Biografia Identidade e Narrativa

Embed Size (px)

Citation preview

  • 8/14/2019 Biografia Identidade e Narrativa

    1/20

    283Sincretismo afro-brasileiro e resistncia cultural

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 9, n. 19, p. 283-302, julho de 2003

    Biografia, identidade e narrativa...

    BIOGRAFIA, IDENTIDADE E NARRATIVA: ELEMENTOS PARA

    UMA ANLISE HERMENUTICA

    Isabel Cristina Moura Carvalho

    Universidade Luterana do Brasil Brasil

    Resumo: O artigo discute os recursos oferecidos pelos mtodos biogrficos na

    anlise de trajetrias de vida, destacando as contribuies da hermenutica, sobre-tudo a partir dos trabalhos de Paul Ricouer (Tempo e Narrativa) e Gadamer (Ver-dade e Mtodo), sobre as inter-relaes entre as dimenses da experincia e a suaarticulao simblica nos auto-relatos, tomados como modalidades narrativas.

    Estas consideraes terico-metodolgicas so contextualizadas, em vrios mo-

    mentos do artigo, tendo como referncia um estudo anteriormente realizado sobre

    trajetrias no campo ambiental, locus da pesquisa onde esta abordagemmetodolgica foi acionada.

    Palavras-chave: anlise de trajetrias, campo ambiental, mtodos biogrficos,narrativas.

    Abstract: This article discusses the resources offered by the biographic methods

    about life trajectory analysis, emphasizing the contributions made by hermeneutic

    thought, specially in the works by Paul Ricouer (Time and narrative) and Gadamer(Truth and method) on the interrelations between the experience and its symbolicarticulation in the autobiographical reports, here taken to be forms of narrative. A

    context for these theoretical and methodological considerations is given several

    times in this article, the reference being a study previously made on trajectories inthe environmental field, site of the research where this methodological view was

    applied.

    Keywords: biographic methods, environmental field, narrative, trajectory analysis.

  • 8/14/2019 Biografia Identidade e Narrativa

    2/20

    284 Srgio F. Ferretti

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 9, n. 19, p. 283-302, julho de 2003

    Isabel Cristina M. Carvalho

    O tempo torna-se tempo humano na medida em que articulado deum modo narrativo, em compensao, a narrativa significativa na

    medida em que esboa os traos da experincia temporal.

    Paul Ricoeur, Tempo e Narrativa.

    O auto-relato pode ser tomado como um locus privilegiado do encon-tro entre a vida ntima do indivduo e sua inscrio numa histria social ecultural. A biografia, ao tornar-se discurso narrado pelo sujeito autor e pro-tagonista, instaura sempre um campo de renegociao e reinvenoidentitria. Os mtodos biogrficos nas cincias sociais, na psicologia social

    contempornea e na psicanlise, por exemplo, operam neste interjogo entrea privacidade de um sujeito e o espao scio-histrico de sua existncia,seja ampliando a compreenso dos fenmenos sociais e grupais, seja fazen-do emergir um sujeito capaz de recontar a narrativa sobre si mesmo, naclnica.

    O marco dos mtodos biogrficos para a anlise de trajetrias no cam-po ambiental foi objeto de pesquisa que realizamos anteriormente (Carva-lho, 2001, 2002). Nesse sentido, sem retomar o campo realizado, mas ten-

    do-o como referncia, o propsito deste artigo discutir os caminhos te-rico-metodolgicos trilhados na anlise da formao do que chamei desujeito ecolgico, um tipo ideal presente na experincia de educadores elideranas ambientais no Brasil. Uma crena, articulada narrativamente norelato autobiogrfico, que move processos de identificao, organiza esco-lhas e tomada de decises, configurando a internalizao de uma orientaoecolgica como princpio orientador da vida pessoal e instaurador de rela-es intersubjetivas onde se d o reconhecimento pelos pares e alegitimao no campo ambiental.1

    O sujeito ecolgico alude simultaneamente a um perfil identitrio e auma utopia societria. Como podemos observar nas ltimas dcadas no Bra-

    1 Uma observao a fazer que, em meio aos diferentes usos e conceituaes dos termos ecolgico/ecologista e ambiental/ambientalista, para nomear o campo social ao qual nos referimos optamos pelotermo ambiental, pelo seu carter mais abrangente. No entanto, quando se trata de delinear o perfilidentitrio nucleador desse campo, encontramos a a matriz ecolgico/ecologista como trao mais es-pecfico e pertinente. Fazendo jus contribuio dos movimentos ecolgicos para formao do campoambiental, este parece ser o signo apropriado para denominar o tipo ideal que opera como uma matrizpara outras identidades derivadas que circulam no campo (ambientalista, ativista ambiental, verde,

    alternativo, etc.).

  • 8/14/2019 Biografia Identidade e Narrativa

    3/20

    285Sincretismo afro-brasileiro e resistncia cultural

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 9, n. 19, p. 283-302, julho de 2003

    Biografia, identidade e narrativa...

    sil, particularmente aps 1992, este ideal ecolgico, medida que se expan-de e conquista legitimidade, se oferece ao conjunto da sociedade como

    modelo tico para o estar no mundo, como bem o expressou numa entrevis-ta o fotgrafo Sebastio Salgado:

    No sou religioso. Acredito na espcie humana. A espcie humana muito recente e muito frgil e pode desaparecer. Deveria ser egostano sentido de se autoproteger. A proteo do meio ambiente, essadeveria ser a religio do planeta. (Depoimento de Sebastio Salgadoa Roberto Dvila, no programa Conexo, TVE, 4 fev. 1998)

    Os sentidos em risco: tradio e ruptura

    As experincias culturais que poderamos identificar comoconstitutivas de uma tradio ambiental no Ocidente moderno como, porexemplo, o Naturalismo, as novas sensibilidades ambientais no sculoXVIII, o Romantismo alemo no sculo XIX, a contracultura nos anos 60,o imaginrio ednico disponibilizam simultaneamente diferentes sentidos

    do ambiental. Na experincia contempornea, tomada a partir do campoambiental e, particularmente, dos educadores ambientais, podemos observarcomo estas vises tm sido acionadas, combinadas, negadas e reinventadasnuma trama de novos e velhos significados. Em nossa anlise, conforme anoo de crculo hermenutico transposta por Geertz (1991) para a anlisedas culturas, trata-se justamente de tornar visvel a dialtica das partes(formas simblicas especficas) e do todo (a estrutura significante do con-texto cultural) que constituem o fenmeno cultural a ser compreendido.2

    Nesse caso est em jogo a relao entre a produo de sentidos cultu-

    rais especficos em face de uma tradio como horizonte de significao.No se trata, contudo, de localizar os sentidos atuais do ambiental em um

    2 Segundo Geertz: Do ponto de vista pragmtico, duas abordagens, dois tipos de abordagem devemconvergir se se quer interpretar uma cultura: uma descrio e formas simblicas especficas (um gestoritual, uma esttua hiertica) enquanto expresses definidas; e uma contextualizao de tais formas no seioda estrutura significante total de que fazem parte e em termos da qual obtm sua definio. No fundo, isto, obviamente, o j conhecido crculo hermenutico: a apreenso dialtica das partes que esto includasno todo e do todo que motiva as partes, de modo a tornar visveis simultaneamente as partes e o todo

    (Geertz, 1991, p. 133).

