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Resumo/ Abstract Eles não usam black-tie: a forma como conteúdo histórico-ideológico O presente artigo analisa comparativamente a peça Eles não usam black-tie, de Gianfrancesco Guarnieri (1958) e o filme homônimo (1981) com direção de Leon Hirszman. De- monstramos que há uma dicotomia no texto de Guarnie- ri que se equilibra na configuração da forma interna da peça teatral e, verificamos que, na transposição da linguagem teatral para a linguagem cinematográfica, e pelas opções da adaptação em momentos diversos de nossa história políti- ca, essa balança se desequilibra. Desta forma, percebemos como, a partir de nossa matéria estética, podemos com- preender o nosso devir histórico. Palavras-chave: teatro; cinema; história; arte e política. Arena and the engagement in modern Brazilian theatre e present article analyses comparatively the play Eles não usam black-tie, by Gianfrancesco Guarnieri (1958), and the homonym movie (1981) with the direction of Leon Hirsz- man. We demonstrated that there is a dichotomy in Guar- nieri’s text that balances in the internal shape configuration of the theatrical play and we verify that in the transposition from the theatrical language to the cinematographic lan- guage, and by the adaptation options in several moments of our political history, this scale unbalances. In this way, we noticed how from our esthetic matter we can compre- hend our historical obligation and that even with the same content, the works are different in their formal options, in other words, modifying the way of the presentation of the contents, we modify the content itself. Keywords: theater; cinema; history; arts and politics.

Black Tie: uma análise

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Black Tie: uma análise

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  • Resumo/ Abstract

    Eles no usam black-tie: a forma como contedo histrico-ideolgicoO presente artigo analisa comparativamente a pea Eles no usam black-tie, de Gianfrancesco Guarnieri (1958) e o filme homnimo (1981) com direo de Leon Hirszman. De- monstramos que h uma dicotomiano texto de Guarnie-rique se equilibrana configurao da forma interna da pea teatral e, verificamos que, na transposio da linguagem teatral para a linguagem cinematogrfica, e pelas opes da adaptao em momentos diversos de nossa histria polti-ca, essa balana se desequilibra. Desta forma, percebemos como, a partir de nossa matria esttica, podemos com-preender o nosso devir histrico.Palavras-chave: teatro; cinema; histria; arte e poltica.

    Arena and the engagement in modern Brazilian theatre

    The present article analyses comparatively the play Eles no usam black-tie, by Gianfrancesco Guarnieri (1958), and the homonym movie (1981) with the direction of Leon Hirsz-man. We demonstrated that there is a dichotomy in Guar-nieris text that balances in the internal shape configuration of the theatrical play and we verify that in the transposition from the theatrical language to the cinematographic lan-guage, and by the adaptation options in several moments of our political history, this scale unbalances. In this way, we noticed how from our esthetic matter we can compre-hend our historical obligation and that even with the same content, the works are different in their formal options, in other words, modifying the way of the presentation of the contents, we modify the content itself.Keywords: theater; cinema; history; arts and politics.

  • Walter Benjamin, em uma conferncia proferida em 27 de abril de 1934, no Instituto para o Estudo do Fascismo (BENJAMIN, 1994), prope um debate em torno da questo do lugar do autor da obra de arte (seja ela literria, teatral, fotogrfica ou musical) na sociedade da poca e sua possibilidade de interferir nessa sociedade. Para dar incio a sua reflexo, Benjamin analisa a discusso entre forma e contedo, criticando o prprio debate sobre as relaes entre essas categorias, enquanto categorias independentes, como um debate estril. O que Benjamin procura estabelecer no incio de sua re-flexo, como pressuposto para desenvolver todo o debate do texto, uma maneira de se olhar para a obra literria que integre dialeticamente as categorias de forma e contedo. Afirma o autor que toda obra um contedo que se apresenta numa forma, e que as relaes de anlise, e por que no dizer de julgamento, devem consider-las em conjunto numa relao dialtica em que a forma tambm contedo. Considera Benjamin que uma obra de arte literria s existe enquanto forma e que essa forma s se manifesta a partir de um contedo. Para concretizarmos mais o pensamento de Benja-

    Eles no usam black-tie: a forma como contedo histrico-ideolgico

    Berilo Luigi Deir NosellaDoutorando em Histria e Historiografia do Teatro pelo PPGT UNIRIO. Mestre em Literatura e Crtica Literria pela [email protected]

    [...] este objeto no consiste apenas em trazer luz s as crises polticas do passado, as aven-turas guerreiras e diplomticas de outrora, em estudar perpetuamente o Estado e os Estados, mas, sim, o Homem, desde o incio o homem, homem que age, aflito, sofrendo e trabalhando, criando estes magnficos encantamentos de arte e literatura, construindo, medida de suas necessidades, as grandes religies e as grandes filosofias, dotando-se, mental e sentimental-mente, de um futuro humano que possa projetar para alm de si mesmo e que o leva a li-bertar-se de seus humildes princpios de bruto, de pobre, mal dotado pela natureza, inferior a tantos brutos, poderosos, ferozes e bem armados.

    Lucien Febvre1958A vida de certa forma no-dramtica. Ela no conhece sim ou no, branco ou preto, tudo ou nada.

    Bertolt Brecht

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    min, poderamos afirmar sem medo que esse contedo aqui expresso pelo autor, liga-se diretamente com a matria a partir da qual a obra se origina, e esta diz respeito diretamente s relaes que a obra em questo apresenta, e se baseia, com o meio do qual ela se origina.

