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Revista da Associação Mineira de Direito e Economia 114 Boa-fé objetiva como fonte de obrigações secundárias decorrentes de normas sociais Edgar Gastón Jacobs Flores Filho 1 Leonam Machado de Souza 2 Resumo: A Escola de Chicago propôs uma nova conceituação das normas sociais, fato que permite fazer uma ligação entre elas e a lei. Sendo assim, esse artigo pretende observar a relação das normas sociais com a boa-fé objetiva na conduta das partes contratantes ao longo do cumprimento dos contratos. Para tanto, será utilizado o conceito de obrigação como processo. Além disso, serão analisadas as obrigações secundárias atreladas à obrigação principal, bem como a relação daquelas com as normas sociais. Palavras-Chave: Boa-fé objetiva – normas sociais – obrigações secundárias – deveres anexos Abstract: The Chicago School gives us an other concept of social norms, which let us make a link between norms and law. So it aims to observe the relationship of norms with the good faith object concept. To do this, the concept of obligation as process will be used and the relationship between the seconds obligations and social norms will be analyzed. Keywords: good faith object – social norms - seconds obligations duties attachments 1 Professor de Direito Privado nos cursos de graduação da UFOP e PUCMINAS. Mestre em Direito Econômico pela UFMG e Doutor em Direito Privado pela PUCMINAS. 2 Graduado pela faculdade de Direito da Universidade Federal de Ouro Preto. Advogado. Pós-graduando em Direito pela Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Mestrando em Direito pela UERJ, na linha de pesquisa “Empresa, Trabalho e Propriedade Intelectual”.

Boa-f objetiva como fonte de obriga es secund rias

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Page 1: Boa-f objetiva como fonte de obriga es secund rias

Revista da Associação Mineira de Direito e Economia

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Boa-fé objetiva como fonte de obrigações secundárias decorrentes de normas sociais

Edgar Gastón Jacobs Flores Filho 1

Leonam Machado de Souza 2

Resumo:

A Escola de Chicago propôs uma nova conceituação das normas sociais, fato que permite fazer uma ligação entre elas e a lei. Sendo assim, esse artigo pretende observar a relação das normas sociais com a boa-fé objetiva na conduta das partes contratantes ao longo do cumprimento dos contratos. Para tanto, será utilizado o conceito de obrigação como processo. Além disso, serão analisadas as obrigações secundárias atreladas à obrigação principal, bem como a relação daquelas com as normas sociais.

Palavras-Chave:

Boa-fé objetiva – normas sociais – obrigações secundárias – deveres anexos

Abstract:

The Chicago School gives us an other concept of social norms, which let us make a link between norms and law. So it aims to observe the relationship of norms with the good faith object concept. To do this, the concept of obligation as process will be used and the relationship between the seconds obligations and social norms will be analyzed.

Keywords:

good faith object – social norms - seconds obligations – duties attachments

1 Professor de Direito Privado nos cursos de graduação da UFOP e PUCMINAS. Mestre em Direito Econômico pela UFMG e Doutor em Direito Privado pela PUCMINAS. 2 Graduado pela faculdade de Direito da Universidade Federal de Ouro Preto. Advogado. Pós-graduando em Direito pela Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Mestrando em Direito pela UERJ, na linha de pesquisa “Empresa, Trabalho e Propriedade Intelectual”.

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Introdução:

urante o liberalismo havia a crença numa vontade livre, que, ao ser

disciplinada nos limites da lei, gerava atos e negócios jurídicos válidos.

Mas um olhar ético em face do Direito demonstra que a manifestação da

vontade a partir do Estado Social passou a ser limitada por certos princípios, dentre

eles está o princípio da boa-fé objetiva.

Em virtude do liberalismo, que impregnou o Código Civil de 1916, os contratos

(manifestação de vontade solidificada num instrumento) são ainda hoje pouco

permeáveis a discussões com base em princípios. No entanto, o Código Civil de 2002,

por ter recepcionado a boa-fé objetiva como cláusula geral, aponta para a

possibilidade de superação dessa visão. Pois, apesar da pouca permeabilidade dos

contratos aos princípios, a boa-fé objetiva a cada dia é mais observada no caso

concreto, fato que permite aos juízes decidirem de acordo com os anseios próprios de

uma sociedade constituída por um Estado Democrático de Direito. Esses anseios

representam as normas sociais, que, com fundamento na boa-fé objetiva, se

incorporaram ao direito. Dessa forma, pretende-se analisar a influência das normas

sociais sobre a boa-fé objetiva.

