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A NOÇÃO DE FATO PSÍQUICO ROBERT BLANCHÉ Introdução A doutrina segundo a qual existe uma realidade mental oposta à realidade física por caracteres específicos, mas acessível como ela, ainda que de outra maneira, à observação, submetida como ela ao determinismo da natureza e entrando com ela na composição do universo, esteve ligada estreitamente à concepção de uma Psicologia científica, tal como ela se constituiu, ao longo do século XIX, como ciência dos fatos mentais e de suas leis. Sabe-se das dificuldades que fez nascer esta doutrina, notadamente quanto ao tema das relações entre os fenômenos físicos e os fenômenos psíquicos. Após ter tentado resolvê-las por toda uma floração de hipóteses, os psicólogos acabaram por renunciar a ocupar-se deste problema, remetendo-o aos filósofos. Mas os embaraços que criava a idéia de uma realidade mental justaposta à realidade física convidavam naturalmente a repor em questão esta idéia mesma. Como contestar, no entanto, a existência dos fatos mentais? Fazê-lo, seria não somente expor-se à censura de cultivar o paradoxo, mas também cobrir-se de ridículo, negando a possibilidade de uma Psicologia empírica justamente no momento em que esta se achava em pleno desenvolvimento. Ora, desde há quase um século a situação modificou-se. As dificuldades de que falamos subsistem, sem ter recebido solução. Em compensação, a Psicologia passa por uma crise na qual a concepção clássica de uma ciência dos fatos mentais pouco a pouco se apaga. Seria difícil encontrar hoje psicólogos que aceitassem sem reserva tal definição: eles a julgariam ou estreita demais ou mesmo inteiramente falsa. O laço que, de início, tinha unido, de modo aparentemente indissolúvel, a Psicologia científica e o realismo psicológico começa a se desatar. Por isso mesmo, o valor do realismo psicológico cessa de impor-se aos espíritos com a força de uma evidência, e sua negação, se bem que transtorne ainda nossos hábitos de pensamento, não parecerá mais tão paradoxal. O momento parece então apropriado para um minucioso exame deste postulado da Psicologia clássica. Que a Psicologia contemporânea tenda a renunciar a este postulado não basta para tornar tal exame precocemente caduco. A dissociação do laço que unia realismo psicológico e Psicologia científica já começou, mas está ainda longe de ter terminado. Seria contribuir para sua plena realização tentar pôr a nu as obscuridades, as confusões de idéias e os equívocos gerados pela noção de uma realidade mental suscetível de fornecer alimento a uma “Física” do espírito. Para justificar a oportunidade de nosso trabalho, gostaríamos de mostrar, por alguns exemplos, como o realismo psicológico, ainda que não mais exibido tão

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A NOÇÃO DE FATO PSÍQUICO

ROBERT BLANCHÉ

Introdução

A doutrina segundo a qual existe uma realidade mental oposta à realidade física

por caracteres específicos, mas acessível como ela, ainda que de outra maneira, à

observação, submetida como ela ao determinismo da natureza e entrando com ela na

composição do universo, esteve ligada estreitamente à concepção de uma Psicologia

científica, tal como ela se constituiu, ao longo do século XIX, como ciência dos fatos

mentais e de suas leis. Sabe-se das dificuldades que fez nascer esta doutrina,

notadamente quanto ao tema das relações entre os fenômenos físicos e os fenômenos

psíquicos. Após ter tentado resolvê-las por toda uma floração de hipóteses, os

psicólogos acabaram por renunciar a ocupar-se deste problema, remetendo-o aos

filósofos. Mas os embaraços que criava a idéia de uma realidade mental justaposta à

realidade física convidavam naturalmente a repor em questão esta idéia mesma. Como

contestar, no entanto, a existência dos fatos mentais? Fazê-lo, seria não somente

expor-se à censura de cultivar o paradoxo, mas também cobrir-se de ridículo, negando

a possibilidade de uma Psicologia empírica justamente no momento em que esta se

achava em pleno desenvolvimento.

Ora, desde há quase um século a situação modificou-se. As dificuldades de que

falamos subsistem, sem ter recebido solução. Em compensação, a Psicologia passa por

uma crise na qual a concepção clássica de uma ciência dos fatos mentais pouco a

pouco se apaga. Seria difícil encontrar hoje psicólogos que aceitassem sem reserva tal

definição: eles a julgariam ou estreita demais ou mesmo inteiramente falsa. O laço que,

de início, tinha unido, de modo aparentemente indissolúvel, a Psicologia científica e o

realismo psicológico começa a se desatar. Por isso mesmo, o valor do realismo

psicológico cessa de impor-se aos espíritos com a força de uma evidência, e sua

negação, se bem que transtorne ainda nossos hábitos de pensamento, não parecerá

mais tão paradoxal. O momento parece então apropriado para um minucioso exame

deste postulado da Psicologia clássica.

Que a Psicologia contemporânea tenda a renunciar a este postulado não basta

para tornar tal exame precocemente caduco. A dissociação do laço que unia realismo

psicológico e Psicologia científica já começou, mas está ainda longe de ter terminado.

Seria contribuir para sua plena realização tentar pôr a nu as obscuridades, as confusões

de idéias e os equívocos gerados pela noção de uma realidade mental suscetível de

fornecer alimento a uma “Física” do espírito.

Para justificar a oportunidade de nosso trabalho, gostaríamos de mostrar, por

alguns exemplos, como o realismo psicológico, ainda que não mais exibido tão

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A Noção de Fato Psíquico

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ingenuamente quanto outrora, permanece vivo na Psicologia contemporânea: um curso

de Psicologia recentemente publicado continua a apresentar a distinção tradicional

entre os fatos psíquicos e os fatos físicos, a delimitação da Psicologia como ciência

dos fatos mentais ou dos fatos de experiência interna, a simetria desta experiência

interna com a observação sensível, em suma, a idéia de que o universo se compõe de

duas espécies de realidades (ou pelo menos de uma realidade se manifestando sob dois

aspectos), das quais uma é objeto da Física, a outra da Psicologia; abrindo o VIII

Congresso Internacional de Psicologia, Heymans, após ter lembrado as tendências

recentes dos psicólogos a abandonar a idéia de leis mentais e a constituir uma

Psicologia na qual o mental não tivesse mais lugar, vê nisso um acesso passageiro de

desencorajamento, convida a retomar a “via régia da Psicologia”, a encarar seu campo

de trabalho “sob o ângulo da hipótese do paralelismo universal”, e a buscar os “fatos

mentais capazes de entrar em leis mentais”; um psicólogo importante como Claparède

rejeita, como desprovidas de valor para o psicólogo, certas definições mais novas,

voltando à definição tradicional do psíquico como inextenso, não localizável no

espaço, irredutível ao movimento, interno, subjetivo e afetado de egoidade, por

oposição à espacialidade, à exterioridade, à objetividade, à existência independente de

nós dos objetos físicos, que podem sempre ser, no fim das contas, reduzidos a

movimentos materiais; será preciso lembrar o quanto as concepções de Freud, que tão

poderosamente contribuíram para renovar a Psicologia, permanecem impregnadas de

realismo?

Deixando de lado, agora, os autores que continuam a definir a Psicologia, por

oposição à Física, como a ciência dos fatos mentais, voltemo-nos para aqueles que a

concebem como a ciência do comportamento dos organismos. Há várias maneiras de

entendê-la, mas a idéia que esta definição quer sugerir é sempre a de uma ciência que,

em lugar de opor-se à Física como a ciência dos fenômenos internos e espirituais à

ciência dos fenômenos externos e materiais, situa-se, ao contrário, para além da

Biologia, no prolongamento da Física, incidindo como ela, e como todas as ciências,

sobre fenômenos acessíveis à experiência coletiva. Uma tal Psicologia repudiou o

realismo psicológico? Há, sem dúvida, behavioristas intransigentes. Mas, justamente, a

maior parte dos psicólogos protesta contra o behaviorismo radical, acusando-o de

negar paradoxalmente a existência da mente. Fora raras exceções, a Psicologia dita

objetiva admite, então, ela também, que a realidade física se duplica de uma realidade

mental cujos traços característicos permanecem sendo a interioridade e a

subjetividade. É, com efeito, porque esta realidade mental não cai sob a experiência

sensível e objetiva, é porque ela não pode ser inserida na rede espacial que se

preconiza, para atingi-la, um método indireto. O método mudou, o alvo derradeiro

permaneceu o mesmo. Apesar de apresentar-se como uma simples extensão da

Biologia, a Psicologia do comportamento mantém a pretensão de nada deixar escapar

do objeto da Psicologia clássica, estendendo seu domínio até as atividades intelectuais.

Através do comportamento, é, então, a atividade mental que ela, no fim das contas, se

propõe essencialmente estudar, e da maneira a mais realista. Para convencermo-nos

disto, basta ler o trabalho no qual Piéron, representante qualificado em França da

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A Noção de Fato Psíquico

Robert Blanché 3

Psicologia objetiva, expôs as grandes linhas desta Psicologia. Aí veremos que a noção

tradicional de “fatos mentais” concebidos como “internos” permanece tão vivaz que o

autor não estaria muito longe de pô-los no mesmo plano dos fenômenos fisiológicos

que se ocultariam no “interior” do organismo. Aí veremos, ainda, como a concepção

de uma Psicologia do comportamento, muita clara quando diz respeito a reações

elementares, com as quais não se deixa o determinismo biológico, se obscurece

quando se chega às “reações intelectuais”: ela se dobra então no sentido da Psicologia

clássica e restaura a idéia de um “determinismo mental”. Mesmo na Psicologia do

comportamento, o realismo psicológico subsiste, então, pelo menos em estado latente.

Nada talvez mostre melhor a sobrevivência deste realismo na Psicologia

contemporânea do que a natureza das reservas que são constantemente formuladas

pela maioria dos psicólogos à forma intransigente da Psicologia do comportamento.

Faz-se notar que o estudo do comportamento puro e simples, abstração feita de sua

significação, nada teria em comum com o que se costuma entender pela palavra

Psicologia. Mas acrescenta-se que só o recurso à introspecção permite dar um sentido

a um comportamento. O sentido do comportamento é, então, tomado por uma

realidade mental escondida atrás de sua realidade material e revelada, diretamente,

apenas ao sujeito. A dualidade da realidade e do pensamento se transforma assim no

dualismo ôntico do físico e do mental, característico do realismo psicológico

contemporâneo. Deste gênero de argumento, e desta transposição, qualquer um achará,

facilmente, exemplos. Tomaremos um, de um curto artigo no qual Charles Blondel

reivindica a “vida interior” como o objeto autêntico de toda Psicologia, mesmo a do

comportamento: “As Psicologias do comportamento, escreve ele, não fazem, talvez,

abstração da mente e de seus estados, tão completamente como desejariam. Se, entre

os comportamentos, elas contam o verbal, é óbvio que elas entendem por isso um

comportamento verbal inteligível. Mas as palavras que empregamos não têm sentido

para nós nem para nossos ouvintes se não são os signos de todo um jogo de

experiências que forçoso é, de qualquer modo, qualificar de mentais, e, para

compreender o que nos dizem, e mesmo o que dizemos, é preciso que façamos, mais

ou menos deliberada e conscientemente, uma volta a nós mesmos que se assemelha

muito à introspecção”. E ele conclui que toda obra psicológica deve, no fim das

contas, chegar a uma “referência necessária à experiência interior”, dando como

exemplo particularmente característico os estudos de Lévy-Brühl, que, analisando o

pensamento dos primitivos, nos informaria assim de sua “vida interior”. Ou nos

enganamos muito ou esta assimilação do pensamento à vida interior, da intelecção à

introspecção não é senão uma forma um pouco mais sutil da confusão, favorecida aliás

pelo duplo sentido da palavra reflexão, que fazem os estudantes de Psicologia quando

tomam por um caso de introspecção a meditação do filósofo ou do matemático,

quando tomam pela contemplação de uma realidade mental a própria atividade do

espírito. Até aqui deixamos de lado o caso daqueles dentre os behavioristas que são

bastante intrépidos para ir até a negação da existência dos fatos mentais. Pelo menos

repudiaram eles, assim procedendo, o realismo psicológico? Após o que acabamos de

dizer compreender-se-á como, sem buscar o paradoxo, podemos sustentar que, pelo

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A Noção de Fato Psíquico

Robert Blanché 4

contrário, esta negação mesma, no sentido em que eles a entendem, é dele uma nova

manifestação. Para os behavioristas, tanto quanto para seus adversários mentalistas, a

negação ou afirmação da realidade psíquica não se distingue da negação ou afirmação

da espiritualidade do pensamento. Toda a controvérsia limitando-se, então, a se

perguntar se a atividade do pensamento se reduziria a uma atividade corporal ou se

consistiria numa série de fenômenos especificamente mentais, irredutíveis a fenômenos

físicos. Mas, que as operações do pensamento sejam assimiláveis a fenômenos da

natureza é algo sobre o que não paira a menor dúvida, o ponto litigioso sendo apenas o

de saber se esses fenômenos são físicos ou psíquicos. Aí estaria, entretanto, toda a

questão, a assimilação dos pensamentos a fenômenos naturais sendo justamente a

essência do realismo psicológico. Digamo-lo logo, a oposição entre os behavioristas e

os mentalistas é uma falsa alternativa na qual pretendemos não nos deixar encerrar,

rejeitando tanto a negação do pensamento quanto a afirmação de uma realidade

mental. Mas a única maneira de escapar disto é precisamente abandonar o postulado

realista. Ponham que o pensamento é uma realidade, a questão não será mais do que

decidir se esta realidade é física, e apreensível pelos sentidos numa experiência

objetiva, ou psíquica, e apreensível por introspecção numa experiência estritamente

subjetiva. Desde então, vocês não poderão evitar as dificuldades da última tese senão

caindo na absurdidade da primeira. Rejeitem, ao contrário, o postulado realista,

dissociem as idéias de pensamento e de realidade e vocês poderão dar razão ao mesmo

tempo ao behaviorista, quando ele nega a existência de fenômenos mentais

específicos, e a seus adversários mentalistas, quando eles sustentam que a palavra

pensamento designa outra coisa que não simples fenômenos físicos. Nós nos

explicaremos sobre esse ponto no curso de nosso ensaio. Gostaríamos apenas de

assinalar, aqui, como a controvérsia que se instituiu a respeito do behaviorismo, não

tendo sentido a não ser pela adoção do postulado realista, testemunha da igual

persistência deste postulado nos dois campos. Tentar, como vamos fazê-lo, a crítica

deste postulado, tentar mostrar que a possibilidade de pesquisas psicológicas não está

ligada à existência de fatos mentais específicos, não será, então, em vista do estado

atual da Psicologia, um empreendimento supérfluo1.

1 É necessário precisar que se acontece, por abreviação, chamarmos simplesmente psicólogos os que

admitem o realismo psicológico, nosso estudo não é de maneira alguma dirigido contra a Psicologia,

mas apenas contra certa tese de que a Psicologia clássica permaneceu solidária sem ver seu caráter

metafísico, e da qual a Psicologia atual teria, acreditamos nós, todo interesse em se libertar. Não se

deve esquecer que a afirmação de uma Psicologia científica limitada ao estudo dos fenômenos não

era em sua origem senão o reverso da negação de uma Psicologia metafísica que pretendia provar

pela observação interior a substancialidade da alma. Esta negação conserva hoje ainda toda sua

força. Mas a alternativa do substancialismo e do fenomenismo que os psicólogos clássicos se

compraziam em estabelecer é tão falsa quanto o é, no interior do fenomenismo, a que faz nascer a

discussão do behaviorismo, e precisamente pela mesma razão. Que se trate, com efeito, de realidade

substancial ou de realidade fenomenal, é sempre às voltas com uma concepção realista do espírito

que estamos, e é essa concepção, ela própria, que, uma vez que impõe a escolha entre teses opostas

e igualmente embaraçantes, deveria, de saída, ser posta em discussão. À alternativa do

substancialismo e do fenomenismo, que permanece no plano do realismo, é necessário substituir,

ainda uma vez, a do realismo e de seu contrário.

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A Noção de Fato Psíquico

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Repudiar o realismo é perfilar-se ao lado daqueles a que a tradição chama

idealistas. Mas, é preciso considerar que entre as doutrinas geralmente recobertas pelo

nome idealismo há uma que não podemos qualificar de outro modo que como realista.

Isto é, não podemos dar nenhum abrigo à noção de idealismo ontológico. Situando

nossa tese na corrente idealista, referimo-nos apenas a um idealismo epistemológico.

Mas, importa, no limiar deste exame, assinalar um singular engano que mais de uma

vez se cometeu a respeito deste último. Se o fazemos, não é apenas para evitar nele

recair, é também porque ele nos dá um novo testemunho da facilidade com a qual o

espírito deixa-se ir em direção ao realismo. Trata-se da curiosa confusão pela qual o

idealismo epistemológico, que implica a rejeição do realismo psicológico, é

identificado justamente a ele: como se a essência do idealismo consistisse em reduzir

toda existência à existência mental. Certamente, tal era bem a significação do

idealismo ontológico, pois as idéias às quais reduz ele as coisas são por sua vez

concebidas como coisas mentais, não como atos de intelecção. Mas, criticar o

idealismo epistemológico, tomando-o pelo idealismo ontológico, como o faz por

exemplo Russel, é enganar-se completamente de endereço. Suas objeções incidindo,

na verdade, contra um realismo psicológico de tendências subjetivistas, nada de

espantoso que esta transposição se revele inconsistente, e que o idealismo

epistemológico possa, aqui, concordar com seu adversário na repulsa a tal concepção.

Se nos reportarmos, por exemplo, às críticas que Russel formula em relação ao

idealismo, veremos que este poderia subscrever todas as proposições com as quais

Russel imagina fulminá-lo. “O que estabelece a Lógica, declara ele, ainda que se tenha

o costume de chamá-lo leis do pensamento, é tão objetivo, incidindo tão pouco sobre o

mental quanto a lei da gravitação”. “Seja a proposição 2+2=4. Para os idealistas, esta

proposição exprime uma lei do pensamento: quer dizer, que se será sempre forçado a

crer que há 4 coisas quando há 2 e 2, ainda que de fato possa ocorrer que haja 5 ou 3,

ou antes, que, à parte o espírito, as coisas não tenham número. Ora, é evidente que o

conteúdo do que se crê quando se crê que 2+2=4, não é que o espírito possui certa

propriedade; então, se 2+2=4 fosse uma lei do pensamento, seria uma lei que nos

forçaria a crer no que pode bem ser falso”. O idealista epistemológico não diria outra

coisa, pois sua tese se situa exatamente nas antípodas deste realismo psicológico, com

a única diferença de que ele não reconheceria como suas as teses que lhe são

atribuídas. E Russel conclui: “A Matemática é composta de proposições que não

contêm nenhum constituinte real, seja mental, como querem os idealistas, seja físico,

como dizem os empiristas. Há dois mundos, o da existência e o do pensamento. O erro

capital do idealismo consiste em querer achar para o mundo do pensamento um lugar

no mundo da existência, a saber, no espírito”. Situar a verdade no mundo da

existência, fazer dela uma realidade mental, é uma tese que nos parece merecer

propriamente o nome de realismo psicológico, é uma tese que o idealismo

epistemológico repele. A confusão destas duas teses opostas, a facilidade com a qual

se interpreta a segunda em função da primeira, revela a força do que não se pode

chamar de outro modo senão de preconceito realista. Empregando esta expressão,

queremos apenas afastar previamente, como nula e inaceitável, toda crítica que não

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A Noção de Fato Psíquico

Robert Blanché 6

ultrapasse o ponto de vista deste realismo espontâneo. Que as críticas desse gênero

não sejam raras, eis o que mostraria ainda a oportunidade de uma tentativa de

denunciar as dificuldades do realismo quando ele se aplica a uma concepção do

espírito e de suas relações com a matéria. Seria inútil multiplicar exemplos da

confusão que acabamos de assinalar. Permitir-nos-ão, entretanto, dar um outro, e

analisá-lo com algum detalhe, pois, desta vez, trata-se de um esforço positivo para

resolver o problema que está no centro de nosso próprio trabalho, o das relações entre

o físico e o psíquico. Em seu livro sobre A Alma e o Corpo, Binet ora fala a linguagem

do dualismo epistemológico, pelo qual se chega ao idealismo, ora a do dualismo

psicofísico, com o qual instalamo-nos em pleno realismo, e deste casamento

inconsiderado nasceu uma teoria verdadeiramente monstruosa.

