Bioetica e a Atencao Basica

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BIOTICA E ATENO BSICA: UM ESTUDO DE TICA DESCRITIVA COM ENFERMEIROS E MDICOS DO PROGRAMA SADE DA FAMLIA

ELMA LOURDES CAMPOS PAVONE ZOBOLI

Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de Prtica em Sade Pblica da Faculdade de Sade Pblica da Universidade de So Paulo para obteno do Grau de Doutor rea de Concentrao: Servios de Sade

ORIENTADOR: PROF. DR. PAULO ANTONIO DE CARVALHO FORTES

So Paulo 2003

Autorizo, exclusivamente para fins acadmicos e cientficos, a reproduo total ou parcial desta dissertao, por processos fotocopiadores. Assinatura: ________________________________________________ Data: _____________________________________________________

AGRADECIMENTOS

Vida...Ddivas...Dons...Gratido. Quando, em nossa vida, recebemos dons que ultrapassam o mrito, que no so simples decorrncias de merecimento, mas presentes, ddivas de amizade e generosidade, portanto imerecidos, movemo-nos a um profundo agradecimento:

Ao Prof. Paulo Antonio de Carvalho Fortes pela dedicao, ateno e respeito na orientao desta tese e pelas oportunidades de trabalho conjunto que me tem propiciado na vida acadmica. Ao amigo Paulo por permitir que compartilhssemos alegrias e tristezas que permearam nossas vidas durante esta jornada.

Aos Professores Jos Eduardo de Siqueira, Marcio Fabri dos Anjos, Maria Rita Bertolozzi e Volnei Garrafa por tomarem com alegria e empenho a tarefa de participarem das bancas de qualificao e defesa, enriquecendo este trabalho com suas valiosas e precisas contribuies.

Aos servios de sade que, apesar da delicadeza que cerca o tema, objeto desta tese, abriram suas portas, desnudando segredos de seu cotidiano.

Aos enfermeiros e mdicos, sujeitos annimos desta pesquisa, pela disponibilidade e confiana com que concederam as entrevistas em meio a seus mltiplos afazeres na unidade bsica de sade.

Rosimeire Angela Queiroz Soares e Sandra Cristina Ferreira Seplveda, alunas do curso de graduao da Escola de Enfermagem da Universidade de So Paulo (EEUSP), pela cuidadosa transcrio das entrevistas.

s colegas docentes do Departamento de Enfermagem de Sade Coletiva da EEEUSP pelo apoio expresso no s nas palavras de incentivo, mas por me

concederem tempo para o desenvolvimento deste trabalho, ao assumirem o nus do necessrio afastamento de minhas ocupaes na lide diria.

s docentes da EEUSP que me encorajaram com palavras de nimo e, especialmente, Profa. Maria Cristina Komatsu Braga Massarollo por partilhar comigo seus conhecimentos e experincia no ensino da biotica e tica em enfermagem.

Aos funcionrios do Departamento de Enfermagem em Sade Coletiva da EEUSP pela sua solicitude e presteza.

Profa. Maria Cristina Schlucat Cassim pelo carinho, prontido e entusiasmo na reviso dos originais do relatrio final.

Apesar de marcar nossa vida indelevelmente, uma tese de doutorado no constitui acontecimento pontual, outrossim, resulta e nutre-se de distintas experincias, tambm permeadas de benesses que, como tal, so imerecidas e requerem nosso grato reconhecimento:

Ao Prof. Dr. Leo Pessini e ao Prof. Christian de Paul de Barchifontaine por terem me apresentado Biotica, amparado-me em meus primeiros passos neste campo e seguirem me presenteando com seu apoio amigo.

Profa. Marcia Furquim de Almeida pela amizade demonstrada no apenas no respeito as minhas opes, mas tambm no carinho com que tem acompanhado minha vida acadmica.

Aos amigos e companheiros da Sociedade Brasileira de Biotica e do Ncleo So Paulo pelas manifestaes de estmulo.

Aos amigos e companheiros da Prefeitura Municipal de Santo Andr e do Centro Universitrio So Camilo que, apesar da distncia nos separar, sempre

tiveram palavras de encorajamento nos eventuais reencontros que a vida nos proporcionou.

Tarefa rdua a de agradecer. No tanto pelas peculiaridades inerentes ao exerccio de um dos mais justos sentimentos morais, a gratido, mas pelo temor do esquecimento. Inmeros so os presentes recebidos e os limites impostos pelo papel e pela memria podem nos trair no momento do agradecimento. Neste caso, restanos apelar para a mesma amizade que permitiu as ddivas e contar, antecipadamente, com mais algumas: a compreenso e o perdo dos no mencionados.

Para Rodolfo, com amor, pois sem sua compreenso, pacincia, estmulo, apoio, companheirismo e cumplicidade este trabalho no seria possvel e tampouco teria sentido.

RESUMO

Zoboli ELCP. Biotica e ateno bsica: um estudo de tica descritiva com enfermeiros e mdicos do Programa Sade da Famlia. So Paulo; 2003. [Tese de Doutorado Faculdade de Sade Pblica da Universidade de So Paulo].

Estudo emprico, qualitativo, de tica descritiva, no qual foram entrevistados 18 enfermeiros e 17 mdicos do Programa Sade da Famlia, no Municpio de So Paulo, SP, com os objetivos de identificar e comparar os problemas ticos vivenciados e os fundamentos que balizam o equacionamento para a tomada de deciso frente a problemas ticos. Num primeiro momento da entrevista, solicitou-se aos profissionais que listassem problemas ticos vivenciados a partir da narrativa de um caso, em seguida pedia-se que recomendassem uma soluo para situaes hipotticas, justificando a indicao. Os resultados apontam que os problemas ticos na ateno bsica so, em geral, preocupaes do cotidiano da ateno sade, parecendo triviais frente s situaes crticas, dramticas, tpicas do hospital, que requerem solues imediatas e so mais freqentes na literatura. A sutileza que os cerca pode fazer com que passem desapercebidos, com conseqncias desastrosas para a assistncia prestada aos usurios, famlias e comunidade adscrita. Os enfermeiros e mdicos, de maneira geral, preocupam-se em preservar os direitos individuais dos usurios, mas o fazem de forma a proteger as relaes vinculares, numa mescla dos enfoques principialista e do cuidado. A ateno bsica, quando comparada com a hospitalar, lida com fatos e valores distintos e, por vezes, de maior amplitude e complexidade, ainda que de menor dramaticidade, demandando-se mais investigaes que possibilitem aprofundar esta interface da biotica e da ateno bsica.

Descritores: Biotica. Temas bioticos. Sade Pblica, tica. Cuidados Primrios de Sade, tica. Programa Sade da Famlia.

SUMMARY

Zoboli ELCP. Biotica e ateno bsica: um estudo de tica descritiva com enfermeiros e mdicos do Programa Sade da Famlia. [Bioethics and primary healthcare: a descriptive ethics study with nurses and doctors from the Family Health Program]. So Paulo (BR); 2003. [Tese de Doutorado Faculdade de Sade Pblica da Universidade de So Paulo].

This is an empirical, qualitative, descriptive ethics study. The objectives were to identify and compare ethical problems experienced and approaches used by primary health care professionals in ethical decision making. The research subjects were eighteen nurses and seventeen physicians of the Family Health Program in the city of Sao Paulo, SP, Brazil. In the first half of a semi-structured interview they were asked to relate a case from their experience that they considered an ethical problem. In the second half they were asked to recommend a solution to hypothetical situations and then to justify their choices. The cases related by the respondents indicate that the ethical problems in primary healthcare are not the critical, dramatic and rare cases found in hospitals which require immediate decisions. These ethical problems might seem trivial when compared with those currently discussed in the literature on medical ethics. The subtlety of the ethical problems in primary healthcare might make them difficult to discern and may lead to disastrous consequences for patients, families and communities. Nurses and physicians, in general, are concerned about preserving the rights of the individuals, but they do this in such a way that they protect the relationships, in a mixture of principialism and ethics of care approaches. In contrast to high-technology settings, primary healthcare deals with less dramatic, more complex issues and different values which might complicate ethical decision making. Further research is required to deepen our understanding of the interface between bioethics and primary healthcare.

Descriptors: Bioethics. Bioethical issues. Public Health, ethics. Primary health care, ethics. Family Health Program.

NDICE

1 INTRODUO 2 OBJETIVOS 3 PROCEDIMENTOS METODOLGICOS 3.1 Tipo de Estudo 3.2 Sujeitos do Estudo 3.2.1 Perfil dos Enfermeiros Entrevistados 3.2.2 Perfil dos Mdicos Entrevistados 3.3 Cenrio do Estudo 3.4 Coleta de Dados 3.5 Referencial Terico 3.6 Organizao dos Dados 4 REFERENCIAL TERICO 4.1 O Enfoque Principialista: a nfase nos Princpios e nos Atos 4.1.1 Para Entender o Principialismo 4.1.2 Os Quatro Princpios da tica Biomdica 4.2 O Enfoque das Virtudes: a nfase no Carter dos Agentes 4.2.1 Natureza e Noo das Virtudes na Explicao de Alasdair MacIntyres 4.3 O Enfoque do Cuidado: a nfase nas Relaes 4.3.1 O Reconhecimento de uma Voz Diferente 4.3.2 Conceitos de Eu e Moralidade 4.4 O Enfoque da Casustica: a nfase nos Casos Clnicos 4.4.1 Casustica: Elementos e Conceituao 4.4.2 A Casustica na tica Clnica 4.5 O Enfoque da tica Profissional: a nfase nos Cdigos Deontolgicos 5 RESULTADOS E DISCUSSO 5.1 Resultados e Discusso: Momento I 5.1.1 As Relaes com os Usurios e as Famlias

1 18 20 20 24 26 28 30 33 35 36 44 46 46 53 70 72 87 94 96 100 103 106 113 118 118 133

5.1.2 As Relaes da Equipe 5.1.3 As Relaes com a Organizao e o sistema de sade 5.2 Resultados e Discusso: Momento II 6 CONSIDERAES FINAIS 7 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ANEXOS Anexo 1 Termo de responsabilidade da pesquisadora Anexo 2 Solicitao de consentimento institucional para realizao da pesquisa Anexo 3 Aprovao pelo Comit de tica em Pesquisa da FSP

167 178 186 228 233

A1 A2 A3

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1 INTRODUO

A fim de viabilizar a convivncia a sociedade e/ou os grupos tm traado, ao longo da histria da humanidade, diferentes balizamentos. A tica um deles. A palavra tica, do grego thos, refere-se aos costumes, conduta de vida e s regras de comportamento. Circunscreve-se ao agir humano, aos comportamentos cotidianos e s opes existenciais. Etimologicamente, significa o mesmo que moral (do latim mos, moris), sendo usual o emprego destas palavras uma pela outra, quase como sinnimos.

Segundo Durant (1995), a moral ou a tica abrange como campos de ao:

A pesquisa: entendida como a procura do que certo, do que necessrio fazer. a pesquisa de normas ou de regras de comportamento, a anlise dos valores, a reflexo sobre os fundamentos dos direitos, dos valores e das normas. O que importa neste campo de abrangncia buscar, conhecer e descobrir os valores para somente ento interioriz-los ou seguir as normas. Esta pesquisa no exclusividade de especialistas, constitui responsabilidade de cada pessoa.