A boa-fé objetiva se inseriu no Direito Brasileiro a partir da década de 70,

embora o instituto remonte ao Direito Romano. Desse modo Clovis Bevilaqua afirma:

Pothier bebeu, no direito romano, os princípios fundamentais da

hermenêutica dos contratos e, por intermédio do Código Civil

D

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francês, arts. 1.156 e seguintes, fê-los ecoar nas legislações que

tomaram por modelo aquele corpo de leis. Essas regras se podem

(...) reduzir às seguintes: (...) 3º Na dúvida, que resistir às regras

estabelecidas precedentemente, e à penetração do espírito

esclarecido pelo bom senso e pela boa-fé, decidir-se-á em favor do

devedor. (BEVILAQUA, 1954, 155 p.)

Apesar da boa-fé objetiva ter se inserido no Direito Brasileiro nos anos 70, a

expressão boa-fé está presente no ordenamento jurídico brasileiro desde o Código

Comercial de 1850, no art. 131, I. Contudo, considera-se que o instituto foi positivado,

com o sentido que possui atualmente, somente com o CDC em 1990.

Classicamente eram quatro as fontes das obrigações: o contrato ou quase-

contrato, que abarcava as situações análogas a um contrato, as quais não geravam um

contrato em sentido estrito, mas que podiam perfeitamente criar obrigações entre as

partes, e o delito ou quase delito, que foi criado para abranger as situações que

podiam ser vistas como delito, mas não chegavam a constituir um delito

especificamente. Modernamente a maior parte da doutrina entende que são duas as

fontes das obrigações: a vontade e a lei. As obrigações decorrentes da vontade são

aquelas criadas entre os indivíduos, sem a interferência direta do Estado, enquanto as

provenientes da lei obrigam o indivíduo, por estar previsto no ordenamento uma

conduta que, se realizada, gerará uma obrigação.

Todavia, em face da importância da boa-fé objetiva para regulamentar as

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relações concretas, a doutrina e a jurisprudência contemporânea a inserem no campo

de fontes das obrigações. Sendo assim, pretende-se demonstrar nessa pesquisa de

que forma a boa-fé objetiva pode ser classificada como fonte de obrigações

secundárias decorrentes de normas sociais.

Para alcançar esse objetivo será traçado um panorama da boa-fé no Direito Pátrio,

após será feita uma distinção entre a boa-fé objetiva e a boa-fé subjetiva. Em seguida,

será realizado um breve estudo sobre as normas sociais, para que então possam ser

analisadas situações em que as normas sociais são incorporadas ao direito pelo

princípio da boa-fé objetiva.

1 A Boa-fé no Direito:

boa-fé objetiva estava prevista no Código Comercial de 1850 no seu art.

131, I. No entanto, ela não era interpretada tal como é a boa-fé objetiva

atual. Ademais, o sistema jurídico à época não permitia uma interpretação

ampla das normas. O conceito de boa-fé objetiva, na concepção atual, passou a ser

aplicado no Direito Pátrio na “década de 70, ainda que seu ingresso formal no

ordenamento positivo só tenha se dado em 1990, por meio do Código de Defesa do

Consumidor” (SCHREIBER, 2007, p. 85).

Posteriormente, a boa-fé objetiva foi recepcionada pelo Código Civil de 2002

como cláusula geral, logo com um significado amplo, e como norma cogente de

interesse público. Ao tratar da cláusula geral Franz Wieacker aduz:

A

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“a cláusula geral indeterminada, que tempera o rigor da justiça (...)

Hoje (...) [inunda] também o domínio da legislação extravagante de

Direito Privado (...) uma legislação deste tipo não apenas confere

novas atribuições ao juiz, mas força-o também a criação de uma

medida própria de valoração e à consideração da justiça do caso

concreto (WIEACKER, 2004, p. 626).”

Portanto, em virtude da recepção da boa-fé objetiva pelo Código Civil, o

contrato, que antes era baseado exclusivamente na vontade e na liberdade dos

contratantes, passa a desempenhar um papel também social. Desse modo, Silvio

Venosa afirma: “o presente código procura inserir o contrato como mais um elemento

de eficácia social, trazendo a idéia de que o contrato deve ser cumprido (...) em prol

(...) da sociedade” (VENOSA, 2005, p. 398).

Para que o contrato cumpra esse novo papel, inerente ao Estado Social e

previsto no Código Civil, “o princípio da boa-fé [deve estar] presente tanto na

formação, na conclusão e na execução [das obrigações], de modo que impregna de

moralidade a atividade negocial” (QUEIROZ JUNIOR, 2006, p. 355). Desse modo,

dispõe o art. 422 do CC: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão

do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”. Apesar de

não estar expresso no artigo que os princípios de probidade e boa-fé devam ser

observados durante a fase pré-negocial, “na tradição do direito brasileiro, pensamos

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estar compreendida na fase preliminar de um contrato a exigência de uma conduta

com base na boa-fé” (TADEU, 2005, p. 51).

