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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE CAMPINAS JEFFERSON MARTINS CASSIANO TÓPICOS ESPECIAIS DE ÉTICA II A personalização em crise

BIOÉTICA

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE CAMPINAS

JEFFERSON MARTINS CASSIANO

TÓPICOS ESPECIAIS DE ÉTICA II

A personalização em crise

CAMPINAS

2012

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE CAMPINAS

JEFFERSON MARTINS CASSIANO

TÓPICOS ESPECIAIS DE ÉTICA II

A personalização em crise

Trabalho de aproveitamento apresentado à disciplina Tópicos Especiais de Ética II do Curso de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, sob orientação do Prof. Dr. Newton Aquiles Von Zuben, para obtenção de créditos.

CAMPINAS

2012

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A PERSONALIZAÇÃO EM CRISE

APRESENTAÇÃO

Como proposta para este tópico especial de ética: bioética, apresento diretamente

minhas considerações acerca do tema, pautado na interpretação de Lucien Sève, mas

não restrito a ele, em uma argumentação que recupera a noção fundamental da tese de

do filósofo (ascrição), um aprofundamento em um parágrafo específico (a

personalização em crise) e uma abordagem acerca das teorias éticas que compartilham

de aspectos universalistas. Para tanto, entendendo que a bioética lida com questões

morais intimamente relacionadas às concepções e aos conceitos referentes à vida e à

morte, procedo com intenção de seguir uma metodologia “clínica”, me espelhando em

aspectos como a anamnese, no qual recupero o histórico já discutido (aspectos como o

fato e o valor da pessoa deixo fora, até porque já fui avaliado por esse conteúdo e não se

faz relevante nesse momento). Depois passo para o diagnóstico, o exame propriamente

dito da matéria: a personalização em crise (conteúdo que me caberia exposição em

forma seminário), onde procuro pontuar do que se trata a crise do conceito de pessoa.

Por fim, ofereço o encaminhamento para o tratamento da questão levantada por Sève em

um prognóstico, a partir de duas teorias éticas: a ética discursiva de J. Habermas e o

Universalismo interativo de S. Benhabib; ambas concepções atrelada a justificativa de

Sève de um universalismo humanitário.

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1. Anamnese

Começarei meu argumento com o ponto que julgo ser o principal fundamento

apresentado e defendido por Luvien Sève ao tratar da pessoa, que é o conceito de

ascrição. Segundo a definição do próprio autor:

ascrever não é descrever: não é designar um modo de ser de qualquer coisa, mas atribuir a alguém um modo de se comportar. Entretanto, ascrever difere igualmente de prescrever, pois a prescrição não pressupõe o assentimento daqueles a quem diz respeito, mas a ascrição envolve também a inscrição que se faz neles: quando algo é ascrito a alguém, esse alguém ascreve-se-o ele próprio, desde o momento em que se designa como pessoa. A ascrição consiste precisamente nesta reapropriação pelo sujeito. E não é tudo: visando não o indivíduo na sua particularidade, mas o humano na sua generalidade, a ascrição a um é também ascrição a todos os outros. Ela é, à partida, interpessoal e recíproca. Em suma, a ascrição é o modo de atribuição que apenas convém quando reportamos ao ser individual características universais da pessoa. (SÈVE, 1994, p. 74).

O exceto supracitado está fértil de conceitos e ideias que podem ajudar a compreender a posição do autor ao tratar do assunto. O primeiro ponto que peço a observação é a atribuição de um modo de comportamento a alguém. Isso incluiu dizer que a ascrição preserva o direito de se atribuir os aspectos de pessoas em suas determinadas fases, isto é, dentro de um contexto realista. Nesse caso, o embrião, embora não seja uma pessoa, pode ser passível do conceito de ascrição, pois aquele que observa e conhece o seu desenvolvimento pode ascrever, ou seja, atribuir certo modo de comportamento que se espera que uma pessoa tenha. Não se trata, pelo meu entendimento, tanto de uma variação do conceito aristotélico de ato e potência, ou do ser que vem-a-ser, mas de uma posição esclarecida de que cada fase do desenvolvimento humano deve ser apreendida em uma totalidade que corresponda ao conceito de pessoa; pois a ascrição ao embrião é o reconhecimento de todo o ser humana, uma vez que as fases da vida humana, embora distintas umas das outras (pode-se dividir entre infância, maturidade e velhice), conservam fundamentalmente uma continuidade com a anterior, na medida em que se destinam à próxima fase. Nesses termos, um embrião, visto em seu aspecto imediato, não possuiu por si só, os aspectos fisiológicos de uma pessoa; porém ao ser observado em vista do desenvolvimento do ser humano, ninguém espera que, nas devidas condições, quando desenvolvido, a gestação do embrião permita o nascimento de um ser humano que se comporte como um animal, ainda que seu comportamento inicial seja puramente instintivo. Do mesmo modo, uma pessoa já desassistida de sua sanidade, embora possa a vir comporta-se sem o uso de suas faculdades mentais, não deixa de possuir uma história de vida desenvolvida como pessoa. Com isso, vejo que o