  • 8/14/2019 Biografia Identidade e Narrativa

    4/20

    286 Srgio F. Ferretti

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 9, n. 19, p. 283-302, julho de 2003

    Isabel Cristina M. Carvalho

    ou outro lado do pndulo reedio-ruptura da tradio; mas, antes, darvisibilidade relao entre o todo e as partes, apontando para a dialtica da

    reinveno da tradio. Como bem nos mostra Sahlins (1990) sobre asvicissitudes da ao simblica, ao serem atualizados, os significados dadosnum certo horizonte de significao so colocados em risco na ao, tantopela conjuntura histrico-cultural presente quanto pelo valor intencionalsubjetivo de seu uso pelos sujeitos ativos:3

    A ao simblica um composto duplo, constitudo por um passadoinescapvel porque os conceitos atravs dos quais a experincia organizada e comunicada procedem do esquema cultural preexistente.E um passado irredutvel por causa da singularidade do mundo emcada ao: a diferena heraclitiana entre a experincia nica do rio eseu nome. A diferena reside na irredutibilidade dos atores especfi-cos e de seus conceitos empricos que nunca so precisamente iguaisa outros atores e outras situaes nunca possvel entrar no rioduas vezes. As pessoas, enquanto responsveis por suas prpriasaes, realmente se tornam autoras de seus conceitos; porque, sesempre h um passado no presente, um sistema a priori de interpre-

    tao, h tambm uma vida que se deseja a si mesma (como diriaNietzsche). (Sahlins, 1990, p. 189)

    Nesse sentido, poderamos dizer que os sentidos do ambiental, postosem risco pela ao contextos histrico-culturais especficos e singularida-des pessoais dos educadores ambientais, indica a confluncia da tradiono presente, mas tambm sua recriao. A diversidade de sentidos que asrelaes com a natureza e o ambiente adquirem na singularidade dasinteraes sociais e histricas presentes, afirma e reinventa uma tradio

    ambiental, cotidianamente.

    3 Sahlins, ao introduzir uma anlise diacrnica na perspectiva estruturalista, aponta para a dialtica daestrutura na conjuntura onde as combinaes e recombinaes dos significados postos em risco naao levam a uma reavaliao funcional de categorias: O que quero dizer com estrutura naconjuntura a realizao prtica das categorias culturais em um contexto histrico especfico, assimcomo se expressa nas aes motivadas dos agentes histricos, o que inclui a microssociologia de suainterao (Sahlins, 1990, p. 15). A partir da submisso da estrutura a uma conjuntura que inclui orisco subjetivo da reviso dos signos pelos sujeitos ativos em seus projetos e interesses pessoais,enfatiza a tenso produtiva das dinmicas de inovao e recriao na ao simblica.

  • 8/14/2019 Biografia Identidade e Narrativa

    5/20

    287Sincretismo afro-brasileiro e resistncia cultural

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 9, n. 19, p. 283-302, julho de 2003

    Biografia, identidade e narrativa...

    A narrativa como mediao entre o tempo vivido e a significao da ao

    em Paul RicouerA (re)inveno da tradio s ganha sentido medida que capaz de

    entretecer os sentidos disponibilizados contextualmente com a substnciaviva da experincia do narrador. Assim, ganha destaque o valor da experi-ncia como fonte e possibilidade da narrativa. Esta profunda ligao entrenarrativa e experincia reiterada por Benjamin (1987) como uma qualida-de comunicativa em crise. Ao comentar o embarao que freqentementeatinge um grupo quando algum solicitado a narrar algo, alerta:

    como se estivssemos privados de uma faculdade que nos pareciasegura e inalienvel: a faculdade de intercambiar experincias. Umadas causas deste fenmeno bvia: as aes da experincia esto embaixa [] a experincia que passa de pessoa a pessoa a fonte a querecorreram todos os narradores. (Benjamin, 1987, p. 198).

    O lao indissocivel entre a experincia e a sua (re)elaborao nacondio narrativa enquanto abertura para revivificar e ao mesmo temporecriar o vivido central para a anlise de relatos autobiogrficos. Por issono poderamos seguir nesse caminho sem recorrer ao brilhante ensaio dePaul Ricoeur, intitulado Tempo e Narrativa (1994-1997), onde o autor ex-pe a funo significativa ou figurativa operada pela narrativa ficcionalcomo modelo estrutural anlogo a todo ato narrativo. Fiel ao propsitohermenutico de sustentao das tenses antinmicas, Ricoeur percorre asaporias do tempo no pensamento ocidental demarcando, entre concepesparadoxais como a do muthos trgico em Aristteles e a de distentio

    animis em Agostinho, ou ainda a de um tempo fenomnico, fsico, em Kante a de conscincia ntima do tempo em Husserl o espao entrepolar danarrativa de fico como sntese no fechada de um tempo objetivo e de umtempo vivido. Postula assim uma funo narrativa pela qual se d a inscri-o da ao humana na temporalidade.

    Ricoeur busca na Potica de Aristteles as noes de mimese, naacepo de imitao ou representao da ao, e de intriga, enquantoagenciamento dos fatos, como estruturantes de sua prpria definio de

  • 8/14/2019 Biografia Identidade e Narrativa

    6/20

    288 Srgio F. Ferretti

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 9, n. 19, p. 283-302, julho de 2003

    Isabel Cristina M. Carvalho

    narrativa.4 Assim, tomando a idia do muthos como a arte de compor intri-gas, Ricoeur entende a atividade mimtica como ato criativo onde o

    ficcional abertura significao:

    Se continuarmos a traduzir mimese por imitao, deve-se entender ocontrrio do decalque de um real preexistente e falar de imitaocriadora. E, se traduzirmos mimese por representao, no se deveentender, por esta palavra, alguma duplicao da presena, como sepoderia ainda entend-lo na mimese platnica, mas o corte que abreo espao de fico [] Nesse sentido o termo aristotlico mimese

    o emblema dessa desconexo, que para empregarmos um vocabulrioque hoje o nosso, instaura a literariedade da obra literria. (Ricoeur,1994, p. 76).

