicas, com jejum, pano de saco e cinza. Orei ao Senhor meu Deus e confessei (vs. 3,4). Segue-se a oração, rolando de versículo para versículo^ e Daniel até parece haver-se esquecido acerca da data do fim do exílio.

Podemos notar, nesta oração, a predominância da confissão (vs. 5 ,6 , 11,14,15). Quando homens e mulheres entram na presen­ça de Deus, a confissão é quase sempre a primeira coisa que lhes brota no íntimo. A presença de Deus importa na presença da san­tidade, diante da qual as pessoas sempre se sentem pecaminosas. Isaías sentiu-se exatamente como Daniel quando, no templo, ele13 Report o f the NacionalBible Society, outubro de 1959, pág. 9.

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também se encontrou com Deus. As únicas palavras que conseguiu expressar foram um verdadeiro grito de confissão, proveniente de uma experiência de profunda humilhação e corar de vergonha. “Ai de mim!” exclamou Isaías, “Estou perdido! porque sou homem de lábios impuros, habito no meio dum povo de impuros lábios, e os meus olhos viram o Rei, o Senhor dos Exércitos!” 14

A oração de Daniel contém, em grande parte, o que ele cha­mou de súplicas (vs. 3, 17, 18, 20, 23). Significa que ele pediu a Deus o que sentia mais necessitar. Pediu para si mesmo e para ou­tros o perdão e o livramento, conforme o clamor do seu coração. Orei significa “pedi” . Como poderia deixar de pedir, se a face do Senhor Deus, que via naquele momento, era a face do gracioso sal­vador paternal de Israel? Só podemos ter a certeza de que esta­mos em verdadeira comunhão com Deus se este encontro nos ins­pira a pedir da maneira como Daniel pediu! pedir o cumprimento das suas promessas em nossas necessidades, e pedir com fé, pois Deus é um Deus cuja vontade é que o seu povo viva diante dele, servindo-lhe com a força que sempre vem mediante o pedir e rece­ber.15 É isto que queremos dizer quando declaramos que ele é um Deus gracioso e que vivemos “pela sua graça” . Deus busca a comunhão conosco, como um pai que deseja que os seus filhos sempre peçam aquilo que ele promete dar. Às vezes ouvimos que devemos considerar a oração não como um meio de pedir coisas mas, sim, como um meio de comunhão com Deus. É verdade que a comunhão com Deus é um aspecto importante da oração. Na oração cristã genuína, no entanto, temos não somente a comu­nhão como também a petição.

Um indivíduo na comunidadeAssim como o Pai Nosso, a oração de Daniel é muito mais

uma oração do tipo “nós” do que uma oração do tipo “eu” . Ele apresenta não somente a sua confissão e a sua súplica pessoais, co­mo também as dos nossos reis, dos nossos príncipes e de nossos pais, e. . . de todo o povo da terra (vs. 6, 8,16), como se fossem de

14. Is 6:5; cf. Jó 42:5, 6; Gn 18:2; Dn 9:8.15 Cf. p. ex.: Is 30:19; Ez 36:37; 1 Rs 3:6;Lc 11:9.

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si mesmo. Sua preocupação mais ardente não é consigo mesmo mas, sim, com a comunidade religiosa, com a nação à qual o seu coração pertencia. A leitura dos livros fizeram-no sentir profun­damente o fardo e a vergonha por todo o povo de Deus. Sentia vergonha por haverem tratado a Deus com tanta teimosia e deso­bediência, vergonha porque, ao invés de prosperarem e de segui­rem os propósitos de Deus, testificando a sua glória, encontram-se em tal estado de humilhação e de incapacidade. Ao ler tudo isto nos üvros, perante Deus, absorvendo tudo em sua mente, as suas orações passaram a expressar de novo a paixão e os anseios do co­ração daqueles que seguiram a Abraão e a Moisés no caminho da intercessão,16 fazendo eco às lamentações, às orações e às con­fissões que tinham sido feitas por outros antes dele. Eram como as dos profetas e salmistas, reis e plebeus que, no decorrer dos séculos, foram movidos pela mesma preocupação, pela mesma perplexidade, pela mesma vergonha acerca de Israel e de todo o mundo de Deus.17

Vivendo em íntimo contato com a Bíblia, nós também po­demos sentir-nos repetidamente tomados por essa paixão e preo­cupação pelos homens e mulheres que estão vivendo sem Deus e que às vezes são forçados a viver sem amor e sem justiça; e também pela humanidade, pelo mundo e até mesmo por toda a natureza criada por Deus. Ficamos, assim, livres do nosso individualismo egocêntrico. Viver a Bíblia nos toma conscientes da comunidade, conscientes da igreja, conscientes do nosso irmão e da sua neces­sidade; e então começamos a orar de forma espontânea e autênti­ca pelos outros assim como oramos por nós mesmos.

A oração de Daniel é também pronunciada com uma soli­citude intensa e realmente individual diante de Deus. De todos os grandes personagens da Bíblia, ele é provavelmente o que está mais freqüentemente solitário; e, ao proferir esta oração, está a sós diante de Deus. Esta é uma expressão tão genuína e apaixo­nada de uma alma como todas as demais orações do livro. A sua própria necessidade pessoal nela está abrangida. O seu coração é derramado diante de Deus num intenso relacionamento “eu — tu” . Ele busca o seu perdão, a sua libertação, o seu Deus. Na Bíblia,16 Gnl8:22ss.; Êx 32:31 ,32 .17 Cf. v. 4 com 1 Rs 8:23; Dt 7:9, 12. Cf. v.5 com 1 Rs 8:47. Cf. v. 6

com Jr 6:4,5; 44 :4 .5 ; e cf. v. 7 com SI 44:15; Jr 7:19.

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uma religião individual genuína anda sempre de mãos dadas com a religião verdadeira e comunitária.

A realidade e a liturgia na BíbliaDaniel descobriu por experiência própria que a sua lingua­

gem na oração surgiu dos livros. Sua oração é a que chamaríamos de litúrgica. Compõe-se de um mosaico de frases tiradas de todas as partes dos livros que estava estudando e, conseqüentemente, me­morizando. Não há da parte dele qualquer tentativa de dirigir-se a Deus com a linguagem de um exilado na Babilônia do século VI a.C. Ele emprega o que se tomara a linguagem comum do povo de Deus após séculos de uso. Um ou dois estudiosos chegaram a suspeitar que a oração deste capítulo não é genuína, já que está escrita num hebraico muito melhor do que o restante do livro. Mas talvez a diferença seja simplesmente porque a linguagem da oração de Daniel é a mesma usada nos livros.

Este aspecto da oração de Daniel pode ajudar-nos de várias maneiras. Já dissemos18 que devemos procurar orar freqüentemen­te, mesmo quando não sentimos vontade. No entanto, se nos vol­tarmos primeiramente para os livros, como fez Daniel, e desco­brirmos que eles não nos revelam as letras mortas de um texto an­tigo mas, sim, uma voz viva, com palavras que dão vida, então não será tão difícil começarmos a falar em resposta às promessas e aos desafios que já estamos ouvindo. Este fato será ainda mais verda­deiro se lermos passagens dos evangelhos antes de procurarmos orar, ou trechos das cartas do Novo Testamento, e reconhecermos que as coisas que Jesus fazia para os outros, enquanto vivia na ter­ra, ele quer fazer para nós em nossa situação. Devemos procurar escutar a sua voz viva fazendo-nos as mesmas promessas e os mes­mos convites que fazia aos desesperados e doentes ao seu redor na­quele tempo, e que os apóstolos repetiram no que escreveram acerca dele.

É verdade que ao usarmos a linguagem bíblica para elaborar as nossas orações, podemos correr o perigo de cair no formalismo, proferindo assim orações que não passam de um amontoado de18 Vex supra, págs. 133ss.

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frases vazias.19 Esta falta de sinceridade pode ocorrer até mesmo no cântico dos hinos na igreja. Ninguém expressou advertências mais válidas contra tal prática do que João Calvino:

“A não ser que a voz e o cântico, quando interpostos na oração, brotem de um profundo sentimento do co­ração, nenhum deles tem qualquer valor ou proveito, pelo menos para Deus. Antes, despertam sua ira contra nós, se provêm somente dos lábios e da garganta, já que isto é abusar do seu santíssimo nome e desprezar a sua majestade” .20Nossas orações, portanto, devem brotar do coração, de tal

maneira que o levem consigo ao serem proferidas. Sem dúvida al­guma, quando uma oração brota do coração, freqüentemente nos encontramos orando simplesmente com as nossas próprias palavras e derramando diante de Deus os nossos desejos e a nossa devoção. A oração genuína, portanto, sempre tenderá a romper com a liturgia e com a formalidade. Por outro lado, uma longa experiência com a moderna forma de “adoração experimental” ensinou-me que, quando surge a necessidade de selecionar ou preparar e usar orações na devoção pessoal ou na adoração comunitária, então as orações que empregam a linguagem da Bíblia têm mais possibilidade de envolver o coração do que muitas das tentativas deliberadas de se criarem frases devocionais novas e não bíblicas, resultando fre­qüentemente numa tentativa um tanto patética de se falar since­ramente com Deus. Nunca devemos nos esquecer de que as orações do próprio Cristo eram elaboradas e proferidas na linguagem de­votional e na fraseologia do Antigo Testamento, assim como as de Daniel. Sua vida de oração era nutrida através da repetição das confissões e petições, súplicas e ações de graças tradicionais da vida do povo de Israel. De Jesus também provém o Espírito que deve inspirar todas as nossas orações. Um missionário pioneiro na Mon­gólia escreveu o seguinte, pouco tempo antes de morrer:

“Quando sinto que não estou fazendo progresso nas devoções, abro os Salmos e me lanço no meio deles, dei-

19 Mt 6:7.20 Instituías, 3.20.31.

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xando-me levar pela correnteza que flui através do livrointeiro. A corrente sempre flui em direção a Deus, e ge­ralmente é forte e profunda.”21

Datas. . . ou certeza?Quando Daniel começou a orar naquele dia, sua mente se

fixara em saber uma só coisa, em fazer uma só pergunta: que data Deus realmente havia fixado para a volta do exílio? A leitura dos livros, no entanto, e o reconhecimento de que estava na pre­sença de Deus, forçaram-no a colocar as suas prioridades no lugar certo. Logo começou a esquecer-se das datas na agenda de Deus e a sua mente acabou se perturbando com uma questão muito mais importante e essencial: poderia haver qualquer esperançade volta para um povo com uma história e uma atitude como as do seu próprio povo? Já vimos que a sua oração quanto a esta ques­tão é muito longa, uma das mais longas já registradas em qualquer narrativa da Bíblia. É o clamor de um coração que pede de Deus a garantia de que não permitirá que os pecados do seu povo o se­parem dele. A pergunta que lhe pesava na mente surge vez após outra, nas mais variadas formas ensinadas pela prática da adora­ção no Antigo Testamento. Seria possível que Deus perdoasse pessoas assim, com semelhante história? Deus realmente poderia levar a sério a oração de um membro de tal comunidade? Como Daniel poderia aproximar-se de Deus com qualquer outro proble­ma, se esta questão básica de vida ou morte ainda permanecia sem solução?

Mesmo assim, a questão aritmética da profecia de Jeremias permanecia em sua mente, e Deus lhe respondeu de forma extraor­dinária. Um anjo apareceu-lhe com uma lição sobre o segredo das datas, dos períodos e dos movimentos da História futura. Esta li­ção, no entanto, vem por último na seqüência e é dada somente depois de uma palavra muito marcante e bela, dando a certeza do perdão que Daniel procurava tão desesperadamente. A resposta à pergunta quanto aos números é chamada de “a profecia das seten-

21 James GUmour numa carta ao Sr. Owen, em 29 de dezembro de 1890, citada em R. Lovett, James Gilmour o f Mongolia (RTS, 1895).

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ta semanas” e será tratada numa seção a parte. Levanta tantas di­ficuldades novas e é tão repleta de ambigüidades que temos a im­pressão de que Deus deseja certificar o seu povo quanto ao futu­ro, não permitindo que fique preocupado com questões de calen­dário. Mas, primeiro, o clamor por segurança foi livremente aten­dido, com gloriosa certeza e clareza. A ordem é importante, como se fosse para encorajar todos nós a colocarmos as nossas priorida­des no lugar certo e a centralizarmos sempre as nossas orações no que é de fato essencial.

Falava eu ainda, e orava, e confessava o meu pecado e o pe­cado do meu povo Israel, e lançava a minha súplica perante a fa­ce do SENHOR, meu Deus, pelo monte santo do meu Deus. Fala­va eu, digo, falava ainda na oração, quando o homem Gabriel, que eu tinha presenciado na minha visão ao principio, veio rapidamen­te, voando, e me tocou à hora do sacrifício da tarde. Ele queria instruir-me, falou comigo, e disse: Daniel, agora saí para fazer- te entender o sentido. No princípio das tuas súplicas, saiu a or­dem, e eu vim, para to declarar, porque és muito amado (vs. 20-23).

“Não temas. . . chamei-te pelo teu nome, tu és meu.”22 Da­niel ouviu que estava sendo chamado, como Moisés, Abraão, Isaías e Jeremias também tinham sido, pelo seu nome pessoal. Nada lhe poderia ter dado uma segurança mais profunda. Mas, ao passo que Moisés e Abraão foram chamados de “meu amigo” , Daniel é “muito amado” . É-lhe garantido que, desde o momento em que começava a sua oração (No princípio das tuas súplicas, v. 23), ele já fora ouvido. Obviamente tivera suas dúvidas, como tantos de nós as temos, sobre até que ponto as suas orações estavam sen­do ouvidas. Destarte, recebe a garantia quanto a validade das suas orações, antes mesmo de receber a resposta.

Mais importante do que tais aspectos da resposta de Deus ao seu clamor por certeza é a palavra que recebe acerca daquilo que se constitui em sacrifício aceitável, conforme, passaremos a ver agora.

O homem amado como sacrifído aceitávelAgora, pois, ó Deus nosso, ouve a oração do teu servo, e

22 Is 43:1

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as suas súplicas, e sobre o teu santuário assolado faze resplande­cer o teu rosto, por amor do Senhor (v. 17).

Enquanto Daniel orava, pedindo perdão e certeza, a sua mente andava às voltas com o problema dos sacrifícios interrom­pidos em Jerusalém. Durante séculos, acreditava-se que a única maneira pela qual um indivíduo ou nação pudesse receber perdão e restaurar a sua comunhão com Deus era mediante os sacrifícios trazidos ao templo. O adorador culpado, após cometer ò pecado, trazia um animal ao altar e colocava a mão sobre a cabeça deste, confessando o seu pecado e assim transferindo o pecado para a ví­tima. 0 animal era imolado como substituto ou troca pela vida do ofertante: o sacerdote lhes assegurava o perdão, e celebrava-se uma refeição de comunhão com Deus.23 Em intervalos regula­res, havia sacrifícios de expiação pela culpa da comunidade intei­ra, quando, então, se considerava que a aliança rompida entre Deus e a nação se restaurava mediante o ritual de sacrifído.24 Os sacrifícios foram instituídos para demonstrar às pessoas que, quando vinham a Deus para obterem perdão, comunhão e poder, era necessário que o pecado fosse solucionado por uma expiação; e esta era uma questão difícil e penosa, que envolvia a aceitação do castigo e o pleno reconhecimento das conseqüências infinita­mente sérias por haver quebrado a aliança com Deus, e dos danos que fizera ao nome e à honra do Senhor.