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autor busca trazer um forte argumento para o debate, pois, como diz, o que pode ser atribuído a um comportamento individual são características universais1 do conceito de pessoa.

O segundo ponto já aparece na sequência do argumento. Compreendo que o autor atinge o objetivo de seu pensamento no seguinte momento: “ascrição de uma dignidade é o processo pelo qual o ser individual vem a deter em-si e por-si a qualidade de associado do gênero humano” (SÈVE: 1994, p. 74). Com isso, fica frisado que só faz sentido, ou ainda, só se faz permito, discorrer sobre o conceito de pessoa quando este tem incluído nele mesmo, justamente por ser ele mesmo, o valor da dignidade humana. Já noto aqui o profundo laço que a posição de Sève mantém com a ética kantiana. Kant não é o único nem o primeiro, mas é o principal difusor da ideia de uma humanidade pautada nos conceitos de liberdade, respeito e dignidade. Brevemente, mostro isso a partir do conceito kantiano do imperativo categórico. É importante ressaltar que o imperativo categórico permite a possibilidade de derivar diferentes formulações. Na segunda seção da Fundamentação à metafísica dos costumes, Kant considera o princípio do imperativo categórico de três diferentes pontos de vista, formulado de três modos distintos, que aqui interpreto ao meu entendimento: a) Fórmula da Lei Universal: “Age somente de acordo com a máxima através da qual você possa ao mesmo tempo querer que ela se transforme em uma lei universal”; b) Fórmula da Humanidade como Reino dos Fins: “Age tão somente que use a humanidade, quer seja em sua própria pessoa ou qualquer outra, sempre ao mesmo tempo como fim, nunca meramente como meio”; c) Fórmula da Autonomia: “Age de tal maneira que as máximas de suas escolhas possam se tornar também leis universais da mesma vontade”. Cada uma dessas formulações acerca do princípio de moralidade corresponde, respectivamente: a) à forma, b) ao valor e c) à autoria da ação moral2.

Sève parece seguir próximo à intuição kantiana expressa na segunda formulação (b) no que diz respeito à dignidade humana, observando que para Kant leis universais correspondem ao ideal regulador obtido pelo procedimento reflexivo do imperativo categórico, que deve apontar para a humanidade como fim em si mesmo. O reino dos fins significa que a promoção da dignidade humana deve representar na própria pessoa a humanidade como um fim em si mesmo, ou seja, toda pessoa é um dignitário da humanidade. As divergências que aponto, no entanto, estão fundamentalmente implicadas na ideia kantiana de que uma pessoa tem como atributo essencial o uso da racionalidade (o que tratarei mais a frente) como uma faculdade inata a todas as pessoas (eu penso ou eu transcendental na filosofia de Kant). Com isso, não parece plausível, dentro da perspectiva kantiana, defender que uma criança ou aquele que sofre de alguma doença mental (nem cogito um embrião) seja considerada uma pessoa, pois seu desenvolvimento cognitivo ainda é insuficiente para permitir um bom entendimento que lhe permita autonomia na ação. No que entendo da exposição de Sève, a ascrição de

1 Sobre a questão da atribuição de características universais, tratarei mais a fundo na segunda e terceira partes desse trabalho, onde discutirei a possibilidade de uma ética universalista. 2 Cf. A. Wood, chapter 7, Ethical Theory, in: Kant (Blackwell Publishing, 2005) p. 135-44.

