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Monografia sobre Mário Ferreira dos Santos Índice PARTE I Introdução O período de formação: 1907-1942 Porto Alegre: um período de transição São Paulo: o mercado editorial brasileiro Um professor incansável A questão libertária O pensamento filosófico PARTE II Auto-retrato: Meu filosofar positivo e concreto Verbete da Enciclopédia Gallarate Quem foi este filósofo? Bibliografia de Mário Ferreira dos Santos Nadiejda Santos Nunes Galvão Yolanda Lhullier dos Santos 2001

Biografia de MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS

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Biografia de MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS

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Monografia sobre Mário Ferreira dos Santos

Índice PARTE I Introdução O período de formação: 1907-1942 Porto Alegre: um período de transição São Paulo: o mercado editorial brasileiro Um professor incansável A questão libertária O pensamento filosófico PARTE II Auto-retrato: Meu filosofar positivo e concreto Verbete da Enciclopédia Gallarate Quem foi este filósofo? Bibliografia de Mário Ferreira dos Santos

Nadiejda Santos Nunes Galvão Yolanda Lhullier dos Santos

2001

Introdução

“Todo homem deve viver e morrer como um guerreiro”

(Mário Ferreira dos Santos)

A finalidade desta monografia é traçar o perfil biográfico de Mário Ferreira dos Santos abordando, em linhas gerais, a sua produção intelectual e filosófica no cenário brasileiro.

Apesar de suas obras terem se difundido por todo o território nacional, principalmente na década de 60, alcançando tiragens bastante representativas no mercado editorial, sua figura continua ainda bastante ignorada nos meios intelectuais. Para suprir esta falha e também, a pedidos de muitas pessoas interessadas em conhecer detalhes de sua vida e obra, elaboramos esta monografia

Ele próprio comentou, inúmeras vezes: “Não sou um professor de Filosofia, sou um filósofo. Há um silêncio a minha volta, mas não me importo. Quero que o leitor me julgue e só dele quero receber a critica boa ou má. Meus livros,‘ observou,’ foram entregues ao seu próprio destino, sendo os leitores os únicos propagandistas; já que eram eles que os aconselhavam à outros e, desta forma, foram tornando-se conhecidos e procurados”.

Sua postura ante a vida baseou-se nos princípios contidos nesta alocução... “Nunca ocupei nenhum cargo em nenhuma escola, por princípio. Deliberei desde os primeiros anos tomar uma atitude que consiste em nunca disputar cargos que possam ser ocupados por outros. É uma questão de princípios! Sempre decidi, para mim, criar o meu cargo, a minha própria posição, construir para mim a própria situação, e não ter de ocupar o lugar que possa caber a outro. O meu lugar seria o meu lugar, criado por mim, para mim mesmo; por isso não disputo, nem nunca disputei, nem nunca disputarei qualquer posição, que possa ser ocupada, por quem quer que seja. Em suma, a minha vida, em síntese, é simplesmente esta”.

Uma das críticas que mais recebeu foi a da extrema produtividade intelectual que causou, e ainda causa, estranheza! Realmente, os tipos enciclopédicos são “raros” na história do pensamento filosófico e ele próprio se questionava: “Que filósofo seria eu se não pudesse tratar filosoficamente de cada ciência?”

Acreditava na possibilidade do povo brasileiro... “todos aqueles que no Brasil revelaram possuir mente filosófica, e não foram muito numerosos, mas contudo, foram brilhantes, tenderam sempre para um pensamento de caráter sintético; isto é, não ficaram totalmente dependentes às correntes filosóficas européias. Sempre houve, entre nós, o desejo de abarcar o universal, esta característica é naturalmente justa e própria de um povo que vive em si mesmo o universal; por isso o Brasil é atualmente um dos países existentes, aquele que está melhor capacitado para uma filosofia universalizante, ou pelo menos, para uma nova linguagem filosófica, capaz de unir o pensamento que divergiu tão profundamente no campo já esgotado do pensamento europeu. Aqueles que não pensam assim, que não admitem essa possibilidade para nós, que continuem vivendo o seu modo de pensar. Nós preferimos, porém divergir”.

Sua vida foi marcada por uma luta contínua contra as idéias negativas... ao que destrói em vez de construir; ao que rebaixa em vez de elevar... “O homem é um fim e não um meio. Utilizá-lo, transformá-lo em peça de um mecanismo é ofender a sua dignidade”.

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Esta monografia desenvolverá tópicos relativos a produção filosófica, sendo fiel aos dados biográficos, tendo como princípio norteador, o adágio citado por ele: “Um homem vale por suas obras”. Assim só constarão dela passagem biográficas que influenciaram sua formação intelectual definindo os traços mais marcantes de seu caráter - embrião das idéias que concretizam o seu pensamento filosófico -.

Algumas observações se fazem aqui necessárias. Em primeiro lugar consultamos o acervo particular e selecionamos cartas, manuscritos, papéis avulsos, rascunhos, esboços de obras, aulas, palestras e gravações. O material utilizado encontra-se arquivado. Os trechos citados de aulas e palestras foram diretamente datilografadas de fitas gravadas e não tiveram a correção do autor. Mantivemo-nos fiéis a linguagem original, que muitas vezes assemelha-se a uma conversação. Não desenvolvemos uma análise da obra filosófica, pois o nosso intuito é oferecer subsídios para futuras abordagens.

Desde as primeiras incursões na literatura, está presente a temática filosófica, que foi se desenvolvendo e se estruturou na Filosofia Concreta atingindo a sua obra máxima, a Matese.

Partindo do indivíduo como unidade, chegamos até o pensamento que é universal, e que ele legou a humanidade como parcela de contribuição à Cultura. E para concluir, fazemos nossas, estas suas palavras: “Embora não consigamos realizar –e uma vida é muito pouco para tão ingente trabalho – o nosso intuito que é de dar uma visão tensional global do existir, acompanhada de tantas provas quantas necessárias, temos certeza, porém, que o esforço de tantos anos de observação e de estudos não estará perdido, pois estamos certos que deixamos alguma coisa que pode servir de ponto de partida para ulteriores estudos e novas postulações...”

O período de formação: 1907-1942

Mário Ferreira dos Santos nasceu em 3 de janeiro de 1907, na cidade de Tietê (SP).

Filho de Francisco Dias Ferreira dos Santos e de Maria do Carmo Santos. Seu pai era português e provinha de uma família de advogados e juristas1.Tinha quatro anos de idade quando os pais foram morar em Pelotas (RS).

“Meu pai, português de nascimento, caracterizava-se por acentuado ateísmo e por uma marcante tendência anti-clerical. Revelava, em todas as ocasiões, a sua oposição ao clero. Entretanto, tendo eu, desde cedo, mal aprendera a ler, me interessado por temas filosóficos (e a consciência que tenho de mim mesmo nasceu de colocação de um problema filosófico que tentei resolver), um dia meu pai me chamou e disse: “Meu filho, para teu bem vou fazer uma coisa que vai escandalizar os meus amigos: tu vais estudar com os jesuítas.”. No dia seguinte, dirigiu-se ao ginásio Gonzaga e, segundo o que ele me relatou depois, disse-lhes: “Todos sabem que sou adversário da Igreja Católica e que tenho combatido desde moço, mas sei que, para educar, vós, 1 Francisco Santos nasceu na cidade de Porto, Portugal em 16/01/1873. Filho do jurisconsulto José Dias Ferreira e de Urbana dos Santos; era afilhado de Camilo Castelo Branco. Em 1903 chegou ao Brasil fazendo parte da Cia. do Teatro do Príncipe Real. Em 1904 casa-se com Maria do Carmo Menezes Rabelo, em Fortaleza, CE. Viajou por todo o país com a Grande Cia. Dramática Francisco Santos. Dos três filhos Mário era o primogênito. Em 1913 construiu a Fábrica Guarany em Pelotas, considerada a maior iniciativa do gênero da época, iniciando a filmagem de jornais de tela, comédias e a 1ª longa metragem de ficção do cinema brasileiro. Construiu várias casas de espetáculo no sul do país. “Francisco Santos. Pioneiro no cinema do Brasil” de Yolanda Lhullier dos Santos e Pedro Henrique Caldas, Ed. Semeador, Pelotas, 1995.

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jesuítas, sois os mais capazes. Meu filho revela propensão para temas filosóficos; não quero exercer sobre ele a minha ação. Julgo que sois mais competentes do que eu para guiá-lo no conhecimento. De minha parte, prometo-vos que, em casa, respeitarei sempre as suas idéias.” Declaradas estas condições, fui aceito. O resultado foi que meu pai passou a ser mal compreendido pelos companheiros, que julgaram a sua atitude uma verdadeira defecção, o que o levou a afastar-se totalmente das atividades anticlericais e ateístas.2”

Aos 14 anos sentiu despontar dentro de si um grande ardor religioso. Um padre analisara seu temperamento, e chegara a conclusão de que não tinha vocação religiosa e recomendou-lhe: “Mário, deves ir para o mundo, teus caminhos serão outros, porém mais tarde, sei que voltarás a nós.” Estas palavras ele as repetiu muitas vezes e dizia então: “Que mau padre eu seria!”

Entre seus professores, citou repetidas vezes, Padre Bücher, pois considerava-o como aquele que lhe descortinou as inúmeras possibilidades dentro do mundo do saber, induzindo-o ao estudo mais profundo. Foi quem lhe chamou a atenção para a necessidade de um método seguro no estudo da filosofia. “... Com os jesuítas, desde o início, recebi a orientação que me aproximou da filosofia positiva, e dela fiz a espinha dorsal da estrutura filosófica que hoje tenho: a filosofia positiva e concreta; positiva no sentido de filosofia que parte e permanece na afirmação, ao que constrói, que pertence a todos os grandes ciclos culturais da humanidade, mas que encontrou o seu desenvolvimento máximo no pensamento grego, e a sua coroação no pensamento ocidental, sob as linhas, sem dúvida, criadoras e analíticas da Escolástica3.”

Foi fundador e redator-chefe do jornal “O Gymnasiano”, órgão da Academia Literária Rui Barbosa. Participava de atividades intelectuais e desportivas, tendo jogado no time de futebol da escola. Encenou no colégio duas peças teatrais, “O Dever” e “O Diálogo das Sombras”. Nesta última era representado o entrechoque de idéias antagônicas, o que já revelava as suas futuras preocupações filosóficas4.

Em 1925 ingressou na Faculdade de Direito de Porto Alegre. Desta época lembrava uma discussão mantida com um professor, o qual, insatisfeito com suas opiniões, perseguiu-o durante todo o curso.

“Eu tinha um professor que queria me matar o direito de criar, não me deixou ser laureado pela escola precisamente porque eu criei, eu apresentei idéias próprias nas duas provas, nas suas duas cadeiras. Não me deu a distinção que merecia unicamente porque apresentava idéias contrárias às dele. Às vezes, em aula e nos exames, eu citava a fim de defender minhas idéias, grandes autores; ele respondia que estes grandes autores eram catedráticos da universidade como ele, e portanto suas idéias valiam tanto quanto as dele. Respondia eu, entretanto, que podia demonstrar, e dizia para ele demonstrar seu ponto de vista, que eu demostraria o meu. Eu justificava minhas idéias. Naquele tempo a banca era coletiva, não havia só um professor para dar a nota. Os outros sempre me davam distinção, ele não. E por que não? Unicamente porque eu apresentava idéias contrárias a dele, embora muitas dessas idéias não fossem criações minhas. Só tive duas idéias próprias, que defendi durante um exame, porém as demais eram idéias que eu retirava de obras de autores onde encontrava uma demonstração rigorosa” 2 Do auto-retrato publicado em “Rumos da Filosofia Atual no Brasil”, Edições Loyola, 1975, S.P. 3 Do auto-retrato publicado em “Rumos da Filosofia Atual no Brasil”, Edições Loyola, 1975, S.P. 4 “O Ginasiano”, editado na escola, noticiou a peça em 07/09/1923: ... " Mário Santos que ainda mais talento, de ator e escritor, patenteou na tragédia em um ato “O Dever”, escrito por ele e dedicado a seus mestres e companheiros".

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Em 1928 fez sua estréia na tribuna jurídica. Tratava-se de um rumoroso caso criminal ocorrido em Pelotas. Trabalhava como advogado5 e ao mesmo tempo auxiliava o pai na empresa Xavier & Santos6

Em 1929 casou com Yolanda Duro Lhullier, filha de Alfredo Lhullier e Antoninha Duro Lhullier, com quem teve duas filhas: Yolanda e Nadiejda7. Bacharelou-se, com lauda, em 1930, em “Direito e Ciências Sociais”.

Em 1937, com o falecimento do seu progenitor, sofreu um grande abalo. Sempre que a ele se referia era com afeição e admiração; mais que um pai, um amigo que o incentivara aos estudos superiores. A empresa Xavier & Santos, dona da maior rede de cinemas do sul do país, ficou sob a sua direção. Negócios mal sucedidos levaram-no, em 1941, a fechar a firma,

Entre as atividades intelectuais desta época merece destaque sua participação no jornalismo: primeiro, como diretor de um jornal da cidade de Pelotas; segundo, como colaborador de diversos periódicos.. Se bem que nas duas atividades tenha dedicada poucos anos de sua vida deixou, entretanto, uma vultuosa bagagem literária.

Começou a colaborar na imprensa em 1928 quando apareceu o seu primeiro artigo “O poeta da luz e da cor” publicado em 20/07/1928 no jornal “Diário Popular”, de Pelotas.

Em 1929 tornou-se diretor do jornal “A Opinião Pública”, cargo em que permaneceu até o final do ano de 1930. Escreveu crônicas variadas, comentários, notícias locais, etc. Realizou várias campanhas, entre as quais uma para acabar com o analfabetismo, propondo a formação de escolas para operários, centros de ensino para alfabetizar, etc.

A norma seguida durante sua gestão está aqui exemplificada:: “A Opinião Pública” será a tribuna do povo de Pelotas. Não temos princípios políticos e sim sociais. Defendemos os interesses de todas as classes, e, sobretudo, os daquelles que mais precisam de auxílio da imprensa, as classes populares. Opinião Pública não é a opinião isolada de um jornalista que inculca interprete da opinião geral, mas opinião pública é a opinião do mais humilde ao mais illustre, que é systhematisada e exposta como individualidade homogênea. Assim, julgando, criticaremos com critério e, combatendo, doutrinaremos para collaborar e derruiremos para construir. A situação actual exige constructores. Construamos8.”

Foi este um período agitado, pois participava intensamente da vida política.. Contra qualquer injustiça social não temia levantar a voz. O país passava por momentos difíceis de grande agitação política. Apesar de ter participado da revolução de 1930, não tardou a criticar alguns atos do novo governo, e por este motivo foi preso em dezembro de 1930. Os amigos 5 Foi nomeado para o cargo de 2º suplente do juiz municipal do termo de Pelotas pelo prazo de 5 anos. Palácio do Governo de Porto Alegre, 25/11/1928. Diz a notícia do jornal “Diário Popular” de 14/11/1928: “O talentoso acadêmico sr. Mário Santos que fez brilhantíssima estréia na tribuna judiciária, mostrou reais dotes de tribuno, além de predicados de estudioso, demonstrando assim, que um futuro promissor lhe aguarda na vida prática.” 6 A “Empresa Xavier e Santos Ltda.” pertencia a seu pai e atuava no ramo cinematográfico e teatral. Mário, com a idade de 6 anos participou como ator na comédia “Os óculos do vovô”, da qual restam fragmentos que estão na Cinemateca de São Paulo e do Rio de Janeiro. 7 Yolanda licenciou-se em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. É professora titular aposentada da Escola de Comunicações e Artes da USP. Nadiejda licenciou-se em História e Geografia pela Faculdade de Letras Sedes Sapientae. Ambas possuem obras publicadas pela Livraria e Editora Logos Ltda., Editora Matese e Editora Ebraesp Ltda. 8 Transcrito do jornal “A Opinião Pública” de 25/04/1929.

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socorreram-no, entre estes o General Flores da Cunha e o prefeito da cidade de Pelotas, Dr. Py. Crespo. Libertado, explicou o motivo de sua detenção no artigo “Porque fui detido”9. Pouco tempo depois foi obrigado ( indiretamente) a afastar-se da direção do jornal.

Voltou a colaborar na imprensa por volta de 1939. Neste ano, no jornal “Clímax” de Pelotas publicou 12 artigos. Os primeiros são de cunho literário como “O pregoeiro que passa”10, “As sombras brancas”11 e “Quatro poemas intencionais”12. Em “Música e Poesia”13 publicado sob o pseudônimo de Xerxes já mostra seu espírito especulativo analisando a Arte. Em “O Amanhã”14 analisa a neurose de guerra que grassava o mundo de então.

Em 1940 colaborou no órgão “Movimento” de Porto Alegre, para o qual escreveu 3 artigos, entre os quais “Escutai em Silêncio”15, que é um poema ao homem que participa de todos os momentos históricos: “Homem que vens da idades futuras, tu me encontrarás em todas as páginas da história. Olha bem, homem das idades futuras, que verás sempre uma figura simples que tem um sorriso para os que sofrem e uma admoestação para os que pecam. Sou eu!...” Para o mesmo jornal escreveu “No mundo sempre houve sol”16, que é um apelo a esperança e a fé na inteligência humana.

Em fins de 1940 começou a colaborar para o jornal “Diário de Notícias” de Porto Alegre. Foi então que apareceu Pitágoras de Melo. Eis como o autor narra num de seus livros, escrito 20 anos depois, sua criação: “... A principal personagem é Pitágoras de Melo. Nasceu-nos logo às primeiras páginas de “Homem da Tarde”17. Nada prometia ainda à minha consciência, mas logo se impôs e libertou-se de tal modo, que passou a ter uma vida própria. E poderia dizer, sem buscar fazer paradoxos, que teve ele um papel mais criador de mim mesmo que eu dele. Não pautou ele sua vida pela minha, mas a minha vida pela dele. Eu propriamente o imito. É quase inacreditável isso. Mas é verdade: a personagem criou o autor. E é espantoso que foi de tal modo que até muitas das minhas experiências futuras foram vividas por ele. Aconteceu-me na vida o que eu já havia escrito no meu livro. Muitas das peripécias da minha existência foram antecedidas por ele. E é essa a razão porque o respeito tanto, porque o venero. Essa existência metafísica tornou-se real para mim. As idéias que a personagem expunha não eram então as minhas. Hoje, em grande parte, são. A personagem me conquistou. Na verdade, não pude resistir à tentação e ao fascínio que ela exerceu sobre mim.18”

9 “A Opinião Pública” de 19/12/1930. 10 08/1939 11 08/1939 12 08/1939 13 08/1939 14 08/1939 15 12/1940 16 03/1941 17 Romance escrito na juventude e não publicado.

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As opiniões de Pitágoras eram comentadas nas rodas literárias, e muitos liam avidamente seus artigos para saber o que ele diria sobre os acontecimentos que naquela época abalavam o mundo, e sobre os quais versavam grande parte de suas crônicas.

Deixemo-lo falar: “é inútil a ovelha vestir a pele do lobo, o regato querer ser rio e o rio querer ser mar. É inútil que tu queiras ser um deus! Homem, tu deves ser simplesmente homem!” “Os homens quando se unem em rebanho tem coragem para os grandes crimes.” “A História dirá. Ela dirá sempre os fatos passados aumentando as suas proporções. Essa grande mentirosa... como ela contará os fatos maiores que a realidade!...”19

Ele reaparecerá constantemente sempre emitindo opiniões filosóficas. É uma personagem misteriosa e distante. Seu silêncio muitas vezes é uma resposta. “Foi Pitágoras de Melo que me contou esta história”, “Pitágoras de Melo disse” assim começam muitos de seus artigos. Eis como autor o descreve: “...Esquecia-me dos seus traços fisionômicos. Não recordava mais a sua cabeleira nem as suas sobrancelhas cerradas. Recordava-me ainda do seu rosto magro, mas o tom de sua voz sabia que era morna, meia grave, mas o timbre, o colorido do tom, a minha memória já não ouvia mais”. Mais adiante: “chegava até achar ridículo a sua figura meia trágica. E mais ridícula ainda a sua constante preocupação quanto às suas idéias e às suas palavras. Mas quando recordava o que dele já houvera lido, quando recordava outra das suas sentenças, um aforismo esparso, nesses momentos, então, a sua figura tornava a crescer ante mim e se impunha outra vez.”20

“Pitágoras de Melo era tão trágico e afirmativo que chegava a doer na gente bem lá dentro...” “És difícil de se classificar, Pitágoras. Creio que um psiquiatra teria facilidade em fichar-te e dar-te um nome horrível de dezoito letras, no mínimo...” “...O imprevisto aparece em ti de uma maneira patente...” “Mas há ocasiões, que, depois, quando me entrego a meditação das tuas palavras, fico perturbado, porque me parece haver uma contradição nelas. Responde Pitágoras: “Mas diz-me: o dia de ontem é igual ao dia de hoje?”21

“Essa guerra durará muitos anos...” vaticina Pitágoras em 194122. Sobre a II Guerra Mundial, Pitágoras emitiu muitas opiniões, principalmente nos artigos escritos durante o ano de 1941. “Quem ganhará a guerra?” perguntaram-lhe um dia. Eis o que respondeu: “Ninguém, ou quase... Quase... porque ninguém ganha em termos. A Humanidade vai ganhar alguma coisa. Ela será a maior derrotada e será a maior vitoriosa. Ela sairá da luta lavada em sangue, mas mais decidida e mais corajosa. Essa luta é um meio de equilíbrio. Muita coisa ruirá durante ela. Tudo isso que você vê por aí vai cair. Tudo isso. Mas algo vai vencer... o homem de amanhã. Nós seremos o derrotado.” E depois: “Ele, só ele o homem de amanhã será o vitorioso. Nós, nenhum de nós conhecerá a vitória...”23

18 Prólogo do livro “Filosofia da Afirmação e da Negação”, Livraria e Editora Logos Ltda., 1ª ed. 1959, São Paulo – Brasil. 19 Trechos do artigo “Outra vez Pitágoras de Melo” – Diário de Notícias, 29/10/1940. 20 “A mais barata das felicidades...’- Diário de Notícias, 04/07/1941. 21 “A Biologia dos Conceitos” – Diário de Notícias, 05/08/1941. 22 “E a guerra perdura” – Diário de Notícias, 26/08/1941. 23 “Quem ganhará a guerra” – Diário de Notícias, 14/01/1941.

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A respeito da II Guerra, escreveu quase uma centena de artigos. Admira-nos a agudeza com que analisou aquela situação que era tão intensamente vivida por todos. Sabemos como é difícil analisar os acontecimentos históricos dos quais participamos, pois encontramo-nos imersos neles e ao sabor das paixões e das opiniões partidárias. Só com o passar dos anos obtemos isenção suficiente de espírito para analisar com objetividade. E é esta objetividade, esta agudeza de visão que nos admira nestes artigos escritos durante aqueles tormentosos anos.