    Esse pressuposto de anlise apresentado por Benjamin tambm se mostra como pressuposto no presente texto. No se trata aqui de debat-lo conceitualmente, apenas de traar linhas de filiao terica para desenvolver a anlise que se pretende da obra Eles no usam black-tie, de Gianfrancesco Guarnieri, a partir da hiptese de que h, internamente obra, uma dicotomia formal e conteudstica que se relacionam como duas linhas paralelas que (ao contrrio do que aprendemos na geometria) se cruzam no momento do desenlace dramtico do texto. Procuraremos demonstrar rapidamente como essas paralelas presentes no texto de Guarnieri, mesmo que possamos considerar a tendncia do autor a uma delas, se equilibram com pesos iguais na configurao da forma interna da pea. Comparativamente, e para verificarmos essa estrutura, analisaremos o filme Eles no usam black-tie, de Leon Hirszman, realizado quase 30 anos depois, a fim de perceber como, na transposio formal da linguagem teatral para a linguagem cinematogrfica e pelas opes da adaptao, essa balana se desequilibra. Assim, nesta anlise comparativa procuraremos demonstrar como, com mesmos con-tedos, as obras se diferenciam nas opes formais, ou seja, que modificando a forma como apresen-tao dos contedos, modifica-se o prprio contedo de uma obra, retornando e concordando com o pressuposto de Benjamin acima apresentado.

    Antes de iniciarmos a anlise propriamente dita, precisamos apresentar um outro pressuposto fundamental para o texto que aqui se desenvolve. Na tradio dos estudos literrios alemes, que re-montam a Hegel, Lukcs e finalmente ao prprio Benjamin, h uma tradio de diviso da produo literria em gneros, em que a cada um dos gneros corresponde, para os alemes, um mbito da vida real, uma dimenso da vida1. A tradio alem dividiu as nossas experincias no mundo em trs dimenses, s quais correspondem trs gneros literrios. A dimenso da interioridade, da subjetivi-dade, corresponde ao gnero lrico. A dimenso pblica, da vida coletiva, ou seja, a esfera da poltica, dos negcios, das guerras, corresponde ao gnero pico. E a terceira dimenso, que corresponde ao mbito da vida privada, quer dizer a famlia, os amores, corresponde ao gnero dramtico. Estes pres-supostos tericos so claramente incorporados pelos teatrlogos alemes, principalmente Piscator e Brecht, na definio do conceito de teatro pico.

    1 HEGEL, Cursos de Esttica, volume IV: a poesia, principalmente os captulos sobre As diferenas do gnero da poesia (p. 79-218).

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    Ir at o pensamento alemo para falar de um texto teatral brasileiro (considerado to profunda-mente brasileiro) no , como poderia parecer, virtuosismo intelectual. A pea Eles no usam black-tie escrita por volta de 1955 e 1956, porm preferimos considerar, mais precisa, a data de estreia da mesma em 1958 no Teatro de Arena em So Paulo. Alm da maior preciso com relao data, o Teatro de Arena um grupo cujas propostas e processos artsticos e produtivos se ligam diretamente a essa pea tanto como marco histrico quanto filiao ideolgica. O Teatro de Arena buscava, fun-damentalmente, estabelecer um tipo de encenao (e a se integravam princpios de interpretao, concepo cnica e dramaturgia) propriamente brasileira, na melhor tradio do nosso Modernis- mo2. O texto, Eles no usam black-tie, nasce em concordncia com o projeto do Arena, de dentro de um Seminrio de Dramaturgia promovido pelo grupo, a fim de encontrar esse texto nacional num processo que pressupunha o coletivo. Assim somos levados a acreditar que, mesmo tendo sado dos punhos pessoais de Guarnieri, at a estreia em 1958, o texto provavelmente sofreu modificaes e sugestes de importantes profissionais ligados ao Arena, como Augusto Boal, Jos Renato ou Chico de Assis. A prpria deciso de encenar esse texto se d nessa direo. Em 1958, o Arena passava por dificuldades financeiras srias e j se sabia que no haveria meios de mant-lo. Dentro desse quadro, o diretor Jos Renato, um dos principais fundadores e diretores do grupo, decide montar o texto de Guarnieri afinal; se o Arena ter de acabar, que termine com um texto que expresse de forma com-pleta as motivaes mais profundas do grupo3. Fizemos esta breve apresentao do Teatro de Arena primeiro para mostrar que o texto em questo no um texto qualquer escolhido para ser montado pelo Arena, e sim um texto que se vincula muito diretamente com o grupo enquanto motivaes est-tico-ideolgicas de produo, uma vez que nasce no seu interior. E vale afirmar que com essa mon-tagem que o Teatro de Arena tem seu estouro de pblico. A pea acaba permanecendo mais de um ano em cartaz e o grupo, que estava fechando, se estabelece como uma das referncias fundamentais

    2 Um dos muitos aspectos da pea Eles no usam black-tie condizentes com as aspiraes nacionais-populares do Arena, que no condiz aprofundarmos nesse trabalho mas me parece importante citar, o uso da linguagem oral, coloquial nos dilogos da pea: A questo da linguagem, como forma de expresso desse nacional-popular pretendida pelo Arena, trouxe para o palco a chamada linguagem do povo; o que para eles significava tentar colocar nos dilogos a maneira real das chamadas classes populares, como se expressavam, desrespeitando todas as regras gramaticais e recheando os dilogos de grias e maneirismos como forma de alcanar esse objetivo (PASCOAL, 1998, p. 63).3 ... quando o Arena entrou naquela fase ruim, naquela crise, que parecia que o barco ia afundar mesmo, o Z Renato resol-veu como canto de cisne mesmo montar Eles no usam black-tie. Ele dizia: Vamos fazer o Black-tie, porque j que vai acabar mesmo, vamos acabar com uma pea nacional. Podemos fazer um espetculo razovel (GUARNIERI, Depoimentos ao SNT. In: ALMEIDA, 1981, p. 65).