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dignidade a pessoa não se limita ao uso exclusivo de sua racionalidade, mas a sua condição de estar associada ao gênero humano. Desse modo, desloca-se o reconhecimento da lei moral interior kantiana, isto é, subjetivo, para o reconhecimento da capacidade de poder ter um comportamento humano, o que incluiu a participação familiar e social enquanto não é possível uma atitude autônoma, portanto intersubjetivo.

Isso conduz a outro ponto importante. Para Kant, a ação moral deve estar em conformidade com a lei universal auto-imposta mediante o uso do imperativo categórico, pois Kant deixa expresso que deve-se agir em respeito à lei (máxima da ação). Sève, ao contrário, exprime categoricamente que a ação moral deve ser conduzida pela responsabilidade com os outros. Embora ambos os autores coloquem em pauta a dignidade humana como fim que sustenta a ação da humanidade, as considerações de Sève (1994, p. 76) implicam contra qualquer uso do aspecto humano que infrinja a condição de ser humano em sua capacidade de se associar a humanidade. Assim, a ascrição da dignidade coage o uso do que é propriamente humano, como células-tronco embrionárias, tratadas como mercadorias, direta ou indiretamente. Sève acredita na solidariedade humana como forma de garantir a preservação dos aspectos humanos em detrimento das formas de convivências puramente comerciais que promovem uma forte influência atualmente. O autor aponta a doação como um caminho que pode evitar esse tipo de prática.

Aqui, é importante que eu acentue o caráter de forma-valor prescrito por Sève (p. 86). Se uma mercadoria não é uma coisa diferente do bem útil ao qual corresponde, entendo que seguindo a mesma lógica de raciocínio o autor quer dizer que mesmo uma célula embrionária não é senão uma outra forma de relação essencial que se corresponde com os objetivos sociais, institucionais e representações especificas às quais pode ser escrita. Isso parece ser dito por Sève (p. 86), “pessoa é a forma-valor igualmente ascrita a todos os indivíduos, na sua qualidade de pertences ao gênero humano”. Com esta última afirmação por parte do autor, compreendo que todos os pontos até analisados se confirmam na recorrente passagem:

Onde quer que se encontre em jogo uma parte significativa da humanidade – o ser embrionário, o ser diminuído, os restos mortais, a parte do corpo... – e ascrever-lhesuma dignidade sinônima de obrigações moduladas a seu respeito. É este incessante trabalho de autonomização [processo de autonomia] da forma-pessoa e o revestimento alargado que constituiu o processo civilizado da personalização (SÈVE: 1994, p. 86).

Peço atenção para o termo alargamento, do qual faço referência a uma citação de H. Arendt:

O poder do juízo assenta-se em um acordo potencial com outros, e o processo de pensamento que está ativo no juízo sobre algo não é, como no processo mental (thought) da razão pura, um diálogo entre mim e eu mesma, mas encontra-se, sempre e primariamente, mesmo

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quando estou bem sozinha formando minhas decisões (making up my mind), em uma comunicação antecipada com outros, com os quais sei que devo finalmente chegar a algum acordo. E essa maneira alargada de pensamento, que enquanto juízo sabe como transcender suas limitações individuais, não pode funcionar em estrito isolamento ou solidão; ela precisa da presença dos outros “no lugar dos quais” ela deve se colocar, cujas perspectivas deve levar em consideração, e sem os quais ela nunca tem a oportunidade de operar (ARENDT: 2009, p.220-21).

A colocação do argumento de Arendt em jogo oferece um bom fundamentado estratégico para entender a posição de Sève a definição de pessoa. É levando em consideração a presença dos outros como oportunidade de ação, e ação moral, que a constituição da pessoa se realiza. Isso quer dizer, ao meu modo de entender, que a mesmo se tratando do embrião, do feto, do deficiente mental ou do falecido, a ascrição como pessoa assinala não somente o respeito à dignidade como associado da humanidade, mas principalmente a responsabilidade de preservação da humanidade. Para Sève (1994, p. 74) “a pessoa é uma relação humana (...) [que] ao mesmo tempo, me pertence e me ultrapassa”. A pessoa não é apenas um modo genérico obtido pela razão, como visto em Kant, mas também o ser humano responsável pela sua preservação; portanto, diz o autor (p. 74) que pessoa é um conceito de valor, ou como entendo, é um valor ascritivo conferido a uma relação entre seres humanos, pois, diz Sève (p. 77), “sendo pessoa, por essência, relação”.