A fuga de Hess foi fato muito comentado e as opiniões eram bastante divergentes. Ele viu o caso Hess como um aspecto da guerra psicológica. Ele foi levar ao povo inglês a possibilidade de uma paz, e mais... “é que Hess inicia, na Inglaterra, um contagioso movimento psicológico, o mais dissolvente de todos em tempo de guerra, a possibilidade de uma paz24”. Lembra que a Alemanha sabia que a guerra se prolongaria, e que portanto ao final da mesma estaria com as suas forças acabadas, gastas, enquanto a Rússia estaria em boa situação. A fuga de Hess foi assim uma tentativa de conseguir a paz com a Inglaterra o que por meio da diplomacia normal não seria possível.

Sobre a estranha amizade germano-russa diz: “A vitória alemã periga pelo excesso de força”. Sabendo disto, os russos esperam o momento propício para surgirem mais tarde com os libertadores. Não esqueçamos que estávamos então em pleno apogeu da conquista alemã, o mundo parecia dobrar-se ao nazismo. Mas neste artigo já prevê que a Alemanha perderá pelo excesso de vitórias, e que a presente amizade russo alemã esconde a futura inimiga, que virá para derrotá-la, mascarada de novas facetas, pois “A Rússia vê na Alemanha a última etapa do capitalismo, quando ele se torna, por antítese, novamente nacionalizado e nacionalista25.”

Nos artigos “A Rússia lutará contra a Alemanha?” e “A Alemanha atacará a Rússia?”26 analisa esta precária amizade:“ Dois náufragos que se ajudam mutuamente. Mas o que acontecerá depois? Os russos precisam da paz para fortificar seu exército, o urso russo esconde seu jogo para atacar no momento preciso. Creio que esta guerra será muito mais demorada do que se pensa. Nem a Alemanha nem a Rússia naquele momento tinham necessidade de se atacarem. Enquanto a Rússia cedesse o que a Alemanha queria Hitler não atacaria, porém como ele ‘nessa guerra o impossível acontece’ pode ser que Hitler ataque a Rússia. Por seu lado a Rússia precisa se armar e para ela é vantagem a Alemanha se desgastar na luta contra a Inglaterra. Mas Hitler conhece bem a realidade desta decisão e teme o poderio russo. O ataque da Alemanha a Rússia favoreceu a Inglaterra, que assim desviou as forças de ataque para o outro. O que não resta dúvida é que a diplomacia britânica lavrou um tento. Afastou por algum tempo o seu perigo ou talvez para sempre, enquanto terá meios de poder receber o auxílio americano e preparar-se mais ativamente para a luta definitiva”.27. Prenuncia que a luta entre a Rússia e a Alemanha será a grande batalha da Segunda Guerra, pois se a “Rússia for derrotada e vencida a Alemanha terá meios de perpetuar essa guerra por tempo indefinido”, porém quem sair vencedor será senhor da situação, pois as outras batalhas serão somente o epílogo de um grande conflito28.

24 “Pitágoras de Melo e Hess” – Diário de Notícias, 17/05/1941. 25 “A paradoxal amizade germano-russo” – Diário de Notícias, 15/03/1941. 26 Diário de Notícias, 19/06/1941. 27 “Até o impossível acontece” – Diário de Notícias, 24/06;1941. 28 “A última batalha” – Diário de Notícias, 27/06;1941.

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Em “O caso Hess e outros casos”29 comenta o erro da Alemanha atacando a Rússia. Hitler errou, e ele próprio depois reconheceu seu erro: abriu duas frentes de luta e aproximou Londres de Moscou. Hitler também errou quando pensou em poder fazer uma paz em separado com a Inglaterra. Falando em erros, comenta os grandes erros cometidos na guerra, por exemplo, o fato de Inglaterra ter acreditado em Mussolini em 1935, não ter acreditado no poder de Hitler em 1939. A França, por sua vez, errou quando acreditou na linha Maginot, e a Alemanha errou quando pensou em derrotar a Rússia em 6 semanas. E assim cita vários erros cometidos30.

Ressalta o fato de se estar vivendo o destino da raça humana. Ninguém pode ficar neutro, pois o momento é trágico e grave. “A maior de todas as guerras e que apenas se inicia”31. Preconiza que a guerra do Pacífico será longa, obstinada, cruel. Chama a atenção para o imperialismo japonês e para a necessidade de todos terem um espírito forte e voltado aos problemas internacionais, pois o problema de quinta-colunismo é de uma gravidade terrível. O indiferente é um simpatizante por omissão. Mostra que o destino do Brasil situa-se dentro do destino do mundo, pois nesta guerra joga-se o destino do mundo32.

O mundo está ameaçado pelos bárbaros do século XX que são os totalizadores que impõe uma só ideologia, uma só vontade, um só chefe, uma só raça de senhores. Se a guerra de 14 foi uma guerra de imperialistas, esta é uma guerra liquidadora dos imperialistas33. Combate a filosofia “eixista” que quer nivelar os homens por baixo, transformar os homens em batráquios, que transferem todo o poder e decisão aos líderes, ao fuehrer, aos gauletiers. Deve-se nivelar os homens no ponto de partida, exterminando a miséria e dando a todos as oportunidades e possibilidades de subirem34.

Analisa o nazismo como a última etapa do pangermanismo. Hitler foi um porta-voz do movimento germanista, que na hora da derrota recebeu toda a responsabilidade, como se assim a nação alemã se eximisse da culpa. Seu grande erro a invasão da Rússia e sua obstinação em manter seus exércitos lá mesmo ante a derrota evidente35. Em “A Alemanha quer morrer”36 faz um estudo do nazismo e de suas profundas raízes na alma alemã: “O nazismo não pode ser vencido apenas materialmente, precisa ser aniquilado, porque não se vence uma fatalidade ao deixá-la prosseguir o seu destino. O nazismo não é apenas uma ideologia. Toda a simbologia é fanática. Há em todo o nazismo uma preparação para a morte. Impossível para a Alemanha pôr-se na defensiva. Hitler disse: ‘Lutaremos até o último homem’. A Alemanha sabe que não pode esperar contemplação dos aliados. Ela tem, porém, esperança numa possível desunião entre os aliados”.37. 29 Diário de Notícias, 10/10/1941. 30 “A guerra dos erros” – Diário de Notícias, 24/09/1941. 31 “A história que ainda não foi contada” – Diário Popular, 16/04/1942. 32 “Terceiro período: o do Pacífico” – Diário Popular, 05/1942. 33 “Uma nova Idade Média” – Diário Popular, 13/05/1942. 34 “A filosofia do charco” – Correio do Povoa, 13/12/1942. 35 “A guerra dos bigodes” – Diário Popular, 13/10/1942. 36 Correio do Povo, 14/06/1944. 37 “Mais decisivo que a 2ª frente” – Correio do Povo, 16/06/1944.

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Comenta os perigos da doutrina nazista, como corrente dominadora, autoritária, “ pois o nazismo mesmo vencido reaparecerá com outros “ismos”. A hidra tem mais de uma cabeça e conhece também diversas metamorfoses. A guerra contra essa hidra não é apenas no campo de batalha, mas também dentro de nós”.38. “Esta guerra está provando que não basta podar as árvores, porque brotam depois galhos mais fortes e mais potentes, nem basta cerrá-la pela base para que nos libertemos dela. É preciso ir além, ir as raízes, revolver a terra para que nada fique.”

Admirador de Friedrich Nietzsche, escreveu inúmeros artigos, defendendo-o principalmente da imputação dos nazistas em colocá-lo como pai da sua doutrina totalitária. Em “Nietzsche e o povo alemão”39 diz: “É costume dos líderes nazistas asseverarem que Nietzsche foi o precursor da filosofia nacionalista que se polarizou no Terceiro Reich. Através da leitura atenta da obra nietzscheana não se pode admitir que seja precursora do nazismo senão como conseqüência de um má interpretação, demasiadamente prussiana e estreita do seu verdadeiro sentido.” E mais adiante cita as palavras do grande filósofo: “A quimera nacionalista e a estupidez patrioteira carecem para mim de atrativo. “Deutschland uber alles...” soa-me dolorosamente aos ouvidos...”. E prossegue dando vários testemunhos da obra de Nietzsche que demonstram que nunca acreditou na decantada superioridade racial germânica, que é um dos postulados centrais, basilares, fundamentais da filosofia nacional-socialista.

Em “Hitler, mau discípulo de Nietzsche”40 : “Sobram razões – prossegue Nietzsche – para que a cultura alemã esteja em plena decadência. Quando um povo sofre, e quer sofrer, a febre do nacionalismo e das ambições políticas, tem que ver nublado seu espírito com turbações diversas. Vemos, assim, que a infecção política produziu na Alemanha acessos de bestialização pública: por exemplo: e estupidez anti-francesa, a estupidez anti-judia, a estupidez anti-polonesa, a estupidez wagneriana, a estupidez prussiana...”

De um modo geral seus artigos sempre tem um sentido especulativo, destacando-se o pensamento filosófico. Em “As rãs não pedem um rei”41 opõe-se tenazmente àqueles que querem nivelar os homens por baixo. Os homens devem vencer suas fraquezas... Devemos ajudar o homem a se erguer e não descer, em vez de batráquios, devemos transformá-los em águias, em pássaros.”

Sempre acreditou e lutou pela superação do homem: “Mas na nova cultura que se esboça o homem afirmará a natureza e afirmará as suas perguntas e saberá escolher as suas respostas. E o homem crerá nas suas respostas, como sempre o fez em todas as culturas e elas terão o sabor da terra e do mundo, porque na nova cultura que se formará o homem não mais negará os seus instintos nem combaterá a sua natureza. O homem será o homem superado.”42

Alguns destes artigos foram mais tarde editados nos livros “Páginas Várias” “Certas sutilezas humanas”, “A luta dos contrários”, “Assim Deus falou aos homens”.

Em números o total de artigos publicados foi de 177, assim distribuídos: 1 na “Revista do Globo” de Porto Alegre, 1 na “Folha Acadêmica” de São Paulo,1 na “Folha da 38 “As cabeças da hidra” – Correio do Povo, 26/07/1944. 39 Diário de Notícias, 19/04/1942. 40 Diário de Notícias, 21/02/1942. 41 Correio do Povo, 07/11/1942. 42 “Homem, animal que interroga” – Diário de Notícias, 17/12/1940.

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Manhã” de São Paulo, 1 na “Gazeta” de São Paulo, 3 no “Movimento” de Porto Alegre, 16 no “Clímax” de Pelotas, 42 no “Correio do Povo” de Porto Alegre, 44 no “Diário Popular” de Pelotas, 68 no “Diário de Notícias” de Porto Alegre.

Porto Alegre: um período de transição

Mudou-se para Porto Alegre iniciando uma nova etapa de sua vida. Perdera uma

sólida situação econômica, e foi nestes momentos difíceis, que contou com a ajuda do amigo Eliezer Demenezes,43que o apresentou aos diretores da “Livraria do Globo”. Nesta época conheceu vários intelectuais gaúchos, entre eles Athos Damasceno Ferreira, Mário Quintana, Manoelito de Ornelas e Érico Veríssimo.

Durante os anos de 1943 e 1944 foi contratado pela Livraria do Globo para traduzir várias obras: “Vontade de Potência” de Friedrich Nietzsche, “Les Pensées” e “Lettres Provinciales” de Blaise Pascal, “Journal Intime” de Henri-Fréderic Amiel, “La Phisiologie du Mariage” de Honoré de Balzac. Seu grande sonho era redigir um dicionário de filosofia. 44.

Nesta época já era um grande estudioso de Friedrich Nietzsche. Seu interesse pela obra deste pensador surgiu no meio de uma discussão. Alguém citou Nietzsche, e ele referiu-se ao filósofo como um louco. Seu interlocutor perguntou, admirado, se já o havia lido. Ante a negativa, aconselhou-o a lê-lo, antes de fazer uma crítica precipitada. Assim o fez, e sua opinião mudou por completo45.

Foi desde então que, nunca mais, referiu-se a escritor algum, sem antes ler a obra, de preferência no original. Aconselhava a todos a fazerem o mesmo, pois as traduções e os críticos repetidas vezes deturpam o pensamento ou mesmo interpretam diferentemente da intenção do original. Fato que verificou quando começou a traduzir: “É um dos aspectos mais dolorosos da cultura verificar-se como as mentiras conseguem impor-se e perdurar por tanto tempo. Valeria a pena selecionar todas as mentiras históricas sobre o pensamento humano, repetidas nas escolas, nas universidades e nos livros, em conseqüência de muitos não se dedicarem mais aos estudos dos textos do que as obras de exegese”.

Traduziu “Vontade de Potência”, acompanhada de um ensaio: “O Homem que foi um Campo de Batalha” onde além de uma profunda análise do grande pensador, visualiza-o sob um novo ângulo.46 . A tradução do título “Der Wille zur Macht”, que literalmente seria “A Vontade para Poder” e vertida para “Vontade de Potência”, acarretou comentários contrários. No prefácio da obra ele explica o motivo de sua preferência por este título.

Traduziu de Friedrich Nietzsche “Aurora”, “Além do Bem e do Mal” e “Assim Falava Zaratustra”, este com notas explicativas da simbólica nietzscheana47.

43 Eliezer Demenezes introduziu-o na vida intelectual de Porto Alegre. Foi autor de vários livros, entre os quais “Poemas da Hora Amarga”(Porto Alegre, Livraria do Globo,1943). 44 Trabalhou durante muitos anos neste dicionário e o publicou, finalmente, em 1963, pela Editora Matese. 45 Este fato, que comentou com a família, deve ter ocorrido por volta de 1935. 46 A tradução foi fundamentada na primeira edição das “Obras Completas” em quinze volumes, publicada em novembro de 1901, por C. G .Neumann de Leipzig. 47 As duas primeiras foram publicadas pela Editora e Distribuidora Sagitário em l946 e “Assim Falava Zaratustra” pela Livraria e Editora Logos Ltda, em 1954.

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Encontrou dificuldade na tradução, pois o alemão que aprendera, quando cursava o ginásio, não era suficiente. Não esmoreceu ante esta dificuldade e recomeçou a estudá-lo com um professor particular. “A tradução das obras de Nietzsche é sempre um esforço”, observou, “um dispêndio de energias, que só o podem compreender aqueles que a realizam. Muito são os escolhos que encontra pela frente o tradutor, e, sobretudo, a impossibilidade em que se vê muitas vezes de verter para o outro idioma o que é característico do seu estilo, e que só a língua alemã permite expressar. Procurei por todos os meios ao meu alcance ser o mais fiel ao ritmo, ao estilo e as modalidades da expressão nietzscheana. E se muitas vezes não a reproduzi foi porque seria demasiadamente dura na nossa língua, e, por me ter colocado sempre na posição de sentir como Nietzsche escreveria se fizesse ‘Zaratustra’ em português. Em minha obra ‘O Homem que Nasceu Póstumo’, tive ocasião de examinar, os aspectos da simbólica e da mística nietzscheana, bem como expor, embora em linhas gerais, o que se pode conceber por símbolos.

Sei que algumas das minhas afirmativas poderão provocar oposições, mas, de antemão, respondendo à uma crítica fácil, devo dizer que nenhuma das que apresento são peregrinas, e todas estão fundadas num estudo de vários e longos anos em que compulsei, não só toda a obra de Nietzsche, como os seus mais categorizados comentadores. Esta é a razão porque, em certas ocasiões, não apareça Nietzsche como o desejam ver, segundo certas posições filosóficas, alguns daqueles que procuram interpretá-lo. O meu amor à obra desse grande poeta e a minha lealdade para com o seu pensamento não me permitiram que procedesse de outro modo...”48.

No verão de 1944 passou dois meses na casa de campo do amigo Athos Damasceno Ferreira. Durante toda a vida desejou levar uma vida de meditação, de solidão, de realização espiritual, porém as condições foram-lhe adversas: “Dormirei hoje construindo sonhos com Santa Rita. Quererá o destino que consiga realizar o meu sonho de solidão em Santa Rita? Poderei ali construir o meu mosteiro para me entregar ao estudo, à meditação e a realização de todas as obras que desejo realizar?”49

Neste mesmo ano escreveu o ensaio filosófico, “Homem animal que interroga”. Para editá-lo, a Livraria Globo exigia que passasse pela crítica de alguns intelectuais. Para um deles: “o livro seria um fracasso pois brasileiro não lê filosofia”. Ele decidiu provar a improcedência desta opinião e, anos mais tarde, publicou-o sob. o título “Se a Esfinge falasse” com o pseudônimo, Dan Andersen.

.Percebeu, porém, que na capital gaúcha não teria possibilidade de realizar o que almejava: publicar suas obras filosóficas. Decidiu ir para São Paulo, que oferecia maiores possibilidades para seus planos.

São Paulo: o mercado editorial brasileiro

Em 1945 fixou residência em São Paulo, indo trabalhar na Editora Flama, Na época

traduziu obras famosas: “Saudação do Mundo” de Walt Whitmann. “Adolphe” de Benjamin Constant, “Hermann e Dorotéa” de Goethe, e “Histórias de Natal” ( antologia de contos célebres)

Permaneceu, porém, pouco tempo na firma, passando a dirigir a seção editorial da Editora e Distribuidora Sagitário Ltda., onde publicou vários livros (grande parte de sua autoria),

48 Retirado do livro “Assim Falava Zaratustra”, pág.11, São Paulo, Livraria e Editora Logos Ltda., 1954. 49 Santa Rita ficava nas proximidades de Farroupilha, RS.

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além de traduções e ensaios. Na contracapa de “Aurora” de Nietzsche está a programação na qual ele é praticamente, o único autor (sob pseudônimos vários).

Na coleção Circe: ”Vida não é argumento” (Max Sanders). Na coleção Perspectivas: “Teses da existência e inexistência de Deus” (Charles Duclos); “Se a Esfinge falasse”;” Realidade do homem” ( Dan Andersen).Traduziu “Nacionalismo e Cultura de Idéias Absolutistas do Socialismo” de Rudolf Rocker que fazia parte desta coleção. Para a coleção Clímax traduziu “Aurora” (reflexões sobre os preconceitos morais) de Friedrich Nietzsche e, do mesmo autor, “Além do Bem e do Mal”. Na coleção Estímulo: “Convite a Psicanálise” (Nelson Werner), “Convite a Liberdade” (Lázaro Brentano) e “Convite a Filosofia” (Charles Duclos). Na coleção Pássaro Azul: “Assim Deus Falou aos Homens” (Mahdi Fezzan).

Na época dedicava-se intensamente ao trabalho intelectual, porém, eram grandes as dificuldades econômicas, já que não conseguia o suficiente para manter a família. Aceitou trabalhar na livraria Ritz, na seção de livros raros (ramo que já lhe despertara a atenção em Pelotas).50

Em várias ocasiões afirmou ser necessário que o conhecimento fosse divulgado de forma acessível ao leitor brasileiro e foi, visando suprir esta falta, que iniciou a coleção “Cultura para Milhões”, uma série similar aos pocket’s books – “uma imitação à brasileira” como dizia que, ao serem editados em papel jornal com acabamento simples e sem ilustrações, podiam ser vendidos a um preço bastante acessível51.

Da programação da coleção faziam parte: “Conheça a Relatividade” de Maurice Dubois; “O que é Psicanálise” de Nelson Werner; “O Mistério das Origens” (há dúvidas que Walter Bock; “Até onde irá o Conhecimento Humano” de Egon Platz e “Constrói tua Vitória” de Mark Kimbal.)

Nesta época recebeu a visita de um conhecido da família, um dos diretores de uma firma cinematográfica norte-americana, que lhe fez uma proposta tentadora: trabalhar em roteiros de filmes. Era um emprego com grandes possibilidades, porém este não era seu ideal, como muitas vezes dissera::“...Sei que no mundo dos negócios poderia eu ter um destino melhor. Mas sou daqueles poucos raros que valorizam o ser e não o ter.”

Propostas semelhantes não lhe faltaram no decorrer da vida. Nunca quis ter vínculos, subordinar-se a partidos, facções, grupos, a fim de não se comprometer, sendo este um dos motivos do silêncio que se fez a sua volta. Também no comércio teve propostas de sucesso e de ganhos fáceis desde que se subordinasse a escrever livros de valor duvidosos.

De uma carta: “Minha situação, cujos detalhes te contei por alto, mas poderás perfeitamente aquilatar ao menos em seu valor, era desesperadora. Estava às portas de escravizar-me para o resto da vida a um homem, comerciante, frio, calculista, vantagista, que se aproveitando da minha situação, impunha-me a escravidão para o resto da vida, através de um contrato que deveria escrever, com pseudônimos vários, livros medíocres para que ele editasse. Você sabe quão afrontoso para mim seria isso! Você sabe que ideal de cultura tenho eu, quanto desejo poder contribuir na medida de minhas forças pela cultura de nossa gente. Dar tudo quanto posso nesse sentido, contribuir para esse fim, colaborar com os bens intencionados, não medir esforços nem sacrifícios... E, no entanto, ver-me-ia obrigado a fazer traduções de obras

50 Foi gerente da Livraria Ritz, na Rua Barão de Itapetininga-livraria e galeria de arte, que depois mudou-se para a Av. São João, nº577. 51 A coleção Cultura para Milhões foi publicada pela Editora Edigraf .

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miseráveis e escrever “borracheiras” para serem vendidas para maior incremento da ignorância e do mau gosto”

Todos estes fatos reforçavam sua vontade de ter sua própria editora. O grande problema era a falta de capital.

Anos mais tarde, numa palestra, comentou a primeira entrevista tida com um editor paulista:

“Ninguém teve uma luta maior do que eu dentro do meu campo de ação editorial, porque quando eu procurei editor para o meu livro, eu não fui corrido do seu escritório, porque ele era um homem educado, mas deu a entender que era o maior absurdo editar um livro de filosofia num país de analfabetos, e me disse francamente: “O Sr. para editar um livro de filosofia no Brasil, o Sr. precisa ter muito dinheiro, porque tem que financiar a obra, depois o Sr. não tem leitores, se conseguir vender algum exemplar será a custo de uma publicidade muito grande, porque não há leitores, nós não podemos empatar nosso capital na edição de livros desta espécie...” E eu, então, disse a ele: “Pois vou fazer uma experiência com o meu próprio esforço.” E fiz uma editora para editar os meus próprios livros, sem um tostão de capital, usei crédito e paguei a edição em trinta dias, antes do vencimento que era de noventa dias. Não fiz publicidade, não tive apoio de ninguém, não pedi a quem quer que fosse escrevesse qualquer coisa a meu favor, não elogiei ninguém para que me elogiasse. Aguardei apenas que o povo brasileiro tomasse o meu livro, o lesse e fizesse a propaganda por si próprio. E fez, e as minhas obras venderam, eu editei oitenta e tantos livros em quatorze anos, com cerca de trezentas edições, Eu lutei dentro das minhas forças e dentro das minhas possibilidades, não me contive, não aceitei aquela maneira abjeta, que aquele brasileiro me colocava ante o Brasil.”

A decisão de editar “Filosofia e Cosmovisão” apresentou grandes dificuldades. Uma delas era a má vontade dos livreiros para colocar à venda uma obra de filosofia. A maioria nem a queria ter na livraria e, quando procurados, respondiam com o velho chavão: “brasileiro não lê filosofia...”.A primeira edição desta obra foi em 1952 pela Editora Edanee,.