Mas agora, para Daniel na Babilônia, o problema era grave: como seria possível que Deus perdoasse e restaurasse a nação, quando ninguém mais fazia estes sacrifícios no altar do tempo que estava arruinado, e não havia cultos de expiação? Ele acreditava que Deus exigia sacrifícios, e que o certo era sacrificar. Tudo quanto podia fazer no seu pedido de perdão, portanto, era implo­rar a Deus: sobre o teu santuário assolado faze resplandecer oteu rosto (v. 17); assim lembrando-se dos sacrifícios que haviam sido feitos no passado, Deus aceitaria Israel por causa destes, mes­mo estando o templo e o altar ainda em ruínas. Não podemos deixar de crer que era consciente e deliberado o ato de Daniel fazer sua oração à hora do sacrifício da tarde (v. 21), esperando que, de alguma maneira, este horário tivesse alguma virtude dian-

23 Cf. Lv4:27-31: 7:11-15.24 Lv 16.

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te de Deus. Implorou ao Senhor que aceitasse a si e à sua oração pelo significado que Deus mesmo tinha conferido àquele templo e àquela cidade. Inclina, ó Deus meu, os teus ouvidos, e ouve; abre os teus olhos, e olha para a nossa desolação, e para a cidade que ê chamada pelo teu nome, porque não lançamos as nossas sú­plicas perante a tua face em nossas justiças, mas em tuas muitas misericórdias. Ô Senhor, ouve; ó Senhor, perdoa; ó Senhor, aten­de-nos e age; não te retardes, por amor de ti mesmo, ó Deus meu; porque a tua cidade e o teu povo são chamados pelo teu nome (vs. 18,19).

Agora, porém, é-lhe transmitida a assombrosa mensagem de que os antigos sacrifícios já não são necessários, e que ele mesmo e as suas orações são aceitos porque neles Deus encontra um sa­crifício que lhe agrada mais. Daniel, agora saí para fazer-te enten­der o sentido. No princípio das tuas súplicas, saiu a ordem, e eu vim, para to declarar, porque és mui amado (v. 23).

O verdadeiro sacrifício que Deus deseja é o sacrifício do co­ração. És muito amado (v. 23). Não havia necessidade de Daniel enfatizar agora o sacrifício de novilhos e bodes, de implorar per­dão pela falta destes animais, de pedir que Deus baseasse o seu perdão numa suposta continuação disso tudo. Mais que o sacrifí­cio de animais, Deus deseja de nós um pacto de amor e de fideli­dade. Olha para o coração do homem que vem a ele, mais do que para o sangue derramado no altar e a fumaça que sobe do incensá­rio. Daniel seria julgado, ouvido e, juntamente com as suas ora­ções, aceito ou rejeitado, por causa do que oferecia pessoalmente ao crer nos propósitos divinos. Era aceito porque cria em Deus e naquilo que este faria em prol do futuro de Israel. Era sobre isto que Deus haveria de edificar Jerusalém doravante.

Daniel passava agora a redescobrir a mensagem de vários profetas e salmos: que o sacrifício que mais agrada a Deus é o co­ração puro e uma vida reta.25 Ao invés de simplesmente confia­rem nas cerimônias do templo, deviam, antes, corrigir injustiças e aliviar os oprimidos. Levou muito tempo para esta lição ser enten­dida. Agora sabemos o real significado de tudo isto. A sensação que Daniel tinha de ter sido aceito por causa de sua fé e por sua própria entrega era apenas uma etapa do caminho para a compre-

25 1 Sm 1 5 :22 ,2 3 ;Is 1:11-17;SI40:6;S151:16,17; Jr 29:12-14.

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ensão de toda a verdade que certo dia viria ao povo de Deus. Nós mesmos, mediante Cristo e seu sacrifício, aprendemos que todo o sistema sacrificial no templo de Jerusalém era temporário e era uma sombra da realidade. Indicava uma realidade que um dia se cumpriria na História. Era eficaz e aceito por Deus somente por prenunciar a única oferta real, o único sacrifício real, a única expia­ção real que se faria quando o verdadeiro Sumo Sacerdote viesse representar em sua pessoa a totalidade da raça humana e oferecer- se a Deus por amor de todos, no lugar de todos aqueles que pas­sassem a confiar nele para receberem o perdão.

Decerto é muito mais fácil para nós do que para Daniel apos­sarmo-nos deste novo senso de aceitação pessoal por Deus e saber­mos que as nossas orações também são aceitas e ouvidas. Talvez não tenhamos qualquer anjo visível, mas temos Cristo, que subs­tituiu todos os sacrifícios, dando-nos o seu nome como meio de acesso, ele nos livrou até mesmo da necessidade de esperarmos que o nosso coração se tome puro e a nossa vida perfeita.26 Se pertencemos a ele, somos amados e podemos pedir, confiantes de que nos ouvirá. Se pedirmos segundo a sua vontade, é certo que as nossas orações serão ouvidas, e aquilo que ele deseja para nós será efetuado através do nosso pedir. “E tudo quanto pedirdes em meu nome, isso farei, a fim de que o Pai seja glorificado no Filho. Se me pedirdes alguma coisa em meu nome, eu o farei. Se permanecerdes em mim e as minhas palavras permanecerem em vós, pedireis o que quiserdes, e vos será feito.”28

Os anjos e a respostaA resposta é trazida por um anjo chamado Gabriel (v. 21),

às vezes também denominado arcanjo, pois parece que ele tinha um lugar de destaque entre os outros anjos. O livro de Daniel agora nos obriga a atentarmos para estas criaturas, provenientes de um outro plano, onde o Senhor é exaltado e é supremo, as quais transmitem os seus recados e participam juntamente conosco dos

26 Hb 4:14-16; 8:1,2; 10:19-22.27 Jo 14:13-14.28 Jo 15:7.

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seus serviços. Por serem mencionados em nossos hinos, às vezes acreditamos que os anjos pertencem somente a uma periferia da fé cristã, e que a sua obra e o seu serviço não precisam ser levados muito a sério. Mas se somos capazes de cantar com sinceridade acerca dos anjos, devemos estar dispostos a considerar a questão. Certo estudioso muito sábio do Antigo Testamento observou cer­ta vez que, no que se refere aos anjos, devemos acautelar-nos con­tra dois extremos: o de uma “credulidade vulgar” e o de uma “in­credulidade presunçosa” .29

O espírito da época de hoje é tão cético, que a nossa primei­ra preocupação deve ser a de evitar a incredulidade. Onde quer que Deus opere, salvando-nos pox meio de Cristo, os anjos tam­bém estão presentes, não simplesmente se regozijando e admiran­do,30 não apenas provendo comunhão e encorajamento,31 como também operando e dando a sua própria contribuição à realiza­ção da vontade de Deus.32 Eles parecem ser especialmente encar­regados de exercer um cuidado providencial para com os indiví­duos.33 Devemos, portanto, deixar a nossa mente e o nosso cora­ção o mais abertos possível diante daquilo que os anjos podem di­zer-nos e fazer por nós. Karl Barth nos faz lembrar o texto de Hebreus: “Não negligenciais a hospitalidade, pois alguns, pratican­do-a, sem o saber acolheram anjos” .34 Sua interpretação35 suge­re que os próprios anjos é que são os forasteiros, e nós aqueles que devemos estar dispostos a hospedá-los, dando-lhes em nossa mente um lugar muito mais central do que talvez até agora o te­nhamos feito.

Certamente não devemos ser demasiadamente crédulos, nem fazer mais alarde sobre os anjos do que as próprias Escrituras o fa­zem. Não podemos invocá-los nem procurar entrar em comuni­cação com eles. Em nenhuma parte da Bíblia é dito aos anjos que transmitam orações das pessoas até Deus, nem agem eles como mediadores entre Deus e os homens, embora possam fazer inter-

29 John Duncan, Colloquia Peripatetica2 (edimburgo, 1890), pág. 39.30 Lc 2:10; 15:10.31 Ap 22:8,9; Mt 4:11.32 Hb 1:14; Mt 24:31; Lc 1:19.33 SI 91:11; Mt 26:53; 2 R s 6 :1 6 ,17.34 Hb 13:2.35 Church Dogmatics, 3.3. p. 415.

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cessões.36 0 texto que estamos estudando é uma passagem típi­ca. Gabriel, o anjo enviado por Deus a Daniel, nada tem a ver com a capacidade deste de alcançar a comunhão com Deus, nem é ele quem faz com que Deus o ouça. Daniel não toma iniciativa algu­ma de procurar Gabriel e nem pensa em dar-lhe algum recado. Deus ouve diretamente as nossas orações e Cristo é o único media­dor entre Deus e o homem. Em seu nome oramos, e por amor dele somos recebidos e ouvidos.

Mesmo assim, os mensageiros angelicais ajudam os homens a atingir a sabedoria e o entendimento. Tendo trazido a Daniel a ordem que saiu para ele no principio das suas súplicas (v.23), Ga­briel parece capaz de encorajá-lo e fortalecê-lo,37 e de transmitir- lhe entendimento (v. 22). Os anjos, portanto, parecem ter o po­der de se comunicar com os seres humanos e de inspirar e pro­mover pensamentos, e trazem com a sua presença a certeza de que fomos aceitos. Ao prosseguirmos em nosso estudo deste li­vro, veremos os anjos envolvidos num conflito cósmico entre os poderes do mal e o próprio Deus.

O Deus dos anjos e da humanidadeQuando Daniel orava, não estava procurando qualquer tipo

de entendimento com os anjos; estava buscando o próprio Deus. Voltei o meu rosto ao Senhor Deus, para o buscar com oração e súplicas, com jejum, pano de saco e cinza (v. 3). Face a face com Deus, na Bíblia, subentende um relacionamento pessoal, franco e aberto. Há, na oração de Daniel, o mesmo tom de íntima peti­ção pessoal que achamos nos Salmos: Ouve a oração do teu ser­vo, e as suas súplicas (v. 17).38

Mas repentinamente, ao invés da presença de Deus, apare­ce-lhe um anjo que fala como se tivesse descido de um reduto ‘lá de rima” . Entre Daniel e o Senhor, de quem esperara aproxi­mar-se, revela-se agora uma distância que parece infinita. Naque­le momento parece que Deus perdeu as feições de um amigo fa-

3637 Cf. 8:18.38 Cf. p.ex.: SI 25; 26; 63; 130.

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miliar e agora está distante e por demais exaltado para tomar pos­sível qualquer relacionamento entre ele e um mero homem.

Mesmo assim, todo o conforto e toda a intimidade de que este precisa estão presentes quando o anjo traz a mensagem. Da­niel, mui amado, fica sabendo que o Deus exaltado é o mesmo Deus que lhe é familiar, e que este sempre deve permanecer sen­do o Deus exaltado. É, então, levado a aprender a lição sobre Deus ensinada por outro dos grandes profetas: “Habito no alto e santo lugar, mas habito também com o contrito e abatido de espírito.”39

Talvez ele precisasse aprender que Deus estava mais por ci­ma dos negócios humanos do que ele pensava. Pelo que podemos ver até aqui, Daniel acreditava em um Deus cujas feições, além de familiares e amistosas, eram também majestosas; e sabia que estava lidando com um Deus assim. Nunca poderia se esquecer da visão do “Ancião de dias” assentado no tribunal com os seus assessores. Ao começar esta oração muito íntima e pessoal, diri­gida a um Deus que é procurado como quem está perto, Daniel refere-se a ele como Deus grande e temível (v. 4). Mas sempre tendera a ressaltar o envolvimento de Deus na história humana. Para Daniel, até esta altura, Deus havia sido, acima de tudo, o Senhor dos assuntos humanos, dos assuntos de Daniel, dos assun­tos de Israel, dos assuntos da Babilônia, profundamente envolvi­do na corrente dos eventos humanos e interessado em cada por­menor. Mas agora ele é relembrado de que o Deus com quem está lidando está acima e além de tudo, tem a sua própria vida, o seu próprio lugar e a sua própria comunhão. Sua bem-aventurança não é destruída, nem o seu ser esgotado pela sua participação na História. Seu trono nunca fica abalado quando os impérios da ter­ra estão cambaleando. Possui os anjos e arcanjos, e outros “mi­lhões de milhões e milhares de milhares” .40 E é nada menos que este o ambiente que servirá de base para a mais nova e profunda experiência de Daniel com respeito à certeza na oração.

39 Is 57:15.40 Ap 5:11.

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Será que o nosso Deus é pequeno demais?Também nós precisamos aprender esta lição. Nossa crença

quanto à oração é determinada por como cremos em Deus. Mas sempre colocamos os nossos pensamentos acerca de Deus dentro de um campo muito limitado, rebaixando-o exatamente ao nos­so nível, e assim, destituindo-o de quaisquer atributos que desa­fiam e exaltam, tornamo-lo pequeno demais. Enfatizamos, por­tanto, de tal maneira a glória da sua proximidade, o seu envolvi­mento em nossos assuntos, a sua identificação conosco na nossa história, que perdemos inteiramente de vista a sua independência de nós nos aspectos sublimes da sua glória. Gostamos de pensar nele primeiramente como sendo um Deus de amor, conforme nós entendemos o que seja o amor! Relaxamo-nos na certeza de que podemos apelar para Deus como alguém que nos escuta e nos enten­de. Na verdade, ele engloba tudo isso. Mas se queremos ter com ele um relacionamento satisfatório e duradouro, devemos basear­nos tanto na sua fidelidade e na sua onipotência eternas e imutá­veis quanto no seu amor. Embora ele nos dê tudo, devemos lem­brar-nos de que ele não se toma nem um pouquinho mais pobre por causa de toda a sua generosidade. Ele é amoroso e justo den­tro dos limites de sua própria santidade e glória.

Jeremias descobriu que os outros profetas do seu tempo ha­viam perdido totalmente a reverência e o temor a Deus porque tinham perdido de vista a sua santidade e a sua majestade. Por is­so ensinavam sobre ele apenas o que lhes agradava e o que lhes satisfazia os próprios sonhos. Apresentavam-no como um “Deus sempre disponível” . Seu evangelho era o de um Deus amistoso, próximo das pessoas, pronto para amar a todos. Não falavam da sua santidade, da sua ira, nem insistiam para que as pessoas se apar­tassem das más ações. Jeremias conclamou tanto os profetas quanto o povo que olhassem mais uma vez para o Deus sobre quem estavam pensando de forma tão diminuta e, por tudo deste mundo, que redescobrissem a verdade acerca dele na sua plenitude. “Acaso sou Deus apenas de perto, diz o Senhor, e não também de longe? Ocultar-se-ia alguém em esconderijos, de modo que eu não o veja? diz o Senhor.”41 Não apenas perdemos a nossa reverência e o nos-

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so temor, como também a nossa segurança, quando pensamos ne­le como estando apenas “perto” e não também “longe” .