Isso se deve ao fato de a boa-fé objetiva estar intimamente relacionada com a

confiança depositada na contraparte. Sendo assim, a conduta dessa durante as

tratativas deve ser reflexo do comportamento que se espera dos homens bons (tipos

bons). Portanto, mesmo que não haja previsão legal, a conduta do indivíduo deve

corresponder aos anseios da sociedade. Caso o indivíduo haja de modo diverso do que

é esperado, a sua conduta gerará desaprovação social, fato que lhe trará um custo

social, além de uma indenização arbitrada pelo juiz em favor da parte lesada.

2 Boa-fé objetiva e boa-fé subjetiva:

sses conceitos possuem significados diversos, no entanto “a distinção entre

a boa-fé objetiva e a boa-fé subjetiva não suscita divergência” (TEPEDINO;

BARBOZA; MORAES, 2006, p. 16). A boa-fé subjetiva serve para proteger o

indivíduo que acredita, ao violar uma norma jurídica, que está agindo conforme o

direito. Ela se refere, portanto, ao estado psicológico da pessoa, enquanto a boa-fé

objetiva tutela a confiança de uma parte na outra, vinculadas por uma relação de

direito obrigacional.

Dessa relação decorre, dentre outras consequências, a exigência de que as

partes mantenham a lealdade recíproca durante todas as etapas do vínculo jurídico e

a vedação às vantagens desproporcionais, bem como a vedação a onerosidade

E

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excessiva no decorrer do cumprimento da obrigação. Esses deveres anexos

(obrigações secundárias) surgem em razão da obrigação principal e decorrem de

normas sociais. Eles só são possíveis de serem vislumbrados perante o caso concreto,

pois o conteúdo da cláusula geral de boa-fé objetiva “é preenchido por valores que

não estão afirmados na lei” (WALD, 2005, p. 192/193).

Em síntese, a boa-fé subjetiva se refere ao estado psicológico do indivíduo, que

atua sem o “animus” de lesar terceiros e acreditando que a conduta realizada é

correta perante o Direito. Já a boa-fé objetiva está relacionada às atitudes que se

esperam de um homem probo, vinculado, portanto, aos padrões éticos e morais

vigentes na sociedade. Logo atento às normas sociais e, consequentemente, à Teoria

da Estima e da Sinalização, propagadas pela nova Escola de Chicago.

3 Normas Sociais:

s normas sociais influenciam as leis, assim como estas sofrem influência

daquelas. Conforme o professor Dr. Edgar Gaston: Normas sociais eram

consideradas [pela primeira geração da Escola de Chicago] independentes

da lei e pareciam essencialmente inalteráveis em relação às suas influências

(MERCURO e MEDEMA apud FILHO, 2007, p.13). Nesse sentido eram vistas como

“forças fora da lei” que podem regular o comportamento melhor que as normas

legais. (FILHO, 2007, p.13).

No entanto, percebe-se que o comportamento humano é influenciado tanto

A

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pelas normas sociais quanto pela lei e, ainda, as normas e a lei sofrem influência uma

da outra. Assim segundo McAdams:

as normas são importantes para a análise da lei, pois: (1) às vezes as

normas controlam o comportamento individual afastando o controle

das leis; (2) às vezes as normas e as leis influenciam em conjunto

este comportamento; e (3) às vezes as normas e as leis se

influenciam reciprocamente (MCADAMS apud FILHO, 2007, p.14).

Conforme a Escola de Chicago duas teorias explicam as normas sociais: a Teoria

da Sinalização e a Teoria da Estima. Por esta a pessoa busca o reconhecimento do seu

comportamento perante os demais. Sendo assim toma as atitudes que garantem a sua

aprovação dentro do grupo. Ao contrário, se a pessoa resolve agir de forma que

gerará a desaprovação nos demais, esse comportamento lhe trará custos, “para que

estes custos criados pelas pessoas sejam ‘suficientemente grandes’, três condições,

baseadas no conceito acima, têm de ser cumpridas: (1) o consenso (2) o risco de

descoberta; e (3) a publicidade destas circunstâncias” (MCADAMS apud FILHO, 2007,

p.14).