Em 1953 fundou a Livraria e Editora Logos e iniciava-se, assim, o plano editorial, que contou com obras não só de cultura geral mas principalmente de filosofia.

Neste mesmo ano publicou “Curso de Oratória e Retórica”, cuja edição esgotou-se rapidamente, seguindo-se uma série de reedições. Editou em seqüência: “Práticas de Oratória” e “Técnica do Discurso Moderno”, trilogia vendida em coleção, o “ carro-chefe”, a locomotiva que carregava as outras obras já que, tratando-se de fácil venda empurraria as que não obtinham o mesmo sucesso no mercado, mas que “necessitavam ser editadas também”.

E, sucessivamente, foi publicando os livros que constituíram a “Enciclopédia de Ciências Filosóficas e Sociais”: ”Psicologia”, “Lógica e Dialética”, “Teoria do Conhecimento”, “Ontologia e Cosmologia”, “O Homem perante o Infinito”, “Noologia Geral”, “Tratado de Simbólica”, “Sociologia Fundamental e Ética Fundamental”, “Filosofia da Crise”, “Filosofia Concreta dos Valores” e “Filosofia Concreta”. Os doze primeiros volumes foram reunidos na coleção denominada “Cultura Moderna”.

A fim de explicar as finalidades da Livraria e Editora Logos declarou: “Em oposição às outras editoras, que visualizam apenas o aspecto comercial, que visam apenas ganhar dinheiro, a Logos tem um programa cultural e realiza, dentro de suas forças, o que outros já deveriam ter feito: publicar apenas obras culturais. Tudo o que temos editado são clássicos e obras de filosofia. Nesse programa, estamos realizando o que o Brasil mais precisa, cultura e apenas cultura. Nosso programa é apenas cultural.”

As editoras continuavam praticamente no sistema tradicional de vendas. Não se interessavam por obras filosóficas e não aceitavam a distribuição, alegando desinteresse e falta de

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receptividade do público. Em face dessas dificuldades, decidiu vender suas obras por um sistema pioneiro: a venda a crediário. Contra a opinião de todos, que prenunciavam o malogro da nova iniciativa, obteve, o que permitiu fazer várias reedições em poucos anos. Para maior difusão, facilitou o crédito a vendedores que quisessem abrir suas próprias firmas comerciais, estabelecendo também filiais em várias cidades.

Muitas firmas de crediários de livros formaram-se nesta época funcionando no sistema de venda de porta em porta. Eram verdadeiros pioneiros, que percorriam o interior do país, facilitando a aquisição de obras de boa qualidade tanto no seu conteúdo como na sua apresentação. Sistema este, que ainda em nossos dias continua funcionando e é responsável pela difusão da cultura , principalmente para classes menos favorecidas.

A crescente procura de seus livros e a ampliação da distribuição exigiu um local central e de fácil acesso. Alugou três salas na Praça da Sé onde montou um escritório. Nele recebia os vendedores e representantes de todo o Brasil52.Quando mudou-se para a rua 15 de Novembro, aproveitou o espaço para montar juntamente um auditório com capacidade para 250 pessoas que seria utilizado para palestras, cursos, conferências, etc., unindo assim o que sempre tivera em mente: a parte empresarial com a cultural. Alugou as dependências de uma fábrica no Cambuci, em 1961, onde instalou a Gráfica e Editora Minox Ltda, tendo mais tarde transferido-se para sede própria.53

Era um trabalhador incansável. Em seus empreendimentos contou sempre com o apoio dos familiares. Na produção literária era auxiliado pela esposa e filhas e na parte administrativa e industrial pelos genros. Sua esposa, incansável colaboradora, foi quem datilografou os manuscritos e, mais tarde, transcreveu as fitas gravadas. A editora contava também com uma equipe de revisores e tradutores.

Algumas pessoas o criticavam por ser o editor e o propagandista de suas obras, o que o levou a explicar este posicionamento:

“Desejei, entretanto, estabelecer algumas considerações. Como podem V.S. observar estou realizando no Brasil uma atividade inédita. É costume dizer-se nesta terra que o leitor brasileiro não se interessa senão pela baixa literatura. Essa calúnia assacada ao nosso leitor levou-me a uma experiência: a de editar livros de filosofia. E o resultado foi o desmentido cabal a todo pessimismo dos mesmos editores. Meus livros passaram a vender-se por milhares. E entrei em contato direto com o leitor, sem ter pedido licença a qualquer grupo de literatos detentores dos meios de publicidade. Apresentei-me diretamente ao leitor e disse-lhe: tenho isto para você. E o leitor aceitou, sem esperar por alguém que o aconselhasse a ler. E o resultado não se fez esperar, contrariando todos que divorciados do verdadeiro leitor, pensam que este só quer subliteratura, escândalos, etc.”

No desejo de difundir a cultura para todos, o que sempre fora um ideal, publicou a coleção “Convite ao Saber”, composta de “Convite à Filosofia”, “Convite à Estética” , “Convite à Psicologia Prática”, “Convite à História”, e “Convite à Ciência”. Editou o “Dicionário de Pedagogia e Puericultura”, com a colaboração de sua filha Yolanda Lhullier dos Santos na parte de puericultura. Publicou clássicos: “Dom Quixote de la Mancha” de Cervantes, “Fábulas de La

52 A Livraria e Editora Logos Ltda. teve inicialmente sede na própria residência. Posteriormente mudou-se para al. Jaú, 467, depois para a rua São Carlos do Pinhal, 485, Praça da Sé, 47, 1º andar salas 11,12 e 13 e, definitivamente, rua 15 de Novembro, 137, 8º andar. 53 Instalada na Av. Conceição, 645 (Atualmente Av. Engenheiro Armando de Arruda Pereira).

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Fontaine”, “Paraíso Perdido” de Milton, “Tratado da Tirania” de Alfieri, “O Critério” de Balmes, dentre outros.54

Apesar da atividade comercial tomar-lhe grande parte do tempo, lecionava e proferia palestras. Muitos livros foram escritos no escritório durante o expediente comercial. Conseguia isolar-se, mesmo estando no meio de muitas pessoas.. Exercício que aprendera, quando estudava com os jesuítas.

Em 1963 fundou a Editora Matese e, no mesmo ano, publicou “Dicionário de Filosofia e Ciências Culturais”, em 4 volumes.

Tinha um especial carinho pela nova editora. Ao ser questionado o porquê do nome. explicou: “Pitágoras dizia: sou um filósofo, sou um amante desta sabedoria, sou um homem que me ufano por alcançar este conhecimento superior que seria então a instrução suprema, como a palavra instrução em grego é “Mathese”, e o superlativo de “mega” é “meghiste”, ele deu o nome de “Mathesis Megiste”, que traduzimos por Matese, daí o nome da Editora Matese.”

Além de vários textos de filósofos clássicos, publicou: “A Sabedoria dos Princípios”, “A Sabedoria da Unidade” e “A Sabedoria do Ser e do Nada”.

Um professor incansável

Iniciou as atividades como professor particular no ano de 1946 e a manteve até os

últimos dias. Gostava de ensinar e suas explanações despertavam no aluno o interesse pela matéria. Comentava que quando estava dando aulas, vinham-lhe idéias, que, depois eram desenvolvidas nos livros.

Ministrou cursos no colégio Livre de Estudos Superiores, além de inúmeras palestras55.A noite estudantes se reuniam em sua residência onde, após as aulas, o debate era aberto para temas políticos, econômicos e sociais.

Em 1947 fundou o “Instituto Cultural Logos”, que mantinha cursos orais aula e por correspondência. Estes, englobados sob o título de Cultura e Filosofia Geral eram na época uma novidade pois os poucos que haviam, vinham diretamente dos Estados Unidos ou da Europa. Não iam, evidentemente, ao encontro às necessidades do nosso povo. Isto o levou a preparar, de forma cuidadosa, o texto procurando expor a matéria de forma acessível sem rebaixar o conteúdo. Bastante solicitados, abrangiam uma gama bem ampla, indo de Língua Portuguesa, História do Brasil, História Geral, Geografia Geral e do Brasil, Ciências Físicas e Naturais, Matemática, Cultura, Higiene, desdobrado para Psicologia Teórica, Psicologia Prática, Filosofia Geral, Lógica Geral, Dialética, Visão Geral do Mundo (Cosmovisão) que, em grande parte, foram editados em livros que vieram a constituir a Enciclopédia de Ciências Filosóficas e Sociais. As apostilas, enviadas para todo território nacional, eram divulgadas por cada um dos alunos a amigos e interessados e em anúncios de jornais e revistas.

Muitos dos alunos mantiveram contato constante com ele através de correspondência: “Todos os meus alunos encontram em mim não apenas um professor, mas um amigo,

pois estou sempre pronto a dar-lhes conselhos úteis, fornecer-lhe idéias de livros para leitura, orientá-los em sua cultura pessoal, pois estamos, hoje, numa época em que os homens valem pelo que são e não apenas pelo que tem. O mundo que se forma é um mundo em que valerão apenas os

54 Vide Fundo Editorial da Liv. e Editora Logos Ltda. 55 No Colégio Livre de Estudos Superiores, cito à Rua General Jardim, 234, ministrava cursos de Lógica e Filosofia, a convite de Vicente Ferreira da Silva, que dirigia a entidade.

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que sabem, porque a complexidade do mundo de amanhã não dará margens aos ignorantes. Sei que V.S. é um industrial e aproveita suas horas disponíveis para cultivar seu espírito. O que V.S., faz é um ato louvável e só posso encher-me de satisfação ao ter, como meu aluno, uma pessoa que sabe aproveitar tão bem o seu tempo e colabora, assim, para que a cultura do nosso povo seja uma realidade.”

Em uma das cartas explicou seus objetivos: “Luto contra os moedeiros falsos da filosofia e da ciência, emprego todos os meus

esforços em dar uma luz nova, junto todas as minhas forças para conseguir esse desideratum. E quero em troco, apenas, que as minhas lições despertem um grande amor ao saber e à cultura, um amor capaz de permanecer límpido ante a catástrofe que nos ameaça, agora mais do que nunca, quando todos, consciente ou inconscientemente trabalham, afanam-se para destruir o patrimônio cultural da humanidade às vésperas de uma luta que tem como bandeira apenas a concupiscência, o lucro desenfreado, o ódio desmedido. Alguma coisa há de salvar-se desse naufrágio. Que seja pelo menos, a cultura.”

E, quanto aos cursos por correspondência: “Quando criei o curso de Filosofia por correspondência, fi-lo a pedido de muitos

alunos que haviam cursado cursos orais comigo. Como não desejava continuar somente dando aulas orais e desejando ser útil aos meus patrícios, resolvi criar este curso por correspondência, cujos resultados estão indo além das minhas expectativas, pelo interesse e aproveitamento que tem demonstrado os alunos. Realmente não sou comerciante nem desejo ser. Devoto a minha vida, e para tanto não temo os prejuízos e as conseqüências, em bem servir os outros, já que tão poucos se lembram que os outros existem senão para deles se utilizarem. Numa época como a nossa, em que se perdeu todo o sentido humanitário, é preciso que alguém não seja como os outros. Alguém que seja diferente. E entre este número restrito, tenho orgulho de estar. Satisfaço-me como vivo, embora com poucas coisas, mas com muitas outras que o dinheiro não dá.”

A boa acolhida foi-lhe de grande incentivo. E os alunos se manifestaram:: “Devo informar que estou bastante entusiasmado com o curso dirigido por V.S.; minha impressão é de que o mesmo vai prestar inestimável contribuição para que muitos patrícios nossos, sem recursos para cursar academias, como é o meu caso, possam adquirir uma cultura geral – não só para conforto próprio como para maior facilidade na luta da vida.”...

... “Primeiramente quero comunicar-lhe o recebimento das folhas e também de sua preciosa carta. Quanto a nova resolução tomada por V.S. a fim de facilitar-me, quero agradecer-lhe, pois vejo que V.S. procura mesmo ajudar-me, não pelo interesse do dinheiro, mas pela vontade que tem em ensinar os outros, para que não enveredam no caminho da perdição, principalmente os jovens, bem o conheço e como o compreendo...”

... “Em meu poder sua prezada carta de 3 de maio, cujas palavras se revestem de uma espécie de humanidade a aprofundamento no estudo da alma humana que demonstram nitidamente uma superioridade de pensamento... uma coisa que não vi nas minhas relações anteriores com os homens e a qual tanto me impressionou anteriormente, a ponto de escrever-lhe...”

Em 1947 iniciou um curso de Cultura Geral, do qual participavam em média 20 alunos. Era um curso de extensão cultural, abrangendo temas de História, Estética, Filosofia, Psicologia, Sociologia, etc. A partir de 1957, passou apenas a dar aulas noturnas para uma turma selecionada, pois os afazeres da editora tomavam-lhe todo o dia. "Eu tenho me dedicado mais a dar aulas para grupos isolados, nunca me preocupei em ser professor de escola alguma, aliás faço isso deliberadamente porque tenho um modo de ver, de sentir e de pensar muito pessoais, e não gosto de entrar em choque com os outros, gosto de respeitar as idéias alheias, e naturalmente isto

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dentro de uma universidade é difícil, porque tem o seu programa, a sua orientação e eu não concordo. Por exemplo, não admito aluno que não possa suportar três horas de Filosofia, quem não pode, não deve estudar filosofia. É o meu modo de sentir, de pensar e de ver”.

Pretendia despertar no aluno o espírito criador, evitando prender-se a idéias pré-concebidas e a sistemas fechados “... toda a minha luta como professor foi despertar nos alunos a sua capacidade criadora. Não quero dizer que eu tenha conseguido, não, não consegui, malogrei, mas não fui eu que malogrei, foram meus discípulos que malograram, que se deixaram envolver pelo espírito quantitativista, pelo espírito da autoridade, assustam-se com as autoridades, e então ficam subservientes a um determinado pensamento, preferem estarem no coro e não representarem os primeiros papéis, e o próprio Aristóteles dizia isto, aliás uma bonita expressão dele: “nós devemos ser como aqueles que querem representar os primeiros papéis e não no coro.”

Ministrou vários cursos de Oratória, principalmente para alunos da Faculdade de Direito. Deixou gravado, um Curso de Oratória em 20 aulas, seguindo um método próprio.

Freqüentemente era procurado por pessoas angustiadas, aflitas, desesperançadas, que nele encontravam auxílio e amparo. Ouvia-os com paciência procurando ajudá-las a se recuperarem utilizando um método que criara e que dera resultados bastante positivos em vários casos particulares.

Com a finalidade de torná-lo conhecido escreveu “Curso de Integração Pessoal” e “Convite à Psicologia Prática”. Nestas obras ensina como conhecer o caráter e o temperamento próprios e como estimular nossas possibilidades, aproveitando os ensinamentos da Caracterologia.

“Um dos estudos que aconselho os senhores a fazerem para o próprio bem pessoal é o estudo da própria caracterologia, porque ela nos ajuda a vencer os nossos defeitos. Eu nasci com todos os defeitos possíveis, mas venci-os através do conhecimento das minhas deficiências e das minhas tendências viciosas, para corrigi-los através da minha vontade. Foi um grande sacrifício, mas grande parte auxiliado pelo próprio esforço.

Foram inúmeras as palestras e discursos56proferidos. Grande orador, empolgava o auditório com a palavra fluente. Quando jovem, na primeira aparição em público como advogado de defesa, a sua habilidade oratória foi fator preponderante na absolvição de seu constituinte. Por possuir dotes oratórios foi várias vezes convidado a candidatar-se a cargos políticos, porém sempre rejeitou. Interessava-se por política e procurava a solução dos problemas sociais, mas não almejava cargos públicos.

56 Dentre as inúmeras palestras proferidas conseguimos fazer um levantamento inicial: “A filosofia de Max Scheller” no Colégio Livre de Estudos Superiores, ‘946; “Proudhon e o socialismo no século XX” no Centro de Cultura social, 1947, São Paulo; “Que es el existencialismo” no Centro Gallegó, 1950, São Paulo; “São Lucas e sua significação” na Sociedade Médica São Lucas, 18/10/1952, São Paulo; “O Método Dialético e sua aplicação” no Instituto Sampaio Fonseca, 29/04/1954, São Paulo; “Mauá, o Grande Homem de Empresa” no Instituto Sampaio Fonseca, 28/12/1954, São Paulo; “O pensamento Pitagórico e sua atualidade” no Centro de Debates e Estudos Culturais CEDEC, 16/10/1955, São Paulo; “Realidade Brasileira” no Centro Acadêmico 3 de março, 02/10/1962, São Paulo; “Os ciclos culturais” no Centro de Cultura, 14/11/1965, São Paulo; “Conceito Ontológico da História” no Centro de Cultura e Livraria e Editora Logos, 16/01/1962, São Paulo; “Integração e Desintegração da História” na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Santos, 1963; “A Crise no Mundo Moderno” na Associação Brasileira de Imprensa, 1965, Rio de Janeiro; “Dialética Concreta” na Faculdade de Filosofia São Bento, 14/10/1966, São Paulo; “Palestras sobre temas propostos” no Colégio São Luís, 26/10/1966, São Paulo; “S. Tomás e a Sabedoria” no Instituto Teológico Pio XI 03/1967, São Paulo; “Palestras sobre temas brasileiros” no Convivium 02/05/1967, São Paulo; “Palestras sobre temas propostos na hora” no Convivium, 24/04/1967, São Paulo; “A importância da Oratória na vida de um líder” na Câmara Júnior de São Paulo, 16/08/1967.

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Na maioria das vezes as palestram eram improvisadas e freqüentemente o tema era proposto pelos ouvintes. Deixava para o final as respostas às perguntas formuladas pelo auditório.

Muitos o criticavam-no pelo fato de tratar de vários assuntos. Em palestra para jovens, respondeu: “Há muitas pessoas que admiram que sendo eu um filósofo, que trate de matérias que pertencem a tantas e diversas disciplinas, mas todas estas disciplinas pertencem a Filosofia. O que deveria preocupar, impressionar, era que precisamente eu como filósofo não fosse capaz de tratar dessas matérias, porque na filosofia não há especialização. O filósofo especialista é uma “contradictio in adjectis”, porque a filosofia é universalista, generalista por natureza, e uma especialidade na filosofia pode haver de professores de filosofia, mas não de filósofos. Nenhum grande filósofo foi especialista, nenhum, todos foram universalistas, todos trataram de tudo quanto cabe ao campo da filosofia.”

Na ocasião explicou, também, porque não era apenas um professor de filosofia, mas um filósofo!

“Ser um mero professor de filosofia eu não sou, eu posso dar aulas especializadas, mas não sou propriamente um professor de filosofia, eu sou um filósofo, tenho uma obra realizada, esta obra existe, está aí publicada, quer queiram quer não, não são folhetins, são livros volumosos e tenho mais a publicar. Queria estabelecer este ponto porque sei que como predomina nas escolas e nas universidades, infelizmente, o espírito do especialismo, que desde que entrou só serviu para perturbar o desenvolvimento da cultura humana e fazer com que estes três séculos sejam os três séculos mais estéreis do pensamento humano, eu sei que este espírito influi na juventude que não está devidamente preparada e não sabe como reagir a esta maneira de ver. Podem verificar na história da filosofia que os grandes filósofos, não dos pseudamente grandes filósofos, não daqueles que são incensados por uma publicidade mal intencionada, mas dos grandes filósofos na história da humanidade, todos eles foram universalistas e trataram mateticamente, digamos assim, de todas as matérias.”

Certa vez, perguntaram-lhe se podia ser tachado de “sofista do século XX”. Respondeu: “Não, porque a nossa posição na filosofia é muito clara. Só aceitamos na filosofia uma autoridade, e a demonstração necessita ser apodítica, isto é, com juízos universalmente válidos, enquanto não chegamos a isto consideramos o trabalho ainda incompleto. A nossa posição é muito clara, somos contra a filosofia subjetiva, de opiniões, de doxa, de pareceres, de ponto de vista, interessa-nos apenas a filosofia objetivamente. Partimos do seguinte: “há uma “sofia” que é “suprema sofia”, que é a verdade das coisas em si mesmas, das coisas tomadas em si mesmas, para si mesmas. Esta marcha do homem para esta “sofia”, para este conhecimento, este afanar, este esforço é propriamente a filosofia. Esta filosofia ou alcança alguma verdade, alcança a determinados conhecimentos que pode estabelecer como absolutamente válidos ou não. Se tem certeza que não alcança, é apenas uma vilegiatura, é um turismo intelectual, é um passatempo. Se atinge vamos nos dedicar a ela, por isso nos opomos a todas as escolas onde se prega o agnosticismo e a inutilidade da filosofia, Partimos do seguinte: aceitamos a frase de Aristóteles, a única autoridade é a demonstração, quer dizer, enquanto não se demonstra apoditicamente um juízo também exclusivo, nós não alcançamos o fim da nossa pesquisa. Se isto é possível ou não é que se discute, nós dizemos que é possível e provamos”.

Em 1958, ao visitar vários países da Europa, aproveitou para contatar algumas editoras. Desta viagem voltou com vontade redobrada para lutar pelo Brasil, pelo seu engrandecimento e difusão da cultura. De uma conferência retiramos este trecho:

“Quando viajei pela Europa e vi a grandeza daqueles povos, lembrando-me das coisas do meu país eu tinha pena de nós, como éramos tão atrasados e só pensava em voltar para o Brasil e lutar nesta terra, para que nós fizéssemos o que eles faziam.... Infelizmente os nossos

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intelectuais nos traem, porque eles vivem volvidos para culturas estranhas, e somente admiram aquilo que outros realizaram, e descrêem das nossas possibilidades, e não ensinam nem a si próprios, para que também possam vencer as suas deficiências e alcançar aquele nível. Nós precisamos também estimular o nosso povo a ter fé em si mesmo e confiança de poder fazer alguma coisa de grande. E o Brasil pelas suas condições históricas, porque é um país que recebeu os povos de todos os quadrantes do mundo, e conseguiu dar uma convivência, entre esses povos, a mais harmônica que se conhece na História, não há entre nós nenhum conflito de caráter racial ou de qualquer caráter étnico, um país que consegue isto, esta convivência extraordinária e que não se conhece em nenhuma outra parte do mundo, é um povo que está predestinado a alguma coisa de grande. Só este povo poderá lançar uma visão ecumênica, uma concepção universal, porque qualquer ciclo cultural que se forma hoje no mundo tem que ser ecumênico, tem que ser universal, porque a ciência está abrindo as fronteiras, por mais que os políticos a cerrem, que façam os muros de vergonha, as cortinas de aço, a ciência, o conhecimento está penetrando, está atravessando e vai além, vence todas essas resistências, o mundo está se tornando um mundo só. Este mundo marcha para uma só concepção, para uma visão geral ecumênica, que vai compreender e conter dentro de si as heterogeneidades. Nós somos capazes de viver o equilíbrio dentro do heterogêneo, seríamos capazes de unir os opostos que se analogarão numa concepção universal, e esta realidade só pode surgir de um povo que já deu o exemplo histórico de compreensão universal, e este povo é o povo brasileiro.”

