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BOLETIM DE CONJUNTURA NERINT Bol. Conj. Nerint | Porto Alegre | v.1 n. 3 | p. 1-74 | nov/2016 | ISSN: 2525-5266 3 EDITORIAL: ÁSIA & ORIENTE MÉDIO Já se tornou lugar-comum afirmar que as relações internacionais passaram por um processo de aceleração e transformação. Todavia, o ano de 2016 tem abalado os mais argutos analistas. O “impen- sável” não apenas tem ocorrido, mas tem feito escola. A “invasão” da Europa por refugiados do Oriente Médio e do norte da África, o voto do Brexit, as reviravoltas diplomáticas da Turquia e, last but not least, a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, demonstram que “tudo que é sólido, desmancha no ar”. Assim, o terceiro número do Boletim de Conjuntura do NERINT traz quatro análises de grande relevância e originalidade. Em primeiro lugar, o ingresso simultâneo da Índia e do Paquistão na Organiza- ção para a Cooperação de Xangai, não apenas reforça qualitativamente o grupo, como derruba algumas “certezas” analíticas. O ingresso de dois rivais em uma organização discretamente liderada por uma po- tência competidora de um deles – China e Índia –, obriga os analistas a repensarem muitas assertivas. Por outro lado, a alteração da política de defesa do Japão tem gerado especulações de todo tipo sobre o novo cenário geopolítico da Ásia Oriental. Mas eis que a eleição de Trump vai de encontro aos projetos em curso nas áreas de segurança e integração comercial – como a Parceria Transpacífico (TPP). Assim, o primeiro-ministro japonês Shinzō Abe foi imediatamente ao encontro do presidente americano eleito. Outro fenômeno surpreendente tem sido as guinadas da política turca em relação à Rússia, à União Europeia, aos refugiados e ao conflito sírio. Um falhado golpe de Estado serviu de catalizador para tal reviravolta. Seriam estas jogadas táticas do presidente Recep Erdogan para barganhar maiores be- nefícios, ou uma mudança de rumos devida aos inesperados desenvolvimentos ocorridos recentemente, que se tornam ainda mais complicados com a eleição de Trump? Por fim, um conflito mantido à margem dos grandes noticiários, a guerra civil no Iêmen, começa a ganhar destaque e a revelar sua importância estratégica. Assim, o artigo final informa o leitor sobre o conflito desconhecido de um país também desconhecido fora de um limitado círculo de especialistas. Não apenas por sua posição geopolítica privilegiada, mas ao expor a Arábia Saudita, ele tende a pesar mais no jogo político regional. *** Com estes estudos, o Núcleo Brasileiro de Estratégia e Relações Internacionais contribui para qualificar o debate acadêmico. A coordenação cumprimenta e agradece os Pesquisadores Assistentes e bolsistas de Iniciação Científica responsáveis pela edição, redação e tradução deste Boletim. Paulo Fagundes Visentini* Coordenador do Nerint * Editor, Professor Titular de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), coordenador do Núcleo Brasileiro de Estratégia e Relações Internacionais (NERINT) e pesquisador do CNPq

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EDITORIAL: ÁSIA & ORIENTE MÉDIO

Já se tornou lugar-comum afirmar que as relações internacionais passaram por um processo de aceleração e transformação. Todavia, o ano de 2016 tem abalado os mais argutos analistas. O “impen-sável” não apenas tem ocorrido, mas tem feito escola. A “invasão” da Europa por refugiados do Oriente Médio e do norte da África, o voto do Brexit, as reviravoltas diplomáticas da Turquia e, last but not least, a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, demonstram que “tudo que é sólido, desmancha no ar”. Assim, o terceiro número do Boletim de Conjuntura do NERINT traz quatro análises de grande relevância e originalidade. Em primeiro lugar, o ingresso simultâneo da Índia e do Paquistão na Organiza-ção para a Cooperação de Xangai, não apenas reforça qualitativamente o grupo, como derruba algumas “certezas” analíticas. O ingresso de dois rivais em uma organização discretamente liderada por uma po-tência competidora de um deles – China e Índia –, obriga os analistas a repensarem muitas assertivas. Por outro lado, a alteração da política de defesa do Japão tem gerado especulações de todo tipo sobre o novo cenário geopolítico da Ásia Oriental. Mas eis que a eleição de Trump vai de encontro aos projetos em curso nas áreas de segurança e integração comercial – como a Parceria Transpacífico (TPP). Assim, o primeiro-ministro japonês Shinzō Abe foi imediatamente ao encontro do presidente americano eleito. Outro fenômeno surpreendente tem sido as guinadas da política turca em relação à Rússia, à União Europeia, aos refugiados e ao conflito sírio. Um falhado golpe de Estado serviu de catalizador para tal reviravolta. Seriam estas jogadas táticas do presidente Recep Erdogan para barganhar maiores be-nefícios, ou uma mudança de rumos devida aos inesperados desenvolvimentos ocorridos recentemente, que se tornam ainda mais complicados com a eleição de Trump? Por fim, um conflito mantido à margem dos grandes noticiários, a guerra civil no Iêmen, começa a ganhar destaque e a revelar sua importância estratégica. Assim, o artigo final informa o leitor sobre o conflito desconhecido de um país também desconhecido fora de um limitado círculo de especialistas. Não apenas por sua posição geopolítica privilegiada, mas ao expor a Arábia Saudita, ele tende a pesar mais no jogo político regional.

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Com estes estudos, o Núcleo Brasileiro de Estratégia e Relações Internacionais contribui para qualificar o debate acadêmico. A coordenação cumprimenta e agradece os Pesquisadores Assistentes e bolsistas de Iniciação Científica responsáveis pela edição, redação e tradução deste Boletim.

Paulo Fagundes Visentini*

Coordenador do Nerint

* Editor, Professor Titular de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), coordenador do Núcleo Brasileiro de Estratégia e Relações Internacionais (NERINT) e pesquisador do CNPq

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Índia e Paquistão na organização Para a CooPeração de Xangai: a busCa Por estabilidade PolÍtiCa e integração na Ásia

Erik Herejk Ribeiro1 e Maria Gabriela Vieira2

• A Organização para a Cooperação de Xangai é uma coalizão que promove a multipo-

laridade, a estabilidade regional e a integração de projetos de infraestrutura.

• O triângulo China-Índia-Rússia forma a nova base do status global da Organização e

evolui num cenário onde os Estados Unidos buscam a primazia.

• A entrada de Índia e Paquistão reduz a coesão da instituição, mas fornece ferramentas

para estabilizar o Afeganistão e harmonizar os interesses das potências regionais.

Apresentação

O objetivo deste breve artigo é apresentar a racionalidade estratégica da entrada de Índia e Paquistão como membros plenos da Organização para a Cooperação de Xangai (OCX) em 2016. A OCX pode ser entendida como uma coalizão anti--hegemônica, que tem como principal objetivo a estabilidade política e a promoção da integração entre as diversas sub-regiões da Ásia.

Em primeiro lugar, reconhecemos a existência de entraves à cooperação entre China, Índia, Paquis-tão e Rússia. Estes entraves são de difícil resolu-ção, mesmo em longo prazo. Podemos citar a ini-mizade entre Índia e Paquistão, a rivalidade entre China e Índia e a participação dos Estados Unidos como balanceador externo. Portanto, nosso obje-tivo não é argumentar que está emergindo uma

aliança entre os quatro países. Além disso, o Sécu-lo XXI tem sido marcado por coalizões de interes-ses, onde raramente surgem novos alinhamentos automáticos. Ou seja, a despeito das dificuldades nas relações entre os países membros, sua parti-cipação na OCX traz consigo a harmonização de interesses em comum.

Na primeira seção, faremos uma apresentação da Organização para a Cooperação de Xangai, anali-sando seu histórico, as principais características políticas e institucionais e a sua relevância inter-nacional. Num segundo momento, abordamos os objetivos dos três principais membros: China, Índia e Rússia. Este triângulo3 tem como agenda a pro-moção da multipolaridade e a estabilidade política no entorno estratégico destes países. Na terceira

1 Doutorando e Mestre em Estudos Estratégicos Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Contato: erik_ribeiro@

yahoo.com.br

2 Graduanda em Relações Internacionais pela UFRGS. Contato: [email protected]

3 Para uma análise mais aprofundada dos triângulos e quadrângulos estratégicos na Ásia, ver Iwashita (2007).

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seção, analisamos o potencial da agenda de coo-peração da OCX, incluindo a resolução de conflitos (instabilidade no Afeganistão e rivalidade Índia-Pa-quistão) e a promoção de interligação em infraes-trutura no continente asiático.

A formação da Organização para a Cooperação de Xangai

Fundada em 2001, a Organização para a Cooperação de Xangai surge para consolidar os princípios da organização antecessora, “Os Cinco de Xangai”, criada em 1996. Seus membros funda-dores são China, Rússia, Cazaquistão, Tadjiquistão e Quirguistão e Uzbequistão. A Carta da OCX, as-sinada em 2002, traz o conteúdo ético da organi-zação, reconhecido como o Espírito de Xangai. Os principais pontos deste documento são: respeito à soberania, à independência e à integridade territo-rial; não agressão; não intervenção em assuntos domésticos alheios; proteção mútua a atos ilegíti-mos de terceiros; e igualdade entre os membros.Originalmente, a OCX tinha seu foco na cooperação securitária entre China, Rússia e os países da Ásia Central. O objetivo dos fundadores da Organização foi criar um mecanismo para alcançar a estabilida-de regional. Aproveitou-se o contexto de reaproxi-mação da China e da Rússia no período pós-Guerra Fria por meio da cooperação militar e da demarca-ção de fronteiras em disputa (Aris 2008).

No entanto, seus objetivos se expandiram devido ao contexto de sua evolução, em meio à hegemo-nia estadunidense e às guerras do Kosovo (1998), Afeganistão (2001) e Iraque (2003). De fato, os Estados Unidos utilizar a superioridade de poder militar a partir dos anos 1990 para pressionar Chi-na e Rússia. Em sua política de defesa, os EUA in-vestiram na primazia por meio da construção de

escudos antimísseis na Europa e no Leste Asiáti-co. Além disso, os estadunidenses não abdicaram de sua presença global, apesar de terem aliados regionais (Kapstein e Mastanduno 1999; Cepik e Martins 2014).

Em termos políticos, a OCX reúne entre seus mem-bros um conjunto significativo de recursos de poder militar, demográfico, econômico e energético. Tal fato acaba colocando a Organização como um ator de extrema importância na geopolítica da massa continental eurasiana. Em termos de desafios re-gionais, o combate ao terrorismo é prioridade na agenda da Organização. Em 2001, foi assinada a Convenção de Xangai de Combate ao Terrorismo, Separatismo e Extremismo. Estes são considera-dos os “três males” centrais a serem combatidos. Os dois órgãos permanentes da OCX são o Secreta-riado e a Estrutura Anti-Terrorista Regional (RATS), que combina as bases de dados dos países mem-bros e auxilia no fornecimento de inteligência. A Or-ganização também tem procurado aumentar sua inserção internacional, dialogando com diversos organismos internacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU), a Associação das Na-ções do Sudeste Asiático (ASEAN), a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), entre outros.

Existe a expectativa de que a OCX poderia ser uti-lizada como instrumento para a mitigação de con-flitos, como no caso do Afeganistão em meio à re-tirada das tropas da Organização para o Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Contudo, a experiência anterior da OCX nos mostra que a instituição não estaria disposta a intervir diretamente em conflitos domésticos. Um exemplo deste ponto foi a relutân-cia da OCX em ajudar o Quirguistão a gerenciar sua crise interna em 2010, mesmo quando o presiden-

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te do país solicitou assistência.

O triângulo China-Índia-Rússia

O principal impacto sistêmico da expansão recente da OCX é o estreitamento dos laços entre China, Índia e Rússia. Em nível global, os três paí-ses tentam prevenir a primazia dos Estados Unidos e também partilham de uma agenda de reforma da ordem internacional. Em nível regional, ambos têm interesse em evitar que as crises securitárias no Oriente Médio e Ásia Central desestabilizem o continente asiático e coloquem empecilhos ao pro-gresso da integração eurasiana. Embora haja en-traves à transformação deste triângulo em uma aliança política, a entrada da Índia na Organização é um indicador relevante de coalizão geopolítica e harmonização de interesses.

A ideia da aproximação entre as três potências não é recente. Em 1998, o então primeiro ministro da Rússia, Yevgeny Primakov, propôs a criação de um triângulo estratégico. Naquele momento, sua inten-ção era evitar que os EUA aproveitassem o momen-to unipolar para buscar a primazia militar e subor-dinar os três países à sua ordem hegemônica. Por este motivo, o lançamento do grupo dos Cinco de Xangai foi um marco da cooperação sino-russa. No entanto, o triângulo não avançou devido à falta de vontade política da China e às fragilidades internas da Índia, cuja prioridade era a modernização nacio-nal e a reorientação de suas relações exteriores. Com o fim do ciclo do não alinhamento, as elites po-líticas indianas precisavam de uma parceria sólida com os países ocidentais (Iwashita 2007).