    O que est em jogo nessa trama da existncia narrada a tensopermanente entre as foras organizadoras da ordem e da concordncia e asforas da discordncia, do caos, da surpresa, do inesperado e arbitrrio dodestino.5 , portanto, atravs do papel articulador da tessitura da intriga quese compreender a mediao fundamental entre tempo e narrativa. Contudo,

    como Ricoeur reconhece, a temporalidade como fio tramado pela narrativano est originalmente em Aristteles. Para o filsofo grego o tempo tratado como um tempo objetivo, mensurvel, presente no campo da physise ausente da esfera narrativa. Mas, justamente no tensionamento damimeses com os atributos da temporalidade vivida, evidenciadas pela con-cepo agostiniana, que Ricoeur vai construir seu conceito de narrativaenquanto articulao temporal da ao:

    4 A noo de intriga trazida por Ricoeur desde o muthos trgico para designar o que o autor denominade configurao da narrativa: O tecer da intriga foi definido, no plano mais formal, como umdinamismo integrador, que tira uma histria una e completa de um diverso de incidentes, ou seja,transforma esse diverso em uma histria una e completa. Essa definio formal abre o campo paratransformaes organizadas que merecem ser chamadas intrigas desde que nelas possam serdiscernidas totalidades temporais a operar uma sntese do heterogneo entre circunstncias, objetivos,meios, interaes, resultados desejados ou no (Ricoeur, 1995, p. 16).

    5 Na definio do muthos a concordncia a disposio ordenada dos fatos, enquanto a discordncia a ao desorganizadora representada pelos incidentes aterrorizantes e lamentveis.

  • 8/14/2019 Biografia Identidade e Narrativa

    7/20

    289Sincretismo afro-brasileiro e resistncia cultural

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 9, n. 19, p. 283-302, julho de 2003

    Biografia, identidade e narrativa...

    Aristteles, vimos, ignorou os aspectos temporais da tessitura da in-triga. Proponho-me a desimplic-los do ato da configurao textual e

    demostrar o papel mediador desse tempo da tessitura da intriga entreos aspectos temporais prefigurados no campo prtico e a refiguraoda nossa experincia temporal por esse tempo construdo. Seguimos,pois, o destino de um tempo prefigurado em um tempo refigurado,pela mediao de um tempo configurado. (Ricoeur, 1997, p. 87)

    Os trs nveis da operao mimtica (mimeses I, II e III) da aopropostos por Ricoeur esto sintetizados nos tempos da prefigurao, con-

    figurao e refigurao, respectivamente. Esses tempos constituem as me-diaes simblicas constitutivas do ato de narrar e, como tal, da prpriaexperincia compreensiva. Dessa forma, o ato narrativo passa de um tempoprefigurado da ao, no nvel do vivido e da experincia em mimese I, paraum tempo configurado simbolicamente pela composio narrativa emmimese II, tendo em vista comunicar uma experincia a algum, o quecaracteriza o terceiro tempo enquanto tempo da alteridade, onde se comu-nica o narrado para algum. Assim, tem-se o tempo refigurado em mimeseIII, que restitui ao o tempo vivido do leitor, completando o ciclo dessas

    operaes narrativas, onde o sentido nunca se encerra num fechamento oucristalizao:

    O acontecimento completo no apenas que algum tome a palavrae dirija-se a um interlocutor, tambm que ambicione levar lingua-gem e partilhar com outro uma nova experincia. essa experinciaque, por sua vez, tem o mundo como horizonte. Referncia e horizon-te so correlativos como o so a forma e o fundo. Qualquer experi-

    ncia possui, ao mesmo tempo um contorno que a cerca e discerne eergue-se sobre um horizonte de potencialidades que constituem seuhorizonte externo e interno. [] Essa pressuposio muito geralimplica que a linguagem no constitui um mundo ela prpria. Ela no sequer um mundo. Porque estamos no mundo e somos afetados porsituaes, tentamos nele nos orientar por meio da compreenso etemos algo a dizer, uma experincia a levar linguagem e a partilhar.(Ricoeur, 1994, p. 119).

  • 8/14/2019 Biografia Identidade e Narrativa

    8/20

    290 Srgio F. Ferretti

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 9, n. 19, p. 283-302, julho de 2003

    Isabel Cristina M. Carvalho

    Assim, a dimenso pr-narrativa poderia ser relacionada pr-compre-enso em Gadamer, indicando o mundo da experincia que, ao passar pelas

    operaes configurantes, acede linguagem e ao carter pblico e comparti-lhado do smbolo porque tem como finalidade a comunicao com outrem.6

    Este terceiro momento poderia ser relacionado ao momento da aplicao emGadamer, apontando para o encontro do mundo da obra e do mundo do leitor,sinalizando para o ambiente de recepo (e rplica) de um enunciado, ondeafinal se conclui o percurso da mimese e se efetiva a ao narrativa enquantoexperincia de compreenso humana. Nesta perspectiva, tanto em Ricoeurquanto em Gadamer, poderamos pensar que o que constitui um discurso etorna possvel uma situao de comunicao a condio de um sujeito que

    leva linguagem e compartilha com outrem uma experincia. Nesse sentido,enquanto ato narrativo, a comunicao pode ser entendida como correlato dacompreenso hermenutica, com todos os seus atributos.

    Contudo, Ricoeur segue em sua anlise extraindo conseqncias do queprope como um terceiro-tempo, constitudo pelo entrecruzamento entre asintenes referenciais prprias da histria e da fico em relao ao tempo.A questo, apresentada por ele se formula nos seguintes termos: At queponto o entrecruzamento das intenes ontolgicas da histria e da ficoconstitui uma rplica apropriada ocultao recproca das duas perspectivas,

    fenomenolgica e cosmolgica, sobre o tempo? (Ricoeur, 1997, p. 423).Para dar conta das antinomias sobre as quais ancora sua reflexo tempo csmico e ficcional; a funo de representao do passado histricoe os efeitos do encontro entre o mundo do texto e o mundo do leitor;interpenetraes da histria e da fico pela ficcionalizao da histria ehistoricizao da fico Ricoeur introduz a noo de identidade narrativa:

    Essa dialtica do entrecruzamento seria em si mesma um sinal deinadequao da potica aportica, se no nascesse dessa fecunda-

    o mtua um rebento, cujo conceito introduzo aqui e que testemunhacerta unificao dos diversos efeitos de sentido da narrativa. O frgilrebento oriundo da unio da histria e da fico a atribuio a um

    6 Ricoeur concorda com as consideraes de Cliford Geertz sobre o carter pblico do smbolo: Para oantroplogo, o termo smbolo sublinha de imediato o carter pblico da articulao significante. Comodiz Geertz: a cultura pblica porque a significao o . Adoto de bom grado essa primeira carac-terizao que marca bem que o simbolismo no est no esprito, no uma operao psicolgicadestinada a guiar a ao, mas uma significao incorporada ao e decifrvel nela pelos atores do jogo

    social (Ricoeur, 1994, p. 92).