Pela Teoria da Sinalização a pessoa busca com as suas condutas emitir sinais,

que para o receptor indicará que ela é cooperadora, ou, ao revés, não emitir sinais e

incutir na mente do receptor que se trata de um trapaceiro (COOTER, 2007, p.6). Pelos

sinais dos emissores negócios podem ser firmados ou, após celebrados, rescindidos, e,

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até mesmo, as partes podem deixar de firmar um acordo.

Deve-se ter em mente que os sinais emitidos terão um custo, esse custo pode

advir de um direito a uma indenização, bem como do custo social gerado pela conduta

do emitente trapaceiro. De acordo com Eric A Posner:

(...) imaginemos que os dois tipos de cidadãos (“emissores”) buscam

cooperar com os membros de um outro grupo (“receptores”).

Imaginemos também que os receptores não possam distinguir os

emissores pelo tipo. Se os receptores cooperarem com qualquer um

que se aproxime deles, às vezes vão ganhar e às vezes perder. Como

os cooperadores não trapaceiam no primeiro movimento do jogo de

cooperação, os receptores saberão identificá-los e os dois jogadores

poderão, então, cooperar indefinidamente e obter ganhos mútuos.

Os trapaceiros trapaceiam logo no primeiro movimento, assim, os

receptores deixarão de cooperar nos próximos movimentos, mas já

suportaram uma perda pontual (POSNER, 2008, p. 235)

O dever de cooperação entre os contratantes é fundamental durante todas as

fases da obrigação. Trata-se de uma norma social que se incorporou ao direito por

meio de uma obrigação secundária que tem como fundamento a boa-fé objetiva.

As normas sociais se referem à crença sobre o que as pessoas deveriam fazer e

as atitudes que elas realmente adotam. O que irá determinar a observação de uma

norma social será o custo que essa conduta irá trazer ao indivíduo.

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Para compreender o que são as normas sociais é preciso utilizar

modelos diferentes conforme o contexto, pois a expressão “norma

social” é usada na linguagem comum para se referir a muitas

espécies de comportamento. (...) uma classe importante de normas

sociais emerge de jogos de sinalização nos quais as pessoas escolhem

as ações que sinalizam lealdade a Estados e comunidades. Porque as

pessoas adotam um comportamento em particular apenas para

mostrar que são leais, este comportamento adquire a qualidade

peculiar de ser um símbolo vazio. As pessoas não sentem prazer

algum (ou sentem pouco prazer) em comportar-se daquela maneira,

mas o fazem em nome de sua reputação. Note-se que a norma social

é endógena ao modelo: ela descreve o comportamento que resulta

no equilíbrio. Não é que X puna Y por violar a norma social, ao

contrário, X (e muitos outros) evita Y porque o comportamento de Y

revela a X que, se associar a Y não servirá aos interesses de X.

Embora na linguagem usual digamos que o comportamento de Y

viola uma norma social, a punição é endógena, não é imposta por

uma força externa. (POSNER, 2008, 260-261 p.)

A boa-fé objetiva incorpora no campo contratual normas sociais, que, apesar

de implícitas no ordenamento - tendo em vista a recepção do princípio da boa-fé

objetiva -, só são observadas em razão do preço que as pessoas devem pagar caso

inflijam essas normas. Esse preço não é calculado tomando como base apenas a

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indenização que será arbitrada pelo juiz no caso de não observação de uma

determinada norma social, mas também conforme a reprovabilidade dessa conduta

perante a sociedade. Uma sociedade empresária que divulga os segredos de outra,

que ela veio saber em virtude das tratativas, macula a sua imagem perante as demais,

fato que dificultará a realização de negócios por outras sociedades empresárias com a

que violou essa norma social. Conforme Robert D. Cooter:

o ato de obedecer a uma norma freqüentemente impõe custos

diretos em dinheiro, perda de oportunidades, inconveniências ou

esforço (...) também pode evitar a imposição de uma sanção social

(...) O custo líquido de se obedecer a uma norma corresponde aos

custos diretos menos o benefício instrumental. (COOTER, 2007, 8 p.).

Na situação hipotética descrita acima a sanção social imposta à sociedade

empresária será a perda de oportunidades de negócios, em virtude da quebra da

confiança dessa sociedade empresária perante a sociedade em geral.

4 Boa-fé objetiva como fonte de obrigações secundárias decorrentes das normas sociais:

a boa-fé objetiva, que encontra fundamento jurídico no artigo 422, CC,

nascem uma série de obrigações secundárias. Essas decorrem de normas

sociais, as quais, uma vez descumpridas, geram um custo social. D

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Essas obrigações não são próprias da execução da obrigação, elas surgem do

entorno da celebração do contrato. Consistem, por exemplo, no dever de

transparência dos contratantes quanto ao objeto do contrato, de modo que se possa

contratar sem incorrer em erro quanto ao valor do objeto, bem como de prestar

esclarecimentos sobre as vantagens e desvantagens que podem ser auferidas daquele

objeto. Enfim, essas obrigações “podem ser desdobradas em mister de cuidado,

previdência, esclarecimento, aconselhamento, prestação de contas, colaboração,

cooperação, respeito ao patrimônio do álter, dever de sigilo, omissão e segredo”

(NERILO, 2007, p. 79).