Quase vinte anos após a proposta de Primakov, a ordem internacional enfrenta mudanças importan-

tes. A retomada econômica russa e a ascensão de China e Índia deram as bases de sustentação ao grupo BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). A promoção da multipolaridade e da des-centralização da governança global são as duas pautas desta coalizão anti-hegemônica4. Além disso, no âmbito econômico, os países periféricos possuem maior margem de manobra em compa-ração ao momento unipolar da década de 1990. A nova inserção internacional de China e Índia tem criado novas redes de comércio e investimento, diluindo a forte influência histórica das potências ocidentais.

Do ponto de vista estratégico e militar, o triângu-lo China-Índia-Rússia possui grande autonomia de ação. Neste trio, os russos são os maiores deten-tores de tecnologia no setor de defesa e ainda são líderes em inovação. No entanto, a China desponta em longo prazo como a maior potência militar da Eurásia, utilizando suas capacidades industriais para sustentar forças armadas modernas e um exército de massas. Apenas a Índia se encontra relativamente dependente de tecnologia estran-geira, barganhando com seu tradicional parceiro (Rússia) e com novos fornecedores, destacando--se França, Estados Unidos e Israel.

China e Rússia podem ser considerados pólos autônomos de poder, pois possuem a Tríade Nu-clear5 e o Comando do Espaço6, que lhes confere capacidade de retaliação nuclear e de condução da guerra em condições informatizadas. Estas ca-pacidades estratégicas têm sido o garantidor do equilíbrio de poder global no período pós-Guerra Fria (Ávila, Cepik e Martins 2009). A Índia, por sua vez, está cada vez mais próxima da tríade nuclear e do Comando do Espaço (Neves 2015).

5 Tríade Nuclear é a capacidade de entrega de armas nucleares por meio de plataformas de superfície, marítimas e aéreas.

6 Comando do Espaço é a capacidade de lançar e operar um sistema de plataformas espaciais.

4 A criação do Banco do BRICS como alternativa ao Fundo Monetário Internacional (FMI) é parte importante deste processo.

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Ou seja, a Índia aproxima-se cada vez mais da con-dição de pólo autônomo de poder, o que lhe possi-bilita entrar no jogo das Grandes Potências como igual e não como parceiro menor de qualquer país. A tradução desta nova inserção externa é a capaci-dade de engajar-se numa dinâmica simultânea de apoio e reforma da ordem internacional, de coope-ração e competição com as principais potências. Além disso, fornece poder suficiente para atrair de países menores para sua esfera de influência. Neste contexto, a entrada da Índia na OCX significa que o país se candidata a garantidor da multipola-ridade global e de uma ordem internacional com diversos núcleos regionais de poder.

Do ponto de vista do entorno estratégico, Primakov preparava a Rússia para um Sistema Internacional cujas rivalidades geopolíticas não eram aparen-tes. Em seu lugar, emergiram novos conflitos e agendas pouco claras. O primeiro-ministro russo, que era um especialista em Oriente Médio, esta-va ciente da visão estadunidense sobre o “Arco de Crises”, expressão criada pelo ex-secretário de estado Zbigniew Brzezinski em 1978. Naquele mo-mento, o Arco era considerado a primeira linha de contenção à URSS, onde também estava grande parte das reservas petrolíferas mundiais. Por outro lado, também é uma faixa territorial que se estende do Chifre da África ao Paquistão, onde há Estados frágeis, uma série de grupos militantes radicais e insurgências armadas.

Em 1994, Robert Kaplan, um conselheiro de defe-sa do governo estadunidense, lançou a hipótese da chegada da anarquia (The Coming Anarchy). Ele argumentou que a maior ameaça securitária ao mundo civilizado viria da emergência de Estados falidos devido ao tribalismo, ao uso político da re-ligião e à pobreza extrema. Dois anos depois, Sa-muel Huntington (1996) lançou a tese do Choque de Civilizações, corroborando a ideia da aliança do

mundo civilizado contra os bárbaros e dos conflitos baseados em identidades culturais e religiosas.

Por trás das análises pessimistas acerca da ordem global no período pós-Guerra Fria, os Estados Uni-dos percebiam oportunidades políticas no Arco de Crises. Em primeiro lugar, os países da Ásia Central recém tinham se tornado independentes da União Soviética e passavam por um período de desorien-tação estratégica. Além disso, os Estados nacio-nais do Irã e do Iraque continuavam a desafiar a hegemonia americana no Oriente Médio, se colo-cando como líderes regionais.

Deste modo, as guerras da OTAN contra o Afega-nistão (2001) e contra o Iraque (2003) devem ser entendidas num contexto de busca dos EUA pela primazia, explorando as fragilidades políticas na vizinhança eurasiana. Como os EUA estão geo-graficamente distantes da Eurásia, sua presença militar precisa ser garantida por bases em países aliados e pelo controle dos oceanos Índico e Pacífi-co. Por isso, a priorização do terrorismo e da insur-gência como inimigos centrais também é útil para angariar novos aliados. Num primeiro momento, a Guerra ao Terror também serviu aos interesses de China, Índia e Rússia. Estes países enfrentam movimentos separatistas em seus territórios do Xinjiang, Caxemira e Chechênia, respectivamente. Os países europeus também apoiaram a coalizão de forças que invadiu o Afeganistão para derrotar o regime Talibã.

Contudo, a invasão do Iraque em 2003 demons-trou que o objetivo não era somente o combate ao terrorismo, mas a ampliação da presença militar dos Estados Unidos no Arco das Crises. Ellen Wood comenta que, na impossibilidade de estar presen-te em todos os lugares ao mesmo tempo, os Esta-dos Unidos criam um clima de temor psicológico. Assim, as guerras servem ao propósito de demons-

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trar, pelo uso frequente da força, que os EUA po-dem derrotar qualquer país, em qualquer região do mundo, que se oponha a seus objetivos (Wood e Patriquin 2012: 259-260).

O problema decorrente desta presença é que os problemas do Afeganistão e do Iraque não foram resolvidos após as guerras estadunidenses. Pelo contrário, mais de uma década depois, ambos en-frentam sérias ameaças de desintegração e suas regiões podem entrar em espirais de violência e separatismos. Pode-se afirmar que existe um para-doxo da retirada das forças da OTAN: nenhum dos países vizinhos está satisfeito com a presença dos Estados Unidos, mas todos temem a mudança de situação após a sua retirada.

O potencial político e econômico da OCX

A partir da entrada de Índia e Paquistão, a OCX passou a ter uma nova agenda institucional. Para além do combate ao radicalismo político, a Organização agora se propõe a gerenciar conflitos regionais, em especial a situação do Afeganistão e a rivalidade prolongada entre Índia e Paquistão. Além disso, os chineses conseguiram oficializar a promoção da nova rota da seda dentro do arca-bouço da instituição, alinhando seus projetos com os russos. Deste modo, cresce o potencial de co-operação multilateral em infraestrutura dentro da OCX.

No Oriente Médio, a maior ameaça à estabilidade é a expansão do Estado Islâmico (ISIS), originado dos escombros da Guerra do Iraque e hoje pre-sente também na Síria. No Afeganistão, a retirada progressiva das tropas da OTAN está deixando um vácuo de poder. Esta situação vai gerar disputas entre o governo de Kabul, o Talibã, as minorias ét-nicas do norte, grupos militantes radicais e potên-cias externas.

Neste contexto, a entrada de Índia e Paquistão na OCX tem como objetivo gerenciar a estabilidade política regional e harmonizar os interesses de di-ferentes potências. A tarefa é extremamente com-plexa, pois há uma significativa variedade de agen-das. A China prioriza a estabilidade política para perseguir seus objetivos de expansão econômica. Ao mesmo tempo, os chineses apoiam o Paquistão para manter o equilíbrio de poder no Sul da Ásia e colocar a Índia em cheque (Malik 2012). A Rússia também prioriza a estabilidade, mas não deseja que a China se torne a potência predominante na Ásia Central, pois os russos ainda enxergam seus vizinhos como parte de sua esfera de influência (Aris 2008).

O Paquistão, por outro lado, vive um conflito em sua própria identidade nacional. Historicamente, a oscilação paquistanesa gira em torno de um Es-tado nacional sob o domínio das elites punjabis e o irredentismo sob a ideologia do pan-islamismo no Sul da Ásia (Cohen 2004). Por isso, a agenda regional do seu setor de inteligência e de parte do exército inclui o apoio a insurgências islamistas ra-dicais. Em contrapartida, os setores em favor do Estado nacional, como as elites civis e a maior par-te das forças armadas, desejam a estabilidade na vizinhança. Sua intenção é aproveitar os vultosos investimentos chineses em infraestrutura, que po-dem trazer prosperidade e crescimento econômico ao Paquistão.

A Índia deseja estabilidade, pois seu principal obje-tivo no período pós-Guerra Fria é obter crescimen-to acelerado (Sisodia 2014). Neste sentido, um en-torno estratégico conflituoso causa sérias perdas econômicas ao país. Por este motivo, a manuten-ção da rivalidade indo-paquistanesa serve mais a outra parte, que receia a decolagem econômica indiana e o aumento das disparidades de poder no Sul da Ásia. Além disso, os indianos necessitam dos recursos naturais da Ásia Central, que só po-

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dem ser acessados por meio do Afeganistão, via Irã ou Paquistão. Por isso, a Índia investe no porto iraniano de Chabahar, com a ambição de criar um corredor logístico.

Em contrapartida, os indianos têm dificuldade em aceitar que o Sul da Ásia esteja sob crescente in-fluência da China, que lidera os projetos regionais de infraestrutura e a venda de armamentos para os vizinhos da Índia. Ademais, devido aos ataques terroristas na Caxemira em 2016, a Índia mais uma vez se vê instada a aumentar o tom do dis-curso contra o Paquistão. O atual primeiro minis-tro Narendra Modi, do Partido Bharatiya Janata, tem levantado o problema dos direitos humanos no Baluquistão, uma província de minorias étnicas baluques no sul do Paquistão. Cabe relembrar que os indianos entraram como beligerantes na guerra de independência de Bangladesh (1971) e auxilia-ram na vitória dos bengalis. Portanto, a Índia toca novamente na questão do separatismo étnico, que permanece como o maior problema para a manu-tenção do Estado paquistanês.

Diante destas agendas conflitantes, a missão inicial da OCX é impedir que os interesses antagônicos se traduzam em guerras por procuração no Afega-nistão. O pior cenário pós-retirada dos EUA seria o retorno ao caos, incluindo a chegada do Estado Is-lâmico como novo ator regional. Para prevenir este cenário, duas medidas seriam relevantes: reduzir o apoio paquistanês a grupos radicais e reforçar o governo de Kabul. Nestes processos, a China é parte essencial. Os chineses têm o maior poder de barganha em relação ao Paquistão, que depende em grande medida de seu financiamento e venda de armas. Além disso, a China não participou das guerras no Afeganistão e por isso tem conseguido negociar com todas as partes no processo de paz. Os chineses prometem ganhos econômicos e de infraestrutura caso os atores locais mantenham

a estabilidade. Recentemente, o próprio país afe-gão ganhou status de membro observador da OCX. Contudo, as relações complexas entre o Paquistão e o Talibã ainda são o maior impeditivo para a paz (Jin 2016).

A Rússia tem fornecido treinamento militar e armas para o governo de Kabul, mas não acredita na sua capacidade de obter vantagem sobre os demais grupos. Por isso, os russos não descartam nego-ciações diplomáticas com o Talibã, especialmente porque consideram o ISIS como a principal amea-ça. Os russos também reforçam a presença militar no Tadjiquistão, pois temem um cenário de alastra-mento do conflito afegão para a Ásia Central, com a participação ativa do ISIS (Frolovskiy 2016).

A Índia, com a ajuda dos Estados Unidos, tem tra-balhado por uma agenda comum no Afeganistão: pressionar o Paquistão a entrar em negociações e cessar o apoio ao Talibã e outros grupos insurgen-tes afegãos. Em 2016, os EUA cancelaram parte da ajuda econômica e militar aos paquistaneses. Enquanto isso, a Índia forneceu um pacote de aju-da na faixa de US$ 1 bilhão e quatro helicópteros Mi-25 ao Afeganistão (Snow 2016). O Irã também é parte importante no cálculo regional e tem bus-cado a cooperação com o governo afegão. Os ira-nianos são os principais candidatos a se tornarem o próximo novo integrante da OCX. Após o acordo nuclear com os Estados Unidos, o Irã poderá ter maior legitimidade para atuar como parceiro pela estabilidade regional.