A idéia central da obra, que subscreveríamos de bom grado, é bem a de criticar

o emprego do dualismo ôntico físico/psíquico na definição do que sejam matéria e

espírito. E substituí-lo pela dualidade epistemológica objeto conhecido/ato de

conhecer. “Nós não conhecemos outra coisa que não sensações. É então impossível

fazer uma distinção entre a natureza física e o objeto de conhecimento contido em toda

sensação. A linha fronteira do físico e do psíquico não pode passar por aí, uma vez que

ela separaria fatos idênticos”. Erram, então, aqueles que põem um abismo entre as

modificações cerebrais e as sensações, uma vez que a sensação, enquanto objeto de

conhecimento, se confunde com as propriedades da natureza física. É no interior da

sensação que deve operar-se o corte, e ele se estabelecerá entre o objeto de

conhecimento e o ato de conhecer, entre o conteúdo da sensação e a consciência desse

conteúdo, e é esta a distinção a mais geral que se possa traçar no domínio de nossos

conhecimentos. Binet faz notar que esta distinção não deve ser entendida no sentido

ôntico: “Nós dizemos que a matéria é algo que é sentido, mas não dizemos,

simetricamente, que o espírito é algo que sente. Empregamos uma fórmula bem mais

prudente, e bem mais justa, pondo o espírito no fato de sentir. Repitamos mais uma

vez: o espírito é o ato de saber, não é um sujeito que sabe.” Até aqui, a tese parece

nitidamente orientada no sentido do dualismo epistemológico. Mas, em que consiste

este ato de conhecer pelo qual Binet define o espírito? Apercebemo-nos, rapidamente,

ao lê-lo, que este ato não é efetivamente ativo, sendo tão pouco ativo quanto um

movimento material: como o seria para quem reduz a idéia à imagem, explica a

universalidade e a necessidade de certos juízos por associações não desmentidas, e

assimila o raciocínio a um mecanismo mental? A oposição do conteúdo e do ato não

pode ter sentido num pensamento empirista, que, por essência, não pode reconhecer

senão o dado, o que tem por resultado reduzir o próprio ato a certo conteúdo. Assim,

Binet não teme chamar de fenômenos mentais os atos de conhecimento, estabelecendo

uma oposição entre fenômenos tais como pedras, grãos de areia, pedaços de ferro,

cérebros e outros fenômenos denominados “estados mentais”. O ato de conhecer não é

senão um estado mental; a oposição do conteúdo sensível e do ato de pensamento não

significa para Binet nada mais que a oposição tradicional entre os fatos físicos e os

fatos mentais. Bem entendido, a transposição realista do ato de conhecimento acarreta,

por simetria, uma transposição análoga para o objeto conhecido, como a frase que se

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A Noção de Fato Psíquico

Robert Blanché 7

acaba de ler já bem claramente o indica. E, falando de sua concepção realista da

matéria, referimo-nos simplesmente à maneira pela qual ele concebe a realidade física

fenomenal. Sua tese central a tinha identificado à sensação, ou, mais precisamente, ao

conteúdo da sensação, oposto ao ato de conhecimento; mas, como este ato é agora

assimilado ao tradicional “estado mental”, nada mais se pode fazer do conteúdo do

que identificá-lo à realidade física, no sentido ordinário do termo. Binet não deixa de

fazê-lo; mais exatamente, ocorre-lhe identificá-lo a esta parte do mundo físico que é

um movimento cerebral: “A sensação é o fenômeno que se produz e se experimenta

quando um excitante age sobre um dos nossos órgãos dos sentidos. Este fenômeno

compõe-se, então, de duas partes: uma ação exercida de fora por um corpo qualquer

sobre a nossa substância nervosa, e em seguida o fato de sentir esta ação”. Parece-nos

que tal maneira de opor o físico ao mental não se distingue da que Binet buscava evitar

escrevendo o que lemos já acima: “Nós não conhecemos outra coisa que não

sensações. É então impossível fazer uma distinção entre a natureza física e o objeto de

conhecimento contido em toda sensação. A linha fronteira do físico e do psíquico não

pode passar por aí, uma vez que ela separaria fatos idênticos”. A impressão será

confirmada se examinamos a maneira pela qual Binet põe o problema da união do

espírito e do corpo. Para ele, as principais dificuldades deste problema “provêm destes

dois fatos, que parecem incompatíveis: de uma parte nosso pensamento é

condicionado por certo movimento intra-cerebral de moléculas e átomos e, de outra

parte, este mesmo pensamento não tem consciência deste movimento molecular. Como

é possível que nossa consciência ignore este evento fisiológico do qual depende e,

como se jorrasse de nosso sistema nervoso, se volte para um objeto longínquo?”. Vê-

se que a tese de Binet é desprovida de toda significação, uma vez que ela consagra,

finalmente, a distinção tradicional a que ela parecia se opor, levando a enunciar o

problema das relações espírito/corpo nos mesmos termos em que o formulava o

realismo dualista inerente à Psicologia clássica. Que um autor tenha podido recair no

dualismo psicofísico, após ter definido o espírito pela atividade de conhecimento e tê-

lo assim distinguido ao mesmo tempo de um sujeito substancial e de todo conteúdo

fenomenal, eis o que seria, sem dúvida, inexplicável, se o realismo não tivesse se

imposto a ele com toda a força de um preconceito. É porque ele nos dava um exemplo

particularmente impressionante deste preconceito, e porque o dava aplicando-se,

justamente, ao problema que nos propomos tratar, que julgamos oportuno mencionar

aqui seu estudo.

Em resumo, se convém, como o dizíamos, liberar a Psicologia da tese do

realismo psicológico, isto é, da afirmação de que existe uma realidade mental

específica, esta primeira dissociação nos parece solidária de uma segunda, que

deveria, desta vez, operar-se na noção confusa de realidade mental, para separar as

duas idéias de espírito e de realidade. Assim se explicaria o caráter ilusório de uma

Psicologia concebida como “Física” do espírito e a divisão que tende espontaneamente

a estabelecer-se entre duas espécies de Psicologia, uma das quais é uma ciência da

natureza, mas nada tem a ver com o mental, e a outra um estudo do espírito, mas

profundamente diferente das ciências naturais. Ora, esta dissociação entre o espírito e

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A Noção de Fato Psíquico

Robert Blanché 8

a realidade, nós a encontramos feita nesta forma de idealismo que é o idealismo

epistemológico. Explicando a objetividade do real pelas leis que o pensamento impõe

aos fenômenos, o idealismo epistemológico, por isso mesmo, distingue a atividade

intelectual ao mesmo tempo do dado sensível sobre o qual ela se exerce e do universo

objetivo que ela se esforça por construir. Ele evita, assim, confundir a ordem do

pensamento e a ordem da existência, e reduzir o espírito a uma espécie de realidade,

como o faz este realismo da idéia que se chama idealismo ontológico. Nós não

tivemos, por conseguinte, senão que nos deixar guiar por esta corrente de pensamento,

o idealismo epistemológico, quer dizer que nós não pretendemos originalidade para as

idéias diretoras do nosso trabalho. Restava-nos, somente, uma dupla tarefa a realizar.

Era preciso primeiro aplicar o princípio idealista ao problema que nós nos púnhamos.

Para isso, não bastava extrair deste princípio a condenação do realismo psicológico em

geral, nem mostrar que significação ele comandava atribuir à oposição do físico e do

mental. É este o objeto de nosso primeiro capítulo, mas ele não é senão preliminar. Era

necessário ainda, e sobretudo, seguir as consequências que acarretava o princípio em

cada uma das grandes classes de “fatos psíquicos” que a Psicologia clássica tinha

distinguido, para denunciar, em cada uma delas, a ilusão realista: donde nossos

capítulos sobre a imagem, o pensamento, a vontade e o sentimento. Entretanto, à

medida em que quitávamos esta primeira tarefa, a necessidade de uma segunda nos

aparecia com insistência. Em cada um de nossos capítulos, parecia-nos, com efeito,

que a aplicação do princípio idealista, ao mesmo tempo que permitia superar as

dificuldades que acumula o realismo psicológico, revelava uma lacuna no idealismo

epistemológico tradicional, desde que, deixando o problema do físico e do mental em

geral, girávamos em direção ao problema das relações entre espírito e organismo. Não

é seguro que esta questão não passe de um caso particular da precedente, como o

idealismo parece geralmente supor. Fomos assim levados a propor, sem nos afastar da

linha geral do idealismo epistemológico, uma concepção nova da natureza do corpo

próprio.

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A Noção de Fato Psíquico

Robert Blanché 9

CAPÍTULO I

Físico e Mental

Quando se põe o problema da distinção entre fatos físicos e fatos psíquicos,

considera-se que a dificuldade incide unicamente sobre a diferença que separa o

psíquico do físico, como se nenhuma incerteza reinasse quanto ao sentido da palavra

fato. Ora, acontece que esse termo é equívoco. É preciso, então, começar por dissipar

o equívoco que talvez seja a causa principal da dificuldade, pois, seria bem possível

que a distinção entre o psíquico e o físico coincidisse, justamente, por uma de suas

significações, com a distinção entre os dois sentidos da palavra fato. Que é, então, um

fato?

Um fato é, primeiramente, o que é suscetível de ser conhecido direta e

incontestavelmente, sem a intervenção de nenhuma operação intelectual que lhe sirva

de prova; é o que é tal que basta que seja mostrado para que não se possa de nenhum

modo duvidar de sua realidade. É um fato quer dizer: é assim e não de outro modo,

sem que eu compreenda por quê; impõe-se a mim, limito-me a constatá-lo sem poder

explicá-lo. O fato opõe-se, assim, à hipótese ou à teoria como o dado ao realizado.

Este sentido da palavra é usual. Mas é preciso notar que o domínio do fato, se se toma

a palavra estritamente nesta acepção, reduz-se a muito pouca coisa. Não é um fato que

a terra gire, pois a afirmação do movimento da terra é uma hipótese, repousando ela

própria sobre um grande número de outras hipóteses. Não é um fato que Napoleão

tenha sido imperador pois o passado escapa a toda observação. Não é um fato que

vivamos sob o regime republicano, pois um regime não é algo que possa ser visto,

tocado, nem constatado imediatamente de nenhuma maneira. Não é um fato que Paris

seja uma cidade de França, pois jamais vemos Paris, nem a França, mas apenas casas e

campos. Pode-se mesmo dizer que vemos casas e campos ou que a existência de um

objeto qualquer seja jamais para nós um puro fato? Afirmar a presença de um objeto é

sempre ultrapassar o dado atual. Assim, se quiséssemos achar o fato bruto, puro, livre

de toda interpretação, seria preciso buscá-lo aquém da percepção, pela qual afirmamos

a existência de objetos, e tender para a pura sensação, pela qual seríamos

simplesmente afetados de certa maneira. O fato bruto é o fenômeno, a imagem tal qual

se apresentaria a uma consciência de algum modo estúpida.

Esta maneira de conceber o fato não esgota, no entanto, a significação do termo.

Frequentemente, em lugar de chamarmos fato à imagem, distinguimos ao contrário um

do outro: opomos à simples imagem (subjetiva), o fato (objetivo); à aparência ilusória

(ou, pelo menos, incerta, e verdadeira somente a título de aparência), o fenômeno

físico; à presença em mim de uma sensação que me é própria, a existência de um o

objeto exterior, independente de minha sensação. A terra é aparentemente imóvel, o

bastão mergulhado na água está, aparentemente, quebrado: de fato, a terra gira, o

bastão não está quebrado. Reencontra-se assim a distinção entre o fato psíquico, que

não é um fato senão para aquele que se acha por ele afetado, e o fato físico, cuja

existência e cuja natureza independem da maneira pela qual aparece às consciências

individuais e ao qual, por esta razão, reserva-se propriamente o nome de fato. Ei-nos,

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A Noção de Fato Psíquico

Robert Blanché 10

então, em presença de um outro sentido da palavra fato, repousando, ele também,

sobre o uso, e que se distingue do primeiro ou mesmo a ele se opõe. Mas, que

significa, exatamente, esta oposição entre o fato e a imagem? Não se trata, para dizer a

verdade, de uma separação entre dois tipos de fatos, dos quais um seria totalmente

estranho ao outro. A retidão do bastão não se opõe, de modo nenhum, à minha

sensação visual, e menos ainda a toda sensação possível. Perceber não quebrado o

bastão, enquanto que é quebrada a linha que dá sua imagem visual, é afirmar que o

bastão apareceria como não quebrado ao tato, e mesmo à visão se o retirássemos da

água. Não é, então, negar a imagem atual; é, ao contrário, afirmar que uma

necessidade a liga a outras imagens determinadas. A diferença que separa a imagem

subjetiva do fato objetivo não é outra senão a diferença que separa a imagem

considerada isoladamente da imagem integrada num sistema no qual cada uma está

ligada necessariamente a todas as outras. É, então, a concepção das leis da natureza,

leis segundo as quais a presença de cada imagem é determinável em função de outras

imagens, que nos permite passar da subjetividade da imagem à objetividade do fato.

Uma consciência reduzida, como o quer o sensualismo, a contemplar passivamente

uma sucessão de imagens, seria absolutamente incapaz de distinguir o fato da

aparência: para ela, não haveria senão aparências, mais ou menos vivas somente. O

laço que une as aparências para fazê-las entrar no sistema do conhecimento não pode

ser dado, mas apenas concebido. Só o pensamento é capaz de estabelecer relações

entre as aparências para assim constituir fatos. O fato é obra do espírito, que explica a

presença de cada imagem ligando-a a outras com a ajuda de leis convenientemente

escolhidas, e que, compreendendo-a, confere-lhe assim alguma objetividade.

Assim, quando dizemos: É um fato, referimo-nos, ora à experiência bruta (às

imagens tais como seriam dadas antes de toda tentativa de interpretação), ora à

experiência organizada (na qual o pensamento conseguiria compreender cada imagem,

determinando seu lugar no conjunto das imagens). Para dizer a verdade, a significação

habitual da palavra oscila entre essas duas significações extremas, em vez de coincidir

exatamente com uma ou com a outra, e esta indecisão favorece a confusão entre os

dois sentidos. De uma parte, não há jamais, para nós, fato bruto, não há jamais

imagem separada de toda interpretação: pois não há imagem senão para uma

consciência que é por ela afetada, e que não pode sê-lo sem saber ao mesmo tempo

que o é: em consciência há ciência. Esta pura imagem não é, então, senão um termo

ideal, que não pode ser efetivamente dado, uma vez que suporia ao mesmo tempo a

vigília e o sono da consciência. Assim é impossível falar dela propriamente, e sem se

deixar trair pela expressão. Todas as palavras de que nos servimos põem a dualidade

de uma consciência passiva e das imagens que ela acolheria, como a placa fotográfica

acolhe as impressões luminosas, enquanto que nesse estado de pura sensação a

dualidade do senciente e do sentido desaparece. Isso quer dizer que o fato bruto reduz-

se a um limite2. Mas o mesmo ocorre com o fato objetivo. Um fato qualquer só seria

2 Entendemos por imagem, ou por experiência bruta, o limite ideal para o qual tende uma análise

que parte de nosso conhecimento atual, e não um estado que precederia realmente a experiência

organizada. Falando de imagens, queremos dizer simplesmente que nosso conhecimento do real não

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A Noção de Fato Psíquico

Robert Blanché 11

plenamente objetivo se o espírito fosse capaz de ligá-lo à totalidade dos outros fatos, o

que ele só poderia fazer se possuísse o sistema acabado das leis da natureza e o

conhecimento perfeito de todas as partes do universo. Pois não basta que uma imagem

seja relacionada a algumas outras para que se tenha o direito de conferir-lhe, com

certeza, a objetividade: é preciso ainda que esse sistema limitado de imagens venha a

ser, por sua vez, inserido no sistema universal. É inútil sublinhar que o

desenvolvimento da ciência, ainda que permitindo estender sobre as imagens uma rede

de leis cada vez mais vasta e cada vez mais cerrada, recua ao mesmo tempo para um

longínquo cada vez mais inacessível o acabamento do sistema que ela trabalha para

construir. Devemos, então, rigorosamente falando, duvidar em algum grau da

objetividade de todos os fatos, na medida em que não sabemos organizá-los em um

sistema único. E assim, tal como o fato bruto, o fato objetivo não passa de um limite,

aquele para o qual tende o espírito em seu esforço para constituir a ciência da

natureza.

Isolando e apresentando em toda sua pureza cada uma das duas significações

que comporta, confundidas, a acepção usual da palavra fato, chega-se a essa

afirmação: jamais nos achamos em presença de fatos brutos ou de fatos objetivos, mas

somente diante de fatos situados numa série que, segundo o sentido em que é

percorrida, tende, seja para o fato bruto, seja para o fato objetivo. O que chamamos

um fato é sempre um tecido de afirmações. Mas, de afirmações que jamais formam um

sistema que se possa inserir num sistema total perfeitamente coerente. Nenhum fato é,

então, para falar propriamente, bruto, nem objetivo. Todo fato tomará a fisionomia de

um ou do outro, conforme for comparado a um sistema mais vasto que o compreenda

ou, ao contrário, a um sistema menos vasto nele compreendido. É por isso que nenhum

dos exemplos que se possa dar de fato bruto ou de fato objetivo será exatamente

conveniente. Mas é útil, e mesmo indispensável, se se quer tranquilizar-se quanto ao

risco de confusão, pôr em relevo e apresentar separadamente as duas significações

extremas entre as quais oscila a significação ordinária da palavra fato. Que fique

entendido, então, que, doravante, quando, em nosso texto, falarmos de fato bruto ou de

fato objetivo, estaremos designando unicamente dois limites puramente ideais

distinguidos pela análise. Limites estes que são exatamente aqueles entre os quais se

move o conhecimento. O conhecimento consiste, não em acumular o maior número

possível de imagens, menos ainda em achar por trás das imagens uma realidade mais

profunda que elas dissimulariam, mas em relacionar, umas às outras, imagens dadas

das quais se parte, mediante laços necessários denominados leis da natureza. Em

se resolve num sistema de relações puramente formais como aquelas de que se ocupam as

matemáticas e a lógica, e que o valor de verdade das proposições físicas vem de que elas incidem

sempre, no fim das contas, sobre um dado sensível, mesmo se esse dado é cada vez mais mascarado

pelas afirmações que o interpretam. Estamos então longe de sustentar que o conhecimento comece,

cronologicamente, pela sensação bruta, para elevar-se progressivamente ao pensamento. Da

sensação bruta jamais seria possível sair, do mesmo modo que partindo do começo indefinidamente

recuado do tempo jamais se chegaria ao presente, mas pode-se, idealmente, remontar

indefinidamente do presente ao passado e, do mesmo modo, cortar pouco a pouco da percepção

atual as afirmações que a envolvem.

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A Noção de Fato Psíquico

Robert Blanché 12

outros termos, a obra do pensamento, primeiro na percepção, em seguida na ciência,

consiste em fabricar uma rede de relações que responda à dupla condição de constituir

um sistema inteligível e de aplicar-se às imagens dadas, conferindo assim, por uma

mesma operação, ao conhecimento, o valor objetivo, ao real, a inteligibilidade; ou

mais exatamente, fabricando ao mesmo tempo o conhecimento, conferindo-lhe um

valor objetivo, e o real, conferindo-lhe a inteligibilidade. Estas relações não devem ser

consideradas como reais, mas somente como verdadeiras3; elas não são nem fatos

brutos, uma vez que os supõem, nem fatos objetivos, uma vez que servem para

construí-los. Elas pertencem a uma outra ordem que não a do fato ou da realidade e

que se pode chamar a ordem do pensamento ou da verdade.

Isso posto, como convém entender a oposição tradicional entre o mental e o

físico?