  • 8/14/2019 Biografia Identidade e Narrativa

    9/20

    291Sincretismo afro-brasileiro e resistncia cultural

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 9, n. 19, p. 283-302, julho de 2003

    Biografia, identidade e narrativa...

    indivduo ou a uma comunidade de uma identidade narrativa.(Ricoeur, 1997, p. 424).

    Com essa importante categoria prtica, apresentada como a soluopotica do crculo hermenutico (Ricoeur, 1997, p. 427), pode-se captar oquem da ao, sem encerr-lo numa identidade estvel. Ao contrrio, a iden-tidade narrativa constitutiva do sujeito permite apreend-lo na mudana, inclu-indo a mutabilidade na coeso de uma vida:

    O sujeito, mostra-se ento, constitudo ao mesmo tempo como leitor eescritor de sua prpria vida. Como a anlise literria sobre a autobio-

    grafia verifica, a histria de uma vida no cessa de ser refigurada portodas as histrias verdicas ou fictcias que um sujeito conta sobre simesmo. Essa refigurao faz da prpria vida um tecido de histriasnarradas. [] A identidade narrativa no uma identidade estvel esem falhas; assim como possvel compor vrias intrigas acerca dosmesmos incidentes (os quais, com isso, j no merecem ser chamadosde os mesmos acontecimentos), assim tambm sempre possvel tra-mar sobre sua prpria vida intrigas diferentes ou at opostas. (Ricoeur,1997, p. 425, 428)

    A noo de identidade narrativa supe um processo estrutural formador doque Ricoeur denomina ipseidade compreendida como a identidade de um simesmo relacional e, portanto, marcado pela abertura de um ser afetado pelomundo, em contraste com uma identidade fixa do mesmo.7

    Nesse sentido, a articulao identitria no sentido da ipseidade se dariade modo privilegiado a partir de narrativas pessoais e/ou histricas, dandoconta dos processos de mtua constituio entre o sujeito e suas relaes nomundo. Esse modo de constituio de um si mesmo aplica-se tanto iden-

    tidade social de uma comunidade quanto noo de subjetividade pensada

    7 A noo de ipseidade se distingue de uma subjetividade egocentrada para remeter a um ser do conhe-cimento, efeito das narrativas, na imbricao dos planos pessoal e cultural: Essa conexo entreipseidade e identidade narrativa confirma uma de minhas mais antigas convices, a saber, que o si doconhecimento de si no o eu egosta e narcsico cuja hipocrisia e ingenuidade , bem como o carterde superestrutura ideolgica e o arcasmo infantil e neurtico as hermenuticas da suspeita denunciaram.O si do conhecimento de si o fruto uma vida examinada, segundo a frase de Scrates na Apologia.Ora, uma vida examinada , em ampla medida uma vida depurada, explicada pelos efeitos catrticos dasnarrativas tanto histricas quanto fictcias veiculadas por nossa cultura. A ipseidade assim, a de umsi instrudo pelas obras da cultura que ele aplicou a si mesmo (Ricoeur, 1997, p. 425).

  • 8/14/2019 Biografia Identidade e Narrativa

    10/20

    292 Srgio F. Ferretti

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 9, n. 19, p. 283-302, julho de 2003

    Isabel Cristina M. Carvalho

    no caso de um indivduo. Destaca-se, nesse sentido, o papel da tica, en-quanto deciso orientadora da ao tanto dos indivduos quanto dos grupos

    sociais, como constitutiva da ipseidade. Nas palavras de Ricoeur:

    A identidade narrativa s equivale a uma verdadeira ipseidade emvirtude desse momento derrisrio, que faz da responsabilidade ticao fator supremo da ipseidade [] a narrativa j pertence ao campotico em virtude da pretenso, inseparvel da narrao, correotica. (Ricoeur, 1997, p. 429).

    Constitui-se assim, atravs da categoria de identidade narrativa uma inte-ressante compreenso das relaes entre indivduo, sociedade e historicidade.Nesse caso, a fronteira com que normalmente se distinguem esses campospoderia ser entendida menos como indicador de oposio e diferena e maiscomo rea de negociao e trnsito entre esferas, que no plano do vivido seconstituem mutuamente e nunca se dicotomizam.

    Ao final de Tempo e Narrativa, depois de ter explorado as possibili-dades, mas tambm os limites da narrativa e da identidade narrativa diantedas aporias da ao, da histria e do tempo, Ricoeur conclui sem obturar a

    abertura constitutiva do crculo hermenutico como condio da compreen-so: a impossibilidade do domnio do sentido frente aos componentes nonarrativos da ao e ao mistrio do tempo. Impossibilidade que no paralisa,mas ao contrrio, move a compreenso, a busca de compromisso tico e deuma identidade no tempo.8

    8 pertinente retomar as concluses do terceiro tomo de Tempo e Narrativa. Aqui se evidencia a

    recusa, por parte de uma hermenutica dialtica, ao fechamento da crcularidade compreensiva poruma resoluo que extinguiria o tensionamento da compreenso com sua alteridade negativa aspec-tos no narrativos, experincia pr-conceitual, mistrio do tempo. Como afirma Ricoeur: No verdade que a admisso dos limites da narrativa venha a abolir a posio da idia de unidade nahistria, com suas implicaes ticas e polticas. Ela, antes, o exige. Tampouco se dir que a admissodos limites da narrativa, correlativa da admisso do mistrio do tempo, ter caucionado o obscuran-tismo; o mistrio do tempo no equivale a uma interdio que recaia sobre a linguagem; ele, antes,provoca a exigncia de pensar e de dizer mais. Se assim for, preciso prosseguir at o fim omovimento de retorno, e sustentar que a reafirmao da conscincia histrica nos limites de suavalidez requer, por sua vez, a busca, pelo indivduo e pelas comunidades a que ele pertence, de suarespectiva identidade narrativa. Esse o ncleo duro de toda nossa investigao; pois s nessabusca que se respondem com uma pertinncia suficiente a aportica do tempo e a potica da narra-tiva (Ricoeur, 1997, p. 463-464).

  • 8/14/2019 Biografia Identidade e Narrativa

    11/20

    293Sincretismo afro-brasileiro e resistncia cultural

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 9, n. 19, p. 283-302, julho de 2003

    Biografia, identidade e narrativa...