Apesar de todos estes esforços, o principal entrave permanece: a chave para a resolução dos confli-tos regionais está na posição do Paquistão. Perce-bendo a parceria entre Kabul, EUA e Índia, os pa-quistaneses têm tomado posições intransigentes em negociações multilaterais e inclusive fecharam brevemente a fronteira afegã em agosto de 2016

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(Snow 2016). Considerando o dilema histórico pro-fundo do Paquistão, não parece provável que o país supere sua crise de identidade com facilidade.A OCX se torna força importante ao vincular as ações paquistanesas de longo prazo com os obje-tivos da Organização. A participação do Paquistão na OCX promove um canal de diálogo diplomático permanente e favorece a ascensão de lideranças comprometidas com o multilateralismo e a cons-trução de confiança. Todavia, dificilmente os paí-ses da OCX teriam disposição em tomar o lugar dos Estados Unidos na ocupação direta do Afeganistão. Pelo contrário, o princípio básico de sua atuação é garantir que os Estados membros e a vizinhança tenham capacidades próprias de defesa da sobe-rania. O segundo ponto onde a OCX pode auxiliar é na cooperação em infraestrutura, que traz novas re-ceitas aos governos, auxilia na construção de ca-pacidades estatais e promove desenvolvimento econômico compartilhado. Em 2005 e 2006, a OCX fundou o Consórcio Interbancos e o Conselho Empresarial, respectivamente. Os dois grupos se reúnem anualmente para definir a pauta de inves-timentos a serem feitos e o crédito disponibilizado para cada projeto.

Grande parte da resistência política aos inves-timentos da China em infraestrutura deriva da noção de que o país age de modo unilateral. No caso da OCX, a harmonização das iniciativas em infraestrutura leva em consideração os interesses estratégicos de cada país. Em 2015, China e Rús-sia assinaram um documento conjunto onde se comprometem a harmonizar os projetos da rota da seda e da União Econômica Eurasiana, respectiva-mente. A intenção dos países membros é criar um novo banco de desenvolvimento da OCX, nos mol-des do Novo Banco de Desenvolvimento do BRICS

e do Banco Asiático de Investimento em Infraestru-tura (AIIB) (TBP, 2015).

Atualmente, os principais megaprojetos de infraes-trutura são o Corredor Econômico China-Paquistão e a nova rota da seda na Ásia Central. Em 2014, a China anunciou investimentos no montante de US$ 40 bilhões para financiar a rota da seda, dos quais US$ 16 bilhões seriam direcionados à Ásia Central (TBP, 2015). Neste novo momento de ex-pansão da Organização, o Sul da Ásia se torna parte importante do aumento da interdependência regional. Por conta disso, o Oceano Índico entra nos cálculos geopolíticos dos países membros. Em longo prazo haverá o crescimento gradual da por-ção marítima da nova rota da seda e a abertura comercial do interior do continente asiático para a economia global.

Considerações finais

Com a adesão de Índia e Paquistão, forma--se um equilíbrio de poder quadrangular dentro da OCX, de modo que não haja uma coalizão dos grandes contra os pequenos, ou de duas potências contra uma terceira. Portanto, a expectativa de que todos serão ouvidos leva ao aumento da confiança na Organização como um mecanismo multilateral efetivo.

Do ponto de vista da estabilidade eurasiana, a OCX possui grande potencial para harmonizar interes-ses individuais dos países membros e promover uma agenda de cooperação no combate ao ter-rorismo e à instabilidade política. Todavia, seus desafios de estabilização do Afeganistão e de con-ciliação de Índia e Paquistão são extremamente di-fíceis e politicamente perigosos. Antes da adesão de novos membros, a Organização possuía maior harmonia, gerando um ambiente de hegemonia

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coletiva sino-russa na Ásia Central. A partir da en-trada de Índia e Paquistão, sua responsabilidade aumenta, enquanto sua coesão diminui. Este qua-dro se agrava diante da falta de vontade política dos membros em intervir diretamente nas crises regionais ou criar forças operacionais conjuntas que possam realizar esta função

Deste modo, a relevância da OCX sobre os proces-sos de construção do Estado e mitigação de con-flitos no continente asiático é predominantemente indireta e de longo prazo. Provavelmente, as princi-pais potências (China, Índia e Rússia) esperam que a sua coalizão renda frutos em longo prazo, com o aumento dos investimentos em infraestrutura e da interdependência entre países vizinhos. Além disso, a construção de confiança pode auxiliar na resolução de problemas mais pontuais, como as disputas territoriais. A exemplo da resolução de fronteiras sino-russa na década de 1990, China e Índia poderiam utilizar a participação na OCX como um meio de superar este entrave à cooperação bi-lateral.

Numa perspectiva global, a participação do triân-gulo China-Índia-Rússia transmite um sinal claro de que a Índia não será um aliado menor dos Es-tados Unidos. Pelo contrário, a tendência é que os indianos se aproximem cada vez mais da condição de Grande Potência e utilizem esta posição para aumentar, e não diminuir, sua autonomia estra-tégica. Neste sentido, a OCX reforça seu papel de coalizão anti-hegemônica e de promoção de um mundo baseado em núcleos regionais de poder. As três potências eurasianas, portanto, se propõem à função de fiadoras da multipolaridade.

O principal desafio dos Estados Unidos será reco-nhecer a existência de outros pólos no Sistema Internacional e trabalhar por uma estratégia que

supere a busca pela primazia. Do contrário, o au-mento dos conflitos na periferia levará a uma apro-ximação ainda maior do triângulo eurasiano em busca de estabilidade e desenvolvimento econô-mico conjunto. Por isso, o gerenciamento da situa-ção do Afeganistão num contexto pós-retirada dos Estados Unidos será um indicador importante da evolução de sua política externa e de defesa.

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a PolÍtiCa eXterna jaPonesa de shinzo abe: revolução silenCiosa?

Pedro Vinícius Pereira Britesi1 and Pedro Henrique Prates Cattelan2

• O acidente nuclear de Fukushima em 2011 promoveu o retorno do PLD ao poder, das

pautas conservadoras e pôs em xeque o uso da energia nuclear no Japão.

• A chegada de Shinzo Abe ao poder em 2012 reforçou a perspectiva nacionalista no

Japão e aprofundou as tensões em relação à China.

• A Política Externa de Abe está assentada na revisão da constituição pacifista e na busca

pela diversificação pragmática das parcerias externas.

1 Professor de Relações Internacionais do Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter). Doutorando e Mestre em Estudos Estratégicos Interna-cionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Contato: [email protected]

2 Graduando em Relações Internacionais pela UFRGS. Contato: [email protected]

Apresentação

A Cúpula da Cooperação Econômica da Ásia-Pacífico (APEC), realizada em novembro de 2016, no Peru, foi representativa da política exter-na japonesa de Shinzo Abe. Desde sua chegada ao poder, em 2012, muito se discute se as transfor-mações que o primeiro-ministro vem procurando implementar configuram uma revolução silenciosa na inserção internacional do país. Afinal, a princi-pal bandeira do primeiro-ministro tem sido revigo-rar o protagonismo japonês.

Com a consolidação da ascensão chinesa, as análises sobre o papel do Japão na Ásia ficaram obliteradas, especialmente em virtude da relativa estagnação econômica que o país vivencia desde a década de 1990. Contudo, nos últimos anos, o nordeste asiático tem passado por transformações significativas, e avaliar o atual cenário japonês é parte fundamental para a compreensão dessas mudanças O país chegou a ser considerado por autores como Paul Kennedy (1989) e Giovanni

Arrighi (1994) como a potência capaz de desa-fiar a hegemonia dos Estados Unidos, entretanto, não superou o dilema representado pela Doutrina Yoshida, segundo a qual o Japão deveria centrar seus esforços no crescimento econômico, rele-gando sua segurança externa aos Estados Unidos. Desse modo, o país chegou a ocupar a posição de segunda maior economia do mundo por um longo período, entre os anos 1980 e meados da década de 2000, mas não teve meios para assegurar sua autonomia securitária.

A ascensão econômica japonesa após a Segunda Guerra Mundial está vinculada à importância que o país adquiriu na estratégia americana de conten-ção do comunismo no extremo Oriente. Paradoxal-mente, o processo de estagnação deriva da concor-rência intercapitalista promovida justamente pelos Estados Unidos e das transformações geopolíticas ocorridas com o final da Guerra Fria. Desde então, pode-se dizer que o país ainda visa encontrar uma

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grande estratégia adequada ao contexto pós-Guer-ra Fria. Assim, nesses últimos vinte e cinco anos, o Japão oscilou entre se firmar como principal aliado dos Estados Unidos na Ásia ou aprofundar o enten-dimento regional, especialmente com a China. É nesse quadro de incertezas que o governo de Shinzo Abe vem estabelecendo uma mudança de programa na política externa, ou seja, mantêm-se os objetivos, mas mudam-se os meios para atingi--los (Hermann 1990). A perspectiva de aliança prio-ritária com os Estados Unidos e a crença nas insti-tuições multilaterais do sistema ONU se mantém, porém o país vem promovendo uma reinterpreta-ção da sua constituição pacifista e diversificando seus parceiros globais. Nesse sentido, a Cúpula da APEC representa, por um lado, a busca do Japão em se firmar como uma liderança regional e, por outro, em manter-se como principal aliado dos in-teresses americanos na região.

O acidente nuclear de Fukushima e o retorno de Shinzo Abe (2012-2014) O terremoto ocorrido no Japão em março de 2011 pode ser considerado um ponto de inflexão na política do Japão. Ele desencadeou uma “crise tripla”: o terremoto em si, um tsunami e um desas-tre nuclear. Desde 2009 o Partido Democrático do Japão (PDJ) se encontrava no poder. As crises pro-vocadas pelo terremoto, somadas ao baixo desem-penho econômico, à proposta de aumento de im-postos e aos reveses na política externa, levaram a uma grande rejeição do PDJ. Além disso, levaram ao aumento da pauta antinuclear, o que gerou um questionamento profundo sobre o modelo energé-tico do país. Diante desse contexto de crise inter-na, mesmo o PDJ, que historicamente tinha uma perspectiva de maior aproximação com a China, durante o governo do primeiro-ministro Yoshihiko Noda (2011-2012) procurou reforçar sua aliança

com os EUA e assegurar apoio político interno atra-vés de um crescente conservadorismo no plano re-gional.

Nas eleições para a Câmara Baixa de 2012, o Par-tido Liberal Democrata (PLD) obteve 294 dos 480 assentos, marcando uma grande virada eleitoral. Junto com o Novo Komeito, partido aliado, o PLD possuía a maioria necessária de dois terços para reformas constitucionais e para barrar vetos da Câ-mara Alta (no qual o PLD não possuía dois terços). Já o PDJ, principal partido de oposição, ficou com 57 parlamentares. A oposição portanto ficou dividi-da e enfraquecida após essa eleição. Shinzo Abe, como líder do PLD, assumiu como primeiro-minis-tro em dezembro de 2012, cargo que já havia ocu-pado entre 2006 e 2007.

Durante sua campanha de 2012 e no primeiro ano do segundo mandato (2013), Shinzo Abe já realiza-va discursos com forte tom nacionalista e a favor de uma maior proatividade japonesa na esfera re-gional. Entre os lemas destacam-se “o Japão está de volta” e “rejuvenescer o Japão”. Entre as prin-cipais bandeiras de Abe estava a busca por uma “normalização” do Japão, que deveria se livrar das amarras existentes desde a Segunda Guerra Mun-dial. No âmbito econômico, o plano “Abenomics” levaria a retomada do dinamismo na economia japonesa, a qual se encontra estagnada desde a década de 1990 e com tendências preocupantes, como a deflação e o envelhecimento da população. Esse plano consistia em três pilares fundamentais: (i) uma política monetária frouxa, com a meta de inflação de 2%; (ii) uma política fiscal expansiva, aumentando os gastos do governo a fim de estimu-lar o consumo no país - aqui se incluem também o aumento dos gastos militares e a realização das Olimpíadas de 2020; e (iii) reformas estruturais para garantir o crescimento e a competitividade da

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economia no longo prazo. Essas reformas econô-micas não atingiram o efeito inicial desejado. Nos primeiros anos a inflação não atingiu 2% e a econo-mia não cresceu significativamente, inclusive com queda do PIB em anos posteriores (Stratfor 2016). Abe também não conseguiu aprovar reformas sig-nificativas no campo econômico, pois o governo gastou seu capital político na política externa e em reformas securitárias aprovadas em 2015.Durante o governo de Abe, houve um notável au-mento das capacidades nacionais de defesa do Japão e um esforço por uma reforma securitária. Desde a Segunda Guerra Mundial, o Japão teve suas capacidades militares e de defesa limitadas pela Constituição, como, por exemplo, a incapaci-dade das Forças de Autodefesa do Japão de atua-rem em favor de aliados. Assim, o PLD propôs uma reforma a fim de eliminar essa e outras limitações - como, por exemplo, a proibição de exportar ar-mamentos para países em conflito -, mesmo com enormes protestos populares. Para acompanhar as reformas, foi lançado em 2013 um plano que contava com um forte aumento do orçamento mi-litar para os anos seguintes e no desenvolvimento nacional de novos armamentos.