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    do teatro nacional at por pelo menos mais dez anos, s saindo de cena por conta do endurecimento da ditadura em 1968. A segunda razo desta apresentao afirmar a filiao terica do Arena a um diretor e terico de teatro alemo, que citamos como fundamental na definio de teatro pico, que Erwin Piscator, e, claramente, por meio deste, experincia do Volksbbhne alemo enquanto modelo de um coletivo de produo teatral na forma de cooperativa com seu pblico, onde, por meio de as-sinaturas, este se filia ao coletivo teatral afirmando uma relao de aprovao esttica e ideolgica que vai alm da compra avulsa de ingressos numa noite de espetculos. Dessa forma, mesmo que no haja evidncias de uma influncia formal direta do modelo do Teatro pico alemo no texto de Guarnieri, ficam aqui, nas relaes mais amplas do coletivo Teatro de Arena, de onde nasce o Eles no usam black-tie, justificados os pressupostos apresentados no incio do texto. E assim, iniciemos a anlise do texto propriamente dito.

    Eles no usam black-tie uma pea de teatro que estruturalmente se divide em trs atos, tratando do dilema entre um pai, Otvio, e um filho, Tio, que, a partir de vises diferentes do mundo em relao sua condio de classe, fazem escolhas divergentes e consolidam uma ruptura na relao familiar, pai e filho, que os uniria para alm das convices polticas. O texto apresenta a trajetria, as ideias, as angstias e motivaes e, consequentemente, as escolhas dos dois personagens antagnicos, chegando ao desenlace no confronto dessas duas foras. Sendo assim, poderamos resumir dizendo que a pea trata de uma famlia, moradora de uma favela do Rio de Janeiro, que tem sua subsistncia garantida pelo trabalho de operrio numa fbrica exercido por Otvio e Tio (pai e filho). Dentro desse quadro, o texto tem como eixo central da histria e do conflito a realizao de uma greve na fbrica em questo. Otvio um velho militante sindicalista, que j passou por vrias lutas pela classe operria, inclusive tendo vivido um perodo preso por conta de suas atividades militantes. Nesse perodo de priso de Otvio, o filho, Tio, mandado cidade para ser educado pelos padrinhos, dada as condies de misria em que se encontra a famlia. Fazem parte dessa famlia a mulher de Otvio, e me de Tio, Romana, e o irmo Chiquinho. Paralelamente a essa histria, uma persona-gem externa famlia, mas que se integra a ela, Maria, namorada, que se tornar noiva, de Tio. Aqui se apresenta o outro ncleo formal interno da pea, a histria de Tio com Maria. So tambm personagens fundamentais na pea Terezinha, uma moradora da favela, namoradinha do filho mais novo, Chiquinho, e Jesuno, operrio da fbrica e amigo de Tio. Vejamos como Guarnieri organiza formalmente a presena desses dois ncleos no interior do texto teatral.

    A pea se passa toda no barraco da famlia de Tio. Inicia com a chegada de Tio e Maria noite, vindos do cinema, durante uma forte chuva. Chiquinho e Romana dormem e Otvio no est em casa

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    ainda. Sozinhos, Maria revela que est grvida de Tio e eles decidem se casar e, portanto, ficar noivos dali a duas semanas. Aqui se inicia o desenrolar de um dos ncleos do texto, que, em concordncia com o pressuposto das divises em gnero apresentados no incio, chamaremos de ncleo dramtico da obra. Logo Chiquinho acorda e na sequncia chega Otvio. J na primeira fala do dilogo em que se faz presente Otvio, apresentado o segundo ncleo do texto, a greve, que chamaremos de ncleo pico.

    OTVIO Farra?... Farra vo v eles l na fbrica. Sai o aumento nem que seja a tiro!... Querendo podem aproveit o guarda-chuva, t furado mas serve... Eu acho graa dsses caras, contrariam a lei numa poro de coisas. Na hora de pag o aumento querem se apoi na lei. Vai se preparando, Tio. Num dou duas semanas e vai estour uma bruta greve que eles vo v se paga ou no. (vai at o mvel e pega uma garrafa de pinga). Pra combat a friagem... Se no pag, greve... Assim que ...

    Esse primeiro ato se desenvolve com essa apresentao dos dois ncleos e das personagens, as j citadas acima, e de Brulio, companheiro de fbrica de Otvio e militante de longa data junto com Otvio. Ainda no primeiro ato, transcorrem as duas semanas que antecedem o noivado e a greve, e este termina com a festa de noivado de Tio (sempre no barraco da famlia) e com a chegada de Bru-lio, que vem da assembleia do sindicato dos operrios com a notcia de que foi aprovada a greve geral para segunda-feira (estamos no sbado). Novamente, dentro do desenrolar dos acontecimentos do ncleo dramtico (a festa de noivado de Tio) se faz presente, com a chegada de Brulio e a notcia de que este portador, o ncleo pico da pea. E o primeiro ato termina com a notcia, trazida de fora do barraco, do coletivo da favela, de que nasceram gmeos, como um prenncio de boas novas:

    ROMANA (que comea a gritar de fora irrompe aos berros) Eu falei! Gmeos. A Cndida teve gmeos... Minha simpatia no falha! Pessoal a festa muda por 36, a Cndida teve gmeos...