Desde logo, a diferença que se estabelece entre a realidade das imagens e a

realidade do mundo físico não é, de maneira nenhuma, a que separaria duas espécies

de realidade justapostas num mesmo universo, mas a que separa dois planos de

realidades, os dois planos extremos, um dos quais marca o ponto de partida e o outro o

ponto de chegada, de nosso conhecimento do real. Ou o real é para mim o dado puro e

simples, abstração feita de toda afirmação de uma relação entre esse dado e alguma

outra coisa: ― o que é real são então as imagens que constituem o resíduo concreto de

meu pensamento atual, de tal maneira reduzindo-se, desse ponto de vista, a essas

imagens que ocupam atualmente minha consciência, que, nesse plano inferior de

conhecimento, todo o real seria psíquico. Ou o real é o objetivo, é aquilo cuja

existência, podendo ser estabelecida pelo pensamento, ultrapassa os limites de minha

individualidade e pode ser legitimamente afirmado por todo ser pensante: ― o que é

real então são os objetos materiais, ou antes, uma vez que a existência de um objeto só

é certa se esse objeto é ligado por leis à totalidade dos objetos, o que é real é o

conjunto do universo. As imagens isoladas perdem, assim, sua realidade: a realidade

consistindo na infinidade das imagens ligadas num único sistema por uma rede de

relações inteligíveis. Nesse plano superior de conhecimento, a única realidade é a

realidade física. Pode-se então dizer das imagens que elas são reais, pode-se também

dizer do universo material que ele é real, pode-se falar de fatos psíquicos e de fatos

físicos, mas é claro que perderemos o rumo se, desconhecendo a dupla significação

dos termos dos quais nos servimos, pretendermos justapor, num mesmo plano de

existência, a realidade da imagem e a realidade do universo. Seria o mesmo que

classificar em duas espécies biologicamente distintas os cães e as células que

compõem o organismo do cão. A oposição da realidade da imagem à realidade do

universo material reduz-se à distinção entre os elementos concretos irredutíveis do

universo material e o conjunto desse universo ele próprio, ou seja, à distinção entre 3 As denominações são livres, e pode-se, se se quer, empregar real no sentido de verdadeiro. É bem

o que se faz, cremos nós, quando se diz que as leis naturais são reais, ou quando se diz que elas

existem: tomam-se essas palavras num sentido laudatório, para exprimir que elas não são ilusórias,

que elas têm um valor objetivo, numa palavra, que elas são verdadeiras. Mas haveria um erro

evidente em passar dessa simples denominação à afirmação de que elas possuem os caracteres do

que se entende ordinariamente por realidade.

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A Noção de Fato Psíquico

Robert Blanché 13

parte e todo. Passar da imagem isolada às imagens ligadas num sistema de objetos

físicos não é cessar de considerar uma realidade para voltar-se em direção a outra, mas

introduzir na realidade dada as relações que a transformarão numa realidade

inteligível, deixando o plano da sensação para tentar atingir o plano de um universo

transparente ao pensamento. Assim, o dualismo comumente estabelecido entre o

psíquico e o físico não deve ser tratado como um dualismo ôntico, mas como a

oposição das duas formas extremas sob as quais o pensamento pode considerar a

realidade.

Mas esta oposição entre dois planos extremos de realidade implica, por sua vez,

uma nova dualidade, a da realidade e do pensamento. O pensamento não pode, com

efeito, de nenhuma maneira, ser considerado como real. Ele não pertence à realidade

bruta: como esta, por definição, exclui todo pensamento, nenhuma magia conseguirá

achá-lo ali nem dali fazê-lo sair, as tentativas sensualistas sendo destinadas, de

antemão, ao fracasso. Ele tampouco é, como o queria o materialismo, uma parte da

realidade objetiva, que ele tem justamente por missão constituir e na qual, por

conseguinte, não pode ser incluído. Mas, se o pensamento não pertence a nenhum

plano da realidade, é ele que permite elevar-se de um plano de realidade a um plano

superior; se ele não é real, é a condição da realidade objetiva do universo. Pois esta

realidade não se distingue da realidade bruta da sensação senão pelas leis que ligam as

imagens umas às outras de maneira que cada uma delas apareça como necessária

relativamente a todas as outras e seja assim liberada da subjetividade das impressões

individuais. E, essa rede de leis pelas quais são ligadas todas as imagens, é o

pensamento que as estabelece. Somente, tais laços são laços inteligíveis, de modo

nenhum laços reais. As leis da natureza não são uma realidade que viria justapor-se à

realidade do universo, como um fio se acrescenta às pérolas para compor um colar. As

relações estabelecidas pelo pensamento, a menos que se tome por elas as fórmulas que

as exprimem, não podem ser dotadas de existência, mas somente de verdade; e como o

verdadeiro só é verdadeiro enquanto é compreendido, a inteligência dessas relações e

seu estabelecimento são uma única e mesma operação. Estabelecer relações entre as

imagens não é, então, acrescentar às coisas uma nova coisa, é tornar inteligível um

dado incoerente: o estabelecimento das relações entre as imagens fazendo com que

elas ganhem um sentido; é como se, de dois homens em presença do mesmo texto da

Ilíada, um soubesse grego e o outro não. Se, então, pode-se dizer que o pensamento

está no universo, é somente no sentido de que ele é imanente ao universo, no sentido

somente de que a existência do universo supõe como condição a verdade das relações

que permitem explicar não importa qual de seus elementos em função dos outros. O

pensamento está no universo constituído pela ciência como a intenção do pintor está

no quadro concluído. Assim, a tradicional distinção do espírito e do mundo físico se

justifica, mas de maneira diversa da justificação concebida pelo realismo psicológico.

Ela só se justifica se se renuncia a ver no espírito e na matéria duas espécies de coisas

que entram na composição de um mesmo universo, se se faz do espírito, não uma

realidade ao lado da realidade do mundo físico, mas uma condição da realidade

objetiva desse mundo.

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A Noção de Fato Psíquico

Robert Blanché 14

Chegamos assim à idéia de duas dualidades solidárias, nenhuma das quais

permite pôr como um problema de relações entre fenômenos o problema das relações

entre os dois termos que elas opõem. A primeira é a dualidade dos planos extremos

entre os quais se move nossa noção do real: é a dualidade da imagem e do universo,

que não são duas realidades numericamente distintas que entrariam como ingredientes

complementares na composição do universo, mas duas maneiras diferentes de

conceber a realidade. A segunda dualidade é a da realidade e do pensamento, que

também não são duas realidades, uma vez que a idéia total de realidade forma um dos

termos da oposição (que, efetivamente, só se estabelece entre a atividade intelectual,

de um lado, e do outro, o dado sobre o qual ela se exerce e ao qual ela se esforça por

conferir ao mesmo tempo inteligibilidade e objetividade). A primeira dualidade

implica, aliás, a segunda, pois a distinção entre os dois extremos da realidade,

significando a distinção de uma realidade cega e de uma realidade penetrada de

pensamento, obriga a estabelecer uma nova dualidade, a da ordem da realidade ou da

existência e a ordem do pensamento ou da verdade.

Ora, a Psicologia clássica confunde esta dupla dualidade sob a única oposição

do físico e do psíquico, se representando, além disso, esta oposição como a de duas

séries de fenômenos igualmente reais e sobre as relações das quais a ciência da

natureza poderia se pronunciar. Misturando a ordem da existência e a ordem da

verdade, ela junta, ilegitimamente, para constituir os “fatos mentais”, o dado e o

pensado, a realidade bruta que se impõe ao espírito passivo e as relações inteligíveis

que estabelece a atividade espiritual. Depois, esquecendo que o dado se reduz à pura

sensação, e pertence, por conseguinte, integralmente ao mundo mental, esquecendo

que o universo tira sua objetividade das leis estabelecidas pelo pensamento, põe,

diante da realidade psíquica, tal como a compreendeu, e como uma realidade dada

absolutamente distinta da primeira, a realidade física do mundo material. É difícil

imaginar confusão maior. Desde logo, os termos reunidos para formar a realidade

psíquica são completamente heterogêneos, um deles não podendo, de nenhuma

maneira, ser tratado como uma realidade: quando se passa da consideração das

imagens à consideração das operações intelectuais, não se passa de uma classe a outra

de fatos psíquicos, passa-se da ordem do fato, suscetível de ser dado ou não, à ordem

do pensamento, suscetível de ser verdadeiro ou falso. Depois, uma vez que se

etiquetou como realidade psíquica tanto as qualidades que nos dão as sensações

individuais quanto a afirmação das relações em virtude das quais cada elemento do

dado, aparecendo como necessariamente ligado a todos os outros, nos aparece, por

isso mesmo, como independente do que há de individual na sensação, nada mais resta

para constituir a realidade objetiva do mundo físico. Seu conteúdo (as qualidades

sensíveis) e sua forma (o sistema das leis naturais) foram previamente absorvidos pelo

que se nomeou a realidade psíquica. O universo físico nada mais sendo do que a

realidade bruta das imagens organizadas de dentro pelo pensamento, nada há nele que

subsista para formar contraste com o mental. O que há de espantoso se, após uma tal

confusão desde o princípio, cresçam os embaraços à medida que se avança, seja

querendo estabelecer as leis naturais ligando uns aos outros os diferentes fatos

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A Noção de Fato Psíquico

Robert Blanché 15

psíquicos (como se tudo o que se junta de qualquer maneira sob esse nome pudesse

ser considerado como real), seja se interrogando sobre as relações que eles entretêm

com os fatos físicos (como se se estivesse em presença de dois dados)?

Mas a oposição dos fenômenos físicos e dos fenômenos mentais, tal como a

concebe o realismo psicológico, é, ainda hoje, tão comumente aceita, faz de tal

maneira parte dessas noções correntes em torno das quais vêm se organizar milhares

de idéias secundárias, que não podemos nos orgulhar de fazer renunciar a ela de um

único golpe. Examinemos, então, o que se deve pensar das oposições às quais se liga

diretamente a do físico e do psíquico: a oposição do objetivo e do subjetivo e a

oposição da experiência externa e da experiência interna.

A separação do físico e do mental coincide, para a psicologia clássica, com a do

objetivo e do subjetivo. Mas esses termos são equívocos, e, por conseguinte, também

o é a correlação que se estabelece entre eles. Num primeiro sentido, a diferença entre

o objetivo e o subjetivo, é a diferença entre o que é válido para todos e o que só o é

para alguns, é a diferença entre o “sinômico” e o individual. Já encontramos esta

distinção: é a das duas formas extremas sob as quais o espírito pode considerar a

realidade, é a oposição da experiência bruta, ou do real tal qual ele é dado a cada um

na pura sensação, à mesma experiência, mas organizada num sistema pelas relações

que estabelece o pensamento entre seus elementos e liberada assim das

particularidades individuais. A imagem isolada é subjetiva; o universo material é

objetivo. Esta distinção entre subjetivo e objetivo é perfeitamente clara; ela concorda

com a distinção dos dois sentidos extremos da palavra fato e, por conseguinte, se nos

servimos dos qualificativos de psíquico e de físico para precisar estes sentidos, com a

distinção do fato psíquico e do fato físico. Mas ela pode também, numa acepção bem

diferente, dizer respeito à distinção do pensamento e do objeto pensado. Esta distinção

nos é ainda familiar: ela corresponde com exatidão ao dualismo precedentemente

reconhecido entre a ordem do pensamento ou da verdade e a ordem da existência ou

da realidade. Ela é, ela também, perfeitamente legítima. Somente, é preciso evitar

confundi-la com a distinção precedente entre o individual e o universal. Pois o

pensamento não tem, como pensamento, nenhum caráter individual; pelo contrário, é

ele que, estabelecendo relações inteligíveis e universalmente válidas entre as imagens

(até então isoladas), transforma as impressões individuais infinitamente diversas num

universo idêntico para todos. Somos então vítimas de uma confusão de linguagem

quando reunimos numa mesma realidade mental, a pretexto de serem igualmente

subjetivos, os pensamentos e as imagens. Subjetivos eles o são, mas não no mesmo

sentido; longe disso, cada um aparece bem antes como objetivo no sentido em que o

outro é subjetivo. As imagens são individuais, mas são objetos de pensamento; o

pensamento é a atividade que ocorre num indivíduo, mas tem um valor universal e é,

por esta razão, condição da objetividade do mundo. A distinção do objetivo e do

subjetivo não traz então nenhuma força à distinção tradicional do físico e do mental.

Ao contrário, o que toma uma força nova é a obrigação de conceber de outra maneira

a oposição do físico e do mental e de separar nitidamente os dois sentidos que

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A Noção de Fato Psíquico

Robert Blanché 16

acreditamos dever atribuir-lhe, uma vez que a oposição do objetivo e do subjetivo

revela, quando examinada, o mesmo equívoco.

Igualmente obscura, e por razões análogas, é a diferença estabelecida pela

Psicologia clássica entre duas formas irredutíveis de experiência, uma das quais nos

revelaria os fatos físicos, a outra os fatos psíquicos. Certamente, o contraste entre dois

gêneros de experiência inteiramente dissemelhantes, se fosse nitidamente marcado,

traria um argumento fortíssimo para justificar a cisão operada pelo psicólogo entre os

fatos que caem sob a experiência externa sensível e aqueles que dá a experiência

interna ou psicológica. Mas, esse contraste não é, na verdade, o de duas experiências

distintas e completamente heterogêneas; é o de duas formas extremas de uma mesma

experiência. Se, relaxando os laços que estende entre as imagens a atividade

intelectual, aproximamo-nos do plano inferior de conhecimento no qual o espírito

limitar-se-ia a acolher estupidamente o dado, toda a experiência torna-se interna e

psicológica, pois todo o dado consiste em sensações, isto é, em “estados mentais”, e,

nesta atitude de extrema distensão intelectual, nada pode fazer figura de objeto físico

nem de mundo exterior. É um turbilhão incessante de imagens que surgem para logo

desaparecer, sem nada que ofereça um gancho pelo qual se possa retê-lo; é o perpétuo

escoar de um rio de águas sempre renovadas, tema sobre o qual toda uma literatura

psicológica bordou infinitas variações. Mas, o progresso da percepção consiste em sair

deste torpor contemplativo para substituir pouco a pouco à consideração das imagens a

consideração dos objetos, tratando-as não mais como coisas, mas apenas como

qualidades das coisas. A realidade à qual a experiência nos faz então atingir é um

mundo de objetos físicos que apresenta uma relativa estabilidade, e que o pensamento

constrói, ligando, umas às outras, as qualidades que as sensações revelam. A

experiência tende assim a tornar-se inteiramente externa e sensível. E ela o seria

exclusivamente, se o espírito fosse capaz de reunir, num sistema acabado, a totalidade

das imagens, de maneira que cada uma aparecesse como um fragmento necessário da

história do universo. Enfim, a diferença entre experiência interna e experiência externa

se reduz finalmente à diferença entre dois graus de experiência, porque a diferença

entre o psíquico e o físico se reduz à diferença entre dois planos de realidade. Será

isto, entretanto, tudo? Não reencontraremos também aí, confundida com a primeira, a

diferença entre a ordem do fato e a ordem do conhecimento ? É o que vai mostrar o

exame desta curiosa ruptura de equilíbrio pela qual é logo perturbada, na Psicologia

clássica, a simetria primeira das duas formas de experiência. Pois a experiência

psicológica, que se tinha, de início, simplesmente justaposto, sobre o mesmo plano de

conhecimento, à experiência sensível, não tarda a avançar sobre ela, a tal ponto que

acaba por recobri-la inteiramente. Quando, pela experiência externa, uma sensação

revela um fato físico, esta sensação constitui, por sua vez, um fato psíquico que, como

tal, será ele mesmo revelado pela experiência interna. Esta deve, então, aparecer como

uma espécie de sentido comum abraçando todos os outros, um olho interior aberto ao

mundo dos fatos mentais, e por conseguinte às sensações, como os sentidos são

abertos ao mundo exterior. Dir-se-á, então, que a experiência sensível é apenas

mediata, uma vez que ela, mesmo ela, é conhecida por intermédio da mente, e que a

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A Noção de Fato Psíquico

Robert Blanché 17

ciência a mais próxima do fato e, por conseguinte, a menos duvidosa de todas, é a

Psicologia; toda a Física não passando, aliás, de um capítulo da Psicologia, ciência

universal. A experiência sensível não se opõe mais agora à experiência psicológica, é

apenas um de seus casos. Mas, por quê parar aí ? Afirma-se que as qualidades são

conhecidas pelas sensações, depois, que as sensações são conhecidas pela mente: por

que não uma terceira forma de experiência, pela qual, do mesmo modo que a mente

conhece este conhecimento das qualidades que é a sensação, seria por sua vez

conhecido este conhecimento das sensações que é a mente, e depois uma quarta forma

para conhecer esse conhecimento da mente? Não é verdadeiro que, assim como não

podemos experimentar uma sensação sem saber que a experimentamos, tampouco

podemos saber isto sem saber que o sabemos, e sem saber isto ainda? Este

encaixamento ilimitado de experiências, que a experiência sensível, previamente,

suporia, é como que uma prova por absurdo do erro que comete o psicólogo quando

interpõe, entre o espírito e o conhecimento sensível, um conhecimento introspectivo.

Vítima da ilusão realista (que comanda tudo situar no plano da existência), ele toma

por uma coisa de uma espécie nova o conhecimento das coisas; de tal modo que ele

deverá supor, para explicar que se possa conhecer uma coisa, uma espécie de

conhecimento de segundo grau pelo qual se conhece, previamente, esta coisa mental

que é o conhecimento da coisa. A verdade é muito mais simples: é que toda

experiência supõe a dualidade de um objeto de experiência e de um ato de

conhecimento. Os objetos de experiência, os únicos que podem ser dados, são as

imagens que nos dão os sentidos, de sorte que toda a experiência é sensível. Mas a

sensação supõe, além da qualidade sensível, o espírito ao qual ela seja dada e que a

põe como qualidade sensível: é por isso que a pura sensação não é senão um limite

inacessível. Em outros termos, não há, falando propriamente, “dados de consciência”,

só há dados dos sentidos e a consciência desses dados; consciência, isto é,

conhecimento, e não realidade a conhecer; a consciência é um ato, o próprio ato de

saber, e não um objeto de contemplação. A oposição da experiência interna à

experiência externa, convenientemente interpretada, nada mais significa agora do que a

obrigação de distinguir, na própria experiência, o pensamento que conhece e a

realidade conhecida. Esta oposição é, então, equívoca: ora ela marca a distância que

separa duas maneiras extremas de considerar a realidade, ora ela designa a correlação,

no interior de todo conhecimento, do ato de conhecer e do objeto conhecido. Pela

terceira vez, chegamos à mesma conclusão: que se examine a oposição tradicional do

físico e do mental, ou a do objetivo e do subjetivo, ou ainda a da experiência externa e

da experiência interna, por toda parte encontram-se, confundidas numa única

dualidade, a dupla dualidade de dois planos extremos de realidade, de um lado, da

ordem da realidade e da ordem do pensamento, do outro.

Esta confusão sendo reconhecida, nada impede a conservação da distinção entre

o físico e o mental, desde que se a traduza, tacitamente, numa ou noutra das duas

distinções que ela recobre, de maneira a não aplicar a uma o que só convém à outra.

Ora a oposição do físico e do mental significará a oposição do fato objetivo ao fato

bruto, ou seja, do universo à imagem; ora designará a oposição da realidade e do

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A Noção de Fato Psíquico

Robert Blanché 18

pensamento (caso em que seria necessário ainda dar a saber se a realidade que se

distingue do pensamento é a realidade da imagem ou a do universo). Qualquer que

seja, aliás, dessas duas traduções, a que se adote, jamais se deverá interpretar o

dualismo psicofísico como um dualismo ôntico, justapondo num mesmo universo duas

espécies de realidades.

Esta revisão do sentido tradicionalmente atribuído à oposição do físico e do

mental acarreta a obrigação de submeter a exame certas idéias conexas, uma delas

sendo a concepção que convém fazer do que são pesquisas psicológicas.

O “fato psíquico”, propriamente dito, reduzindo-se à sensação, o domínio da

Psicologia, se se quisesse continuar a defini-la como a ciência dos fatos mentais,

estaria longe de estender-se à totalidade do espírito. No interior do espírito, é preciso

traçar uma linha de separação entre as imagens, que, só elas, podem ser dadas ou não,

e às quais poderá, por conseguinte, convir o nome de fatos psíquicos, e as operações

do pensamento, suscetíveis de ser válidas ou não, mas que não podem ser

consideradas como dados, uma vez que seria preciso então supor um pensamento de

segundo grau ao qual o primeiro fosse dado, e isto indefinidamente. A Psicologia, na

medida em que ela se apresenta como uma ciência de fatos, não pode, então, incidir

sobre as operações intelectuais. A idéia de considerar a atividade intelectual como um

mecanismo dado, do qual seria possível descrever, a partir de observações minuciosas,

todas as engrenagens e explicar em seguida o funcionamento, não é natural senão entre

aqueles para quem o próprio pensamento nada mais é do que certa combinação de

representações e o espírito uma mera coleção de imagens. Não é por acaso que os

criadores da Psicologia clássica foram empiristas. A pretensão de escrever um tratado

Da Inteligência seguindo o mesmo método com o qual se escreveria um tratado Do

Calor ou Da Respiração supõe a tese de que os atos intelectuais são fenômenos

naturais acessíveis à observação, e como só as imagens podem ser consideradas como

fatos, envolve a suposição de que os atos intelectuais se reduzem a sucessões de

imagens, o que é precisamente uma das afirmações essenciais do empirismo. Assim,

não é um medíocre tema de espanto ver uma Psicologia quase oficial, a que expõem a

maior parte dos livros destinados ao ensino, tratar das operações intelectuais ao

mesmo tempo em que, por um lado, se define como ciência natural e, por outro, rejeita

o empirismo. Entre os dois seria preciso escolher; e, se o empirismo parece incapaz de

dar conta das operações intelectuais, deve-se ou renunciar a introduzir essas operações

no domínio da Psicologia ou cessar de concebê-la como ciência dos fatos mentais.