Jesus sempre procurava ancorar os nossos pensamentos nele mesmo, como um amigo de confiança que estará conosco sempre, sem nunca fracassar na amizade e na comprensão. Por outro lado, ele nos disse que, ao orarmos, devemos dizer: “Pai nosso, que estás nos céus” . E a última visão que ele deixou de si mesmo foi a da sua ascensão para aquele mesmo céu para onde os pensamentos de Daniel se elevaram pelo ministérior dos anjos.42

Setenta semanas de anos!A resposta à oração em que Daniel pediu luz sobre a previ­

são de Jeremias acerca da duração do cativeiro babilónico é dada numa curta seção no final do capítulo: a “profecia das setenta se­manas” . Jeremias dissera que o cativeiro do povo duraria setenta anos. A partir de qual data o cálculo deveria ser feito? Havia al­gum sinal de que o fim desse período começava a aparecer? Para Jeremias as setenta semanas seriam literais, ou seria uma alegoria? Daniel estava empenhado em descobrir. Sentia que, já a esta al­tura, o tempo deveria estar perto, e que seria um evento de grande importância na obra que Deus faria na História.

O anjo Gabriel veio e, com efeito, disse que “setenta anos” para Jeremias significava “setenta semanas de anos” (v. 24) Começou a falar, não sobre a volta de Israel da Babilônia mas, sim, sobre um acontecimento muito mais distante. Foi um desafio para Da­niel desviar os olhos dos acontecimentos do futuro iminente (a libertação de Israel da Babilônia) para eventos muito mais distan­tes e importantes, que tinham a ver com o tempo do fim de todas as coisas. Por três vezes, na curta mensagem que Gabriel trouxe a Daniel, ele falou acerca deste fim (vs. 24,26).

Esta expansão da profecia de Jeremias, feita por Gabriel, não cancelou a profecia literal daquele profeta, de que o exílio haveria de durar setenta anos. Na realidade, durou aproximada­mente este período. Nas Sagradas Escrituras, todos os números desta natureza são aproximados. A palavra de Gabriel, no entan-42 L c24:51; At 1:9-11.

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to, fez Daniel lembrar mais uma vez que Deus tinha coisas maiores para considerar do que a volta do povo pelo deserto e a reedifica- ção de Jerusalém. Além disso, a palavra veio a Daniel no sentido de que a numerologia exata no prenúncio de um evento é muito menos importante do que a questão quanto a se vai mesmo acon­tecer, ou não.

Quando lemos esta nova cifra, setenta vezes sete anos, como indicação do tempo do grande evento final, devemos lembrar-nos de que ela também significa “aproximadamente quinhentos” (70 x 7 = 490). Certa vez Pedro perguntou a Jesus quantas vezes deve­ria perdoar seu irmão quando este pecasse contra ele: seriam sete vezes? Jesus respondeu que não, mas “até setenta vezes sete” .43 Com isto ele não queria dizer uma quantidade literal de quatrocen­tas e noventa vezes, mas estava, neste contexto, empregando ape­nas uma frase comumente usada para indicar um número alto.

O alvo da HistóriaO que há de acontecer ao culminar o período de setenta se­

manas de anos é descrito em termos sêxtuplos, bem no começo da profecia: Setenta semanas de anos estão determinadas sobre o teu povo, e sobre a tua santa cidade para fazer cessar a trans­gressão, para dar fim aos pecados, para trazer a justiça eterna, pa­ra salvar a visão e a profecia, e para ungir o Santo dos Santos (v. 24).

Ao lermos a profecia inteira, percebemos que o autor fala com ambigüidade considerável, e provavelmente de forma delibe­rada, acerca da data inicial do período de aproximadamente qui­nhentos anos cujo clímax este versículo descreve (cf. v. 25). Esta ambigüidade nos permite a escolha de qualquer uma das quatro diferentes datas como ponto de partida para se chegar a este clí­max, a realização descrita no versículo 24 deste capítulo. Assim chegamos ao que aconteceu quando o templo foi purificado e re- consagrado imediatamente após os eventos pavorosos da persegui­ção no reinado de Antíoco Epifânio, ou ao que aconteceu quan­do Cristo morreu e ressuscitou.

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Convém examinar com paciência o ponto de vista honesta­mente sustentado por muitos estudiosos, de que todas estas fra­ses que falam em acabar com a transgressão e com o pecado, expiar a iniqüidade ou trazer a justiça eterna referiam-se, na mente do próprio autor, ao que ocorreu nos átrios do templo em Jerusalém quando, após a terrível perseguição por Antíoco, os judeus ga­nharam a liberdade pela graça de Deus, o templo foi purificado e reconsagrado e o seu mal foi expiado. Devemos reconhecer tam­bém que, após a clara profecia deste mesmo evento no capítulo anterior, a mente de Daniel estava ocupada com a tal “semana final de anos” . Naturalmente esta visão da questão encaixa-se bem na teoria de que o livro de Daniel seria um panfleto para o tempo dos macabeus. Nenhuma explicação satisfatória, porém, parece responder à pergunta: por que o autor de um panfleto para os macabeus, ou qualquer escritor ou repórter daquela época em­pregaria linguagem tão extraordinária, mesmo que fosse para ex­pressar um extraordinário momento de júbilo? Podemos até ima­ginar que estivessem tão alegres que quisessem empilhar superla­tivos e entregar-se à poesia. Mas a linguagem deste grande versí­culo é evidentemente uma tentativa calma e deliberada de descre­ver a consumação final da história de Israel, num evento de rele­vância cósmica, envolvendo a vinda de um Messias e o destino de todas as nações. São temas profundos já mensionados de va­rias maneiras peculiares por grandes profetas como Miquéias, Isaías e Jeremias.44 De acordo com tal teoria acerca da passagem, fi­ca-se a imaginar como o escritor teria chegado à idéia de que o sa­crifício de Onias, o sumo sacerdote (mesmo supondo-se que é a este evento que se refere o versículo 26), os valentes esforços do movimento de resistência dos macabeus e a infidelidade dos ha- sidins realmente pudessem ter provocado um evento que mere­ce na História do mundo o lugar culminante que lhe é atribuído nesta profecia.

Convém, portanto indagar se há razões válidas para não reco­nhecermos simplesmente que esta passagem descreve de modo muito apropriado o que aconteceu através da vida, morte e res­surreição de Cristo. Devemos lembrar, acima de tudo, de que esta passagem não pertence a apenas um único livro sobre cujas ori-

44 Mq 4 : l-7 ;Is9 :l-7 ; 11:1-9; Jr 31:31-34.

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gens os estudiosos discordam entre si. Pertence a um livro que faz parte de um corpo inteiro de Escrituras Sagradas, em que toda vi­são e profecia (v.24) tem sobre si um selo, aplicado não pelo so­frimento de Onias ou pelas façanhas dos macabeus mas, sim, por Jesus Cristo. Quando olhamos para esta passagem à luz da vinda de Jesus, temos de reconhecer que somente ele, e não Onias nem os macabeus, poderia ter trazido a justiça eterna ao dar fim aos pecados e expiar a iniqüidade. O cristão, ao ler todas estas frases, não pode deixar de perguntar seriamente: será que isto não se refere ao que aconteceu durante a vida e a morte do próprio Je­sus? A igreja tem adotado este ponto de vista durante séculos; e um destacado comentarista refere-se a esta passagem consideran­do-a “saturada de Cristo”.

O prenúncio dos eventos vindourosGostaríamos de frisar outra vez o nosso ponto de vista de

que o livro de Daniel foi escrito na convicção de que, na história da salvação, eventos vindouros sempre são prefigurados. Na forma de acontecimentos anteriores e menores,45 podemos discernir os padrões que serão manifestos nas ocorrências finais. Destarte, nos eventos preliminares menores, Deus produz de antemão uma série de acontecimentos que tipificam aquilo que finalmente há de acontecer.

Devemos considerar, portanto, que é provável que esta pas­sagem tenha realmente um significado duplo, o que ocorre vez por outra nas Sagradas Escrituras. Por exemplo, parece muito prová­vel que no salmo 22 o escritor esteja descrevendo os seus próprios sofrimentos, ou talvez os sofrimentos coletivos da sua comunidade, o povo de Deus, quando os seus membros procuravam servir verda­deiramente ao Senhor. Mas, ao mesmo tempo, o salmo refere-se aos sofrimentos de Cristo.46 No salmo 16, quando o salmista dá expressão à sua esperança na ressurreição final: “até meu corpo se pousará seguro. Pois não deixarás a minha alma na morte” (vs. 9 e 10), ele está pronunciando uma esperança pessoal, mas, ao mesmo

45 Ver supra, págs. 170ss.46 Cf. Mt 27:46.

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tempo, de alguma forma, “sendo, pois, profeta. . . prevendo isto, referiu-se à ressurreição de Cristo” .47 Joyce Baldwin diz que “uma característica do apocalipticismo é usar eventos passados para tipificar um evento futuro de muita importância” . Ela encon­tra esta característica em Zacarias 9, onde sugere que “assim como exércitos estrangeiros sucessivos varriam pela Síria e pela Palesti­na, e reivindicavam o direito a cada território, assim também final­mente o Senhor verá toda cidade orgulhosa capitular diante de­le” .48

Portanto, quando, ao lermos a Bíblia, acharmos exemplos do que chamamos de “linguagem de duplo sentido” — descrições de incidentes ou referências a incidentes que parecem ter na pró­pria descrição mais sentido do que os incidentes logo após referi­dos — é o caso de acreditarmos que poderia ter sido a intenção até mesmo do escritor original (bem como do Espírito Santo) referir- se a algo que, segundo sentia, pertencia ao cumprimento do gran­de propósito de Deus para o futuro de Israel e do mundo. Quem ler o capítulo 53 de Isaías bem pode entendê-lo primeiramente como sendo a história de algum profeta sofredor de Deus,49 ou como o relato de pensamento mais profundo e consciente de Is­rael quanto ao seu próprio destino no serviço de Deus. Perdería­mos, porém, o seu verdadeiro significado se não o víssemos tam­bém como uma profecia acerca de Jesus. Assim também, ao ler­mos a história do sacrifício de Isaque por Abraão no capítulo 22 de Gênesis, seremos muito míopes se deixarmos de ver o significa­do mais profundo que este capítulo contém como profecia, tanto do futuro de Israel como do sacrifício de Cristo, por nos deixar­mos absorver pelo significado culminante que esse incidente repre­sentava na vida de Abraão.

Logo, ao considerarmos este versículo, nossas mentes dão aqui um salto de fé e pensamos em Jesus. Ele é realmente aquele que veio “dar fim ao pecado” ,50 à devastação que este opera em nossa mente e em nosso coração,51 à desumanidade que traz ao

47 At 2:30, 31.48 Ageu, Zacarias e Malaquias, Introdução e Comentário (Editora Mundo

Cristão, 1984).49 Cf. At 8:34.50 Mt 1:21; Jo 19:30; Hb 9:26.51 Jo 8:34-36.

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nosso relacionamento com os outros, e às trevas e à incerteza que ocultam o significado e o destino da nossa vida.52 Na realidade, Cristo veio tirar o fardo e cancelar a escravidão do nosso passado,53 “expiar a iniqüidade” e abrir um caminho para voltarmos ao nosso Pai celestial e recebermos de novo as boas-vindas do seu amoroso coração.54 Ele, e somente ele, morreu para estabelecer em todos os lugares, e para trazer a cada um de nós pessoalmente, como sua dádiva, uma justiça etema,ss e isto significa para nós aqui e ago­ra grandes e novas possibilidades de sinceridade, de inteireza e de fidedignidade em nossa própria vida, bem como de libertação e defesa dos oprimidos no estabelecimento de uma ordem social justa.S6 Foi ele quem falou do templo do seu corpo como sendo o santuário57 que receberia a unção definitiva e eficaz,58 quando, como o verdadeiro sumo-sacerdote, ofereceria a si mesmo, sem mácula, a Deus através do Espírito eterno, no lugar de todos os an­tigos sacrifícios de sangue, agora ineficazes.59

O desenvolvimento do propósito de DeusGabriel informou Daniel de que a história do povo de Deus

nesse período de quatrocentos e noventa anos (setenta semanas de anos) desenvolver-se-ia em três fases distintas: uma de sete se­manas (v.25a, quarenta e nove anos), uma de sessenta e duas se­manas (v. 25b, quatrocentos e trinta e quatro anos) e uma de uma semana (v. 27, sete anos).

No começo do primeiro período haveria a saída da ordem para restaurar e para edificar Jerusalém. Este evento poderia ser o oráculo pronunciado por Jeremias em Jeremias 25:11, cuja data pode ser fixada em 605 a.C. Outra possibilidade seria o oráculo pronunciado pelo mesmo profeta em Jeremias 29:10, que data­ria de 598 a.C. Visto que este se efetivou na História quando Jeru­salém foi destruída em 587 a.C., alguns têm adotado esta última como a data inicial mais precisa. Entretanto, a mesma saída da

52 Hb 2:14 ,15 .53 Cl 2:13-15.54 Lc 15:20; E fl:7 .55 Rm 3:21-26; At 17:30,31.

56 2 Pe 1:3-8; Lc4:18.57 Jo 2:19-22.58 Lc3:22; Mc 14:8 ,9 .59 Hb 9:6, 7 ,1 2 ,1 3 .

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ordem para restaurar e para edificar poderia também referir-se à permissão dada por Ciro aos exilados para voltarem à Palestina em 538 a.C. ou ao decreto de Artaxerxes I em 458 a.C., menciona­do no livro de Esdras.60

A vinda de um Ungido (v.25) no fim deste primeiro perío­do deve ser interpretada por algum acontecimento que ocorre aproximadamente quarenta e nove anos depois desse evento ini­cial. Aqueles que querem que a semana culminante caia nos tem­pos de Antíoco, por volta de 150 a.C., adotam uma data anteci­pada, considerando o Ungido como sendo Ciro, o rei persa;61 ou então Zorobabel, o príncipe descendente da linhagem davídica, referido especialmente em Zacarias;62 ou como sendo Josué, o su­mo sacerdote associado com Zorobabel.63 Ciro surgiu no palco da História de maneira significativa em 539 a.C. Zorobabel e Josué realizaram sua obra em cerca de 520 a.C. Se, por outro lado, esco­lhermos 458 a.C. como ponto de partida (coincidindo assim os tempos de Cristo como o final do período inteiro), devemos supor que algum outro evento corresponderia à vinda do Ungido.

Segue-se, depois, o segundo período — bastante longo, de setenta e duas semanas de anos, durante os quais* nada parece acon­tecer que seja digno de menção. Mas, visto que este longo perío­do é seguido pela semana de anos crítica e definitiva, sabemos que em seu decurso houve um desenvolvimento muito profundo, em­bora um tanto deprimido, de atitudes, de circunstâncias, de perso­nalidades e de tradições, todas cooperando para produzir essa fa­se crítica e definitiva. É um período em que se perihitiu que a pressão aumentasse até o clímax final, o conflito final, a decisão final — pois até mesmo nesta história (como em toda a História) nada é realmente definitivo ou decisivo até o resultado desta se­mana final.