Criticava o nosso colonialismo e numa entrevista em que lhe perguntaram: “Mas é possível um brasileiro fazer tais coisas?” (referiam-se à sua obra numerosa), respondeu: “Nosso colonialismo passivo, que infelizmente domina muitas mentes no Brasil, leva-nos a descrer, totalmente de nossos homens, o que impele a muitos se terem aliado aos grupos de detratores de nossos homens, e também de terem destruído muitos valores que não encontraram em sua pátria o apoio que mereciam. Essa prática é contumaz e monótona na nossa história. Citar nomes seria alongar demais estas notas. Realmente muitos duvidam de que um brasileiro seja capaz de realizar obra tão vasta como a minha, apesar dela existir, não em promessas, mas em ato, de “argumentum camelumpardalis” (argumento da girafa). Diz-se que alguém, que antes nunca vira uma girafa ao ver animal de pescoço tão longo, exclamou: “É impossível, este animal não existe!”.

Ante a situação brasileira, necessário se fazia organizar uma série de obras para compreender a realidade histórica. Surgiu, assim, “Brasil, um país sem esperança?”57, e um esboço de “Brasil, país de exceção”, obras que deveriam fazer parte da coleção, “Uma Nova Consciência”.

Perguntaram-lhe numa palestra: “Qual a mudança radical que se deve fazer no Brasil?” Respondeu: “Bem a mudança que se deve fazer no Brasil é em nós, primeiro nós brasileiros temos que mudar radicalmente se quisermos fazer alguma coisa, porque o que temos lá em cima é um reflexo de nossa situação. Se lá em cima vão esses homens é porque não fomos capazes de evitar que lá chegassem. Precisamos criar elites de espírito brasileiro, preocupadas com problemas brasileiros, porque as elites no Brasil é que sempre dirigiram a nossa história. Se não formarmos novas elites, não criaremos uma outra mentalidade, não criaremos a confiança em nós mesmos, não seremos capazes de elevar este país para o destino que merece. Há muita gente capaz neste país, mas muitas vezes não podem fazer nada porque estão coartadas pela ação de grupos e de outros elementos que ocupam, às vezes, cargos de mando. Vamos fazer uma nova

57 “Brasil, um país sem esperança?” trata-se de um manuscrito inacabado, publicado em “Humanismo Pluridimensional” 2º volume, da Sociedade Brasileira de Filósofos Católicos, Edições Loyola, São Paulo, 1964.

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elite no Brasil, vamos obrigar aos nossos homens que estudem as nossas coisas e dêem valor ao que é nosso”.

A situação social do país era uma das suas preocupação: “...Senhores, como o Brasil sairá da miséria? Apenas aplicando um sistema de organização social? Se não houver uma modificação psicológica neste povo? Se não despertarmos neste povo um outro sentimento de si mesmo, uma outra maneira de ver a vida, e isto se fabrica da noite para o dia? Isto não está exigindo lutadores? Temos um papel muito grande a realizar, levantar neste povo a confiança que já teve em si mesmo...”

“Falando para jovens: “... o jovem tem um papel muito importante, porque ele é o futuro, é o amanhã. Tem sido na história um elemento manejável pelos interesses políticos, e este é um papel indigno. Aquela juventude que perseguiu os pitagóricos e levou a destruição a ordem pitagórica foi agitada por demagogos, julgando que estava realizando alguma coisa de superior. Aquela juventude ululante que exigia a morte de Sócrates era uma juventude criminosa, mas julgava que estava cumprindo um dever social. A verdadeira juventude foi aquela que assistia as aulas de Sócrates, de Platão, de Aristóteles, que fazia parte do Instituto Pitagórico, que em toda história lutou pelo saber e pelo conhecimento. Os jovens tem um responsabilidade muito grande, sobretudo porque eles sendo despreparados, não estando a par de tanta coisa que só o tempo nos pode dar, mais do que qualquer outro grupo social tem obrigação de saber o que fazem, porque são muito mais sujeitos aos erros do que aqueles que tem uma idade mais avançada e uma maior experiência. Têm de tomar consciência desse seu papel na História e assumir o papel de realizadora. Aquilo que Anatole France dizia “que a juventude saiba, que a maturidade possa”, o jovem tem o poder, mas não tem o saber, o homem da idade madura tem o saber, mas não tem o poder, então se a juventude soubesse e a maturidade pudesse, eles se encontrariam. Nós precisamos ir ao encontro da juventude e fazer com que ela venha ao nosso encontro. Tenho uma certa simpatia por estes jovens rebeldes, já este simples gesto de rebeldia, para mim, é um aspecto positivo, eles não se conformaram com isso que está aí, então se revoltaram, agora, o que lhes está faltando é um ideal, uma orientação . Queremos despertar na juventude, outra vez, aquilo que é sua verdadeira razão de ser: o idealismo, porque o jovem que não é um idealista demitiu-se da sua própria juventude, traiu a si mesmo, negou-se, aniquilou-se, transformou-se apenas numa coisa”.

Ressaltava que faltava no mundo moderno os idealistas e, como dizia, “a humanidade nunca deu um passo à frente a não ser impulsionada por eles”.

Em 1965 retornou a Europa, em viagem de negócios. Aproveitou a estadia para levantar, na Biblioteca Nacional de Lisboa, material relativo a produção dos filósofos portugueses e espanhóis medievalistas. Passou um mês em Lisboa, fazendo contatos comerciais, que não tiveram a continuidade esperada pois seu estado de saúde já era bastante precário.

A questão libertária

Desde jovem manifestara grande interesse pelos problemas sociais. Em1951 publicou o Manifesto Cooperacionista Brasileiro onde sintetizou a situação

econômica do país, propondo soluções para os graves problemas existentes. Fundou, com um grupo de interessados, a Cooperativa de Consumo Metropolitana.58.O movimento teve boa

58 A cooperativa estava sediada na Av. Ipiranga, 1125, conjunto 71. O manifesto foi transcrito em “O Problema Social”. São Paulo, Livraria e Editora Logos Ltda., São Paulo, 1964.

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repercussão, porém, interesses particulares de alguns membros desvirtuaram o projeto do qual ele se desligou.

Sempre lutara por uma sociedade que respeitasse a liberdade individual, proporcionando oportunidade a todos. Participara de vários movimentos, nas décadas de 20 e 30.

No livro “Análise Dialética do Marxismo”, apresenta uma análise do marxismo dentro do seu método decadialético. O estudo das questões sociais levou-o a colocá-las em bases filosóficas, evitando as meras opiniões que, inevitavelmente, trazem a confusão de idéias. A obra foi boicotada por grupos radicais e extremistas.59.Utilizou parte do texto com algumas retificações em “Análise de Temas Sociais”.

Já na introdução colocou a problemática central: “Se o marxismo é simplesmente considerado por muitos como um pesadelo de História, sem maior significação e que passará como passaram tantos outros movimentos, aparentemente populares, ou se apresenta o resultado de um longo processo, e com uma significação que ultrapassa a visão comum, ambas atitudes tomadas sem um exame mais apurado dos fatos, podem ressentir-se ou de um primarismo judicatório ou de uma excessiva valorização dos acontecimentos”.

“Examinar o marxismo, com a máxima isenção de ânimo, evitando a influência das paixões que agitaram a nossa época, analisar-lhes os fundamentos, premissas, postulados, sem deixar-se arrebatar pela paixão, reconhecemos é difícil e raia até o impossível”; porém, em nenhum momento, deixou de ter pela frente uma tarefa árdua e delicada. Sua natureza não temia as dificuldades e sim costumava enfrentá-las... “ao contrário gostamos de tê-las pela frente...”, como afirma num trecho.

Nele utilizou o método da decadialética (usada em várias de suas obras) para analisar os principais temas indo fundamentar-se, sempre que possível, nos textos dos mais conceituados teóricos do marxismo para evitar distorções, assim como a má compreensão de suas afirmações. Não queria absolutamente, direcionar-se para uma forma pessoal de abordar o problema social, daí ter o máximo cuidado para não prender-se a um atitude partidária. Entretanto, observa, “que nestes últimos cem anos de estruturação do marxismo, a principal polêmica se foi dar entre as duas vertentes do socialismo: o autoritário e o libertário. Os primeiros são, substancialmente, majoritários, e daí que... ‘em face das decepções, os socialistas mais idealistas, sentem a necessidade de retornar as posições do socialismo libertário, onde permanecem a espera de novos acontecimentos para que os fatos venham a ter novas significações’. Lenine já compreendera este retorno e o considera como ‘um desvio pequeno-burguês’. Para outros o socialismo perdeu seu genuíno sentido proletário, transformando-se num meio de vantagens sociais e políticas para “pequenos burgueses desajustados”, que não deixam de atacar veementemente a pequeno-burguesia numa auto-punição psicologicamente bem compreensível”.

Ao colocar os argumentos anti-marxistas, segue a diretriz que, “as obras apologéticas do marxismo são numerosas, enquanto as libertárias são mais raras e pouco lidas, impunha-se, por isso, acrescentar maior número de razões em oposição ao marxismo, pois, tais argumentos não poderiam ser manejados no campo do capitalismo, mas apenas no campo do socialismo, pois, os libertários não acusam os marxistas de serem socialistas (como o faria um capitalista partidário, por exemplo) mas precisamente por não serem socialistas, ou por terem se desviado. Portanto a crítica libertária não ataca muito, mas acusa o pouco, como é ela construtiva e não destrutiva, merece atenção”.

59 Segundo Jayme Cuberos, companheiro das lutas políticas, a gráfica esteve ameaçada quando da impressão do livro tendo Mário permanecido no local até o final da impressão.

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Participou de inúmeros debates sobre questões sociais, discutindo principalmente com socialistas. Era grande conhecedor de todas as correntes ideológicas, principalmente do marxismo, e referindo-se a um contestador disse:: “...mesmo sendo marxista, dificilmente ele conhecerá marxismo melhor do que eu...”

Contou que por ocasião de um encontro de comunistas, socialistas, anarquistas e outros no Centro de Debates “Presidente Roosevelt”60, os comunistas, temerosos dos ataques que ele faria acusaram o Centro de ser uma célula comunista. No dia aprazado para o debate, a polícia fechou o local.

Outro fato ocorreu durante uma palestra: o conferencista defendia o marxismo, mas de maneira bastante elementar, Ele levantou-se, pediu um aparte, e começou a defender o marxismo em bases sólidas. O auditório admirou-se, pois era conhecido como defensor das idéia libertárias. Seus amigos pensaram que tivesse mudado de opinião. Logo após, ele começou a rebater, ponto por ponto, todos os itens defendidos, que antes defendera tão enfaticamente.

Apaixonado quando discursava e bastante polêmico na controvérsia, principalmente nos debates sobre questões sociais, não foram poucos os adversários que adquiriu. Não tripudiava sobre o opositor, mas também não contemporizava.

Desde meados da década de 40 freqüentava o Centro de Cultura Social61, .e o Centro Republicano Espanhol62, onde participava de reuniões e debates. Ali fervilhavam as mais diversas facções políticas e a polêmica era exaltada. Além de proferir inúmeras palestras, participou de mesas-redondas que duravam mais de 5 horas.

Defensor das idéias libertárias, citamos suas palavras: “...eu tenho uma profunda simpatia pela concepção libertária porque considero que a concepção libertária é fundamental do homem, por uma razão muito simples: o ser humano é um ser racional, é um ser capaz de escolher e captar possibilidades de possibilidades, de escolher entre possibilidades, ele é capaz de distinguir contingentes futuros e escolher entre esses contingentes, o que revela presença de sua liberdade apesar de muitos quererem negar e transformá-lo num autômato. O ser humano é realmente um ansioso cada vez mais de dar à sua vontade a assistência da intelectualidade de modo que toda a sua ação seja melhor orientada, para que ele possa alcançar os fins que lhe são mais benéficos e tudo isto em suma, a meu ver, fundamenta no ser humano um espírito de liberdade tão alto que o torna por natureza um libertário.”

“Os homens revelam-se pelos atos e não pelas palavras. Prefiro mil vezes o meu idealismo consciente e de perspectiva de pássaro do que o ignorante praticismo caolho de perspectiva de rã!...”

Com a finalidade de lutar pela liberdade humana publicou, em 1964, um caderno intitulado “O Homem Livre”, no qual convidava a todos que quisessem lutar “contra a ignorância denunciando a moeda falsa intelectual, a falsa cultura, contra a valorização da astúcia, da malícia, do mórbido, da especulação sobre os baixos valores; contra a ignorância atrevida e auto-suficiência; contra as falsas reivindicações sociais que não representam nenhuma elevação humana.; contra as expressões untuosas de falsa piedade na exposição do que é digno para o homem; contra o domínio dos meios de publicidade por grupos que representam interesses

60 O Centro ficava na rua Libero Badaró, 561, 2ºandar. 61 O Centro de Cultura Social situava-se na rua Libero Badaró, 386. 62 O Centro Republicano Espanhol situava-se na rua do Gasômetro.

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inconfessáveis; contra o charlatanismo diplomado dos fariseus intelectuais; contra a desesperança infundada, a confusão propositada e impelida pela má intenção.”63

Trecho de uma carta: “Como estamos hoje, no mundo inteiro, ameaçados de regimes cesariocratas, apoiados em tecnocratas abstratos de rigidez intelectual perigosíssima, o que nos levará a viver em regimes de opressão e crueldade que tudo quanto houve até hoje de opressão será um leve pesadelo, julgo que temos que examinar bem esta matéria” (referia-se especificamente ao “O Homem Livre”, publicado em 1965), para reunir esforços numa luta de humanização da filosofia de ciência e da técnica, para que cooperem em bem do homem e não para regimes de violência organizada, que em nome de uma ciência fria, tornará os homens escravos, numa escravidão como jamais surgiu na História.

“Estamos aqui organizando um grupo de estudos sobre temas sociais dedicando-nos, sobretudo, a examinar essa ameaça, que se torna cada dia mais iminente, pois, os tecnocratas-burocratas-cesariocratas vão cada dia ocupando os postos de mando. Na verdade a resolução que se dá no mundo é esta, pelo menos no campo do que se chama essas classes desligadas da concreção, acostumadas ao abstratismos dos especialismos, com visões deformadas da realidade, sem consideração ao homem concreto, que não compreendem nem julgam que existe, mas sim, o homem-coisa, o homem-peça, o homem-instrumento, atentam contra a dignidade humana e ameaçam realizar a maior subversão de valores, deslocando a humanidade para o terreno das coisas que são reguladas como coisas, manejadas como coisas. Temos de denunciar esse perigo, essa deformação, essa inversão, essa inumanidade. É mister que aliemos os técnicos a uma visão concreta, a uma visão humana, como expoentes mais qualificados do homem no sentido técnico, não, porém, como usufrutuários do sacrifício humano, mas cooperadores mais experimentados ou mais sábios que amem prestar serviços à humanidade, para sua elevação e glória, e não para usá-la como um meio, ou servir a interesses inconfessáveis daquelas que desejam mais uma vez, escravizar o homem.

Essa é a nossa luta agora. Como temos afinidade com muitas organizações, que embora não expõem especificamente as nossas idéias, tem contudo, pontos de encontro conosco, porque também não desejam a brutalidade organizada em nome da ciência, nós nos unimos a eles e dentro desse âmbito estamos prontos a cooperar com eles64.”

Temas constantemente abordados em várias de suas obras. É do prefácio de li “Métodos Lógicos e Dialéticos” este trecho: “O que temos de fazer hoje é construir. Na realidade, o espírito destrutivo, o demoníaco, vence em quase todos os setores deste período histórico que vivemos e, sobretudo, neste século, que talvez seja cognominado pelos vindouros “século da técnica e da ignorância”, porque se há nele um aspecto positivo, que é o progresso da técnica, que chega até as raias da destruição, a ignorância aumenta desesperadamente, alcançando limites que a imaginação humana nem de leve poderia prever. Mas o que é mais assombroso é a auto-suficiência do ignorante, o pedantismo da falsa cultura, a erudição sem profundidade, a valorização da memória mecânica, do saber de requintes superficiais, a improvisação das soluções já refutadas, a revivescência de velhos erros rebatidos e apresentados com novas roupagens. Tudo isso é de espantar.”

Fez uma denúncia da falsa cultura que avassalava o mundo em “Invasão Vertical dos Bárbaros”, onde analisou os aspectos bárbaros em nossa civilização. 63 Esperava dar continuidade aos “Cadernos do Homem Livre “, que publicaria ensaios e estudos. Os números 2 e 3 ficaram prontos, porém, não foram editados. 64 Correspondência enviada ao “Centro de Estudos José Oiticica”: Rio de Janeiro em 17/06/1965, após o envio de vários exemplares de “O Homem Livre”.

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Pensamento filosófico

A primeira obra filosófica publicada, “Se a Esfinge falasse...”, teve originalmente o

título de “Homem, animal que interroga”. “O homem é esse ser anelante de saber. As idéias e teorias chocam-se dialeticamente, à procura de uma análise mais profunda”. Parte do princípio de que o que diferencia o homem do animal é a interrogação, a pergunta. “Perguntar é bem uma dimensão humana”. “Em face do cosmos, o homem procura explicá-lo, e então usa de recursos para vencer sua insuficiência. Cria a ciência, busca as resposta pela própria ciência que lhe confere um caráter sagrado. ‘De onde vem o homem?’ pergunta. A relatividade de nossas teorias, o caminho para a sabedoria é a obrigação do homem. A ciência permite dominar o mundo, mas a ciência para onde começam as perguntas transcendentais, que compete à metafísica responder.”

Seguiu-se “Realidade do Homem”, onde são expunha temas da filosofia existencialista; ambos saíram com o pseudônimo de Dan Andersen.

Ele relatou um fato pitoresco: ao assistir a uma conferência, em determinado momento, o conferencista, pôs-se a elogiar o obra “Se a Esfinge falasse...” e o seu autor, citando-o como um grande pensador estrangeiro, radicado no Brasil. Alguém mandou um bilhete ao conferencista informando-lhe que o autor encontrava-se no auditório. Feita as apresentações de praxe, o conferencista arrefeceu seu entusiasmo, ao ver que tratava-se de um brasileiro.

Este incidente testemunhava a nossa atitude colonialista, subordinada ao pensamento estrangeiro.

Em 1961 publicou a revista “Zaratustra” (Revista de Cultura). A maioria dos artigos eram escritos por ele, com pseudônimos vários65. Alguns deles constam do livro “Páginas Várias”.

Quando jovem dedicara-se a literatura escrevendo ensaios, aforismos, poesias, pensamentos, artigos, onde já estava presente uma notável fecundidade de idéias.

“Respeitar o que realizamos quando jovem é não profanar a juventude e as esperanças que foram nossas. Este livro não o escreveria hoje. O que há nele foi vivido numa época que se me afigura distante, mas que ao mesmo tempo parece tão próxima, porque muito do que hoje penso e do que hoje faço, tem sua gênese, naquela mesma juventude a quem desejo devotar a fidelidade de não modificar o que sentiu e o que viveu.

Leitor amigo, ao leres este livro, considera este meu testemunho, e sê justo...” “Os trabalhos que compõem estes livros foram publicados há mais de vinte anos em jornais e revistas nacionais, e também em livros, com pseudônimos vários, que então eu os usava. Muita das idéias expostas já pertenciam ao passado, mas, ao conservá-las aqui, presto a homenagem que devo a mim mesmo, a fidelidade ao pensamento já vivido”66.

65 Relação dos artigos publicados na revista “Zaratustra” com os respectivos pseudônimos: “A tríada do idealismo de Hegel ante a dialética antinomista” e “Temas de problemática” (Lázaro Brentano); “Apólogos, Fábulas e Aforismos” (Madhi Fezzan); “A Monotonia da Existência” (Odilon Gomes); “A Tragédia da Excepção” (J. de Almeida Brito); “O Homem e a Solidão” (Alcino Leal); “A Eternidade do Instante” (Lúcio da Silveira); “Escutai em silêncio” (Aquilino de Freitas); “Poemas sem ismos...” (Jerônimo Ferreira); “Meditação sobre a Fantasia como compensação da realidade” (Dan Andersen); “O Pequeno Burguês e a Cooperação Libertária” (Renato Lopes); “O efêmero das condições adversas” (Eduardo Braga); “A significação do processo “Kravchenko” o homem que escolheu a liberdade” (Dan Andersen). 66 A coleção Minimax era composta de : Luta dos Contrários, Vida não é Argumento, Casa das Paredes Geladas, Assim Deus falou aos Homens e O Homem que Nasceu Póstumo.

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No prefácio de “Filosofia e Cosmovisão” encontra-se uma explicação clara de seus objetivos: “...Um professor alemão, o primeiro a iniciar-me nos estudos da Filosofia, conhecedor do nosso povo, costumava manifestar sua admiração pela inteligência de nossa gente. Para ele, que percorrera tantos países, que ministrava lições em tantas universidades e escolas do Ocidente e do Oriente, era o brasileiro, o aluno mais vivo, mais inteligente, mais sagaz de raciocínio, e de mais profundas intuições que conhecera. No entanto punha uma restrição. Julgava-nos demasiadamente inquietos e desequilibrados quanto ao conhecimento. Afirmava-me ter encontrado grandes valores, homens de capacidade extraordinária, mas, em muitos aspectos, falhos de certos conhecimentos elementares, que eram como abismos entre cumes de montanhas. Atribuía esse desequilíbrio a natural pressa dos povos americanos e da falta de disciplina mais rígida no trabalho. Nessa época, considerava eu as suas palavras um tanto exageradas. Mas, com o decorrer do tempo, e através de aulas e inúmeras conferências, palestras e debates que empreendi, verifiquei assistir ao meu velho e venerando mestre uma grande soma de verdade.

Atribui-se esse novo defeito ao autodidatismo a que todos sem exceção, neste país, estamos sujeitos. Sempre fui um admirador dos autodidatas, porque um estudo apurado da história e da biografia dos grandes homens, revela-nos que entre os maiores criadores, o número de autodidatas é sempre maior do que daqueles presos a uma escolaridade rígida, quase sempre prejudicial a capacidade criadora.

Não seria, porém, esse apenas o fator decisivo, pois, outros poderiam ainda ser propostos. Foi considerando tais aspectos reais de nosso povo que, ao empreender os meus cursos, e depois decidir, a pedido de tantos alunos, transformá-los em livros, compreendi que não se deveria ministrar filosofia no Brasil, seguindo os métodos de povos que tem uma disciplina de estudo muito diferente da nossa. Por esta razão, sempre julguei que ao lado do tema mais profundo era mister considerar aqueles abismos de que ele me falava. Foi essa a razão que me levou, ao publicar este primeiro livro da série de meus cursos de Filosofia, a usar uma linguagem dentro de certo rigor filosófico, mas considerando, a exposição, esses abismos, e nunca pressupor o conhecimento, por parte do leitor, de certos aspectos elementares da filosofia, que devem e precisam desde logo ser esclarecidos.

E foi pensando assim que executei essa obra desde uma explanação mais simples até na Cosmovisão (segunda parte do livro), para tratar dos mais profundos temas de filosofia, embora ainda de forma sintética, com uma linguagem mais rigorosa.