Como, ademais, e isto será visto mais tarde, a vontade e o sentimento não podem ser

explicados sem menção à atividade intelectual, seria preciso concluir que a Psicologia,

se se persistisse em defini-la como ciência dos fatos mentais, não teria outro objeto

que não o mundo das imagens.

Pode-se mesmo dizer, propriamente, que ela seria ciência do mundo das

imagens no mesmo sentido em que se diz que a Física é a ciência do mundo material?

Certamente, é possível estabelecer leis que liguem as imagens umas às outras e

constituir, assim, uma ciência das imagens. Mas esta ciência não é a Psicologia, é a

Física. Pois, estabelecer leis que permitam calcular cada imagem em função de

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A Noção de Fato Psíquico

Robert Blanché 19

algumas outras é reunir as imagens em sistemas e compor assim objetos físicos, é

deixar o plano da experiência bruta ou psicológica, na qual se estaria absorvido na

contemplação estúpida do dado, para tentar compreender este dado e, por uma mesma

operação, constituir um universo objetivo. A diferença entre a atitude psicológica e a

atitude científica é exatamente a que separa as duas atitudes extremas que podemos

adotar para considerar a realidade: é ,então, claro que não podemos adotá-las

simultaneamente. Ou tomamos as imagens no estado de isolamento no qual cada uma é

uma realidade indiscutível, pondo-se por sua mera presença: a realidade que

consideramos é então psíquica, mas nossa atitude é a negação mesma da atitude

científica; ou, adotando a atitude científica, tentamos explicar cada imagem

relacionando-a, segundo leis, a outras imagens: constituiremos assim uma ciência da

natureza, a Física (as imagens tornando-se simples qualidades das coisas e a realidade

sendo transferida das imagens aos objetos). Enfim, se o dado, na medida em que é

dado, é inteiramente psíquico, toda ciência do dado é necessariamente Física. É por

isso que a tentativa de constituir, em simetria com a ciência dos fenômenos físicos,

uma ciência dos fenômenos psíquicos, buscando as leis que os ligam uns aos outros,

tem algo de contraditório. A única ciência possível da natureza é aquela que, partindo

dos dados, isto é, das imagens, se propõe a elaboração de um sistema de leis que os

liguem uns aos outros, de maneira a torná-los inteligíveis, permitindo ver na presença

de cada imagem um efeito necessário da presença das outras.

Segue-se daí que a Psicologia pode tomar dois caminhos, dos quais um não leva

a nenhum conhecimento verdadeiro, e foi de fato abandonado pelos psicólogos,

enquanto que o outro permitiria um saber psicológico autêntico. Pode-se,

primeiramente, continuar a dar como objeto da Psicologia a consideração dos “fatos

mentais”. A Psicologia se distinguirá, então, das ciências da natureza, não por seu

objeto, que será sempre o dado sensível, mas, pela atitude intelectual adotada, que será

a inversão da atitude científica. Ao invés de buscar ligar os elementos do dado para

entender cada um em função dos outros, renunciará a interpretar as sensações para

tentar experimentá-las da maneira a mais ingênua, isto é, dando as costas à ciência, e

tendendo para o caos das impressões puras. Desta atitude de distensão o artista poderá

tirar proveito, mas não há grande coisa a extrair para o conhecimento. É, então, uma

outra direção a que será tomada pelas pesquisas psicológicas, se elas querem chegar à

cientificidade, no sentido amplo em que esta palavra designa todo verdadeiro

conhecimento. Renunciar-se-á, então, a considerar fatos mentais. Ou o estudo incidirá

sobre fatos que se tentará ligar por leis, e então a Psicologia, em lugar de opor-se à

Física, será somente um de seus capítulos; ela não se ocupará de um mundo mental

distinto do mundo material, ela se ocupará desses fenômenos ou imagens aos quais se

reduzem, como todos os fenômenos físicos, os movimentos de um organismo, para

tentar ligá-los ao resto das imagens e fazê-los entrar, assim, no sistema do universo

objetivo; ela prolongará a Biologia, do mesmo modo que a Biologia não se tornou uma

ciência senão prolongando a Físico-química. Ou bem é ao psíquico, por oposição ao

físico, que ela se aplicará; nesse caso, deixará de considerar as imagens e é para o

estudo das operações intelectuais que ela se voltará, renunciando, do mesmo golpe, à

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A Noção de Fato Psíquico

Robert Blanché 20

cientificidade, no sentido estrito em que esta palavra designa o estudo dos fatos e a

busca de leis naturais, e se definindo como um aperfeiçoamento da Psicologia vulgar

(aquela que todo mundo pratica, sem o saber, em suas relações com seus semelhantes)

e não como um prolongamento da ciência da natureza. Quer dizer que o caminho que

podem tomar pesquisas psicológicas bifurca-se desde o início para levar seja a uma

Psicologia do comportamento, seja a uma Psicologia da interpretação: a primeira

incidirá sobre certos fatos físicos, a segunda, sobre a atividade do pensamento, e as

explicações que elas tentarão diferirão exatamente como um fenômeno difere de uma

explicação de texto.

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A Noção de Fato Psíquico

Robert Blanché 21

CAPÍTULO II

A Imagem

A tese que faz da sensação e do objeto físico duas realidades heterogêneas

incluídas no mesmo universo parece, inicialmente, a expressão a mais fiel da

experiência corrente. Quando nasce uma sensação, parece difícil negar que estejamos

diante de dois termos bem distintos: um objeto material extenso, perceptível por todos,

e um fato mental conhecido apenas por quem o experimenta e estranho ao espaço. A

distinção se confirma se se considera a relatividade das sensações, ou seja, a

diversidade das representações suscitadas por um objeto idêntico que nos obriga a

opor a realidade subjetiva dos primeiros à realidade objetiva do segundo. Bem mais, a

relação entre estas duas espécies de realidade não parece menos manifesta, à primeira

vista, do que sua dualidade. Como basta, quando as condições fisiológicas requeridas

são preenchidas, fazer aparecer, variar ou desaparecer o estado mental, tudo se passa

como se o objeto fosse, por intermédio dos fenômenos fisiológicos, a causa do estado

mental. Esta relação parece mesmo suficientemente precisa para que se tenha querido

ver, na relação entre a sensação e o excitante, um caso privilegiado que permite ligar o

mundo mental ao mundo físico por uma lei funcional, e de dar assim um primeiro

passo para integrar ao domínio da ciência positiva, pelo estabelecimento de um

determinismo psicofísico, o velho problema das relações da alma e do corpo.

Mas, as dificuldades surgem desde que se tenta precisar a natureza desse

determinismo. Pode-se concebê-lo de duas maneiras. Ou os fatos mentais figurarão

como elementos constituintes na trama do determinismo universal, tal como os fatos

físicos, aos quais, por conseguinte, eles reagiriam. Ou, determinados por certos

fenômenos físicos, eles não exercerão sobre eles nenhuma influência recorrente, de

sorte que será permitido negligenciá-los totalmente no estabelecimento do

determinismo físico o mais rigoroso. A primeira hipótese concorda mal com o

princípio da conservação de energia; isso foi tão notado que se invocou, para

permanecer em regra com ele, um “equivalente mecânico da mente”, suposição não só

gratuita, mas sem sentido numa teoria dualista, uma vez que ela assimilaria a mente a

uma força de natureza física. Ademais, os progressos da fisiologia, cerrando,

constantemente, as malhas do determinismo físico-químico, afastam, cada vez mais, a

idéia de uma intervenção da mente nos fenômenos biológicos. Seria preciso, então,

escolher a outra hipótese, que, no entanto, após ter conhecido um momento de voga,

caiu hoje num tal descrédito que se pode, sem dúvida, se dispensar de lembrar todas as

dificuldades que justificam seu abandono. Acabar-se-á por reter, da hipótese

epifenomenista, apenas o que ela tinha de bem fundado, isto é, a afirmação de que o

determinismo físico forma um sistema fechado, e deve poder se constituir sem que

jamais se tenha que nele introduzir elementos mentais. O estudo da sensação tornar-se-

á, então, o estudo dos reflexos desencadeados, diretamente ou por via associativa, pela

excitação. A própria palavra sensação será evitada, ou, se a empregam, fazem-no

unicamente no sentido “objetivo” que vem de ser indicado. Que resta, doravante, da

hipótese dualista de que tínhamos partido? Não grande coisa, seguramente.

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A Noção de Fato Psíquico

Robert Blanché 22

Certamente, sempre se poderá admitir que há, atrás do mecanismo que se descreve,

certos estados subjetivos análogos aos que qualquer um experimenta quando abre seus

sentidos: tratar o estado mental como negligenciável não equivale a negar-lhe a

existência. Somente, não se vai mais saber que fazer dele. Pois, se se recusa a admitir

a idéia de fenômenos absolutamente fortuitos, e se, por outro lado, se evita deslizar de

novo para hipótese epifenomenista, não restará outro recurso senão o de justapor ao

determinismo físico, que se basta a si próprio, um determinismo mental autônomo, e

considerar os eventos que se sucedem numa mente como outro sistema fechado, sem

laço com o mundo físico. Em vez de recorrer a esse monadismo, será mais simples

negar, pura e simplesmente, com os behavioristas mais intransigentes, a existência da

mente, e chegar, assim, a um monismo radical em favor do objeto.

Mas, essa posição extrema é, por sua vez, insustentável. Pois, se é permitido ao

behaviorista tratar todos os seres vivos, aí compreendidos seus semelhantes, como

puros autômatos, pelo menos ele, que pensa assim, e justamente porque é pensante,

não pode considerar-se a si próprio da mesma maneira. Uma negação radical do

pensamento é, ao pé da letra, absolutamente impensável. Assim, quem jamais teria

sequer imaginado tomar esta posição desesperada se não estivesse como que acuado

pelas dificuldades do dualismo? Ora, o próprio embaraço de tal situação deveria

sugerir a porta de saída. Que seja tão impossível acrescentar a mente ao mundo físico,

quanto subtraí-la dele, não seria o índice de que a verdadeira questão é muito menos a

da escolha entre esta afirmação ou esta negação do que a do sentido a dar à

proposição sobre a qual se discute? O que é sujeito à contestação não é bem a tese do

monismo do objeto ou a do dualismo do objeto e da sensação, mas a tese realista

subjacente às duas outras. Gostaríamos de mostrar como o problema da percepção se

esclarece quando se abandona todo realismo e se substitui, ao dualismo de realidades

(a física e a mental) justapostas no mesmo plano de existência, o duplo dualismo dos

níveis de realidade (imagem e objeto) e das ordens da realidade e do pensamento.

Trataremos agora, então, de precisar que relação une a sensação e o objeto. Mas, antes

de mostrar que esta relação não é, de maneira nenhuma, assimilável à que une

fenômenos e cuja determinação é o alvo das ciências da natureza, convém responder a

uma questão prévia.

Poderiam, com efeito, recusar audiência a nossa análise, acusando-a de ser

antecipadamente desmentida pela existência de uma lei natural, perfeitamente

verificável, segundo a qual a sensação varia em função do excitante. A objeção seria

pertinente se fosse verificado que o termo ao qual a relação dita “psico-física” une o

excitante é bem a sensação, realidade psíquica radicalmente heterogênea à realidade

física. Poucos psicólogos admitiriam ainda, nos dias de hoje, tal interpretação. Que

esta relação tenha um valor científico, não obriga a tomar ao pé da letra, e a aceitar

também, como o enunciado de um resultado cientificamente adquirido, o próprio nome

que continuou a designá-la. Ela comporta duas interpretações um pouco diferentes,

segundo se adote a atitude do sujeito ou a do experimentador. Mas, nem num caso,

nem no outro, teremos a comparar fatos psíquicos e fatos físicos como duas realidades

igualmente dadas em nossa experiência. Se adotamos a atitude do experimentador, é

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A Noção de Fato Psíquico

Robert Blanché 23

claro que, fazendo o experimento sobre outrem, jamais atingiremos, para pô-las em

relação com outra coisa, suas sensações. Constataremos, apenas, como um fato de

comportamento objetivamente verificável, que, se pedimos a uma pessoa comum que

julgue os valores relativos de vários excitantes, a série que ela terá ordenado em

progressão aritmética, dará, de acordo com as medidas da Física, uma progressão

geométrica. Se queremos analisar mais de perto o fenômeno, empregaremos a técnica

da Fisiologia, e, medindo as respostas reflexas à excitação, por exemplo, a grandeza

da contração da pupila a claridades crescentes, observaremos que ela varia, para as

intensidades médias, como o logaritmo do excitante. O que teremos posto, então, em

relação, é o excitante e a reação: teremos feito Fisiologia e não “psico-física”

(Psicologia). Consideremos, agora, a interpretação da experiência pelo sujeito, e

admitamos, para simplificar a exposição, que ele esteja só durante a experiência. Ele

tomará intensidades luminosas crescentes. Ele as medirá, primeiramente, apenas com

os olhos, de maneira que cada grandeza da série difira das duas vizinhas apenas o

bastante para que a diferença seja perceptível. Depois, ele as medirá com o fotômetro,

e se dará conta de que, aos valores primitivos 1, 2, 3, 4... corresponde uma nova série,

na qual cada valor é obtido pela multiplicação do precedente por um mesmo

coeficiente. Mediu ele, no primeiro caso, estados de consciência, e, no segundo,

fenômenos físicos heterogêneos aos primeiros? De modo nenhum: é visível que ele

mediu sempre as mesmas coisas, intensidades luminosas. Ele apenas empregou dois

métodos de medida. De modo que a experiência “psico-física” significa comparar os

resultados obtidos medindo grandezas físicas por dois métodos diferentes, dos quais

um é o dos crescimentos apenas perceptíveis, o outro sendo tomado de empréstimo à

prática corrente dos físicos. Sem dúvida, o primeiro método tem o duplo inconveniente

de ser menos preciso e de acarretar, se o adotamos, uma maior complicação das leis

em que a intensidade luminosa figura como variável. O físico tem, então, excelentes

razões para não empregá-las, e se poderá dizer, por conseguinte, que os resultados aos

quais ela conduz não são medidas “físicas”. Mas, isto significa apenas que o físico as

negligencia, não que elas seriam medidas extra-físicas, incidindo sobre fenômenos de

que não se ocupa o físico. Assim, nem o sujeito, nem o experimentador põem uma

grandeza física em relação com uma realidade mental essencialmente diferente,

estabelecendo como que uma ponte entre dois mundos. O valor da lei dita psico-física

não nos obriga, então, de modo nenhum, a afirmar, como um fato de experiência, o

dualismo ôntico. Afastado este obstáculo, examinemos, com base num exemplo

simplificado, como deve ser interpretada a relação entre a sensação e o objeto.

Eis-me aqui imóvel num quarto escuro. De súbito, a luz se acende, e percebo

um objeto, uma cadeira se destacando contra uma parede. Há aí um evento que ocorre

para mim, e que, ocorrendo apenas para mim, pode ser chamado subjetivo ou psíquico:

é que sou afetado de certa imagem visual. Mas, é, para mim, o único evento que

ocorre, então. De meu ponto de vista, não me são dados dois fatos, um físico que seria

a presença da cadeira iluminada e um psíquico que seria como que o reflexo do

primeiro em minha mente. O único fato é a aparição da imagem visual, e se eu

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A Noção de Fato Psíquico

Robert Blanché 24

permanecesse perfeitamente imóvel, se meu espírito permanecesse absolutamente

passivo, a isto se limitaria, para mim, a experiência.

Mas, meu espírito não permanece inativo; e se eu estou, por ora, imóvel, não foi

sempre assim. Sei que a imagem que me aparece não é um fenômeno inexplicável, sem

qualquer relação com o resto da experiência. Sei que esta imagem é ligada a outras;

que levantando os olhos numa certa direção, eu seria afetado por uma sensação de luz

intensa; que orientando em outra direção meu rosto, eu teria tido em vez da imagem de

uma cadeira, a de um homem tocando um interruptor de luz; que se eu me desloco,

minha imagem visual se transformará gradualmente em tais outras; que se faço tais

movimentos, ela será acompanhada necessariamente de outras imagens igualmente

previsíveis. Todos esses juízos, e muitos outros do mesmo gênero, se resumem neste:

há diante de mim uma cadeira. A cadeira, cuja existência objetiva assim afirmo, é

seguramente distinta da simples imagem visual primeiramente considerada; é mesmo,

num sentido, independente dela, uma vez que, mesmo se eu jamais tivesse

experimentado essa imagem, mas tivesse experimentado algumas outras, poderia

afirmar a existência da cadeira, e da mesma cadeira. Mas, se ela é independente de

uma imagem, não o é de toda imagem; e se é outra coisa que não uma coleção de

imagens, pelo menos não se põe diante de minha consciência como uma realidade que

me seria estranha, uma vez que consiste em imagens ligadas por leis, e que leis não

são coisas exteriores ao pensamento, mas relações inteligíveis. O objeto é construído

por meu pensamento com a ajuda de minhas sensações, e constituído por essas

sensações mesmas, relacionadas umas às outras segundo as leis da natureza. Se

minhas sensações não se sucedem segundo as leis que eu tinha afirmado declarando é

uma cadeira, o objeto que eu construíra inicialmente será destruído, e meu

pensamento se esforçará por construir um outro que me permita dar conta das novas

imagens. Suponhamos que me deslocando eu assista a inesperadas transformações da

imagem visual: buscando ver a cadeira de lado, em lugar de ver aparecer o que

esperava, é a face que se estreita regularmente, sem que a perspectiva se modifique. O

objeto muda então para mim, e minha imagem primitiva, ainda que permanecendo a

mesma, será relacionada a outro objeto, uma pintura sobre uma parede ou ainda, se as

imagens táteis diferem das que me faziam prever as imagens visuais, se minha mão

atravessa a cadeira sem experimentar resistência, acreditarei num fenômeno de ótica e

falarei de uma “imagem virtual”. Enfim, se estas últimas hipóteses são, por sua vez,

desmentidas por imagens novas, direi que nada compreendo, e que não sei o que vejo:

o que significa, não que eu ignore de que imagem visual sou agora afetado, mas que

ignoro a que outras imagens ela se liga, que sou incapaz de prever que imagens farão

surgir para mim meus movimentos. Nada nos obriga, então, a falar de um objeto

exterior material que subsistiria por si e que se refrataria em minha consciência sob o

aspecto de uma sensação: o objeto não é dado, fora das sensações, como sua causa,

mas é, ao contrário, com as sensações, que só elas são dadas, que o pensamento busca

compor o objeto.

Esta conclusão será, entretanto, contestada. É verdadeiro, convir-se-á, que só

posso apreender em mim imagens, e que constituo o objeto exterior com as imagens

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A Noção de Fato Psíquico

Robert Blanché 25

que experimento. Mas, a explicação que precede supõe que sou só no mundo e que o

mundo não é senão minha representação. Entretanto, não duvido, de modo algum, que

imagens semelhantes afetem outras consciências que não a minha, e que elas sejam

função dos objetos exteriores, qualquer que seja o modo que se conceba estes últimos.

Suponhamos que, na experiência que se vem de imaginar, eu tenha sido, não o

paciente, mas o operador, que eu mesmo tenha acendido a luz. Poder-se-á repetir, a

meu respeito, o que se disse do paciente: como ele, apercebi a cadeira, que, admitamo-

lo, se reduz para mim a certas imagens de que sou afetado, e a relações fixas que

concebo entre elas e outras. Mas há outra coisa na experiência, é a aparição de uma

imagem na consciência do paciente. Essa imagem é, sem dúvida, um estado de

consciência, mas não de minha própria consciência; e, por outro lado, esta imagem é

algo bem diverso da própria cadeira ou de uma parte da cadeira. Eis, então, um fato

que nem é um objeto material, nem um estado de minha própria consciência. Não é

evidente que é a cadeira iluminada, objeto material, que causa a sensação do paciente?