    Entre o sujeito e a histria, o fato e o ficcio, o vivido e o narrado: o

    mapa biogrficoOs mtodos biogrficos podem ser considerados o territrio mais

    amplo onde se inscrevem os diversos recursos e abordagens para a anlisede auto-relatos e de trajetrias de vida.9 A contribuio de uma abordagemhermenutica a partir de Gadamer e Paul Ricouer reitera a fronteira entresujeito e histria como o ambiente epistmico por excelncia da pesquisabiogrfica e rompe com uma possvel orientao realista. Ao tomar os relatosbiogrficos como modalidades narrativas, estes deixam de ser produes indi-

    viduais e factuais e evidenciam a interpenetrao entre sujeito e histria bemcomo entre os acontecimentos e sua reconfigurao na tessitura de vidas nar-radas. Nessa perspectiva, o universo comum que engloba um campo de pr-ticas e discursos, como o ambiental, por exemplo, tambm pode ser visto, elemesmo, como uma grande narrativa que engloba e torna plausveis as narrativasindividuais.

    Na busca de acessar a conexo entre indivduo e seu ambiente scio-histrico, so valorizados, na perspectiva biogrfica, o auto-relato, a idia detrajetria, e a prpria noo de biografia como expresses privilegiadas desseencontro paradigmtico, como apontam Ferraroti (1983), Eckert (1994-97) eMarre (1991).10 Tambm em Bourdieu (1996) a histria de vida conduz aconstruo de uma trajetria que, diferentemente das biografias comuns,

    9 Usamos o conceito de mtodos biogrficos no sentido indicado por Marre, onde os recursos autobi-ogrficos relato, histria de vida, etc. so tomados no apenas como tcnicas de pesquisa mascomo parte constitutiva de um mtodo. Segundo o autor: Engloba-se na expresso histria de vida(life history), tanto relatos orais, como autobiografias escritas, longas entrevistas abertas e outrosdocumentos orais ou testemunhos escritos, conferindo, assim, expresso, um sentido mais amplo doque aquele com que geralmente empregada (Marre, 1991, p. 90) .

    10 Segundo Ferraroti Toda prtica social humana uma atividade sinttica, uma totalizao ativa de todoo contexto social. Uma vida uma prtica que se apropria das relaes sociais (as estruturassociais) asinterioriza e as transforma em estruturas psicolgicas pela sua atividade de desestruturao-reestruturao.[] Nosso sistema social est plenamente contido em nossos atos, dentro de nossos sonhos, delrios,obras, comportamentos, e a histria deste sistema est inteiramente presente dentro da histria de nossaindividualidade (Ferraroti, 1983, p. 50). Eckert, sobre o uso de relatos e narrativas no mtodo etnogrficorefere-se complexa combinao entre as narrativas pessoais, relatos de ciclos de vida, biografias,histrias familiares, trajetrias e projees de vida remetidos ao contexto histrico do desenvolvimento deuma sociedade, em que os informantes aparecem como atores histricos e sujeitos portadores de umaidentidade, considerando que as narrativas pessoais esto permeadas de intersubjetividade (Eckert, 1994-97, p. 18). Para Marre, o mtodo biogrfico tem como objetivo a partir da totalidade sinttica que o discurso especfico de um indivduo reconstruir uma experincia humana vivida em grupo e detendncia universal (Marre, 1991, p. 89).

  • 8/14/2019 Biografia Identidade e Narrativa

    12/20

    294 Srgio F. Ferretti

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 9, n. 19, p. 283-302, julho de 2003

    Isabel Cristina M. Carvalho

    descreve uma srie de posies ocupadas pelo mesmo agente (ou um mes-mo grupo) em estados sucessivos no campo a que pertence. Tomando o

    conceito de campo social como um espao de relaes materiais e simb-licas onde se posicionam os sujeitos, as trajetrias so percursos que sganham sentido dentro das regras do jogo, onde os agentes so afetados porum habitus11 e submetidos aos efeitos da illusio do campo.12

    A noo de biografia para os autores acima citados opera com a idiade que os indivduos so atravessados por movimentos culturais e processoshistricos involuntrios, contrapondo-se a certa orientao realista, que in-fluenciou a Escola de Chicago, particularmente nos anos 20 e 30.13 Assim,no est em foco uma recuperao de dados biogrficos de cunho individu-

    alista e psicolgico, mas sim a reconstruo, atravs dos relatos autobiogr-ficos, da trajetria histrica e cultural de um determinado grupo, ou ainda,das foras que constituem um campo social (Bourdieu, 1996). Nesse senti-do, se poderia afirmar, com Canclini (1997), que a identidade uma cons-truo que se narra.14

    A anlise biogrfica se constitui essencialmente numa situao comu-nicativa. Para ser levada a cabo com sucesso depende de vrias atividadescomunicativas: o informante deve contar sua histria de vida; descreversituaes de vida, e argumentarsobre problemas significativos e recorrentes

    11Habitus um conceito formulado por Elias (1994, p. 150) como a composio social dos indivduos []o solo de que brotam as caractersticas pessoais mediante as quais um indivduo difere dos outrosmembros de sua sociedade. Para Elias, o habitus seria a um estilo ou uma grafia mais ou menosindividual que brota da escrita social. Bourdieu retoma o conceito e o utiliza como nexo fundamental naconstituio do campo social. Para Bourdieu o habitus marca uma relao de cumplicidade ontolgicados agentes e o mundo social, que estrutura a percepo e a ao prtica dos agentes num determinadocampo. O habitus seria como um corpo socializado, um corpo estruturado, um corpo que incorporouas estruturas imanentes do mundo ou de um setor particular desse mundo, de um campo, e que estruturatanto a percepo desse mundo como a ao nesse mundo (Bourdieu, 1996, p. 144).

    12 Segundo Bourdieu A illusio estar preso ao jogo, preso pelo jogo, acreditar que o jogo vale a pena ou,que vale a pena jogar. [] Dito de outro modo, os jogos sociais so jogos que se fazem esquecerenquanto jogos e a illusio essa relao encantada com um jogo que o produto de uma relao decumplicidade ontolgica entre as estruturas mentais e as estruturas objetivas do campo social. Assim,Todo campo social, seja o campo cientfico, seja o campo burocrtico ou o poltico, tende a obterdaqueles que nele entram essa relao com o campo que chamo de illusio. Eles podem querer inverteras relaes de fora no campo, mas, por isso mesmo reconhecem os alvos, no so indiferentes(Bourdieu, 1996, p. 139-140).

    13 Os mtodos biogrficos nos anos 20 e 30 foram de certa forma reprimidos pelo desenvolvimento deuma filosofia positivista ento em ascenso que influenciou a Escola de Chicago. nesse contextoque a histria de vida vai se desenvolver como tcnica subordinada necessidade de fazer inves-tigaes realistas (cf. Marre, 1991).

    14 Para Canclini (1997, p. 149), ao se tornar um relato que reconstrumos incessantemente, queconstrumos com os outros, a identidade se torna tambm uma co-produo.