Em síntese, essas obrigações consistem em um dever de conduta que “é

formado por uma série de ações e renúncias a que estão obrigados os contratantes

para que se harmonizem os interesses legítimos de ambos” (NERILO, 2007, p. 84).

Esses deveres de conduta existem porque o próprio instituto da obrigação permitiu

que eles fossem introduzidos em seu bojo, pois atualmente a obrigação é vista como

um processo, ela não se restringe ao vínculo entre credor e devedor, na qual este

ocupava uma relação de submissão aquele. Na obrigação como processo inclusive o

credor fica sujeito a deveres, o que diverge do conceito tradicional de obrigação, onde

ao credor só cabia direitos.

Na obrigação como processo, o vínculo surge antes da celebração do contrato

e permanece mesmo após o adimplemento da obrigação. Em todas essas etapas as

partes ficam obrigadas a cumprir uma série de deveres decorrentes da boa-fé

objetiva, logo ela é fonte dessas obrigações secundárias, que uma vez descumpridas,

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126

implicam em inadimplemento extracontratual ou contratual.

4.1 Venire contra factum proprium – Surrectio e Supressio

O venire contra factum proprium, a supressio e a surrectio encontram

fundamento jurídico na boa-fé objetiva e decorrem de normas sociais. Com o

surgimento dessas figuras “não se pretende (...) reduzir a cláusula geral de boa-fé a

um rol taxativo de comportamentos típicos, mas apenas fornecer alguns parâmetros

razoavelmente seguros para a inadmissão de comportamentos a princípio lícitos”

(SCHREIBER, 2007, p. 126).

Inicialmente, para entender essas três figuras, deve-se esclarecer o significado

de “factum proprium”. Este não pode estar resguardado pelo ordenamento jurídico e

apenas se torna vinculante à medida que nasce entre as partes a confiança da

realização dessa conduta. Sendo assim, o factum proprium deve ser uma conduta não-

vinculante, apartada do direito positivo, “mas que possa (...) repercutir na esfera

alheia, gerando legítima confiança” (SCHREIBER, 2007, p. 137). A confiança aqui

tutelada trata “de uma adesão ao sentido objetivamente extraído do factum

proprium. Somente na análise de cada caso concreto será possível verificar a

ocorrência ou não desta adesão ao comportamento inicial...” (SCHREIBER, 2007, p.

141)

Como exemplos de factum proprium, Schreiber enumera as seguintes

condutas: “o comportamento concreto de uma das partes à margem das disposições

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Revista da Associação Mineira de Direito e Economia

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contratuais, a sustentação de um certo sentido na interpretação de uma norma

qualquer, as negociações preliminares a um contrato” (SCHREIBER, 2007, 135 p.) e, ao

final, como norma geral, dispõe ser factum proprium “qualquer outra conduta que não

seja em si declarada vinculante pelo ordenamento jurídico positivo” (SCHREIBER,

2007, 135 p.). No momento em que a parte age em sentido diverso ao factum

proprium, a parte prejudicada deve exigir o cumprimento conforme o pactuado com

base no nemo potest venire contra factum proprium.

Assim, pela vedação do venire contra factum proprium, ou proibição de

comportamento contraditório, a boa-fé objetiva tutela a confiança que uma parte

depositou na outra. Esse comportamento não diz respeito somente aos termos do

contrato, mas ao comportamento das partes no decorrer do cumprimento dos

contratos. Sendo assim, a conduta delas é a melhor forma de interpretar o negócio

jurídico que celebraram. A tutela de um comportamento posterior contrário ao

anterior, seria uma violação ao princípio da boa-fé objetiva em decorrência da

violação a uma norma social.

Logo, a lealdade dos contratantes deve ser vista como uma obrigação

secundária que tem como fonte a boa-fé objetiva e que decorre de uma norma social.

Ao ser violada, o contratante estará sujeito a uma indenização imposta pelo direito e,

ao mesmo tempo, a conduta desse contratante gerará um custo social, que será

materializado pela perda de sua credibilidade perante a sociedade, o que poderá gerar

o boicote da parte desleal pelos demais membros da sociedade.