É possível que muitos dos leitores, que já manusearam livros de filosofia e já tiveram contato com o pensamento filosófico, encontrem passagens demasiado simples. Mas esses formarão apenas uma parte dos leitores, e não a maior, e deverão compreender que, se assim procedo, é por considerar uma das características do nosso povo, o que me leva a usar um método que correspondia a nossa índole, e possa por isso mesmo, ser de maior e mais geral proveito. Nos livros sucessivos, que formam a série de minhas obras de filosofia, os temas passarão a ser tratados, já considerando o conhecimento do que é exposto neste volume, para poder avançar cada vez mais analiticamente no estudo de matérias, para encerrá-las em uma concreção global, que é o terceiro estágio do método que escolhi para o estudo da filosofia, e que a experiência já me mostrou ser o mais eficaz. Após o estudo sintético, segue-se a análise dos temas abordados abstratamente, para devolvê-los a concreção de que fazem parte, evitando assim, que o estudo da filosofia se torne, o que em geral tem sido, campo de lucubrações abstratas, para transformar-se numa ampla visão do mundo e numa metodologia para a própria vida”

Em 1953 surgiu a possibilidade de editar a Enciclopédia de Ciências Filosóficas e Sociais - seu grande projeto - pelo Instituto Brasileiro do Livro. Entusiasmado escreveu ao diretor da entidade explicando seu propósito.. Não teve, porém uma resposta positiva. A explanação feita

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na carta serve-nos de guia para entender como surgiu a idéia desta obra:67.”Quando moço, iniciado nas alegrias e tristezas, nas angústias e felicidades do conhecimento, meu pai me expunha as fábulas famosas e as explicava, para que lhes entendesse o sentido ético e humano, comenta-me muitas vezes que era triste para ele verificar que, se o homem conhecia progressos em certos campos, noutros estagnava desoladamente. E esses setores, dizia-me ele, era o da ética, o das relações humanas, e sobretudo o da filosofia. Costumava-se chamar a atenção para a verdadeira maneira de venerar o passado, a qual consistia em aceitá-lo, e levar avante o facho do conhecimento. Mostrava-me quanta sabedoria há nas fábulas e apólogos, que vinham de longínquas eras, perdidas origens da memória dos homens, mas ainda ali vivas a dar ensinamentos. “Precisamos continuar”, dizia-me ele, “Nosso caminho não tem fim, enquanto brilhe uma lágrima em olhos humanos...” E incitava-me sempre ao estudo, ao saber, a um ideal de cultura que havia sido o de nossa família, que já dera um Gaspar Dias Ferreira, um José Ferreira, um Santos Valente, um José Dias Ferreira, um Castelo Branco, e muitos outros. Havia que continuar, avançar, prosseguir...

Estas palavras construíram em um desejo de ilustração que como uma sede devoradora invadiu-me a alma e dominou-me totalmente.

Desde então procurei o que fazer nesse setor. E certo dia, ao ouvir uma aula de filosofia, de um professor que nela me iniciou, afirmava-me ele com tanta clareza a crise que se estabelecera no conhecimento, no saber epistêmico, que havia necessidade de mais uma vez tentar-se fundi-lo num único saber, sem divórcio, sem desconfianças, como sempre sucedera nos períodos mais altos da humanidade, e como depois reconheceria eu ao estudar o ciclo das culturas.

.Como seria possível fazer-se alguma coisa sem um método? O método, sim, era necessário achar o método. Desde então ficou para mim esta

interrogação exigente. O saber está estruturado em disciplinas particulares. Como torná-lo num só corpo, capaz de unificar os esforços e terminar de vez, ou pelo menos tentar terminar, aquela atitude absolutamente abissal dos séculos XVIII e XIX, e até do nosso, que levou cientistas a olhar com desconfiança aos filósofos e a estes a olhar com desprezo aqueles?

Analisava as divergências, verificava os argumentos, que eram solidamente apresentados. Mas o coração dizia-me sempre que não, que era preciso procurar e achar como reunir o estudo do imanente (que cabe à ciência) ao do transcendente (que cabe à filosofia). E se a ciência trabalha com juízos de existência e a filosofia com juízos de valor, haveria tal crise entre a existência e o valor que justificasse um divórcio que tantos desejam acentuar?

Subitamente um dia me surgiu um caminho. Sempre preocupara responder às perguntas que se formulavam. E se em vez de respondê-las, pensei, procurasse eu o porquê das perguntas? Em cada pergunta há já um anelo de certo responder, observei. E para chegar à análise das perguntas teria que penetrar na epistemologia. Teria que invadir o terreno das ciências da biologia, porque precisava procurar no mais profundo da vida o perguntar.

E desse trabalho ingente muitas coisas foram surgindo, porque não podia deixar de estudar a fisiologia e outras disciplinas afins à biologia, para alcançar o que me faltava para a disciplina filosófica. E foi subitamente que percebi que entre a ciência e a filosofia, o divórcio que se estabelecera, era meramente superficial e implicava apenas uma ignorância dos representantes de cada lado do saber sobre o saber do outro lado.

67 Carta enviada ao Dr. Augusto Meyer, Diretor do Instituto Brasileiro do Livro, em 22/04/1953.

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Resolvi, portanto, invadir o estudo dos textos filosóficos, ao mesmo tempo que me preocupava com o conhecimento da ciência em todos os setores. Acompanhado por alunos devotados (muitos são estudantes de engenharia, química, filosofia, etc.) pude coligir o material necessário para a fundamentação das teses que iria apresentar. Mas a preocupação epistemológica levou-me à construção da Noologia, disciplina, que logo estruturei, para estudar como funciona o conhecer humano e daí a “Simbólica”. E ao estudar a teoria do conhecimento, em face de funcionamento bio-psicológico, compreendi que uma teoria do conhecimento caberia uma teoria do desconhecimento, pois ao conhecer, desconhecemos. E o que desconhecemos é importante.

E como ampliar os meios do conhecimento? Lembrei-me logo que a ciência amplia os nossos meios com instrumentos que traduzem aos nossos esquemas constitutivos a realidade e graças a eles escapa, se enfrentada imediatamente, mas que surge mediatamente graças aos mesmos instrumentos.

Um órganun, portanto. O organum aristotélico não era falso, mas era incompleto. Examinei então quanto podia neste setor descobrir. Finalmente me surgiu a estruturação da decadialética e da pentadialética, a primeira trabalhando em dez campos com suas antinomias, e a segunda em cinco planos concretos, que me permitiriam desta forma colocar qualquer objeto de estudo, abstraído para a análise, dentro da sua concreção, permitindo que dele conhecesse o que é cognoscível seguindo esquemas que dispomos, mas também redutível a um maior conhecimento, desde que empregássemos outros esquemas, que a decadialética permitiria construir.

Ao chegar a este ponto, verifiquei que as diversas colocações filosóficas nada mais eram que perspectivas laterais, tomadas de um ou outros dos campos ou de suas antinomias ou dos planos, o que se verificará no decorrer da leitura da Enciclopédia.

Desta forma, verifiquei que, tomando concretamente o estudo dos diversos objetos particulares tornados abstratos pela conveniência da análise, as tendências estruturalistas, que se notam na filosofia e nas diversas ciências, encontravam um apoio importante, sem que em nada viessem a prejudicar o que de valioso havia nas afirmativas concretas de todas as correntes filosóficas do passado.

Não precisava, deste modo, desprezar mais o passado. E as palavras sábias de meu pai cresceram de valor dentro de mim, e compreendi que não era imprescindível abandonar a grande herança do conhecimento humano para citar algo de novo. Compreendi que a separação entre a ciência e a filosofia, e que parecia estabelecer um divórcio, uma crisis (abismo) entre ambas, não se fundamentava numa apreciação concreta, mas abstrata.

A ciência incorpora um saber ao saber do passado, cresce com, concresce, é concreta por isso, enquanto a filosofia substitui, exclui uma idéia por outra. Ora, o método empregado pela filosofia, por ser originalmente excludente, levaria à excludência, enquanto o da ciência, por ser includente, levaria à includência.

O problema portanto era o do método. Ora, a decadialética incluía, unia, concrecionava, e realizaria na filosofia o que sempre se desejou que ela fosse: um repositório do progresso de conhecimentos e não um mero saber ocioso e inútil, num velho repetir de fórmulas e de idéias, como já a proclamavam muitos, no intuito oculto de desprezá-la ou desmerecê-la.

As obras de Wertheimer, Kohler, Kruger, Ogden, Jaensch, Guillaume, etc. apresentavam algo novo para a psicologia. Mas não se podia deixar de reconhecer que a reflexologia, desde Bechterew, através de Pavlov, e Kostyleff, não se opunha àquela, desde que a decadialeticamente estudadas? Nem a teoria da assimilação de Piaget, nem os estudos de Wallon, nem as contribuições aparentemente mecanicistas do grupo dos psicólogos que acompanhavam Dumas em sua obra.

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E Peter, na Economia, mostrava ainda, como Grelling e Oppenheim na Lógica e Muller, na Biologia, e ainda Katz, Adrian e outros na Neurologia, que tal concreção se tornava possível, e os esforços enviados pelos cientistas se completavam com o que de concreto havia na filosofia. A estruturação da “Teoria Geral das Tensões”, onde os esquemas estruturais são estudados em seu aspecto ontológico, aplicável a todo o suceder, vinha, para mim cercar o trabalho analítico da Enciclopédia, que ora inicio a publicar.

É impossível, numa simples carta, expor o que virá no decorrer da obra. Mas creio ter dado uma visão clara do que se realizou neste trabalho, bem como o esforço que tive de dispender para alcançar esta concreção, que tenho absoluta certeza, só trará um benefício às novas investigações filosóficas, bem como nos dará mais uma prova da possibilidade de realização em nossa terra, liberta de certas imposições naturais do passado, de uma carga ancestral de ser teatro de uma realização tão ambiciosa como esta, e que efetuada passará a falar por sim mesma...”

Não teve uma resposta positiva e continuou a publicar sem contar com qualquer auxílio institucional as demais obras da Enciclopédia: “Psicologia”, “Lógica e Dialética”, “Teoria do Conhecimento”, “Ontologia e Cosmologia”, “Tratado de Simbólica”, Filosofia da Crise”, “O Homem perante o Infinito”, “Noologia Geral”, “Sociologia Fundamental e Ética Fundamental”, “Filosofia Concreta dos Valores”.

“Filosofia Concreta”, publicada em 1957, estabelece seu modo de filosofar: “Há duas maneiras de filosofar: a) deixar o pensamento divagar através de meras opiniões; b) ou fundá-lo em juízos demonstrados a semelhança da matemática. Esta segunda maneira é usada nesta obra, pois nela a filosofia não é abstrata, mas, concreta, fundada em demonstrações rigorosas. Trata-se de um novo modo de visualizar a filosofia. A Filosofia Concreta não é uma “síncrese” nem uma “síncrise” do pensamento humano. Não é um acumulado de aspectos julgados mais seguros e sistematizados numa totalidade. Ela tem sua existência autônoma, pois seus postulados são congruentes e rigorosamente conexionados uns aos outros. O valor do pensamento exposto neste livro não se funda no de autoridade várias da filosofia. A autoridade, e a única que é aceita, é a dada pelo próprio pensamento, quando em si mesmo encontra sua validez, a sua justificação, pois cada uma das teses expostas e apresentadas neste livro é demonstrada pelas diversas vias pensamentais que nele propomos”

Em 1959 editou “Métodos Lógicos e Dialéticos”, onde expõe a nova metodologia para guiar com segurança o estudioso pelo campo do saber com segurança. Certa vez explicou como chegara a esta metodologia: “Foi graças aos conselhos de um grande mestre que fui desenvolvendo e criando para mim uma metodologia que me permite partindo de uma pequena idéia ir construindo uma série de idéias. É o método que chamamos dialético concreto, o qual permite partindo de uma idéia fazer uma grande construção. Assim é natural que de um grupo de idéias eu possa falar longamente sobre elas sem me perder, e sem fugir propriamente da matéria, mas é um método que também ensino.

Isto foi me ensinado pelo meu mestre que foi aluno de um discípulo de Cuvier, e este discípulo de Cuvier falava muito a ele sobre aquele caso famoso da rótula. Cuvier com a rótula de um animal foi capaz de construir a fauna e a flora anti-diluviana. Na época todo mundo achou uma loucura, uma ficção científica, e depois com o tempo veio se comprovar que Cuvier tinha razão. Este discípulo inculcou a este meu mestre aplicar aquilo para a Filosofia, aquele método das comparações, etc., este meu mestre fez uma parte e me transmitiu como uma espécie de legado, que ele não podia levar avante. Era um filósofo alemão, muito meu amigo. Entregou-me e disse: “Você que é moço pode fazer isto, continue, leve isto avante.” E eu levei e fui fazendo. Isto me facilita até a memorização. Como eu tenho todas estas classificações já mentais é como um

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fichário na cabeça, de maneira que quando vou falar num assunto tenho onde buscar, mas é um hábito que qualquer um pode adquirir e que não quero só para mim, ensino para quem quiser aprender. Partindo de uma idéia nós podemos saber muito mais do que pensamentos, saber só partindo de uma idéia, é questão de procurar subordinantes, subordinados, colaterais, é uma metodologia toda especial. No início coloca-se num papel, depois que se acostuma, faz-se aquilo mentalmente num segundo. Quando já se tem o hábito então pode-se falar sobre o assunto e com propriedade. Não se pode, por exemplo, conhecer fatos contingentes, não é possível atingir por exemplo uma classificação zoológica, para os fatos contingentes, não, mas o que está subordinado, o que tem subordinação, partir por exemplo do conseqüente para o antecedente, aí se pode, tudo que possa remontar agora do conseqüente para o sucessivo. Pode estabelecer possibilidades, probabilidades, mas não pode estabelecer atualidade, a não ser que conheça as possibilidades do fato que sucedem aqui”.

Numa palestra referindo-se a dialética disse: “O método dialético é inegavelmente o método mais completo, é o melhor para

estudar, sobretudo na ciência, quando nos dedicamos a um estudo que pertence ao mundo da ação do homem, ao mundo do pragma, porque trabalhamos aí com entidades que excluem e portanto não podem ter aquele rigor da lógica clássica. Temos também o que chamo de decadialética. A decadialética é também um método prático de dialética porque é aplicada sobretudo na vida prática. Não precisamos trabalhar com a decadialética, por exemplo, nas questões especulativas, mas sim nas questões práticas. Quando estudamos os temas que correspondem a dramaticidade humana, a vida humana, estamos envoltos pelo axioantropológico, pelos valores humanos, e esses valores perturbam muito na própria apreciação dos fatos, porque os fatos passam a ter um determinado valor segundo a conveniência humana, nos seus aspectos estáticos, dinâmicos e cinemáticos, consequentemente as valorações são muito distintas e como é difícil afastar da vida prática, porque toda ela é um ato de vontade tendendo para um fim ou tendente para algo que é benéfico ao homem, afastar o axioantropológico, afastar o axiológico, há necessidade de, pelo menos, saber onde ele está presente, saber qual o grau de influência que ele exerce na apreciação dos fatos. Desta maneira a decadialética oferece um roteiro para todo aquele que desejar estudar um fato, por exemplo, social ou histórico, ou um fato, digamos econômico, não de economia pura, mas na economia e no seu desenvolvimento em função da história, da sociologia, etc., ele pode com este método evitar que as suas apreciações de caráter meramente axiológico possam perturbar uma visão mais clara dos acontecimentos. Muitos não compreenderam o que pretendíamos fazer com a decadialética, julgavam que estávamos querendo improvisar qualquer coisa, não, a decadialética é o resultado, é uma espécie de esquema em dez providências de tudo aquilo que é conveniente fazer quando se quer estudar um fato, ou algo que corresponda a vida prática e à filosofia prática.”

Sobre dialética deixou um manuscrito inédito “A Sabedoria da Dialética Concreta”, em dois volumes, um da parte teórica e o outro da parte prática.

No “Tratado de Simbólica”, trata o símbolo, tendo como ponto de partida o fato de que o símbolo é a linguagem universal do acontecer cósmico. Justifica a Simbólica como disciplina filosófica, pois, pode-se considerar todas as coisas no seu aparecer, na forma como se apresentam, como um apontar para algo ao qual elas se referem. Daí a necessidade do seu estudo. Nesse livro além de examinar as principais teorias sobre os símbolos, faz uma ampla análise do mesmo nas religiões, na arte, etc., acompanhado de uma dialética simbólica para interpretação. Partindo da polissignificabilidade do símbolo e de sua analogia com o simbolizado, favorece essa dialética um método de interpretação simbólica que, naturalmente, não pode se processar isoladamente, sem a cooperação de outros elementos, mas, apesar dessa complexidade, não

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impede que se torne mais fácil o papel da interpretação tão importante para os estudos de filosofia.

Durante uma aula, disse a respeito do livro: “...não o considero uma obra completa no assunto, é apenas uma sugestão de transformar a simbólica num capítulo da própria Ontologia e de torná-la desse modo uma disciplina filosófica, capaz de facilitar o estudo das religiões e também da estética, da mística, etc. Agora pretendo publicar trabalhos mais completos que irão ampliar aquele, sem que precise modificar nenhuma vírgula daquela obra, apenas ampliar com os estudos que ultimamente estou fazendo sobre simbólica onde atingi a solução de todos estes problemas, inclusive de como se fazer uma hierarquia e de como se compreender a simbólica nos diversos estágios.”

Na ocasião chamou a atenção dos alunos para a importância da simbólica na interpretação dos livros sagrados. A dialética simbólica, dizia ele, é um instrumento para auxiliar a hermenêutica. Baseando-se nela fez a interpretação do “Apocalipse de São João”

Pretendia organizar um curso de dialética simbólica e estender seus estudos, o que não chegou a realizar, deixando, porém, em esboço, através de aulas gravadas. De uma delas é este trecho: “De forma que a Simbólica, se a primeira vista e a impressão universal é de que ela oferece tremendas dificuldades para ser construída como ciência, para nós, contudo, depois de estudarmos a identificação e a analogia do símbolo, a ambivalência, a hierarquia, as referências segundo as esferas e segundo os graus histórico-econômicos do homem, a divisão dos símbolos em positivos e negativos, dos símbolos em aspectos superiores e inferiores, distinguindo claramente o símbolo da alegoria, o símbolo da metáfora, da quimera, somos capazes então de chegar até a uma construção, não só da semântica simbólica como também da sintaxe simbólica, a ponto de podermos com ela fazermos então uma verdadeira linguagem nova, que será não a linguagem do símbolo, mas a linguagem das interpretações simbólicas, isto é, dos conteúdos não só eidéticos noemáticos como também outros conteúdos, inclusive arquetípico que o ser humano contém e que estão na linguagem simbólica, que podem ser desse modo reduzido a uma espécie de metalinguagem. Vamos verificar então, que esta mesma metalinguagem será a metalinguagem a qual se reduz a ciência e a qual se reduz a própria filosofia que é a Matese. Veremos que a Matese no fim é a metalinguagem da própria simbólica, da própria ciência, da própria filosofia, inclusive até da religião.”

Publicou, em 1960, “Pitágoras e o Tema do Número”, visualizando o filósofo grego sob novos ângulos. Pitágoras tem suscitado as maiores controvérsias e seu pensamento caricaturizado por autores que não alcançaram sua genuína profundidade. Inconformado com esta atitude examinou o pensamento pitagórico desde as suas origens e, para consegui-lo entrou em contato com inúmeras organizações pitagóricas recolhendo todo o material possível.

No prefácio do livro “Pitágoras e o Tema do Número” explica o método usado: “Seguindo e utilizando sempre os métodos da Filosofia Concreta, que criei para com ela construir uma visão coerente e sólida do pensamento, cuja justificação ainda farei oportunamente, foi-me possível realizar obra de doxógrafo, sem porém fundar-me apenas em critérios objetivos, capazes de dar a solidez desejadas às premissas que minhas teses podem propor. Meu livro é mais obra de exegese, mas fundada no método que criei para o exame do pensamento filosófico, método que, para mim tem-se mostrado valioso e criador, e me tem permitido invadir com segurança os caminhos mais difíceis e também mostrar soluções e nitidez onde outros tem encontrado penumbra e confusões. Sobre o valor desse método, para os que me lêem, seu julgamento não será difícil, depois de penetrarem no estudo de minhas obras. Quanto aos que não me lêem, nada posso dizer-lhes nem tampouco eles sobre o que faço e o que me empreendo.”

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“Este livro, é, já, uma realização do emprego do meu método dialético-concreto, e as conclusões obtidas estão fundadas em bases reais e históricas, suficientes para assegurar a justeza das minhas afirmações, as quais sempre procuro demonstrar.”

Deixou uma obra inédita, os comentários aos “Versos Áureos” de Pitágoras. “Resolvi fazer uma edição dos Versos Áureos de Pitágoras com a tradução integral dos comentários de Hiérocles, porque, sem dúvida, não só por serem os primeiros comentários a chegarem até nós, como também, por seu imenso valor abrem campo para que despertemos em muitos setores a consciência de que a concepção que Pitágoras trouxe ao mundo, provinha de um pensamento mais longínquo certamente do qual encontramos raízes também em Melquisedec, e no mais profundo pensamento dos egípcios, que este pensamento vence as características do tempo e torna-se eternamente atual, apresentando a sua completa validez hoje. Aproveito os comentários realizados por outros autores, como Fabre d'Olivet, Paul Carton, etc., e faço uma espécie de síntese que, junto aos comentários de Hiérocles, acrescentando as minhas contribuições”.

O interesse pelas idéias sociais, já manifestado desde a juventude, foi o motivo que o levou a dedicar-se e aprofundar-se nas variadas correntes ideológicas, conquistando uma visão ampla, que se concretizou na colocação das questões sociais em bases filosóficas, fugindo das meras opiniões, que trazem como decorrência natural, a confusão de idéias. Publicou a coleção “Problema Social”, em 9 vols. A importância desta obra está na colocação e na nova visualização dos problemas histórico-sociais..

Do “Problema Social” retiramos esta exposição clara e objetiva na abordagem de temas sociais: “A sociedade nos obriga a ver o estamento não só em seus fundamentos sociológicos, mas também caracterológicos, éticos, econômicos, jurídicos e históricos. Permitem-nos também compreender as razões que a levam determinadas respostas, com tal ou qual intensidade, aos desafios, não só ecológicos como históricos e sociais, a predominância de certas tendências, que levam alguns povos a seguirem determinado rumo e não outro etc. Os trabalhos caracterológicos aplicados à história, que empreendemos em nossa obra, são ainda um bosquejo do que poderá ser feito por outros, que se dediquem mais a fundo ao que nós iniciamos, e mesmo mós, se nos sobrarem forças e tempo, pretendemos ainda desenvolver tais estudos que apenas esboçamos.

Em 1965 publicou “Origem dos Grandes Erros Filosóficos”, onde denuncia os velhos erros já refutados e que ressurgem em nossos dias, apresentando-se como novidades. Em “Grandezas e Misérias da Logística”, publicado em 1966, coloca a logística no seu verdadeiro lugar, denunciando aqueles que se dizem seus seguidores, mas que, na verdade, violentam as suas intenções, a fim de transformá-la numa arma para destruir os aspectos positivos de nossa cultura. Em “Erros na Filosofia da Natureza” esclarece os erros filosóficos surgidos no campo da Cosmologia e que poderiam ser evitados, com uma melhor cuidado no emprego lógico e dialético.