Este é, portanto, o entendimento que faço a respeito do conceito de ascrição atrelado à concepção de pessoa que se encontra elaborado até esse ponto pelo filósofo, que julgo ser o ponto nevrálgico da defesa de sua tese. Agora devo me deter em um ponto mais especifico.

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2. Diagnóstico

Nesse ponto, tratarei do meu objetivo específico de análise: A PERSONALIZAÇÃO EM CRISE (SÈVE: 1994, p. 89-93, parágrafo 21 na contagem da sala de aula). Tendo apresentado minha compreensão do que julgo ser o centro da tese de Sève, pelo próprio tema do parágrafo pretendo elucidar as questões que o autor coloca em jogo. Começo pelo termo crise. Em uma evidente época distinta da Modernidade (não se trata de chamar de pós-moderno, hiper-consumismo, entre outros nomes; em termos filosóficos prefiro pós-metafísico), foi sugerido que não é possível contar com o discurso da Modernidade para resolver a demanda que a sociedade atual encontra e enfrenta; diga-se que muito disso se deve ao avanço das tecnociências (novas tecnologias). Elas projetam uma nova realidade que alteram profundamente as regras dos discursos científicos, éticos, teológicos e antropológicos de forma sem precedentes; aliás, característica de crise é a ruptura histórica. Primeiramente, é preciso ser dito que o pensamento moderno desenvolveu antes o sujeito do conhecimento (cogito, eu penso) do que a pessoa. Com isso, assinalo o fato de que a pessoa ficou restrita ao mesmo âmbito de investigação do sujeito, que é o campo simbólico. Dito de outro modo, a pessoa era entendida como uma extensão do sujeito, e assim tratada a partir de seus princípios e conceitos abstratos (metafísicos). Agora Sève nos fala de uma crise da personalização.

Já admitido pelo autor que pessoa é essencialmente relação, o que se coloca em pauta na discussão são os novos tipos de relações que se engendram em nosso tempo. Separação entre a morte pessoal e a morte corporal, o filho da filha gestado pela avó, estoque de material genético; esses acontecimentos acabam por dissolver a representação moderna das possíveis relações pessoais, provocando uma reviravolta nos fundamentos característicos da condição humana. Encontro neste parágrafo que analiso termos como: duvidosa convicção, à deriva, perigo, perda da orientação, abandono dos sentidos tradicionais. Todos esses termos são, de fato, empregados em conjunto ao se tratar de crise. Agora: o termo crise se aplica a esses acontecimentos ou seria uma evolução natural (que hoje é artificial, pois o sintético é a nova natureza) da própria humanidade? A consideração que faço sobre esse tema é de que o conceito de crise se encontra enfraquecido (de tanto que é usado), e quando expresso é geralmente insuficiente para abarcar uma ampla abordagem, como acontece ao se referir ao conceito de pessoa. Os efeitos dessa constatação ficam mais evidentes ao incidirem sobre aspectos que parecem ser antagônicos ou contrastantes. Sève (1994, p. 91) diz que “todas as crises são momentos de bifurcações possíveis”. Mas, com isso, pergunto se seria apenas um caso de escolha entre o que decai ou se a decadência deve ser total.

Considerando que pessoa é uma relação, a personalização é a atribuição da ascrição, mas atualmente o problema estabelecido, ao meu modo de entender e pautado apenas nesse parágrafo específico, se expressa na forma adequada de ascrição. Sève (p. 90) está atento para a gravidade do reducionismo e suas consequências. O critério de

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personalização aparece então em disputa entre a verdade biológica, que estendo à verdade científica, e a normatividade jurídica, que também estendo à funcionalidade do sistema.