  • 8/14/2019 Biografia Identidade e Narrativa

    13/20

    295Sincretismo afro-brasileiro e resistncia cultural

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 9, n. 19, p. 283-302, julho de 2003

    Biografia, identidade e narrativa...

    em sua vida e como ele/ela se relaciona com isso. O pesquisador, ao traba-lhar meticulosamente sobre esse material comunicativo, tambm se torna

    ele mesmo mais um interlocutor, integrando o circuito dialgico da produ-o do conhecimento.

    Esta situao comunicativa ou dialgica pode ser estendida a outrasvozes, pois o sujeito da autobiografia, ao narrar sobre si mesmo, localiza-sequanto a outras narrativas, e participando de um consenso mais amplo.Como afirmam Bruner e Weisser (1995) a autobiografia uma atividade deposicionamento, quase de navegabilidade:

    a funo ltima da autobiografia a autolocalizao, o resultado de

    um ato de navegao que fixa a posio em um sentido mais virtualdo que real. Pela autobiografia, situamo-nos no mundo simblico dacultura. (Bruner; Weisser, 1995, p. 145).

    Ora, para navegar preciso estar dentro de um consenso, ao menos o quedetermina as convenes e, portanto, a legibilidade do mapa de navegao.

    Campo ambiental e identidade narrativa

    No mundo ambiental os mapas biogrficos so muito variados, massuficientemente articulados para indicar uma comunidade de sentido (Rorty,1987). H temas claramente nucleadores. So organizadoras do campo, porexemplo, as tenses: ser humano X natureza; controle e regulao social Xautonomia e emancipao; mudana individual X mudana coletiva/mundi-al/planetria, enquanto bases valorativas para se pensar uma ticaambiental.

    Esses dilemas que atravessam o campo ambiental so percebidos como

    comuns e esse reconhecimento compartilhado gera uma sensao do tipoeu sei que voc sabe que eu sei o que voc quer dizer (Bruner; Weisser,1995, p. 156), responsvel tanto por um nvel bsico de cumplicidade quan-to, certamente, por uma ampla margem de iluso e equvocos. Esse primeiroolhar de reconhecimento e incluso do outro num universo comum o quepoderamos considerar, recorrendo uma vez mais metfora de Bruner eWeisser, como uma carta bsica de navegao, isto , a condio bsica deconsenso que delimita um campo, necessria at mesmo para posicionar as

    divergncias e oposies dentro dele.

  • 8/14/2019 Biografia Identidade e Narrativa

    14/20

    296 Srgio F. Ferretti

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 9, n. 19, p. 283-302, julho de 2003

    Isabel Cristina M. Carvalho

    Tendo em vista a noo ampliada de narrativa enquanto condio deproduo de sentidos e identidade, poderamos dizer que, ao lidarmos com

    fontes textuais o que inclui documentos e relatos estamos diante do atonarrativo em uma de suas modalidades. Trata-se de, nesse caso, observardesde os depoimentos biogrficos como se tece a intriga que configura oambiental enquanto campo social e evento histrico durvel.15 O campoambiental, nesse caso, poderia ser tomado ele mesmo como constituindouma narrativa, dentro da qual os sujeitos esto j situados quando comeama contar sua histria pessoal como profissionais de meio ambiente.

    Assim, enfocando as trajetrias individuais e sua confluncia na consti-

    tuio do campo ambiental, podem-se ver a as marcas que configuram esteespao como constitutivo de uma identidade narrativa, que torna possvelque sujeitos, desde sempre mergulhados na historicidade e lingisticidade,agenciem os fatos de acordo com uma perspectiva de compreenso do mundoque quer comunicar uma certa experincia pessoal e social.

    Nesse sentido, pode-se dizer que os sujeitos sociais so ativos narra-dores ao mesmo tempo em que so narrados, isto , so formados pelasestruturas narrativas dominantes de seu tempo, e particularmente dos cam-pos de ao onde esto inseridos. Nesse sentido vale a pena trazer a con-

    tribuio de Edward Bruner (1986), no contexto do debate antropolgico,que introduz a noo de narrativa como estrutura de significado, tomandoa etnografia como uma narrativa tanto quanto o relato dos nativos sobre oqual ela se constri. Desde uma perspectiva reflexiva ele afirma que aetnografia, enquanto ato interpretativo, guiada por uma narrativa, isto uma estrutura narrativa implcita que fala sobre as pessoas que ns estu-damos (Bruner, E., 1986, p. 139). Para Edward Bruner os principais ele-mentos de uma narrativa so: a estria, o discurso e o relato (telling).16

    15 Como indica Ricoeur (1995) referindo-se ao historiador Paul Veyne, a noo de intriga pode serconsideravelmente ampliada a ponto de integrar componentes to abstratos da mudana social quan-to os que foram colocados em relevo pela histria no factual e at mesmo pela histria serial.Tambm usa o conceito de narrativa aplicado s compreenses predominantes que caracterizam umdeterminado perodo histrico. assim que ele se refere perda de credibilidade do grande relatomoderno que introduz a ps-modernidade.

    16 A estria a seqncia abstrata de eventos sistematicamente relatados, a estrutura sintagmtica. Odiscurso o texto no qual a histria se manifesta, o posicionamento num meio particular, como anovela, o mito, a leitura, filme, conversao. O relato (telling) a ao, o ato de narrar, o processocomunicativo que produz a histria no discurso. Nenhuma distino feita aqui entre contar/relatar(telling) e mostrar (showing), pois a mesma estria pode ser recontada ou atuada, ou ambos (Bruner,E., 1986, p. 139) estria est grafada, neste artigo, em conformidade com a edio brasileira do

    livro de E. Bruner.

  • 8/14/2019 Biografia Identidade e Narrativa

    15/20

    297Sincretismo afro-brasileiro e resistncia cultural

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 9, n. 19, p. 283-302, julho de 2003

    Biografia, identidade e narrativa...

    A estria, entendida como modelo, tem um duplo aspecto: ao mesmotempo linear e instantnea. Por um lado, a estria experienciada como

    uma seqncia e, por outro lado, percebida como um todo de uma s vez antes, durante e depois do relato. As estrias do sentido ao presente e nostornam capazes de v-lo como parte de um conjunto de relaes envolvendoum passado constitudo e um futuro. As narrativas mudam, todas as estriasso parciais, todos os sentidos incompletos. No h significado fixo nopassado, a cada novo relato varia o contexto, a audincia difere e a estria modificada. Assim, recontar se torna profetizar17 (Bruner, E., 1986, p.153).