Agora, se pararmos para observar esta última semana de anos, veremos que começa dizendo: Será morto o Ungido (v. 26). Aque­les que consideram a profecia como sendo rigorosamente messiâ­nica, isto é, referindo-se exclusivamente a Cristo, vêem nesta de­claração uma alusão direta aos eventos da morte dele na cruz. A60 Ed 7: l ls s .61 Cf. Is 45:1 ss.62 Zc4:6ss.; cf. Ed2:2.63 I.é., Zc3; 6:9ss.

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referência que se segue à firme aliança e à cessação do sacrifício (v.27) diz respeito, portanto, à nova aliança e à invalidação dos antigos sacrifícios. A referência à destruição do santuário diz res­peito à destruição de Jerusalém sob a liderança de Tito, quando o templo foi novamente profanado. A asa sobre a qual as abomina­ções foram colocadas pode referir-se ao pináculo do templo, ou à rampa que levava ao altar.

Aqueles que consideram que a passagem contenha ou uma pro­fecia ou uma descrição dos fatos ocorridos em Jerusalém no reina­do de Antíoco Epifânio, interpretam o Ungido que foi morto co­mo sendo uma referência ou à remoção (em 175 a.C.) ou ao assas­sinato (em 170 a.C.) de Onias, o sumo-sacerdote, que foi suplan­tado pelos favoritos de Antíoco: Jasom e Menelaus. A destruição da cidade e do santuário pelo povo de um príncipe (v. 26) pode referir-se à pilhagem de Jerusalém em 168 a.C. por tropas merce­nárias. A firme aliança com muitos é uma referência ao apoio a Antíoco por muitos judeus apóstatas. A cessação do sacrifício e da oferta e o pecado da abominação referem-se à tentativa final de Antíoco de destruir a religião judaica, ao decretar que não have­ria mais sacrifícios e que um altar dedicado a Zeus seria erigido no santuário. O decreto de Antíoco fez com que as ofertas fos­sem suspensas por um período de cerca de três anos, de dezembro de 167 até dezembro de 164.

Quando consideramos como vamos encaixar num destes princípios e num destes fins o nosso período intermediário de ses­senta e duas semanas de anos, ou seus aproximadamente quatro­centos e trinta e quatro anos, encontramos tanta dificuldade quan­to ao decidirmos com que período vamos começar e quando de­vemos terminar. Aqueles que favorecem a data mais antiga para a última semana de anos têm alguns problemas. Se aceitarmos a promulgação do decreto como uma das datas mais antigas, e a vin­da do ungido como sendo Ciro em 538 a.C., então a diferença en­tre esta data e 170 a.C. é somente de trezentos e sessenta e oito anos. Aqueles que apoiam este ponto de vista dizem que a dife­rença é devida a um erro na cronologia usada pelos judeus na épo­ca em que foi escrito o livro de Daniel. Se adotarmos como data final a época aproximada da morte de Jesus, também teremos dificuldades; só que, neste caso, estas serão menores do que as en­frentadas pelo outro ponto de vista. Convém destacar que até

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mesmo muitos estudiosos conservadores acham esta profecia tio difícil que tendem a considerar esses números como sendo mais simbólicos do que exatos. Ao analisarmos esta passagem tão contro­vertida, não precisamos imaginar que toda a nossa compreensão da mensagem que o livro de Daniel nos transmite hoje depende de captarmos com absoluta perfeição a sua interpretação. O que decidirmos aqui afeta a nossa compreensão de apenas uma parte de um livro da Bíblia, o qual, em todos os aspectos, é grandioso. E quem sabe é até de propósito que toda esta profecia pareça vaga e enigmática. Não nos cabe conhecer com exatidão estas datas.O fim pode chegar a qualquer momento e devemos estar sempre vigilantes, pois os sinais dos tempos vêm se confirmando ao nos­so redor.

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“EU, DANIEL”

O encontro final

Este capítulo conta como Daniel recebeu uma visão ou uma palavra que, de alguma forma, deixou-o ciente de que haveria, num futuro indefinido, um tempo de intenso sofrimento e prova­ção, e que talvez acabasse envolvendo-o numa tarefa difícil (vs. 1 e 10). Esta seria a última palavra que ele receberia sobre o futu­ro. Quando esta veio, ele estava preparado para recebê-la, pois fora dominado por uma excepcional e profunda consciência do seu próprio pecado e do pecado da sua comunidade. Durante três semanas, a fim de dedicar-se à oração, abstivera-se de qualquer alimento, a não ser o mínimo necessário (vs. 2-3). Este período de jejum incluiu a semana da páscoa, durante a qual o povo de Israel era lembrado do pão da aflição que havia comido ao liber­tar-se da escravidão do Egito, e também como lembrança das amar­guras sofridas naquela terra.1 É provável que Daniel tenha feito um retiro espiritual com alguns amigos (cf. v .7) porque a visão para a qual se preparava aconteceu quando estava à borda do gran­de rio Tigre (v. 4).

Ali, parece que aconteceu algo mais do que um mero sonho ou ‘Visão” comum. Quando Paulo se converteu na estrada de Da-1 Dt 16:3; Éx 12.

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masco,2 o Cristo que se apresentou diante dele e que lhe falou es­tava ali, presente não simplesmente como uma visão privativa à men­te de um indivíduo, ou fruto apenas da imaginação. De maneira estranha e maravilhosa, ele estava ali, tão presente quanto estivera diante dos seus discípulos no cenáculo: o homem que fora morto voltara do túmulo: ressurreto, celestial, mas não menos real e“objetivo” de quando convivera com eles, encarnado.3 Paulo in­siste constantemente nisto em todos os relatos da sua experiên­cia;4 e, na primeira narrativa da sua conversão, Atos registra que junto com ele havia outros, que também ouviram a voz que lhe veio, embora não vissem pessoa alguma.5 Ao contar-nos o que aconteceu às margens do Tigre, Daniel insiste em que o anjo que viu desta vez não era uma mera projeção da sua mente, pois o próprio soar da voz dele produziu um extraordinário efeito físico sobre os homens que ali estavam, pois caiu sobre eles grande te­mor, e fugiram e se esconderam (v. 7). O próprio Daniel foi mui­to mais afetado por este encontro do que por qualquer uma das visões que tivera anteriormente. Ficou com uma aparência lasti­mável e abjeta, como se estivesse tendo um mal súbito, e caiu por terra sem forças, sem sentido (vs. 8-9). Mas o ser brilhante e celes­tial tocou-o, despertou-o, ainda tremendo, e o conclamou a colo­car-se de pé, assegurando-lhe que ele era um homem muito amado. Aquele que o tocara disse-lhe aonde que, desde o momento em que começara o seu período de jejum e oração, o coração de Deus se comovera numa medida especial de confiança e favor. Esta vi­sita celestial por alguém de semelhante importância e dignidade era o resultado de sua sinceridade e de suas orações.

Mas, após receber essa mensagem encorajadora, Daniel entrou noutro colapso (v. 15); todas as suas forças se esgotaram (v. 17). Outro ser celestial, desta vez uma como semelhança dos filhos dos homens, veio e ajudou-o recuperar-se (vs. 16, 18). Devemos notar que, em algum momento deste encontro com esta personagem gloriosa e ofuscante, Daniel ficou consciente de que outros aten- dentes estavam ali, transmitindo, de alguma maneira, que aquela personagem tem uma mensagem a transmitir e um gracioso minis-2 At 9:1-9.3 Cf. Lc 24:28-314 P. ex.: 1 Co 15:3-8.5 At 9:7.

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tério para lhe dar; eles falam na sua presença com plena autorida­de. Obviamente, foi um relato confuso, pois Daniel não conseguiu distinguir completamente se foi a mão do anjo ministrador ou a mão da figura divina que os sustentou (vs. 10,16), se foi a voz do visitante celestial ou a voz de um anjo que lhe falou (vs. 11, 14). Somente quando a narrativa chega ao versículo 20 percebe-se claramente que a personagem desapareceu, ficando apenas um anjo. Este de­clara ser um companheiro de Miguel, o anjo da guarda do povo de Deus, empenhado em manter a vitória do povo de Deus no âmbi­to celestial — assim como fazia o próprio Daniel, no âmbito ter­restre — e pronto para contar a este detalhes acerca do futuro do seu povo.A presença que esmaga e que exalta

Levantei os olhos, e olhei, e eis um homem vestido de linho, cujos ombros estavam cingidos de ouro puro de Ufaz; o seu corpo era como o berilo, o seu rosto como um relâmpago, os seus olhos como tochas de fogo, os seus braços e os seus pés brilhavam como o bronze polido, e a voz das suas palavras como o estrondo de mui­ta gente (vs. 5-6).

As experiências anteriores que Daniel tivera com anjos e vi­sões já o haviam perturbado grandemente; esta, porém, era ex­cepcionalmente arrasadora, tanto física quanto emocionalmente. Mesmo assim, saiu dali revivificado, forte e em paz. A experiência por que passou é bem ressaltada no texto bíblico: . . . não restou força em mim; o meu rosto mudou de cor e se desfigurou, e não retive força alguma . . . Ao falar ele comigo estas palavras, dirigi o olhar para a terra, e calei. E eis que uma como semelhança dos filhos dos homens me tocou os lábios; então passei a falar, e disse àquele que estava diante de mim: Meu senhor, por causa da visão me sobrevieram dores, e não me ficou força alguma. Como, pois, pode o servo do meu senhor falar com o meu senhor? porque, quanto a mim, não me resta já força alguma, nem fôlego ficou em mim (vs. 8, 15-17). O poder para restaurar e consolar, porém, é igualmente ressaltado: Então me tomou a tocar aquele semelhan­te a um homem, e me fortaleceu; e disse: Não temas, homem mui­to amado, paz seja contigo; sê forte, sê forte. Ao falar ele comi­go, fiquei fortalecido (vs. 18-19).

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A identidade exata desta personagem não é revelada. Empre­ga o mesmo tipo de abordagem, o mesmo tipo de palavras e exer­ce o mesmo ministério que o anjo Gabriel. Mesmo assim, em qual­quer parte da Bíblia, somente a presença do próprio Deus produz um efeito tão humilhante e esmagador, e é somente Deus quem pode consolar e fortalecer de tal forma. Os profetas tinham esta mesma experiência quando estavam na presença do próprio Deus.6

De igual forma, um encontro totalmente humilhante, porém renovador, com outra pessoa, aconteceu ocasionalmente aos após­tolos na presença do próprio Cristo. No primeiro capítulo do li­vro de Apocalipse há uma descrição do aparecimento do Cristo glorificado a João na ilha de Patmos. Ali Cristo assumiu a mes­ma forma deste visitante celestial que veio à Daniel. Os dois têm uma aparência brilhante, braços e pernas como bronze, e um cinto de ouro.7 Os comentaristas freqüentemente têm suposto que es­te que apareceu a Daniel era, portanto, o próprio Cristo.

Segundo esta interpretação, antes que Cristo viesse em carne nos tempos neotestamentários, esteve presente também nos tempos do Antigo Testamento, trabalhando entre o povo de Deus, que era igualmente seu povo, guiando-o, levando-lhe perdão, outor­gando-lhe fé e arrependimento, apelando para ele e castigando-o, assim como fazia na história dos evangelhos, e assim como faz na igreja hoje. A única diferença é que, naquela época, não estava en­carnado, e o que ele fazia não era tão vívido, poderoso e visível quanto nos tempos do Novo Testamento. Mas era, e é, tudo a mes­ma coisa: então, numa forma mais antiga e passageira, agora numa forma nova, contínua e melhor.

Afirmamos isso, também, ao falarmos da continuidade do Novo Testamento em relação ao Antigo, e quando interpretamos o povo de Israel do Antigo Testamento como já sendo a igreja, já vivendo em comunhão viva com aquele que é o cabeça da igreja. Afirmamos a mesma coisa, também, quando cantamos os salmos do Antigo Testamento, colocando neles um significado decorrente de toda a nossa visão cristã, crendo que, mesmo ao serem compos­tos e cantados naqueles tempos, tinham este mesmo significado. 0 próprio Jesus encorajou esta interpretação do Antigo Testamen­

6 Is 6:4-8; Jr 1:6-10; Ez 2 :1 ,2 .7 Ap 1:13-16.

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to e asseverou que, antes de Abraão ter sido chamado para ir a Ur dos caldeus, ele mesmo estivera ali, e que Abraão se regozijou ao vê-lo.8

O clímax de todas as experiências de Daniel, portanto, vem no final do livro, assim como, para Jó, a experiência culminante de ver a Deus com os próprios olhos ocorreu no final do livro.9 Daniel foi crescendo e avançando nesta direção. Quanto a esta ordem dos eventos, ele difere de alguns dos profetas. Isaías e Je­remias, por exemplo, tiveram já cedo na vida encontros dramá­ticos com Deus, interrompendo o seu modo de vida e dedicando-se ao serviço do Senhor.10 Era um pouco como o homem sobre o qual Jesus falou, que de modo repentino e inesperado achou um “tesouro oculto no campo”, e que assim entrou no reino ao expe­rimentar, de uma vez para sempre, sua glória e poder.11 Daniel era mais como o homem que colecionava “boas pérolas” , e depois de uma série ‘considerável de achados, cada um melhor do que o outro, descobriu que, por fim, havia encontrado “a coisa mais valiosa” .

O custo do envolvimento e o dom da compreensãoA esta altura, quando a palavra de Deus parecia vir a Da­

niel de forma muito mais íntima e pessoal, reivindicando muito mais intensamente a sua vida e a sua lealdade, é de se notar que Daniel tivesse necessitado de tanta ajuda para chegar a um consen­so quanto ao que estava sendo exigido dele, e que precisasse se dar a tanto trabalho para entender a mensagem. Obviamente o seu coração e a sua mente foram ficando aflitos à medida que ele ponderava as coisas que lhe eram comunicadas. Poderíamos para­frasear o primeiro versículo deste capítulo com as palavras: “Em­bora esta palavra fosse verdadeira, custou-lhe muito esforço para entendê-la; apesar disso, o entendimento veio no decurso da sua visão.” De qualquer forma, o sentido do que estava sendo dito não era óbvio. A voz das suas palavras era como o estrondo de

8 Jo 8:56-58. 11 Mt 13:449 Jó 38:1 - 42:6. 12 Mt 13:45,46.

10 Is 6:lss.; Jr l: ls s .

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muita gente (v.6). De início, sob o impacto da visão e do falar, sua mente foi tomada por uma apatia profunda e sonolenta (v.9), e ele teve de esforçar-se muito para compreender e enfrentar a ver­dade daquela palavra.

A visão, segundo parece, exigia dele total rendição da von­tade e da mente. Naquele momento não podia haver qualquer disputa com aquele que ali estava; não era possível traçar limi­te algum diante da pressão da graça que procurava invadir o seu ser; não podia resguardar-se da exigência total que apelava para a sua força e para a sua alma. Uma vez mais sua vida teria que en­tregar-se a um serviço que ele sentia ser temível e ao mesmo tempo glorioso. Portanto, é de admirar que ele tremesse tanto no mo­mento da rendição?