A política externa do governo de Abe também con-tou com forte nacionalismo e uma busca pela re-tomada de importância regional e global do Japão. Para isso, buscou-se um aprofundamento da alian-ça militar com os Estados Unidos e com outros países, como Índia e Austrália. Aqui se destaca o alinhamento EUA-Japão-Índia-Austrália em ques-tões militares, inclusive com a realização de exer-cícios militares conjuntos. Um dos principais obje-tivos era o isolamento e o cercamento da China, que aos olhos do Japão representa uma ameaça tanto econômica quanto militar. Nesse contexto, Tóquio forneceu equipamento militar e apoio fi-nanceiro a partir da reforma da política oficial de

auxílio financeiro ao exterior (Official Development Assistance - ODA), o que permitiu sua utilização estratégica em países com divergências com Pe-quim, como Filipinas e Vietnã. O primeiro-ministro japonês visitou quase cinquenta países em seus dois primeiros anos de mandato, um número bas-tante alto em comparação aos seus antecessores. Essa viagens tinham como objetivo a abertura de mercados para empresas japonesas, o apoio polí-tico para seu maior engajamento regional e global, assim como para suas reformas militares, e o iso-lamento chinês (Panda 2014).

Porém, o Japão manteve distância de dois vizinhos importantes: a Coreia do Sul e a China. O primei-ro-ministro Shinzo Abe não se encontrou com as lideranças da Coreia do Sul durante todo o seu se-gundo mandato (2012-2014) e ficou sem se reunir com o presidente chinês Xi Jinping por quase dois anos. A relação entre Japão e seus dois vizinhos foi ainda prejudicada pela retomada por Tóquio de um discurso que negava agressões ocorridas du-rante as ocupações japonesas da Coreia e da Chi-na no século XX.

Um dos pontos de maior tensão do governo de Abe foi a disputa com a China pelas ilhas Senkaku/Diaoyu, que ficam no mar do Leste da China. Tanto Tóquio, que controla efetivamente as ilhas, quanto a China disputam a soberania sobre as ilhas há dé-cadas. Porém, em 2012, o governo Noda adquiriu as ilhas de um proprietário privado, causando gra-ves reações do governo e da população chinesa. Pequim protestou diplomaticamente e contestou a aquisição, enquanto diversos protestos antini-pônicos aconteceram pelo país. Desde então as tensões escalaram na região, com ambos os pa-íses realizando operações militares provocativas e aumentando a presença de efetivos na região. Essas tensões tiveram repercussões na economia,

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com uma significativa queda do comércio bilateral e dos investimentos japoneses na China.

O acirramento das relações sino-japo-nesas e o reforço do nacionalismo

As relações sino-japonesas, que já estavam deterioradas desde 2012, devido à questão das ilhas Senkaku/Diaoyu, ficaram ainda piores quan-do a China decidiu estabelecer, em novembro de 2013, uma Zona de Identificação de Defesa Aérea (ADIZ) no Mar do Leste da China. A ADIZ estabele-cida pela China abrangia as ilhas disputadas entre os dois países, bem como uma região de interes-se da Coreia do Sul e Taiwan (Rinehart and Elias 2015).

Em termos mais amplos, a adoção da ADIZ pela China reflete uma transformação na perspectiva do país em relação ao contexto regional. Durante todo o governo de Hu Jintao (2002-2012), a Chi-na procurou estabelecer um engajamento regional baseado no diálogo, porém com a crise das ilhas e com o avanço da política de balanceamento promovida pelos EUA, o país sob a liderança de Xi Jinping passou a adotar uma postura mais asserti-va na região.

O Japão, que já vinha se afastando da China mes-mo antes da chegada de Abe ao poder, ampliou sua retórica nacionalista diante desse quadro. Um exemplo disso é a visita do primeiro-ministro ao Santuário de Yasukuni, em 2013, que homenageia os soldados japoneses da Segunda Guerra Mun-dial, gerando reações por parte da China e Coreia do Sul, pois remonta ao passado colonialista do Japão. Essa postura de distanciamento da China advém do fracasso no avanço do processo de co-operação regional e do apoio político dos naciona-listas ao primeiro-ministro. A corrente anti-China, historicamente presente, era a essa altura (e ain-

da é) predominante dentro do governo do PLD. Por isso, a construção do argumento de renascimento do Japão passa pelo estabelecimento de uma pos-tura de autoafirmação diante dos vizinhos.Porém, essa reorientação nacionalista, no que diz respeito às relações bilaterais com a China, mostra--se problemática para o Japão. Em primeiro lugar, a China é um dos principais parceiros econômicos do Japão. Não é simples para a economia do país substituir o papel que a China exerce em termos de absorção dos produtos japoneses. Especial-mente para um país cuja economia não consegue crescer de modo significativo desde os anos 1990. Em segundo lugar, do ponto de vista geopolítico, a política de acirramento com a China deixava o Japão em uma posição de isolamento. Isso pôde ser observado, principalmente, quando a Coreia do Sul procurou aproximar-se da China no governo da presidente Park Geun-Hye, a partir de 2013.

Entretanto, em termos de política interna, a postu-ra nacionalista parece ser o pilar capaz de dar cer-ta coesão para o PLD após anos de fraturas inter-nas no partido, especialmente na medida em que a tendência nacionalista no país vinha se fortale-cendo mesmo no governo anterior do PDJ. Cabe lembrar que foi ainda no governo Yoshihiko Noda que o país reforçou os laços com os EUA, aproxi-mou-se da Parceria Transpacífico (TPP, na sigla em inglês) e anunciou a compra dos caças F-35, atitu-des que o afastaram da China e agradaram aos se-tores conservadores nacionalistas (Auslin 2016).Assim, o reforço do nacionalismo na China e no Ja-pão se retroalimentavam. À medida que a China reagia ao nacionalismo japonês com mais asserti-vidade, a pauta anti-China era reforçava, em uma espiral de acirramento. Além desse cenário, a pos-tura mais agressiva da China no Mar do Sul chinês fortalecia a perspectiva japonesa de romper com suas restrições militares constitucionais para po-der lidar com esse novo quadro. É nesse contexto

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que o Japão se afasta da visão mais instituciona-lista da ordem internacional e passa a adotar uma postura mais pragmática.

O país, desde o final da Guerra Fria, assentou sua atuação internacional nos fóruns multilaterais e na crença no sistema ONU como principal meca-nismo de governança. Entretanto, a mudança de conjuntura regional ensejou uma alteração nessa perspectiva. De um lado, procurou reforçar a ca-pacidade econômica do país através das reformas internas e pela diversificação dos parceiros econô-micos. Assim, o Japão diminuiu sua taxa de juros, assinou o TPP, em 2015, e procurou estabelecer acordos bilaterais com países aliados do sudeste asiático, como as Filipinas. De outro lado, passou a adotar uma série de medidas com vistas a se tornar um ator geopolítico e securitário relevante. Para tanto, criou, em 2013, o Conselho Segurança Nacional, flexibilizando as leis para exportação de armamentos com vistas a reforçar a base indus-trial japonesa de defesa, ampliar a militarização das ilhas, etc.

Entretanto, essas medidas nacionalistas, em um primeiro momento, acabaram por gerar certo iso-lamento do país. Afinal, a China possui uma pre-sença global mais significativa e tem uma lideran-ça regional mais consolidada. Desse modo, o país observou uma convergência crescente dos inte-resses de China, Rússia e Coreia do Sul, agravada pela prioridade dada pelos EUA a outras regiões que não o Nordeste Asiático. Diante desse quadro, Abe parecia estar diante de um dilema: recuar na sua postura mais assertiva frente à China ou au-mentar a aposta na nova postura de contrabalanço a Pequim.

A resposta foi dupla: de um lado, procurou ameni-zar a retórica anti-China, mas de outro, procurou estabelecer uma mudança de programa de sua

política externa. Assim, desde o final de 2015, o Japão vem procurando consolidar essa nova pers-pectiva. Essa mudança de programa está basea-da no incremento do pragmatismo na escolha dos parceiros, na dissociação das pautas econômicas e políticas no âmbito externo e na busca por am-pliar o status de ator em termos de segurança in-ternacional.

O êxito na estratégia de Abe passa pela solidifica-ção das relações com os Estados Unidos. Isso não significa que o país busque uma posição de sub-serviência plena em relação a seu parceiro históri-co, mas sim que há o entendimento de que a con-dição, ao menos no momento, para se estruturar como uma potência de efetivo alcance global pas-sa pela manutenção da aliança estratégica com os EUA. Contudo, de outro lado, o país obteve a apro-vação da flexibilização da constituição pacifista em 2015, e a consequente permissão para o envio de tropas para fora do país. É a partir dessas pers-pectivas que a discussão sobre em que medida as transformações promovidas por Abe representam uma revolução na política externa japonesa se jus-tificam.

Shinzo Abe e a versão japonesa da es-tratégia do “Going Global”

As iniciativas mais significativas em termos de política internacional do governo Abe talvez estejam na busca pelo estabelecimento de uma versão nipônica do “Going Global” chinês. Essa estratégia refere-se à busca por diversificação de parcerias e de investimentos, bem como ao enco-rajamento das empresas nacionais à internaciona-lização para regiões estratégicas do globo. O nú-mero elevado de viagens internacionais realizadas pelo primeiro-ministro simboliza esse processo. Dentre as regiões estratégicas destaca-se o avan-ço da aproximação com o continente africano e,

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especialmente, com Índia e Rússia.

Em relação à África, não é de hoje que o continente tem sido alvo das disputas de interesses das gran-des potências. Entretanto, para o Japão, isso tem se intensificado apenas recentemente, como estra-tégia para evitar o isolamento oriundo das políticas nacionalistas. O estabelecimento de um pivô japo-nês para a África tem como marco a realização da Sexta Conferência Internacional de Tóquio sobre o Desenvolvimento Africano (TICAD), no Quênia, em agosto de 2016. Cabe destacar que essa foi a pri-meira TICAD realizada na África e não no Japão. Shinzo Abe foi ao Quênia e prometeu mais de US$ 30 bilhões em investimentos em infraestrutura no continente para os próximos três anos (Berkshire Miller 2016). Além de ser o maior compromisso histórico do TICAD, marca uma transformação na atuação japonesa, com o abandono de uma visão assistencialista e a adoção de relações baseadas no comércio. Ademais, as iniciativas transcendem a esfera estritamente governamental e passam a incluir o setor privado3. Os maiores parceiros japo-neses no continente são África do Sul, Nigéria e Egito. Em termos comparativos com a China, a pre-sença japonesa ainda é tímida, porém, apresenta uma tendência crescente. Além do objetivo de di-versificar suas parcerias globais, a parceria com o continente africano justifica-se pela necessidade de segurança no abastecimento energético, uma vez que o custo da energia no país elevou-se após o acidente de Fukushima. Outra característica des-sa presença japonesa no continente é sua atuação em missões de paz. O caso mais significativo é na Missão de Paz das Nações Unidas no Sudão do Sul (UNMISS) onde o país tem ampliado sua participa-ção ao longo de 2016 (Ighobor 2016). A tendência agora é que, com a reinterpretação da constituição pacifista, o país possa ampliar seu envolvimento

militar na região.

Em relação à Índia, o país possui boas relações com o governo de Narendra Modi. Inclusive, em novembro de 2016, os dois países assinaram um acordo de cooperação nuclear. Embora tenha gerado reações dos grupos contrários ao uso da energia nuclear, principalmente no Japão, o acor-do insere-se na perspectiva de balanceamento ge-opolítico da China. Não trata-se de uma estratégia confrontacionista em relação à China, mas de uma tentativa de consolidar uma aliança com vistas a equilibrar a balança regional a seu favor e de colo-car o Japão em condições de disputar os mercados da ASEAN e do sul da Ásia. Afinal, essas são regiões que estão no centro da geoeconomia asiática atu-almente, intrinsecamente vinculadas às dinâmicas político-securitárias que caracterizam as relações triangulares entre China, Japão e Índia.

Dentro dessa estratégia japonesa multidimensio-nal, a aproximação com a Rússia vem ganhando importância estratégica. Desde o recrudescimento das relações da Rússia com o Ocidente, o gover-no de Putin procurou ampliar a inserção do país na Ásia. Especialmente após a eclosão da crise na Ucrânia em 2014, o país buscou amenizar seu iso-lamento internacional através de uma maior apro-ximação da China. Assim, as relações sino-russas aprofundaram-se à medida que os EUA aumenta-ram a pressão sobre os dois países. Sob a pers-pectiva japonesa, essa aproximação configura-se como fator de ameaça para a posição geopolítica do país no extremo oriente.