    No segundo ato ocorrem os acontecimentos de preparao para o desenlace, ou seja, a preparao da greve e o desenvolvimento dramtico das personagens quanto s suas motivaes para as escolhas futuras. No caso de Tio, motivaes que se colocam a meio caminho entre a greve e sua situao em relao a Maria e ao filho que est por vir. O ato se inicia com um dilogo entre Romana e Tio, onde so discutidos os acontecimentos da festa de noivado do dia anterior. Tio e Otvio, movidos pela bebida, se desentenderam trazendo tona o choque entre as diferentes vises de mundo. Essa diferena se expressa na indignao de Tio com a militncia do pai que tanto sofrimento traz para a

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    famlia. Mais frente falaremos sobre a opo de Guarnieri em no colocar em cena essa discusso, e sim transp-la do primeiro para o segundo ato em forma de relato de Romana ao filho, que, por conta da bebida, nem se lembra direito do ocorrido. O dilogo interrompido pela personagem de Terezi-nha, que vem correndo anunciar que Otvio est quase brigando no bar e a razo da briga a greve. Tambm em forma de relato trazido pela personagem Terezinha, que faz s vezes de mensageiro, a greve volta cena.

    TEREZINHA (entra correndo). Seu Otvio ta quase brigando no botequim!...ROMANA Nossa Senhora, pronto... Esse Otvio!...TEREZINHA Ta quase; ainda no ta, no! por causa da greve. Seu Antnio disse que greve coisa de vagabundo. A, seu Otvio disse que vagabundo era quem ganhava dinheiro com a barriga encostada na caixa. A, seu Antnio disse que quem no consegue dinheiro porque no gosta de trabalhar. A seu Otvio disse que seu Antnio era ladro e caspitalista. A, eles ficaram berrando que no entendi mais nada!...

    Todo o restante do ato uma sucesso de dilogos apresentando as bases do dilema de Tio e sucessivamente interrompidos pelo assunto da greve, de interesse de Otvio, sempre em forma de relato dos acontecimentos que antecedem e fazem parte da preparao da mesma. Primeiramente no prprio dilogo inicial de Romana e Tio, conforme j citado interrompido por Terezinha. Depois entre Romana e Maria:

    MARIA Tio demora?ROMANA Daqui a pouco ta aqui! Mas fala com ele, viu... fala mesmo... Se tu ta com cisma, o melh franqueza...MARIA Mas a senhora no achou que ele tava esquisito?ROMANA Preocupado... Noivado, casamento, greve... bebedeira! Isso passa.MARIA Eu chego a pens que ele capaz de fur a greve!ROMANA Tio? Deixa disso... Tio filho de Otvio, o maior greveiro carioca... Mas porque?MARIA Fala em greve, Tio emburra... Ontem ele tava meio tonto, disse uma poro de coisas, que isso no vida... Que faz greve todo o ano no d futuro pra ningum... Que a gente nunca ia t sossego!... Ele ta com medo que a greve no d certo e que seu Otvio, ele e o resto da ruma perca o emprego...ROMANA Bobagem!... E depois, as greve que Otvio se meteu sempre deu certo... Tio ta bbado... Mas fala com ele... melh franqueza... Se ele tiv com vontade de faz bobagem tu pode at aconselh...

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    Interrompido pelo aparecimento de Jesuno, amigo de fbrica de Tio, que traz cena o tema da greve novamente. Daqui se encadeia o principal dilogo do ato, entre Tio e Jesuno. Nesse dilogo se consolida a tomada de deciso de Tio e se apresenta o desenho de seu personagem da forma mais acabada:

    TIO Mas o jeito... Esse negcio no d futuro, Jesuno... Greve! Greve! E da? A turma fez greve o ano passado, j ta em outra... e assim por diante. Tu consegue um aumento numa greve, eles aumentam o produto, conduo, comida, tudo!... Tu ta sempre com a corda no pescoo...JESUNO O jeito o cara se defend como pode!...TIO Sabe, Zuno. Maria vai t um filho meu.JESUNO O que?TIO Maria vai t um filho meu!JESUNO Ta brincando!...TIO Ia brinc? Preciso cas no ms que vem... E te juro pela alma de mina me que eu caso com Maria e no fao ela pass necessidade. O negcio consegu gente com boas relao... Da subi...

    Na sequncia do dilogo, Jesuno apresenta um outro lado da tomada de posio de furar a greve, que a relao com os companheiros de trabalho (e no caso de Tio, est implcito, a relao com a famlia, sendo o pai um militante e um dos principais organizadores da greve). Aqui Jesuno prope que se fure a greve escondido para no ficar mal nem com os patres nem com sua classe. Tio categrico em negar a proposta de Jesuno, dizendo que se for pra furar a greve ser de forma aberta, assumindo sua posio e as consequncias dela. Ao apresentar o desenho das opes, as motivaes e o carter da personagem central do ncleo dramtico do texto, Guarnieri expe, obviamente, o ponto mximo da evoluo desse ncleo. Aqui Tio se apresenta como um perfeito heri dramtico, na tradio dos grandes heris trgicos gregos, Tio posto diante de uma fatalidade do destino em relao qual deve tomar uma posio e, de carter elevado, o personagem no foge a seu destino, toma sua posio, e arca com as consequncias dela. Porm, Tio no um heri trgico grego, sim um modelo de heri do drama clssico burgus (sculo XVIII e XIX), uma vez que, ao contrrio dos heris gregos, sua deciso e sacrifcio no implicam uma liderana, uma responsabilidade em relao ao coletivo. Trata-se de uma deciso motivada pelas necessidades individuais do personagem, seu bem-estar e de seus entes mais prximos. Poderamos afirmar que Tio uma flor que nasceu no jardim errado. Esse dilogo tambm interrompido pelo assunto da greve com a entrada de Otvio

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    e Brulio em cena anunciando a demisso de trs operrios lideres da militncia, o que se trata, se-gundo os prprios personagens, de uma tentativa de met medo na gente.