O preço do íntimo envolvimento com Deus e com a sua Palavra é, naturalmente, ressaltado com vigor na chamada de Moi­sés na sarça ardente.13 Este levantou objeção após objeção14 à realização da tarefa, revelando ter plena consciência de quanto sofrimento, labuta e risco haveria de enfrentar, caso a aceitasse. E a realidade do sofrimento de que se esquivava é bastante evi­dente nas suas experiências com o povo, depois que este se en­tregou à orgia perante o bezerro de ouro. Moisés sentiu um certo alívio ao despedaçar contra as rochas as tábuas de pedra, mas foi forçado a escrevé-las de novo; e logo se apossou dele uma tremen­da e longa agonia, na qual orou a Deus pedindo o perdão e a res­tauração de um povo com o qual ele mesmo dificilmente conse­guia conviver.15Essa mesma retração diante de um envolvimento inevitável é tam­bém expressa de modo inesquecível por Jeremias:

“Persuadiste-me, ó SENHOR, e persuadido fiquei;

mais forte foste do que eu, e prevaleceste;

sirvo de escárnio todo o dia;cada um deles zomba de mim.

13 Ex 3:2ss.14 Êx 3 :llss .; 4 :lss, 10ss.15 Êx 32 - 34.

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Porque sempre que falo tenho de gritar e clamar: Violência e destruição;

porque a palavra do SENHOR se me tomou um opróbrio e ludíbrio todo o dia.

Quando pensei: Não me lembrarei dele e já não falarei no seu nome,

então isso me foi no coração como fogo ardente, encerrado nos meus ossos;e não posso mais.”16

Tanto Moisés quanto Jeremias, ao se entregarem, ram que eram carregados para a frente, estranhamente tes, confiantes, e até mesmo jubilosos; e foram, o fim de suas vidas pelo mesmo poder e amai ina ■ stoso que, no início, os esmagava.17 E, também no casc^ ^ m iu g y a liberdade, a luz e a alegria lhe foram dadas no ex^mw^mento da sua dedi­cação. Já mencionamos os ver cjriosJ 'igrjificativos da passagem (vs. 10, 16,18), que no: lizepi _ ie Íe)Fpi despertado e colocado em pé por um suave toque angelic^e^om o a sua nudez foi curada e os seus lábios abertos p-- o mesmo ministro celestial; e o mesmo, que lhe causara anto \ do e cujo esplendor o cegara, anunciou, por assim di/.er, bom sua própria voz, que realmente viera res­ponder à sljaróração que pedira esclarecimento do mistério que tinha dia

oje o custo é o mesmo

O propósito deste relato minucioso de como Daniel corres­pondeu à palavra de Deus não é simplesmente fazer-nos compreen­der como é interessante e singular o funcionamento de uma men­te profética, mas também lembrar-nos de quando pode nos custar, ainda hoje, o fato de se entender, receber e conviver com o mesmo tipo de palavra. É bastante fácil para nós, especialmente ao ser­mos confrontados por um livro como o de Daniel, desempenhar­

16 Jr 20:7-9.17 Cf. P. ex.: Êx 34:1-8,29-35; Jr 15:16; 16:19; 20:1.

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mos o papel tradicional de “estudantes de profecias” continuando a viver uma vida de lazer e luxo, apenas discutindo onde e como a próxima besta surgirá no cenário da História; ou onde e dentro de quanto tempo a batalha de Armagedom será travada (batalha esta em que os cavalos haverão de nadar em sangue!). E o único preço que pagamos é a agonia de alguma pesquisa superficial sobre cifras estranhas, e de umas poucas somas aritméticas não muito compli­cadas.

Mais adiante discutiremos o significado singular do ministé­rio de Daniel, ao jejuar durante três semanas. Mas o que podemos notar no momento é que a sua luta para entender e receber a pa­lavra de modo frutífero realmente envolveu o que somente pode­mos chamar de duro trabalho, autonegação e oração. Nos tempos do Antigo Testamento as pessoas levavam muito a sério a idéia de que o jejum físico as ajudava na busca de revelação e de orien­tação da parte de Deus.15 Se dedicarmos à interpretação da Bíblia concentração necessária, poderemos ser impelidos a simplesmen­te abandonar muitas coisas que, de outra forma, acabariam nos des­viando totalmente da nossa tarefa. Embora a compreensão da Bíblia seja, até certo ponto, um dom, há também a necessidade de muita disposição e trabalho para que dificuldades humanas sejam sobrepujadas, tal como acontece para o entendimento de qualquer texto antigo ou na solução de qualquer problema de pesquisa. Precisamos agir com técnica, tanto quanto possível. Tal­vez tenhamos que aprender as línguas bíblicas por nós mesmos ou consultar outros autores quanto aos problemas lingüísticos, esforçando-nos para formar o nosso próprio julgamento. O mes­mo deve ser dito quanto ao entendimento das formas de pensa­mento e das formas literárias daquela época.

Sendo nós, entretanto, pessoas comuns, sem tal conheci­mento especializado, mas com a ajuda de boas traduçOes, se pu­dermos fazer da Bíblia o principal livro de nossas vidas, de tal ma­neira que lhe permitamos dominar e moldar o nosso pensamento, como nenhum outro livro; se, de igual forma, pudermos dar-nos ao trabalho de lê-la a custo do nosso tempo, familiarizando-nos de tal forma com suas grandiosas passagens a ponto de podermos repetir muitas delas de cor; se, além disso, conseguirmos manter

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a resolução de conhecermos um pouco das paisagens, fascinantes e interessantes para as quais nos levam muitos de seus livros e capí­tulos;, então, ao agirmos assim, começaremos a captar algo da sua unidade e da sua plenitude, e nos sentiremos até certo ponto ca­pazes de entender passagens e textos “difíceis”, comparando-os com outras passagens e textos que têm um significado mais cla­ro. Descobriremos, ao fazermos tudo isso com fé sincera e ver­dadeira, que a Bíblia se dá a nós de modo extraordinário. Se con­tinuarmos buscando, acharemos; se continuarmos batendo, ser- nos-á aberto.19 Talvez pareça que a porta já esteve fechada por muito tempo, enquanto permanecíamos em pé procurando a en­trada; mas, finalmente, a nossa livre recompensa virá, ao vislum­brarmos aH, abertas à nossa frente, novas vias de significado e de enriquecimento espiritual. Além disso, acabaremos adquirindo mais entendimento, assim como aconteceu com Daniel, se estu­darmos o livro com a ajuda de outras pessoas, ou com a orienta­ção de bons expositores e pastores.

Note-se que Daniel, ao mesmo tempo em que se esforçava para alcançar entendimento, humilhava-se diante do seu Deus (v.12). Sentia que a verdade somente poderia ser recebida por quem tivesse dado o coração ao doador da revelação, por quem também estivesse disposto a aceitar todas as implicações práti­cas de conhecê-la e obedecê-la. Esta humildade diante da verda­de subentende que estamos dispostos, não somente a levar a efei­to os seus preceitos ou as suas implicações práticas, como tam­bém a submeter o nosso entendimento e o nosso pensamento à verdade de modo tão profundo que lhe permitamos moldar a nos­sa própria mente. Devemos permitir que a palavra dite qual o caminho que os nossos pensamentos devem seguir e que passos devem tomar. Devemos submeter a nossa vontade própria ao mo­vimento da nossa mente, enquanto nos submetemos à verdade que está diante de nós e, conseqüentemente, ao Deus que está presente nesta verdade. Era neste tipo de resposta que João Cal- vino estava pensando ao dizer que “um verdadeiro conhecimen­to de Deus nasce da obediência” .20

19 Cf. P v 2 : l- l l ; Lc ll:9ss.20 Instituías, 1.6 2 .

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A comunhão entre o céu e a terra no conflito cósmicoJá quase no fim do capítulo, Daniel recebe uma extraordi­

nária revelaç3o de como tanto os anjos quanto os seres humanos estão profundamente envolvidos num só e único conflito, lutando lado a lado contra os mesmos inimigos. Além disso, a hoste celes­tial precisa do apoio de intercessores terrestres, e o povo de Deus aqui na terra tem a ajuda da hoste celestial, cada qual no âmbito de seu conflito específico. Realmente recebemos uma revelação singular da comunhão entre o céu e a terra nesse conflito cósmico.

Além de mensageiros, os anjos são patronos e guardiões de comunidades e nações, e possivelmente de indivíduos aqui na ter­ra. Já vimos Gabriel com uma solicitude especial para com Daniel. Notamos, também, os vigilantes que se ocupam com a disciplina e com o bem-estar de Nabucodonosor.21 Miguel parece ter a posi­ção de guardião de Israel como nação. Entre outros, há um que é chamado de príncipe dos persas, e outro, príncipe da Grécia (v.20). Dentre eles, surge este anjo especialmente importante que se apre­senta a Daniel neste capítulo, e que parece ser maior do que qual­quer outro.

O aspecto mais importante desta revelação é que os confli­tos e tensões entre potências terrestres e o povo de Deus refletem- se no âmbito celestial, e também são travados lá. Uma tensão en­tre a Pérsia e o povo de Deus é refletida num conflito entre o prín­cipe do reino da Pérsia e Miguel (v.13). A ameaça que há de vir ao povo de Deus na parte do império grego é refletida num con­flito celestial iminente, entre Miguel e o príncipe da Grécia (vs. 20, 21). Ainda mais notável é o fato de que a agonia mais intensa de Daniel, enquanto jejuava e orava em meio a uma intensa luta in­terior, ocorreu durante o período de uma disputa no céu entre Mi­guel e o príncipe da Pérsia (vs. 3, 12). O conflito acabou com a vitória de Miguel, mas a implicação é que o próprio Daniel, por sua sensibilidade para com o que estava acontecendo no outro mundo, foi arrebatado para o meio deste conflito, podendo participar dele através das suas orações, ajudando assim, a abreviar a vitória final. Os poderes celestiais ficaram tão gratos pela ajuda das orações de Daniel, que o mensageiro celeste veio agradecer-lhe e fortalecê-lo

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da fraqueza que o conflito lhe causara, e encorajá-lo a continuar orando com a mesma disposição e ansiedade. Sabes por que eu vim a ti? Eu tornarei a pelejar contra o príncipe dos persas; e, saindo eu, eis que virá o príncipe da Grécia (v.20). É como se de­sejasse que Daniel entrasse num pacto solene, no sentido de con­tinuai a orar enquanto durasse o conflito celeste, já que ele não ti­nha outro apoio: Ninguém há que esteja ao meu lado contra aque­les, a não ser Miguel, vosso príncipe (v.21).

Assevera-se, assim, que na esfera celestial há algum tipo de participação nos conflitos e nas aflições da terra; e na esfera ter­restre, em especial mediante a intercessão do povo de Deus, pode haver algum tipo de participação no desenrolar do destino, numa escala muito mais cósmica do que freqüentemente se entende.

Temos que fazer uma escolha importante ao avaliarmos es­te singular aspecto da função dos anjos e da interação entre a esfe­ra, celeste e a terrestre. Alguns estudiosos nos advertem de que a expansão da doutrina dos anjos seria um aspecto dos escritos judai­cos posteriores quando, talvez, o conceito de Deus estava se tor­nando mais remoto e a profecia estava cessando; época em que muitas idéias estranhas, que não eram saudáveis segundo as grandes doutrinas bíblicas tomavam forma na mente do judaísmo. Mas, antes de descartarmos tudo isso como sendo uma evolução pura­mente periférica do ensino bíblico, devemos lembrar que o pró­prio Novo Testamento não apenas aceita este aspecto da doutri­na dos anjos, como também lhe dá um lugar na sua forma, de en­tender a obra que Cristo veio cumprir na expiação. Também faz uso dela para reforçar suas advertências e exortações quanto ao conflito em que estamos engajados ao vivermos a vida cristã.22

A decisiva guerra no céuO conceito de um conflito no céu, que afeta e é profunda­

mente afetado pelo que acontece na terra, é retomado no capítu­lo 12 do livro de Apocalipse (que, conforme já indicamos, depende de Daniel). “Houve peleja no céu. Miguel e os seus anjos peleja­ram contra o dragão. Também pelejaram o dragão e seus anjos;

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todavia, não prevaleceram; nem mais se achou no céu o lugar de­les.”23 Esta decisiva guerra no céu é considerada pelo escritor de Apocalipse como sendo travada na esfera celestial no tempo exa­to em que o próprio Jesus, na sua morte e ressurreição, estava com­batendo e derrotando todos os poderes do mal na arena terrestre.

JoSo, na sua visão, vê a guerra no céu terminando de modo triunfal, justamente na ocasião em que Jesus completa a sua obra na cruz e entrega a sua própria pessoa e o mundo nas mãos do Pai, Em triunfo naquele momento, “foi expulso o grande dragão, a an­tiga serpente, que se chama diabo e Satanás, o sedutor de todo o mundo, sim, foi atirado para a terra e, com ele, os seus anjos” .24 A idéia é que Jesus, mediante a sua obra de expiação na cruz, efe­tuou uma purificação e reconciliação nos lugares celestiais, bem como uma reconciliação entre Deus e o homem na terra. Sua mor­te trouxe a vitória decisiva sobre todos os poderes do mal, em to­dos os lugares. Foi isso que veio realizar, e nisso é que se regozi­jou de antemão, quando, ao ouvir contar o sucesso preliminar de seus discípulos, disse: “Eu via a Satanás caindo do céu como um relâmpago” .25

Esta visão específica no livro de Apocalipse termina com o diabo sendo encaminhado para o abismo sem fim, sendo lançado para a terra como um poder denotado, mas ainda com a capaci­dade de hostilizar e dificultar por algum tempo a obra de Deus e a do seu povo.26 Até a segunda vinda e o triunfo final de Cris­to, lutaremos, portanto, na terra contra aquilo que Paulo chama de “os principados e potestades . . . as forças espirituais do mal, nas regiões celestes” .27 É significativo que, para a vitória nesta luta, além de usarmos a armadura da verdade, da justiça e da fé na Palavra de Deus, Paulo nos diz que devemos “orar em todo tempo no Espírito, e para isto vigiando com toda perseverança e súplica” .28

23 Ap 12:7 ,824 Ap 12:9.25 Lc 10:18.

26 Ap 12:12.27 Ef 6:12.28 Ef 6:18.

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A HISTORIA REGISTRADA NO LIVRO

A palavra falada assume a direção

Este capítulo introduz muito mais um apocalipse falado, e não um decorrente de uma visão. A essência da mensagem é dada numa longa narrativa verbal. A forma de comunicação, como a da profecia das setenta semanas, contrasta notavelmente com a que foi empregada nas revelações anteriores, nos capítulos 7 e 8 de Daniel, como também com a revelação dada através de um sonho, no caso de Nabucodonosor. Nestes sonhos e visões, a mensagem é primeiramente retratada em dramáticos quadros visíveis, sendo o seu significado esclarecido posteriormente, através de uma expli­cação dos símbolos, Aqui, porém, nesta última revelação, toda a questão é simplesmente narrada às vezes com apalavras de difí­cil interpretação, mas geralmente são tão claras e precisas que dei­xam o significado perfeitamente definido, sem recorrer a ilustra­ções visuais. É uma revelação não vista, mas ouvida. Devemos supor que, sendo esta o clímax das revelações feitas a Daniel, tal mudança de enfoque, da experiência visual para a auditiva, é feita de maneira que tanto Daniel quanto seus leitores possam captar a mensagem com maior clareza e certeza.