Esses meus “estendimentos” tem por base o seguinte argumento: a) embora as tecnociências (neurobiologia, biomedicina, ciências cognitivas) possam querer determinar por si o estatuto que define a vida, interpreto que, na atualidade nenhuma ciência está disponível, e não somente disposta, a seguir um paradigma. Como o ínfimo objeto de sua atuação se tornou um campo vastíssimo de possibilidades de intervenções técnicas, é bem possível que ao fazerem referência ao mesmo objeto, lidem com um assunto totalmente diferente, o que a princípio não credencia somente a biologia. O que aqui quero dizer vai ao encontro das considerações de T. Kuhn no que se refere à impossibilidade de tradução total de uma teoria para outra, o que ele chama de incomensuralidade3. Dito isso, passo para o segundo ponto: b) entendo que a norma jurídica só tem sentido em função de algo. Sève (1994, p. 75) parece consentir com isso, pois afirma “mas não nós esqueçamos que a função cria o órgão, [e o desenvolvimento desse corpo moralista] está relacionado com uma demanda ética”. Nesse caso, avalio que a normatividade jurídica, ao se dirigir aos aspectos bioéticos controversos de uma nova demanda ética (pautada pelos critérios de racionalidade), não o faz em vista de uma normatização que fixe um limite de tolerâncias entre partes, mas que cumpre ser principalmente uma atitude de intervir no funcionamento que estas imprimem às questões bioéticas. Com isso, observo que a normatização jurídica busca um meio de adentar e intervir no modo de funcionamento do sistema (que sempre possui um interesse industrial, econômico, político), e, no caso aqui exposto, implicado na pessoa enquanto relação humana. Este ponto de intervenção do direito jurídico é um assunto muito delicado, pois se coloca na concepção de público e privado4.

De certo modo, acabo por problematizar a questão a partir da linguagem. Ora, já visto, a Modernidade foi a simbolização da pessoa pelo sujeito. Contudo, creio não estar tão

3 Cf. Thomas Kuhn: Comensurabilidade, comparabilidade, comunicabilidade (Editora UNESP, 2006), p.47-76.4 Esta concepção, no âmbito bioético, é elaborada por H. T. Engelhardt Jr., que aqui pretendo apenas expor em um breve comentário sobre sua tese. Primeiramente deve ser dito que o conceito de pessoa, para Engelhardt, diz respeito exclusivamente aos seres racionais (também retomando Kant) capazes de reconhecimento e aceitação mútua de críticas e elogios. Esse estado de relação entre pessoas, o autor denomina de sociedade plural. Com isso, tem-se que nem todos os seres humanos são pessoas. Esse ponto é importante por revelar que somente as pessoas, por gozarem de uma condição especial, têm o direito de deliberar moralmente suas ações. E enquanto portadoras de uma posição especial, somente as pessoas têm direito à propriedade, sendo que todas as suas ações beneficiárias se tornam posses da pessoa, inclusive o embrião; assim ele o diz: “a menos que os procriadores tenham transferido os seus direitos a outros (por exemplo, doando o embrião a outra mulher ou casal), eles têm o direito moral secular de abortar o feto, mesmo se outros pretenderem de boa vontade adotar a criança vindoura” (ENGELHARDT: 1998, p. 311). Essa visão reificada do embrião, rejeitada por Sève, o coloca na condição de propriedade das pessoas. E sendo que o embrião humano é fruto de uma decisão particular entre pessoas, “embriões e fetos produzidos em particular são considerados propriedade particular” (Ibidem). Portanto, a análise acerca da perspectiva do funcionalismo da normatividade jurídica encontra aqui o conflito de interesses que transgride o limiar estabelecido ou uma noção de limite socialmente tolerado, entre o público e o privado, como pretendi expor a razão de minha inquietação: como deter o funcionamento das tecnociências e as demandas que criam!?