    O ltimo dilogo do segundo ato entre Tio e Maria; aqui o autor deixa claro que tomar a deciso contra a greve tomar uma deciso solitria. Nem mesmo aqueles que Tio procura proteger com seu ato, no caso Maria, o aprovam:

    MARIA (abraa Tio fortemente). Tio, no te mete em encrenca amanh!TIO Que encrenca!?MARIA No sei. No te mete em encrenca!TIO No tem susto!MARIA Pensa na turma, Tio. Aqui todo mundo te qu bem. E eu mais do que ningum...TIO Ta preocupada com qu?MARIA Comoc! Porque quando fala em greve tu te aborrece...TIO No pensa nisso. No assunto em que mulh se mete...MARIA sim!... O que que tu tem medo...TIO Medo! Tu tambm me vem fal em medo? Medo de nada! Quero viv bem comoc... s! Greve me aborrece poque sempre d bolo, a gente pode perd emprego... Ah! No pensa nisso... o que eu fiz pra nosso bem!MARIA No te mete em encrenca!TIO Tu no confia em mim?MARIA Confio!...TIO Ento, no pensa mais... Fica quietinha, sem pens. Pensa s no Durval! Dele tu precisa cuid...

    Na lgica dos ncleos paralelos, Tio reafirma aqui sua firme posio baseada na sua viso de mundo. Furar a greve no apenas uma questo de medo, nem de influncias e nem interesses mes-quinhos. Mesmo o quadro geral se apresentando como contrrio a sua tomada de deciso, Tio firme em sua deciso. E assim termina o segundo ato como um ato preparatrio para o terceiro.

    Antes de finalizarmos a anlise do segundo ato, faamos uma breve considerao quanto ao de-senrolar dos ncleos paralelos (dramtico e pico) no interior desse ato. Na poca da encenao da pea, o crtico Sbato Magaldi afirmou que o segundo ato perde, em relao ao primeiro e ao terceiro, em fora dramtica. Somos obrigados a concordar com Sbato, mas no concordamos com um juzo de valor quanto qualidade cnica desse em relao ao restante da pea. Na verdade, nesse ato que

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    Guarnieri faz uso, de forma mais acabada, dos prprios recursos dramticos em favor do ncleo pico do texto, por isso essa sensao de perda de fora dramtica. Percebemos isso j no incio, em que ele utiliza o dilogo (elemento dramtico por definio) para transformar em narrao (elemento pico) a discusso entre Otvio e Tio, bbados, na festa de noivado que encerra o primeiro ato. Encen-la, efetivamente, teria com certeza efeitos dramticos emocionais muito mais fortes do que transform-la em dado narrativo. Todo o restante do ato, tambm se resume a dilogos, porm todos eles tm como objetivo verbalizar de forma narrativa as contradies entre as motivaes dos diferen-tes personagens, que se fossem efetivamente trazidas cena em forma de embates diretos entre essas personagens, ou seja, em ao cnica, com certeza se carregariam de carga dramtica e acabariam antecipando o desenlace que est guardado para o terceiro ato. O nico dilogo direto o ltimo, entre Maria e Tio, mas esse acaba no ocorrendo, pois Tio corta o embate que se anuncia com sua posio machista de que o assunto greve no para ser tratado com mulheres. Novamente os ncleos se aproximam mas seguem suas trajetrias paralelas.

    Por fim, o terceiro ato. Neste ato temos a efetivao da greve, a consolidao da deciso de Tio em furar a greve, a priso de Otvio durante a realizao de piquete na porta da fbrica e a ida de Romana brigar na delegacia, para soltar o marido. Nesse ato, em que os assuntos do ncleo pico do texto se evidenciam, pois so as relaes e os embates com o ncleo dramtico do texto que vo desembocar no desfecho, que fica evidente a opo formal pelo ncleo dramtico. Ao contrrio do ato anterior, em que o recurso do dilogo reestruturado como relato, narrao, fortalece o ncleo pico, nesse esvazia-o completamente ao retirar de cena todos os acontecimento do plano pblico, ou seja, picos.

    Os acontecimentos do ato em si so novamente dilogos ocorridos dentro de casa, aqui conduzi-dos pela personagem Romana, que fica em casa enquanto Tio e Otvio vo viver os acontecimentos na fbrica. Enquanto o piquete se realiza, Tio fura a greve e Otvio preso, ns leitores acompa-nhamos Romana lendo as cartas, se angustiando com os rumos que estas lhe mostram, seguimos um dilogo dela com Chiquinho e Terezinha sobre o filme que eles viram na noite anterior e sobre lavar e passar roupa. Apenas num momento rpido Romana pergunta a Terezinha se viu os operrios da fbrica, mas a menina no tem nenhuma informao que antecipe os acontecimentos. Depois disso chega Maria, que, num dilogo que leva a personagem de Romana a seu pice enquanto cons-truo no texto, conta que est grvida. Poderamos dizer que aqui h a sobreposio total do ncleo dramtico sobre o ncleo pico. Esse dilogo quebrado pela chegada de Tio e na sequncia de Brulio, mensageiro das ms notcias, relatando a Romana e Maria a traio de Tio, como um dos dezoito fura-greves, e a priso de Otvio. Se no ato anterior esse recurso narrativo enfraquece o con-