A Bíblia inteira é cheia de exemplos de como Deus se comu­nica com o homem, tanto através de símbolos visuais quanto com palavras. Mas é digno de nota que, mesmo na maioria das visões,

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os elementos visuais nunca são tio importantes quanto as palavras que os explicam. Deus atinge os homens e as mulheres muito mais por uma abordagem auditiva do que por uma abordagem vi­sual. E, mesmo quando emprega o método audiovisual, o audio sempre parece ter prioridade sobre o visual.

Infelizmente procuramos, com muita freqüência, inverter o equilíbrio desta abordagem, em nossos esforços de mostrar a rele­vância de Deus e da fé cristã hoje. Agimos assim por acreditar­mos que a mente do homem moderno é condicionada, em gran­de parte, pela televisão, sendo mais receptiva ao que vê do que ao que é falado. Mas a pergunta central que precisamos fazer ao de­terminarmos a nossa política é se o próprio Deus resolveu alterar a sua política quanto aos meios que deseja usar.

É tolice nossa, bem leviana, supormos que agora o ver tem precedência sobre o ouvir. Precisamos pensar mais uma vez sobre a importância das palavras, pois elas são muito menos ambíguas e muito mais penetrantes e flexíveis para o uso dinâmico do que os símbolos visuais. Ê verdade que até mesmo nas comunicações verbais ainda permanece uma certa ambigüidade. Às vezes as pa­lavras podem significar para uma pessoa algo muito diferente do que para outra. Mesmo assim, as palavras têm maior rigidez de significado, e podem ser usadas num discurso com extraordiná­ria força e clareza, com positividade e urgência. Mas o abismo existente entre o que duas pessoas pensam sobre a mesma ima­gem é muito maior do que o que há entre o que a mesma pala­vra significa para uma e para outra. Apesar do uso mais habili­doso da técnica e da arte visual em nossas mensagens modernas, raras vezes existe a clareza ou o significado definido que é neces­sário quando questões de vida e morte, de salvação ou julgamen­to estio em jogo.

A história do império dividido e o seu desfechoNos primeiros trinta e cinco versículos deste capítulo, pelo

menos, narra-se de novo a história do período que já revimos ra­pidamente na vislo do capítulo 8, ou seja, as façanhas do carnei­ro, do bode, dos quatro chifres e do chifre pequeno. No começo desta recapitulaçlo slo-nos dados apenas alguns pormenores histó­

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ricos a mais do que tínhamos antes. Por exemplo, no versículo 2 somos informados de que houve três imperadores persas que fi­nalmente cederam lugar a um que era maior do que todos eles e que empreendeu uma dispendiosa guerra contra a Grécia. Os co­mentaristas têm dificuldade em definir com exatidão quem são todos eles, mas a maioria pensa que o fato se refere à campanha do grande Xerxes. O versículo 3, sem dúvida alguma, refere-se a Ale­xandre Magno. O quarto versículo nos conta o que aconteceu na ocasião da morte deste: surgiram quatro reinos (os quatro chifres de 8:8). “Cassandro conseguiu a Macedonia e a Grécia; Lisímaco, a Trácia e a Bitínia; Seleuco, a Síria, a Babilônia e outros países orientais até o Indo; ao passo que Ptolomeu permaneceu com o Egito em seu poder.”1 O quinto versículo nos fala um pouco de como Seleuco, já mencionado, subiu ao trono e conquistou o po­der sob a proteção de Ptolomeu do Egito, mas paulatinamente foi ganhando força e independência avançando em direção do norte. E agora já estamos por volta de 300 a.C. Ao chegarmos no versí­culo 6, por um longo período a história caracteriza-se por uma série de interações, alianças e guerras entre os reis do norte e os do sul. Estes últimos são os reis ptolomaicos do Egito. Os reis do norte, que às vezes tomavam o nome de Antíoco, são os reis selêucidas da região ao redor da Síria e da Palestina, cuja capital era Antioquia. Os eventos mencionados neste versículo ocorre­ram por volta de 250 a.C. Numa tentativa de estabelecer a paz e unir os dois reinos, Ptolomeu II deu sua filha Berenice enj casa­mento a Antíoco II. Ao lermos este versículo, devemos pensar nesta jovem princesa, transformada em joguete político, chegan­do em esplendor e júbilo a um palácio estrangeiro, para então tor­nar-se objeto duma implacável conspiração de família, sendo final­mente assassinada com a sua prole por Seleuco II, seu enteado, instigado pela ciumenta mãe divorciada.

Os versículos 7 a 9 contam a guerra entre Ptolomeu III e Seleuco II, decorrente deste assassinato. Ptolomeu, do sul, devas­ta e pilha os territórios do norte. Seleuco, porém, consegue recu­perar-se parcialmente, para então empreender uma invasão mal su­cedida contra o Egito. Já no fim do versículo 9 a data é aproxima­damente 240 a.C.1 S.R. Driver, The B ook o f Daniel (The Cambridge Bible, 1900), pág. 000.

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Nos versículos 10 a 12 em diante, os dois rivais principais são agora Ptolomeu III e Antíoco III, que mais tarde recebeu o t í ­tulo de Antíoco Magno. Está incluído no versículo 10 simples­mente como um dos dois filhos do rei do norte que levam guerra à fortaleza do sul. Mas seu irmão, Seleuco III, foi assassinado enquan­to a expedição estava em andamento, e ele, Antíoco, tornou-se o único soberano selêucida. O resultado desta expedição, no en­tanto, foi (v.11) uma forte reação de Ptolomeu III, que derrotou o seu oponente do norte na grande batalha de Ráfia, em 205 a.C. A esta batalha seguiu-se um tempo de paz em que Antíoco con­seguiu paulatinamente recuperar as suas forças. O versículo 13 começa com o relato da tentativa primorosamente preparada e bem sucedida que fez contra o Egito, sendo então Ptolomeu IV o rei deste país. O versículo 14 conta que Antíoco atraiu aliados (um deles era Filipe da Macedônia), dentre estes alguns judeus dados à violência, agindo numa tentativa mal sucedida de cum­prirem a profecia. Nenhum comentarista parece ser capaz de dar qualquer explicação provável quanto ao significado disso.

Os versículos 15 e 16 contam da luta prolongada e com­plicada entre Antíoco e Ptolomeu IV, que terminou por volta de 198 a.C. com a completa ascendêcia do primeiro sobre a terra glo­riosa (sem dúvida, a Palestina), o que resultou no domínio do povo judaico, de forma fatídica, pela dinastia selêucida. O versí­culo 17 fala de mais uma campanha de Antíoco Magno no sul. O fim da campanha foi o casamento de sua filha Cléopatra com o Ptolomeu reinante em 194 a.C. Destarte, ela recebeu um do­te enorme, do qual seu pai sem dúvida esperava tirar proveito; mas ela acabou se revelando uma pessoa independente.

Os versículos 18 e 19 descrevem o último episódio da car­reira de Antíoco Magno. Ao empreender uma expedição ao oci­dente, ele teve um fim desastroso, sendo morto quando, na reti­rada, tentava saquear um templo pagão.

O versículo 20 descreve a carreira de Seleuco IV. Sendo uma pessoa sem distinção, teve também um fim vergonhoso. Mas certamente era melhor do que o irmão mais jovem que o sucedeu no trono: o homem vil, o ignóbil Antíoco Epifânio, com quem nos familiarizamos tanto.22 Ver supra, págs. 163-165, 170ss.

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Agora, a partir do versículo 21, lemos mais pormenores da sua carreira. Até aqui recebemos poucas informações quanto aos pensamentos e sentimentos das pessoas que participam desta história; mas agora, no caso de Antíoco Epifânio, temos uma idéia dos seus alvos e motivos interiores. A nós é apresentado uma ava­liação geral do seu caráter, em que se ressaltam a traição e a intri­ga por meio das quais subiu ao poder (vs. 21-24). Depois, descre­ve-se a sua primeira campanha egípcia, de 170 a 169 a.C., e mais uma vez é enfatizada a sua astúcia em atividades desleais (vs. 25-28). Em seguida, há uma referência a uma segunda campanha egípcia, de onde teve que bater em retirada. Parece que foi sua fúria por causa disso que o levou a voltar-se contra os judeus (vs. 29-30a). Segue-se, então, a velha história da sua aliança com os apóstatas entre os judeus, sua perseguição feroz àqueles que ousavam guar­dar a aliança de Deus, e a profanação do templo e do altar.

A descrição do versículo 33, da resistência aposta pelos ju­deus fiéis, o povo que conhece ao seu Deus (v.32), merece estudo especial. Os entendidos entre o povo ensinarão a muitos (v.33): pode tratar-se de uma referência ao partido dos hasidins,3 ou sim­plesmente àqueles dentre os fiéis que não os deixavam enganar pelo que estava acontecendo, estando dispostos, de plena consci­ência, a resistir à conivente e falsa liderança. Sua firmeza e seu testemunho tiveram uma grande influência, por despertarem a opinião pública e criarem um partido de resistência, embora se­melhante política os levasse a um período de martírio por desobe­diência civil. A descrição do pequeno socorro (v.34) que este gru­po perseguido recebeu na sua agonia, talvez se refira aos macabeus, com sua política de resistência armada. Note-se que, lado a lado com a menção de tais aliados, temos a lembrança de que, mesmo num tempo como aquele, havia, junto com aqueles que lutavam pela libertação, muitos que se ajuntarão a eles com lisonjas (v.34), cujos motivos eram insinceros, mesmo quando estavam perto do martírio, com aparente lealdade ao que parecia ser um caminho capaz de acabar triunfando. Esta parte da história termina com uma nota triunfante de consolo para aqueles que chegaram a ser martirizados pela causa e que, sem dúvida, morreram até com es-

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perança, pois são purificados, e embranquecidos, até ao tempo do fim (v.35).

Deus traça o padrão dos nossos caminhosEsta passagem, lida simplesmente dentro da narrativa tal co­

mo a temos, reivindica ser História narrada de antemão, com por­menores razoavelmente bem definidos. Conforme já vimos, fre­qüentemente os reis aqui referidos podem ser identificados na História, e os incidentes delineados podem ser achados em aconte­cimentos reais. É incomum na Bíblia a História de um futuro dis­tante ser predita tão acuradamente, assim catalogada com tanta precisão e com detalhes tão minuciosos. Os grandes profetas, sem dúvida alguma, previam às vezes aquilo que Deus haveria de fazer, mas não entravam numa descrição tão detalhada e, de modo geral, deixavam vagas muitas das circunstâncias preditas.

Se pretendemos levar a sério a Bíblia como um todo, deve­mos sustentar o ponto de vista de que Deus tanto é o Deus do in­divíduo como das comunidades; que ele controla a História de tal maneira que dá livre curso à decisão humana e à oportunidade para o genuíno arrependimento do homem. Dá lugar às suas próprias respostas às orações por socorro e libertação, ou por uma mudan­ça nas circunstâncias, ou pedindo a vinda do seu reino. Embora pertença a ele o domínio, também deseja que, pela nossa vontade, evitemos as tragédias pavorosas em que às vezes caímos devido à nossa teimosia. É como alguém que permite tal liberdade, já que ele governa e ordena os acontecimentos da História e realiza os seus propósitos. Se, por exemplo, lermos a história de Davi e o que aconteceu à família dele como conseqüência do seu pecado com Bate-Seba, conforme está descrito em 2 Samuel e no início de 1 Reis, sentir-nos-emos como espectadores de uma história humana marcada por concupiscência, por assassinato, por estupro, por incesto, por fraticídio, por traição, por crueldade e por negligên­cia, tanto quanto a história da ascensão e queda das dinastias se­lêucida e ptolomaica. Sabemos que, nesta história, Deus está desen­volvendo o seu propósito, promovendo a sua vontade, garantindo que o filho de Davi, Salomão, e nenhum outro seja o seu suces­sor. Deus, porém, intervém pouco, ou talvez nada, não agindo nem

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direta nem dramaticamente para alterar de forma sobre-humana os acontecimentos. Cada agente humano cuja ação determina o desenvolvimento da História está nas mãos dele e decide livre e res­ponsavelmente perante ele. As orações também são ouvidas e res­pondidas. Ao mesmo tempo, porém, o próprio Deus molda tão firmemente os acontecimentos que a violação das concubinas de Davi por seu filho Absalão, sob o teto do palácio do próprio pai, é repugnante e detalhadamente profetizada muito tempo antes de ocorrer.4 Podemos pensar em como, de forma muito semelhan­te (exercendo a completa soberania sem, no entanto, eliminar o lugar para a livre decisão humana) Deus operou a sua vontade na História de José e seus irmãos® e na crucificação de Jesus,6 por exemplo.

Nós também somos responsáveisSe cremos, portanto, que o relato sobre os selêucidas e os

ptolomeus é uma profecia premonitiva, devemos sustentar que Deus desenvolveu os seus propósitos através da interação de to­dos estes reis e suas famílias, respeitando-lhes a liberdade e dan­do a cada um lugar para decisões responsáveis, de maneira muito semelhante ao restante das histórias que acabamos de mencionar. Não estaríamos sendo fiéis ao resto da Bíblia se imaginássemos que Deus decretaria de antemão estes eventos com exatidão e de­pois os fizesse acontecer tratando os seres humanos envolvidos como se fossem marionetes, automaticamente controlados para produzirem um certo tipo de peça de teatro. Precisamos acredi­tar que Deus, ao ordenar providencialmente cada acontecimento, trata os pagãos sob o seu domínio da mesma forma como trata o seu próprio povo.

Alguns estudiosos do Antigo Testamento sustentariam, no entanto, que se esta passagem fosse lida como sendo uma profecia de predição, necessariamente nos envolveria num conceito de que Deus desenvolve os acontecimentos humanos de forma puramen­te mecânica, e de tal maneira a não deixar qualquer lugar para os4 Cf. 2 Sm 12:11; 16:22.5 Gn 45:5-8.6 At 2:23.

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nossas escolhas e orações. Esta consideração tem levado muitos especialistas a negarem que esta seja uma profecia premonitiva, insistindo em que pelo menos este capítulo do livro deve ter si­do elaborado e posto em circulação no tempo da perseguição aos judeus, no reinado de Antíoco Epifânio. Entretanto, não preci­samos adotar este ponto de vista, já que cremos que Deus tanto pode decretar quanto controlar os eventos comuns da vida hu­mana, conforme mostra o resto da Bíblia; e que, naqueles dias, ele realmente se comunicava de modo premonitário com seus pro­fetas.

Seja qual for o ponto de vista que adotemos quanto à ori­gem do livro, a mensagem deste capítulo está bem clara: não se pode ver na História, à medida em que ela avança em direção ao fim, qualquer significado claro. E nem sequer chegaremos a ver nela qualquer propósito ou significado até que possamos olhar para trás e vê-la do ponto de vista daquilo que aconteceu no seu fim e no seu clímax. A cena é dominada por homens que fazem o que bem entendem (vs. 16, 28), agindo com teimoso desrespeito pela humanidade ou pela verdade. O ódio na família, e especial­mente o ódio entre irmãos, é uma força que domina e se alastra. Chama a atenção o aspecto irracional das subidas e descidas da “sorte” . Alguns têm sucesso, outros fracassam gravemente, mas não há nisso qualquer razão ou justiça. O herói logo é seguido pelo vilão. Quando qualquer cargo nobre fica vago, há sempre, por parte do novo detentor, o perigo de mudanças mais devasta­doras, sem qualquer aviso prévio. O “homem vil” sempre está nos bastidores, à espera da oportunidade que certamente se lhe apresentará.