E, nessas condições, não devo eu, a menos que pretenda loucamente fazer de mim o

centro do mundo, supor que as coisas se passem exatamente para mim como para ele e

que minha sensação é determinada pela presença do objeto exterior4?

4 Tal seria, para dar um exemplo, a opinião de Claparède (Point de vue du psychologue et point de

vue du sujet, Archives de psychologie, t. XXIII, no 89, abril 1931). Claparède aceita a identificação

da sensação à qualidade sensível quando ela é feita do ponto de vista do sujeito. Mas contesta que

ela permaneça válida do ponto de vista do psicólogo, isto é, do cientista que observa o sujeito de

fora para estudá-lo. “É só para o sujeito que a sensação coincide com o objeto sentido, pois, para o

psicólogo, há sempre duas coisas: o objeto, o excitante, de um lado, e de outro, a reação do sujeito

a este excitante (a sensação, a percepção)”. Mas toda a questão seria justamente a de saber se o

observador tem o direito de assimilar a reação do sujeito a uma sensação. Claparède escreve que o

psíquico, considerado do ponto de vista do psicólogo, “só pode ser algo de inextenso, de não

espacial e de interior ao sujeito, designando por “interior” o fato de que os fenômenos desta ordem

só são conhecidos do próprio sujeito. Esses caracteres (inextenso, interior, etc), não dependem de

qualquer teoria, eles são puramente empíricos. Eles apenas exprimem, apenas descrevem, a situação

de fato diante da qual se encontra o psicólogo”. Como pode-se dizer que, afirmando esses

caracteres, o psicólogo exprima simplesmente um fato, quando se admite que o fenômeno psíquico,

por natureza, lhe escapa, sendo conhecido apenas do próprio sujeito? O fato em presença do qual me

encontro aqui, eu psicólogo, é que esses fenômenos psíquicos “se furtam a meus sentidos, que eu

não posso esperar, mesmo com os aparelhos de radioscopia mais aperfeiçoados, apercebê-los um dia

dentro do crânio do meu sujeito”. Como posso afirmar, então, o que quer que seja? Seria o mesmo

que afirmar como um fato de experiência a presença nesta gaveta de um fenômeno inextenso,

inacessível aos sentidos, e conhecido apenas da mesa, e alegar como prova a impossibilidade

absoluta de percebê-lo. A conclusão normal de experiências negativas desse gênero é que não há

nada. A menos que se pense ter razões de crer na existência da sensação no sujeito, e é,

evidentemente, o que quer dizer Claparède. Essas razões são as próprias declarações do sujeito, que

fazem parte de sua reação ao excitante, e que trariam ao psicólogo uma informação sobre a

existência duma realidade que ele próprio não perceberia. Evidentemente, o cientista tem o direito de

aceitar as informações que lhe dão testemunhas competentes e de boa fé, mas é preciso que ele

interprete corretamente o sentido de suas declarações, mesmo verídicas. Ora, a realidade da qual o

sujeito que diz “vejo uma árvore” assinala a existência, é a árvore, objeto físico, e não uma imagem,

duplicata psíquica do objeto. Claparède concorda com isto. “Do ponto de vista do sujeito, declara

ele, é sempre o objeto que é medido ou avaliado, e não a imagem ou a percepção mentais

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A Noção de Fato Psíquico

Robert Blanché 26

Tal interpretação impõe-se tão pouco do ponto de vista do operador quanto do

ponto de vista do paciente. O operador afirma que a cadeira iluminada determina uma

sensação visual no paciente. Como deve-se entender esta afirmação? Seguramente, o

operador não conhece por uma experiência direta o estado psíquico do paciente. Sua

experiência é limitada a algumas imagens: a visão da cadeira iluminada, a do paciente

tendo a cabeça voltada para o lado da cadeira, certos movimentos do paciente, por

exemplo, movimentos labiais acompanhados do som de certas palavras, tais como,

“vejo uma cadeira”. Estas imagens são ligadas umas às outras pelo operador, e ele

afirmará que a cadeira iluminada é causa das modificações que ele constata no

paciente. Enfim, para o operador, o paciente é um objeto, tal como a cadeira e o

aparelho de iluminação: é composto, ele também, por um sistema de imagens ligadas

entre si, e em relação com outros sistemas de imagens. A interpretação da experiência

é, então, de mesma natureza, seja que nos coloquemos do ponto de vista do paciente,

seja que nos coloquemos do ponto de vista do operador. A experiência é apenas mais

complexa no segundo caso, porque os objetos considerados são mais numerosos, e

porque um deles, sendo extraordinariamente complicado, nos é muito difícil, ou antes,

totalmente impossível, ligar por leis estritas as imagens que nós lhe relacionamos às

que relacionamos aos objetos vizinhos. Mas, num caso como no outro, só algumas

imagens são dadas, com as quais o pensamento se esforça por constituir objetos que

ajam, uns sobre os outros, segundo leis.

Somente, o operador, conservando sua atitude de observação, põe-se, pelo

pensamento, na perspectiva do paciente. Ele sabe que, se estivesse em seu lugar, no

momento em que se faz a luz, ele seria afetado de certa imagem visual bem

determinada, e diferente da que ele experimenta agora. Ele sabe que este objeto que

ele tem diante de si e que profere palavras, não é um objeto como uma cadeira, mas

também um sujeito como ele próprio. Assim, afirma ele que a cadeira iluminada

produz nele não somente certos efeitos físicos, imagens extensas e perceptíveis a

todos, de mesma natureza que as que compõem a cadeira, mas também certo efeito

interno ou psíquico, conhecido apenas do paciente. Ora, é aqui que se introduz o erro.

Uma vez que se admitiu, explicitamente ou não, a tradicional distinção entre objetos

extensos e visíveis a todos e as sensações inextensas conhecidas apenas pelo sujeito,

esta interpretação da experiência se imporá sem dúvida. Mas, é esta distinção que é

inaceitável. A imagem da cadeira não é inextensa, uma vez que ela tem uma forma,

recobre outras, cresce ou diminui conforme o sujeito se aproxime ou se afaste; o que

não tem forma nem grandeza, não é a sensação, mas os juízos que a acompanham, por

exemplo, aquele pelo qual se afirma que tal sensação é experimentada. Por outro lado,

esta imagem não é conhecida apenas pelo sujeito, uma vez que o operador afirma sua

existência. Sem dúvida, a imagem dada não á a mesma para o paciente e para o

operador, pois eles olham o objeto de dois lugares diferentes. Mas o operador sabe

correspondentes a este objeto. Para o sujeito, a avaliação incide sempre sobre objetos. Para o sujeito,

não há sensações, só há excitantes”. Nessas condições, pergunta-se que razões subsistem para

afirmar a existência desses “fatos psíquicos” que não são acessíveis a ninguém, escapando tanto ao

conhecimento do sujeito quanto à experiência do psicólogo.

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A Noção de Fato Psíquico

Robert Blanché 27

que uma imagem visual se deforma quando nos deslocamos, e sabe que essa

deformação é regida por leis estritas, mesmo se não tem conhecimento preciso delas.

De sorte que ele é capaz de conhecer mais ou menos a imagem do paciente, e que uma

ciência suficiente das leis da perspectiva, permitir-lhe-ia calculá-la com exatidão. O

que ele chama, por oposição ao objeto, o estado psíquico do paciente, não é, então, de

modo nenhum, esta realidade subjetiva e inextensa, propriedade privada e inalienável,

que gosta de descrever o realismo psicológico. É, simplesmente, o aspecto que

apresenta o objeto a partir do lugar ocupado pelo paciente, aspecto evidentemente

aberto no espaço e perceptível a quem quer que tome o lugar apropriado.

Nada em tudo isso nos obriga a situar a sensação num outro mundo que não o

mundo do objeto. Não encontramos, de modo algum, de um lado, um objeto público e,

do outro, uma pluralidade de imagens privadas deste objeto. A única realidade dada

são as imagens. Mas, como estas imagens variam segundo leis que a ciência pode

formular, elas não dependem do capricho individual. Assim, não são pessoais nem

incomunicáveis. Pelo contrário, cada uma delas pode, de direito senão de fato, ser

calculada com precisão. E é nesta dependência rigorosa em que elas estão umas das

outras que consiste a objetividade do mundo. O objeto não é a causa das sensações,

ele é construído pelo pensamento com a ajuda das sensações. Certamente, os

“objetos” aos quais chega a Física contemporânea não se assemelham aos que nos dá

a percepção; pode parecer que toda imagem sensível desapareceu completamente.

Mas é evidente que estas construções intelectuais, sob pena de permanecerem

inteiramente vãs, devem alcançar, finalmente, a experiência sensível, e que estas redes

superpostas de relações inteligíveis só têm valor de verdade porque se estabelecem a

partir de dados concretos. Assim, distinguir a sensação ou o estado psíquico da coisa

exterior ou objeto físico significa distinguir entre o fato bruto, a imagem dada

isoladamente, e o fato objetivo, aquele que a ciência busca construir. Querer

estabelecer entre estes dois fatos uma relação de causalidade seria um

empreendimento ilusório, uma vez que a palavra fato não tem, nos dois casos, a

mesma significação. É claro que não é o segundo termo que é causa do primeiro, uma

vez que, pelo contrário, o supõe. Dizer, com o realismo materialista, que o objeto é

causa de minha sensação é o mesmo que afirmar que a ciência é causa da experiência.

Aliás, seria igualmente irrazoável reverter entre esses dois termos a relação de

causalidade. O mundo não é composto de outros elementos que não de imagens, mas é

preciso, para que as imagens componham o mundo, que elas sejam relacionadas umas

às outras pelo pensamento. Pode-se então dizer, mas em dois sentidos um pouco

diferentes, seja que o mundo só é composto de imagens, seja que ele é algo mais que

um conjunto de imagens. Do mesmo modo, pode-se dizer de uma casa, seja que ela só

é composta de pedras, seja que ela é algo mais que um conjunto de pedras: este algo

mais é o plano do arquiteto, que não é um objeto acrescentado às pedras, mas um

plano que presidiu a distribuição da pedras. A imagem é comparável à pedra, o objeto

físico, à casa. A diferença entre o objeto físico e a sensação não é a de duas realidades

heterogêneas que entram como ingredientes na composição de um mesmo universo, é

a das sensações ligadas pelo pensamento e da sensação considerada isoladamente. As

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A Noção de Fato Psíquico

Robert Blanché 28

sensações não são produtos e como que dejetos do mundo, elas são os materiais com

os quais o pensamento constrói o mundo.

Não se pode então nem distinguir onticamente sensação e objeto, nem reduzir

pura e simplesmente o objeto à sensação, nem a sensação ao objeto. A distinção só

pode ser a de dois planos de realidade, o que implica a distinção correlativa de duas

ordens: a ordem da realidade e a ordem do pensamento.

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A Noção de Fato Psíquico

Robert Blanché 29

CAPÍTULO III

O Pensamento

1. O Pensamento Reflexivo

As operações intelectuais podem ser tratadas como eventos ligados entre si e

aos outros eventos do universo por leis naturais? A sorte da Psicologia, concebida

como uma Física do espírito, depende da resposta a esta questão. Aceitar a negativa,

não é apenas dar à Psicologia limites estreitos, excluindo de seu domínio uma parte

importantíssima do psiquismo. Se é verdadeiro, como logo esperamos mostrar, que a

vontade e o sentimento não podem ser entendidos sem referência à atividade

intelectual, todo o objeto da Psicologia escapará à “Física” do espírito se apenas lhe

escapam as operações da inteligência. É por isso que uma das teses principais do

realismo psicológico é a assimilação do juízo, operação intelectual fundamental, a um

fenômeno natural. Um juízo não é, com efeito, suscetível de ser explicado, como

qualquer fenômeno, por fenômenos antecedentes ou concomitantes? Ele não é algo de

arbitrário, surgindo de um golpe, subitamente, sem que haja para isso uma razão. Ele é

acarretado por percepções, por juízos anteriores, por desejos, paixões, de modo que,

estes sendo o que são, o juízo atual não pode não ser, e não ser exatamente como é.

Deve, então, haver leis naturais segundo as quais todo juízo é necessariamente ligado a

seus antecedentes psíquicos, e, por conseguinte, a ciência que busca estabelecê-las, é

perfeitamente legítima. Tal é a tese da Psicologia clássica.

Ora, é verdade que um juízo é explicável, que ele nada tem de arbitrário. Mas,

passar daí à afirmação de que ele é inevitavelmente decorrente de certos antecedentes

psíquicos, segundo uma necessidade natural, é ser vítima de uma confusão de

linguagem, porque é identificar duas formas radicalmente diferentes de necessidade. É

preciso lembrar aqui a distinção entre a necessidade natural e a necessidade lógica,

uma vez que o psicólogo faz como se a ignorasse, ou pelo menos como se a estimasse

sem fundamento. Dizemos que uma demonstração acarreta necessariamente certa

conclusão; e dizemos, do mesmo modo, que o movimento de uma bola de bilhar

acarreta necessariamente o movimento de uma outra com a qual ela se choca. Mas a

conclusão não é, de maneira nenhuma, acarretada do mesmo modo que o movimento

da bola que recebeu o choque; e a necessidade da qual falamos no primeiro caso não

pode ser reduzida à de que falamos no segundo. No caso de um juízo, necessariamente

quer dizer normalmente; no caso de um fenômeno físico, quer dizer inevitavelmente.

Dizer que certa conclusão é acarretada necessariamente por outros juízos, significa

que esse juízo é uma sequência legítima dos primeiros, e não que ele lhes sucederá de

fato, no sentido de uma consecução temporal de eventos. Não se trata, então, aí, de

uma necessidade natural, como aquela em virtude da qual o movimento da bola que

recebeu o choque é acarretado inelutavelmente pelo choque. Enquanto que um evento

é dito necessário quando ele não pode não ocorrer se tais outros eventos ocorrem, um

juízo é dito necessário quando ele não pode não ser verdadeiro se tais outros juízos

são verdadeiros. Enfim, a relação que liga entre si vários juízos é uma relação de

princípio a consequência, não é de modo nenhum uma relação de causa a efeito. Que

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A Noção de Fato Psíquico

Robert Blanché 30

um juízo não seja arbitrário, não significa, então, que ele seja determinado segundo

uma necessidade natural, mas, ao contrário, que ele é acarretado pela necessidade

lógica. E a possibilidade, para o pensamento, de seguir a necessidade lógica, é

justamente o que constitui a liberdade do espírito. Os partidários, declarados ou

dissimulados, do determinismo psicológico, imaginam sempre que seus adversários

defendem não sei que liberdade de indiferença, segundo a qual o espírito poderia

arbitrariamente, num momento dado, julgar isso ou bem o contrário disso. Mas a

liberdade do juízo não consiste na indiferença e no capricho. Consiste no poder de não

ceder senão à ligação lógica, e de resistir vitoriosamente a não importa que força

natural, tanto ao que se chama as forças morais, como o constrangimento da opinião

pública ou o interesse que apresenta para nós tal verdade, quanto às forças

propriamente físicas; ela se manifesta nisto que não há procedimento mecânico capaz

de levar o espírito a julgar uma coisa antes que outra, e nisto que o meio mais seguro

para modificar uma opinião é o uso do raciocínio. As operações do pensamento são

livres, pois nenhuma necessidade natural as comanda, mas nada tem de arbitrário, a

necessidade lógica as guia. Nenhum juízo pode, então, ser integrado ao determinismo

dos eventos, uma vez que todo juízo, mesmo se logicamente necessário, escapa à

necessidade natural.

Mas, isto não é tudo. Não encaramos ainda senão o caso mais simples, aquele

em que um juízo é extraído, como consequência, de certos princípios já postos.

Quando as duas premissas de um silogismo são dadas previamente, quando a

demonstração de um teorema está feita, a liberdade de julgar reduz-se, então, ao

mínimo. Certamente, é preciso já um esforço de pensamento para apreender a relação

entre as duas premissas ou para compreender a demonstração. Mas, se a relação é

apreendida, se a demonstração é compreendida, não há lugar, doravante, senão para

uma única conclusão. Se tal conclusão é totalmente independente da necessidade

natural, pelo menos é necessária logicamente, duma necessidade que exclui qualquer

escolha. Mas, em muitos casos, a coisa é bem diferente. Certos juízos sendo postos, o

espírito pode afirmar, a partir deles, vários outros novos juízos, diferentes uns dos

outros, todos, entretanto, legítimos. É o que acontece sempre que o espírito procede

por análise. Quando, partindo de certos juízos, se trata, não mais de achar que juízos

eles condicionam, mas, ao contrário, de buscar que juízo ou sistema de juízos pode ser

considerado como a condição, há lugar, logicamente, para um número indefinido de

soluções. Se se põe que nenhum inquieto é feliz e que todo avarento é inquieto, não se

pode legitimamente extrair outra conclusão que não a afirmação: nenhum avarento é

feliz. Mas, se se põe primeiro que nenhum avarento é feliz e se pede a justificativa

deste juízo, não basta mais, para resolver o problema, deixar-se guiar pela necessidade

lógica, esperando que ela leve a uma solução determinada, pois há uma multidão de

justificações válidas, seu número não tendo outros limites que não os da

engenhosidade do pesquisador. Manifesta-se, aqui, o poder de invenção do espírito:

ele é livre, não somente nisto que ele não sofre constrangimento físico, mas também

nisto que, no interior dos limites que lhe traça a lógica, ele é capaz de criações

imprevisíveis. Estas criações não serão equivalentes para a razão, uma vez que umas

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A Noção de Fato Psíquico

Robert Blanché 31

darão ao problema uma solução mais simples ou mais direta que as outras; mas serão

equivalentes do ponto de vista da pura lógica, uma vez que um raciocínio longo e

complicado, desde que seja rigoroso, possui o mesmo valor demonstrativo que uma

raciocínio curto e simples. Ora, uma atividade desse gênero está longe de ser

excepcional. Todos os problemas técnicos, todos os que põem cada homem no

exercício de seu ofício, comportam estas operações analíticas, já que consistem em

buscar os meios capazes de levar a certos fins, isto é, em remontar do resultado

almejado às condições suscetíveis de levar a ele: como obter uma clientela numerosa,

como construir tal casa, como curar este doente, como conseguir uma abundante

colheita. Nenhum desses problemas comporta uma solução única, de maneira que se

possa, conhecendo exatamente as circunstâncias, prevê-la com certeza. Peça a vinte

engenheiros o projeto de uma máquina para um uso determinado e tudo o de que você

poderá estar seguro é de que vinte projetos diferentes lhe serão apresentados. E se

você consegue prever com bastante exatidão, não, certamente, o detalhe do projetos,

mas, pelo menos, suas grandes linhas comuns, não foi seguindo no espírito de seus

engenheiros não sei que mecanismo psicológico pelo qual se fabricaria neles a

invenção da máquina, é que você mesmo, engenheiro ocasional, buscou resolver por

seus próprios meios o problema que você lhes tinha posto. Mas esta contingência dos

juízos não é limitada à solução dos problemas técnicos; ela se estende por toda parte

onde o espírito procede por análise; ela se encontra então no enunciado das leis

naturais, planando, assim, sobre o conjunto das ciências da natureza. Os que

pretendem descobrir as leis do funcionamento do espírito imaginam que há leis da

natureza, perfeitamente definidas e em número bem determinado, e que para descobri-

las, basta ao cientista saber lê-las uma a uma na experiência graças a engenhosos

métodos. Ora, as leis não são de modo algum estabelecidas previamente, de modo que

reste apenas descobri-las; é preciso fazê-las, inventá-las, e nesta invenção da ciência

se manifesta o poder criador do espírito. O cientista, em presença dos fatos que ele

deve explicar, acha-se numa situação comparável à do homem a quem se pede que

formule premissas capazes de justificar um juízo. Todo vigor de uma inteligência

preocupada com evitar a menor falta de ordem lógica é aqui impotente para achar uma

resposta que se imponha, pois há uma infinidade de respostas possíveis. Em particular,

quando o sistema das leis físicas está já parcialmente constituído, a liberdade criadora

do espírito se acha reduzida na mesma proporção, uma vez que é preciso velar para

que o novo princípio não esteja em desacordo com os já estabelecidos. Ocorre ainda

que esta restrição pode sempre ser levantada, desde que se tome cuidado de modificar

os antigos princípios para pô-los de acordo com o que se quer introduzir. Arriscar-se-

ia muito, seguramente, de chegar assim a uma física extremamente complicada, mas

ela permaneceria tão verdadeira quanto a outra, permitindo a previsão dos fenômenos

e as aplicações técnicas tão seguramente quanto ela, senão tão facilmente. É mesmo

pela invenção de paradoxos desse gênero que por vezes a face da ciência é mudada, e

que, em lugar de uma complicação nova, uma simplificação admirável se acha

introduzida no sistema das leis naturais: simplificação imprevisível, jamais se teria

produzido se tal gênio não a tivesse inventado, ou que seria feita de um modo muito

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A Noção de Fato Psíquico

Robert Blanché 32

diferente e que não se pode imaginar a menos que se seja o gênio criador e que se

invente efetivamente. Todo nossa sistema físico é então radicalmente contingente.