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    tedo dramtico do texto, aqui o efeito o contrrio, no discurso inflamado e empolgado de Brulio, o caso, que faz parte do ncleo pico da pea (greve, piquete), ganha fora dramtica.

    fundamental destacar a importncia e os contornos que a personagem Romana ganha nesse ato como personagem de equilbrio nessa balana. Sem perder a doura da Me que ela representa na pea, possui a frieza necessria para no tornar melodramticos os elementos que nesse terceiro ato afloram (a revelao da gravidez, a priso do marido e a expulso, que ainda ocorrer, do filho da favela). No caso da gravidez, ela antecipa revelao de Maria, e a recebe com simplicidade, apenas mais um fato com o qual eles tero que lidar, como tudo na vida. No caso da priso do marido, por exemplo, a reao dela apenas dar as ordens a todos e ir com Brulio para a delegacia trazer seu homem para casa. No caso da expulso do filho, ela tem uma postura de carinho e compreenso, porm sem desautorizar Otvio, e mesmo muito doce com ele, finaliza com a seguinte mxima a Tio: Tu vai v que melh pass fome no meio de amigo, do que pass fome no meio de estranho!.

    A sequncia final da pea o acerto de contas. Tio tem que arcar com as consequncias de seus atos diante do Pai, da Me (que j expusemos acima) e da noiva Maria. Com o pai, o dilogo tem forte teor dramtico, diria at melodramtico, no fato de o autor ter optado por realiz-lo em terceira pes-soa, demonstrando a decepo e o desprezo de Otvio pela atitude de Tio:

    TIO Papai...OTVIO Me desculpe, mas seu pai ainda no chegou. Ele deixou um recado comigo, mandou diz pra voc que ficou muito admirado, que se enganou. E pediu pra voc tom outro rumo, porque essa no casa de fura-greve!

    Porm at esse momento como se a balana no pendesse, afinal a atitude de Otvio, que embora se coloque em defesa dos ideais coletivos presentes na pea, e portanto do contedo pico do texto, se desenrola no nvel do privado. muito mais a decepo de um pai para com um filho do que uma lio moral ou discurso poltico contra a atitude de Tio. Essa sensao reforada pela integridade do carter de Tio, o carter do heri burgus. como se Tio j soubesse que teria que deixar a casa e a favela e encara isso como um destino engendrado pela sua opo. Dessa forma, no no embate de Otvio com Tio que o autor apresenta sua posio de militante do movimento estudantil, do PCB e integrante do grupo de teatro mais engajado politicamente no Brasil do momento; ele o faz atravs de Maria. No na expulso de Tio que reside a derrota de sua viso de mundo, mas sim na recusa da noiva em acompanh-lo, na opo de Maria pela favela, pelo seu povo e sua classe. Ainda que essa

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    escolha se baseie numa viso, que permeia a pea como um todo, extremamente romntica da favela e da solidariedade de classe que ali se faz presente, nessa construo no muito plausvel que o autor apresenta sua viso ideolgica. Existe um dado que fundamental observarmos, mesmo dei-xando clara essa opo no final: sabemos, por meio de estudos e crticas da poca, que muitos crticos e espectadores se sensibilizaram com a posio tomada por Tio, e nesse fato que baseamos nossa hiptese, de que mesmo se tratando de uma pea com alto grau de engajamento poltico e que trata de questes de classe na perspectiva da classe diretamente interessada, os operrios, e atravs do seu mais forte instrumento de luta, a greve, a opo pelo ponto de vista de classe se equilibra na escolha de elementos formais que valorizam o ncleo dramtico do texto, fazendo com que olhemos pra ele, na maior parte das vezes, atravs dos olhos de Tio e no de Otvio4.

    1981

    Tudo que o palco empresta ao filme, tudo o que o cinema empresta ao teatro, arrisca-se a renunciar sua prpria natureza. O filme falado elevou ao mais alto grau essa concluso que remonta s primeiras idades do cinema. O filme, mesmo falando, deve criar meios de expresso bem diferentes daqueles inerentes ao palco. No teatro, a expresso veiculada pelo verbo; o que se v de importncia secundria comparado ao que se ouve. No cinema, o meio de expresso primacial a imagem, e a parte verbal ou sonora no deve ser preponderante. Poder-se-ia at dizer que um cego perante uma obra dramtica, um surdo perante um filme, se perderem, ambos, uma parte importante da obra apresentada, no lhes perdem o essencial.

    Ren Clair

    Nesse ponto nos compete, como fortalecimento da hiptese acima apresentada, olharmos para o filme de 1981, dirigido por Leon Hirszman, adaptado pelo prprio Guarnieri e roteirizado pelos dois. No vem ao caso proceder a uma anlise do filme nos detalhes, como foi feito com a pea, uma vez

    4 admirvel, com efeito, a iseno com que a pea, jogando pai contra filho, equilibra os dois pratos da balana. Apenas no final intervm o autor, fazendo a noiva abandonar o operrio que, traindo a greve, trara os seus amigos e companheiros. Algumas espectadoras protestaram contra semelhante desfecho em nome da psicologia feminina. Mas no se trata, aqui, de psicologia e sim de moral: o autor necessitava externar de algum jeito o seu pensamento, dizer afinal de que lado estava, dei-xando a neutralidade do puro naturalismo para entrar no terreno em que desejava colocar-se, o da pea de ideias e mesmo de ideias polticas. um direito seu, que s deixaramos de lhe reconhecer se o texto escorregasse para a propaganda, coisa que ele tem sempre a dignidade artstica de evitar (PRADO, 1964, p. 134).