A sistematizao da reflexo: o resultado da pesquisa, podendo-se entender a tica ou a moral como um conjunto organizado, sistemtico, hierarquizado de regras ou de valores. Neste sentido, so distintas as aplicaes permitidas: o O conjunto mais ou menos organizado e coerente de valores, de regras e de direes de vida de cada um: minha moral pessoal; o O sistema ou a sntese elaborada pelos diferentes pensadores: a tica de Aristteles, de Kant, de Descartes etc. o As exigncias, os valores, os princpios que servem de base e justificativa para o comportamento de um grupo ou de uma sociedade: tica crist, tica grega, moral catlica, moral marxista etc.

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A prtica: a experincia concreta do cotidiano, quando ocorre a realizao dos valores, o esforo pessoal para aplicar os princpios e observar as normas.

A este ponto, cabe considerar que comum, mas no unnime, a distino entre tica e moral, entendendo a primeira como o estudo dos fundamentos da segunda. Isto a limita aos dois primeiros campos de ao (o da pesquisa e sistematizao), restando o da prtica moral (DURANT 1995).

Neste sentido, tambm no se pode esquecer que a vida cotidiana confere s palavras uma histria especfica que lhes agrega um sentido prprio. Assim, pertinente ponderar que, no Ocidente, a primazia cultural do cristianismo confere palavra moral uma conotao religiosa, referindo-se a um sistema de princpios imutveis e aparentemente definidos. Desta forma, este termo reveste-se de um sentido fechado e conservador. Dentro deste contexto, o realce para a palavra tica, ocorre na inteno de destacar uma conotao de moral no religiosa, secular. Da a preferncia em usar tica moral, mesmo reconhecendo-se a sinonmia dos termos por sua etimologia (DURANT 1995).

A tica da sade ocupa lugar de destaque no conjunto das reflexes ticas, pois enfoca questes relacionadas manuteno e qualidade de vida das pessoas. Leopoldo e Silva (1998) considera a tica da sade profundamente enraizada no terreno dos direitos humanos, pois a vida o primeiro dos direitos. Segue o autor afirmando que a tica da sade implica compromisso com a realizao histrica de valores que encarnem nas condies determinadas de situaes sociais e polticas diferenciadas o direito de que todo ser humano deveria primordialmente usufruir (p. 35).

Na busca de uma abordagem secular, interdisciplinar, prospectiva, global e sistemtica para os temas de tica, consoante com a afirmao e a construo dos direitos humanos que marcam o mundo moderno nos anos 70, tem se instaurado na rea da sade, nas ltimas trs dcadas, a biotica. Antigas concepes verticais,

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autoritrias, com deveres e princpios absolutos, no so mais aceitas e passam a ser substitudas por alternativas de carter horizontal e democrtico, com

responsabilidades recprocas e bilaterais (GRACIA 1989; DURANT 1995).

O termo biotica, literalmente, significa tica da vida. O vocbulo de raiz grega bios designa o desenvolvimento observado nas cincias da vida, como a ecologia, a biologia e a medicina, dentre outras. Ethos busca trazer considerao os valores implicados nos conflitos da vida (GRACIA 1998a; PESSINI e BARCHIFONTAINE 2000).

Este neologismo cunhado pelo oncologista Van Ressenlaer Potter no livro Bioethics: bridge to the future, publicado em 1971, com o objetivo de, ao juntar num s campo os conhecimentos da biologia e da tica, ajudar a humanidade em direo a uma participao racional, mas cautelosa, no processo da evoluo biolgica e cultural:

The purpose of this book is to contribute to the future of the human species by promoting the formation of a new discipline, the discipline of Bioethics. If there are the cultures that seem unable to speak to each other science and the humanities and if this is part of the reason that the future seems in doubt, then possibly, we might build a bridge to the future by building the discipline of Bioethics as a bridge between the two cultures. (POTTER 1971, p. vii)

Desta forma, a definio de biotica abraa este processo de confronto entre os fatos biolgicos e os valores humanos na tomada de decises envolvendo os problemas prticos em diferentes reas da vida, como na assistncia mdicosanitria:

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(....) cobra todo su sentido la definicin de la biotica como el proceso de contrastacin de los hechos biolgicos con los valores humanos, a fin de globalizar los juicios sobre las situaciones y de esa forma mejorar la toma decisiones, incrementando su correccin y su calidad. Una rea particular de la biotica sera la biotica sanitaria o biotica clnica, que en consecuencia se podra definir como la inclusin de los valores en la toma de decisiones sanitarias, a fin de aumentar su correccin y su calidad. (GRACIA 1998a, p. 30).

Na introduo segunda edio da Enciclopdia de Biotica (REICH 1995a) encontra-se o termo biotica definido como:

o estudo sistemtico das dimenses morais, incluindo a viso, a deciso, a conduta e as normas, das cincias da vida e da sade, utilizando uma variedade de metodologias ticas num contexto interdisciplinar.

Desta definio, possvel depreender que h diferentes tendncias na configurao das formas de sistematizar e tratar a anlise terica em biotica. Entre os paradigmas mais comuns destacam-se o do liberalismo que tem nos direitos humanos a justificativa para o valor central da autonomia do indivduo sobre seu prprio corpo e as decises relativas sua vida; o das virtudes que coloca a tnica na boa formao do carter e da personalidade das pessoas ou dos profissionais; o da casustica que incentiva a anlise de casos a fim de elaborar caractersticas paradigmticas para analogias em situaes semelhantes; o narrativo que entende a intimidade e a identidade experimentadas pelas pessoas ao contarem ou seguirem histrias como um instrumental facilitador da anlise tica; o do cuidar que defende a importncia das relaes interpessoais e da solicitude e o principialista, baseado nos princpios da beneficncia, no maleficncia, autonomia e justia (ANJOS 1997; PESSINI e BARCHIFONTAINE 2000).

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Este ltimo modelo de anlise, tambm conhecido como principialismo, talvez seja a tendncia mais difundida. Sem conhec-la, quase impossvel compreender a recente histria da biotica, pois as demais teorias, em sua maioria, construram-se a partir de um dilogo com esta, seja corroborando-a ou contradizendo-a. Tal a sua preponderncia que, por vezes, chamada de mantra da biotica (GRACIA 1998a).

O principialismo mostra-se atrativo para a prtica da ateno mdico-sanitria por propiciar uma linguagem simples, objetiva e que possibilita a verbalizao de percepes e sentimentos ticos, permitindo uma abordagem sistematizada dos problemas prticos do cotidiano (PESSINI e BARCHIFONTAINE 1998; SCHRAMM 1998).

E, exatamente este cotidiano ou ainda o que se tem entendido e delimitado como o cotidiano da sade na viso da biotica, que lhe impe, atualmente, um dos mais candentes desafios. Partindo-se das idias de Giovanni Berlinguer (1993), podese dizer que o limite e a exceo parecem ter assumido o lugar da cotidianidade, pois os casos de situaes limites, como a eutansia, o aborto, a reproduo medicamente assistida etc. tm sido a constante nas reflexes bioticas, negligenciando-se os problemas de ordem tica que envolvem a maioria das pessoas em sua vida cotidiana:

Discute-se, justamente, sobre alguns casos de eutansia, de boa morte eventual, mas ignoram-se milhes de cacotansias, de pssimas mortes prematuras e no merecidas que acontecem por falta de preveno e tratamento. Dedicam-se, justamente, energias cientficas e reflexes morais fecundao artificial, mas trabalha-se muito pouco, tanto na pesquisa como nas atividades prticas, sobre a comunssima esterilidade, que s em raros casos pode ser resolvida com a fecundao artificial.

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Criam-se preocupaes justas a respeito do controle farmacolgico ou gentico do comportamento, deixando de se considerar, como anlise cientfica tambm, a atual constante manipulao humana, atravs de outros meios. (BERLINGUER 1993, p. 21 e 22).

Para compreender esta questo, faz-se necessrio reexaminar alguns aspectos que cercam a origem e a evoluo deste campo da tica.

Como mencionado previamente, o vocbulo biotica cunhado por Potter, professor da Universidade de Wiscousin (EUA), em seu livro publicado em 1971. No entanto, antes disso, em 1962, lana a idia do que viria a conformar seu entendimento de biotica. Na Universidade de Dakota do Sul, em palestra comemorativa dos 100 anos da inaugurao do sistema land-grant, aps 22 anos de pesquisa em oncologia, pensa que a ocasio chama para algo mais filosfico e decide falar de algo que tinha em mente e nunca havia expresso. Em uma apresentao intitulada Ponte para o futuro, um conceito de progresso humano questiona o progresso; para onde o avano materialista da cincia e da tecnologia est levando a cultura ocidental; o tipo de futuro que est se construindo e se h opes. Em 1970, publica a palestra e em janeiro de 1971 o livro, que se tornam conhecidos do pblico em geral atravs de reportagem veiculada pela Revista Time, em 19 de abril de 1971. A partir da, a palavra emplaca na mdia e a expresso biotica torna-se parte da linguagem diria. Seu significado original perscrutado e redefinido, principalmente pelos especialistas em tica mdica, sendo confundida, muitas vezes, com esta (POTTER 1998; PESSINI e BARCHIFONTAINE 2000).

Colabora para isto, provavelmente, o fato de Andr Hellengers, obstetra holands, fisiologista e demgrafo da Universidade de Georgetown, ter usado o termo em um contexto institucional para designar uma rea de pesquisa ou campo de aprendizagem ao fundar, tambm em 1971, The Joseph and Rose Kennedy Institute for the Study of Human Reproduction and Bioethics. Este pesquisador, a partir do seu trabalho no Instituto, um dos que imprime biotica seu significado corrente, ao

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aplic-la tica da medicina e das cincias biomdicas. Assim, nos anos setenta, a ateno volta-se mais para as questes de carter individual da relao clnica entre os profissionais de sade, especialmente os mdicos e os enfermos, enfocando primordialmente as situaes limites apontadas (PESSINI e BARCHIFONTAINE 2000).

Tambm no se pode esquecer que nas dcadas de 60 e 70 a biomedicina experimenta um grande avano tecnolgico com o evento da dilise em 1962, em Seattle (EUA) e com o comit que deveria escolher quem poderia ter acesso ao novo recurso teraputico; o transplante de rgos revolucionando o conceito de morte; o advento do diagnstico pr-natal de algumas patologias aliado possibilidade de abortos em condies clinicamente seguras; as plulas contraceptivas e os primeiros passos da reproduo assistida, tornando possvel dissociar o que parecia indissolvel; a expanso do uso das unidades de cuidados intensivos e dos respiradores e o alvorecer da engenharia gentica. Ao lado deste desenvolvimento biotecnolgico surgem as denncias feitas por H. Beecher em artigo publicado no New England Journal of Medicine, em 1966, de 22 pesquisas eticamente incorretas realizadas com seres humanos, mesmo aps o advento do Cdigo de Nrenberg, em 1947, e a Declarao de Helsinque, em 1964. Estes fatos, alm de escandalizarem a opinio pblica, colocam em questionamento a medicina e a tica.