Uma infinidade de outros teriam sido possíveis, muitos dos quais, sem dúvida, seriam

menos satisfatórios que o nosso, mas, dos quais não é permitido afirmar que nenhum

satisfaria mais. A ciência não está inscrita na natureza como um livro, e o cientista não

é como o escolar de quem se exige que saiba lê-lo. A construção da ciência é um jorrar

de imprevisíveis criações. Essa criações são livres, não somente nisto que nenhuma

necessidade natural as determina, mas nisto que a necessidade lógica, ela própria, não

permite, partindo de um estado dado da ciência, deduzir seu desenvolvimento futuro.

Enfim, enquanto que na síntese dedutiva a liberdade do espírito se manifesta apenas

pela obediência à necessidade lógica, em toda operação analítica, esta liberdade

comporta, mesmo quanto à lógica, a mais larga indeterminação.

Mas, isto não é tudo. Mesmo na dedução se encontra a espontaneidade criadora

do espírito. Poder-se-ia desde logo notar que um bom número dos princípios dos quais

dependem as deduções resultam de análises prévias, são fruto de um trabalho de

criação original do pensamento. Donde resulta que a necessidade lógica jamais

constrange absolutamente o espírito, mesmo quando ele segue a ordem sintética. Com

efeito, ela não obriga a aceitar uma conclusão senão com a condição de que ele aceite

os princípios: ora, há certos princípios que é sempre permitido contestar, porque é

sempre teoricamente possível achar outros que preencham também rigorosamente,

ainda que talvez com menos simplicidade, o mesmo papel. Mas, sem insistir mais

sobre esta nota, e não considerando senão o próprio trabalho da dedução, sem se

preocupar com a maneira pela qual são achados os princípios, nem com as razões que

se têm para admiti-los, pode-se mostrar que esse trabalho não exclui toda

contingência. Certamente, uma vez postos e compreendidos os princípios, não resta

mais nenhum esforço de invenção a fazer para tirar a conclusão. Não é aí então que se

deve buscar a atividade do pensamento que deduz. Justamente porque a conclusão é

comandada pelos princípios, o espírito nada mais tem a fazer senão que se deixar

levar, de algum modo, pela necessidade lógica. Ainda será preciso que os princípios

tenham sido postos, e postos juntos. Se se deixa de lado o caso em que o espírito se

limita a seguir um raciocínio dedutivo já feito, o trabalho da dedução consiste

precisamente em aproximar os princípios suscetíveis de levar a uma conclusão. Ora,

essa aproximação é ainda uma livre criação do espírito, contingente tanto em relação à

necessidade lógica quanto em relação à necessidade natural. Quem não poderia citar

verdades que conheceu isoladamente durante muito tempo antes que sonhasse em

relacioná-las e extrair daí uma conclusão inesperada. A história da ciência, e

principalmente a da matemática, forneceria, à vontade, exemplos análogos; se tal

matemático não tivesse existido, tal teorema jamais teria sido enunciado, e entretanto

ele resulta necessariamente de teoremas já conhecidos, mas era preciso que alguém se

desse conta disso. A direção segundo a qual progredirá a cadeia das consequências a

partir de um sistema complexo de princípios é contingente, e tanto mais quanto mais

complexo é o sistema. A impossibilidade de prever como se desenvolverá uma

sequência de raciocínios é então encontrada mesmo no caso em que esses raciocínios

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A Noção de Fato Psíquico

Robert Blanché 33

são dedutivos. Sendo dado um sistema complexo de princípios, pode-se, quando

muito, obter uma previsão grosseira do desenrolar das consequências; e o meio de

obtê-lo não é pedir a uma física mental que nos dê as leis segundo as quais

calcularemos esse desenrolar; é de desenrolarmos nós mesmos as consequências,

raciocinando como o faria, segundo a natureza dos princípios postos, um matemático,

um físico, um engenheiro, um advogado.

É, então, vão buscar as leis naturais que regeriam o curso do pensamento. O

curso do pensamento é livre, e duas vezes livre. Primeiro, nisto que ele é liberado da

necessidade natural, e não sofre outro constrangimento que o da necessidade lógica, de

sorte que ele não obedece a leis mas a regras. Em seguida, nisto que essas regras

deixam lugar à contingência, à possibilidade de sequências diferentes de juízos. É por

isso que o conhecimento o mais detalhado das circunstâncias nas quais eclodiu uma

obra de arte, uma invenção técnica, uma idéia moral ou um conceito científico, se é útil

para compreender sua gênese, jamais poderá dar delas senão uma explicação

insuficiente, e mesmo duplamente insuficiente. Primeiro, porque os fatos invocados

como causa não exercem sobre o espírito verdadeira causalidade, o espírito sendo

subtraído à causalidade natural. Em seguida porque, no próprio interior do espírito, a

submissão à necessidade lógica deixa ainda campo livre a uma multidão indefinida de

possíveis. Sem dúvida, as operações do espírito não comportam o arbitrário: os

pensamentos novos dependem sempre dos antigos, de maneira que se pode sempre,

mas só depois, a eles vinculá-los. Mas, dependem como uma solução depende um

problema, não como o estado de um sistema mecânico depende do anterior. Ora,

frequentemente, um problema complexo comporta várias soluções, ou pelo menos,

várias maneiras de chegar a uma mesma solução, igualmente válidas do ponto de vista

lógico. Nesse caso, encontrar o enunciado do problema permitirá explicar uma das

soluções; mas o mesmo enunciado explicaria igualmente bem, quer dizer, igualmente

mal, uma das outras soluções. Eis porque a previsão do porvir é, nas obras do espírito,

impossível. Não se pode prever senão depois de realizadas, e, de algum modo, a

contrapelo, remontando do que é a prever, ou mais exatamente, a explicar, a certas

idéias ou circunstâncias antecedentes, de maneira que, entre sua infinidade, a escolha

das idéias ou das circunstâncias interessantes seja precisamente ditada pelo

conhecimento do que se quer explicar. Ou então, se a previsão pretende se exercer

verdadeiramente sobre o porvir, ela só tem chances de sucesso se quem quer prever

realiza ele próprio o trabalho intelectual cujo resultado quer antecipar: o que é

justamente transformar o porvir em presente, e substituir a previsão pela realização.

Mas seria vão buscar prever o curso futuro de um pensamento, e, por exemplo, as

obras que farão um matemático ou um filósofo, pela constituição de uma física do

espírito. A atividade intelectual resta irredutível ao determinismo da natureza.

Esforçando-se por reduzir a dependência lógica à dependência natural, as

operações do espírito aos fenômenos do universo, o realismo não empreende apenas

uma tentativa quimérica, empreende uma tentativa absurda. Querendo fazer penetrar a

necessidade das coisas no espírito, reverte-se a ordem verdadeira. Bem longe de

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A Noção de Fato Psíquico

Robert Blanché 34

estender-se até o pensamento, a necessidade natural supõe como condições a liberdade

criadora do espírito e a necessidade lógica.

A atitude do realismo psicológico, consistindo em considerar as operações

intelectuais como fatos determinados por outros fatos segundo uma necessidade

natural, implica a idéia de que essa necessidade existe por si na natureza, impondo aos

fenômenos, como uma legislação inviolável, o rigor de uma ordem preestabelecida.

Ora, a natureza não é submetida a uma necessidade desse gênero. Não há nenhuma

necessidade nas próprias coisas. A experiência não ofereceria, a um espírito que se

supusesse contemplá-la passivamente, mais que um turbilhão de imagens incoerentes

sem qualquer laço entre si. Cada imagem dada é dada: impõem-se por si mesma, mas

nada impõe além de si mesma. “Qualquer uma pode seguir qualquer outra”. Enfim, a

categoria que se aplica à coisa é a da realidade, não a da necessidade. Mas o espírito,

em presença do caos das imagens, tenta ordená-lo segundo suas exigências próprias,

tenta transformar esta poeira de experiências em uma experiência organizada: é isto a

obra da ciência, esboçada no trabalho da percepção. Em que consiste esta obra? O

espírito nada pode compreender se não o deduz, segundo a necessidade lógica, de

princípios admitidos como verdadeiros. Será preciso então, para explicar a presença de

uma imagem, considerar a imagem dada, ou, mais exatamente, a afirmação de que esta

imagem é dada, como uma consequência da qual trata-se de achar as premissas. Estas

premissas se repartirão em dois grupos, segundo esse esquema de raciocínio que é o

silogismo. As primeiras, desempenhando o papel da maior, afirmarão as leis universais

segundo as quais certas imagens são ligadas a outras. As segundas, desempenhando o

papel da menor, enunciarão o estado das imagens antecedentes ou concomitantes.

Compreender um fato é então compreender um juízo que põe a realidade do fato; e

esse juízo só é compreendido, se se vê que ele resulta, a título de consequência, de

certos outros juízos. A necessidade natural, segundo a qual um fato nos parece

inevitavelmente acarretado por outros, resulta assim duma aplicação ao dado da

necessidade lógica. A afirmação do determinismo dos fenômenos reduz-se à

afirmação de que toda asserção verdadeira incidindo sobre um fato decorre, a título

de consequência, em virtude da necessidade lógica, de asserções verdadeiras

incidindo sobre outros fatos, e da enunciação de leis; ou, mais brevemente, ela se

reduz à afirmação da dedutibilidade perfeita do real 5.

5 Será necessário sublinhar que se trata aqui de uma dedutibilidade de direito, e não de fato? A

afirmação do determinismo, no sentido em que a entendemos, é da ordem da razão “constituinte”, e

esta exigência do pensamento deve ser distinguida da concepção positiva que permite se fazer do

determinismo o estado da ciência do momento dado de seu desenvolvimento. É por isso que nós não

tínhamos que levar em conta o “indeterminismo” da nova física. Nós não temos, com efeito, que nos

ocupar das dificuldades com as quais os espírito se choca em seu esforço para entender o universo.

O essencial é que ele não se deixa intimidar por elas, e que ele põe em princípio que jamais qualquer

uma delas deve ser declarada inultrapassável. Se o estado atual da microfísica obriga modificar

alguma coisa em nossa idéia habitual do determinismo da natureza, poderemos falar nesse sentido

numa crise do determinismo, que será ao mesmo tempo uma crise do pensamento “constituído”. Mas

é claro que nada pode nos obrigar a renunciar a uma exigência tão geral e tão formal quanto a da

inteligibilidade do real.

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A Noção de Fato Psíquico

Robert Blanché 35

É verdadeiro que as leis que tornam possível esta dedução consistem, por sua

vez, na enunciação de relações necessárias entre as imagens; de sorte que pode

parecer que, ao lado da relação lógica de princípio a consequência que liga os juízos,

haja lugar para outras relações necessárias que liguem as imagens umas às outras, e

que assim se encontra na própria natureza uma necessidade distinta da necessidade

lógica. Somente, essas relações não são incluídas na experiência. Entre os fatos tais

como eles se apresentam não há relações, pois uma relação não pode ser dada, mas

apenas concebida. A observação dos fatos não dá nada mais que o conhecimento dos

fatos observados e não permite afirmar a menor relação entre os fatos. O cientista não

tem que descobrir na experiência leis naturais que aí estariam já inscritas e que seria

necessário apenas distinguir e desembaraçar. Sua obra consiste em fabricar um sistema

de proposições universais tais que permitam deduzir, do conhecimento de certos fatos

o conhecimento de alguns outros, e por isso mesmo, compreender estes últimos. Ora,

há sempre vários sistemas, e mesmo, teoricamente, uma infinidade, respondendo a esta

condição. O estabelecimento das relações pelas quais as imagens se prestam a ser

reunidas umas às outras é, então, o resultado de livres criações do espírito. Estas

relações são tão pouco inscritas na natureza, que a afirmação de uma delas não é, por

si só, nem verdadeira nem falsa: tudo depende do sistema de definições, de princípios

e de outras leis no qual elas sejam incluídas. Sem dúvida, o espírito não é livre para

afirmar indiferentemente qualquer relação. Destinada a um uso determinado, a criação

das leis da natureza é, por isso mesmo, sujeita a certas condições. Estas leis devem ser

tais que permitam tirar do conhecimento de certos fatos o conhecimento de outros, e

que formem também entre si um sistema tão coerente e tão simples quanto possível.

Mas, é este um problema de tão grande complexidade que ele comporta muitas

soluções, cada uma das quais não pode ser encontrada a não ser se é verdadeiramente

inventada pela atividade criadora do pensamento. As relações entre as imagens,

enunciadas pelas leis da natureza, não se acham então de modo nenhum na natureza,

mas são estabelecidas penosamente pelo espírito, que só pode compreender alguma

coisa ligando-a, a título de consequência, a princípios admitidos, e que se esforça, a

fim de tornar o dado inteligível, por conceber proposições universais que lhe possam

servir de princípios para deduzi-los.

A afirmação da necessidade natural em virtude da qual os fenômenos se

determinam uns aos outros, decompõem-se, então, na afirmação de duas espécies de

relações, nenhuma das quais existe na natureza, todas as duas supondo um espírito

livre da necessidade natural. De uma parte, é afirmar que a relação lógica de princípio

a consequência é universalmente aplicável, que nada é em princípio ininteligível, que a

totalidade do dado se presta a entrar num vasto sistema dedutivo; é, em outros termos,

afirmar o valor ilimitado e incondicional da necessidade lógica. Assim, bem longe de

acarretar, como queria o realismo psicológico, a exclusão ou pelo menos a redução da

necessidade lógica, a afirmação da necessidade natural consiste em estender a

necessidade lógica ao conjunto do universo. Não há razão, então, para invocar o

determinismo da natureza como prova de que o curso do pensamento é regido por leis

naturais; pois, afirmar o determinismo, é precisamente afirmar que o pensamento não

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A Noção de Fato Psíquico

Robert Blanché 36

pode aplicar-se à natureza a não ser submetendo-a à necessidade lógica. Mas, a

afirmação da dedutibilidade perfeita do real implica, por sua vez, a afirmação de que é

possível formular proposições universais suscetíveis de servir de princípios a esta

dedução, isto é, leis que enunciem relações entre os diferentes aspectos do dado. Ora,

esta segunda espécie de relações, tal como a primeira, não pode ser constatada na

experiência. Constata-se que uma imagem é dada, depois outra; mas, o laço que

acarretaria a segunda após a primeira escapa a toda observação. Desde há muito

mostrou-se quão ilusória é a imaginação vulgar da causalidade, segundo a qual os

eventos se produziriam uns aos outros à maneira da geração dos seres vivos, e,

entretanto, quando pretende introduzir no espírito o determinismo da natureza, o

realismo continua a raciocinar como se os fenômenos possuíssem, independentemente

de toda afirmação do espírito, uma virtude criadora pela qual eles engendrariam os

seguintes. Em realidade, se é permitido conservar, em razão de sua comodidade, o uso

da palavra causa, deve-se reduzi-la a significar o conjunto das condições de que

fazemos depender a aparição de um fenômeno: a lei sendo escolhida precisamente de

maneira a tornar possível o estabelecimento desta dependência. As relações que

enunciam as leis da natureza, relações cuja possibilidade é implicitamente afirmada na

exigência do pensamento de que a natureza seja inteligível, são obra do pensamento

aplicando-se a constituir esta inteligibilidade. Em outros termos, quando se pergunta se

há, entre os elementos da realidade, relações necessárias, a resposta não pode parecer

duvidosa senão devido ao equívoco ao qual se presta a noção de realidade. Se se fala

da experiência bruta, do real tal qual é dado ao pensamento, é claro que ele não pode

conter relações necessárias, nem mesmo, mais geralmente, nenhuma espécie de

relação, uma vez que uma relação é inseparável de um espírito que a afirme. Se é

questão, ao contrário, da experiência objetiva, do real tal qual é construído pelo

pensamento, então, sem dúvida, é verdadeiro que ele comporta, entre seus elementos,

relações necessárias, uma vez que é precisamente o estabelecimento dessas relações

que transforma a experiência bruta numa experiência objetiva; mas, essas leis naturais,

longe de sujeitar o pensamento, trazem ao contrário, o mais fulgurante testemunho de

seu poder, uma vez que são obra sua.

Pouco importa então que se possa conceber, como o implica o projeto de uma

“Física” da inteligência, que uma necessidade natural, constituída independentemente

do pensamento, penetre até mesmo no espírito para reger suas operações, ou que, pelo

contrário, a necessidade natural suponha, ela própria, como condições, a relação lógica

de princípio a consequência e a liberdade espiritual criadora das leis físicas. A

possibilidade de uma ciência do real, da qual a Psicologia clássica tirava argumento

para provar a possibilidade de uma ciência natural do espírito, implica, pelo contrário,

a impossibilidade de uma tal ciência, uma vez que uma ciência, qualquer que ela seja,

é obra de um espírito livre da necessidade natural e criador desta mesma necessidade.

Assim, não devemos nos espantar se a extensão das concepções realistas às

operações intelectuais, reduzindo-as a fenômenos naturais, acarreta uma absurdidade

manifesta. Tentemos, com efeito, tratar os atos intelectuais como simples fatos,

análogos aos fatos físicos, e obedecendo, como eles, a leis naturais. É já bem

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A Noção de Fato Psíquico

Robert Blanché 37

surpreendente que a necessidade cega que determina a sequência desses eventos tenha

justamente levado, por um acaso que se diria prodigioso, a produzir alguns que sejam

precisamente tais que contenham a explicação de todos, a sua própria explicação

inclusive. Que concurso admirável de circunstâncias não foi necessário para que, em

um momento dado da história do universo, ocorresse essa série de eventos que é a

concepção do realismo psicológico, com a afirmação que ela comporta do

determinismo mental? E que probabilidade havia para que entre a infinidade de juízos

possíveis, o simples jogo das leis naturais indiferentes à verdade, tenha feito surgir

juízos sistematicamente ordenados, e, entre a infinidade do sistemas possíveis de juízo,

precisamente o único verdadeiro sistema? Se fosse verdadeiro que os atos intelectuais

não são eventos entre outros, seria extremamente pequena a probalidade para que

tenha podido produzir-se um dia este evento que seria a própria afirmação de que os

atos intelectuais são eventos. Mas não insistamos neste argumento. Sempre se poderia

responder que uma probalidade mínima não equivale a uma probalidade nula. É

preferível ir direto à dificuldade essencial. Um evento não é verdadeiro nem falso.

Tudo o que se pode dizer dele é que é real ou não. Se, então, nossos juízos são apenas

eventos, não há mais verdade nem erro. Juízos incompatíveis são igualmente reais, uns

e outros existindo tal como existem rosas brancas e rosas vermelhas, sem que se possa

atribuir um valor superior a uns ou aos outros. Uma vez que são reputados depender

de juízos anteriores e concomitantes, segundo a estrutura psico-fisiológica de cada

indivíduo, e mesmo segundo a da humanidade em geral, todos os juízos, cujo conjunto

constitui nossa ciência, nada têm que os ponha acima dos que teria formulado uma

espécie de seres pensantes cuja constituição nervosa e mental fosse inteiramente

diferente da nossa. A menos que se creia que uma Providência expressamente

organizou o universo para permitir a aparição final de um animal pensante dotado de

uma organização exatamente apropriada à descoberta da verdade, e não de uma outra,

dever-se-á, na hipótese realista, negar todo valor de verdade a esta sequência acidental

de eventos que é a formulação das regras de nossa Lógica, ou ao encadeamento dos

teoremas de nossa Geometria. Enfim, admitindo que os atos intelectuais sejam fatos,

chega-se naturalmente a esta conclusão: não há verdadeiro nem falso; e esta

conclusão não pode ser afirmada sem absurdidade, uma vez que afirmá-la seria tê-la

por verdadeira. Poderia ser dito ainda, para melhor fazer aparecer esta absurdidade: se

a tese do determinismo psicológico é verdadeira, ela não é verdadeira, uma vez que

resulta da própria tese que não há verdadeiro nem falso.