Entretanto, a aproximação com a Rússia era um tema de difícil solução para a política externa ja-ponesa. Afinal, além de o governo Putin estar sob as ameaças do ocidente, Japão e Rússia possuem

3 O Japão, nessa oportunidade, adotou um discurso de parceiro econômico e não de doador, como ocorria tradicionalmente. Mais de uma cente-na de empresários acompanharam o primeiro-ministro na viagem ao Quênia.

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disputas territoriais históricas sobre as Ilhas Curi-las, as quais remontam à Segunda Guerra Mundial. Historicamente, a plataforma de política externa do Japão era baseada na indissociabilidade entre questões econômicas e políticas. Ou seja, o país nipônico não estabeleceria cooperação comercial com a Rússia enquanto não se resolvessem as questões territoriais.

O governo Abe, todavia, vem procurando estabele-cer uma nova abordagem nas relações bilaterais com o governo Putin (Brown and Kozinets 2016) através de uma postura mais pragmática. Abe visi-tou a Rússia quatro vezes no intuito de ampliar o grau de aproximação entre os dois países. Embora haja um receio por parte do setor privado japonês em investir na Rússia devido às sanções do G7, o governo vem tentando compensar isso com inicia-tivas baseadas no Banco para Cooperação Interna-cional do Japão (JBIC). A aproximação russo-japo-nesa é uma das principais apostas e reviravoltas estabelecidas por Shinzo Abe no extremo oriente. Além de abrir espaço para o estabelecimento de um tratado de paz entre os dois países, atende aos anseios da Rússia, afetada pelas sanções ociden-tais, e gera um balanço em relação à aproximação entre Rússia e China. Apesar disso, ainda é cedo para que se possa afirmar se a estratégia japonesa irá surtir efeito.

Considerações finais

A transformação da política externa de Shinzo Abe, cabe destacar, ainda está longe de ser um processo concretizado. Por isso, essas mu-danças não constituem necessariamente uma re-volução silenciosa, mas indicam transformações significativas na polarização regional do nordeste asiático. As alternativas que o Japão vem buscan-do para relativizar seu isolamento e para diminuir a tendência de crescimento econômico anêmico

deparam-se com o contexto regional e global em um período de incertezas. Dentre essas incertezas, pode-se destacar a própria postura chinesa, que tem se tornado mais assertiva nos últimos tempos.

A questão diz respeito a saber se é possível ao Ja-pão continuar sua política de distanciamento da China. Afinal, existe uma simbiose profunda en-tre os interesses dos dois países, e as dinâmicas de cooperação e conflito da região passam pela interação entre China e Japão. Além disso, é mui-to prematuro afirmar se a estratégia japonesa de balanceamento da China através da parceria com países como Rússia, Índia e Coreia do Sul surtirá o efeito que se busca. No caso da Rússia e da Ín-dia, isso se deve ao fato de que são dois países que têm interesses particulares na região muito consolidados. Embora vejam com bons olhos os investimentos japoneses, ao que tudo indica, não há uma tendência de que assumam um distancia-mento em relação aos chineses. Quanto à Coreia do Sul, o processo de forte oposição popular con-tra a presidente Park Geun Hye, que levou milhões de sul-coreanos às ruas, torna o panorama político do país ainda muito incerto. Principalmente porque esses protestos têm tido um certo caráter crítico aos Estados Unidos.

A eleição de Donald Trump traz mais incerteza a esse cenário. Primeiro, pois, o então candidato adotou uma postura crítica durante a campanha quanto ao papel de fiador securitário que os Esta-dos Unidos exercem junto aos seus aliados. Até por essa razão, Shinzo Abe procurou encontrar pesso-almente Trump antes do encontro da APEC, com vistas a assegurar a continuidade da aliança. Em-bora não seja muito provável que os Estados Uni-dos abram mão de um engajamento ativo no Leste Asiático, monitorar as ações do novo governo na região será importante para entender o futuro das dinâmicas regionais. Além disso, se o presiden-

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te-eleito estabelecer uma interação menos con-flitiva com a Rússia, pode abrir espaço para uma maior aproximação do Japão com o governo Putin. Por fim, mesmo no plano interno, a falta de con-senso quanto ao projeto japonês impede que se tenha clareza sobre o futuro das transformações promovidas pelo primeiro-ministro. Afinal, a políti-ca interna japonesa encontra-se fragmentada e a participação popular tem sido cada vez menor nos processos eleitorais. A soma desse cenário interno à conjuntura global de crise vão demandar bastan-te habilidade política do primeiro-ministro para que seu projeto tenha êxito e, mesmo assim, os resul-tados podem vir a ser pouco animadores.

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a nova PolÍtiCa eXterna da turquia: uma virada Para o leste?

Isabela Souza Julio1 e Marina Felisberti2

• No dia 15 de julho de 2016, a Turquia, comandada pelo AKP, sofreu uma tentativa de

golpe de Estado, barrada, sobretudo, pelo apoio popular a Erdogan e seu regime de inspiração

islâmica.

• A questão da minoria curda que reclama sua autonomia em território turco constitui

também uma questão importante relacionada à crise síria, visto que esse grupo tem se tornado

cada vez mais importante nesse conflito.

• A deterioração das relações entre a Turquia e seus aliados ocidentais serviu como subter-

fúgio para que a orientação da política externa turca se voltasse para o leste, em busca de novos

aliados.

1 Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Contato: [email protected]

2 Graduanda em Relações Internacionais pela UFRGS. Contato: [email protected]

Apresentação

Membro da OTAN e aspirante a uma vaga na União Europeia, a Turquia, dona de uma posi-ção geopolítica indiscutível e um contingente po-pulacional significativo – mais de 73 milhões de habitantes –, apresenta um modelo social e gover-namental marcado pela convivência entre o Islã, o secularismo, o regime democrático e o desenvolvi-mento econômico, baseado em uma economia de mercado mista. Essa foi a mistura que popularizou, nas últimas duas décadas, Recep Erdogan, atual presidente do país e que se propôs como exemplo aos demais países árabes que buscavam proces-sos políticos de renovação – principalmente, após 2011, com o início dos movimentos da Primavera Árabe.

Em 15 de julho de 2016, a Turquia passou por uma tentativa de golpe de Estado, trazendo à tona sinais concretos de uma atmosfera interna dividi-da. A tentativa de golpe, feita por um minoria polí-tica de tendência Gulenista e apoiada na institui-ção do exército, deparou-se, entretanto, com uma atmosfera popular favorável ao governo de Erdo-gan, que tomou as ruas logo após o seu estopim, desfazendo-se em pouco mais de 24 horas após sua tentativa de instauração. No primeiro momen-to, pareceria natural associar a tentativa de golpe mais recente com aquela vivida pelo país em 1997, principalmente, pela presença da interferência do exército em ambos os momentos, utilizando-se do subterfúgio da defesa dos princípios seculares da

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República da Turquia em uma tentativa de abafar as tendências islâmicas advindas da ordem civil. Entretanto, a análise do fenômeno como uma re-petição histórica mostra-se insuficiente – e bastan-te simplista – para o atual cenário multifacetado da política turca.

Política interna turca: um dilema entre islamismo e secularismo

Para a análise da política externa turca, principalmente após a tentativa falha de golpe em julho de 2016, se faz necessária a compreensão da sua política interna, uma vez que a estabilidade interna desse país é um importante condicionan-te para as suas ações externas. Considerando que as esferas interna e externa se mostram interde-pendentes, a condição turca enquanto importante ator regional depende em grande medida do seu desenvolvimento interno (Visentini 2014).

Segundo Visentini (2014), na primeira década do século XXI fatores como a fragmentação político--partidária, o surgimento de movimentos islâmicos contestatórios, a emergência de grupos terroristas, a crise econômica e uma política externa sem uma diretriz clara levaram a um quadro de incerteza. Em 2002, após um governo secularista marcado pelas consequências de uma grave crise econômi-ca, o partido conservador de inspiração islâmica, o Adaletve Kalkinma Partisi (AKP), Partido da Justiça e Desenvolvimento, chegou ao poder vencendo as eleições parlamentares sob a liderança de Recep Tayyip Erdogan. Em 2007, o AKP reelegeu seu pro-jeto de governo, que contava com uma franca ten-dência de aproximação com os valores ocidentais – de democracia, liberalização e modernização –, representado, entre outras coisas, pela pretensão turca de tornar-se membro da União Europeia. No que tange à política interna turca e seus con-

dicionantes, é importante destacar a oposição es-truturante entre secularismo e islamismo, a qual se reflete na sua política externa por meio da sua orientação pró-ocidental, demonstrada no seu in-teresse em ingressar na União Europeia, organi-zação composta majoritariamente por países da maioria cristã, enquanto que a conjuntura interna se mostra pró-islã. No entanto, é importante desta-car a posição do partido que está no poder atual-mente: o AKP, diferentemente dos seus antecesso-res islâmicos, não se posicionou contra o Ocidente. Nesse sentido, houve uma inflexão do antigo “an-ti-ocidentalismo” para o “euro-entusiasmo”. Uma série de reformas em diferentes áreas, como na questão da minoria curda, foram empreendidas a fim da aproximar a Turquia do Ocidente, bem como de possibilitar seu ingresso na UE (Visentini 2014).

As singularidades da política externa turca: um projeto de modernização e de resgate histórico

A respeito da orientação da política externa turca, cabe destacar a visão que vem sendo de-senvolvida ao longos dos anos da administração do AKP. Arquitetada por Ahmet Davutoğlu – ex--primeiro ministro da Turquia (2014-2016) –, esta visão descreve o país como central e com capaci-dades de liderança na região do Oriente Médio, re-jeitando, portanto, o alinhamento exclusivo com o Ocidente, estritamente secularista, e a inclinação turca de dar as costas para seus vizinhos muçul-manos. De fato, a Turquia, expandiu seus fluxos co-merciais no Oriente Médio, passou a desenvolver um papel diplomático mais ativo na região, mar-cada por sua “política de zero problemas com os vizinhos”, que implicou, nos últimos anos, numa deterioração das relações com Israel, aliado de Washington, e em uma reaproximação e busca por assinaturas de acordos com Estados não tão bem quistos por seus aliados ocidentais ou pela OTAN,

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como o Irã.

A combinação entre os desenvolvimentos políti-cos dentro e fora da Turquia, os atores envolvidos e suas visões de mundo particulares tem gerado uma política externa autônoma, ideológica, asser-tiva, não comprometida e presunçosa. A Turquia, sob a administração de Erdogan, se comporta como se pudesse utilizar-se de seus vizinhos regio-nais sem oferecer grandes contrapartidas, como se pudesse progredir mesmo afastada de seus parceiros ocidentais, partindo do pressuposto de que tem a história a seu favor, demonstrando uma memória turco-otomana ainda bastante significa-tiva nos dias de hoje. Dialeticamente, entretanto, seu ímpeto de projeção de poder regional e seus posicionamentos duvidosos frente a seus aliados, como na questão do combate ao Estado Islâmico, tem colocado a Turquia em uma posição de isola-mento na região (Visentini 2014; Park 2015).

A tentativa de golpe: um ponto de in-flexão para a política externa turca?

A situação da política turca é mais comple-xa do que o exame conjuntural dos eventos de 15 de julho propõem. O presente Boletim busca apre-sentar uma análise mais intrínseca dos eventos da política turca, não somente sobre as possíveis razões que levaram ao golpe, mas, também, suas consequências para o futuro geopolítico do país. Sob essa perspectiva, três fatores destacam-se na análise: o primeiro, uma crise interna de iden-tidade vivida pelo país. A divisão entre partidos secularistas e partidos de tendência conservadora e islâmica, como o AKP, apoiados pelas camadas sociais, tem como um de seus resultados a criação de uma atmosfera interna de embate, contribuindo para o aumento gradual do autoritarismo do regi-me político vigente – como a censura da mídia e interferências diretas nos processos do judiciário.

A segunda, um approach transacional na busca de novas parcerias, incluindo países como Rússia e China, que, além de diversificarem a pauta de tran-sações turcas, demonstram um esforço turco de estabelecimento de espaço de manobra. Entre as parcerias que criam desconfiança com os aliados ocidentais turcos, como Washington, encontra-se a aproximação Turquia-Irã, com fins estratégicos e energéticos, com quem, aliás, divide interesses conjunturais na Crise da Síria. Por fim, a terceira, uma série de ações externas turcas caracterizadas como erráticas – com avanços e recuos sucessi-vos, contribuindo para a desconfiança de seus aliados e abalando sua posição na OTAN e suas pretensões de, finalmente, ser aceita na União Eu-ropéia.

Portanto, faz-se importante questionar se os acon-tecimentos recentes entre a Turquia e seus aliados ocidentais, principalmente após a tentativa de gol-pe, representam mais do que um momento pon-tual de divergência, que irá corrigir-se ao longo do tempo, ou se as relações turcas com o oeste estão experimentando uma mudança de paradigma de orientação de política externa, caracterizando um distanciamento mais definitivo (Park 2015).