Por isto, frente a este contexto delineado pela preocupao inicial de Potter ao cunhar o neologismo biotica e pelo uso atribudo palavra por Hellengers, alguns autores destacam dentre as motivaes que explicam a gnese e o desenvolvimento da biotica os avanos no campo da biologia molecular e na ecologia, a crescente preocupao com o futuro da vida no planeta e a transformao ocorrida na prtica da assistncia mdico-sanitria com a incorporao das conquistas propiciadas pelo desenvolvimento da tecnocincia biomdica (GRACIA 1998a; ALMEIDA e SCHRAMM 1999; PESSINI e BARCHIFONTAINE 2000).

A partir dos anos 80, a biotica comea a ampliar seu foco de viso situando a relao clnica no contexto de um sistema de sade e incorporando a reflexo das

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questes relativas estrutura, gesto e ao financiamento deste sistema. Neste perodo, a difuso da biotica em direo aos pases do hemisfrio sul, especialmente a Amrica Latina, onde convivem ilhas de excelncia tecnolgica em sade com a extrema pobreza da maioria das populaes, torna imperativa a incluso dos problemas da coletividade na agenda das discusses, com temas como o acesso aos servios de sade, a alocao de recursos em sade, as questes demogrficas e populacionais e a responsabilidade social e coletiva sobre as condies de sade. Tanto assim, que o Programa Regional de Biotica para a Amrica Latina e Caribe, desde seu estabelecimento pela Organizao Pan-americana da Sade, em 1994, define dentre as prioridades temticas em biotica para a Regio, a tica em Sade Pblica (PESSINI e BARCHIFONTAINE 2000).

No final da dcada de 90, como lembra Wikler (1997) citado por Pessini e Barchifontaine (2000, p. 395 e 396), inicia-se a chamada biotica da sade da populao, entrando em cena com mais vigor os direitos humanos e as Cincias Sociais e Humanas. Confere-se, desta maneira, maior destaque s questes da eqidade e da alocao de recursos na sade.

Caracteriza este momento da biotica:

A perda do lugar central que vem sendo ocupado pela medicina de alta tecnologia, com desvio do enfoque central das questes relativas ao avano biotecnolgico em direo aos determinantes da sade, dentre os quais figura o acesso aos servios de sade e tecnologia neles incorporada;

A nfase igualmente colocada na sade e nos cuidados sade, com a preocupao voltada no apenas para quem tem acesso a determinados servios sanitrios, mas tambm para quem adoece ou no e o quo eqitativa mostra-se esta relao;

A preocupao com as questes demogrficas; A priorizao dos excludos nos pases em desenvolvimento;

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A necessidade de um novo marco conceitual que, apropriando-se de conceitos e teorias de outros campos do conhecimento humano, d conta das demandas de reflexo geradas por esta biotica da sade das populaes.

A partir desta trajetria histrica possvel compreender porque a biotica, no contexto internacional e brasileiro, tem sistematicamente deixado de lado no somente as questes relativas Sade Pblica e Coletiva, mas tambm porque tem se dedicado muito mais reflexo e discusso dos problemas de ordem tica enfrentados pelos profissionais da sade que atuam nos hospitais e outros servios de sade que concentram a incorporao de alta tecnologia, relegando ao esquecimento a vertente da ateno bsica, mormente composta pelas unidades bsicas de sade responsveis pelas aes e pelos procedimentos tidos como de mais baixa complexidade1.

Segundo Gracia (1998b), a sofisticao tecnolgica alcanada nos hospitais e servios especializados, nas trs ltimas dcadas, tem sido uma das motivaes mais evidentes do desenvolvimento da biotica e isto explica porque as publicaes e os procedimentos de tomada de deciso difundidos durante este perodo centram-se, fundamentalmente, nos casos de situao limite. Segue o autor afirmando que at mesmo a teoria biotica mais difundida, o principialismo, e a linguagem tica dos princpios e das conseqncias tem sido pensada em funo da tomada de deciso em circunstncias peremptrias que exigem uma resposta rpida, mais apropriada a este tipo de cenrio.

Na ateno bsica compreende-se, segundo a Norma Operacional Bsica 01/96 do Ministrio da Sade, as consultas mdicas em especialidades bsicas; atendimento odontolgico bsico (procedimentos coletivos, procedimentos individuais preventivos, dentstica e odontologia cirrgica bsica); atendimentos bsicos por outros profissionais de nvel superior; visita/atendimento ambulatorial e domiciliar por membros da equipe de sade da famlia; vacinao; atividades educativas a grupos da comunidade; assistncia pr-natal; atividades de planejamento familiar; pequenas cirurgias; atendimentos bsicos por profissional de nvel mdio; atividades dos agentes comunitrios de sade; orientao nutricional e alimentar ambulatorial e comunitria; assistncia ao parto domiciliar por mdico do Programa Sade da Famlia; e atividades de pronto atendimento. Ainda pode-se incluir aes no campo da Vigilncia Sanitria, Assistncia Farmacutica Bsica e Sade da Famlia, incorporando e integrando aes isoladas de Agentes Comunitrios de Sade (PACS) e Combate s Carncias Nutricionais.

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Este privilgio da assistncia altamente especializada em detrimento da vertente da ateno bsica sade tem sido tomado em conta por alguns autores, levando-os a classificar o atual entendimento da biotica de incompleto:

The current understanding of bioethics is (....) incomplete as it largely ignores the health encounters of the primary care and non medical healthcare settings. Rather, the vast preponderance of philosophical inquiry and empirical ethical research focuses on dilemmas arising in hospitals and tertiary care institutions. (FETTERS e BRODY 1999).

E, ao se ponderar as consideraes de Gracia (1998b) que apresenta a biotica como uma disciplina que tem por objeto o estudo dos valores e sua incluso no processo de tomada de deciso, o que lhe imprime um carter eminentemente prtico e operativo com um olhar voltado para os fatos, parece que se pode concordar com a idia de incompletude defendida no pargrafo anterior.

Se a tomada de deciso deve levar em conta os fatos, ou seja, os dados da situao descrita de modo mais completo possvel, buscando analisar os valores que os acompanham e integr-los no processo decisrio a fim de aumentar sua qualidade e propiciar decises no apenas tecnicamente corretas, mas eticamente adequadas, ao centrar-se nos casos de situao limite na ateno sade a biotica esquece que a assistncia mdico-sanitria no se configura como um conjunto homogneo de servios e aes. Parece, ento, que uma parte dos fatos no considerada no contexto que rodeia o processo decisrio. Esta incompletude aumenta de proporo se for considerado que a sade tem sido equiparada em biotica, muitas vezes, ao acesso a servios sanitrios, desconsiderando-se a questo dos determinantes e condicionantes sociais do processo sade-doena.

Sem desconhecer a relevncia dos temas tratados mais enfaticamente pela biotica at agora, mister ampliar e redirecionar as atuais orientaes. Esta tarefa torna-se mais urgente ainda para os que estudam e refletem biotica no Brasil. Isto

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porque, como alerta Clotet (1995), da forma que vem sendo tratada, a biotica tem se ocupado de problemas que afetam apenas um nmero reduzido de pessoas nos pases ricos, o que pode lhe impor o risco de isolar-se do fluxo de exigncias e experincias comuns a todos e/ou que dizem respeito aos grupos menos privilegiados de pases pobres.

Entretanto, esta incumbncia no nada fcil, uma vez que o vis observado nas situaes tratadas pela biotica parece no constituir fato isolado, apresentandose, provavelmente, como reproduo das tendncias observadas na organizao dos servios de sade no Brasil. Como assinala Elias (1999), no configura situao rara a absoro de importante quantidade dos recursos destinados rea da sade pelos hospitais especializados sem a compatvel correspondncia na resoluo dos problemas de sade mais demandados pela populao. Como destaca o autor, a realidade brasileira acompanha o que ocorre nos pases em desenvolvimento, onde os estabelecimentos, os equipamentos, os recursos humanos e os medicamentos tendem a orientar-se para a esfera que concentra os atendimentos de maior complexidade.

E, justamente nestes plos que a biotica tem se desenvolvido no Brasil. Ao se deslindar o rol dos centros apontados por Clotet (1995) como os pioneiros desta temtica no pas, embora sejam encontrados alguns grupos vinculados Sade Pblica, percebe-se a concentrao junto aos hospitais universitrios, cones da alta complexidade na assistncia sade.

De acordo com Brody (1989); Gracia (1998b); Fetters e Brody (1999) e Mayer-Braunack (2001), alguns fatores indicam que os problemas ticos enfrentados na ateno bsica devem diferir dos identificados nas demais esferas de atendimento: Os problemas de sade encontrados nos diversos servios de assistncia diferem segundo o nvel das aes e dos procedimentos oferecidos; Os sujeitos ticos, isto , os usurios, os familiares e os profissionais de sade tambm so diferentes. Os usurios de um servio de sade hospitalar, pela prpria condio da internao, esto com sua autonomia mais comprometida do que os no hospitalizados. Os profissionais de

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sade, na ateno bsica, usualmente visam objetivos de mais longo prazo, como a transformao dos perfis epidemiolgicos da coletividade a partir da ateno integral e no apenas o tratamento de um problema pontual; O cenrio em cada tipo de servio de sade difere e isto tem importncia na medida em que os problemas de ordem tica emergem do contexto no qual se inserem. Nas unidades bsicas de sade, os encontros entre os profissionais de sade e os usurios so mais freqentes e em situaes de menor urgncia. Assim, a emergncia, a imediatidade e a dramaticidade das situaes vivenciadas, por exemplo, nos prontos socorros ou unidades de terapia intensiva fazem com que os problemas ticos sejam freqentemente mais evidentes, tempestuosos e avultados, enquanto nas unidades bsicas de sade apresentam-se tipicamente de maneira mais sutil, passando, muitas vezes, desapercebidos; As solues encontradas para problemas ticos similares podem diferir nos diversos servios de ateno sade, pois ainda que se observe a mesma estrutura de raciocnio tico, os sujeitos ticos e o contexto so distintos, ou seja, os inputs do processo decisrio distinguem-se.

Assim, a partir destas consideraes pode-se concluir com Gracia (1998b) que:

(....) resulta evidente que la medicina primaria no slo maneja unos hechos distintos que los de la terciaria, sino tambin un mundo de valores de mayor amplitud y complejidad. (....) Dicho de otra manera, la medicina primaria exige un manejo de la biotica clnica que no es distinto, pero s superior o ms complejo que el de la medicina terciaria. Esto da buena idea de la importancia de la formacin en biotica en los programas de medicina familiar e comunitaria. (GRACIA 1998b, p. 100 - 1).

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Com efeito, das poucas pesquisas desenvolvidas para identificar os problemas de ordem tica vivenciados na ateno bsica, algumas apontam para diferenas em relao as demais esferas da assistncia sade. No entanto, cabem algumas consideraes em relao a estas investigaes. Utilizam, geralmente, padres ideais desenvolvidos atravs de exame de casos no ambiente hospitalar para a identificao dos problemas ticos e os autores partem de suas prprias percepes para definir o que constitui uma questo tica de relevncia. Desta forma, so necessrias pesquisas que busquem identificar os problemas ticos na ateno bsica, especialmente nas unidades bsicas de sade (KNABE, STEARNS e GLASSER 1994; WAGNER e RONEN 1996; FETTERS e BRODY 1999).

A este ponto parece pertinente ponderar que os problemas de ordem tica vivenciados na ateno bsica no podem ser tratados sem se considerar o contexto do sistema de sade. Isto porque, como assinala Elias (1999), h uma relao de interao entre a organizao de servios e o sistema da sade. Afirma o autor que, se por um lado os servios estruturam-se a partir das caractersticas gerais dos sistemas de sade, de outro, o conjunto destes servios que acaba por conformar a estrutura dos sistemas.