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longe do pensamento de Sève, pois ele mesmo diferencia a ascrição da descrição e da prescrição (minha primeira citação). Pelos motivos já citados, a descrição pertence à verdade biológica e a prescrição ao direito jurídico da pessoa. Esse problema da linguagem, a meu ver, não fica restrito ao plano teórico apenas, mas aponto como o fim do simbolismo com que a pessoa costumava ser tratada. E Sève parece compartilhar uma perspectiva próxima a que apresento, pois a “definição proposta de pessoa, relevam de um universalismo do ‘gênero humano’ demasiadamente pouco atento à radical diferença das identidades que caracterizam os indivíduos e os povos” (p. 91). Aqui aponto o entendimento da crise. Sève (p. 91), diz que “se há crise, é sempre porque o antigo é trabalhado pelo novo ao qual não quer ou não sabe dar lugar”. Posso dizer que tal conclusão tem características de uma visão pós-moderna de mundo. Como já expressei anteriormente, por pensar que pós-metafísico condiz melhor com o que de fato depreciou-se na crise atual, entendo que a crise trata de um novo meio de personalizar a realidade humana5. A pontuação é pungente. Se ascrever um comportamento humano bastasse para tornar um indivíduo pessoa associada à humanidade, o que impediria a biociência ou o direito jurídico de pleitear um novo estatuto dentro de uma realidade repleta de novos horizontes para o ser humano, visto que embora a humanização tenha variado amplamente ao longo da história, a hominização, isto é, sua constituição enquanto espécie biológica, não evoluiu no mesmo ritmo em comparação com o mesmo período desde que o homem pôde definir a si mesmo como homo sapiens. De todo modo, é plausível deduzir que o comportamento humano mudou consideravelmente em virtude da técnica e da ciência que o homem aplicou no mundo, sendo ou não pessoa. Esta preocupação, em justiça ao autor, aparece citada (mas não desenvolvida) da seguinte forma: “não há, afinal de contas, outra garantia para uma personalização continuada senão a riqueza humana do tecido social, como das práticas individuais, que fazem dela [pessoa] uma realidade viva” (1994, p. 90). Nesse trecho, entendo que o autor confirma a assertiva de que a realidade da pessoa, embora necessite tanto da verdade biológica como da normatização jurídica, não pode por elas ser esgota, pelo fato de que: ou não se ocupam da integridade física e psíquica da pessoa, caso das especializações médicas, ou priorizam engrenar no funcionalismo do sistema, caso do direito jurídico que vira um aparelho de legitimação da eficácia das tecnociências.

Apesar do fato da linguagem parecer ter um efeito limitador, encerrando o conceito de pessoa (resultado dessa análise), Sève argumenta que não se deve fixar o ser humano em um simbolismo imutável, esquecendo o caráter dinâmico da criação humana ou negando a “parte do mistério” que escapa a qualquer definição prévia (caso do embrião). Desse modo, o autor rejeita tanto o fundamentalismo quanto o relativismo, procurando apontar dois riscos: a) o risco de reificação (coisificação) da pessoa enquanto ela é um dinamismo; b) a pura redução da pessoa ao extrato social, derivando

5 Sève, em acordo com a ponderação feita, assim diz: “a pessoa nem por isso é uma entidade metafisicamente suspensa que deve se atualizar, mas antes uma realidade historicamente móvel de que estamos encarregados” (SÈVE: 1994, p. 93).

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sua dignidade ao reconhecimento e aceitação do outros6. A personalidade será uma identidade conferida exclusivamente ao indivíduo em suas relações historicamente insubstituíveis. O que para mim convém dizer que a personalidade é conferida pela biografia.

3. Prognóstico

6 Cf. Guy Durant, Uma via intermediaria: a pessoa humana (Loyola, 2012), p. 286-87.

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Nessa última fase de minha argumentação, complemento a análise do parágrafo (a personalização em crise) já indicando algumas considerações e propostas (teorias éticas) sobre o debate moral a partir de questões bioéticas.

Sève, ao conduzir seu argumento de que a personalização é um efeito historicamente situado em relações culturais próprias, e para não ficar limitado nas objeções racionalista, teve que admitir uma pluralidade de forma-valor de pessoas, mas com isso arrisca recair em um culturalismo. Para tanto, precisa revigorar o conceito de universalismo. A universalização, para Sève (p. 92), representa uma tendência dinâmica de superação de objecções, sejam crenças culturais ou argumentos racionais, que visam favorecer o desenvolvimento da pessoa em sua dignidade humanitária. Assim, a prática da doação solidária de órgãos representa um gesto satisfatório e genuinamente humano na preservação da dignidade humana em todas as suas formas (um órgão por ser um material geneticamente humano, merece ser respeitado como tal). Para o autor, o fato de a pessoa ser si própria não a isenta de responsabilidades com os outros em face de uma humanidade comum, que já expresso na visão do autor, o fator comum da humanização é ascrição de um valor de dignidade. Entretanto, isso não esconde e nem basta para sanar o fato de haver ações indignas na humanidade; porém o escopo do autor não é este. Sève (p. 78) pretende mostrar que a crise da personalização coloca em risco práticas de insubstituível importância para que a superação da hominização (processo geneticamente estabelecido na pré-disposição da própria evolução) se concretize na humanização, momento em que “a pessoa se torna verdadeiramente, enquanto valor, realidade humana”. Portanto, por um lado, Sève defende a pluralidade de realidades humanas, mas por outro, convoca a dignidade, sendo esta portadora de uma universalidade da pessoa, como fundamento da condição da realidade humana. “assim, a universalização ética não é, de modo nenhum, a uniformização das sabedorias concertas [ciências] mas antes a partilha de valores últimos [ascrição]” (p. 92). Nesse sentido, entendo que o autor quer transmitir a mensagem de uma universalização ética como igualdade dos valores particulares, de modo que, o valor particular de cada pessoa pode ser equiparado, não em grau de valor, mas como sendo igualmente valoroso em todos os casos em que a dignidade se desenvolve em sua forma-valor na personalização biográfica, reconhecendo que para o outro também existe um importante valor que merece ser respeitado. Essa relação fica assim explicitada por Sève:

vemos aqui posta em prática uma dialética muito esclarecedora do particular e do universal: uma cultura pode integrar uma exigência comum que lhe era estranha, mas a sua maneira, e sem deixar de ser ela própria (SÈVE: 1994, p. 92).

Agora, se Sève expressa a possibilidade de existir uma ética de caráter universalista, de que forma deveria ser conduzido o debate? Nesse ponto, apresento duas teorias éticas voltadas para essa questão.

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Inicio com a proposta de J. Habermas (1999) de uma teoria ética discursiva. O interesse de Habermas está em corrigir o déficit das concepções assumidas como valores necessários para as realizações particulares que pedem por justificativas racionais. Do mesmo modo, ele pretende priorizar a formação do ponto de vista moral entre normas que possam atender a um princípio racional de justificativa e normas que recebem determinadas práticas sociais que, a princípio, não podem ser moralizadas7. Pela ética do discurso, Habermas (1999) propõe a formação conjunta da vontade para a qual a autonomia se torna uma aquisição cooperativa, engajada num contexto livre das formas de dominação e violência. O engajamento em discurso prático exige que o concernido assimile e adote as regras do próprio discurso, que deve, com efeito, ultrapassar a função crítica para se ater às justificativas de validações das regras de conduta moral. Isso por que, na ética do discurso:

As únicas normas que têm o direito de reclamar a validade são aquelas que podem obter a anuência de todos os participantes envolvidos num discurso prático. [...] os resultados e as consequências secundárias, provavelmente decorrentes de um cumprimento geral dessas mesmas normas e a favor dos interesses e aceites voluntariamente por todos (HABERMAS: 1999, p. 16).

Expressando de maneira bem sintetizada as concepções éticas que transpassam boa parte do argumento habermasiano em seus conceitos fundamentais, temos dois princípios: a) o princípio de universalização (P.U.) que diz que todo discurso prático possui regras de argumentação que permitem uma justificativa racional; e b) o princípio do discurso prático (P.D.) no qual deve apenas se justificar normas que possam contar com o poder de anuência em causa. Esses dois princípios que caracterizam a ética discursiva de Habermas lhe confere a prerrogativa de pretensão universalista em um agir comunicativo de forma consensual. Desse modo, a ética do discurso reclama o cumprimento de uma dupla tarefa: a) a existência do reconhecimento recíproco nas relações intersubjetivas, em vista da dignidade que cada qual pede para si enquanto membro de uma comunidade; b) o respeito à liberdade inalienável de cada qual exige ao mesmo tempo proteção correspondente a uma forma de vida comunitária. Assim, a ética do discurso proclama na solidariedade que a moral “ao defender os direitos [formas de justiça] do indivíduo, é obrigada a defender igualmente o bem-estar [ser concreto] da comunidade a que este pertence” (HABERMAS: 1999, p. 20). Sève parece concordar com esses aspectos, pois “a universalidade da pessoa não exige mais do que isso”.

O que, no entanto, aparece como uma objeção ao pensamento de Habermas talvez seja o procedimento adotado para o discurso prático. Tal procedimento para Habermas deve se encerrar no consenso. Nesse caso, todos os seres capazes de entrar no discurso prático deveriam reconhecer o melhor argumento e pela justificativa racional concordar com ele. O problema está, agora apontando para o campo bioético, em admitir que somente aqueles inclusos no discurso prático podem justificar suas escolhas (ponto de vista 7 Para as considerações de J. Habermas, cf. Consciência moral e agir comunicativo (Tempo Brasileiro, 1989), p. 128-132.