A dinâmica regional e a Turquia

Sua posição geográfica estratégica combi-nada à sua herança histórica fazem da Turquia um país central para a geopolítica mundial. Nos últi-mos anos, especialmente após a eclosão das ma-nifestações no Grande Oriente Médio, o país vem se tornando essencial para a compreensão da di-nâmica na região.

É assentada no pressuposto de que a Turquia pos-sui uma localização geográfica multi-regional e única. Mucznik (2011) afirma que a política exter-na turca regional visa projetar sua capacidade de

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gerar estabilidade e segurança a fim de contribuir para a sua política de “zero problemas” na região. Importante destacar que, na perspetiva turca, essa opção estratégica não é incompatível com suas alianças tradicionais, mas sim um complemento.

A Primavera Árabe parece ter significado à Tur-quia uma oportunidade de tornar-se um líder re-gional, na medida em que esse país procurou se posicionar tanto como um possível mediador das revoltas árabes, quanto como um modelo político a ser seguido pelos países submetido a processos de transformação. Segundo Mucznik (2011), a onda de revoltas que eclodiu em 2011 significou um teste à Turquia, que diante de tal conjuntura pôde testar sua capacidade de exercer um papel de potência emergente na região. No entanto, tal quadro regional também significou um dilema ao posicionamento turco. O país foi confrontado en-tre a necessidade de apoio às transformações e a manutenção das relações com alguns regimes. A sua postura de apoio às revoltas na Tunísia e no Egito e de resistência com relação à Líbia e à Síria refletem esse dilema. O efeito de alastramento das manifestações na região levou a Turquia a optar por não interferir nos assuntos internos de outro países e de prevenir a escalada da violência e das tensões na região, posição que reforça a sua abor-dagem de “zero problemas” (Mucznik 2011).

É nesse contexto que a Turquia inicia seu engaja-mento na crise síria. O país se destaca por ter se envolvido no conflito desde cedo, defendendo a queda do presidente sírio, Bashar al-Assad, apesar dessa posição estar se modificando nos últimos meses, especialmente após a tentativa falha de golpe no país. No complexo conflito que envolve diferentes atores, a Turquia ainda enfrenta uma questão particular contra grupos Curdos que, alia-dos tanto a Washington como a Moscou, buscam por autonomia e pela expansão do seu território e cada vez mais têm se destacado como um impor-

tante ator nesse conflito.

A questão curda e a crise migratória

A Turquia luta contra as posições da milícias curdas na Síria, as chamadas Unidades de Prote-ção de Povo Curdo (YPG), o braço armado do Parti-do da União Democrática (PYD) e aliado tradicional de Partido dos Trabalhadores de Curdistão (PKK), perseguido há 30 anos na Turquia por buscar au-tonomia curda no país. Nesse sentido destaca-se a situação da minoria nacional curda, a qual vem de-safiando a identidade turca. A posição do Primeiro Ministro Erdogan, contudo, é de que a sociedade turca, composta majoritariamente por praticantes da religião islâmica, encontra sua identidade maior no islã (Visentini 2014).

Outro ponto que merece atenção ao analisar o en-gajamento turco na crise síria é a questão dos re-fugiados. Desde o início da guerra civil que eclodiu na Síria, um dos temores da Turquia era o intenso fluxo de refugiados na fronteira sírio turca. A insta-bilidade na Síria poderia rapidamente transbordar para a Turquia, levando em consideração a frontei-ra de aproximadamente 800 km entre os dois pa-íses. Nesse sentido, deve ser ressaltado o acordo entre Turquia e União Europeia, firmado no início de 2016, o qual prevê o fechamento da fronteira grega aos refugiados irregulares vindos do territó-rio turco. Desde o dia 20 de março da 2016, os refugiados irregulares seriam devolvidos à Turquia. Segundo o acordo, a prioridade seria dada para os refugiados que não tenham entrado ou tentado en-trar irregularmente na UE (Stratfor 2016).

A nova política externa da Turquia: mudança de orientação ou criação de espaço de manobra?

Não há dúvida de que os impasses entre a Turquia e seus aliados do Oeste datam de antes

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da tentativa fracassada de golpe no país. Antes do evento de julho de 2016, a política externa turca já apresentava divergências significativas em as-suntos-chave tanto nas agendas estadunidenses quanto nas agendas europeias.

Não pela primeira vez, estão em discussão a com-patibilidade e o comprometimento da Turquia com a OTAN. E, ainda, segundo órgãos do governo ame-ricano, há um crescente desconforto com o discur-so turco em assuntos envolvendo, diretamente, os interesses dos Estados Unidos na região do Orien-te Médio, e que a Turquia, já a algum tempo, havia parado de agir como aliada dos EUA ou, de forma mais abrangente, em consonância com os valores ocidentais. A recusa da Turquia em participar da coalizão anti-Estado Islâmico, a afinidade entre o AKP e a Irmandade Muçulmana, as suspeitas de apoio turco a grupos jihadistas – principalmente nas questões de repressão dos Curdos –, o apoio turco ao grupo Hamas e sua belicosidade para com Israel, as relações com o Irã e a intenção de aquisi-ção de um sistema de mísseis de defesa chineses aumentaram o ambiente desconfiança e indisposi-ção entre os Estados Unidos e a Turquia, além de colocar em cheque a posição turca como membro da OTAN. Após o golpe, as relações entre Turquia e os Estados Unidos tornaram-se ainda mais impa-cientes, diminuindo substancialmente a margem de barganha turca nas negociações envolvendo os norte-americanos (Park 2015).

As contradições da política regional da Turquia são evidentes. Destacando-se a sobreposição das posturas adotadas pelo governo turco referentes às questões curdas, a inexperiência turca em li-dar mais de perto com os problemas da região do Oriente Médio e na pretensão exagerada de con-trole, estabelecendo-se como potência regional de uma região tão complexa. Tudo isso somado a indisposição dos aliados ocidentais de cederem apoio ao país, dada a postura de não comprometi-

mento e de ação unilateral que o governo da Tur-quia vem apresentando. O distanciamento turco de seus aliados ocidentais, entretanto, não está contido apenas nos assuntos da região do Oriente Médio. Após a tentativa de golpe, os flertes entre Turquia e Rússia tornaram--se mais comuns e, gradativamente, mais preocu-pantes aos olhos de Washington. A não aderência da Turquia às sanções impostas pela União Euro-peia à Rússia, em 2015, e o crescimento de trocas bilaterais Istambul-Moscou são sinais de aproxi-mações pontuais. Além disso, acordos envolvendo questões energéticas, como o desenvolvimento de um gasoduto, que passaria em território turco, evi-tando a região da Ucrânia, e os acordos na área nuclear, reafirmaram a disposição amistosa entre os governos, bem como o desconforto de Washing-ton e demais países do continente europeu. Contu-do, as diferentes posições sobre o conflito sírio es-treitam a possibilidade de uma parceria em níveis mais estruturais de ação conjunta entre estes dois estados. O approach turco com a Rússia, diferen-temente de com seus vizinhos e seus aliados de longa data, tem permanecido pragmático, de bai-xo risco, cooperativo e compartimentalizado. Sua postura com o Irã é semelhante (Sputnik 2016a; Sputnik 2016b).

As retóricas do AKP e, especialmente, de Erdogan, contribuem para a atmosfera de desconfiança en-tre a Turquia e o Ocidente. Na mídia turca pró-go-verno, as declarações de oposição à OTAN, aos EUA e a UE não são raras. Há, ainda, uma tendên-cia contrária às instituições ocidentais por parte de setores sociais turcos significativos, e uma tentati-va franca de maior integração ao mundo islâmico. De algum modo, isso ajuda a explicar o abraço oca-sional da Turquia à Rússia, China e Irã – instâncias tradicionalmente “anti-americanas” –, e, também, o que parece ser um interesse mais limitado do governo do AKP em atender às exigências do blo-co da União Europeia. Além disso, o governo tur-

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co tem demonstrado, através de suas ações, um perfil de governo menos liberal do que prometera em sua plataforma de campanha. As reações mais assertivas de Erdogan a qualquer rival ou compe-tidor, interna ou externamente, podem ser vistas sob esta perspectiva, assim como suas declara-ções de intolerância a interferências externas nos assuntos domésticos da Turquia.

Ainda, seria simplista demais declarar que a mu-dança na política externa turca representa uma mudança de orientação para o Leste, ou um distan-ciamento completo do Oeste, tendo em vista que, entre outras coisas, a Turquia tem falhado com muitos de seus vizinhos muçulmanos no próprio Oriente Médio – apresentando posturas passivas frente a questões decisivas, como o conflito sírio e a contenção do Estado Islâmico (Park 2015).

Considerações finais

O movimento de distensão das relações entre a Turquia e o Ocidente parece, em primei-ro lugar, não ser tão somente uma consequência direta da tentativa de golpe, mas de um somató-rio de problemáticas. As relações turcas com seus aliados do Oeste nunca foram calmas, da mesma forma que a frustração da Turquia com o seu pro-cesso de aceitação como membro da UE não é re-cente. Ademais, desde a ascensão do governo do AKP, de orientação muçulmana, as relações com os Estados Unidos oscilam entre altos e baixos, as-sim como o desempenho e as dúvidas a respeito da manutenção da Turquia na OTAN.

Contudo, a posição geográfica da Turquia, seu sta-tus de único país-membro muçulmano e sua con-tribuição em termos de capacidades e operações para a OTAN asseguram o valor do país, mesmo com a sua combinação particular entre o Islã e a democratização, para atores-chave da OTAN, e, mais especificamente, para Washington – tornan-

do muito remota a possibilidade de exclusão da Turquia da organização. As aproximações pontuais e pragmáticas com países representantes do Les-te, como a Rússia, mostram-se insuficientes para configurar um cenário de reorientação radical da política externa da Turquia.

O que a tentativa fracassada de golpe revela, na verdade, é o fato da Turquia estar vivendo uma crise doméstica, refletida em sua política externa e agravada pela questão curda. Apesar do suces-so eleitoral do AKP estar assegurado, pelo menos no futuro iminente, a insatisfação de alguns seto-res continua viva e insistente, e suas instituições, como o exército, mostram-se cada vez mais vulne-ráveis. Quaisquer crise econômica, turbulência do-méstica ou, ainda, erros de cálculo mais graves na sua política externa poderiam, mais um vez, abalar a frágil estrutura política do país e suas relações exteriores. Desta forma, a Turquia parece ter se tornado imprevisível, tanto no longo quanto no cur-to prazo.

Cabe ressaltar, ademais, que os instintos de Erdo-gan e de seu partido aparecem como representa-tivos da vontade da sociedade e de seu país. Se, eventualmente, a figura de Erdogan não estiver mais no poder, não há sinais de que grandes alte-rações no curso da política do país seriam feitas. Mais especificamente, há poucos sinais de que a Turquia voltaria a votar por estruturas de governo muito próximas do Ocidente, optando por regimes políticos secularistas, por exemplo. Isso revela, portanto, uma tendência estrutural ao conserva-dorismo, quer ele seja de orientação religiosa ou estadista.

As explicações dos países ocidentais para susten-tarem sua relação com a Turquia são baseadas ou em generalizações ou em questões geográficas e geopolíticas. Entretanto, a questão que a tentativa de golpe traz à tona é, certamente, até que ponto

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a relação entre Turquia e o Oeste consegue supor-tar as diferenças de orientação política e culturais entre estes atores. A localização geográfica não pa-rece ter muito valor quando seu uso é negado, por exemplo, como durante a invasão estadunidense ao Iraque em 2003.

Dito isso, o jogo de alto risco desempenhado pela Turquia na busca de acordos com Rússia e Irã, principalmente, nas questões envolvendo a Síria e em defesa das fronteiras turcas em meio ao ce-nário de crise, e a sinalização de busca por apoio, através da reorientação momentânea da sua polí-tica externa para o Leste, parecem ter surtido efei-to, criando um espaço para a retomada de ações de cooperação entre Turquia e Estados Unidos no Oriente Médio. Como exemplo, tem-se a operação Escudo do Eufrates, realizada em 24 de agosto, que contou com apoio aéreo estadunidense e, após seu sucesso, contou com declarações esta-dunidenses em defesa das fronteiras turcas contra avanços curdos, que deveriam retornar a região a leste do Eufrates ou perderiam o apoio norte-ame-ricano. Esta é uma sinalização de tímida retomada entre aliados, justamente em um dos pontos de di-vergência entre ambos nos últimos meses: a ques-tão curda e o combate ao Estado Islâmico. Resta saber até quando o clima de retomada das rela-ções entre a Turquia e o Oeste irá durar (Karaveli 2016; Park 2015).