No Brasil, a sade estrutura-se sob a gide do Sistema nico de Sade (SUS) criado pela Constituio Federal de 1988, que contempla a sade como direito social e dever do Estado. O SUS tem como seus pilares bsicos a universalidade no acesso aos servios, a igualdade no atendimento e a eqidade na distribuio dos recursos. A sua organizao pauta-se pelas diretrizes da descentralizao e hierarquizao com direo nica em cada esfera do governo (federal, estadual e municipal); do atendimento integral que compatibiliza as atividades preventivas e assistenciais e do controle exercido pela sociedade atravs da participao da comunidade nas conferncias e conselhos de sade. O SUS regulamentado pelas Leis n 8080, de 19/9/90 e n 8142, de 28/12/90, que conformam a Lei Orgnica da Sade (LOS) na qual se encontra o detalhamento destas diretrizes e da operacionalizao de alguns aspectos do sistema (ELIAS 1999).

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O SUS corresponde constitucionalizao das principais bandeiras do Movimento pela Reforma Sanitria que, iniciado na dcada de 70 com a mobilizao de diversos segmentos da sociedade que arriscavam denunciar o descalabro do sistema de sade, defendia o fortalecimento do setor pblico nesta rea como um direito de cidadania (COHN 1999).

Entretanto, apesar da sade ter seu arcabouo legal mnimo definido desde a dcada de 90, suas conseqncias ainda no surtiram os efeitos desejados, previstos e necessrios para dar conta da estruturao e do funcionamento plenos dos SUS. A descentralizao concretiza-se de forma limitada e limitante, pois tutelada pela esfera federal, operada por meio de financiamento e demarcada muito mais por seu componente racionalizador do que pelas possibilidades de democratizao da instncia municipal. Persistem os problemas relativos ao financiamento e o controle social ainda tenta consolidar-se abrindo caminhos no seio de uma sociedade desestimulada e desacostumada s aes de cidadania e de um Estado hostil idia de ter seus atos fiscalizados pela sociedade (ELIAS 1999).

Isto remete reflexo de que a implementao do SUS, em verdade, configura um processo que requer uma reviravolta tica, pois implica em um processo social de mudana na prtica sanitria que exige dos atores envolvidos, como os profissionais de sade, os gestores e os usurios transformaes atitudinais e culturais. Neste sentido, discutindo a tica na produo social de sade, Garrafa (1995) alerta que:

Qualquer processo dinmico que procure mudanas substanciais e envolva diferentes interesses e pessoas, exige dos seus executores e beneficirios alguns cmbios atitudinais e at mesmo culturais. Colocado desta maneira, esse processo substancialmente tico e deve passar por profundos estudos e reavaliaes nas posturas, nos direitos e nas obrigaes dos atores com ele comprometidos; no caso, refiro-me aos polticos e tcnicos que manejam os

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recursos para a sade, aos trabalhadores da rea e aos usurios. (GARRAFA 1995, p. 30).

No prprio arcabouo legal que d sustentao ao SUS j se encontra expressa a preocupao com a necessidade de definir-se padres ticos para a pesquisa, as aes e os servios de sade (alnea XVII do artigo 15 da Lei n 8080). Antes disso, no relatrio final da 8 Conferncia Nacional de Sade, marco significativo da Reforma Sanitria brasileira, defende-se que o novo sistema nacional de sade deve reger-se pelo respeito dignidade dos usurios e pelo compromisso dos profissionais com estes.

No caso especfico do Estado de So Paulo, o Cdigo de Sade definido pela Lei Complementar 791, de 09 de maro de 1995 confere fortalecimento aos usurios dos servios de sade ao assegurar-lhes, de maneira especial, os direitos individuais informao e liberdade de deciso para aceitar ou no a assistncia proposta (GOUVEIA e FORTES 2000).

Entretanto, apesar desta centralidade da preocupao tica e de se reconhecer que a efetivao do SUS implica um processo tico de mudana atitudinal dos diversos atores envolvidos, pouco se tem trabalhado no campo da sade pblica acerca dos papis e das responsabilidades ticas de cada um (GARRAFA 1995).

Para fazer frente ao desafio de concretizao do SUS, parece patente a urgncia de se lidar com os problemas de ordem tica vivenciados nos servios e sistema de sade, especialmente na ateno bsica que, mesmo representando, como registra Elias (1999), 78% dos estabelecimentos de sade, tem sido preterida no campo das reflexes bioticas.

Enfrentar este desafio tambm requer investigar outra questo ainda relativamente inexplorada na pesquisa em biotica. Segundo Richter e Eisemann (2000), ainda so poucos os estudos que buscam reconhecer os critrios e fundamentos que determinam ou influenciam as decises dos profissionais de sade.

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Investigar este ponto essencial, pois, segundo Lefvre e cols (2000), para se trabalhar educativamente com os profissionais de sade e/ou com a populao importante tornar manifestas, para eles, as teorias, ideologias e conceitos que, na maioria das vezes, inconscientemente, esto subjacentes s prticas cotidianas profissionais.

Os problemas surgem em distintos mbitos da vida social, dotados de peculiaridades prprias. No se trata, assim, de aplicar princpios gerais a casos concretos, nem tampouco de induzir tais princpios a partir das decises concretas, mas de descobrir nos distintos mbitos a peculiar modulao dos princpios. Uma das exigncias da tica aplicada adentrar em cada um dos mbitos e tentar captar nele sua prpria lgica e modulao de princpios ticos que lhe peculiar, e quem pode fazer isto so os expertos em cada campo, com estreita colaborao de quem se ocupa da tica (CORTINA 1997a):

(....) pasaron los tiempos platnicos, en los que pareca que el tico descubra unos principios y despus los aplicaba sin matizaciones urbi et orbe. Mas bien hoy ensea la realidad a ser muy modestos y a buscar junto con los especialistas de cada campo que principios se perfilan en l y cmo deben aplicarse en los distintos contextos (CORTINA 1997a, p. 175).

A biotica, como uma tica aplicada, para ser capaz de transformar qualitativamente a ateno sade deve tambm percorrer este caminho. Assim, o presente estudo pretende ser um adentrar no mbito da sade pblica para uma aproximao inicial s questes ticas que se amalgamam no contexto da ateno realizada na unidade bsica de sade, buscando identificar, junto aos profissionais que atuam nesta esfera do atendimento, os problemas ticos enfrentados e os fundamentos dos quais lanam mo para solucion-los. Espera-se poder contribuir

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para uma tomada de deciso adequada a esta realidade e que tambm potencialize a resoluo dos problemas ticos nela emersos.

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2 OBJETIVOS

1 - Identificar problemas ticos vivenciados por enfermeiros e mdicos que atuam no Programa Sade da Famlia.

2 - Comparar os problemas ticos vivenciados por enfermeiros e mdicos que atuam no Programa Sade da Famlia.

3 - Identificar os fundamentos que balizam o equacionamento para o processo de tomada de deciso frente a problemas ticos do cotidiano de enfermeiros e mdicos que atuam no Programa Sade da Famlia.

4 - Comparar os fundamentos que balizam o equacionamento para o processo de tomada de deciso frente a problemas ticos do cotidiano de enfermeiros e mdicos que atuam no Programa Sade da Famlia.

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3 PROCEDIMENTOS METODOLGICOS

3.1 TIPO DE ESTUDO

Optou, neste estudo, por trilhar os caminhos da abordagem qualitativa, pois o fenmeno investigado, problemas ticos, situa-se no universo de significados, motivaes, aspiraes, crenas, valores e atitudes e prprio das pesquisas qualitativas buscar compreender este espao mais profundo das relaes, dos processos e dos fenmenos, que dificilmente pode ser reduzido operacionalizao de variveis tpica das abordagens quantitativas. Segundo Minayo (1996a) a pesquisa qualitativa que permite incorporar a questo do significado e da intencionalidade como inerentes aos atos, s relaes e s estruturas sociais.

Alm disto, como frisam Fetters e Brody (1999), a complexidade e a sutileza que cercam os problemas ticos que emergem da ateno em unidades bsicas de sade requerem abordagens qualitativas capazes de elucid-las.

Assim, esta pesquisa configura-se como um estudo qualitativo, de cunho descritivo. Situa-se no escopo da tica descritiva, enquanto uma pesquisa emprica, de cunho no normativo.

A este ponto merece considerao o lugar dos estudos descritivos nas pesquisas que tm como objeto a tica ou a moral. Para tal empreitada, necessrio ter presente a distino entre tica e moral, mencionada na introduo deste trabalho, que toma a tica como o estudo (pesquisa e sistematizao) da moral (prtica).

Sulmasy e Sugarman (2001), citando Frankena (1973), afirmam que h trs tipos bsicos de indagao tica: tica normativa, metatica e tica descritiva. Beauchamp e Childress (2001) tambm reconhecem estes trs tipos de indagao,

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considerando, ainda, que a metatica e a tica descritiva constituem abordagens no normativas da tica.

A abordagem normativa empenha-se em responder as questes relativas quais so as normas que devem ser aceitas para avaliar as condutas e as razes para isso. Dirige-se, deliberada e conscientemente, para a questo da validez dos princpios morais. Conforma a busca dos fundamentos das normas e dos valores, o que a associa, indissoluvelmente, crtica, ou seja, ao permanente questionamento de cada fundamentao. As teorias e os princpios constituem ponto de partida para o desenvolvimento de normas de conduta apropriadas que so suplementadas por casos paradigmticos exemplificativos da maneira correta de agir e por uma defesa ou justificao da aceitao de tais princpios (MALIANDI 1991, BEAUCHAMP e CHILDRESS 2001, SULMASY e SUGARMAN 2001).

A metatica envolve a anlise da linguagem, ou seja, a investigao do sentido e significado dos termos morais, a lgica e lingstica do equacionamento moral e as questes fundamentais de ontologia moral, epistemologia e justificao. Assim, no consiste em investigaes e teorias empricas ou histricas, no implica em estabelecer ou defender quaisquer juzos normativos ou de valor e no trata de responder a perguntas particulares ou gerais acerca do que justo, bom ou obrigatrio. Mas antes, empreende a busca de respostas a questes lgicas, epistemolgicas ou semnticas, do tipo qual o sentido ou o emprego das expresses moralmente justo ou bom? (BEAUCHAMP e CHILDRESS 2001, SULMASY e SUGARMAN 2001).

A tica descritiva, por sua vez, a investigao factual da conduta moral, utilizando-se de procedimentos e metodologias de cunho cientfico para estudar como as pessoas equacionam e agem. Assim, no se engaja diretamente em questes do tipo o que deve ser feito ou qual o uso apropriado dos termos ticos, mas indaga por como as pessoas pensam que deveriam agir nesta situao particular que objeto de preocupao normativa? ou que fatos so relevantes para esta questo da tica normativa? ou ainda como as pessoas realmente se comportam nesta

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circunstncia particular que traz problemas ticos?. O ethos, entendido como conjunto de atitudes, convices, crenas morais e formas de conduta, seja da pessoa individual ou de um grupo social, tnico etc. o objeto da investigao, procedendose a sua observao e descrio. Este tipo de pesquisa constitui tarefa cientfica e no filosfica, requerendo instrumental e metodologias de natureza cientfica. Caracteriza, de forma paradigmtica, o aporte que a cincia proporciona reflexo filosfica, podendo suas observaes, ao tratar de extrair informao da facticidade normativa, serem proveitosamente utilizadas na tica normativa (MALIANDI 1991, BEAUCHAMP e CHILDRESS 2001, SULMASY e SUGARMAN 2001).