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moral). Ora, mas a imagem de um consenso parece ser insuficiente quando envolve questões bioéticas como o embrião já ser um associado da humanidade, justamente por ser o embrião incapaz de justificar por si mesmo, dependendo de outrem, mas enquanto dependente de outrem não pode ser visto como pessoa. No caso da eutanásia também fica explicito que o desejo de querer morrer do paciente se contrapõe à vontade de deixar viver dos médicos, e desse modo não haveria consenso. O consenso apenas, como pensado por Habermas, não parece ser uma forma suficiente para abordar os problemas bioéticos em sua totalidade.

Em relação a Habermas, notamos que: “um acordo entre todos [consenso] seria um acordo sobre o nada – sobre aquilo a que, por um lapso espantoso, um prelado chamava ‘o mais pequeno denominador comum’” (SÈVE: 1994, p. 82). Sève parte da premissa de que existe um terreno comum que permite o acordo entre todos, que é a existência de desacordo em cada um (p. 85). Para ele um debate ético que envolva questões bioéticas deve ter sempre em consideração o fato de que o respeito de todos os homens pela sua condição humana é o maior denominador comum. Com isso, o autor faz apelo a regra da leal exaustividade, que é o esforço de justificar as ações morais sem nenhum acréscimo estranho ou subtração arbitrária, mas contar tão somente com aquilo que é humano, que não relativize nem reduza, mas ao contrário que seja integral, a qual nada do que é humano deve ser estranho ou desfalcado para promover ou evitar o embaraço justificativo. Assim, segundo Sève (p. 82), em um debate bioético não é possível ignorar “nem o indivíduo biológico, nem o sujeito psíquico, nem a personalidade biográfica, nem a pessoa ética”.

Se para Sève o consenso da ética discursiva como apresentada por Habermas, embora fundamentada em muitos pontos comuns, não parece ser a melhor alternativa para conduzir o debate ético, apresento as considerações da filosofa S. Benhabib, que apresenta uma interpretação universalista situada principalmente na capacidade de reversão de perspectiva promovida pelo debate ético, retirando o foco consensual. O consenso pode ser coerente com um vicioso consequencialismo, no qual o discurso prático exige o consenso e o consenso depende de um discurso prático. Na constatação de Benhabib encontra-se a necessidade de reformulação do P.U. pela possibilidade da reversão de perspectivas (reversing of perspectives). Ou seja, o ponto de vista moral deve ser entendido dentro de um contexto histórico, dependente de um costume (ethos) compartilhado; sem isso as pretensões de uma ética cognitivista falham no teste da motivação moral. Ainda: a formação de um ponto de vista moral deve seguir o modelo de uma conversação moral, pois mais do que o descobrimento de um interesse geral, a possibilidade de reversão de perspectivas deve tornar-se o aspecto fundamental de um discurso prático. Portanto, todos os envolvidos em causa devem considerar a possibilidade de incluir o outro mesmo discordando dele, sendo o mais importante a capacidade de reverter perspectivas (moral point of view) no discurso prático.

Esta teoria ética tem uma melhor conformidade com a proposta de Sève acerca do debate ético, na medida em que defende um pluralismo de pontos de vistas sempre

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abertos a possibilidade de mudança de opinião. Com isso, o debate ético se torna uma experiência aberta que, mais do que a defesa da melhor justificativa, se pauta na capacidade de consideração da interação situada de cada deliberado, respeitando a sua história de vida, suas experiências singulares expostas aos demais participantes. Logo, no caso da eutanásia ou aborto, a personalidade biografia deve ser considerada tanto quanto a decisão de um a comissão médica ou o juízo jurídico. Ainda acrescento que o pensamento alargado de H. Arendt (já citado) aqui modela uma possibilidade singular de abertura para a criança, o deficitário mental (e por que não o embrião) como seres humanos capazes de um comportamento moral.

Encerro meu argumento com a sensação de ter articulado de forma coerente um conjunto de aspectos relevantes para a exposição e posicionamento da teoria bioética, tendo observado o principal aspecto da tese de Lucien Sève (ascrição) junto ao conceito de pessoa, sendo este pensado em sua crise de personalização, o que convoca uma perspectiva acerca da possibilidade do debate ético. Como durante todo o discurso textual me apresento em minhas opiniões, creio que não há mais no que se estender.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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