Aqui, um psicólogo não deixaria de invocar a distinção tradicional entre o ponto

de vista lógico e o ponto de vista psicológico. Deixando ao lógico o cuidado de

estudar em que condições as operações intelectuais são válidas, ele se limitaria, por

sua parte, a considerar essas relações como fatos que se trata de explicar ligando-os

por leis a outros fatos, sem se cuidar de estabelecer entre eles uma diferença de valor,

mas sem negar que haja uma, nem contestar à Lógica a legitimidade das regras que ela

formula. Assim como o químico não pretende que não haja diferença de nocividade

entre o açúcar e o vitríolo, sob pretexto que eles são igualmente naturais, o psicólogo

não pensaria, apesar de encarar os juízos como fenômenos dados, em abolir a

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A Noção de Fato Psíquico

Robert Blanché 38

distinção entre os juízos verdadeiros e os juízos falsos. Enfim, haveria duas maneiras,

igualmente legítimas, de tratar de operações da inteligência; o modo explicativo e o

modo normativo, longe de se excluírem, se completariam. Consideremos uma obra

espiritual como a Crítica da Razão Pura. O lógico pode tomá-la como objeto de

estudo. Ele pesquisará como os pensamentos aí se encadeiam uns aos outros, se

aplicará a descobrir os paralogismos, a distinguir o que está provado e o que é apenas

avançado, a remontar aos princípios implícita ou explicitamente admitidos. Este exame

comportará, a cada instante, juízos sobre o valor de tal ou qual parte da obra.

Mas, é possível adotar também, em relação à obra, uma outra atitude, a do

psicólogo. Considerando-a, agora, como um dado, todas as partes do qual, porque

igualmente dadas, apresentando um interesse igual, o psicólogo se proporá a explicá-

la, investigará como os pensamentos que a compõem, verdadeiros ou falsos, claros ou

confusos, provados ou não, se formaram; recolherá, com este alvo, tudo o que puder

saber da vida mental de Kant; sua educação, sua experiência da vida, suas leituras,

suas obras anteriores, suas notas, sua correspondência, fornecer-lhe-ão documentos

que permitem explicar como as idéias de Kant se elaboraram progressivamente em seu

espírito. Uma explicação desse gênero esclarecerá consideravelmente o sentido da

Crítica, e constitui mesmo o mais seguro meio de chegar a uma interpretação exata da

obra. Uma mesma obra comporta, então, ao lado de um estudo lógico, um estudo

psicológico, sem que um prejudique em nada o outro.

Esta distinção dos pontos de vista lógico e psicológico é clássica. Mas terá

algum fundamento? Não pomos em questão a atitude do lógico. Deve-se, entretanto,

fazer, a esse respeito, uma nota indispensável: é que adotar, em relação ao texto da

Crítica, o que se chama a atitude do lógico, é exatamente adotar a atitude daquele que

se esforça por compreender o texto. Um conjunto de pensamentos não é um objeto que

se possa apreender primeiramente, para tentar em seguida explicá-lo e compreendê-lo.

Apreender pensamentos é, justamente, compreendê-los, é refazer, por sua própria

conta, a mesma série de atos intelectuais que aquele que os formou pela primeira vez.

A menos que se faça da Lógica uma concepção caduca, deve-se reconhecer que a

explicação lógica de um texto não vem acrescentar-se à inteligência do texto, mas

consiste exatamente nessa inteligência, comportando apenas uma formulação refletida

das relações lógicas que é preciso espontaneamente apreender para compreender o

texto. Nessas condições, a explicação dita psicológica do texto reduz-se, finalmente, a

uma explicação lógica, uma vez que tem também por objeto a compreensão dos

pensamentos. A única diferença é que, em lugar de tomar em consideração apenas os

pensamentos expressos na Crítica, tentará ligá-los a outros pensamentos de Kant, mas,

bem entendido, segundo os laços que podem unir pensamentos, isto é, laços lógicos, e,

de modo nenhum, segundo os laços que unem fenômenos, isto é, leis naturais. A

explicação “genética” de um pensamento nada tem de comum com a explicação que se

pode dar, por exemplo, da formação de um organismo animal. Não se aprecia de fora

o desenvolvimento de um pensamento como se pode apreciar o de um embrião: é

preciso refazer em si próprio, e por si próprio, este desenvolvimento, porque um

pensamento só pode ser apreendido de dentro, ou, mais precisamente, não pode ser

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A Noção de Fato Psíquico

Robert Blanché 39

apreendido, mas apenas pensado. A explicação dita psicológica não difere em natureza

da explicação lógica, difere apenas nisso de que ela incide sobre um conjunto mais

vasto.

Quer dizer que não há outra explicação possível, que não se pode dar conta da

existência da Crítica ligando-a, segundo leis naturais, a outros eventos do universo?

Sem dúvida, uma vez que a obra existe é preciso que ela esteja ligada ao resto da

existência. Somente, uma explicação desse gênero incidirá, evidentemente, apenas

sobre o que, na Crítica, pode propriamente ser dito existir, isto é, sobre o manuscrito,

e ela será, evidentemente, tal como a explicação de qualquer coisa que exista, uma

explicação física. Na medida em que existente, a Crítica nada mais é do que um objeto

material entre aqueles que compõem o universo, definido por seu peso, formato, cor,

desenho das letras, enfim, por um conjunto de imagens. Para explicar a formação deste

objeto seria necessário ligá-lo, com a ajuda das leis da natureza, ao conjunto dos

eventos do universo. Somente, tal explicação ultrapassa de muito nossa ciência. Somos

inteiramente incapazes de saber, por exemplo, que impressão os caracteres do Ensaio

sobre o entendimento humano de Hume puderam fazer no cérebro de Kant, que

modificações deste cérebro determinaram os movimentos da mão que redigiu a

Crítica. Intervém, então, o psicólogo, que, para explicar a influência do Ensaio sobre a

composição da Crítica, substitui os objetos materiais que são essas obras por sua

significação, mas que, continuando a tratar essas significações como objetos, objetos

psíquicos e não mais objetos físicos, imagina que se possa ligar, por leis naturais, a

existência do segundo objeto à existência do primeiro. Ele justapõe à causalidade

física, uma causalidade psicológica em virtude da qual o pensamento de Hume,

encarado como um dado, teria contribuído para produzir o de Kant, encarado como

outro dado. É claro, entretanto, que se deixa, assim, de considerar o Ensaio e a Crítica

como objetos de pensamento. Ora, o Ensaio e a Crítica não são objetos de nosso

pensamento, eles são nosso próprio pensamento. E quando perguntamos como um

pôde contribuir para produzir o outro, o que é buscado são as relações lógicas que

ligam estes dois conjuntos de idéias. Refazemos, então, o trabalho de pensamento de

Hume, depois o de Kant refazendo o de Hume. Longe de seguir, no espírito de Kant,

não sei que determinismo psicológico em virtude do qual se fabricaria seu pensamento,

nós nos esforçamos por pensar tal como Kant pensou. A explicação tentada pelo

psicólogo não passa, então, de uma confusão das duas espécies possíveis de

explicação, tratando como fatos, não mais os signos verbais, mas, seu sentido, e

tentando servir-se do método do físico, destinado à explicação de eventos, para

explicar pensamentos. É permitido explicar a verdade de um pensamento ou a

realidade das imagens que o exprimem, mas pretender explicar, assim como o quer o

psicólogo, a realidade de um pensamento, é o que nos parece não oferecer qualquer

sentido. Podemos chamar reais as imagens brutas, reais também os objetos

constituídos pelas imagens, mas, em hipótese alguma, o pensamento pode ser tomado

por uma realidade. Em resumo, é verdadeiro que uma obra espiritual pode sempre ser

considerada de dois pontos de vista diferentes, mas esta dualidade não coincide com a

que se estabelece habitualmente entre o ponto de vista da Psicologia e o das ciências

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A Noção de Fato Psíquico

Robert Blanché 40

normativas. Que se trate de uma escultura, de um ato amoroso, ou de uma descoberta

matemática, o trabalho do espírito se manifesta por fenômenos físicos, que podem ser

ligados ao resto do universo; é, então, legítimo afirmar que esta obra pode ser

encarada do ponto de vista da existência: somente, a realidade que se estuda, então, é

física e não mental. Se, agora, negligenciando as manifestações físicas do trabalho

intelectual, é este trabalho, ele próprio, que nos propomos apreender, o único meio de

chegar a isso é refazer por nossa conta o trabalho em questão. Nesse caso, tampouco é

sobre uma realidade mental que incidirá nosso pensamento: seu objeto não será o

pensamento de outrem, mas o mesmo objeto que o do pensamento de outrem; não

pensaremos o pensamento de outro homem, mas o mesmo problema que outro homem

pensou. Considerando uma obra do espírito como uma manifestação de atividade do

pensamento cessamos de considerá-la como uma realidade: ela tornou-se a atividade

de nosso próprio pensamento e não o objeto dessa atividade. O desdobramento que

comporta uma obra do espírito é então a separação entre o pensamento e suas

manifestações físicas. Mas, o pensamento não comporta o desdobramento, que nele

gostaria de operar o realismo psicológico, entre a existência e a verdade; pensamento e

verdade são uma única coisa.

Mas eis que, de novo, contra-ataca o psicólogo. Você afirma, diz ele, que todo

pensamento é verdadeiro, esquecendo o erro, e esquecendo que os juízos falsos levam

a melhor em número sobre os juízos verdadeiros. Você supõe que o espírito humano é

pura inteligência, raciocinando sempre segundo as regras da Lógica. Se assim fosse,

você teria razão de pretender que a Psicologia se confunde com a Lógica. Ora, como

explicar o erro? Quando o espírito se engana, você não pode sustentar que é a

necessidade lógica e as conveniências racionais que o guiam, e, se não há, então,

razões que tornem legítima sua afirmação, é preciso que haja causas que a tornem

explicável. Com efeito, só excepcionalmente os juízos dos homens são justificados de

maneira racional, a maior parte deles é acarretada por sentimentos, desejo, paixões.

Longe então de absorvê-la, a Lógica não passa de um capítulo da Psicologia, e mesmo

de um capítulo da Psicologia da inteligência, a saber, a Psicologia da inteligência pura.

Enquanto o lógico se pergunta como são determinados os juízos verdadeiros, o

psicólogo estuda a maneira pela qual são determinados juízos quaisquer, verdadeiros

ou falsos.

Será possível justificar dessa maneira a distinção entre Psicologia e Lógica? O

interior do espírito representado como comportando a oposição de duas potências

hostis comandando as opiniões, uma boa, a outra má, a primeira produzindo a verdade,

a segunda o erro? Ora, para que duas potências entrem em concorrência, é necessário

pelo menos que tenham, sob sua diversidade, alguma coisa em comum. Compreende-

se que dois exércitos se defrontem, compreende-se que uma controvérsia se instaure

entre duas teorias científicas; mas como conceber a rivalidade de um exército e de uma

teoria? Pois dizem-nos que os juízos são produzidos ora por razões, ora por causas;

ora pela necessidade lógica, ora pela necessidade natural. Dualidade incompreensível,

porque não há duas espécies de necessidade colocadas lado a lado no mesmo plano,

porque nenhuma comum medida pode ser estabelecida entre uma razão e uma causa.

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A Noção de Fato Psíquico

Robert Blanché 41

Razão pela qual se é levado, a fim de dar à tese a aparência de inteligibilidade, a

reduzir razões a causas, a não ver nas regras lógicas senão uma espécie particular de

leis naturais, aquelas segundo as quais funcionaria uma inteligência pura. A

necessidade lógica nada mais seria, assim, do que um caso particular da necessidade

natural6, e a dualidade da Lógica e da Psicologia se reduziria a uma simples diferença

de extensão: a Lógica diferiria da Psicologia como a Mecânica, por exemplo, difere da

Física. Estranha maneira, é preciso confessá-lo, de distinguir a Lógica da Psicologia:

se se quisesse confundi-las, não se procederia de outra maneira. Mas, não é isto o

essencial. O essencial é que esta concepção reduz a necessidade lógica à necessidade

natural, a verdade à realidade, redução cuja absurdidade esperamos ter mostrado. Em

duas palavras, se alguns juízos forem determinados por causas naturais, todos o serão,

uma vez que não se pode fazer concorrer com a necessidade natural uma necessidade

lógica que dela fosse radicalmente distinta; e se todos os juízos são determinados pela

necessidade natural, não há mais verdade.

Será preciso, então, negar a influência dos sentimentos sobre as opiniões? Seria

negar a evidência. Mas esta influência não se exerce segundo a causalidade natural;

ela reduz-se à influência lógica segundo a qual os juízos condicionam-se uns os outros.

O sentimento não é uma realidade psíquica existente por si própria, independente de

todo pensamento, e dotada de uma força própria capaz de resistir à força lógica. Se ele

goza de um poder sobre o pensamento, este poder é precisamente aquele de que goza

o juízo. A raiz de todo sentimento é um juízo de valor admitido como incontestável.

Que é o amor, senão a afirmação de que certa mulher é a mais perfeita das mulheres?

Que é a cupidez, senão a afirmação de que a riqueza é o maior dos bens? O orgulho,

senão o juízo favorável a respeito do próprio mérito? Ora, como é, logicamente,

inadmissível que haja contradição entre nossos juízos, se alguém tem por indubitável

um juízo como esses, para satisfazer à necessidade lógica, deverá pôr seus outros

juízos de acordo com ele. A sequência de seus pensamentos será impecável e, se se

concede o princípio, não é possível subtrair-se às consequências. Dizer que o juízo

deste homem sobre os atributos que definem a beleza é causado por sua paixão, não

significa então que seu juízo seja o efeito de um outro fenômeno psíquico ao qual o

liga uma necessidade natural; isto significa dizer que ele é uma consequência lógica de

outros juízos. Naturalmente, se o juízo que serve de base é falso, tudo que se seguir

será duvidoso: não se dirá, entretanto, que ele raciocinou mal, ou que ele simplesmente

6 Goblot, Traité de Logique, Paris, Colin, 1918, § 7, p.22 e 23: “Se eliminamos todas as causas não

intelectuais do juízo, as que restam não diferem mais do que se chama uma razão. Isolando a

inteligência, obrigando-a a trabalhar sozinha, determinamos o domínio da Lógica, talhado, assim, no

da Psicologia. Podemos distinguir das outras causas do juízo as razões, isto é, de suas causas extra-

intelectuais suas causas puramente intelectuais. Como elementos puramente intelectuais, isto é,

juízos, determinam outros juízos? Este segundo problema é propriamente lógico, e ele é psicológico:

quais seriam as formas e os processos de uma atividade intelectual subtraída às influências do

sentimento e ao arbítrio da vontade? As leis lógicas não são senão as leis naturais de uma inteligência

pura. É porque uma inteligência pura é uma abstração que suas leis parecem outra coisa que não leis

naturais, e que a Lógica parece opor-se à Psicologia como uma ciência do ideal a uma ciência do

real.”

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A Noção de Fato Psíquico

Robert Blanché 42

não raciocinou. Os erros do apaixonado não provam que suas opiniões sejam

desconexas, pelo contrário, são sistemáticas, somente, o sistema depende de um erro

inicial, eis tudo. Mas, enfim, insistirão, por que admitiria ele esta primeira idéia falsa,

senão precisamente porque está apaixonado? Não será o sentimento a causa deste

juízo? “Não sei por que, diz o velhinho, os arquitetos fazem agora as escadas mais

íngremes”. Eis um juízo harmonizado com outros juízos do ancião: a consciência de

uma dificuldade crescente em subir os degraus, e a crença de que suas forças não

declinaram. Mas, este último juízo não seria um efeito já do amor próprio? O

sentimento não seria, aqui, a causa do juízo? Não, responderemos, o amor-próprio não

é, de modo nenhum, a causa deste juízo, mas consiste justamente na produção de

juízos deste gênero. Assim, invocar o amor-próprio para explicar tal juízo é dar uma

explicação verbal e vazia, pois poder-se-ia igualmente dizer que é, ao contrário,

porque se recusa a ver sua decrepitude que ele tem amor-próprio. As duas explicações

se equivalem, reduzindo-se, ambas, a simples tautologias. Do mesmo modo, se um

homem pensa que a finalidade da vida é a acumulação de riquezas, em nada se

explicará esta opinião dando-lhe como causa a paixão da avareza, pois ser avarento e

julgar que a finalidade da vida é a acumulação de riquezas é uma única e mesma coisa.

Numa palavra, se é verdadeiro que toda paixão tem por raiz um juízo de valor, não é

lícito ver na paixão a causa deste juízo, nem, mais geralmente, ver na paixão uma força

psíquica comparável a forças naturais e estranhas ao poder do pensamento.

Caímos sempre na mesma conclusão. O pensamento não pode ser tratado ao

mesmo tempo como verdadeiro e como real, como obediente à necessidade lógica e à

necessidade natural, como prestando-se a ser estudado pelo lógico e pelo psicólogo.

Das duas uma: ou bem o determinismo psicológico, e, então, a supressão de todo

valor, e, por conseguinte, a impossibilidade, entre outras da Lógica; ou bem a

legitimidade da Lógica e, então, a liberdade do espírito, e, por conseguinte, a

impossibilidade de uma “Física” da inteligência. Ou a Lógica é legítima, ou é legítima

a Psicologia, mas entre as duas é preciso escolher. Mas, escolher a Psicologia é

absurdo, uma vez que essa escolha, implicando a supressão da verdade, exclui logo a

verdade da própria Psicologia. A Psicologia da inteligência, concebida como uma

ciência natural do espírito, não pode pretender constituir-se sem que esta pretensão

envolva sua condenação.

Em definitivo, o erro da Psicologia clássica, desta ciência positiva dos fatos

mentais, é o de passar do pensamento à existência, deslizando de pensamos a logo,

existem pensamentos. Não vê que só se pode falar de uma existência objetiva se o

objeto é ligado por leis ao resto do universo; que essas leis são relações afirmadas pelo

pensamento, e que essas relações, condições da existência, não são, de maneira

nenhuma, suscetíveis de existência, mas apenas de verdade; e que, assim, toda

existência objetiva supõe como condição a verdade e o pensamento.

2. O Automatismo Mental

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A Noção de Fato Psíquico

Robert Blanché 43

Mas, talvez, dificuldades sejam evitadas, e grandes, quando, para mostrar que o

funcionamento do pensamento não se reduz a um mecanismo natural, escolhe-se, para

sobre ele fazer incidir a discussão, o pensamento reflexivo, isto é, a forma de

pensamento a mais afastada do automatismo. Muitos psicólogos renunciaram a

tentativa de reduzir toda atividade intelectual a um puro mecanismo mental.

Certamente, esta renúncia vem limitar grandemente o domínio da Psicologia: o estudo

dos fatos mentais e das leis naturais que os regem deixa agora escapar as operações

intelectuais propriamente ditas. Pelo menos resta ainda lugar (ao lado ou abaixo da

atividade pela qual o espírito se esforça por organizar seus juízos num sistema

inteligível) para o jogo anárquico das representações abandonadas a si mesmas.

Quando a atenção se relaxa, as idéias não cessam, por isso, de se suceder na mente; e,

uma vez que esse curso de pensamentos não obedece mais às conveniências lógicas, é

preciso que ele seja regido por um mecanismo mental, cujas leis restaria descobrir.

Haveria, assim, como que dois graus de pensamento, um pensamento disciplinado e

um pensamento anárquico, o segundo dos quais, pelo menos, reduzir-se-ia a um

automatismo, objeto de estudo para uma Psicologia positiva. Mas, como conceber esta

dualidade no funcionamento do pensamento? A hipótese que se apresentaria em

primeiro lugar seria de fazer simplesmente com que se alternassem no espírito esses

dois modos de pensamento. Nos momentos de distensão, como por exemplo no

devaneio, as idéias se sucederiam segundo as leis estritas do automatismo, e nos

momentos de atenção essas sequências incoerentes de idéias seriam substituídas por

uma sucessão inteligível. Ora, como admitir que as mesmas idéias possam ser

submetidas alternadamente a duas legislações absolutamente heterogêneas, e que, de

fenômenos naturais, levados à existência por uma necessidade cega, elas venham

subitamente a mudar-se em verdades cujo encadeamento seria regido pelas exigências

lógicas? Um determinismo natural cujo curso pudesse a todo instante ser suspenso por

um simples decreto da vontade cessaria, por isso mesmo, de ser um determinismo: a

idéia de uma necessidade facultativa é uma absurdidade. Se certos objetos são uma

vez submetidos ao determinismo da natureza, sempre o serão. De resto, sem ter

necessidade de invocar este argumento teórico, é fácil constatar não só que há

intermediários entre o mais relaxado devaneio e o pensamento o mais refletido, mas

que, mesmo nos momentos de forte tensão intelectual as idéias não surgem

imediatamente na ordem a mais satisfatória para o espírito, e que, inversamente, as

imaginações as mais descabeladas jamais são tão descosidas que não ser possa nelas

achar alguma lógica. É, então, impossível admitir a alternância no espírito de dois

modos absolutamente diferentes de sucessão de idéias. Se se quer manter a distinção

entre pensamento reflexivo e pensamento anárquico, é de outro modo que será preciso

concebê-la.