Ainda pertinente localizar as investigaes descritivas em tica no campo da biotica, uma vez que o presente estudo busca nessa abordagem secular, interdisciplinar, prospectiva e global da tica em sade seu prisma norteador. Segundo Snchez-Gonzlez (1998), nos anos 70, como predominam na produo literria de biotica os telogos, filsofos e juristas, as obras desse perodo consistem em ensaios tericos que analisam os problemas utilizando mtodos prprios dessas disciplinas. A partir da dcada de 80, ao se incorporarem biotica os mdicos e os cientistas sociais, so introduzidos novos tipos de investigao que aplicam os mtodos empricos das cincias sociais e da epidemiologia, desenvolvendo-se novas linhas metodolgicas. Cresce, assim, o interesse por conduzir investigaes empricas na biotica, como assinala Haimes (2002).

A pesquisa terica, de natureza normativa e desenvolvida em nveis mais genricos, inclui as investigaes de cunho teolgico, filosfico, jurdico e poltico. Emprega a argumentao lgica, com vistas a definir conceitos, estruturar argumentos consistentes e elaborar recomendaes. Por outro lado, a investigao emprica, que lana mo de procedimentos prprios das cincias sociais, da anlise decisria, da epidemiologia e da avaliao de servios de sade, recolhe e analisa dados a fim de descrever e estudar como se tomam as decises, que valores esto subjacentes a estas, como se cumprem na prtica as normas ou as diretrizes ticas. Constitui-se, assim, uma abordagem de natureza descritiva e que se move, preferentemente, no nvel mais concreto (SNCHEZ-GONZLEZ 1998).

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A pesquisa emprica, de cunho no normativo, segundo Snchez-Gonzlez (1998), tem como funes:

identificar e caracterizar os problemas ticos que emergem na prtica da ateno sade, permitindo elaborar uma biotica centrada nos problemas reais;

descrever como se lidam habitualmente com os problemas, podendo constituir esta descrio objeto de crtica ou ponto de partida para a propositura de solues alternativas;

descobrir as conseqncias das aes e das normas aceitas, estabelecendo uma forte interface com a tica normativa que tambm tem a avaliao das conseqncias como seu objeto;

evidenciar deficincias nas teorias ticas e provocar a reviso das mesmas.

Ambos os tipos de pesquisa conformam pilares fundamentais da biotica atual, dependem uma da outra e nutrem-se mutuamente, pois, como alerta Haimes (2002), no possvel conduzir uma pesquisa emprica de boa qualidade sem estar bem informado acerca de alguma teoria e, igualmente, no se pode entender as explanaes tericas sem compreender como o mundo emprico cotidiano opera.

Discutindo os diferentes tipos de indagao tica - a normativa, a metatica e a descritiva - Sulmasy e Sugarman (2001) afirmam a igual importncia dos trs e reconhecem a centralidade do primeiro. Segundo os autores, com isto no querem sugerir que este seja mais intelectual ou valioso, mas que os demais so importantes, significativos e teis porque h questes normativas em jogo. Em outras palavras, a indagao o que a palavra deve significar feita porque h interesse em saber o que se deve fazer. Da mesma maneira, o empenho em conhecer o pensamento da populao sobre o que deve ser feito em determinadas circunstncias ou como as pessoas realmente comportam-se em tais ocasies surge frente a situaes para as quais h diretrizes morais que determinam como elas deveriam agir. Entretanto, a

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despeito desta essencialidade da tica normativa, os trs so necessrios porque propiciam perspectivas distintas do mesmo objeto.

Entre a tica normativa e a descritiva instaura-se uma retroalimentao de mo dupla. A primeira pode gerar explanaes que esto associadas com hipteses passveis de testes empricos ou estabelecer padres normativos que tm de ser operacionalizados e podem ser estudados nos cenrios da educao e da prtica. As lies empricas obtidas de tais estudos podem, por sua vez, retroalimentar e influenciar as teorias normativas. Os argumentos normativos tambm podem depender de fatos possveis de serem acumulados das investigaes empricas e que lhes fornecem sustentao ou refutao. A tica descritiva ainda pode proporcionar novo material para estudos normativos, por exemplo, estudos antropolgicos e sociolgicos podem levantar questes sobre a universalidade de explanaes normativas e os estudos de casos podem sugerir questes jamais tratadas por investigaes normativas ou suprir uma base para a casustica e a narrativa (SULMASY e SUGARMAN 2001).

Para Sulmasy e Sugarman (2001), os diversos tipos de pesquisa estimulam-se mutuamente, ou seja, bons estudos em tica normativa estaro fundamentados em bons dados empricos e bons estudos descritivos estaro pautados pela teoria tica que prov uma estrutura na qual os dados sero interpretados. Esta integrao assumida de maneira interdisciplinar e cooperativa que possibilitar, para os autores, a reflexo tica.

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3.2 SUJEITOS DO ESTUDO

Foram entrevistados 18 enfermeiros e 17 mdicos que trabalham em unidades bsicas de sade do Municpio de So Paulo e que contam com Programa Sade da Famlia (PSF) implantado. A opo por estas unidades justifica-se pelo fato de ser o PSF a estratgia preconizada pelo Ministrio da Sade para a reorganizao da ateno bsica no SUS.

Segundo determinaes da Resoluo CNS/MS 196/96, que regulamenta a tica da pesquisa envolvendo seres humanos no Brasil, a cada um dos sujeitos foi pedido seu consentimento livre e esclarecido como anuncia para participao na pesquisa. No entanto, este consentimento no foi registrado mediante um termo escrito, mas tomado oralmente, ou seja, o prprio depoimento gravado foi tido como a concordncia do sujeito em participar do estudo. Este procedimento visou garantir o anonimato dos sujeitos participantes e assegurar que se sentissem protegidos e seguros para abordar as questes sigilosas que podem permear os problemas ticos relatados, isto , propiciava-se aos sujeitos as condies para que permanecessem annimos durante todo o processo.

Em lugar do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido entregou-se a cada sujeito um Termo de Responsabilidade (anexo 1) assinado pela pesquisadora e seu orientador, que continha os objetivos da pesquisa; o que se demandava do sujeito; as garantias para a preservao de seu anonimato, bem como das pessoas e das instituies que pudessem estar envolvidas nos casos narrados, com a omisso de nomes e a excluso de particularidades que possibilitassem a identificao. Neste documento indicou-se uma forma de contato com a pesquisadora para esclarecimentos de dvidas, se necessrio. Tambm se assegurou a liberdade de participao, de recusa e o direito do sujeito retirar-se a qualquer momento da pesquisa sem que isto lhe causasse prejuzos.

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Visando preservar a privacidade dos sujeitos da pesquisa ofereceu-se a possibilidade da entrevista ser realizada fora da unidade de sade. Dois enfermeiros fizeram essa opo por estarem freqentando cursos nas imediaes da Escola de Enfermagem da Universidade de So Paulo e entenderem que seria mais fcil ter tempo para a entrevista nesses dias do que na rotina da unidade de sade.

s coordenaes central e regionais e direo das unidades bsicas de sade nas quais os sujeitos trabalhavam tambm solicitou-se autorizao para a realizao da pesquisa mediante termo de consentimento institucional semelhante ao entregue aos sujeitos, no qual se explicitava que no lhes seria revelado nenhum dado das entrevistas isoladamente e tampouco a deciso individual dos profissionais de participarem ou no das entrevistas (anexo 2). O anonimato das unidades participantes tambm garantiu-se pelos mesmos motivos ponderados para os sujeitos. Alm disto, uma vez que o agir tico dos que trabalham em uma instituio conformam a sua imagem tica, parece que estas, em certa medida, assumiram um status de sujeitos de pesquisa tambm.

O documento de consentimento assinado pela coordenao central tinha como objetivo afianar aos diretores das unidades de sade que a entrada na instituio estava autorizada, ficando este disposio para ser apresentado quando fosse solicitado. Vale registrar que este procedimento foi necessrio somente uma vez, pois a prpria coordenao central notificou atravs de ofcio a autorizao para o contato da pesquisadora com as unidades e os profissionais dentro dos termos acordados.

O projeto foi apreciado e aprovado pelo Comit de tica em Pesquisa da Faculdade de Sade Pblica da Universidade de So Paulo (anexo 3).

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3.2.1 PERFIL DOS ENFERMEIROS ENTREVISTADOS

Um total de 18 enfermeiros foi entrevistado, sendo somente um do sexo masculino, conforme pode ser observado no quadro apresentado a seguir. A idade mdia de aproximadamente 30 anos, com os extremos de 53 e 22 e com 57,9% (11) at 29 anos e 26,3% (5) na faixa etria de 30 a 39.

No momento da entrevista, o tempo de trabalho como enfermeiro varia de 21 anos a 4 meses, com 61,1% (18) at 4 anos. O tempo no PSF vai de 2 meses a 4 anos, com 27,8% (5) com menos de 1 ano. Em relao a essa questo, vale assinalar que o PSF pode estar se constituindo uma opo de ingresso no mercado de trabalho para os recm graduados, pois se nota, para boa parte dos enfermeiros entrevistados (7 em 17), uma coincidncia ou grande proximidade entre os tempos de trabalho como enfermeiro e no PSF. Nesse sentido, cabe esclarecer que no quadro est sendo considerado, para efeitos de contagem como tempo de trabalho no PSF, apenas o perodo relativo atuao dos profissionais no Municpio de So Paulo. Assim, h enfermeiros que contam com tempo anterior de trabalho no PSF de outras cidades, como Mau (So Paulo), Ilhus (Bahia) e Recife (Pernambuco).

A entrevista do enfermeiro nmero 4 no considerada pelo fato deste profissional atuar em unidade de sade no pertencente parcela da rede de servios delimitada para seleo dos sujeitos, tendo servido apenas como pr-teste. As numeraes originais de identificao atribudas a cada depoente no momento da gravao das entrevistas so mantidas, o que explica a quebra da seqncia numrica no quadro.