Uma de suas metas era organizar uma “Coleção de Textos Filosóficos”, com a tradução de textos originais de filósofos gregos com reexposição da matéria e comentários. Seriam obras utilíssimas, principalmente, para os estudantes de filosofia. Para manter-se fiel ao autor, consultou os mais famosos comentaristas e estudou o genuíno pensamento na própria fonte. Traduziu alguns diálogos de Platão dos quais somente foram publicados “Parmênides” com notas explicativas e “Protágoras” também com interpretação. De Aristóteles, “Das Categorias” e “Aristóteles e as Mutações” (Da Geração e da Corrupção das Coisas Físicas), com texto reexposto, acompanhado de notas explicativas e analíticas. A numeração especial possibilita o confronto com as edições latinas e aos textos gregos mais categorizados. Traduziu também “Isagoge” de Porfírio com notas e comentários.

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Já doente passou a gravar em fitas magnéticas que, datilografadas foram em parte por ele corrigidas . Gravou cerca de 50 fitas. Muitas de suas obras foram idealizadas enquanto proferia as aulas, pois trabalhava melhor no mundo das idéias quando as transmitia oralmente. Ele narra como lhe vinha a inspiração:

“...porque a idéia da Filosofia Concreta nasceu numa aula, foi assim espontânea. Eu dava aulas diárias e disse aos alunos: “ Vou suspender as aulas por uma semana porque neste momento tive uma idéia e vou escrever já.” Então escrevi naquele dia as duzentas e setenta teses uma atrás da outra, depois foi que desenvolvi a demonstração, porque elas vieram decorrendo de mim, assim espontaneamente, sem nenhuma busca, foi uma coisa espontânea. No ‘Tratado de Esquematologia’ as teses de psicologia também foram espontâneas, depois é que fui procurar as demonstrações que vinham a favor delas. Isto me surgiu numa véspera de carnaval, passei o carnaval escrevendo. No carnaval, eu reajo. Todos tocam samba, então eu toco Bach, fico ouvindo os cantos gregorianos, e aquilo me inspira, me cria um ambiente favorável e tudo me sai espontâneo. Depois é que fui procurar as demonstrações e o que a experiência me apresentava de favorável para justificar as minhas disposições. Não foi assim um trabalho, mas uma graça, uma coisa misteriosa...e o subconsciente foi realizando, até hoje ainda não pude compreender claramente... alguns pontos” Perguntaram-lhe se ficou num estado de abstração. Respondeu: “Não, comigo se deu assim simultaneamente, eu senti assim simultaneamente as teses, eu vi as teses que sucessivamente deveriam decorrer, eu as vi simultaneamente e passei para o papel sem nenhuma esforço. Mozart também dizia que construía um quarteto assim, via os quatro movimentos simultaneamente e depois o trabalho dele era mecânico, ele apenas passava para o papel aquilo que tinha se dado para ele já feito. Possivelmente com Bach também acontece, mas isso não se dá senão em determinados momentos. Eu tive três ou quatro momentos assim, que são as chamadas intuições, que popularmente se chama intuição, são estas intuições criadores e daí passei para o papel e depois o trabalho foi então de procurar elementos”.

Em 1967 iniciou a publicação das obras da “Matese da Filosofia Concreta”, que completavam o trabalho iniciado em “Filosofia Concreta”.

“Atualmente estou terminando o trabalho maior da minha vida, que é a obra de Matese Magiste, que é a tentativa de reconstruir a suprema instrução dos pitagóricos. “A Sabedoria dos Princípios” é o título do primeiro volume, seguindo-se “A Sabedoria da Unidade”, “A Sabedoria das Leis”, e assim sucessivamente, nos quais exponho o pensamento que julgo ser genuinamente pitagórico que antecede a tudo quanto se fez, e dá o fundamento mais profundo do saber, porque se desenvolve através de demonstrações rigorosas e apodícticas, suficientes para permitir a formação de uma nova linguagem, que possa unir os homens dos diversos setores do conhecimento, evitando os estragos que os especialismos está fazendo atualmente. Desta maneira, homens provindos de todos os setores do conhecimento humano, podem reunir-se num pensamento capaz de ligar, polimateicamente, tudo quanto o homem realizou, e oferecendo os fundamentos que Pitágoras desejou expressar, cujos trabalhos não chegaram até nós senão através de fragmentos e de obras esparsas e incompletas, que estamos lutando para reunir, graças à dialética matética, como chamamos, que é uma dialética concreta, que permite ao partir de um postulado válido de per se, ascender, pela subordinação, e descer também, pelo mesmo caminho, e buscar os colaterais, e, deste modo reunir concretamente um conjunto de idéias e de verdades, que estavam dispersas nos diversos setores”.

Certa vez perguntaram-lhe como chegara a esta sabedoria e ele respondeu: “Estou trabalhando e tenho a convicção de que consegui, consegui alcançar a esta

Matese que vai servir então de ciência arquitetônica, que poderá facilitar a compreensão de todos os setores terem uma linguagem comum, uma meta linguagem, uma sintaxe universal que pode

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dar a ligação de todas as ciências. Mas tem que ser tudo justificado, muito justificado, e talvez o trabalho que estou fazendo seja muito longo por causa disso, da justificação, excesso de justificação. Mas tem que ser, porque os homens são muito divididos pelas paixões, às vezes não convence um argumento de S. Tomás, não convence um argumento de Leibniz, então tem que buscar outros argumentos. Mas que é possível, não há dúvida, e é prometido na Bíblia, foi prometido por todas as grandes religiões. Na Bíblia há centenas de passagens que São Boaventura colecionou, onde há essa promessa, que é o que ele chama de “Ciência Christi”, a própria ciência de Cristo que é dada, prometida ao homem, com a qual o homem poderá alcançar o entendimento. E São Boaventura chega a dizer mais, que essa procura é piedosa e é anti-cristão não crer nessa possibilidade porque então é como que marcar para todo o sempre a impossibilidade dos homens se entenderem”.

Das obras da “Matese da Filosofia Concreta” foram editadas: “A Sabedoria dos Princípios”, “A Sabedoria da Unidade”, “A Sabedoria do Ser e do Nada”. Serão publicadas oportunamente: “A Sabedoria das Leis”, “A Sabedoria da Dialética Concreta”, “A Sabedoria dos Esquemas” (Tratado de Esquematologia), “A Sabedoria das Tensões” (Teoria Geral das Tensões).

Sobre o cristianismo deixou um manuscrito inédito: “Cristianismo, a religião do homem”, onde demonstra que o cristianismo é a única religião que não depende de raça nem de ciclo cultural, ela surge de uma revelação através do próprio homem. O cristianismo pede ao homem que seja perfeito naquilo que lhe é próprio, quer dizer, é a superação do homem. É a única religião que tem caráter ecumênico e poderá ser a religião do homem para todo o sempre, pois não depende dos ciclos culturais e das civilizações

Nos últimos anos dedicava-se, sobretudo, ao estudo da religião, com a intenção de publicar “Deus”(manuscrito inacabado), que culminaria todo seu pensamento numa síntese global, pois “...consideraria tudo que estou fazendo na minha vida sem valor se não chegasse a uma possibilidade de divulgar a idéia religiosa de uma maneira mais” sã e mais completa”. E mais adiante confessou: “O meu desejo foi sempre ter a minha volta pessoas capazes de um dia ajudar num trabalho de pregação religiosa, mas de pregação séria, independente das seitas, independentes das diversas igrejas, nesse verdadeiro sentido do cristianismo. a religião do homem, abrindo as portas, porque nós estamos hoje vivendo uma época de desenvolvimento técnico e de desenvolvimento científico, de desenvolvimento cultural em muitos aspectos, mas completamente esvaziada de espiritualidade e sem esta espiritualidade tudo isso é falho, tudo isso é fraco. Só o cristianismo nos poderá dar uma base que está nos faltando, o homem não pode viver sem religião”.

Já estava bastante doente quando teve o primeiro contato com a Faculdade Nossa Senhora da Medianeira, por intermédio do Prof. Padre Stanislaus Ladusãns, S.J., em novembro de 1967, que lhe solicitou um auto-retrato filosófico para sua pesquisa sobre a situação da filosofia no Brasil. Pretendia ampliar este auto-retrato posteriormente, porém, não chegou a realizá-lo68.

Nesta mesma faculdade conheceu o Professor Carlos Beraldo, S.J., que escreveu sua biografia para a Enciclopédia Filosófica Gallarate. 69.

Pretendia, em 1968, realizar um curso de extensão universitária, na Faculdade Nossa Senhora da Medianeira, sobre “Dialética Concreta”, porém seu estado de saúde não o permitiu. 68 Este auto-retrato foi publicado em “Rumos da Filosofia Atual no Brasil”, Edições Loyola, 1975, S.P. 69 “Enciclopédia Filosófica” (seconda edizione interamente rielaborata” Centro di Studi Filosofici di Gallarate – G.C. Sansoni Editora, Firenze, 1969.

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Era sua intenção retornar a ter um contato mais assíduo com a Ordem, através da Faculdade, como atestam estas palavras: “Graças a esta figura extraordinária que é o Pe. Stanislaus Ladusãns, S.J., surgiu em mim uma nova esperança, e a possibilidade de poder cooperar com homens bem intencionados para a realização desse vasto e árduo programa cultural e social em benefício do Brasil e da América Latina, que é da vontade de Deus e que V. Ex.. tão bem compreendeu70.”

Pe. Ladusãns, S.J., reconhecendo o valor de Mário Ferreira dos Santos procurou difundir sua obra enviando-a para várias bibliotecas católicas da Europa.71.

Ele declarou: “Estou realizando uma pesquisa científica sobre a situação atual do pensamento filosófico, a fim de constatar, com objetividade, em que ponto se encontra a Filosofia hoje no Brasil, como ela se desenvolve, que metas está visando e que objetivos deve atingir. Durante esta pesquisa científica, ainda em curso, descobri um Pensador de extraordinário valor – Dr. Mário Ferreira dos Santos, nascido no dia 3 de janeiro de 1907 e falecido no dia 11 de abril de 1968. A descoberta deste Filósofo solitário, dedicado a uma intensa atividade de pensamento e produção literária, surpreendeu-me não pouco e proporcionou-me a grata oportunidade de entrar em freqüentes contatos pessoais com ele, homem, que ainda não foi encontrado no Brasil72.”

Em 1974 saiu publicado o manuscrito “Brasil, um país sem esperança”, homenagem póstuma da Sociedade de Filósofos Católicos73.

A doença, porém, seguia seu curso inexorável e, em abril de 1968 não resistiu a mais um enfarte. Faleceu no dia 11, uma quinta-feira santa74.

PARTE II

Transcrevemos a seguir alguns tópicos do Auto-Retrato, publicado em Rumos da

Filosofia Atual no Brasil.75.

Sou natural do Estado de São Paulo, filho de pai português, de família de intelectuais e de mãe amazonense, de ilustre família cearense. Iniciei meus estudos num ginásio de jesuítas, onde cursei até os dezoito anos de idade, ingressando, depois, no curso superior, onde me formei em Direito e Ciências Sociais. Casei-me aos 23 anos, com D. Yolanda Lhullier dos Santos, então com 19anos, companheira fiel e sempre a estimuladora e inspiradora de meu trabalho. Tenho duas filhas, Iolanda e Nadiejda, ambas hoje casadas, dedicadas ao estudo, autoras de inúmeras obras que, com grande êxito, se expandem pelo país, algumas com mais de dez edições.

70 Carta enviada a Pe. Antonio Aquino, S.J., em 09/01/1968. 71 Citamos algumas instituições: Facolta de Filosofia “Aloisianum”, Gallarate, Itália; Facultad de Filosofia Alcalá de Henares, Madrid, Espanha: Universidad Pontificia Comillas, Madrid, Espanha; Collegio S. Roberto Bellarmino, Roma, Italia; Biblioteca do Teologado, Innsbruck, Áustria; Facultad de Teologia, Granada, Espanha; Facultades de Filosofia y Teologia, Barcelona, Espanha; Berchmanskolleg, Pullach, Alemanha. 72 Declaração do Prof. Dr. Pe. Stanislaus Ladusãns, S.J., 18/12/1968. 73 “Humanismo Pluridimensional”, Ed. Loyola, 1974. 74 A missa de 7º dia foi rezada pelo Pe. Stanilaus Ladusãns, na Igreja Imaculada da Conceição, Av. Brig. Luiz Antonio. Seu túmulo encontra-se no Cemitério Araxá. 75 Edições Loyola, São Paulo, 1976.

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Mantive sempre uma atitude de Independência e de liberdade, fugindo de toda participação, tanto quanto possível da vida política e das rodas literárias, por considerar dissolvente o primeiro ambiente e deletério o segundo. Em silêncio passei os anos estudando, dedicando-me aos trabalhos de advocacia e ao magistério particular, bem como ao ramo editorial, até que tivesse meios de poder editar minhas obras, que iniciei, primeiramente, lançando-as sob pseudônimos, doas quais possuo um número de mais ou menos quinze. Só por volta de 1945 comecei a editar alguns livros com o meu próprio nome. Procedia assim por saber que havia nascido num país onde domina o preconceito de que obras de Filosofia não podem surgir e ainda provocam a desaprovação de muitos, que não toleram a audácia de um brasileiro tentar fazer o que se julga apenas possível a intelectuais europeus. Na verdade, registrou-se que os meus livros editados com pseudônimos estrangeiros tiveram realmente grande venda, sendo que alguns atingiram até dezenas de milhares de exemplares. Mas quando em 1952 resolvi, definitivamente, enfrentar a realidade e editar os livros com meu próprio nome, contra a opinião geral de todos, que prenunciavam o completo malogro dessa iniciativa, fiz uma experiência impressionante. Não só obtive um êxito que foi muito além de minha expectativa – porque a venda atingiu a números que eu jamais poderia calcular – como muitas de minhas obras chegaram a ter, no decorrer dos anos, cinco, seis, nove, dez e até doze edições, alcançando a milhões de exemplares vendidos, o que, à primeira vista, pareceria impossível. Este fato impressionou-me vivamente, porque, durante todo esse período, não lancei mão de nenhuma demagogia publicitária, não solicitei a quem quer que fosse neste país a escrever sobre os meus livros, pois não enviei exemplares a ninguém, de modo a não constrangê-lo a escrever alguma coisa a respeito de minha obra. Meus livros foram, pois, entregues ao seu próprio destino, sendo que os leitores foram os únicos propagandistas que eles tiveram. Foram aqueles que os aconselharam a outros leitores e assim as obras foram tornando-se conhecidas e procuradas. Nunca foram vendidas, mas compradas; nunca obtive a menor boa vontade de quem quer que fosse e poucos livreiros se interessaram pela colocação de meus livros, pois a quase totalidade afirmava que não havia a menor procura de obras de Filosofia. Eram os leitores que as procuravam, eram eles que vinham à minha residência buscar os livros e que me escreviam cartas solicitando as obras. Foi assim que as vendi, sendo que a “Livraria e Editora Logos Ltda” e a “Editora Matese”, as editoras de minhas obras, estão hoje organizadas e são, praticamente, as únicas que as vendem, pois poucas editoras ou livrarias no Brasil trabalham com meus livros, mesmo porque não me interessa a distribuição dos mesmos, dadas as dificuldades de reedição, que são muito grandes. Dediquei-me, no decorrer de minha vida, ao estudo e durante grande parte dela, ao magistério particular. Nunca ocupei nenhum cargo em nenhuma escola, por princípio. Deliberei, desde os primeiros anos, tomar uma atitude que consiste em nunca disputar cargos que podem ser ocupados por outros. É uma questão de princípio. Sempre decidi, criar o meu próprio cargo, a minha própria posição e situação, sem ter de ocupar o lugar que possa caber a outro. O meu lugar seria exclusivamente meu, criado por mim para mim mesmo. Eis por que não disputo, nunca disputei, nem disputarei qualquer posição que possa ser ocupada por quem quer que seja. A minha vida, em síntese, é simplesmente esta. II. Qual a gênese e o desenvolvimento do seu pensamento filosófico e a sua atual estrutura? Meu pai, português de nascimento, caracterizava-se por acentuado ateísmo e por uma marcante tendência anti-clerical. Revelava, em todas as ocasiões, a sua oposição ao clero. Entretanto, tendo eu, desde cedo, mal aprendera a ler, me interessado por temas filosóficos (e a consciência que tenho de mim mesmo nasceu da colocação de um problema filosófico que tentei resolver), um dia

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meu pai me chamou e disse: “Meu filho, para teu bem vou fazer uma coisa que vai escandalizar os meus amigos: tu vais estudar com os jesuítas”. No dia seguinte, dirigiu-se ao ginásio dos jesuítas e, segundo o que ele me relatou depois, disse-lhes: “Todos sabem que sou adversário da Igreja Católica e que a tenho combatido desde moço, mas sei que, para educar, vós, jesuítas, sois os mais capazes. Meu filho revela propensão para temas filosóficos; não quero exercer sobre ele a minha ação. Julgo que sois mais competentes do que eu para guiá-lo no conhecimento. De minha parte, prometo-vos que, em casa, respeitarei sempre as suas idéias”. Declaradas estas condições, fui aceito. O resultado foi que meu pai passou a ser mal compreendido pelos companheiros do grupo que ele dirigia, que julgaram a sua atitude uma verdadeira defecção, o que o levou a afastar-se totalmente das atividades anti-clericais e ateístas. Com os jesuítas, desde o início, recebi a orientação que me aproximou da Filosofia Positiva, dela fazendo a espinha dorsal da estrutura filosófica que hoje tenho: a Filosofia Positiva e Concreta. Positiva no sentido da Filosofia que parte e permanece na afirmação, no que constrói, que pertence a todos os grandes ciclos culturais da humanidade, mas que encontrou o seu desenvolvimento máximo no pensamento grego e a sua coroação no pensamento ocidental, sob as linhas sem dúvida criadoras e analíticas da Escolástica. Não sou escolástico nem neo-escolástico, porque sigo também outras idéias, aparentemente afastadas, mas que conciliam, numa síntese, aquele pensamento com o que provém do pitagórico-platônico, fato que exponho e demonstro em meus livros. (A III parte trata da relação das publicações, que se encontra nesta monografia).

IV. Missão da Filosofia na vida cultural brasileira hodierna Posso colocar-me na seguinte posição: nós, brasileiros, por vivermos materialmente o

universal humano, por não termos compromissos históricos que pesem demasiadamente sobre os nossos ombros, nem tampouco compromissos filosóficos, somos um povo apto para uma Filosofia de caráter ecumênico, uma Filosofia que corresponda ao verdadeiro sentido com que ela foi criada desde o inicio.

Parto da posição pitagórica: Pitágoras, diz-se, afirmou que era um amante da Sabedoria (sophia), da suprema Sabedoria, que cointuímos com a própria Divindade. Este afã de alcançá-la, os esforços para atingi-la, os caminhos que percorremos para obter essa suprema instrução (daí chamá-la de Mathesis Megiste, que é a suprema instrução), todo esse afanar é propriamente a Filosofia.

Assim, posso admitir que há vários caminhos, embora só haja um caminho real. Como fundamentava Pitágoras, repetido depois por Aristóteles, que a única autoridade na Filosofia é a demonstração, sendo que esta deve ser apodítica, e, se possível, com juízos necessários e até exclusivos, a Filosofia construída deste modo só pode ser uma: positiva e necessariamente concreta, que é a posição que tomo aqui.

Podemos viver o universal, no sentido puramente quantitativo, os modos de ver e de sentir dos diversos povos, mas não podemos permanecer na situação de ser um povo que recebe todas as idéias vindas de todas as partes, que não possa encontrar um caminho para si mesmo; temos de criar este caminho. A minha luta é esta, dar solução aos inúmeros problemas vitais brasileiros da atualidade, porque a heterogeneidade de idéias e posições facilita a de soluções, das quais muitas não são adequadas às necessidades do Brasil. O tema é vasto e exigiria um trabalho especial.

V. Que fazer para que a Filosofia atinja as grandes massas populares e a juventude brasileira?

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Fazer a Filosofia atingir as grandes massas populares será em primeiro lugar, obra que se cingirá a descê-la ao baixo grau de cultura de nossas massas populares. Precisamos estudar o que devemos fazer para erguê-las até à Filosofia, o que só poderá ser feito através de um desenvolvimento da cultura nacional – em linhas distintas das atuais, que tendam à Filosofia Positiva e não à Filosofia negativista e niilista que penetra em nossas escolas.

Quanto à juventude brasileira, este é o mais grave de nossos problemas: somos um país constituído de jovens, que formam a sua quase totalidade. Dado o baixo grau de cultura que temos, nossos estudantes passam a formar uma elite intelectual, o que demonstra a inferioridade em que nos encontramos. Na História, a juventude sempre é o que decorre da sua própria natureza, apresentando aspectos positivos e negativos. Positivos, pela sua capacidade de ação e de idealismo; mas negativos, pela sua irreflexão, pelo seu despreparo e apressamento, que a leva a cair, facilmente, nas malhas dos grandes agitadores e a servir aos interesses de demagogos e políticos. Em todas as épocas da humanidade, uma parte da juventude mais ativa tendeu à luta a favor das más causas, facilitando-as. Foram jovens que destruíram o Instituto Pitagórico, condenaram Sócrates, perseguiram Anaximandro, Aristóteles, assassinaram Hipátia de Alexandria e perseguiram Santo Alberto, S. Tomás de Aquino, S. Boaventura, quando mestres na Universidade de Paris; que uivavam pelas ruas pedindo a cabeça de Dante, de Savonarola, de Giordano Bruno; que acusavam Pasteur de “charlatão” e atiravam pedras em Einstein. Esses jovens são ativos, eficientes na sua parte destrutiva. Mas há também uma juventude construtiva. Então, o que nos cabe fazer é orientar a juventude brasileira, dar-lhe suficiente sabedoria: clara, positiva, concreta, de modo a imunizá-la contra as tendências niilistas, para que possa pôr a sua capacidade de ação e de idealismo em algo concreto que beneficie o país. Fora disso, nada dará resultado.

VI. Quais são as correntes filosóficas que a reflexão filosófica deve levar em conta hoje?

Propriamente, julgamos que todas, porque encontramos hoje, na reflexão filosófica, a restauração ou o ressurgimento de velhos erros já refutados há séculos e milênios, que passam por inovações extraordinárias para aqueles que ignoram as aquisições do passado. É necessário, assim, revisar tudo, para mostrar que muitas novidades atuais nada mais são que velhos erros já refutados, travestidos de “verdades superantes”.