A supressio também está conectada à tutela da confiança e se diferencia do

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Revista da Associação Mineira de Direito e Economia

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venire contra factum proprium em apenas um aspecto: naquela a pessoa se omite a

exercer um direito que lhe competia, enquanto nesta a pessoa age de forma diversa

da que era esperada por outrem. De acordo com a Ministra Nancy Andrigui: “A

'suppressio', regra que se desdobra do princípio da boa-fé objetiva, reconhece a perda

da eficácia de um direito quando este longamente não é exercido ou observado”

(BRASIL, 2008a). Assim “também a Verwirkung [ou supressio] tem como núcleo uma

contradição a um factum proprium, [no entanto] o factum proprium se mostra, em tal

caso, como um comportamento omissivo” (SCHREIBER, 2007, p. 141).

Na venire contra factum proprium a ação não tem que ser necessariamente

em relação à contraparte, basta que a pessoa tome uma atitude diversa da que está

habituada a tomar. Se um fabricante que habitualmente estende a garantia de seus

produtos por mais um ano, sem cláusula contratual, decidi, repentinamente, não

efetuar a troca do produto de algum cliente, que tem menos de um ano de uso,

apresentará um comportamento contrário ao esperado. Nessa hipótese restará

configurado um caso típico de aplicação do venire contra factum proprium. Portanto,

caberá à parte lesada, com base no instituto, requerer que o fabricante efetue a troca

do produto.

Já a supressio restará caracterizada, por exemplo, na seguinte situação

hipotética: pessoa registra uma marca e não a utiliza. Em seguida, um terceiro

fabricante passa a produzir produtos com a marca que estava registrada e não era

utilizada. Após a marca se tornar conhecida, a pessoa que a registrou decide utilizá-la

efetivamente e defende a sua pretensão com o argumento de que a marca já tinha

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sido previamente registrada por ele. Nesse caso, a parte prejudicada deverá alegar a

supressio para resguardar os seus direitos sobre a marca, com base na omissão,

durante anos, daquele que efetuou o registro em exercer o seu direito. Nessa

hipótese, o julgador deverá levar em consideração o oportunismo daquele que deseja

utilizar a marca que já está no mercado – atingiu um grupo de consumidores - para

assegurar o direito daquele que não a registrou em utilizá-la. Viola norma social a

parte oportunista e sua conduta lhe trará um custo social.

O tempo necessário para restar caracterizada a supressio não está

determinado pela doutrina, devendo ser analisado no caso concreto. Em relação à

prescrição e decadência, recomenda-se, a princípio, “distinguir entre os casos de

prescrição, em que se admite alteração dos prazos, e o de decadência, em que o prazo

é considerado de ordem pública e, portanto, inalterável” (SCHREIBER, 2007, p. 191).

No entanto, como para todos os casos que possam surgir no direito pátrio existe um

prazo, em razão da cláusula geral prevista no art. 205, CC: “A prescrição ocorre em dez

(10) anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor”, o instituto não se aplicaria

no ordenamento jurídico, caso devesse ser observado o prazo legal. Sendo assim,

ainda que não tenha transcorrido o prazo legal, pode-se reconhecer a “ruptura de

uma expectativa legítima fundada no não exercício por período inferior a este mesmo

prazo” (SCHREIBER, 2007, p. 192). Portanto, nesses casos, a tutela da confiança

prevalecerá em detrimento da segurança jurídica, que motiva a fixação desses prazos

legais (SCHREIBER, 2007, p. 192).

A surrectio, por sua vez, consiste na concretização de um novo direito

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subjetivo, em razão de uma conduta diversa da pactuada ser exercida reiteradamente

pela parte, sem que a contraparte manifeste o seu desacordo com essa conduta.

Pode-se dizer que a surrectio é o oposto da supressio. Uma pode ocorrer sem a outra,

pois são figuras autônomas. Contudo, podem ocorrer simultaneamente, caso em que

uma será conseqüência da outra.

Desse modo a Ministra Laurita Vaz, em lide que se discutia a cláusula de

preço em contrato de aluguel, em decisão monocrática, entendeu por manter o

aluguel no valor que a locatária estava pagando, mesmo sendo diverso do ajustado no

contrato:

Fenômeno da 'surrectio' a garantir seja mantido o ajuste tacitamente

convencionado. A situação criada ao arrepio de cláusula contratual

livremente convencionada – pela qual a locadora aceita, por certo

lapso de tempo, aluguel a preço inferior àquele expressamente

ajustado cria, a luz do Direito Civil moderno, novo direito subjetivo, a

estabilizar situação de fato já consolidada, em prestígio ao princípio

da boa-fé contratual (BRASIL, 2008b).