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o Conflito no iêmen (2015-Presente): CaraCterÍstiCas doméstiCas, re-gionais e internaCionais de uma guerra desConheCida

João Paulo Alves1 e Patrícia Graeff Machry2

• O Iêmen é estruturalmente afetado por dificuldades na constituição de um governo

central, e consequentemente no controle e unificação de seu território.

• A Guerra Civil no Iêmen iniciou-se em 2015 após as ofensivas Houthis sobre a capital

iemenita, e tem raízes históricas profundas que remontam ao contestado processo de unificação

e às divisões políticas, religiosas e regionais do país.

• As recentes ações dos Estados Unidos e da Arábia Saudita trazem à tona a importância

estratégica do país para a balança de poder regional.

.

1 Graduando em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Contato: [email protected]

2 Graduanda em Relações Internacionais pela UFRGS. Contato: [email protected]

Apresentação

No último dia 12 de outubro, quarta-feira, o Pentágono anunciou que os Estados Unidos da América lançaram ataques no Iêmen, destruindo três radares costeiros controlados pelo movimento rebelde Houthi. O bombardeio foi justificado como sendo uma retaliação ao lançamento de dois mís-seis por parte dos Houthi contra navios de guerra americanos localizados no Mar Vermelho, no final de semana anterior. À luz dos debates presiden-ciais que ocorriam nos Estados Unidos, pouco ou nada foi falado a respeito deste envolvimento no Iêmen, e o secretário de imprensa do Pentágono afirmou que se tratou de uma ação de autodefesa para proteção de seu pessoal, seus navios e seu direito de livre navegação, violados pelas ações dos Houthi. Ele também endossou o discurso nor-malmente defendido pela Arábia Saudita, de que o Irã tem tido envolvimento direto em apoio ao grupo

dos Houthi, e convidou todas as partes envolvidas a voltarem à mesa de negociações para retoma-rem as conversações de paz interrompidas em agosto de 2016, após o desrespeito ao cessar-fogo por todas as partes.

O que fica aparentemente omisso, contudo, nes-tas declarações, é o fato de que esse ataque es-tadunidense contra as posições controladas pelos rebeldes marca o primeiro envolvimento de fato do país na guerra civil em curso no Iêmen desde o começo de 2015. Até então, apesar de apoiar a coalizão árabe liderada pela Arábia Saudita que ataca o Iêmen desde março de 2015, a atuação direta estadunidense ainda era majoritariamente circunscrita no contexto da guerra contra o terro-rismo, com ataques aéreos com drones realizados contra as posições, principalmente, da Al-Qaeda

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na Península Arábica.

Qual é, então, a importância do Iêmen e quais os impactos da guerra civil em andamento no país? Quais as motivações que levam à intervenção de grandes potências como os Estados Unidos e de potências regionais como a Arábia Saudita e o Irã? Quais as disputas internas e os grupos de interesse domésticos que protagonizam este conflito? Reco-nhecendo a importância de todas essas questões, o presente boletim tem como objetivo respondê--las, contextualizando o papel histórico e geoestra-tégico do Iêmen e esclarecendo a dinâmica e as características do atual conflito.

Breve história do Iêmen

O território iemenita localiza-se na região sudoeste da península arábica. Faz fronteira com a Arábia Saudita e com o Omã, e é banhado pelo Mar Vermelho e pelo Mar Arábico. É uma posição de enorme importância estratégica em virtude do estreito de Bab el-Mandeb, que conecta o Oceano Índico ao Mar Vermelho - e, consequentemente, ao Mediterrâneo.

Figura 1- Localização do Iêmen na Península Arábica

A maioria dos iemenitas são muçulmanos sunitas que seguem a escola chafeíta, mas há, também, uma parcela minoritária da população que segue o ramo zaidita do xiismo, principalmente no Norte. O ramo zaidita é minoritário no xiismo e possui mais semelhanças com o próprio sunismo do que com outros ramos xiitas, como o dos duodecimanos, que são majoritários no Irã e no Iraque, e é encon-trado, hoje em dia, apenas no Iêmen (Day 2012; Demant 2004; Etheredge 2011).

Nem sempre o território iemenita foi unificado como o é hoje em dia. Pelo contrário, historicamen-te encontrou-se quase sempre dividido entre inú-meras tribos regionais e, desde o início do século XX, entre Norte e Sul. A divisão entre o Norte e Sul começou quando os impérios Otomano e Britâni-co desejaram estabelecer-se no território iemeni-ta, respectivamente ao Norte e ao Sul, em virtude da importância estratégica do Mar Vermelho, e traçaram uma linha fronteiriça para evitar conten-das. No Sul, a maioria da população era sunita, ao passo que no Norte, a população era dividida entre sunitas e os xiitas zaiditas (Day 2012; Etheredge 2011; Held e Cummings 2014).

Com o fim do Império Otomano ao final da Primeira Guerra Mundial e a consequente retirada de suas tropas do Norte do Iêmen, a região passou a ser dominada por imãs zaiditas. Esse domínio foi pos-to à prova com a revolução de 1962, que fundou a República Árabe do Iêmen - mais comumente chamada simplesmente de Iêmen do Norte. A re-volução do Norte inspirou os povos sulistas, ainda dominados pelos britânicos, levando à eclosão de outra revolução, desta vez no Sul, em 1963, que buscava a descolonização, e acabaria por fundar a República Democrática Popular do Iêmen (RDPI), de orientação socialista. O Iêmen do Sul passou a receber apoio soviético e a modernizar-se, rea-lizando reforma agrária, investindo em educação e defendendo a emancipação feminina. A Repúbli- Fonte: Wikimedia Commons

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ca do Norte, por sua vez, permanecia majoritaria-mente agrária, analfabeta e ainda permeada por disputas de líderes tribais, cujo poder nenhum pre-sidente conseguiria controlar até a ascensão, em 1978, de Ali Abdullah Saleh (Halliday 1990; Ethe-redge 2011; Visentini et al. 2013). Apesar de os territórios permanecerem separados, as Revolu-ções ocorridas em ambos os lados da linha divisó-ria haviam propagado ideias de unidade nacional, especialmente devido à influência dos ideais dos nacionalismos árabes e do pan-arabismo que che-gavam na região desde os anos 1950.

Com o enfraquecimento da União Soviética na me-tade final dos anos 1980, a ajuda recebida pelo Iêmen do Sul diminuiu enormemente. Ao mesmo tempo, atividades de prospecção de petróleo na região de fronteira indicavam para a existência de campos na região Sul. Tendo em vista o pos-sível colapso da RDPI e as vantagens que o Norte obteria de uma exploração conjunta do petróleo, as lideranças de cada país optaram pela unifica-ção, que se deu oficialmente no dia 22 de maio de 1990. Ali Abdullah Saleh, presidente do Iêmen do Norte, tornou-se presidente da nova República do Iêmen, cuja capital é Sanaa (Brehony 2011; Ethe-redge 2011; Visentini et al 2013).

A unificação, porém, não eliminou as diferenças en-tre ambas as partes. Desde a unificação, a popula-ção no Sul passou a manifestar descontentamento com sua representação nas instâncias políticas, uma vez que a população do Norte era cinco vezes maior que a do Sul, e, consequentemente, os polí-ticos do Norte obtinham maioria no parlamento. A insatisfação levaria à eclosão de uma guerra entre os dois lados em 1994, que foi vencida pelo Norte, mas não cessou os descontentamentos,

Nos anos 2000, novas forças surgiriam para de-

safiar o domínio do presidente Saleh no Iêmen: o movimento insurgente zaidita Houthi, o Movimento Separatista do Sul, e o estabelecimento da al-Qae-da na Península Arábica (AQPA). O governo de Sa-leh travou diversas guerras com os Houthis entre 2004 e 2010 no Norte do Iêmen, ao mesmo tempo em que se tornou um aliado exemplar dos Estados Unidos na Guerra ao Terror, permitindo ataques aéreos contra as posições da al-Qaeda.

Em 2011, os protestos da Primavera Árabe atin-giram o Iêmen, levando a população às ruas para contestar o domínio de Saleh, que já se mantinha em posição de poder a 33 anos. O aumento da violência levou a Arábia Saudita e os EUA a pres-sionarem Saleh a abandonar o poder, o que foi feito após uma negociação com o Conselho de Co-operação do Golfo. Eleições ocorreram em 2012 e elegeram o vice-presidente de Saleh, Abdu Rabbu Mansour Hadi. Reconhecendo que seria difícil con-quistar a confiança do povo iemenita após a Prima-vera Árabe, Hadi seguiu sendo um aliado essencial dos Estados Unidos, para garantir que teria apoio externo (Visentini 2014).

Durante 2013 e 2014, Hadi realizou a Conferência do Diálogo Nacional, um fórum com todos os gru-pos políticos existentes no Iêmen, em uma tentati-va de chegar a um acordo para formar um Iêmen “pós-Saleh” que agradasse ao povo. Os acordos finais propunham um sistema federativo, mas eles rapidamente fracassaram: enquanto alguns seto-res do Sul não abririam mão de suas ambições se-paratistas, os povos do Norte jamais concordariam em deixar determinadas regiões ricas em petró-leo e gás natural às federações do Sul (Salisbury 2015). As discordâncias acirraram ainda mais as tensões entre os rebeldes Houthis no Norte e os separatistas do Sul, e a dificuldade de Hadi em conciliar o território permitiu também um cresci-

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mento da al-Qaeda.

A Guerra Civil Iemenita e a sua dimen-são doméstica

O conflito atualmente em curso no Iêmen iniciou-se em janeiro de 2015, quando os Houthis tomaram o palácio presidencial de Sanaa e toma-ram as posições da guarda presidencial. O grupo, originário da região de Saada, vinha avançando ao Sul em direção à Sanaa desde 2014, dada a impossibilidade de se chegar a acordos com o go-verno Hadi sobre uma maior participação Houthi no governo e sobre as reformas econômicas e mili-tares desejadas pelo grupo (IHS 2015; IISS 2016). Com a tomada da capital por parte dos Houthis, a cidade de Aden bloqueou todos os seus acessos por mar, terra e ar, sinalizando um apoio do Sul para o presidente. Os Houthis realizaram discur-sos pedindo que se chegassem a acordos com os partidos do Sul e que se melhorasse a situação securitária da região de Marib, para proteger a po-pulação da al-Qaeda - altamente presente naquela região -, em uma clara tentativa de tentar ganhar a simpatia da população.

No dia 22 de janeiro, o presidente e o primeiro--ministro renunciaram, tentando negociar com os Houthis que eles teriam maior participação nas instituições do Estado se concordassem em retirar suas milícias da capital. Os Houthi, porém, estabe-leceram um governo interino no mês de fevereiro, e o presidente Hadi fugiu para Aden, onde infor-mou que anulava sua decisão inicial de resignar e se afirmou como o presidente legítimo do Iêmen. Como resultado desses desdobramentos, a guerra civil em curso no Iêmen é complexa em sua dinâ-mica interna, uma vez envolve uma série de partes que disputam umas com as outras e cujas alianças são bastante porosas.

Os Houthis, já mencionados, são um grupo insur-gente de orientação zaidita que é comumente ro-tulado pela mídia internacional como “grupo xiita rebelde” ou “milícia xiita”, normalmente em uma tentativa de associá-los com o Irã. O xiismo zaidi-ta, porém, como explicado acima, pouco tem em comum com o xiismo seguido pelos iranianos, o que torna fraca a afirmação de associação entre ambos puramente por termos religiosos. Os Hou-thi começaram a organizar-se como um grupo de estudos religioso que defendia o renascimento do zaidismo no Iêmen - que havia esmorecido após a queda do último imã em 1962, e que é um objetivo temido e fortemente rejeitado pela maioria sunita do país. O nome Houthi passou a ser usado apenas depois de um tempo, em referência ao fundador Hussein Badr al-Din al-Houthi, que foi assassinado pelas forças do governo Saleh em 2004, tornan-do-se um mártir. O grupo identifica-se oficialmente como Ansar Allah, ou “Partidários de Deus” (IHS 2015, Phillips 2011). O Movimento Separatista do Sul, ou al-Hirak, sur-giu nos anos 2000 como um movimento de con-testação ao domínio do ex-presidente Ali Abdullah Saleh, que os povos do Sul consideravam corrupto e ilegítimo. O Movimento do Sul, porém, tinha uma abordagem diferente dos Houthi, e defendiam manifestações pacíficas e sem armas. O al-Hirak organizou enormes protestos ao longo de 2008 e 2009, mas, eventualmente, passaram também a recorrer a ataques contra o governo, tendo em vis-ta a enorme repressão que sofreram pelas forças de segurança de Saleh. Atualmente, o Movimento Separatista não possui uma liderança, e, portanto, tem tido uma voz menor no conflito em curso. Ape-sar de serem contrários ao governo de Hadi, que consideram uma continuação de Saleh, os sepa-ratistas do Sul também se opõem fortemente ao movimento Houthi (Day 2012; IISS 2016).