Isto fazia parte da agonia de Daniel que enfrentava tudo de modo franco e aberto. Certamente não queria ser cínico, e descreveu exatamente o que lhe foi comunicado, tal como o fez o escritor de Eclesiastes:7

“Tudo isto vi nos dias da minha vaidade: há justo que perece na justiça, e há perverso que prolonga os seus dias na sua perversidade. . . Ainda há outra vaidade so­bre a terra: justos a quem sucede segundo as obras dos

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perversos, e perversos a quem sucede segundo as obras dos justos.”0 autor de Eclesiastes, como Daniel, procura ajudar-nos a

perceber a estultícia da vida sem Deus e nos mostra a impossibili­dade de se dar sentido às coisas sem a fé em Deus. Daniel, prova­velmente, nos leva um passo adiante. Eclesiastes proclamava a insensatez de uma vida sem fé, mas Daniel nos ajuda a vermos a insensatez de procurarmos ter fé, a não ser que, ao mesmo tempo, tenhamos esperança quanto àquilo que há de acontecer no tempo do fim (v. 35; cf. 12:4).

A transição para “o tempo do fim”Agora chegamos a um ponto onde, mais uma vez, os comen­

taristas normalmente discordam entre si profundamente. Muitos acreditam que, no fim desta longa profecia, o escritor está falando claramente sobre o que irá acontecer no final da História propria­mente dita. A referência feita no capítulo 12, versículo 4, acredi­tam eles, refere-se a este tempo do fim, e todo o livro de Daniel en­cerra-se com mais duas citações quanto à consumação de todas as coisas e da totalidade da História. Este ponto de vista parece muito justificável, pois, no começo do capítulo 12, há também uma referência à ressurreição final dos mortos.

Mesmo assim, outros acreditam que o livro termina (e que este era o seu objetivo) com o pensamento do escritor simplesmen­te voltado ao tempo de Antíoco Epifânio. Este seria para Danielo tempo do fim, no qual ele esperava que todas as coisas mencio­nadas viessem a acontecer: e, portanto, o livro teria sido escrito para os judeus que viviam ali naquela época. Este ponto de vista, no entanto, é insignificante demais para se encaixar na linguagem da seção final do livro, especialmente nos versículos iniciais do capítulo 12, acerca do sofrimento final, da ressurreição e da gló­ria eterna dos sábios.

Onde ocorreria então, a transição dos tempos de Antíoco para o fim de toda a História? Há um ponto de vista que sustenta que a transição para o tempo do fim definitivo é feita em algum lugar dos versículos finais do capítulo 11, ou no início do capítu­lo 12. Este ponto de vista subentende que a descrição da figura

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do Anticristo (11:36-39) mais uma vez descreve diretamente as pretensões de Antíoco Epifânio (embora, naturalmente, isto tam­bém possa ser entendido como tipificação de alguma coisa que sur­giria mais tarde, com poder mais sinistro). Os versículos que se seguem (40-45) são uma descrição, segundo se sustenta, de uma guerra final que Antíoco realmente estava empreendendo na oca­sião desta guerra não existe relato algum que tenha sobrevivido até os nossos dias).

Parece preferível, no entanto, adotar o ponto de vista de que no versículo 36 a mente do autor já está ultrapassando os tempos de Antíoco, isto é, que a esta altura há pelo menos o início de uma mudança de pensamento. Sua mente, conforme já vimos, operava com uma referência dupla ao pensar em Antíoco; mas agora o fa­tor mais distante revela-se mais forte e sua mente avança para o próprio final de toda a História. Assim, mesmo no versículo 36, o rei referido pode ser outro que não Antíoco, ou seja, o Anticristo final, e as descrições dos seus atos; e embora certamente tais atos pareçam fundir-se com os de Antíoco, agora são antes uma refe­rência ao que acontecerá quando toda a História chegar ao fim.

Este derradeiro ponto de vista parece dar sentido às palavras do último capítulo: Tu, porém, Daniel, encerra as palavras e sela o livro, até ao tempo do fim (12:4). O tempo do fim é algo remoto até mesmo nos pormenores históricos dados no relato minucioso dos reis ptolomaicos e selêuddas. Este ponto de vista, naturalmen­te, poupa-nos o problema de perguntar que expedição histórica es­pecífica de Antíoco é descrita nos versículos 40 a 45. Os histo­riadores nada nos podem contar, do que se conhece acerca deste monarca, que explique estes versículos. Estes simplesmente conti­nuam sendo um mistério até chegar realmente o fim. Nas descri­ções feitas pelos profetas posteriores sobre o tempo do fim. há uma referênda a uma grande expedição feita pelas nações contrá­rias a Deus contra o povo santo, centralizado na Terra Santa e es- pecilmente em Jerusalém. Finalmente, Deus livra o seu povo e ani­quila os seus oponentes.8 Alguns vêem nesta passagem de Daniel a mesma expectativa quanto ao conflito e o livramento final (ver espedalmente v. 45) que reaparecerão no livro de Apocalipse.9

8 Ez 38,39; Zc 11:2-5; 14:1-5; J1 3:9-16.9 a . Ap 16:16; 19:19; 20:9.

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VIGIANDO E ESPERANDO PELO FIM

O tempo do fim

0 inicio deste capitulo está estreitamente vinculado com o fim do capítulo anterior e dá continuidade à grande visão final. A esta altura, no entanto, somos informados especialmente sobre o que há de acontecer no fim do mundo. O que se diz aqui deve ser complementado e explicado pelo que diz o Novo Testamento. Portanto, procuraremos mostrar que Daniel destaca alguns aspec­tos da evolução da História que, por sua vez, são retomados por Jesus, sendo reenfatizados, desenvolvidos e confirmados pelos escritores do Novo Testamento. Mais do que ao livro de Daniel, é a este ensino posterior que devemos nos voltar a fim de compre­endermos as últimas coisas, sem deixar de reconhecer que Daniel ajudou a abrir caminho para a formação da tradição neotestamen- tária. Devemos reconhecer, também, que a igreja como um todo nunca fez de qualquer doutrina específica sobre o que há de acon­tecer no fim dos tempos um teste de ortodoxia. Aqueles que con­cordam sinceramente entre si acerca de outras questões podem muito bem discordar quanto a esta, em especial quando se trata de algum detalhe ou aspecto cronológico. Quando os eventos dos últimos dias começarem realmente a acontecer, sem dúvida alguma os reconheceremos.

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O AnticristoAntes de tudo o Anticristo tem de aparecer.1 As caracte­

rísticas deste soberano, que a Deus é estravagantemente contrá­rio, que se auto-engrandece e que age conforme a sua própria von­tade, são retratadas mais uma vez no final do capítulo 11, com alguns pormenores ainda obscuros e que dão campo a muita espe­culação. Quem é esse deus que é o desejo de mulheres e a quem este ser não dá atenção? (11:37) Quem é o deus das fortalezas, ao qual ele honra? (11:38) Estas referências indicam eventos da carreira de Antíoco Epifânio, ou se referem à implacável desuma­nidade do Anticristo? Ou são simplesmente aspectos para os quais devemos atentar no decorrer do tempo e enquanto se aproximam os últimos dias? Nosso Senhor refere-se não somente a um gran­de Anticristo mas, sim, a “falsos cristos e falsos profetas” que “surgirão, operando sinais e prodígios para enganar, se possível, os próprios eleitos” .2 Mas o apóstolo Paulo estava convicto de que o fim não vem até que “primeiro venha a apostasia, e seja revelado o homem da iniqüidade, o filho da perdição, o qual se opõe e se levanta contra tudo que se chama Deus, ou objeto de culto, a ponto de assentar-se no santuário de Deus, constantan.- do-se como se fosse o próprio Deus” .3 No livro de Apocalipse a figura deste último anticristo é bem mais desenvolvida. Surgem duas bestas que guerreiam contra os santos, realizam maravilhas e enganam a muitos, os quais passam a servi-la e a adorá-la. Uma besta dá testemunho à outra besta, e as duas dão testemunho ao dragão, aquela antiga serpente que agora foi lançada do céu para0 seu último acesso de fúria na terra. Temos, portanto, uma trin­dade do mal, em oposição à santíssima Trindade.4

A tribulaçãoA próxima característica dos últimos dias, claramente enfa­

tizada, é o tempo de angústia, qual nunca houve, desde que houve1 Ver págs. 133ss.2 Mc 13:22.3 2 Ts 2:3, 4.4 Ap 13.

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nação até aquele tempo (v. 1). Esta parece ser uma referência à tribulação do povo de Deus. A igreja será drasticamente perseguida, com muito mais afinco do que Israel no reinado de faraó no Egito, ou até mesmo do que a nação judaica no reinado de Antíoco. Nos­so Senhor enfatizou gravemente este fato nas advertências que fez a seus discípulos sobre os dias que precederiam a sua segunda vinda.

Para ele a passagem referiu-se a uma tribulação envolvendo não somente os eleitos, como também a maioria da raça humana:

“Porque aqueles dias serão de tamanha tribulação como nunca houve desde o princípio do mundo que Deus criou até agora e nunca jamais haverá. Não tivesse o Se­nhor abreviado aqueles dias, e ninguém se salvaria; mas por causa dos eleitos que escolheu, abreviou tais dias”.5Devemos lembrar, ao enfrentarmos este terrível quadro, que

isto não significa necessariamente que tudo na História humana fa­voreça o lado do mal, mesmo por um período limitado. A tribula­ção é devida à tensão e ao medo que o mal sente do reino de Cris­to ao seu redor, pelo seu triunfo e desenvolvimento cada vez maior. É o aumento da bondade na terra que provoca no mal esta intensa reação, por causa do medo, simplesmente. Devemos sempre nos lembrar da parábola de Jesus sobre o joio e o trigo.6 O inimigo veio e semeou o joio exatamente onde o dono do campo semeara o trigo. Todas as tentativas no sentido de arrancar o joio a fim de salvar o trigo foram proibidas, e os dois cresceram juntos até a épo­ca da colheita. Parecia que o joio tinha sobrepujado e sufocado o trigo, pois dava a impressão de ser mais vigoroso e nativo no solo; mas, quando veio o fim, a boa colheita revelou o trigo totalmente sem estragos e em perfeita maturidade. Vale a pena notar o co­mentário de James Denney sobre o ensino de Paulo em 2 Tessa- nolicenses:

“Às vezes perguntamos se o mundo vai ficando melhor ou pior com o passar do tempo; os otimistas e os pes­simistas tomam partidos opostos sobre este assunto. Os

5 Mc 13:19 ,20 .6 Mt 13:24-30.

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dois estão errados. Não vai ficando apenas melhor, nem somente pior, mas as duas coisas juntas. 0 seu progres­so não é meramente um progresso do bem, em que o mal vai sendo paulatinamente expulso do campo de ba­talha; nem é simplesmente um progresso do mal, dian­te do qual o bem continuamente desaparece: é um pro­gresso em que o bem e o mal chegam igualmente à ma­turidade, dando seus frutos mais maduros, demonstran­do tudo quanto podem fazer, provando todas as suas forças em grau extremo um contra o outro; o progres­so não é bom em si mesmo, nem mau em si mesmo; é o progresso no antagonismo de um contra o outro” .7

A separaçãoA tribulação, portanto, tende a purificar o verdadeiro povo de

Deus, confirmando-o na sua fé e separando-o nitidamente daqueles que não são autênticos. E tem o efeito contrário de tomar aque­les que se opõem ao povo de Deus mais ousados e conscientes na impiedade que têm. Muitos serão purificados, embranquecidos e provados; mas os perversos procederão perversamente, e nenhum deles entenderá, mas os sábios entenderão (v. 10). Obviamente, aproximando-se o fim, os dois grupos se separam um do outro. Os que são sábios reúnem-se em grupos para aprenderem de bons mestres, receberem ajuda uns dos outros, havendo um processo puri­ficador até o fim.8

A lição que mais se ressalta no livro de Daniel é que nenhum dos eleitos se perderá. Seus nomes estão escritos no livro que re­gistra o povo e o propósito de Deus, e o que está escrito terá de acontecer. Mas Daniel tinha de enfrentar o problema da multi­dão de indivíduos que haviam sido brutalmente martirizados na perseguição. Não era possível, sabendo que Deus importa-se com a justiça e com o amor, imaginar que ele ficaria satisfeito com qual­quer triunfo definitivo do seu reino que deixasse de lado tantas pessoas fiéis a Deus, cujas vidas tinham sido sacrificadas em prol

7 James Denney, 1 and 2 Thessalonians (Expositors Bible Commentary, Hodder and Stoughton, 1892), pags. 313-4.

8 11:33-35.

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deste triunfo. A esta altura, Daniel concentra a sua fé na idéia de que haverá uma ressurreição do pó da terra para aqueles que perderam a vida desta maneira (vs. 2-3). Subentende-se daí um ajuntamento e um ressurgir para a vida a partir das cinzas e dos ossos que foram espalhados na perseguição, e um despertar do sono das almas dos mortos. Os estudiosos divergem sobre até que ponto vai o pensamento de Daniel aqui. Os maus são ressus­citados do pó para vergonha e horror eterno, bem como os eleitos para a vida eterna. Alguns daqueles que limitam as referências do livro de Daniel ao tempo de Antíoco Epifânio sustentam que esta passagem se refere somente àqueles que foram perseguidos nesta tribulação específica, e que os maus aqui referidos são os judeus traidores que apostataram. Mas esta é uma das grandes afirmações do Antigo Testamento acerca da ressurreição final do corpo. Tem um som universal. Quando os grandes pensado­res do Antigo Testamento viam mais claramente e sentiam de forma mais aguda os efeitos devastadores do poder do mal, a mi­séria e as injustiças dos defraudados e a desgraça abjeta de todos os sofredores inocentes, então é que eles voltavam os olhos para dma e viam o poder, a justiça e o amor de Deus, e eram muitas vezes repentinamente capacitados a atingir a sua expressão mais forte e mais clara de esperança da vida após a morte.9 Esta afir­mação da ressurreição brota deste tipo de experiência.

O final: a lacuna entre ver e entenderO final desta última grande visão deixa Daniel com a sen­

sação de que realmente viu até o fim tudo quanto lhe será conta­do e desvendado. Nada mais deverá ser acrescentado à série de visões e mensagens que ocuparam o seu tempo e a sua mente des­de o primeiro ano de Belsazar. Agora recebe a ordem de deixar de lado a sua pena: encerra as palavras e sela o livro. . . e segue o teu caminho até ao fim (vs. 4, 13). Há no gesto de despedida do homem vestido de linho algo totalmente definitivo, quando levantou a mão direita e a esquerda ao céu (v. 7). É como uma despedida final que nos dá a conhecer que a conferência já acabou9 Cf. p. ex.: Is 26:19;SI73:24-26; Jó 19:25-27.