No caso acima pode-se dizer que ocorreu a surrectio, pois a locatária efetuou

o pagamento a menor durante um certo lapso temporal sem qualquer impugnação da

locadora e a supressio, caracterizada pela omissão da locadora em discordar dos

pagamentos realizados a menor, o que acarretou na perda da eficácia do direito da

locadora de receber os aluguéis tal como fora expressamente ajustado anteriormente.

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131

A surrectio e a supressio também ocorrerão simultaneamente, por exemplo, se

foi estipulado o vencimento do contrato de aluguel para todo dia 10. No entanto

durante alguns meses o locatário pagou o aluguel no dia 20 e o locador não cobrou os

juros que tinham sido previamente estipulados. Nesse caso, diz-se que ocorreu a

supressio em relação ao locador, pois ele não poderá mais cobrar os juros advindos da

mora de 10 dias do locatário. Já em relação ao locatário ocorreu a surrectio,

consistente no direito de pagar o aluguel todo dia 20.

O venire contra factum proprium “trata-se (...) de um abuso do direito por

violação à boa-fé objetiva, nos termos do artigo 187 do Código Civil. (...) que dispensa

prova de culpa, requisito essencial ao ato ilícito stricto sensu (art. 186)” (SCHREIBER,

2007, p. 166/167). Portanto, do comportamento contraditório nasce para a parte

lesada o direito de receber indenização.

No que pese às críticas em relação a essas figuras, pois seriam uma ameaça à

segurança jurídica, já que não se saberia o limite de atuação da esfera jurídica, a qual

passa a abranger diversas condutas do indivíduo não previstas no Direito Positivo,

deve ser ressaltado o fato de que o Estado Democrático de Direito urge resguardar os

valores sociais previstos na Constituição. Assim a tutela dessas condutas, ao contrário

de representar ameaça à segurança jurídica, representa a concretização dos

fundamentos da ordem social característica do Estado Democrático de Direito.

Page 19: Boa-f objetiva como fonte de obriga es secund rias

Revista da Associação Mineira de Direito e Economia

132

4.2 Obrigações (deveres anexos) fontes da boa-fé objetiva e decorrentes de normas

sociais

Não existe um rol exaustivo das obrigações oriundas da boa-fé objetiva (FRITZ,

2007, p. 218) decorrentes das normas sociais. Deve-se analisar o caso concreto para

vislumbrar quais deveres precisam ser observados e, uma vez violados, ensejariam a

reparação dos danos pelo inadimplemento da obrigação e gerariam um custo social.

O dever de informar, por exemplo, que tem como fonte a boa-fé objetiva, é de

suma importância na fase negocial, pois a conclusão do negócio jurídico depende de

informações prestadas pela contraparte. Essa obrigatoriedade de fornecer as

informações decorre de normas sociais, em especial da atitude de cooperação que se

espera dos homens bons (tipos bons). É fato notório que algumas informações o

cidadão comum consegue obter sozinho, outras, no entanto, ele depende de

terceiros, ainda que para lhe prestar esclarecimentos (FRITZ, 2007, p. 226). A

obrigação de prestar informações “pode adquirir uma feição positiva ou negativa”

(FRITZ, 2007, p. 227). No primeiro caso a parte fornece informações inverídicas, no

segundo omite informações necessárias. Em ambos os casos, se a parte prejudicada

efetivou gastos que visassem à celebração do contrato, cabe indenização pelo

descumprimento da obrigação, com base na responsabilidade extracontratual.

O dever de sigilo, por outro lado, existe para que as informações confidenciais,

as quais a contraparte venha tomar conhecimento em razão das tratativas, não sejam

reveladas à terceiros, pois a informação revelada poderá repercutir negativamente na

Page 20: Boa-f objetiva como fonte de obriga es secund rias

Revista da Associação Mineira de Direito e Economia

133

esfera daquele que teve o segredo revelado. De acordo com Popp:

este dever persiste mesmo que sua divulgação não atinja a

reputação ou o bom nome da outra parte, pois deve-se considerá-lo

objetivamente. Não importam os motivos pelos quais o sigilo foi

quebrado, se para prejudicar a outra parte ou por benefício próprio.

Estes aspectos poderão influir no valor da indenização, mas não

serão pressupostos para a responsabilidade (POPP apud Fritz, 2007,

p. 232/233)

Portanto, basta a divulgação de informações por uma das partes, quaisquer

que sejam, cujo conhecimento se deu através das tratativas realizadas, para restar

caracterizada a quebra do dever de sigilo.