    A respeito do relato, Edward Bruner (1986) aponta para quatro nveisde relatos que compem a pesquisa, enquanto uma produo discursivapolifnica. O primeiro o relato dos povos e/ou sujeitos estudados sobre simesmos (auto-relato). O segundo o do pesquisador em seu dirio decampo. O terceiro aquele que o pesquisador faz para sua audincia (co-legas/academia), com quem enriquece sua anlise para uma posterior publi-cao. O quarto pode ser considerado como aquele dos pesquisadores/leitoresdo trabalho, que o sumarizam e o discutem em suas prprias salas de aula epublicaes. Assim, estamos sempre recontando as mesmas histrias e ao

    mesmo tempo recriando-as.Tendo em vista a natureza narrativa dos processos biogrficos,Riemann e Schtze (1991) tambm enfatizam o relato e a anlise biogrficacomo uma situao essencialmente criativa, que lanada no circuito comu-nicativo, e como tal se estrutura com base em atividades tais como: oinformante deve contar sua histria; descrever situaes de vida, e argu-mentarsobre problemas significativos e recorrentes e como ele/ela se rela-ciona com isso. O pesquisador, ao trabalhar meticulosamente sobre essematerial comunicativo, tambm se torna ele mesmo mais um interlocutor,

    integrando o circuito dialgico da produo do conhecimento.Esta situao comunicativa pode ser estendida a outras vozes, pois o

    sujeito da autobiografia, ao narrar sobre si mesmo, localiza-se em relaoa outras narrativas, participando de um dilogo mais amplo com outroscampos ou contextos sociais. Os autores destacam as experincias de vidano contexto de sua produo pela interao social, e enfatizam o modocomo estas so interpretadas e sedimentadas no curso desta interao. O

    17 Em ingls a expresso : retelling become foreteling.

  • 8/14/2019 Biografia Identidade e Narrativa

    16/20

    298 Srgio F. Ferretti

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 9, n. 19, p. 283-302, julho de 2003

    Isabel Cristina M. Carvalho

    relato biogrfico , portanto, continuamente afetado pela interpretao, sejado prprio sujeito que o profere, seja do pesquisador que intervm enquanto

    mais um interlocutor.18Nos nveis do relato distinguidos por Edward Bruner, nas dimenses

    comunicativas indicadas por Riemann e Shtze, ou ainda nas mediaesconfigurantes da atividade mimtica descrita por Ricoeur, estamos diantedos diversos nveis do ato simblico e narrativo. Nesse jogo polifnico, osentido no est nunca aprisionado numa inteno ou significado prvio,mas efeito imprevisvel de um encontro de alteridades, portanto somenteacontece numa situao de comunicao e est fadado s vicissitudes darecriao permanente.

    A condio narrativa remete a experincia humana para o campo doficcio, no sentido da permanente reelaborao, ou ainda, poderamos dizer, daauto-inveno. Nesse sentido, a condio narrativa est presente tanto naliterariedade da obra artstica quanto no percurso do sujeito que se narra parasalvar-se das paralisias de uma trajetria cristalizada em pontos de trava neu-rticos.19 Seja enquanto produtividade cultural ou individual, trata-se de tomaro relato biogrfico como ato narrativo que proporciona ao sujeito sempre umanova oportunidade de se apresentar, recontar e reposicionar-se, tecendo e

    retecendo a intriga, sob os limites da discordncia do destino, do tempo e dodesconhecimento de si mesmo.As experincias, ao serem contadas, transpem a vida para o registro

    da narrativa, transformam-se em textos e passam a ser reguladas pelas re-gras de gnero e convenes que regem esse domnio. Dessa forma, porexemplo, o narrador do auto-relato no coincide completamente com opersonagem que protagoniza a ao, a comear por no compartilhar com

    18

    Segundo Riemann e Schtze (1991), os processos biogrficos afetam as atitudes e moldam relaci-onamentos sociais com outros grupos, e consigo mesmo. Tais experincias so, pela seqncia doseventos contextuais da histria de vida e relacionamentos com outros contextos complementares,competidores, e tambm recessivos e dominantes contextos. Durante os eventos da histria de vidaa posio da identidade pessoal muda consideravelmente. Essa mudana de orientao atinge osrelacionamentos consigo mesmo, com o presente, com sua histria pessoal, e seu futuro, e acom-panhada de um trabalho biogrfico. Este o trabalho de relembrar, interpretar e redefinir, queenvolve o trabalho comunicativo de companheiros de interao, especialmente outros significativos.

    19 Como Freud (1914) j havia postulado em Recordar, Repetir e Elaborar, no h repetio semelaborao, no h memria sem recriao. A repetio que caracteriza o sintoma neurtico aomesmo tempo sinalizador da possibilidade de superao do mesmo e produo do novo. Esteultrapassamento da repetio pelo novo justamente o limiar buscado pela cura psicanaltica que,cabe lembrar, se d pela palavra.

  • 8/14/2019 Biografia Identidade e Narrativa

    17/20

    299Sincretismo afro-brasileiro e resistncia cultural

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 9, n. 19, p. 283-302, julho de 2003

    Biografia, identidade e narrativa...

    este as condies de espao e tempo. Com isto destaca-se a disjuno entreo sujeito que narra (narrador) e o foco narrativo, mesmo que na autobiogra-

    fia se trate de um foco em primeira pessoa, do tipo eu-protagonista.20Bruner e Weisser valorizam na autobiografia no apenas o contedo ou os

    acontecimentos relatados (o que dizer/o que aconteceu), mas tambm o estilodo relato (como contar, para quem se fala). Para os autores:

    A forma de uma vida funo tanto das convenes de gnero eestilos a que se submete a narrao dessa vida, quanto, por assimdizer, daquilo que aconteceu no seu decorrer. Os pontos decisivos

    de uma vida no so provocados por fatos, mas por revises na his-tria que se usa para falar da prpria vida e de si mesmo. [] Assim,isso me leva a propor que, num certo sentido, as vidas so textos:textos sujeitos a reviso, exegese, reinterpretao e assim por diante.(Bruner; Weisser, 1995, p. 142).

    Os processos reflexivos de interpretao que se expressam no conceitode textualizao parecem ser uma caracterstica da prpria autoconscincia,um fenmeno histrico que est na origem da prpria modernidade.21 A

    condio de um sujeito que narra sua vida coloca-o numa posio que aomesmo tempo de autor e de intrprete de si mesmo. Trata-se aqui de pontuara distncia entre o sujeito e o si mesmo que narrado. Esta disjunosubjetiva a condio que torna a autocompreenso uma tarefa de interpre-tao e transforma o sujeito numa espcie de autor-intrprete de si mesmo.Esta condio faz do auto-relato uma construo no transparente e noplenamente controlvel para o sujeito, aproximando-a de um ato de criaoestruturalmente anlogo fico. Neste sentido o relato autobiogrfico norepresenta o sujeito, mas o produz. Da a natureza de auto-inveno dorelato autobiogrfico. Nesse sentido, como afirmam Bruner e Weisser

    20 O conceito de foco narrativo sistematizado por Leite, L. C. M. (1997).21 Para Bruner e Weisser (1995, p. 159): A transformao histrica desse tipo de autoconscincia no

    Ocidente constitui o determinante principal da mentalidade moderna as formas do gnero autobi-ogrficos por ele produzidas. Nessa avaliao, o declnio da servido e do feudalismo, as abstraesinerentes ao uso do dinheiro e a idia de excedente de recursos e reservas podem ter provocado umimpacto sobre essas formas orais e altamente passveis de interpretao, o mesmo tipo de impacto jprovocado pela cultura escrita.