VII. Dados do progresso das ciências experimentais imprescindíveis para a reflexão filosófica

Como a pergunta exigiria uma análise longa, sintetizar aqui o que penso, torna-se, para mim, um trabalho mais difícil do que expor as grandes contribuições que a ciência traz para as novas especulações filosóficas. Não que esta venha modificar as linhas mestras da Filosofia Positiva e Concreta; veio, ao contrário, robustecê-las, mas trouxe contribuições que permitiram abrir campo não só para novas análises, como também para melhor colocação de outros problemas, além de uma revisão da Metodologia, sobretudo na parte da Dialética Concreta. Trata-se da Dialética que possa de melhor modo aplicar-se à análise especulativa, para que ela não se torne meramente abstrata e sem correspondência com a realidade concreta. Basta que salientemos três pontos importantíssimos da ciência moderna. Primeiro, as pesquisas em torno da estrutura da matéria sensível, que levaram a ciência a penetrar na constituição da matéria, afastando-se o conceito de matéria do século dezenove. Temos, assim, uma visão muito mais profunda e ampla do que aquela que os filósofos anteriores possuíam, também a Filosofia Positiva de séculos anteriores, aproximando-se a passos gigantescos da concepção que os pitagóricos haviam apresentado, e que fora considerada por muitos como extravagante, tornou-se muito mais compreensível. Naturalmente, se alguém considera que o número é apenas o da

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matemática vulgar, o da extensão, da quantidade, ou o esquema da participação quantitativa, é lógico que a definição pitagórica de que as coisas são números passa a ter um sentido demasiadamente brutal e inaceitável. Mas no momento que se compreender que número não é apenas isso, mas todo o esquema de participação de qualquer espécie de unidade, porque é a manifestação da unidade sob todos os seus aspectos e, portanto, sob todas as formas manifestativas em que se exija o numeroso e, portanto, participado, participante e logos da participação e que, segundo o logos, existem tantos números quantos logoi de participação, já muda completamente o sentido e então poder-se-á compreender que, segundo todos os possíveis aspectos em que se possa tomar a unidade, podemos construir matemáticas. A ciência moderna, graças à penetração da Matemática, de início na parte quantitativa e depois no qualitativo – como se viu nas graduações – e nos relacionais – como se vê nos funtores – caminha hoje, inevitavelmente, para uma penetração cada vez maior no caminho que já fora percorrido pelos antigos pitagóricos.

O progresso científico processou-se e firmou-se na medida em que a ciência se matematizou; a ciência, por outro lado, separou-se da Filosofia, não devido a essa matematização, mas em virtude dos filósofos, que não compreenderam bem essa matematização, que deveria ter permanecido no campo da Filosofia Positiva, se realmente fosse concreta. Por isso, o aparente abismo hodierno entre Filosofia e ciência pode perfeitamente ser ultrapassado, flanqueado pela Filosofia Concreta; é o que estamos fazendo com as nossas obras, apesar de muitos julgarem ser impossível a um brasileiro tentar fazê-lo.

Segundo, ainda no campo da pesquisa da estrutura da matéria, a descoberta das tensões, sobre as quais os físicos modernos, estarrecidos ante a sua realidade, procuram escamoteá-la, sem poder enfrentar, devidamente, a implicância que a aceitação desta realidade exigiria, e que os levaria a uma especulação filosófica para a qual não estão preparados.

A terceira contribuição importante é a referente à genética, que dá novos subsídios para a melhor compreensão do homem, para novos estudos antropológicos e uma nova reflexão em torno da significação do ser humano.

Poderíamos citar inúmeros outros aspectos, que também são imprescindíveis para a reflexão filosófica. Aliás, são tantos, que não caberiam, naturalmente, no espaço que temos para responder. O que queremos apenas salientar é que devemos compreender que, das causas às leis e aos princípios de cada ciência, podemos alcançar uma sabedoria que está acima de toda ciência, uma sabedoria como a estudaram os grandes pensadores de todos os tempos, que é a “Décima Ciência” dos antigos, de que nos falava São Boaventura.

Essa Ciência, cabe-nos construí-la; será a metalinguagem do homem, unindo todos os especialistas numa visão global. Essa construção é a nossa grande tarefa atual, para que possamos aproveitar as grandes contribuições da ciência na elaboração de uma visão filosófica mais completa, mais perfeita e mais atuante apara um melhor futuro da humanidade. Assim abriremos campo para novas análises, não mais as que colocavam mal as questões, de modo a torná-las, por isso mesmo, insolúveis e estéreis suas disputas, mas lançando novas disputas num campo mais fértil, mais criador, sob aspectos mais seguros, que poderão abrir ao homem novas perspectivas, com dados extraordinários, em benefício da cultura do homem de amanhã. É diante deste horizonte, ante esta aurora que se anuncia, que me anima o que tenho realizado, muito embora eu não seja compreendido por muitos daqueles que se dizem amantes dessa sofia, a Matese, a sabedoria, a intuição sapiencial.

Posso, agora, completar a minha resposta ao item IV, dando, assim, o sentido da reflexão filosófica que se pode atribuir ao pensamento brasileiro, se ele quiser ser genuinamente filosófico. Todos aqueles que, no Brasil, revelaram que possuíam mente filosófica – e não foram

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muito numerosos, porém brilhantes – tenderam sempre para um pensamento de caráter sintético, isto é, não ficaram totalmente presos Às correntes filosóficas européias e dependentes delas. Sempre houve, entre nós, o desejo de abarcar o universal e esta característica é naturalmente justa e própria de um povo que vive em si mesmo este universal. Por isso, o Brasil é, dos países atualmente existentes, mais capacitado para uma Filosofia universalizante ou, pelo menos, para uma nova linguagem filosófica, capaz de unir o pensamento que divergiu tão profundamente no campo já esgotado do pensamento europeu. Aqueles que não pensam assim, que não admitem essa possibilidade para nós, que continuem vivendo o seu modo de pensar. Nós preferimos, porém, divergir.

VIII. Colaboração da Filosofia para humanizar a civilização Esse item pode-se dividir em três: 1º) a humanização da civilização atual; 2 ) a

evidenciação do valor da pessoa humana e 3º) a contribuição para a paz interior e felicidade do homem.

Primeiro: hoje, sobretudo no mundo livre, graças ao surgimento de um desejo

ecumênico de aproximação dos homens, a humanização da civilização pode ser obtida – em parte, naturalmente – pela colaboração da Filosofia, pela revisão honesta de todos os grandes autores do passado, que foram caricaturizados, falsificados e apresentados num sentido que não é realmente o da sua Filosofia. Poderíamos citar aqui, desde os pitagóricos até o século passado, autores que precisam ser revisados e reestruturados, para evitar-se aquelas “fables convenues”, aquelas mentiras históricas, os mitos e as interpretações falsas que se fazem da sua obra, com o simples intuito de denegri-los ou de favorecer outras posições. Devemos tomar a seguinte posição: procurando primeiro tudo o que nos une, depois pensemos em estudar o que nos separa, para ver se, o que nos separa, pode sofrer modificações ou acomodações, que permitam que aquilo que nos une, fomente a humanização da própria civilização. Daí decorreria, pois, inevitavelmente, a segunda parte, sobre o valor da pessoa humana que, sem dúvida, sofreu, neste século, devido ao desenvolvimento dos totalitarismos, uma afronta à sua dignidade. De todos os lados surge este tema, que pode e deve ser reestruturado em termos positivos e concretos. Finalmente, resultaria, então, a terceira parte, porque a paz, a tranqüilidade interior, a serenidade do espírito só podem ser alcançadas quando a mente assenta plenamente na Sabedoria, alcançando aquelas verdades, que estão ao nosso alcance e que são o fundamento de nossa verdadeira felicidade.

Seguimos em suma, o preceito de Pitágoras: “Ama a verdade até o martírio; não ames, porém, a verdade até à intolerância”! Procurando o que nos une realmente com todas as outras correntes e posições filosóficas, podemos abrir caminho para uma compreensão nos aspectos em que encontramos diferenças, que, muitas vezes, são apenas acidentais e não aptas a justificar uma separação profunda. Esse já seria um caminho de maior aproximação entre os homens, porque, na medida em que nos dedicamos à leitura dos textos, vamos compreendendo a ação nefasta dos intermediários. Sabemos que, na Filosofia e temos milhares de exemplos para citar, os intermediários, os discípulos, em regra geral, falsificam a obra dos mestres segundo determinados interesses. Os adversários caricaturizam segundo outros interesses, e o resultado é a deformação total do verdadeiro pensamento do autor. A obra apresentada de segunda, terceira ou quarta mão está completamente desfigurada, o que permite ao autor um ataque fácil, pois não é difícil destruir caricaturas. Há casos, na Filosofia, em que autores tiveram suas obras refutadas antes de as terem publicado, eram, pois, obras conhecidas só pelo autor. Muitos livros meus foram “refutados” antes de serem publicado, pelo simples fato de eu pretender tratar de tal ou qual matéria. Sem nem ao menos saberem qual a minha verdadeira posição num assunto, já

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haviam adversários para refutá-los. Não em público, porque isso eles não têm coragem de fazer, mas nos “corredores”.

IX. A filosofia nacional e o pensamento filosófico estrangeiro Quando hoje se visita Portugal e se vê qual a atitude predominante neste país em

relação ao seu patrimônio filosófico, espanta verificar a completa ignorância sobre o que de grande já se realizou na Filosofia Portuguesa. Atualmente, nada se estuda, nas escolas, da Filosofia Portuguesa dos séculos XV, XVI e XVII. Parece que Portugal nada realizou; desconhece-se que, por quase dois séculos, a Filosofia Portuguesa imperou no mundo. Desconhecem-se autores como: Petrus Hispano; Antonio a Santo Domínico,.O.P.: Francisco Suárez, S.J., que embora espanhol, viveu grande parte da sua vida intelectual em Portugal, onde adquiriu o seu saber, além dos outros dois Francisco Soares, lusitanos; Martim de Ledesma, espanhol de origem, cuja formação intelectual realizou-se igualmente em Portugal; Francisco a Cristo, O.S.A., e Egídio da Apresentação, .O.S.A, Andréias de Almada, S.J. ; Ludovico de Sotto Mairo, O.P.; Gabriel da Costa; Hector Pinto, O S.; Hieron; Francisco da Fonseca, O.E.S.A; Manoel Tavares, da Ordem carmelitana e Francisco Carreiro, da Ordem cisterciense; Jorge O Serrão, S.J.; Ferdnando Peres, embora nascido em Córdova, foi outro que adquiriu a sua cultura em Portugal; Ludovico de Molina, S.J., nascido na Espanha, viveu, contudo, a maior parte do seu tempo em Portugal, onde estudou e foi discípulo de Pedro da Fonseca, S.J., o Aristóteles português; Petrus Luís, S.J.; Antônio Carvalho, S.J.; Baltazar Álvares, S.J.; Hieronimus Fernandes, S.J.; Gaspar Gonçalves, S.J.; Ludovicus de Cerqueira, S.J.; Gaspar Vaz, S.J.; Diogo Alves, S.J.; Francisco de Gouvêa, S.J.; Ferdinando Rebelo, S.J.; Gaspar Gomes, S.J.; Benedictus Pereira, S.J.; Sebastião de Couto, S.J.; Blásio Viegas, S.J.; Emanuel de Góis, S.J.; Cosmas de Magalhães, S.J.; Pedro da Orta, S.J.; João de São Tomás, O.P., para citar apenas alguns, Portugal nos deu esta floração de filósofos, afora os mais conhecidos, como Sanches e outros, porque correspondem à atual maneira de filosofar no mundo moderno.

Pergunta-se: Pode-se falar numa Filosofia de Portugal ou apenas numa Filosofia em Portugal?

Respondo: Pode-se falar, sim, numa Filosofia de Portugal e também numa Filosofia em Portugal.

Nós, brasileiros, contudo, por um espírito de colonialismo passivo, que nos domina até hoje, não cremos em nós mesmos. Só damos valor àquilo que tem origem estrangeira, e não seja de Portugal, porque também esta procedência não goza de nossa admiração. É natural, pois, que falar numa Filosofia Nacional cause manifestações de completa descrença. Não acreditar que ela existe, nem tampouco que possa surgir, é atitude geral. Ainda hoje, “famosos professores de Filosofia” em Portugal dizem que é impossível criar-se uma Filosofia autóctone naquele país. Para o português, o que vale é: “Penso, logo não existo” ou “Existo, logo não penso”. Podemos dizer que existe uma Filosofia no Brasil, mas se quiséssemos realmente falar numa Filosofia do Brasil, tal afirmação exigiria exame. Não conhecemos obra de criação propriamente peculiar. Se estamos tentando realizar algo nesse sentido, não podemos afirmar, por motivos óbvios, que o seja. Podemos dizer que, pela nossa completa libertação de um passado metafísico, filosófico, histórico, que pese sobre nós e entrave as nossas possibilidades de ação, estamos em condições de criar uma Filosofia Ecumênica, uma Filosofia que seja realmente a Filosofia, por entre os muitos modos de filosofar.

A heterogeneidade nas modalidades de filosofar surge nos períodos de predominância do empresário utilitário no contexto de uma cultura. Quando este predomina, prevalece a moda que penetra em todos os setores: na Filosofia, na Arte etc., como acontece no mundo atual. Esta variação tremenda de idéias, as quais surgem de todos os lados, não revela nenhuma pujança; é

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ao contrário, um índice de fraqueza, como a do período final da cultura grega e alexandrina. A Filosofia Positiva (fundada na positividade do ser, que alcança a perenidade, porque atinge as leis eternas) e Concreta, precisamente, porque, captando estas leis, relaciona todos os matizes de todos os aspectos formais – para dar-lhes uma unidade superior- é necessariamente Concreta, embora não no sentido vulgar do termo. A Ciência, felizmente, conseguiu libertar-se da moda, como o fez a Matemática; por isso, como se construiu uma Matemática, uma Ciência, também se pode construir uma Filosofia.

Em que o pensamento brasileiro pode beneficiar-se do pensamento filosófico estrangeiro; reunindo o que há de positivo em todas as grandes realizações, provenham de onde provierem, construindo, depois, uma nova concreção e oferecendo-a ao mundo. Esta é a única possibilidade que nos cabe e que estamos em condições de realizar, muito embora a maioria de nossos intelectuais não creia nisto e negue, terminantemente, que tal seja alcançável por nós, açulando-se com sanha contra quem tentar fazê-lo.

X. Deve abrir-se a reflexão filosófica para uma visão transcendental da realidade, na perspectiva das razões metafísicas?

Sem uma visão transcendental da realidade não pode haver Filosofia, porque se esta se distingue da Ciência por dedicar-se esta ao estudo das causas próximas e a Filosofia às causas primeiras e últimas, fatalmente esta deverá ter uma visão transcendental da realidade ou, pelo menos, tocá-la, abordá-la. Ora, além das causas primeiras e últimas, temos de estudar os princípios, objeto fundamental da Mathesis Megiste – dos pitagóricos que chamamos Matese em português – cuja elaboração estou realizando em obra especial, que é a Axiomática baseada em Boécio. É a Décima ciência dos pitagóricos, a Contemplação sapiencial de São Boaventura, a Sapiência de Santo Tomás etc.

Esses princípios são matéria que constitui, propriamente, o que em todos os ciclos culturais, em todas as altas religiões se chama de Sabedoria: Sabedoria infusa ou Sabedoria em que o homem participa da Divindade, ou ainda a própria Sabedoria divina que o homem pode abordar, tocar e na qual consegue penetrar. São temas que, naturalmente, exigem discussões sobre os seus principais aspectos. Mas o que é inegável, e não poderá deixar de abranger nenhuma visão filosófica em profundidade, é que há princípios eternos, leis eternas, que dominam todas as coisas, as quais não devem ser confundidas com as leis naturais nem com as da ciência. Este estudo levará, inevitavelmente, a uma visão transcendental da realidade, e sem ele não se faz Filosofia em profundidade, mas apenas de superfície. Esta tendência, a de uma Filosofia que não ultrapassa a imanência da esquemática – que o homem pode construir apenas dentro de sua experiência mais vulgar – predomina no mundo moderno.

XI. Qual é a íntima conexão entre a posição gnosiológica, metafísica e ética; entre a teoria e a prática?

Parece-nos que aqui há duas perguntas: lª) a que interroga sobre íntima conexão entre a posição gnosiológica, metafísica e ética e 2ª) a íntima conexão entre a teoria e a prática.

Responderei à primeira, depois à outra. As dificuldades no campo da Gnosiologia, da Metafísica, inclusive no da Ética, surgem naquele filosofar que coloca o homem quase como um ser estranho ante o universo, o qual é impermeável para ele. Coloca, assim o homem numa situação de ser completamente ilhado, bloqueado, sem a menor possibilidade de penetração mais profunda. As conseqüências deste pensamento pessimista, negativista, são as seguintes: não é possível, com os nossos meios cognoscitivos, alcançar o que nos transcende e dar, também à própria Ética, uma visão transcendental. Desta forma existe a tendência a considerar todo o filosofar do homem apenas como uma obra humana -–restringida, portanto, aos limites de nossa experiência – fundamentada nos dados de nossos sentidos e meios limitados de conhecimento.

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Chega-se, ademais, à conclusão de que todo e qualquer esquema que construamos jamais corresponde à realidade que nos ultrapassa. Estamos em pleno agnosticismo, ceticismo, pessimismo, ficcionismo, pragmatismo, materialismo, niilismo, “desesperismo”; são conseqüências que surgiram do filosofar moderno. Portanto, inegavelmente, a reflexão filosófica deve abrir-se para uma visão transcendental da realidade, sob pena de nos perdermos em armadilhas feitas por nós mesmos, afirmando uma deficiência que, na verdade, não temos.

A segunda parte da pergunta é importantíssima. Surgem nos gregos as discussões em torno da teoria e da prática, da Filosofia e da Ciência Especulativa, da Filosofia e da Ciência prática. Avassalaram a atenção dos filósofos de maior responsabilidade intelectual e, apesar dos grandes trabalhos realizados – que fazem a nítida distinção entre a teoria e prática – que chegaram até nós, a maior parte deles é completamente desconhecida para aqueles que não tem nenhuma ligação com a Filosofia Positiva e Concreta, a qual pertence aos grandes ciclos culturais da humanidade. Resultado: estamos hoje vivendo uma completa confusão entre teoria e prática. Estabelece-se determinadas proposições teóricas, julgando-se que elas são perfeitamente práticas e vice-versa. Algumas proposições, extraídas exclusivamente da prática, passam a constituir verdadeiros axiomas teóricos. O resultado é que vivemos hoje num mundo de utopias e quimeras; como conseqüência, há desilusões, cujo resultado final é desespero.

XII. A Filosofia é uma ciência objetiva ou uma produção pessoal, puramente subjetiva, do pensamento?

Aqui está um ponto de partida, verdadeiro divisor de águas. Desde o momento em que nos coloquemos na posição de quem pensa que a Filosofia é mera produção pessoal, puramente subjetiva do pensador, pomos aquela no campo da Estética. Mas se admitimos que a Filosofia é uma ciência objetiva, isto é, uma busca humana da sophia suprema, que nos ultrapassa e transcende, ela adquire uma feição completamente distinta. Em todos os ciclos culturais, a Filosofia Positiva e Concreta é uma ciência objetiva. Em todos os momentos de decadência ou refluxo, que são vários, ela se torna puramente subjetiva.

A Filosofia Moderna está caindo no subjetivismo. Vimos até a tendência de um Heisenberg querendo colocar a própria Ciência no subjetivismo, pela sua teoria da indeterminação. Há necessidade de esclarecer-se, sobretudo para aqueles que querem fazer Filosofia, o seguinte: se desejam fazer obra puramente subjetiva, dediquem-se à Estética e deixem em paz a Filosofia, assim como se pede aos positivistas que façam Ciência e não Filosofia, porque são coisas que devem ser distinguidas, cuja confusão só atrasa o progresso intelectual da humanidade. Filosofia exige demonstração e não meras asserções. Ademais, não devemos confundir filósofo com pensador que também trata de Filosofia – e muito menos ainda com professor de Filosofia. Em nossa época, o professor já se julga “dono” da Filosofia e, neste caso, há o perigo de se pensar que o fim é uma Filosofia de professores para professores de Filosofia.

XIII. Que pensar sobre o problema do ateísmo contemporâneo? Este tema é de uma vastidão tremenda, já que o ateísmo contemporâneo não surge a

rigor de uma especulação filosófica, mas sim, de certas decepções de caráter mais ético do que filosófico. A meu ver, o ateísmo não surge, propriamente, em torno do Deus Uno e de seus atributos, mas, em torno dos atributos do Deus Treino, ou Deus pessoal ou dos atributos morais de Deus. Não conheço nenhum trabalho, de nenhum ateísta, que se limite a atacar, especificamente, o Deus Uno. Conheço agnósticos e cépticos, mas não ateístas que tomem uma posição definitiva, negadora da possibilidade de um Ser Supremo. O ateísmo é sempre o produto de uma má colocação do problema de Deus. Como “na Filosofia não há questões insolúveis, mas apenas mal colocadas”, o ateísmo moderno parece uma questão insolúvel, porque é mal colocada.

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Todas as ocasiões em que tive a oportunidade de me encontrar com ateístas, bastou-me pedir-lhes que descrevessem o que entendiam por Deus, para, nessa descrição, verificar quais as razões de seu ateísmo. Foi-me fácil afastá-los de sua posição e colocá-los na aceitação de um Ser Supremo, o que é, para nós cristãos, o ponto de partida para uma total recuperação.

XIV. Em que sentido a reflexão filosófica pode ter tonalidade cristã? Pode o cristianismo prestar benefícios ao filósofo?

Eis também outra questão que, bem colocada, é de solução fácil. O ponto de partida está em saber o que se entende por tonalidade cristã. Se considerarmos Cristo sob um aspecto, no qual podemos encontrar-nos quase todos, isto é, representando Ele o que o homem tem de mais alto na sua forma perfectiva, caminhando para a Divindade – ou mesmo, neste sentido, reaproximando-se do Ser Supremo – podemos afirmar que a reflexão filosófica não pode deixar de ter uma tonalidade cristã. Não pode haver uma reflexão verdadeiramente filosófica que não erga o homem do menos para o mais. Portanto, o Cristianismo presta e sempre prestou benefícios ao filósofo, razão pela qual a Filosofia teve o seu maior desenvolvimento sob a égide do Cristianismo. Será também apenas através da concepção cristã, que se poderá realizar uma Filosofia superior capaz de unir os homens e fazê-los se compreenderem, pois Cristo representa, no homem, tudo quanto ele tem de mais elevado. Já dizia Pitágoras que a verdadeira piedade – aliás, a eusébeia – era a justa e nobre veneração da Divindade, consistindo aquela na prática de nossos atos perfectivos superiores. Aproximando-nos, pois, de Deus na medida em que praticamos, de modo mais perfeito, os nossos atos. Em suma: a eusébeia (a verdadeira piedade), para os pitagóricos, é a assemelhação a Deus. Este conceito não é exclusivo dos pitagóricos, mas de revelação universal, de todos os ciclos culturais. A verdadeira Filosofia caminha paralela à Religião, porque, se esta é o caminho para elevar o homem a Deus pelas ações, aquela é o caminho para elevar o homem – pela meditação, pelo pensamento, pela pesquisa, pela especulação – também, a Deus. Por isso, a Religião pertence à vida prática e a Filosofia sobretudo à vida especulativa – o que não impede que a Filosofia especule também sobre a vida prática e nela atue dentro das normas desta. Isto corresponde à vontade, ao entendimento humano na sua ação em busca do bem; mas a Filosofia é a vontade e a especulação em busca da verdade. Consequentemente, o homem, à medida que especula pela verdade, aproxima-se do Ser Supremo e à proporção que busca o seu justo bem aproxima-se de Deus. Esta é a razão por que o divórcio entre Filosofia e Religião – que se procurou fazer no mundo ocidental como também já se fez em outros ciclos culturais, em situações correspondentes a esta – é apenas uma covardia, a ser substituída por uma atitude heróica, enfrentando, mostrando os defeitos dessa posição e propondo os verdadeiros caminhos de ascensão.