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    que o texto o nosso foco, e sim perceber como, na transposio de uma linguagem para outra, e nas opes da adaptao, os autores procuram corrigir luz das mudanas histricas os equvocos formais da pea5.

    O primeiro ponto em defesa do ncleo pico que salta aos olhos logo de cara diz respeito trans-posio de linguagens. Sem nos aprofundarmos nas infindveis possibilidades formais que o fazer artstico oferece aos criadores, e, portanto, sem levantarmos a discusso das possibilidades de se fazer dramaturgia que apresente em cena os mais amplos espaos pblicos6, ou de se fazer um filme em que no se saia de um cmodo no interior de uma casa7, podemos afirmar como certo que o cinema, enquanto linguagem, essencialmente pico, ao contrrio do teatro, essencialmente dramtico. Basta observarmos essa essncia presente na prpria inveno do cinema, ou seja, nos temas dos filmes dos irmos Lumire: trens chegando a estaes, praas e ruas cheias de gente, famlias tomando caf da manh nos parques ou operrios saindo de fbricas. No caso da adaptao da obra teatral para a cinematogrfica, isso fica explcito: enquanto a pea se restringe espacialmente ao interior do barraco de Otvio e sua famlia, permanecendo todo o espao externo preso aos dilogos dos personagens, o filme ganha o espao pblico, o bar, a praa, as ruas e a fbrica.

    Mas esse ponto natural, intrnseco linguagem cinematogrfica, no suficiente para afirmar que no filme os autores atualizam suas convices em favor do ncleo pico, ou seja, em prol da viso

    5 Os termos entre parnteses aqui escolhidos (corrigir e equvocos) dizem respeito s intenes dos autores quanto adap-tao do texto teatral para o cinema em 1981, no so de forma nenhuma um critrio de julgamento da qualidade literria ou cnica da pea de 1958, apenas seguem a lgica da hiptese apresentada nesse trabalho de que o equilbrio quanto tese central do texto de 1958 se apresenta numa certa disjuno entre os dois ncleos apresentados, o dramtico (na forma) e o pico (no contedo). Essa hiptese no nova, e as opes apresentadas pelo prprio autor na adaptao para o cinema anos depois denotam a conscincia deste em relao a ela. Eles no usam black-tie pode ser resumida de dois pontos de vistas opostos, conflitantes e igualmente defensveis. Uma espcie de antinomia esttica, se nos for permitido abusar desse concei-to, que Dcio de Almeida Prado descreveu nos devidos termos, tendo o cuidado de defender um deles, mas sem explicitar o que estava em jogo (...) trata-se de um flagrante desencontro entre forma e contedo, numa contradio propriamente dita que acaba dando bons argumentos para leitores que optem por uma ou outra (COSTA, 1996, p. 24).6 As peas histricas de Shakespeare j seriam um bom exemplo, para no chegarmos propriamente no teatro pico no scu-lo XX, em que encenaes no s trouxeram os espaos pblicos para a cena, como muitas vezes, numa atitude mais radical, levaram a cena para seu espao pblico de origem: A mais ambiciosa h de ter sido a Tomada do Palcio de Inverno, obra coletiva em todos os aspectos, encenada a 07/11/1920 por Yevreinov (uma espcie de coordenador de direo), contando com 15 mil participantes e cerca de 100 mil espectadores. Aspectos dessa experincia podem ser vistos no filme Outubro, de Eisenstein (COSTA, 1998, p. 17). E se esse exemplo for longe demais, podemos ficar nas inmeras encenaes da Paixo de Cristo na tradio da cultura popular em nosso pas.7 Tambm para no nos estendermos em exemplos, citemos o filme Cenas de um casamento, de Ingmar Bergman.

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    pblica, do coletivo, corrigem o elemento dramtico do texto teatral. Antes de nos debruarmos sobre os aspectos especficos das mudanas formais empreendidas na adaptao, gostaramos de le-vantar alguns pressupostos histricos. De uma obra outra, transcorrem quase 30 anos e um perodo crucial na histria brasileira, que a ditadura militar. Talvez a principal diferena entre o texto e a pea, nesse sentido, seja o fato de que no texto de 1958 a dicotomia entre Tio e Otvio muito clara e dividida. Sendo Otvio o velho militante empenhado e confiante na greve, possuidor de um discurso um tanto radical de um velho militante do PCB8 e com certo rano pela intelectualidade partidria, se apresenta profundamente otimista com a organizao da classe operria. Condizente com esse clima, a greve no texto teatral vencedora. No filme essa posio de Otvio se modifica; como velho militante experiente, sabe detectar o momento de desarticulao pelo qual passa a classe operria, e chega a se colocar contra a aprovao da greve por consider-la precipitada. Para equilibrar essa posio, o filme introduz um novo personagem, Santino, agitador e militante mais novo e radical nas aes e nas ideias, que incita quase de forma irracional os companheiros operrios greve. No-vamente condizente com o clima, a greve no filme fracassa. No so, no caso apenas opes formais, so histricas. Em 1958, aps a morte de Vargas e em pleno governo JK, a economia encontra-se em franca ascendncia, o PC sai da clandestinidade, a classe operria encontra-se no auge de sua orga-nizao sindical e a utopia revolucionria est flor da pele. J em 1981, aps mais de 15 anos de dita-dura militar, a esquerda encontra-se dispersa e desorganizada, os sindicatos foram completamente atrelados ao Estado, e a desarticulao da classe operria clara e evidente. Poderamos contestar nos perguntando sobre o grande movimento das Diretas J e da fundao do PT, mas so movimentos ligados a motivaes amplas, como o fim da ditadura, que realmente cooptam um grande nmero de pessoas (estudantes, trabalhadores, intelectuais, artistas etc.). Esse um movimento muito diverso da organizao partidria e sindical necessria para articulao de manifestaes de luta de carter mais especficos como uma greve em uma fbrica. Fora a represso, com extrema violncia, que anda em voga nesse perodo. Esse novo Otvio do filme, e seu companheiro Brulio, se apresentam como o re-