  • 8/14/2019 Biografia Identidade e Narrativa

    18/20

    300 Srgio F. Ferretti

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 9, n. 19, p. 283-302, julho de 2003

    Isabel Cristina M. Carvalho

    (1995, p. 153) a autobiografia pode ser entendida como uma atividade deautoposicionamento que fixa uma posio mais virtual do que real e

    resulta de um ato de navegao pelo mundo simblico da cultura.O que estou sugerindo que entre a busca da verossimilhana nos

    auto-relatos e a criao deliberada da narrativa literria h mais continuida-des do que supe uma ntida demarcao dos territrios do real e doficcional. Assim, por exemplo, pude tomar os auto-relatos sobre a trajetriaambiental dos sujeitos que pesquisei como se afastando de uma histrianatural, como acontece na narrativa de fico. Guardadas as diferenasentre esses dois campos narrativos, as biografias narradas atravs das traje-

    trias de vida tambm poderiam ser vistas como espaos ficcionais, a partirdos quais lembrar e contar sempre reorganizar e reconstruir uma identi-dade narrativa.22 Essa auto-inveno, por sua vez, traz consigo a invenodo Outro, das relaes de alteridade e, portanto, da identidade narrativa deum campo intersubjetivo e cultural em questo. nesse sentido que a auto-inveno dos sujeitos simultaneamente posicionada num campo social edemarcadora desse mesmo campo.

    Nesse sentido, nos estudos anteriormente mencionados (Carvalho,2001, 2002), o que estava sendo inventado no ato narrativo autobiogrficodos educadores ambientais, para alm da individualidade das vidas narra-das, podia ser postulado nos termos de uma identidade narrativa que aomesmo tempo demarca o campo e a ao dos sujeitos dentro dele. Estaconstruo identitria, tomada do ponto de vista dos atores, evidencia umsujeito ecolgico, um tipo ideal suposto a guiar-se por uma tica ambientale comprometido em levar adiante e expandir as crenas preconizadas pelocampo ambiental. Essa mesma construo identitria, tomada do ponto devista do campo, se instaura enquanto horizonte de atribuio de sentidos

    para o ambiental, constituindo, portanto, o campo de possibilidades dosujeito ecolgico.

    22 Concordo com Bruner e Weisser (1995, p. 145) quando consideram: A estratgica tarefa do contar seja a histria contada para consumo prprio ou de outrem, e as duas coisas sempre acontecem tornar a narrativa crvel. Criar essa narrativa no significa mentir deliberadamente ou, como devemfazer os escritores de fico, usar um fragmento da memria para a elaborao de uma histria; aoagirmos assim, buscamos uma verossimilhana que satisfar a ns e a nossos ouvintes.

  • 8/14/2019 Biografia Identidade e Narrativa

    19/20

    301Sincretismo afro-brasileiro e resistncia cultural

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 9, n. 19, p. 283-302, julho de 2003

    Biografia, identidade e narrativa...

    Referncias

    BENJAMIN, W. Obras escolhidas: magia e tcnica, arte e poltica. SoPaulo: Brasiliense, 3. ed., 1987. v. 1.

    BORDIEU, P. Razes prticas sobre a teoria da ao. Campinas: Papirus,1996.

    BRUNER, E. Ethnography as narrative. In: TURNER, V.; BRUNER, E.(Ed.). The anthropology of experience. Chicago: llinois University Press,1986. p. 139-155.

    BRUNER, J. Acts of meaning. Cambridge: Harvard University Press, 1990BRUNER, J.; WEISSER, S. A inveno do ser: autobiografia e suas formas.In: OLSON, D.; TORRANCE, N. (Org.). Cultura escrita e oralidade. SoPaulo: tica, 1995.

    CANCLINI, N. G. Consumidores e cidados. Editora UFRJ, 1997

    CARVALHO, I. C. M. A inveno do sujeito ecolgico: sentidos e trajet-rias em educao ambiental. Tese (Doutorado em Educao)UniversidadeFederal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2001.

    CARVALHO, I. C. M. A inveno ecolgica: sentidos e trajetrias da edu-cao ambiental no Brasil. 2. ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002.

    ECKERT, C. Questes em torno do uso de relatos e narrativas biogrficasna experincia etnogrfica. Revista Instituto de Filosofia e Cincias Huma-nas, Porto Alegre, ano 94-97.

    ELIAS, N. A sociedade dos indivduos. Rio de janeiro: Zahar, 1994.

    FERRAROTI, F. Histoire et histoire de vie: le mthode biografique das lessciences sociales. Paris: Librarie des Meridiens, 1983

    GADAMER, H. G. Verdade e Mtodo; traos fundamentais de umahermenutica filosfica. 2. ed. Petrpolis: Editora Vozes, 1998.

    GEERTZ, C. Negara: o Estado teatro no sculo XIX. Rio de Janeiro:Bertrand, 1991.

    LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O foco narrativo. 8. ed. So Paulo: tica,1997.

  • 8/14/2019 Biografia Identidade e Narrativa

    20/20

    302 Srgio F. Ferretti

    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 9, n. 19, p. 283-302, julho de 2003

    Isabel Cristina M. Carvalho

    MARRE, J. L. Histria de vida e mtodo biogrfico. Cadernos de Sociolo-gia, v. 3, p.55-88, 1991.

    RICOUER, P. Tempo e narrativa (tomo I). So Paulo: Papirus, 1994.

    RICOEUR, P. Tempo e narrativa (tomo II). So Paulo: Papirus, 1995.

    RICOEUR, P. Tempo e narrativa (tomo III). So Paulo: Papirus, 1997.

    RIEMANN, G.; SCHTZE, F. Trajectory as a basic theoretical concept foranalizing suffering and disorderly social process. In: MAINES, D. R. Socialorganization and social process: essays in honor of Anselm Strauss. NewYork: Aldine de Gruytier; 1991.

    RORTY, R. Solidariedade ou objetividade?Novos Estudos CEBRAP, p. 109-121, 1987.

    SAHLINS, M. Ilhas de histria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.

    Recebido em 25/04/2003

    Aprovado em 15/05/2003