Visto sob este aspecto, o Cristianismo é universal, porque pertence a todos os ciclos culturais. Ele foi o pensamento verdadeiro mais profundo de todos os ciclos culturais, sendo, por isso, inseparável da religião do homem nos seus aspectos perfectivos. É o homem enquanto Vontade, Entendimento e Amor, correspondendo, na concepção católica, às Três Pessoas da Trindade. Caminhando neste sentido, retiraremos o homem do pântano em que está afundado, do estado de desespero no qual imergiu, podendo tornar a oferecer-lhe uma nova perspectiva e esperança, que poderá solidificar uma fé verdadeira e robusta.

Verbete da “Enciclopedia Filosofica”- Centro di Studi Filosofici di Gallarate.

Firenze, G.C. Sansoni Editorem 1969. SANTOS, Mário Ferreira dos – Filosofo brasiliano, n.a Tietê (San Paulo) da

famiglia portoghese il 3 genn.1907, m. ivi l'11 apr. 1968.

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Fece gli studi secondari nel collegio Gonzaga di Pelotas (Rio Grande do Sul) e si lecenziò in diritto e scienze sociali nell'Università di Porto Alegre. Dopo breve periodo di avvocatura e insegnamento, si ritirò a vida privata, dedicandosi esclusivamente allo studio della filosofia e scienze connesse. Fondò a San Paolo due case editrici per la divulgzione delle proprie opere (Ed. Logos ed Ed. Matese).

Scrittore e pensatore straordinariamente fecondo, in appena tre lustri publicò una collezione dal titolo “Enciclopédia de Ciências Filosóficas e Sociais” che consta di 45 voll., in parte di carattere teoretico in parte storico-critico. I più importanti sono: Tratado de Simbólica (5 edd.), Filosofia da Crise (4 edd.), Filosofia Concreta, 3 voll. (5 edd.), Filosofia Concreta dos Valores (3 edd.), Sociologia Fundamental e Ética Fundamental (3 edd.), Pitágoras e o Tema do Número (3 edd.), Aristóteles e as Mutações (3 edd.), O Um e o Múltiplo em Platão (3 edd.), Métodos Lógicos e Dialéticos, 3 voll. (5 edd.), Dicionário de Filosofia e Ciências Culturais, 4 voll. (5 edd.), ecc.

La sintesi filosofica del F. dos S. è ad un tempo tradizionale e personale. Utilizzando le più recenti scoperte intorno a Pitagora, fatte specialmente dall'Associazione internazionale dei Pitagorici sotto la direzione del dott. Sakellariou, dell'Università di Atene, tenta una conciliazione fra la pitagorica Mathesis Megiste e la sapienza infusa di s. Tommaso, como è presentata specialmente nel commentario del De hebdomadibus di Boezio. Essa si otterrebbe, secondo lo stesso Aquinate, per mezzo di una “cointuizione sapienziale” e di un certo “istinto divino”. In questo M. F. dos S. fa consistere la filosofia come scienza, o meglio super-scienza e sapienza dei principi in quanto principi. Essa è concreta, cioè ci fa conoscere la realtà stessa delle cose nelle loro intime radici e non solo problematica e probabile. Essa potrà gettare un ponte tra la metafisica e la religione cristiana rivelata, e potrebbe costituire un nuovo metodo di apologetica e catechesi specialmente adatto algi ambienti colti di oggi. Raccogliendo in un sintesi più profonda gli elementi di convergenza dei maggiori filosofi, da Plitagora, Platone, Aristotele e s. Tommaso, Scoto e Suárez, e interpretando com maggior oggettività, alla luce delle contingenze storiche del pensiero, i punti di divergenza, F. dos S. elabora un sstema al quale, in omaggio a Pitagora e per il metodo dialettico adottato, há dato il nome di Matese .Ad esso há dedicato una serie di opere, già pronte e in corso di pubblicazione. Comprenderà 15 voll., fra i quali: Sabedoria dos Princípios, Sabedoria da Unidade, Sabedoria do Ser e do Nada, Sabedoria das Tensões, Sabedoria das Leis Eternas, ecc.

Alla filosofia moderna e contemporanea F. dos S. rimprovera atteggiamenti negativi, come: soggettivismo e astrattismo, scetticismo, finzionismo, nichilismo, disperazionismo..., e ne denuncia i frutti nefasti nel libro dal titolo significativo Invasào Vertical dos Bárbaro (1967). Tuttavia nei grandi maestri della filosofia moderna scopre e mette a profitto verità parziali di non poco valore. Esemplo di ció è la sua interpetazione di Nietzsche, al quale, oltre la traduzione portoghese delle opere principali, ha dedicato varie monografie. Meritano di essere citati anche alcuni lavori letterari, como Curso de Oratória e Retórica (1953 12 edd.), Técnica do Discurso Moderno (5edd.), Práticas de Oratória (5 edd.), e vari volumi di divulgazione, como Convite à Filosofia, Convite à Psicologia Prática, Convite à Estética, tutti alla 6ª ed.

Apostolo indefeso e solitario della “sapienza” nel senso tradizionale antico, M. F. dos S. si è sforzato di formulare una filosofia che, rimanendo sempre aperta a nuovi problemi, fosse alto stesso tempo, di nome e di fatto, “perenne “ ed “ecumenica”.

C.Beraldo Tradução

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SANTOS, Mário Ferreira dos – Filósofo brasileiro, n. em Tietê (São Paulo), de família portuguesa, aos 3 de janeiro de 1907, fal. Aos 11 de abril de 1968. Fez seus estudos secundários no colégio Gonzaga de Pelotas (Rio Grande do Sul) e licenciou-se em direito e ciências sociais na Universidade de Porto Alegre. Após ter exercido, por breve período advocacia e o ensino, retirou-se a vida privada, dedicando-se exclusivamente ao estudo da filosofia e das ciências conexas com a mesma. Fundou em São Paulo duas casas editoras, para a divulgação das suas obras (Ed. Logos e Ed. Matese). Escritor e pensador extraordinariamente fecundo publicou em menos de quinze anos, uma coleção com o título de “Enciclopédia de Ciências Filosóficas e Sociais” que abrange 45 volumes, em parte com caráter teorético, em parte histórico-críticos. Os mais importantes são: Tratado de Simbólica (5 ed.), Filosofia da Crise (4 ed.), Filosofia Concreta, 3 vols. (5 ed.), Filosofia Concreta dos Valores (3 ed.). Sociologia Fundamental e Ética Fundamental (3 ed.), Pitágoras e o Tema do Número (3 d.), Aristóteles e as Mutações (3 ed.), O Um e o Múltiplo em Platão (3 ed.). Métodos Lógicos e Dialéticos, 3 vols. (5 ed.), Dicionário de Filosofia e Ciências Culturais,4 vols. (5 ed.) etc.

A síntese filosófica de F. dos S. e, ao mesmo tempo, tradicional e pessoal. Aproveitando as descobertas mais recentes sobre Pitágoras, realizadas especialmente pela Associação Internacional do Pitagóricos, sob a direção do Dr. Sakellariou, da Universidade de Atenas, ele procura uma conciliação entre a pitagórica Mathesis Megiste e a sabedoria infusa de ..S. Tomás, especialmente como é apresentada no comentário De Hebdomadibus de Boécio. Ela conseguir-se-ia, segundo o próprio Aquinate, por meio de uma co-intuição sapiencial e de certo instinto divino. Nisto, segundo M. F. dos S., consiste a filosofia como ciência ou melhor como super-ciência e sabedoria dos princípios. Ela é concreta porque nos faz conhecer a própria realidade das coisas em suas íntimas raízes, e não tem por objeto idéias a priori; deve ser positiva, quer dizer construtiva e não puramente crítica e negativa; ela é apodítica e não só problemática e provável. Ela poderá lançar uma ponte entre a metafísica e a religião cristã revelada e poderia constituir um novo método de apologética e de catequese especialmente dado aos ambientes culturais de hoje. Juntando numa síntese mais profunda os elementos de convergência dos maiores filósofos, desde Pitágoras, Platão, Aristóteles até Sto. Tomás, Scot, Suarez e integrando com maior objetividade, à luz das contingências históricas de cada pensamento, os pontos de divergência, F. dos S. elabora um sistema ao qual, em homenagem a Pitágoras, e por causa do método dialético empregado, deu o nome de Matese. Ao mesmo consagrou uma série de trabalhos já prontos e em via de publicação. Ela constará de uns 15 volumes, entre os quais salientamos os títulos seguintes: Sabedoria dos Princípios, Sabedoria da Unidade, Sabedoria do Ser e do Nada, Sabedoria das Tensões, Sabedoria das Leis Eternas, etc.

F. dos S. acusa a filosofia moderna e contemporânea de atitudes negativas, como subjetivismo, abstratismo, cepticismo, ficcionismo, nihilismo, desesperacionismo... Ele aponta os frutos deletérios de tudo isto num livro recente ao qual deu o título significativo de Invasão Vertical dos Bárbaros (1967). Entretanto nos grandes mestres da filosofia moderna descobre a aproveita verdades parciais de relevante valor. Ele nos deixou um exemplo disto na sua interpretação de Nietzsche, ao qual, além da tradução em português das obras principais, dedicou várias monografias. Merecem ser citados também alguns trabalhos literários, como : Curso de Oratória e Retórica (1953- 12 ed.), Técnica do Discurso Moderno (5 ed.), Práticas de Oratória (5 ed.), e vários volumes de divulgação, como Convite à Filosofia, Convite à Psicologia Prática, Convite à Estética, todos já n 6ª edição.

Apóstolo incansável e solitário da sabedoria no sentido tradicional e antigo, M. F. dos S. se esforçou por formular uma filosofia que, embora ficando sempre aberta a novos problemas, fosse ao mesmo tempo, de nome e de fato, “perene” e “ecumênica”

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Quem foi este filósofo?

"Estou realizando uma pesquisa científica sobre a situação atual do pensamento

filosófico brasileiro, a fim de constatar, com objetividade, em que ponto se encontra a Filosofia

hoje no Brasil, como ela se desenvolve, que metas está visando e que objetivos deve atingir.

Durante esta pesquisa científica, ainda em curso, descobri um Pensador de extraordinário valor -

Dr. Mário Ferreira dos Santos, nascido no dia 3 de janeiro de 1907 e falecido no dia 11 de abril

de 1968. A descoberta deste filósofo solitário, dedicado a uma intensa atividade de pensamento e

produção literária, surpreendeu-me não pouco e proporcionou-me a grata oportunidade de entrar

em freqüentes contatos pessoais com ele, homem que ainda não foi descoberto no Brasil".76

A ele se referiu o Dr. Carlos Aurélio Motta de Souza, seu ex-aluno:

"Fue un pensador completo, que há buscado sin rechazar nadie en sus estudios y

pesquisas, pero tan sólo ha refutado lo que no fuera positivo, y no llevara al hombre a conocerse

en su totalidad.

Por eso, y en esse sentido, fue un gnoseólogo humanizante, de pensamiento total, que

nada excluye del hombre ni de este desvalorice.

La extrema fecundidad del trabajo de Mário Ferreira dos Santos nos ha legado una obra

filosófica grandiosa que, como tal, permanece a la disposición de los estudiosos.

Restan, todavía, decenas de trabajos inéditos, que merecen ser conocidos, no sólo para

memoria del extraordinario pensador, sino para coronamiento de una obra producida en los

momentos de su mayor intuición filosófica.

Relegada progresivamente a planos inferiores de la cultura, urge rescatar la filosofía

humanizante, centrada en la realidad del ser supremo, esta filósofo há buscado incesantemente la

integración humanística, abordando el ecumenismo, buscando la unidad, procurando "un método

capaz de reunir los aspectos positivos de diversas posiciones filosóficas", "método includente y

no excludente, que concilia positividades", combatiendo al mismo tiempo las filosofias nihilistas,

negativistas y pesimistas, que alienan, desesperan y dividen el hombre y el mundo, sin darles la

debida concreción, y la certeza del bien supremo.

Bien por eso ha concluido su auto-biografía apuntando hacia la reconciliación de la

filosofía com la religión cristiana, como filosofía superior capaz de unir los hombes y hacer que

76 Declaração Prof.Dr.Pe.Stanislavs Ladusãns S.I. (18-12-1968)

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se compreendan, pues para él, Cristo representa todo cuanto hay de más elevado, es el hombre en

cuanto voluntad, entendimiento y amor, correspondiente a la concepción de las tres personas de

la Santísima Trinidad". 77

O filósofo Olavo de Carvalho, apesar de não tê-lo conhecido pessoalmente, dedica-se ao

estudo de sua obra, trabalhando na organização dos escritos inéditos:

"Cultuado e respeitado, temido e odiado em vida, Mário tornou-se, uma vez morto,

objeto de uma conspiração de silêncios destinada a abafar o mais paradoxal dos escândalos: este

país sem cultura filosófica deu ao mundo um dos maiores filósofos do século, talvez de muitos

séculos.

A obra de Mário não tem similar, nem por sua extensão oceânica, mais de cem volumes

publicados e trinta inéditos, nem pela orientação muito peculiar de seu pensamento, onde as

influências mais díspares, de Sto. Tomás a Nietzsche, de Pitágoras a Leibniz, de Platão a

Proudhon, se harmonizam numa síntese radicalmente original.

Um dos segredos dessa originalidade é justamente a absorção e superação de um imenso

legado filosófico. Dono de uma cultura prodigiosamente vasta, Mário se ocupou de buscar, na

filosofia universal, as constantes ocultas, os pressupostos latentes que, por trás da variedade e dos

antagonismo aparentes entre os sistemas, configurassem o quod semper, quod ubique, quod ab

omnia credita est (aquilo que todos, em toda parte, sempre acreditaram). E não somente

encontrou um núcleo de princípios que estruturam algo como uma unidade transcendente das

filosofias, mas ainda o formulou em expressão sistemática e lhe deu variadas aplicações na

solução de alguns dos mais difíceis problemas da metafísica, da teoria do conhecimento, da ética

e da filosofia da história.

Para sondar esse sistema de princípios, que ele denominava, usando uma expressão

pitagórica, mathesis megiste ( ensinamento supremo ), Mário criou um método próprio, a

dialética concreta, que sintetiza a lógica analítica tradicional com a lógica matemática e com as

dialéticas de Aristóteles, Hegel e Nietzsche (um método de espantosa flexibilidade) que lhe

permite levar suas demonstrações até requintes de evidência que superam tudo o que a mente

mais rigorosa poderia exigir".78

77 "Mário Ferreira dos Santos y su filosofia concreta". Madrid, Revista Verbo, série XXX. Núm. 29-296, mayo-junio-julio 1991. 78 "Futuro do Pensamento Brasileiro". Rio de Janeiro, Faculdade da Cidade Editora, 1997.

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Bibliografia de Mário Ferreira dos Santos

Seção I – Enciclopédia das Ciências Filosóficas

Primeira Série

I Filosofia e Cosmovisão. São Paulo: Edanee, 1952 (6.ed., São Paulo: Logos, 1961).

II Lógica e Dialéctica. São Paulo: Logos, 1953 (5.ed., São Paulo: Logos, 1964).

III Psicologia. São Paulo: Logos, 1953 (5.ec., São Paulo: Logos, 1963).

IV Teoria do Conhecimento (Gnosiologia e Criteriologia). São Paulo: Logos, 1954 (4.ed.,

São Paulo: Logos, 1964)

V Ontologia e Cosmologia. São Paulo: Logos, 1954 (4.ed., São Paulo: Logos, 1964).

VI Tratado de Simbólica. São Paulo: Logos, 1956 (5.ed., São Paulo: Logos, 1964).

VII Filosofia da Crise. São Paulo: Logos, 1956 (5.ed., São Paulo: Logos, 1964).

VIII O Homem perante o Infinito: Teologia. São Paulo: Logos, 1956 (5.ed., São Paulo: Logos,

1963).

IX Noologia geral: A Ciência do Espírito. São Paulo: Logos, 1956 (3.e., São Paulo: Logos,

1961).

X Filosofia Concreta. São Paulo: Logos, 1957 (4.ed., revista e ampliada, São Paulo: Logos,

1961, 3v.).

Segunda Série

(A) Publicados

XI Filosofia Concreta dos Valores. São Paulo: Logos, 1960 (3.ed., São Paulo: Logos, 1964).

XII Sociologia Fundamental e Ética Fundamental São Paulo: Logos, 1957 (3.ed., São Paulo:

Logos, 1957 (3.e., São Paulo: Logos, 1964).

XIII Pitágoras e o Tema do Número. São Paulo: Logos, 1956 (2.ed., São Paulo: Matese, 1965),

Ibrasa, 2000.

XIV Aristóteles e as Mutações (tradução e comentário de Da Geração e da Corrupção das

Coisas Físicas, de Aristóteles). São Paulo: Logos, 1955 (2.ed., São Paulo: Logos, 1958).

XV O Um e o Múltiplo em Platão (tradução e comentário do Parmênides, de Platão). São Paulo:

Logos, 1958.

XVI Métodos Lógicos e Dialécticos. São Paulo: Logos. 1959 (4.ed., revista e ampliada, São

Paulo: Logos, 1965, 3v.)

49

XVII Filosofias da Afirmação e da Negação. São Paulo: Logos, 1959.

XVIII Tratado de Economia.. São Paulo: Logos, 1962, 2v.

XIX Filosofia e História da Cultura. São Paulo: Logos, 1962, 3v.

XX Análise de Temas Sociais. São Paulo: Logos, 1962, 3v. (2.ed., São Paulo: Logos, 1964).

XXI O Problema Social. São Paulo: Logos, 1964 (2.ed., São Paulo: Logos, 1064).

XXII Dicionário de Filosofia e Ciências Culturais. São Paulo: Matese, 1963, 4v. (4.ed., São

Paulo: Matese, 1966).

XXIII Origem dos Grandes Erros Filosóficos. São Paulo: Matese, 1964.

XXIV Grandezas e Misérias da Logística. São Paulo: Matese, 1967.

XXV Erros na Filosofia da Natureza. São Paulo: Matese, 1967.

XXVI Das Categorias, de Aristóteles (tradução, notas e comentários). São Paulo: Matese, 1960

(2.ed., São Paulo, Matese, 1965).

XXVII Isagoge, de Porfírio (tradução, notas e comentários). São Paulo: Matese, 1965.

XXVIII Protágoras, de Platão (tradução, notas e introdução). São Paulo: Matese, 1965.

XXIX O Apocalipse de S. João: A Revelação dos Livros Sagrados. São Paulo: Cone Sul, 1998.

(B)Inéditos

XXX Comentários a S. Boaventura. Original datilografado, 100p.

XXXI As três críticas de Kant. Original datilografado, 226p.

XXXII Comentários aos “Versos Áureos” de Pitágoras. Original datilografado, 88p.: mais

tradução dos Comentários de Hiérocles, 57p.

XXXIII Cristianismo, a Religião do Homem. Original datilografado, 69p.

XXXIV Tao-Te-Ching,de Lao-Tsê (tradução e comentários). Original datilografado, 85p.

(B) Dispersos e Fragmentos

XXXV Filosofia e Romantismo. Inacabado. Original datilografado, 42p.

XXXVI Brasil, País de Excepção. Inacabado. Original datilografado, 50p.

XXXVII Santo Tomás e a Sabedoria – e outras palestras inéditas. Transcrição datilografada,

159p.

XXXVIII Enéadas, de Plotino. Tradução. Original datilografado, 179p.

XXXIX De Primo Principio, de John Duns Scot. Tradução. Original datilografado, 68p.

XL Da Interpretação, de Aristóteles. Tradução. Original datilografado, 36p.

Terceira Série

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(A) Publicados

XLI A Sabedoria dos Princípios. São Paulo: Matese, 1967.

XLII A Sabedoria da Unidade. São Paulo: Matese, 1968.

XLIII A Sabedoria do Ser e do Nada. São Paulo: Matese, 1968 (póstumo), 2v.

XLIV A Sabedoria das Leis Eternas. Introdução, edição e notas por Olavo de Carvalho. São

Paulo: É Realizações, 2001.

(B) Inéditos

XLV Dialéctica Concreta. Original datilografado,196p.

XLVII Tratado de Esquematologia. Original datilografado, 215p.

XLVII Teoria Geral das Tensões. Inacabado. Original datilografado, 131p.

XLVIII Deus. Original datilografado, 228p.

Seção II – Livros Avulsos

I O Problema Social. São Paulo: Logos, 1962 (2.ed., São Paulo, Logos).

II. Curso de Oratória e Retórica. São Paulo: Logos, 1953 (12.ed., São Paulo: Logos)

III O Homem que Nasceu Póstumo: Temas nietzscheanos. São Paulo: Logos, 1954 (3.ed., São

Paulo: Logos).

IV. Assim Falava Zaratustra. São Paulo: Logos, 1954 (3.ed., São Paulo: Logos).

V Técnica do Discurso Moderno. São Paulo, Logos, 1953 (5.ed., São Paulo: Logos).

VI Práticas de Oratória. São Paulo: Logos, 1957 (5.ed., São Paulo: Logos).

VII Curso de Integração Pessoal. São Paulo: Logos, 1954 (6.ed., São Paulo: Logos).

VIII Análise Dialética do Marxismo. São Paulo: Logos, 1954.

IX Páginas Várias. São Paulo: Logos, 1960 (10.ed., São Paulo: Logos).

X Assim Deus Falou aos Homens. São Paulo: Logos, 1958 (2.ed., São Paulo: Logos).

XI Vida não é Argumento. São Paulo: Logos, 1958 (2.ed., São Paulo: Logos).

XII A Casa das Paredes Geladas. São Paulo: Logos, 1958 (2.ed., São Paulo: Logos).

XIII Escutai em Silêncio. São Paulo: Logos, 1958 (2.ed., São Paulo: Logos).

XIV A Verdade e o Símbolo. São Paulo: Logos, 1958 (2.ed., São Paulo: Logos).

XV A Arte e a Vida. São Paulo: Logos, 1958 (2.ed., São Paulo: Logos).

XVI A luta dos Contrários. São Paulo: Logos, 1958 (2.ed., São Paulo: Logos).

XVII Certas Sutilezas Humanas. São Paulo: Logos, 1958 (2.ed., São Paulo: Logos).

XVIII Convite à Estética. São Paulo: Logos, 1961 (6.ed.., São Paulo: Logos).

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XIX Convite à Psicologia prática. São Paulo: Logos, 1961 (6.ed.,São Paulo: Logos).

XX Convite à Filosofia. São Paulo: Logos, 1961 (6.ed., São Paulo: Logos).

XXI Dicionário de Pedagogia e Puericultura. São Paulo: Matese, 1965. 3v.

XXII Invasão Vertical dos Bárbaros. São Paulo: Matese, 1967

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