    8 Otvio militante de base formado durante a vigncia da chamada poltica obreirista do PCB. O leitor/espectador infere que no se trata de um dirigente, em vista de dois comportamentos que se explicam mutuamente: primeiro, ele trabalha na fbrica e exerce alguma liderana entre os seus companheiros; segundo, mesmo sendo capaz de perceber essa espcie de ascendncia, a sua responsabilidade sobre o movimento no tal que o obrigue a trocar a festa de noivado do filho mais velho pela assembleia que decidiria a greve. Sua adeso ao obreirismo anti-intelectualista do partido, eventualmente uma so-brevivncia anacrnica entre outras daquela organizao, se explicita numa espcie de exploso ressentida e aparentemente despropositada, num contexto em que o tema da conversa era cinema e o filho, provocador, pede a sua opinio, chamando-o de vanguarda esclarecida (COSTA, 1996, p. 25).

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    trato desse novo movimento e desse novo lder, disposto luta, mas tambm ao dilogo, lder prprio desse momento em que nasce o maior partido do Brasil em nossos dias atuais e que formou, enquanto liderana, o atual Presidente da Repblica.

    Feitas essas consideraes, vamos s principais diferenas entre o texto de 1958 e o filme de 1981. Alm do equilbrio entre os ncleos que a prpria linguagem cinematogrfica nos fornece, nos trans-portando pelos espaos pblicos, h mudanas claras no personagem Tio e em acontecimentos que o envolvem. Essas mudanas retiram dele o peso do heri dramtico, nos distanciando assim da personagem e, consequentemente, nos afastando do seu ponto de vista. Primeiro, Tio no apresenta diante de Jesuno a mesma fibra moral que mostra no texto, sendo praticamente aliciado pelo amigo. Jesuno, no filme, se apresenta como um traidor convicto da classe, inclusive entregando colegas de profisso, que so lideranas no sindicato, aos patres da fbrica. Jesuno chega a aconselhar Tio a fazer o mesmo, insinuando que ele pode entregar o amigo Brulio e o prprio pai; no fim, sugere que ele entregue Santino. No decorrer do filme, Santino demitido da fbrica e resta no ar a dvida se Tio teria entregado o operrio; com base em sua nova configurao moral como personagem, no difcil de imaginar que ele o tenha feito. O filme tambm intensifica o peso dos problemas pessoais de Tio que o faro optar pela no adeso greve. Alm do filho e do casamento, no filme, a fam-lia de Maria introduzida. O personagem do pai, desempregado, se entrega ao vcio da bebida at o momento em que arruma um emprego, e uma grande esperana e alegria enche a casa de Maria. Porm no primeiro dia de trabalho, o pai bebe antes de voltar pra casa e morto por um assaltante no caminho. Com esse acontecimento intensificada a responsabilidade de Tio, que agora dever ir morar com Maria na casa da me para cuidar, no s de Maria e do filho, mas tambm da me e do irmo da mulher.

    Porm, o fato fundamental na diferena entre o texto e o filme se apresenta no dia da greve. Pos-sibilitado por seus recursos tcnicos e de linguagem, o filme pe em cena o dia da greve, a porta da fbrica, os piquetes organizados por Otvio, Brulio, Santino e companheiros e a forte represso que esses sofrem. Tambm, diferentemente do texto, Maria, contra a vontade de Tio, vai para a porta da fbrica em apoio aos companheiros. O momento em que Tio fura a greve entrando na fbrica posto em cena, e este coincide com o momento da priso de Otvio, e isso fundamental. Ao con-trrio do texto, a priso de Otvio presenciada por Tio, que simplesmente vira as costas e entra na fbrica para trabalhar. Tambm Maria apanha na porta da fbrica e quase perde o filho. Este conjunto de acontecimentos termina por desequilibrar a balana. Se na pea a rigidez de Otvio com o filho por ser uma rigidez do campo privado (de pai para filho) mas que dizia respeito ao campo pblico (das convices polticas, pois eram apenas essas que Tio havia ferido no texto) enfraquecia a

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    posio deste e equilibrava a balana. No filme, Otvio tem sua poro de pai, sua dimenso privada, justificada na atitude covarde do filho que se esconde dentro da fbrica enquanto o pai apanha e vai preso e a me de seu filho tambm apanha e quase perde o filho. Tio, ao contrrio do texto, no apre-senta a mesma fibra moral e fora enquanto heri dramtico. No filme, ele perde a fora argumen-tativa no momento em que, por conta de sua deciso, abandona violncia aqueles pelos quais ele deveria se sacrificar. Maria no o abandona no filme apenas pela opo de no abandonar seu lugar e sua gente, ela o abandona pela sua covardia e traio aos companheiros e a ela enquanto sua mulher e me de seu filho. Nesse quadro, tambm o personagem de Otvio ganha fora em relao ao de Tio.

    Dessa forma, podemos afirmar que, no filme, a posio favorvel viso coletiva, ao ncleo pico, clara, e isso feito pela intensificao de certos contedos dramticos em formato pico. E sem modificaes no tema e nos dilogos, percebemos como as opes formais em relao aos contedos em questo no so e no podem ser inconsequentes, pois essas opes se ligam diretamente aos ob-jetivos e materiais que se tm como autor.

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