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QUADRO 1 ENFERMEIROS ENTREVISTADOS SEGUNDO SEXO, IDADE E TEMPO DE TRABALHO

TEMPO DE IDENTICAO SEXO IDADE (ANOS) TRABALHO COMO ENFERMEIRO ENFERMEIRO 1 (E1) ENFERMEIRO 2 (E2) ENFERMEIRO 3 (E3) ENFERMEIRO 5 (E5) ENFERMEIRO 6 (E6) ENFERMEIRO 7 (E7) ENFERMEIRO 8 (E8) ENFERMEIRO 9 (E9) ENFERMEIRO 10 (E10) ENFERMEIRO 11 (E11) ENFERMEIRO 12 (E12) ENFERMEIRO 13 (E13) ENFERMEIRO 14 (E14) ENFERMEIRO 15 (E15) ENFERMEIRO 16 (E16) ENFERMEIRO 17 (E17) ENFERMEIRO 18 (E18) ENFERMEIRO 19 (E19) Feminino Feminino Feminino Feminino Feminino Feminino Feminino Masculino Feminino Feminino Feminino Feminino Feminino Feminino Feminino Feminino Feminino Feminino 53 26 24 28 29 22 28 30 26 32 32 30 28 27 42 25 35 28 21 Anos

TEMPO DE TRABALHO NO PSF

3 Anos e 6 Meses

2 Anos e 6 Meses 1 Ano e 6 Meses 2 Anos e 3 2 Anos e 3 Meses Meses 4 Anos 2 Anos 4 Meses 3 Anos 2 Anos e 6 Meses 3 Anos e 7 Meses 7 Anos 5 Anos 4 Anos 4 Anos 4 Anos 6 Anos 3 Anos 6 Anos 4 Anos 4 Anos 3 Meses 2 Meses 2 Anos e 3 Meses 3 Meses 3 Anos e 7 Meses 2 Meses 2 Anos 3 Anos e 6 Meses 3 Anos e 5 Meses 3 Anos 4 Anos 1 Ano 4 Anos 4 Anos

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3.2.2 PERFIL DOS MDICOS ENTREVISTADOS

Os mdicos entrevistados somaram 17, sendo 12 (70,6%) do sexo feminino e cinco (29,4%) do sexo masculino, conforme pode ser acompanhado no quadro que segue. A idade mdia est em torno dos 39 anos, 9 a mais do que o observado para o grupo de enfermeiros. Os extremos variam de 60 a 25 anos, com 17,6% (3) at 29 anos e na faixa etria de 30 a 39 anos esto 35,3% (6).

Quanto ao tempo de experincia como mdico, no momento da entrevista, esse perodo est entre os limites de 11 meses e 36 anos, com 64,7% (11) concentrando-se nas faixas de 5 a 14 e de 15 a 24 anos de formado. O tempo no PSF vai de 4 meses a 4 anos, com 47% (8) trabalhando h menos de 1 ano. Em relao a isto, chama a ateno que no grupo dos enfermeiros apenas 5 destes profissionais contam como mais de 5 anos de trabalho, enquanto que dentre os mdicos a situao justamente a oposta, somente 2 trabalham h 5 anos ou menos. O mdico nmero 3 no tem sua entrevista includa por atuar em unidade de sade no pertencente parcela da rede de servios delimitada para seleo dos sujeitos, tendo servido apenas como pr-teste. Assume-se aqui o mesmo procedimento que no grupo de enfermeiros, as numeraes originais de identificao atribudas no momento da gravao das entrevistas so mantidas para facilitar o manuseio das fitas magnticas.

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QUADRO 2 MDICOS ENTREVISTADOS SEGUNDO SEXO, IDADE E TEMPO DE TRABALHO TEMPO DE IDENTICAO SEXO IDADE (ANOS) TRABALHO COMO MDICO MDICO 1 (M1) MDICO 2 (M2) MDICO 4 (M4) MDICO 5 (M5) MDICO 6 (M1) MDICO 7 (M7) MDICO 8 (M8) MDICO 9 (M9) MDICO 10 (M10) MDICO 11 (M11) MDICO 12 (M12) MDICO 13 (M13) MDICO 14 (M14) MDICO 15 (M15) MDICO 16 (M16) MDICO 17 (M17) MDICO 18 (M18) Masculino Feminino Feminino Feminino Feminino Feminino Feminino Masculino Masculino Feminino Feminino Feminino Feminino Masculino Masculino Feminino Feminino 44 53 41 27 41 36 32 60 37 25 45 33 48 29 32 37 48 20 Anos 30 Anos 17 Anos 1 Ano 16 Anos 8 Anos 7 Anos 36 Anos 13 Anos 1 Ano e 1 Ms 21 Anos 8 Anos 22 Anos 11 Meses 5 Anos 13 Anos 24 Anos 3 Anos 1 Ano e 6Meses 3 Anos e 5 Meses 4 Meses 2 Meses 3 Anos e 7 Meses 2 Anos 3 Anos e 6 Meses 1 Ano e 6 Meses 8 Meses 4 Anos 3 Anos e 6 Meses 8 Meses 11 Meses 6 Meses 4 Meses 9 Meses TEMPO DE TRABALHO NO PSF

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3.3 CENRIO DO ESTUDO

Em razo das garantias de anonimato dos sujeitos de pesquisa e das unidades de sade, toma-se como cenrio desse estudo o Programa Sade da Famlia (PSF) no Municpio de So Paulo. Isso no significa admitir que o total de enfermeiros e mdicos entrevistados constitui amostra representativa do universo destes profissionais que trabalham no PSF do Municpio. A inteno propiciar breve noo das diretrizes do Programa e das caractersticas do trabalho preconizado para a equipe de sade da famlia (ESF), alm de historiar, de maneira resumida, como vem ocorrendo a sua implantao na cidade a fim de que se possa compreender o carter alguns dos problemas apontados, bem como a discusso que tomar lugar.

O Programa Sade da Famlia idealizado pelo Ministrio da Sade, em 1993, aps os resultados positivos do Programa de Agentes de Sade do Cear e do Programa de Agentes Comunitrios de Sade em diversos municpios das regies Norte e Nordeste do pas. Sua oficializao ocorre no ano seguinte e a extenso nacional efetiva do Programa, que desde sua concepo considerado como um instrumento de reorganizao do SUS, da municipalizao e da ateno bsica, ocorre a partir de 1995 (SILVA e DALMASO 2002).

No Municpio de So Paulo, o PSF inicia-se em 1996, em trs reas (regies leste, norte e sudeste), com a denominao de Projeto Qualis, Qualidade Integral em Sade, diferenciando-se por sua proposta nuclear, por sua forma de gesto em parcerias do Estado com organizaes sociais e por inserir-se no contexto geopoltico complexo de uma metrpole como a Capital Paulista, que se caracteriza pela concentrao de recursos materiais e humanos na rea da sade e pela desigualdade social e de acesso aos servios. (SILVA e DALMASO 2002, PMSP 2002).

A partir de 2001, com a mudana da conjuntura poltica, o PSF ganha novo impulso na Cidade. A Secretaria Municipal de Sade resolve implantar o SUS, optando pela municipalizao plena do sistema e pela Estratgia de Sade na

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Famlia, como base de estruturao da ateno bsica. A proposta, assim, prev estender ao conjunto da populao paulistana o que vinha se conformando, at ento, como um projeto piloto. Com a deflagrao do processo de municipalizao dos servios e aes de sade, o Projeto Qualis/PSF municipalizado juntamente com a rede bsica estadual (PMSP 2002).

Os pontos centrais do PSF incluem o estabelecimento de vnculos e a criao de laos de compromisso e responsabilidade entre os profissionais de sade e a populao. Como uma estratgia para a reorientao do modelo assistencial na ateno bsica sade, seu objetivo est na reorganizao da prtica assistencial em novas bases e critrios, substituindo o modelo tradicional de assistncia centrado na cura de doenas e no hospital. A ateno volta-se para a famlia que entendida e percebida a partir de seu ambiente fsico e social, o que possibilita s equipes uma compreenso ampliada do processo sade-doena e da necessidade de intervenes que avancem para alm das prticas curativas (SILVA e DALMASO 2002).

Caracterizando-se como uma estratgia que faculta a integrao e promove a organizao das atividades em um territrio definido, com vistas ao enfrentamento e resoluo dos problemas identificados, o PSF assume um conceito ampliado de ateno bsica avanando na direo de um sistema de sade que converge para a qualidade de vida das pessoas e de seu meio ambiente. Assim, a ateno bsica entendida como o conjunto de aes de carter individual ou coletivo, situadas no primeiro nvel de ateno dos sistemas de sade, voltadas para a promoo da sade, preveno de agravos, ao tratamento e reabilitao, reportando-se aos princpios do SUS: sade como direito social; integralidade da assistncia; universalidade; eqidade; resolutividade; inter-setorialidade; humanizao do atendimento e participao social (SILVA e DALMASO 2002).

A Portaria Ministerial n 1886, de 18 de dezembro de 1997, que aprova as normas e diretrizes do Programa de Agentes Comunitrios de Sade e do Programa Sade da Famlia, define como aspectos que devem caracterizar a reorganizao das prticas de trabalho nas unidades de sade da famlia:

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carter substitutivo das prticas tradicionais das unidades bsicas de sade, complementaridade e hierarquizao; adscrio de populao/territorializao programao e planejamento descentralizados integralidade de assistncia abordagem multiprofissional estmulo ao intersetorial estmulo participao e controle social educao permanente dos profissionais das equipes de sade da famlia adoo de instrumentos permanentes de acompanhamento e avaliao

A efetivao da estratgia passa pela constituio e atuao das equipes de sade da famlia compostas por um mdico, um enfermeiro, um auxiliar de enfermagem e quatro agentes comunitrios de sade, com responsabilidade por 800 a 1.000 famlias residentes em uma rea geogrfica determinada (SILVA e DALMASO 2002).

Entretanto, claro que esta efetivao no se resume a uma nova configurao da equipe tcnico-assistencial. Se a construo do SUS configura um processo de reviravolta tica, como aludido na introduo desse trabalho, sua reorganizao pela estratgia do PSF somente amplia e aprofunda o trajeto desse giro tico. Nesse sentido, Sousa (2002) afirma que os profissionais de sade que atuam no PSF devem estar preparados para o exerccio de um novo processo de trabalho marcado por uma prtica tica, humana, cuidadosa, vinculada ao exerccio da cidadania, baseada na compreenso de que as condies de vida determinam os processos de sade/doena dos indivduos/famlia/comunidades (SOUSA 2002, p. 106).

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3.4 COLETA DE DADOS

Os dados foram coletados atravs de entrevistas semi-estruturadas divididas em dois momentos:

Momento I: pediu-se aos sujeitos a narrao de uma situao na qual considerassem que tinham se defrontado com um problema tico, indicando a soluo dada. Em seguida, solicitou-se ao entrevistado que listasse os problemas ticos na situao, segundo sua opinio. As perguntas norteadoras da entrevista neste momento foram:

a)

Conte-me um caso que seja um problema tico com o qual voc tenha se deparado nas suas atividades no PSF.

b)

Se voc tivesse que listar quais problemas ticos voc v nesta situao, como voc listaria?

Momento II: apresentou-se a cada entrevistado situaes hipotticas contendo problemas ticos. Aps a leitura dos casos, solicitou-se que recomendassem um curso de ao para solucionar o caso e justificassem sua indicao. Nas primeiras entrevistas realizadas (4 enfermeiros e 3 mdicos) props-se somente um caso, entretanto, percebeu-se pouca variao nos argumentos apresentados. Por esta razo, nas subseqentes, alm do caso que vinha sendo usado desde o incio, acrescentou-se outros dois seqencialmente alternados a cada entrevista. Assim, os casos propostos foram trs:

a)

PERTURBANDO A ROTINA: O senhor C, hipertenso e diabtico, freqentemente faz demandas que dificultam as atividades e perturbam a rotina da unidade de sade. O mdico e a enfermeira da equipe na qual ele cadastrado tentam assisti-lo da melhor maneira possvel, mas a cada dia sentem-se mais tentados a deixar de investir seus esforos.