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As forças do governo de Hadi, principal oponente dos Houthis no atual conflito, são defendidas pelo exército iemenita e por uma coalizão militar lide-rada pela Arábia Saudita que atua no solo ieme-nita desde março de 2015. Internamente, porém, as Forças Armadas encontram-se fortemente di-vididas, com diversos quadros dissidentes tendo migrado para outro lado do conflito, em defesa do ex-presidente Ali Abdullah Saleh. Esses, em uma tentativa de enfraquecer o presidente, vem forne-cendo apoio aos Houthi, em uma virada bastante curiosa da situação, considerando o fato de que, enquanto presidente, Saleh também lutava contra o Ansar Allah.

O conflito, porém, não se limita a suas fronteiras domésticas. Além dos atores domésticos que se confrontam pelo poder no Iêmen, atores transna-cionais como a al-Qaeda e o Estado Islâmico tam-bém tem presença dentro do território iemenita. A al-Qaeda atua diretamente no país desde 2009 através da al-Qaeda na Península Arábica (AQPA), que foi criada em 2002 na Arábia Saudita. A AQPA tem presença em uma porção significativa do ter-ritório, especialmente na porção Leste, e controla diversas cidades na região de Marib, que é uma das regiões mais ricas em petróleo do Iêmen. Este braço da al-Qaeda é considerado um dos mais po-derosos da organização, e foi o responsável pelos ataques contra o Charlie Hebdo, em Paris, em ja-neiro de 2015.

O Estado Islâmico, por sua vez, anunciou ter se es-tabelecido no Iêmen no ano de 2015, e, embora não se tenha ainda certeza do real tamanho do seu poder no país, especula-se que tem conquis-tado militantes dissidentes da AQPA para atuar no Iêmen (IHS 2014; IISS 2016).

Figura 1- Localização do Iêmen na Península Arábica

Fonte: Stratfor 2016.

A dimensão internacional do conflito

Compreendida a dimensão interna do con-flito, parte-se para uma análise da sua extensão a nível internacional. Entende-se que a Guerra Ci-vil Iemenita é, essencialmente, resultado das di-nâmicas e disputas internas de poder - conforme foi apresentado na seção anterior. Não obstante, é evidente que esse fenômeno atrai a atenção de alguns atores internacionais com interesses espe-cíficos: regionalmente, encaixa-se em uma disputa histórica e geopolítica mais ampla envolvendo o Irã e a Arábia Saudita; e globalmente, insere-se nos interesses estratégicos dos Estados Unidos e da Europa na região.

A República Islâmica do Irã apresenta visíveis in-teresses estratégicos na alteração do presente status quo e na potencial reorientação da políti-ca iemenita em uma estratégia simultaneamente ofensiva e defensiva. Por um lado, Teerã aproveita--se das divisões sectárias entre sunitas e xiitas do país para prestar suporte ideológico e político às reivindicações Houthis - ganhando acesso a mais uma área importante que poderia ser usada como instrumento de pressão contra as suas rivalida-

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des regionais. Por outro, ainda há repetidas acu-sações, partindo de Washington e Riade, quanto à prestação de assistência material e financeira para os rebeldes iemenitas, na forma de quantidades significativas de dinheiro e equipamentos militares - supostamente com o intuito de criar focos de re-taliação contra seus opositores e aumentar a sua capacidade dissuasória (Juneau 2016).

Já o Conselho de Cooperação do Golfo (CCG), e em especial a Arábia Saudita, vislumbra o Iêmen praticamente como uma extensão de suas preocu-pações domésticas, como um “quintal estratégico” na península. Dessa forma, Riade possui interes-ses originários desde a independência iemenita, tendo propugnado o Wahhabismo - a sua vertente oficial do Islã - como modelo religioso a ser segui-do, e estabelecido um “sistema de patronagem” sobre a balança de poder doméstica no país. Mais especificamente, os sauditas buscam refrear o for-talecimento do grupo rebelde, a fim de evitar que o Irã realize uma espécie de flanqueamento político do qual pudesse se aproveitar posteriormente. Na presente conjuntura, portanto, a consecução dos seus objetivos passa invariavelmente pela defe-sa do governo de Abd Mansur al Hadi (LSE Middle East Centre 2014).

Em função disso, e após as ofensivas Houthis so-bre a parte sul do país e a consequente ameaça de conquista sobre um dos últimos redutos do gover-no central (a cidade de Aden), o CCG percebeu a necessidade de defender seus interesses através do uso da força. No início de 2015, o Conselho de Segurança das Nações Unidas passou a criticar fortemente os avanços rebeldes, aprovando a Re-solução 2201 e demandando a retirada dos insur-gentes das áreas ocupadas. Em março, a Arábia Saudita organizou uma coalizão de países - forma-

da pelos Bahrein, Catar, Emirados Árabes Unidos, Egito, Jordânia, Kuwait, Marrocos, Senegal e Su-dão - para realizar a intervenção militar, e auxiliar o governo na recuperação do terreno perdido (Reis, Machry e Prates 2015).

Nesse contexto, foi lançada a Operation Decisi-ve Storm. Na fase inicial da operação, o objetivo central foi a garantia da superioridade operacional aérea da coalizão, através do estabelecimento de uma zona de exclusão aérea, e a reversão da si-tuação no conflito, através de bombardeios loca-lizados. Assim, aeronaves da coalizão passaram a atacar as posições de bases militares, linhas de suprimento, equipamentos antiaéreos e galpões de munição Houthis em Sana’a, Taiz e Aden3, con-forme mostra a Figura 1. Ademais, embarcações de guerra egípcias e sauditas aproximaram-se da costa sul do país e garantiram reforço na defesa da cidade portuária. Gradualmente, a situação foi sendo revertida e as tropas leais ao governo inicia-ram uma contraofensiva (Mello e Knights 2015)

Figura 3 - Localização dos bombardeios da coalizão

Referência:Levett et al. 2016

Além disso, foram empregadas forças convencio-nais de países da coalizão em batalhas terrestres no país. Nesse esforço de combate, destaca-se o envio de sistemas mecanizados, incluindo tanques de guerra, veículos blindados médios, veículos de

3 Segundo o Yemen Data Project, uma iniciativa de coleção de dados relativos à Guerra do Iêmen com o intuito de torná-la mais transpa-rente, há uma ampla controvérsia acerca da efetividade dos bombardeios da coalizão. De acordo com a organização, dos 8.600 in-cidentes registrados, 3.577 atingiram instalações militares, 3.141 atingiram localizações civis, e 1.882 atingiram pontos não identificados. As regiões de Saada e Taiz foram especialmente afetadas por esses ataques indiscriminados (Levett et al. 2016).

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combate à infantaria e muitos caminhões de trans-porte. Do mesmo modo, foram enviados batalhões de soldados - boots on the ground - para auxiliar nas escaramuças de “reconquista”, destacando-se a participação de tropas iemenitas especializadas e treinadas em campos sauditas e emiradenses, e batalhões de operações especiais nacionais da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos com armamentos de alta tecnologia - totalizando um acréscimo de aproximadamente 150.000 solda-dos nos campos de batalha (Mello e Knights 2015).

Em uma segunda fase da operação, as disputas pareceram chegar a um impasse: o conflito tornou--se basicamente uma guerra de atrito e as movi-mentações de ambos os lados foram significativa-mente reduzidas. Como último esforço, houve um enfrentamento breve entre a Arábia Saudita e os Houthis ao longo da ampla fronteira que divide os dois países, com mobilização de forças de respos-ta rápida, troca de disparos de artilharia pesada e evacuação de cidades limítrofes. Nesse contexto de estagnação, houve uma significativa expansão da participação indireta de ambas as potências regionais, através da provisão de suporte para as suas respectivas facções - pelo envio de armamen-tos, munições, suprimentos médicos e inclusive comida (Reis, Machry e Prates 2015).

Por fim, a coalizão lança-se em um novo empre-endimento de guerra através da chamada Opera-tion Restoring Hope que dura até os dias de hoje - teoricamente finalizando as operações militares e bombardeios aéreos, e dando prosseguimento ao processo por vias diplomáticas4. Assim, segundo porta-vozes da coalizão, iniciou-se uma nova opera-ção com objetivos majoritariamente humanitários: reavivar o diálogo político, fortalecer o combate ao terrorismo, facilitar a evacuação de nacionais para

outros países e intensificar a assistência médica para a população civil (Banco 2015). Não obstan-te, até o presente momento não houve iniciativas no sentido de um cessar-fogo formal entre as par-tes que se mostrassem duradouras.

A nível global, a atual situação no Iêmen também desperta interesses específicos - particularmente do Ocidente - quanto à posição estratégica da pas-sagem marítima no estreito de Bab-el-Mandeb. O canal separa a África e o Oriente Médio, ao mesmo tempo em que conecta o Mar Vermelho e o Golfo de Aden - e posteriormente, o Oceano Índico. Além disso, é de suma importância para a economia in-ternacional, sendo o 4º estreito mais utilizado no planeta: anualmente, aproximadamente 14.000 embarcações, com 14% de todo o comércio global, atravessam essa passagem; diariamente, em tor-no de 3.8 milhões de barris de petróleo refinado e produtos derivados fazem o mesmo caminho em direção aos mercados industrializados ocidentais (Rocha et al. 2016).

Esses fatores são acrescidos à chamada Guerra Global ao Terror (GWOT), que contribui para que haja uma forte atração dos Estados Unidos e da Europa em direção à atual situação no Iêmen. A deterioração política e econômica e a segregação do país em facções combatentes criaram um cená-rio fértil para a ascensão de grupos fundamentalis-tas e utilitários de estratégias terroristas, que tem sido os maiores beneficiários desse conflito. Nesse contexto, tem-se a Al Qaeda da Península Arábica (AQAP) e, em alguma medida, o Estado Islâmico (EI) como outras fontes de instabilidade e de ame-aça à segurança internacional - tanto através dos tradicionais atentados levados à cabo globalmen-te, quanto através da militarização das passagens marítimas e dos potenciais ataques às embarca-

4 A despeito das declarações oficiais de interrupção dos bombardeios, os sauditas deram continuidade praticamente irrestrita às operações de ataque às cidades iemenitas, destruindo inclusive o aeroporto da capital Sana’a.

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ções cruzando a região (Cordesman 2015).

Justamente em função disso, os Estados Unidos participaram do esforço de guerra da coalizão. Ini-cialmente, o país atuou de forma indireta, sendo responsável pelo fornecimento de equipamentos militares de alta tecnologia - como os F15 e F16 utilizados nos bombardeios aéreos sauditas - e pela utilização de Veículos Aéreos Não Tripulados (VANT’s) no suporte logístico e de inteligência. Em Outubro de 2016, Washington assumiu uma parti-cipação mais direta no conflito, utilizando mísseis Tomahawk para bombardear radares rebeldes na costa do país, em um alegado ato limitado de au-todefesa para proteção de sua equipe militar, de suas embarcações e da liberdade de navegação (Ackerman 2016).

Considerações finais

O conflito iniciado em 2015 no Iêmen trou-xe à tona as intensas divisões existentes dentro do jovem país. Tais divisões, contudo, não são recen-tes, tendo origens na época em que o território era ainda dividido entre Iêmen do Norte e Iêmen do Sul e intensificando-se após a unificação, em es-pecial nos anos 2000. Elas demonstram um forte conteúdo regional e aparecem também claramen-te na esfera religiosa, a qual, contudo, é dotada de objetivos políticos e estratégicos bastante claros. Para além dos numerosos e complexos elementos internos em jogo, a guerra civil também envolveu atores regionais e internacionais. Nesse sentido, destaca-se a atuação da Arábia Saudita, que histo-ricamente exerceu enorme influência no território iemenita, tanto antes quanto após a unificação, e que atualmente manifesta a importância que impri-me à estabilidade da região por meio da interven-ção militar que lidera. A contenda regional entre Irã e Arábia Saudita se manifesta através do apoio a diferentes partes em disputa, embora a atuação

desse, ao menos no que se tem provas, seja signi-ficativamente menor do que a do reino saudita. A recente participação mais ativa dos Estados Uni-dos na guerra comprova a importância estratégica da região, a qual já era alvo da política externa de Washington desde o início da Guerra Global ao Ter-ror.

É impossível prever quais serão os desdobramen-tos desse conflito. As conversações de paz, mo-mentaneamente paradas, podem ser retomadas a qualquer momento, e seus resultados podem va-riar de um simples cessar-fogo a um acordo real de transição política e pacificação do território. As his-tóricas dificuldades em se chegar a um consenso entre o governo iemenita e as forças de oposição, somadas à crescente ameaça terrorista, tornam pequenas as esperanças em uma solução no curto prazo. Portanto, cabe ao seguir observando aten-tamente os próximos eventos e o comportamento dos atores envolvidos, reconhecendo a importân-cia do conhecimento sobre cada um deles - tanto os domésticos quanto os externos.

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