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e que devemos voltar para casa. No caso de Daniel, deve ter sido um pouco como a experiência que os discípulos tiveram na ascen­são de Jesus. Ele os visitara vez após outra durante os quarenta dias após a ressurreição. Tinha aparecido e desaparecido, e eles já se acostumavam a esperar que ele aparecesse novamente. Mas chegou a última vez, quando ele “os levou para a Betânia e, er­guendo as mãos, os abençoou. Aconteceu que, enquanto os aben­çoava ia-se retirando deles, sendo levado para o céu” .10 Viram-no subir e voltaram para Jerusalém com grande júbilo, sabendo que este era o final decisivo desse estranho e maravilhoso período de aprendizagem e confirmação. Nada mais haveria de ser acrescenta­do à história do evangelho e ao conteúdo do testemunho que ago­ra deviam proclamar ao mundo.

Daniel não procurou adiar o fim da revelação. Sentia que aquilo que ouvira e vira tinha uma plenitude e uma autoridade das quais passaria a depender, e um significado rico e profundo que, segundo acreditava, iria aos poucos se elucidando à medida que o tempo fosse passando e a necessidade surgindo. Ele agora tinha plena certeza de que tudo acabaria bem. Sabia que o fim viria no tempo determinado por Deus, que o mal acabaria se es­gotando, tendo vida unicamente para ser finalmente desmascara­do e julgado, e que o povo de Deus nunca seria abandonado pelo Senhor.

Mesmo assim, continuou em profunda tensão. Não enten­dera tudo quanto havia captado em todas as visões e mensagens recebidas: Eu ouvi, porém não entendi (v. 8). Sua mente ainda se preocupava com tudo quanto lhe fora apresentado, de uma for­ma completa e persistente, com seus mistérios ainda não desven­dados. E, ao final desta última visão, ele faz duas últimas pergun­tas à personagem celestial que lhe falava. Quanto tempo teria de esperar até que isto se cumprisse? E qual seria o seu resultado fi­nal? (vs. 6-8)

Recebe apenas uma resposta enigmática à primeira pergunta, e nenhuma à segunda. É comum, em nossa experiência com a Pa­lavra de Deus, conviver com esta lacuna entre o nosso ver e o nos­so entender. Às vezes a Palavra de Deus vem a nós com realidades e promessas, e até visões, cuja verdade podemos reconhecer e cuja

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realidade podemos captar pela fé, ainda que, ao mesmo tempo, es­tejam muito além do escopo do nosso entendimento e do nosso raciocínio. E, assim, muitas vezes aquilo que sabemos que estamos “vendo” é muito maior e muito mais misterioso do que a nossa mente pode dominar ou o nosso entendimento perceber. Quem já teve um encontro com a realidade da presença de Deus em Jesus Cristo sabe que o que é “visto” aqui tem um aspecto definitivo, como também uma plenitude e uma racionalidade que são infini­tamente maiores do que a capacidade da mente humana de ver e crer em qualquer tempo. Outras vezes, no entanto, vivemos em profunda tensão, devido ao tempo de espera, a exigir de nós mui­ta paciência, esforço sincero e honesto, a fim de entendermos o que vemos. Ao mesmo tempo, porém, a nossa fé pode viver em função da verdade do que vê e ouve, mesmo antes de entendê-la, descansando e se regozijando nela. Daniel, nos seus dias, experi­mentou da mesma forma o ver e o ouvir que precedem o enten­dimento.

£ predso perseverar com padêndaPara crescer no entendimento, Daniel é advertido quanto

à necessidade de ser muito paciente e perseverante.Em resposta à pergunta “quando?”, recebeu três respostas

perturbadoras. A primeira delas diz que o período sobre o qual perguntou duraria um tempo, dois tempos e metade de um tem­po (v. 7). A segunda, que depois do tempo em que o costumado sacrifício for tirado, e posta a abominação desoladora, haverá ain­da mil duzentos e noventa dias (v. 11). E depois segue-se a ter­ceira: Bem-aventurado o que espera e chega até mil trezentos e trin­ta e cinco dias (v. 12). Seja qual for o significado de tudo isto, certamente quer dizer: “Bem-aventurado aquele que sabe esperar, ainda que as datas não sejam aquelas da sua expectativa” , ou se­ja, mesmo que os duzentos e noventa dias sejam estendidos até trezentos e trinta e cinco dias além dos mil, e ainda mais.

Alguns comentaristas pensam que isto fornece uma base pa­ra cálculos exatos, mesmo na primeira resposta dada por esse anjo. Dizem que um tempo aqui significa um ano e, portanto, um tem­po, dois tempos e metade de um tempo significa “três anos e meio” . Calvino, porém, é muito mais sábio ao afirmar:

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“0 significado é muito simples. Um tempo significa um período longo, dois tempos um período mais lon­go, e metade de um tempo significa o fim, ou o perío­do final. A soma de tudo isso é que muitos anos devem decorrer antes de Deus cumprir o que o profeta decla­rou. . . como se ele tivesse dito: enquanto ao filhos de Deus se mantiverem em suspense por tanto tempo, sem obterem uma resposta às suas petições, o tempo será prolongado, até mesmo duplicado. . . no que diz res­peito à metade de um tempo, esta é acrescentada para o consolo dos piedosos, para evitar que desfaleçam pe­la demora e que se desesperem pela canseira excessi­va” .11A principal lição é que, antes que tudo aconteça, nem mesmo

Daniel pode chegar a entender claramente quando virá o fim. So­mente o tempo revelará os tempos. É por isso que Daniel é infor­mado de que suas palavras estão encerradas e seladas até ao tempo do fim (v. 9). Nós também devemos estar prontos para o mes­mo tipo de espera, confiando apenas no seguinte: que, quando vier o fim, saberemos que estamos vivendo aquilo que está escrito, e que o fim é chegado. Somente quando estas coisas estiverem de fato acontecendo na História é que as reconheceremos. É por isso que estas passagens apocalípticas estio na Bíblia: não para nos aju­darem a calcular com exatidão mas, sim, para nos ajudarem a re­conhecer os sinais dos tempos. Os profetas não entendiam exa­tamente o que escreviam. Escutavam e registravam o seu teste­munho sobre coisas que são agora muito mais claras para nós do que eram para eles, mesmo naqueles tempos.12 Podemos, por exemplo, entender o capítulo 53 de Isaías até melhor do que o seu próprio autor, há muitos séculos. Da mesma forma, é possí­vel que um dia entendamos melhor do que hoje este aspecto pro­fético do livro de Daniel.

0 profeta é aconselhado a ser perseverante na espera: Vai Daniel (v. 9). Significa que deve apenas continuar como tem sido durante todos os seus dias. Não precisa mudar nem ficar preo­

11 Commentary on Daniel, ad. loc.12 Cf. l P e l : 1 2 .

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cupado. Não precisa envolver-se tanto com cálculos que não lhe sobre tempo para os seus deveres. O conselho do anjo aqui é re­petido por Paulo nos versículos que seguem a gloriosa passagem sobre a ressurreição, no capítulo 15 de 1 Coríntios: “Portanto, meus amados irmãos, sêde firmes, inabaláveis, e sempre abundan­tes na obra do Senhor, sabendo que, no Senhor, o vosso trabalho não é vSo.”13 A maneira como Daniel iniciou, arriscando-se à impopularidade e, mesmo assim, recebendo favor; a forma como arriscou tudo para interpretar o sonho de um rei violento, con­fiando somente em Deus; sua permanência em serenamente man­ter sua rotina de devoção e de dever, mesmo quando recebeu ca­lúnias vis e foi vergonhosamente traído; é assim que ele deve con­tinuar até o fim. Com respeito a esta questão, mais uma vez po­demos deixar com Paulo a última palavra: “Irmãos. . . nós vos exortamos” , escreveu ele aos tessalonicenses que estavam sendo tentados a perder o equilíbrio por pensarem que a segunda vinda estava muito perto, “a que não vos demovais da vossa mente, com facilidade, nem vos perturbeis, quer por espírito, quer por pala­vra. ... Ninguém de nenhum modo vos engane” .14

A necessidade de sabedoriaÀ medida que o fim se aproxima, os tempos se tomarão

difíceis e será necessário ter coragem, como também paciência e perseverança. Mas os tempos serão tão enganosos quanto di­fíceis, e ser corajoso depois de escolher o lado e o líder errados só pode dar em perda e em tragédia. É necessário, portanto, ter muito mais sabedoria do que coragem. Nos últimos dias serão os sábios que estarão em contraste com os maus: Os perversos procederão perversamente, e nenhum deles entenderá, mas os sábios entenderão (v. 10). Os que forem sábios, pois, resplande­cerão, como o fulgor do firmamento (v. 3). Convém notar que, em muitas das passagens do Novo Testamento que falam dos úl­timos dias, ressalta-se a mesma necessidade de sabedoria. A des­crição em Apocalipse 13 das pavorosas tribulações que aguardam

13 1 Co 15:58.14 2 Ts 2 :2 ,3 .

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o povo de Deus nos últimos dias termina com uma observação sucinta: “Aqui está a sabedoria” .15

O que constitui a sabedoria é descrito minuciosamente no livro de Provérbios e, conforme vimos várias vezes, o próprio Da­niel é uma concretização do que significa ser sábio. Inclui a capa­cidade de discernir o falso do verdadeiro, tanto nas pessoas quan­to na forma de viver; a capacidade de evitar um comportamento autodestrutivo e temerário, e de escolher caminhos que levem à vida, e também uma capacidade de criticar os falsos deuses po­pulares que estão desencaminhando a muitos, e de discernir exata­mente o que é dito por Deus. A demora na vinda do fim e a as­censão de multidões de falsos Cristos e falsos líderes, à medida que o fim vai sendo protelado, servirá de teste para saber se as pes­soas possuem ou não tais qualidades. Naquele tempo, os tolos que são tão facilmente levados de um lado para o outro, sentir-se- -ão encorajados na sua atitude básica de alienação de Deus e ou­sados na sua estultícia. Mas, ao mesmo tempo, os sábios brilha­rão na sua sabedoria, e os dois tipos se separarão cada vez mais. Muitos serão purificados, é dito a Daniel, e embranquecidos e pro­vados; mas os perversos procederão perversamente (v. 10). Era exatamente sobre isto que Jesus estava pensando quando contou a parábola das dez virgens.16 Cinco eram prudentes e cinco nés­cias. Enquanto o noivo demorava a chegar, todas cochilaram e adormeceram, e não parecia haver diferença entre elas. Quando, porém, chegou o dia final e o noivo veio, a separação foi simples­mente ocorrendo, à medida que os eventos se desenrolavam.

A sabedoria sobre a qual fala o livro de Daniel é, natural­mente, um dom divino. Embora na primeira parábola das virgens prudentes e das néscias Jesus procurasse ressaltar em primeiro lugar a necessidade de sabedoria com a aproximação do fim, também deu na história um indício de haver vendedores, com o quais ca­da uma devia abastecer-se por sua própria conta. Isto não signifi­ca simplesmente que fosse difícil obter o óleo, ou que o seu pre­ço estivesse além das posses de qualquer pessoa. Pretendia apenas salientar mais uma vez o ensino do Antigo Testamento de que a sabedoria é um dom a ser procurado da parte de Deus e recebido

15 Ap 13:18.16 Mt 25:1-13.

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por aqueles que o buscam, e não uma qualidade a ser cultivada por qualquer forma de autodesenvolvimento ou auto-entendimen- to.

A palavra pastoral final: caminho e o destinoFinalmente é garantido a Daniel que ele sempre achará um

caminho à sua frente: Segue o teu caminho até ao fim; pois des­cansarás, e, ao fim dos dias, te levantarás para receber a tua he­rança. Assim termina o livro. Ele segue o seu caminho diante de Deus, e lhe é reservado um lugar em que ele mesmo pode perma­necer inabalável e encontrar descanso na eterna presença de Deus. Neste final muito simples e calmo, o escritor faz uma das afirma­ções mais impressionantes de toda a Bíblia quanto à importân­cia que Deus dá ao indivíduo e ao destino deste no seu esquema das coisas e nos seus planos para o futuro. Ele afirmou aqui que Deus exerce controle sobre a História. Afirmou também, apesar de suas limitações, a ressurreição dentre os mortos. Mas o livro deve atingir o clímax ao fazer os seus leitores lembrarem que o Deus que chama os homens e as mulheres pelos seus nomes elege-os para o seu serviço e visita-os na sua necessidade, e que tem também um caminho para o futuro de cada um deles, e um lugar para ca­da um deles no novo mundo que preparou para aqueles que o amam. Quer que saibamos que, em meio a todas as assolações do tempo, dos conflitos dos impérios mundiais, e das mudanças es­tranhas e sem sentido que ocorrerem no decurso da História mun­dial, o homem que é muito amado não poderá perder o seu cami­nho e não lhe será permitido perdê-lo.

Jesus, em semelhante situação, sabendo que seus discípulos estavam enfrentando as mesmas incertezas e cataclismos, garan­tiu-lhes que, se tivessem a presença e a comunhão dele, poderiam ter certeza de que estavam no caminho, e lhes disse: “Vou prepa­rar-vos lugar” .17

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A palavra pastoral final: a promessa do descansoDescansarás disse o homem a Daniel (v. 13). Sem dúvida,

ele acharia descanso enquanto estava a caminho, viajando em dire­ção ao fim. Obviamente já sabia o que isto significava. Em meio a toda a sua labuta e conflito concernente ao reino de Deus, e às pressões extremas dos negócios seculares com os quais teve que se envolver durante a maioria dos seus dias; em meio às mudan----J ----------------------- 1------*--------------J ------*------ - i---- —

que, naqueles dias, devem tê-lo torturado tanto quanto a qual ■ i um, ainda assim ele teve a confiança proveniente da crença em Deus a paz advinda da comunhão com o Senhor. Mesmo com^pM0|) sua preocupação com o futuro da igreja e da Babilc i£ c <*v i agonias em oração e também com o seu grande e p \íu ra a d o r es­forço pessoal para salvar a alma de N abuÉ M o^or, ele sentia ao mesmo tempo um descanso, profundMniéme>sea^o, do cora­ção e da mente. í^S '-> ò

A promessa descansarás refere^ssKVu«1 estado que impera no mundo novo em cuja direção >am)el está viajando. Na visão desse estado, conforme descritc^^or João no livro de Apocalipse, “o mar já não existe” .1/ ' 0 mar para os escritores apocalípticos, era o caos de onde ' -jtàs subiam para provocar divisão, pertur­bação e lutas apa^gâs, Çom o único propósito de gerar perversida­de sem liiák e^r^O T a, porém, acabou-se todo o conflito deste tipo. As bV' is £ os dragões já estão banidos e acorrentados onde já não£hoaejft causar ódio nem provocar as ambições e inquietu-

ê)gôstariam, a fim de destronar a Deus. Talvez haja esforço ta nas tarefas que desafiam e que enobrecem e cujo fim é

r 3 Senhor e o seu Cristo. Mas, em meio a tudo isto, ha­verá descanso para o povo de Deus.

18 Ap 21:1.

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