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b)

PRESERVANDO A CONFIDENCIALIDADE: O senhor M tem sfilis. Ele no quer contar o que tem para sua esposa, mas quer proteg-la da doena. Enquanto est em tratamento, pede equipe que faa o exame em sua esposa sem que ela saiba.

c)

ATENDENDO ADOLESCENTES: B, 15 anos de idade, procura a equipe de sade da famlia na qual est cadastrada e conta que recentemente apaixonou-se por um rapaz de 16 anos. Seus pais acham que ela muito jovem e a probem de namorar. A jovem diz que ainda no tem vida sexual ativa, mas pede uma prescrio de anticoncepcional oral. Tambm pede equipe que nada seja contado aos seus pais.

O caso Perturbando a Rotina foi comum a todos os entrevistados e os demais foram alternados. Aps cada situao, seguiam-se as perguntas: O que voc recomendaria para os profissionais envolvidos neste caso? e Por qu?.

Os depoimentos foram gravados em fita magntica e transcritos. Apenas um dos entrevistados (mdico 5) no autorizou a gravao, assim, para este, somente a resposta dada no momento I foi considerada na anlise, pois foi possvel transcrever de memria o caso relatado e na ocasio da entrevista tomar nota dos problemas listados.

O perodo de coleta teve lugar entre os meses de agosto de 2001 e fevereiro de 2002.

Para delimitar o que vem a ser um problema tico, adotou-se o entendimento de Sugarman (2000). Para este autor, por problema tico compreendem-se os aspectos, as questes ou as implicaes ticas de ocorrncias comuns na prtica da ateno sade nas unidades bsicas, no configurando, necessariamente, um

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dilema4 (SUGARMAN 2000, p.xiv).

Vale notar que, com esse entendimento, no se fez a opo por excluir os dilemas, apenas pretendeu-se deixar claro que os casos narrados no

obrigatoriamente deveriam se referir a situaes dilemticas. Se aparecessem, essas situaes seriam tratadas juntamente com os problemas, sem preocupao em diferenci-las.

Por ser esta uma pesquisa de cunho qualitativo, o critrio de representatividade da amostra para o encerramento da coleta de dados no foi o numrico, mas a variabilidade que permitiu abranger a totalidade do problema investigado em suas mltiplas dimenses, ou seja, o da saturao do discurso.

3.5 REFERENCIAL TERICO

Dentre as diferentes formas de sistematizar e tratar a anlise em biotica, mencionadas na introduo deste trabalho, quatro delas foram selecionadas para compor o referencial de anlise dos dados empricos: o principialismo, a casustica, o das virtudes e o do cuidado. A estes, acrescentou-se o enfoque designado por tica profissional, referindo-se ao fato, no raro, dos profissionais de sade entenderem por agir tico na profisso a mera observncia do cdigo deontolgico aprovado pelo conselho de pares fiscalizador do exerccio de cada profisso. Estes referenciais encontram-se descritos no captulo 4.

4

Por dilema compreende-se sistema de duas proposies contraditrias, entre as quais se colocado na obrigao de escolher ou ainda (....) oposio mtua entre duas teses filosficas tais que a aceitao ou o repdio de uma, com os seus corolrios, leva negao ou afirmao da outra sem que nenhuma das duas possa ser refutada com a ajuda dos princpios professados pelos dois partidos (LALANDE 1999, p. 260).

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3.6 ORGANIZAO DOS DADOS

Para o momento I da pesquisa optou-se pela anlise categorial temtica, que uma das tcnicas da anlise de contedo, proposta por Bardin (1977).

A anlise de contedo um conjunto de tcnicas de anlise das comunicaes visando obter, por procedimentos sistemticos e objetivos de descrio do contedo das mensagens, indicadores, quantitativos ou no, que permitam a inferncia de conhecimentos relativos s condies de produo/recepo destas mensagens (BARDIN 1977).

O tratamento descritivo constitui um primeiro momento do procedimento, no sendo exclusivo e nem exaustivo da anlise de contedo. O interesse no se resume descrio dos contedos, mas naquilo que podem ensinar aps serem organizados e tratados, isto , codificados. Como assinala Bardin (1977), a inteno da anlise de contedo alcanar atravs de indicadores, quantitativos ou no, a inferncia de conhecimentos relativos s condies de produo ou eventualmente de recepo, ou seja, a anlise de contedo no visa o estudo da lngua ou da linguagem, mas a determinao das condies de produo dos textos, que conformam seu objeto. Portanto, o fundamento da especificidade da anlise de contedo reside na articulao da superfcie dos textos, descrita e analisada e dos fatores que determinam as caractersticas encontradas.

Os procedimentos bsicos da anlise de contedo incluem a pr-anlise, a descrio analtica e a interpretao inferencial. A pr-anlise a fase de organizao do material em que se especifica o campo no qual o pesquisador deve fixar sua ateno. Na fase da descrio analtica, o material emprico recebe tratamento, incluindo a codificao, a classificao e a categorizao. J na interpretao inferencial configura-se o momento do estabelecimento das relaes entre os achados do material emprico e a realidade social, chegando, se possvel, a proposituras de transformao. Para isto, no basta reter-se ao contedo manifesto dos textos, mas

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deve-se desvendar o contedo latente, pois sendo esse dinmico, estrutural e histrico o que possibilita a identificao de ideologias, tendncias etc. (TRIVIOS 1995).

Fazer uma anlise temtica requer descobrir os ncleos de sentido que compem a comunicao e cuja freqncia, nas abordagens quantitativas, ou presena e ausncia, nas qualitativas, pode ter um significado para o objeto analtico escolhido. O tema, como unidade de registro, corresponde a uma regra de recorte do sentido e no da forma da comunicao. Por unidade de registro, entende-se a unidade de significao a codificar, ou seja, o segmento de contedo a ser considerado como unidade de base a ser categorizada. A noo de tema em anlise de contedo uma afirmao sobre um assunto, uma frase, um resumo, a unidade de significao que se liberta naturalmente de um texto quando analisado luz de certos critrios relativos teoria que serve de guia para a leitura.

Alm da unidade de registro, convm delimitar a unidade de contexto, que serve de unidade de compreenso para codificar a primeira. Corresponde ao segmento da mensagem, cujas dimenses, superiores unidade de registro, possibilita compreender a significao exata dessa. No caso do tema ser um pargrafo que o contenha.

As motivaes de opinies, de atitudes, de valores, de crenas, de tendncias, dentre outras, alm de respostas a questes abertas, a entrevistas no diretivas ou mais estruturadas, registros de reunies de grupos, comunicaes de massa etc. so freqentemente analisados por tema.

Assim, considerando-se o objeto do presente estudo, a tica na ateno sade, e a tcnica utilizada para a coleta de dados, entrevistas semi-estruturadas, pareceu-nos adequada a anlise temtica, dentro da proposio da anlise de contedo. Como unidade de registro tomaram-se os prprios problemas identificados e listados pelos enfermeiros e mdicos durante as entrevistas e como unidade de contexto os trechos do discurso que os continham.

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A transcrio de cada discurso foi lida para a identificao dos problemas apontados pelo profissional entrevistado. O conjunto dos problemas listados passou a configurar uma grade temtica de anlise que serviu para a leitura transversal dos depoimentos, ou seja, cada relato foi relido visando recort-lo em torno de cada tema-objeto apontado.

Embora sabendo que o agrupamento das mensagens analisadas em rubricas ou classes, que so as categorias, no constitui etapa obrigatria da anlise de contedo, optou-se, no presente estudo, por se observar esse procedimento para agrupar os problemas identificados, pois se entende que a condensao proporcionada pela categorizao possibilita simplificar os dados brutos, facilitando sua interpretao. A reunio de um grupo de elementos sob um ttulo genrico, que compe a categorizao, toma por base as caractersticas comuns destes elementos. Na anlise de contedo, o conceito de categoria usado de forma instrumental (MINAYO 1996b).

No momento II, tambm utilizou-se a anlise de contedo proposta por Bardin (1977). Porm, empregou-se um processo inverso de categorizao, ou seja, as categorias foram fornecidas previamente e os elementos encontrados nos discursos distribudos entre elas. Este o chamado procedimento por caixas (BARDIN 1977, p. 119).

A opo por esta inverso foi motivada pelo fato dos enfoques selecionados para referenciarem teoricamente a anlise dos dados serem as categorias que se desejou discutir na anlise. Assim, os discursos foram vasculhados na busca de elementos componentes destes distintos enfoques descritos no referencial terico.

Os elementos procurados nos discursos emergiram do referencial terico e esto apresentados no quadro a seguir:

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QUADRO 3: ELEMENTOS COMPONENTES DOS ENFOQUES ENFOQUE PRINCIPIALISTA RESPEITO AUTONOMIA = capacidade para decidir dizer a verdade respeitar a privacidade proteger a informao confidencial consentimento livre e esclarecido ajudar na tomada de deciso

NO MALEFICNCIA = no causar mal ou dano no matar no causar dor ou sofrimento no incapacitar no ofender no privar os outros dos bens da vida

BENEFICNCIA = fazer ou promover o bem; prevenir o mal ou dano; eliminar o mal ou dano proteger e defender os direitos dos outros ajudar pessoas com incapacidades prevenir danos que possam ocorrer a outros eliminar condies que causaro danos aos outros resgatar pessoas em perigo balano dos benefcios, custos e danos com vistas a alcanar o maior beneficio lquido (princpio da utilidade) proporcional retorno (princpio da reciprocidade)

JUSTIA = distribuio dos bens e recursos, de maneira justa, eqitativa, apropriada e determinada por normas justificadas distribuio dos benefcios necessrios a cada um para amenizar ou corrigir os efeitos deletrios da loteria biolgica e social acesso igual ao mnimo decente maior bem para maior nmero

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ENFOQUE DAS VIRTUDES percepo da ateno sade como prtica com bens internos honestidade na relao com outros partcipes da prtica confiana nos demais partcipes da prtica justia = tratamento uniforme e impessoal de acordo com o mrito por louvor ou castigo coragem = expor seus prprios interesses ao risco de danos ou perigos

ENFOQUE DO CUIDADO reconhecimento da importncia do vnculo mtuo fortalecimento das relaes de vnculo no rompimento das relaes de vnculo felicidade de todos no magoar ningum busca da soluo no violenta dos conflitos por meio da comunicao

ENFOQUE DA TICA PROFISSIONAL acatamento do cdigo deontolgico como o meio para resolver problemas eticos temor sanes e penalidades recurso s comisses de tica de enfermagem e medio para resolver os problemas

ENFOQUE DA CASUSTICA equacionamento por paradigma e analogia apelo s mximas anlise das circunstncias probabilidade

As transcries dos discursos foram lidas transversalmente com base nessa grade de elementos a fim de se identificar sua presena e no a freqncia. Isto porque, segundo Bardin (1977), uma das caractersticas da anlise qualitativa o fato da inferncia, que sempre realizada, fundar-se na presena do ndice (tema, palavra,

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personagem etc.) e no na freqncia de sua apario em cada comunicao individual. Assim, a simples presena do elemento no discurso permitiu inferir que o entrevistado estava lanando mo do enfoque em questo para resolver o caso hipottico proposto.