Há, com efeito, uma outra maneira de dar lugar, no funcionamento do

pensamento, ao automatismo e à reflexão: a aparição das idéias na mente, tanto na

investigação mais atenta quanto nos mais desatados dos sonhos, é sempre determinada

pelo jogo de certas leis naturais, o papel da atenção consistindo apenas em reter, no

caos das idéias automáticas, as que apresentam alguma relação lógica com a questão

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A Noção de Fato Psíquico

Robert Blanché 44

que se examina, deixando escapar todas as demais7. O argumento essencial invocado

em favor desta tese é que atividade judicativa só pode exercer-se se dispõe,

previamente, de algo sobre o que se exercer: as ligações lógicas entre idéias, longe de

serem causas de sua aparição, supõem que as idéias se ofereçam previamente ao

espírito. O pensamento reflexivo seria, então, diverso do automatismo, mas deveria ao

automatismo todos os materiais sobre os quais trabalha, sem que ele próprio nada

possa mudar na ordem de sua apresentação: esta ordem, independente da reflexão,

seria inteiramente submetida à legislação da natureza.

Tal hipótese é tão pouco satisfatória quanto a precedente. A separação entre a

atividade judicativa e os materiais sobre os quais ela se exerce seria legítima se

coincidisse com a distinção pensamento/imagem. Ora, é claro que aqui, uma vez que é

a existência de um pensamento automático que se quer provar, ela é entendida de um

outro modo. Os materiais sobre os quais se exerce a reflexão não são somente

imagens, mas, sobretudo, juízos. Quando minha atenção se concentra para resolver um

problema prático ou teórico não é de imagens que tenho necessidade, tampouco de

conceitos isolados; o que me vem ao espírito são conhecimentos, suscetíveis de

verdade ou de erro. E, sem dúvida, eu não caio imediatamente sobre aqueles de meus

conhecimentos que seriam os mais apropriados à resolução do problema; sem dúvida,

eles surgem com certa desordem, de sorte que eu deveria em seguida fazer escolhas

entre os que se tiverem apresentado e organizar de uma maneira nova os escolhidos.

Mas, enfim, é já sobre pensamentos que se exerce minha reflexão, e não sobre dados

puros e simples; e esses pensamentos, submetidos à norma do verdadeiro e do falso,

não é possível tratá-los como objetos da natureza situados no plano da existência. Se,

então, a ordem da aparição das idéias difere da ordem que a reflexão estabelecerá

depois entre elas, pelo menos esta diferença não pode ser radical. As idéias, sendo

afirmações e não realidades, não se evocam segundo uma necessidade natural que

faria existir esta após aquela; sua evocação só pode ser regida pela necessidade lógica,

que faz com que a afirmação de uma implique a afirmação de outra. Assim, só uma

diferença de grau deverá ser achada entre o pensamento espontâneo e o pensamento

reflexivo; e a única maneira de explicar uma sucessão incoerente de idéias será tentar

encontrar, dentro dela, relações de implicação lógica. Não que tais relações posam ser

consideradas como causas da aparição das idéias. Tem-se perfeitamente razão de

dizer, por exemplo, que “a semelhança concebida como “causa produtora” não tem

nenhum sentido, nem na ordem psicológica, nem na ordem fisiológica”8. Mas, toda a

questão é justamente saber se o encadeamento das idéias deve se explicar por causas,

segundo a ordem da necessidade lógica; ou, em outros termos, se as idéias devem ser

consideradas como fenômenos que só se explicam pelas relações naturais que fazem

com que sua existência dependa da de outros fenômenos, ou como afirmações que só

se explicam pelas relações lógicas que fazem com que sua verdade dependa da

verdade de outras afirmações. Neste último caso, a noção de um automatismo das

idéias nada mais poderia significar senão a dialética em virtude do qual as idéias se

7 W. James, Précis de psychologie (1892), chap. XVI (trad. Fr., Paris, Rivière).

8 W. James, ibid; p.302

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A Noção de Fato Psíquico

Robert Blanché 45

condicionam umas as outras; de sorte que, o pensamento automático, em lugar de

opor-se radicalmente ao pensamento lógico, deveria poder, de algum modo, reduzir-se

a ele.

Mas, se se duvidasse ainda da impossibilidade de tratar as idéias como

fenômenos mentais, achar-se ia, entretanto, uma razão para rejeitar a teoria que

superpõe a atividade do juízo ao desenrolar automático das idéias logo que se notasse

que esta hipótese nos leva, no fim das contas, de volta à primeira, já examinada, e

segundo a qual a intervenção da atenção suspenderia o automatismo mental e

substituiria, no curso de nossas idéias, a legislação da natureza pela legislação da

razão. A ordem de sucessão de nossas idéias, diz-se, sendo independente das relações

que a reflexão pode, depois, estabelecer entre elas, é inteiramente determinada por um

mecanismo, mental, ou cerebral; mesmo nos momentos de alta tensão intelectual, a

reflexão em nada muda o desenrolar das idéias: ela se limita a escolher, entre as que

lhe oferece o mecanismo, as que julga pertinentes. Mas, isto não é dizer, precisamente,

que a reflexão muda alguma coisa no desenrolar das idéias? Se ela escolhe, se ela

retém certas idéias, ela transtorna a ordem de aparição das idéias seguintes. Assim,

escolhendo como exemplo, para fazer sobre ela incidir minha crítica, esta concepção

das relações entre o automatismo e a reflexão, eu altero, seguramente, o curso ulterior

de meus pensamentos: objeções me ocorreram, que jamais me ocorreriam, não tivesse

eu retido esta hipótese para examiná-la. Em verdade, caso a reflexão em nada

modificasse o desenrolar dos pensamentos, seria inútil dar-se o trabalho de refletir. E

se ela de fato o modifica, deveremos, então, ou admitir que o mecanismo natural que

rege a aparição das idéias pode ser suspenso, e recairemos, assim, nas dificuldades da

primeira hipótese, ou convir que não há pensamento automático, e que o curso do

pensamento anárquico requer o mesmo gênero de explicação que o do pensamento

reflexivo.

A distinção entre pensamento automático e pensamento reflexivo, designando

uma diferença de natureza, por corrente que seja, carece, então, de todo fundamento.

Sem dúvida, as idéias não se desenrolam do mesmo modo no distraído que deixa

vagabundear seu pensamento e no matemático, absorto numa determinada pesquisa, e

será preciso dar conta da diferença. Mas, ela não pode ser tão profunda quanto a que

separa sucessões empíricas de fenômenos de sucessões inteligíveis de conceitos, pois

a coexistência no espírito de duas ordens tão heterogêneas seria inconcebível. A

consequência logo aparece. Se não é possível admitir uma dualidade fundamental no

pensamento, e se, por outro lado, as mais altas operações intelectuais restam estranhas

ao plano da existência objetiva constituída pela armadura das leis naturais, escapando,

por isso mesmo, a uma “Física” do espírito, a mesma coisa deverá, então, ser dita das

operações inferiores da inteligência: nenhuma sucessão de idéias pode ser tratada

como um simples desenrolar de “fenômenos mentais”, comandado por um

automatismo mental.

Resta mostrar, com mais precisão, que, inserindo-as num determinismo mental,

a Psicologia clássica fracassa, necessariamente, em seus esforços para explicar as mais

humildes operações intelectuais, e que só se pode, ao contrário, esperar dar conta

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A Noção de Fato Psíquico

Robert Blanché 46

delas renunciando a decalcar sua explicação das explicações científicas dos fenômenos

físicos e buscando o princípio de sua inteligibilidade na própria natureza do

pensamento. Como o tipo dessas manifestações inferiores da inteligência nos é

fornecido pela chamada associação de idéias, é a associação de idéias que será preciso

agora examinar. Mas, a questão da associação está em conexão estreita com a da

memória, o laço associativo sendo em geral invocado para explicar o retorno das

lembranças à mente. Por outro lado, o problema da memória nos traz uma excelente

ilustração das dificuldades nas quais nos embaraçamos quando seguimos o caminho do

realismo psicológico. Assim, retomaremos esse problema em seu conjunto, para aí

reencontrar, em seu devido lugar, a questão do retorno automático das idéias.

3. A Memória

O realismo psicológico considera a lembrança como uma existência psíquica,

submetida, como fenômeno mental, a um determinismo natural. A própria definição

que habitualmente se dá da memória manifesta já esta concepção: o poder de fazer

reviver um estado mental passado, reconhecendo-o como passado.

A lembrança é, então, essencialmente a reprodução, apercebida como tal, de um

evento psíquico. É ainda a mesma concepção que implica a distinção tradicional das

quatro operações da memória. A lembrança é certa coisa que, vista uma primeira vez

pela mente, reapareceria após uma ausência mais ou menos longa, sendo então

reconhecida e relacionada a certo momento do passado. Não se exageraria muito se se

dissesse que após ter reduzido a lembrança a uma imagem revivescente, a Psicologia

clássica se representa esta imagem mental à imitação de uma fotografia que primeiro

contemplamos, depois conservamos na gaveta, para ir reencontrá-la mais tarde,

reconhecendo-a e sabendo desde quando a possuímos9. Quando se tenta constituir uma

“Física” do espírito e se toma a lembrança como um dos objetos desta ciência, é

preciso tomá-la como nada mais do que uma coisa mental que deverá poder ser

explicada pelo jogo de certas leis naturais. Tal concepção solicita, desde logo uma

primeira reserva. As quatro funções atribuídas à memória ― conservar, lembrar,

reconhecer e localizar a lembrança ― não apresentam qualquer homogeneidade.

Deveremos reparti-las em dois grupos, um dos quais vai já escapar à ciência dos fatos

mentais. Pois, se a conservação e a lembrança podem ser concebidas como fenômenos

naturais, não ocorre, seguramente, o mesmo com o reconhecimento e a localização,

que são, evidentemente, operações intelectuais. Reconhecer e localizar (situar num

momento do tempo) é afirmar, é julgar. Assim, não espanta que o realismo psicológico

fracasse diante desses dois últimos problemas. Se restamos, com a ciência positiva, no

plano da existência, com as lembranças como eventos psíquicos, jamais poderemos

explicar que elas sejam reconhecidas nem, com mais forte razão, localizadas. Um

evento passado, uma vez que passou, desapareceu; só os eventos do presente estão

presentes. Sem dúvida, pode ocorrer que certos eventos se repitam, que o evento

presente reproduza o evento passado. Mas, uma vez que o evento passado passou,

9 Cf. James, ibid., p. 379: “Um homem que busca uma lembrança em sua memória assemelha-se a

um homem que busca um objeto perdido em sua casa”.

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A Noção de Fato Psíquico

Robert Blanché 47

como compará-lo com o evento presente para afirmar que eles se assemelham? Pouco

importa que duas coisas se assemelhem, jamais nos daremos conta da semelhança se

uma delas permanece absolutamente invisível. Compreender-se-ia, ainda, que eu possa

reconhecer m objeto já visto comparando-o com a lembrança que guardei dele, mas

não se compreende de modo nenhum como a lembrança seria, por sua vez,

reconhecida. Com que, com efeito, a compararia eu? Não com a percepção passada,

uma vez que ela não é mais presente, passou; nem com o traço que ela deixou em meu

espírito, uma vez que este traço nada mais é do que a própria lembrança. Enfim, se a

lembrança não passa de um fenômeno de revivescência, se se reduz à reprodução atual

de um fato mental passado, ela nada mais será do que um fato mental presente, sem

nada que lhe confira sobre os outros fatos mentais presentes o privilégio de ser uma

lembrança. A lembrança, se dela se quer fazer uma realidade mental, aparece, então,

como um verdadeiro monstro, devendo ser ao mesmo tempo presente (uma vez que se

trata de um dado atual) e passada (uma vez que é de ser reconhecida como passada

que ela tira sua natureza de lembrança). Eis porque o problema do reconhecimento,

pelo qual o estado mental presente seria relacionado ao passado, é uma das pedras no

caminho da Psicologia clássica. A verdade é que a impossibilidade de tratar os atos

intelectuais como “dados mentais” leva a um primeiro deslocamento na teoria

psicológica da memória: é preciso convir que, na operação total da memória, se

sucedem duas fases bem distintas, a primeira delas apenas, comportando conservação

e lembrança, se passaria sob a legislação da natureza e diria respeito às aventuras de

certa realidade.

Mas, esta primeira limitação é ainda insuficiente. Não somente a metade das

operações mnemônicas escapa à competência de uma Física do espírito, mas também a

redução da lembrança a um dado mental puro e simples dificilmente permite

compreender como ela se conserva e dificilmente permite achar as leis naturais de sua

evocação.

Consideremos primeiramente a conservação. O realismo tem apenas duas

maneiras de concebê-la. (1) Ele poderá atribuir à lembrança, realidade psíquica, uma

conservação de natureza igualmente psíquica. Dirá então que ela subsiste em estado

inconsciente. Solução cômoda, mas cômoda demais, pois é claro que ela é puramente

verbal; e mesmo a dificuldade de conceber um modo de conservação para uma coisa

mental convidaria, por si só, a pôr em dúvida o postulado fundamental do realismo

psicológico. (2) Ele dirá que o que se conserva não é a realidade mental, a lembrança,

são as condições fisiológicas de sua reaparição. Mas, esta nova hipótese comporta

duas interpretações. Se se pretende com ela explicar o que se passa na mente, recai-se

nas dificuldades das teorias da interação psico-física, seja que se queira abrir a rede do

determinismo biológico para introduzir, como efeitos de fenômenos cerebrais, certos

fenômenos psíquicos, seja que se reduza os fenômenos mentais a simples

epifenômenos. Uma teoria fisiológica da memória só será então legítima ser ela

sustentar que não se pode estudar cientificamente a memória senão negligenciando o

aspecto mental da lembrança para voltar-se na direção dos únicos fatos suscetíveis de

cair sob a experiência objetiva; mas nesse caso, rejeita-se como estranha à ciência a

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A Noção de Fato Psíquico

Robert Blanché 48

concepção psicológica da lembrança. Assim, o realismo psicológico, se ele obriga a

conceber a lembrança como uma realidade mental que se conservou, torna ininteligível

o modo desta conservação.

O psicólogo dirá talvez que, no fim das contas, ele pode desinteressar-se deste

problema, que ele entende por conservação da lembrança simplesmente a possibilidade

de recordá-la, e que assim basta-lhe pesquisar as condições de sua evocação. Seja.

Quais são, então, para ele, essas condições? O dualismo psico-físico permite invocar

duas espécies de condições: fisiológicas ou psicológicas. Se se apela para condições

fisiológicas, cai-se no mesmo dilema de há pouco. São então leis propriamente

psicológicas que seria preciso poder enunciar, e se pensará naturalmente na associação

mecânica das representações. Ora, não é mais necessário criticar teorias que

pretendam dar conta do retorno à mente de um estado passado mediante a invocação

do laço associativo que o une ao estado atual, a força desse laço sendo função da

vivacidade, da frequência, da recência, etc., das associações. Entretanto, os psicólogos

não se decidem abandonar uma concepção deste gênero. É que ela é a única

compatível com uma Psicologia concebida como ciência natural dos fatos mentais e de

suas “leis”. Assim, conservam geralmente as “leis” da associação, corrigindo apenas

sua reconhecida insuficiência pelo acréscimo de uma nova “lei”, a do interesse: as

preocupações atuais do espírito tornam-se um dos fatores da evocação das idéias, e

mesmo o fator preponderante, uma vez que é ele que opera a escolha entre todas as

associações. Mas, como não ver que se superpõe à antiga explicação uma nova

explicação totalmente heterogênea, com a qual abandona-se a atitude do cientista?

Pois a pretensa lei do interesse é completamente estranha à legislação da natureza. Em

lugar de explicar a aparição de uma idéia, considerada como fenômeno mental, pela

necessidade natural que a une a outros fenômenos, explicam-na pelas relações lógicas

e pelas conveniências racionais que ela apresenta com o sistema atual de idéias.

Substitui-se a explicação de um fato segundo a ordem da existência pela explicação de

um pensamento segundo a ordem da verdade. Assim, as respostas que os psicólogos

são obrigados a dar ao problema da evocação envolvem uma confissão de impotência

de resolvê-lo e mesmo de pô-lo nos termos do realismo psicológico, uma vez que não

podem pô-lo a não ser cessando, seja de falar duma evocação de idéias, seja de

considerar esta evocação como regida por leis naturais. Ou, com efeito, pô-lo-ão

como um problema científico: as condições materiais da reprodução de certos atos,

entre os quais poderão naturalmente figurar atos verbais, é, então, o que será estudado;

a memória passando a meros hábitos corporais, as leis psicológicas, a casos

particulares de leis fisiológicas extremamente gerais, e não estarão mais em questão

estados mentais. Ou, é à lembrança, na medida em que manifestação da atividade

mental, que o psicólogo se aplicará, e nesse caso será substituída a consideração da

existência pela consideração do pensamento, a consideração de fenômenos naturais

com suas relações de causa e efeito, pela consideração das idéias com suas relações de

princípio e consequência.

Esta nota nos leva a reconhecer, na teoria psicológica da memória, uma terceira

lacuna, que nos ajudará a compreender as precedentes. A Psicologia clássica fala

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A Noção de Fato Psíquico

Robert Blanché 49

sempre como se a lembrança nada mais fosse do que uma imagem revivescente, o que

testemunham os exemplos geralmente citados, o nome de lembrança-imagem

frequentemente dado à lembrança e, enfim, a curiosa controvérsia sobre a memória

afetiva, que não se conseguia conceber, para negar ou para afirmar sua existência,

senão como um poder de fazer reviver “imagens afetivas”. Ora, esta assimilação da

lembrança à revivescência de uma imagem é uma visão a priori comandada pelo

postulado realista. E se é fácil confirmá-la invocando numerosos exemplos, esses

mesmos exemplos poderiam voltar-se contra a teoria que deveriam de ilustrar.

Suponhamos, com efeito, que a evocação de lembranças seja uma operação intelectual

e não um fenômeno mecânico: deverá ocorrer, então, que, quando se tentar evocar

artificialmente lembranças, a busca será guiada pela idéia que se terá feito previamente

da lembrança-tipo, de sorte que as observações assim provocadas confirmariam

sempre a teoria preconcebida da memória. Para evitar toda parcialidade, seria preciso,

então, estudar a memória nos momentos em que, nos afazeres da vida, faz-se

realmente apelo a ela, ou mesmo, o que será mais fácil de notar, nos momentos em que

se constata uma de suas falhas. Facilmente, então, nos daremos conta de que a

lembrança que escapa nunca é uma imagem concreta que em vão se tenta fazer

reviver: o esquecimento é muito menos uma ausência do que uma ignorância.

Esqueci, por exemplo, a data de um encontro, a missão da qual me encarregaram, uma

teoria científica, filosófica ou política, as regras do jogo de xadrez, o enredo de um

romance lido no ano passado, se respondi a uma carta, em que época fiz certa viagem,

qual o editor do livro de que tenho necessidade. Em todos esses casos, lembrar quer

dizer saber. O que se chama a evocação de uma lembrança não consiste de modo

nenhum na reprodução de um estado mental passado, mas numa afirmação atual em

conformidade com uma afirmação feita outrora. A lembrança-tipo nos aparece sob

traços bem diferentes dos que lhe empresta a Psicologia clássica: ela não é a

revivescência de uma imagem, mas o conhecimento de uma verdade.

Este defeito nos dá a chave das dificuldades com as quais se choca a teoria

psicológica da memória. O realismo psicológico é inevitavelmente levado a pôr a

imagem no primeiro plano da vida mental. Pois a atividade mental reduzindo-se, para

ele, a um desenrolar de fenômenos, a um desfilar de dados, como só há dados

sensíveis e o pensamento, entretanto, ultrapassa a sensação presente, será preciso

inventar um sensível de segunda zona, um dado que não seja físico, mas

exclusivamente mental. Assim, a realidade mental por excelência será a imagem,

concebida como algo análogo a um desenho cujas cores e cujos traços tivessem sido

empalidecidos e atenuados pelo tempo. A memória será, precisamente, esta

conservação psicológica do sensível, a palavra conservação sendo tomada aqui no

sentido realista