Antes desta leitura transversal, todos os discursos passaram por uma leitura flutuante com vistas a identificar como os entrevistados elaboravam o problema em questo nos cenrios hipotticos. Isto porque, segundo Gilligan (1998), as diferentes imagens dos relacionamentos redundam em distintos modos de compreender a moralidade e de pensar acerca de conflito e escolha, dependendo, ento, o juzo tico do modo como o problema formulado. Assim, pode-se depreender que os diversos modos de compreender a moralidade, expressos nos enfoques escolhidos no referencial terico, implicam em diferentes modos de pensar acerca de conflito e escolha, ou seja, envolvem distintas maneiras de formular e, conseqentemente, conduzir a soluo do problema tico. Fazer emergir dos discursos esta elaborao do problema pode colaborar para a compreenso da argumentao presente na tomada de deciso.

Da mesma maneira, o referencial terico permitiu delinear diferentes maneiras de se formular os problemas em cada um dos enfoques:

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QUADRO 4: FORMULAO DOS PROBLEMAS TICOS ENFOQUE PRINCIPIALISTA ENFOQUE DAS VIRTUDES ENFOQUE DO CUIDADO ENFOQUE DA TICA PROFISSIONAL ENFOQUE DA CASUSTICA Ruptura na rede de responsabilidades e relacionamentos mtuos. Infrao ao cdigo deontolgico e s demais legislaes que regulamentam o exerccio profissional. Arranjo do caso por paradigma e analogia em um conjunto de situaes do mesmo tipo. Confronto de divergentes obrigaes morais decorrentes dos princpios. Ameaa realizao do bem interno de uma prtica.

Quanto a este ponto, vale notar que Beauchamp e Childress (2001) tambm apontam para a possibilidade de variao na formulao dos problemas ticos ao distinguirem as diversas formas de cada teoria moral, que exploram em sua obra, explicar e abordar um mesmo caso clnico apresentado.

A proposta inicial deste estudo, como definida no projeto, previu a utilizao, no momento II, dos enfoques principialista, das virtudes, do cuidado e da tica profissional como referencial para a anlise dos dados. Entretanto, a leitura flutuante dos discursos transcritos mostrou a necessidade de se incluir o da casustica.

Ainda, quanto casustica, vale assinalar que o projeto da presente pesquisa previu o emprego deste referencial para a organizao dos dados coletados no momento I das entrevistas, seguindo o mtodo proposto por Jonsen e col. (1999), que enfoca situaes envolvendo questes do mbito da tica clnica, ou seja, problemas ticos encontrados na tomada de decises perante os doentes (Jonsen e col. 1999, p. 4). Entretanto, aps a reviso dos 34 depoimentos, verificou-se que 13 narrativas (7 dos enfermeiros e 6 dos mdicos) traziam tal tipo de situao, sendo, portanto, passveis aplicao da metodologia da casustica.

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O reduzido nmero de casos que restou para exame, apenas 13 dos 34 coletados, no foi a nica limitao encontrada. Ao se proceder a uma classificao dos problemas ticos encontrados nestes depoimentos, segundo os tpicos da casustica, e compar-la com as listagens resultantes da aplicao da anlise de contedo ao universo dos casos coletados, verificou-se, obviamente, que o leque de problemas restringia-se s fronteiras das questes clnicas, no possibilitando evidenciar que a percepo dos enfermeiros e mdicos entrevistados ultrapassava estes limites. Assim, optou-se por modificar a proposio inicial e seguir os procedimentos que foram descritos nesta sesso.

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4 REFERENCIAL TERICO

Ao iniciar o presente captulo, mister tecer esclarecimentos a respeito de como os referenciais tericos escolhidos para a anlise dos dados empricos dos dois momentos que compem este estudo so tratados. Ao definir este estudo como uma pesquisa emprica e uma abordagem no normativa e descritiva da tica, seu propsito no est na busca da validez interna dos diversos referenciais, e sim em explorar como estes se apresentam na prtica cotidiana e na linguagem comum (no filosfica) dos profissionais de sade. Desta forma, as explanaes no tomam em conta as diversas crticas dirigidas a cada um dos referencias. Com isto, em hiptese alguma, est se desconhecendo que estas existem e que o debate entre as diferentes correntes tericas representa um importante tpico da produo em biotica, sendo objeto de artigos e obras, como A Matter of Principles? ferment in U.S. Bioethics, editada por Edwin R. DuBose, Ron Hamel e Laurence J. OConnell em 1994; After MacIntyre: critical perspectives on the Work of Alasdair MacIntyre, organizada por John Horton e Susan Mendus em 1994; Feminism and Bioethics: Beyond the reproduction, coordenada por Susan M. Wolf em 1996; Philosophical Perspectives on Bioethics, na qual L. Wayne Sumner e Joseph Boyle renem ensaios apresentados durante seminrios promovidos em 1993 e 1994 pelo Centro de Biotica da Universidade de Toronto; O que Biotica, de autoria de Dbora Diniz e Dirce Guilhem, lanada em 2002, dentre outras. Tambm no Congresso Mundial de Biotica de 2002, esse tema foi tratado em algumas mesas, por exemplo, The four principles approach to health care ethics hegemony?, com Raanan Gillon; Critical Analyis of Principialism, com Sren Holm; Hard Bioethics: a peripherial perspective of intervention ethics, com Volnei Garrafa e Bioethics in the perspective of liberation theology, com Marcio Fabri dos Anjos.

Mediante estas ponderaes, a opo nesse estudo foi utilizar como recurso bibliogrfico para a explanao dos diversos referenciais tericos as obras consideradas marcos iniciais de cada enfoque, dando preferncia, quando possvel, a ltima edio, por se acreditar que os autores poderiam ter nela incorporado

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respostas possveis crticas tecidas sua proposta, no ficando, assim, este estudo to ao largo da polmica entre as diversas concepes tericas na biotica.

Desta maneira, para a casustica, apresenta-se um panorama do livro The abuse of casuistry: a history of moral reasoning, escrito por Albert R. Jonsen e Stephen Toulmin em 1988; para a o enfoque principialista, toma-se a quinta edio, lanada em 2001, da obra de Tom Beauchamp e James Childress, Principles of biomedical ethics; para o enfoque das virtudes, usa-se a segunda edio de After Virtue, de Alasdair MacIntyre, escrita em 1984 e In a Different Voice: psychological theory and womens development, de autoria de Carol Gilligan, numa reimpresso ampliada com a introduo de um novo prefcio de 1993, serve de base para o enfoque do cuidado. Para o enfoque da tica profissional, no se adota uma nica obra como fonte, utilizando-se os cdigos de tica profissional das duas categorias dos sujeitos dessa pesquisa (enfermagem e medicina) e textos que discutem os fundamentos, o ensino, a evoluo e a prtica da deontologia nas profisses.

Ainda, deve ser acrescentado que, como a proposta inicial desta pesquisa inclua explorar a casustica tambm como um mtodo de tomada de deciso em tica no cenrio da ateno bsica, organizando e analisando atravs dele os casos relatados no momento I, apresentam-se alguns pontos da quarta edio da obra Clinical Ethics de Albert R. Jonsen, Mark Siegler e William J. Winslade, utilizandose uma traduo portuguesa do original em ingls.

Outro ponto que precisa ser mencionado que ao se optar pelo After Virtue como recurso bibliogrfico para o enfoque das virtudes, no se desconhece que h obras que tratam de aproximar este referencial da prtica da sade, como For the patients good, de Edmund Pellegrino e David Thomasma e In becoming a good doctor: the place of virtue and character in medical ethics, de James Drane. Mas, como ponderado anteriormente, buscou-se tomar por referncia a obra tida como marco inicial para a incluso do enfoque no escopo da biotica e atribui-se, segundo alguns autores, ao After Virtue o estmulo para o renovado interesse na natureza e significado da tica das virtudes, tendo os trabalhos mencionados dialogado com a

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proposta de MacIntyre (HAUERWAS 1995; PESSINI e BARCHIFONTAINE 2002).

4.1 O ENFOQUE PRINCIPIALISTA: A NFASE NOS PRINCPIOS E NOS ATOS

O modelo principialista a forma de anlise mais difundida na biotica, chegando a confundir-se com ela. Seus protagonistas so Tom Beauchamp e James Childress que propem quatro princpios como orientadores referenciais para a anlise dos problemas ticos: o respeito autonomia, a no maleficncia, a beneficncia e a justia. Sua obra Principles of Biomedical Ethics teve a primeira edio em lngua inglesa lanada em fins de 1978 e a quinta em 2001, sendo esta (BEAUCHAMP e CHILDRESS 2001) a utilizada para a presente apresentao deste referencial terico.

4.1.1 PARA ENTENDER O PRINCIPIALISMO

4.1.1.1 TICA, MORALIDADE E MORAL COMUM

Para Tom Beauchamp e James Childress, tica um termo genrico que abarca vrios modos de entender e examinar a vida moral, distinguindo-se em abordagens normativas e no normativas (metatica e tica descritiva).

Moralidade refere-se s normas de conduta humana certa e errada compartilhadas e que formam um estvel, embora incompleto, consenso social. Conforma, uma instituio social anterior s reflexes encontradas na tica filosfica ou teolgica, abrangendo diversos padres de conduta, como os princpios morais, as regras, os direitos e as virtudes.

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Os autores ponderam que todos crescem com um entendimento bsico da instituio moralidade, sendo suas normas prontamente entendidas, ou seja, todas as pessoas idneas6 acerca de como viver uma vida moral compreendem as dimenses nucleares da moralidade. Sabem que no mentir; no roubar; manter as promessas; respeitar os direitos dos outros; no matar e no causar danos s pessoas inocentes so basilares e que violar estas normas, sem uma razo moralmente boa e suficiente, imoral e deve levar a sentimentos de remorso. A este conjunto de normas compartidas pelas pessoas moralmente idneass, os autores denominam moral comum. A moral comum, ento, contm as normas morais que vinculam todas as pessoas em todos os lugares, no havendo outra norma mais fundamental na vida moral. Exemplificam, afirmando que em anos mais recentes, este ncleo no discurso pblico vem sendo representado pelos direitos humanos.

Segundo os autores, a moralidade mais que a moral comum e as duas no podem ser confundidas. A primeira pode incluir, dentre outros, os ideais morais aceitos voluntariamente por indivduos ou grupos, as normas que vinculam apenas os membros de comunidades morais especficas e as virtudes extraordinrias. Por outro lado, a moral comum compreende somente as normas que todas as pessoas moralmente idneas aceitam como sendo portadoras de autoridade.

Para Beauchamp e Childress, considerando-se uma comunidade especfica, a moralidade reflete diferenas culturais significantes, mas os autores consideram isto como um fato institucional da prpria moralidade com seus preceitos fundamentais, os quais tornam possvel os juzos inter-temporais e trans-culturais que levam a ponderar que nem todas as prticas dos distintos grupos culturais so aceitveis do ponto de vista tico. A escravido, a discriminao de gnero e racial e outras prticas inaceitveis tm aparecido atravs da histria, mas o fato de sua existncia no as torna moralmente aceitveis, ainda que uma sociedade em particular as vejam como tal.

6

Do ingls, serious persons (BEAUCHAMP e CHILDRESS 2001, p. 3).

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Assim, ponderam que o uso da moral comum como marco inicial do equacionamento tico no precisa necessariamente levar a concluses

costumeiramente aceitas. Uma funo das normas gerais na moral comum propiciar base para a avaliao e o criticismo dos grupos ou das comunidades, cujos pontos de vista morais usuais so, em algum aspecto, defectivos. A reflexo crtica pode, em ltima instncia, vindicar juzos