Para se ter uma idéia de quão específicos e imprevisíveis podem ser os deveres

anexos (obrigações secundárias), sendo, por isso, impossível de serem discriminados

um a um, deve ser ressaltado trecho do voto proferido em acórdão do STJ pela

Ministra Relatora Nancy Andrigui em que ela afirma: “Se facultou, ou ainda, consentiu

que o pagamento fosse realizado por depósito bancário não especificado, era sua

obrigação contratual anexa produzir os mecanismos necessários a aferição e

respectiva quitação dos pagamentos realizados” (BRASIL, 2004).

O caso concreto, a que se refere o voto da ministra, trata-se de violação de

uma obrigação anexa que culminou com a condenação do inadimplente ao

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Revista da Associação Mineira de Direito e Economia

134

pagamento de indenização a contraparte por danos morais, por ter determinado o

lançamento de protesto por um título devidamente pago. A parte condenada alegou

que não cabia indenização, pois o título tinha sido pago mediante depósito bancário

realizado em conta bancária movimentada nacionalmente, forma diversa da que tinha

sido pactuada. No entanto, como a conta foi fornecida pelo próprio credor, o STJ

entendeu que o dever de verificar a quitação do pagamento, obrigação anexa ao

contrato, a ele competia.

5 Decisões com fundamento na boa-fé objetiva (norma social) extraídas da jurisprudência contemporânea de Direito Privado:

Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em acórdão proferido por

unanimidade, na Apelação Cível nº 56605/2009, que teve como relator o

desembargador Rogério de Oliveira Souza, julgamento em 20 de outubro

de 2009, negou provimento à pretensão do autor à restituição de valores pagos ao

síndico pelo condomínio a título de pró-labore pelos serviços prestados na

administração do prédio. O autor alegou que na convenção do condomínio está

expresso que a função de síndico não será remunerada e que para alterá-la se exige

um quorum em assembléia que não foi alcançado na data em que foi fixado o pró-

labore ao síndico. No entanto, “o pagamento de pró-labore já vinha sendo feito há

anos pelo condomínio” (RIO DE JANEIRO, 2009), fato que levou o TJRJ a aplicar a

surrectio ao caso: “Diante da prática reiterada do ato, o não preenchimento do

quorum previsto na convenção para alterá-la não tem o condão de infirmar a

O

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Revista da Associação Mineira de Direito e Economia

135

assembléia impugnada” (RIO DE JANEIRO, 2009). No caso houve a aquisição de um

novo Direito Subjetivo em razão da prática reiterada do ato, pagamento de pró-labore

ao síndico, sem que os demais condôminos manifestassem o seu desacordo com a

conduta realizada diversamente do ajustado na convenção.

Além da surrectio, o TJRJ aplicou outra figura decorrente da boa-fé objetiva, o

tu quoque, que veda a prática de condutas diversas para a mesma situação. Nesse

caso, como o condomínio também remunerou a síndica anterior, sem que o autor

impugnasse os pagamentos feitos a ela, ele não poderia pleitear a restituição dos

valores recebidos pelo síndico posterior. O comportamento do autor viola, portanto, a

boa-fé objetiva, pois é contrário à conduta que se espera de um homem probo, atento

às regras morais e éticas da sociedade.

Uma decisão recente do TJRS se valeu das obrigações secundárias, decorrentes

da boa-fé objetiva, para prover parcialmente recurso inominado do Banco do Brasil. O

recurso, em questão, pleiteava a reformulação do decisum que declarou indevido os

débitos da autora e lhe concedeu indenização a título de danos morais.

O juízo ad quo declarou indevido o débito, pois entendeu que a parte ré violou

um dever anexo ao contrato: informar à autora, que manteve a conta no banco

desativada, que seriam cobradas as taxas até que ela requeresse o fechamento da

conta. O recurso foi julgado procedente no que tange à redução do valor da

indenização de R$4.000,00 (quatro mil reais) para R$1.500,00 (mil e quinhentos reais),

que ocorreu em virtude da inscrição da dívida em cadastros de inadimplentes (RIO

GRANDE DO SUL, 2009).

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Revista da Associação Mineira de Direito e Economia

136

O TJMG, por sua vez, aplicou o princípio do venire contra factum proprium para

determinar a matrícula na Faculdade de Medicina do Vale do Aço de estudante que foi

devidamente aprovada em exame de transferência. A FAMEVAÇO alegou que a aluna

não poderia ser matriculada porque a grade curricular da instituição da qual ela vinha

não correspondia à grade da FAMEVAÇO. No entanto, o nome da instituição anterior

que a aluna estudava não constava na lista de faculdades que a FAMEVAÇO não aceita

a transferência. Além disso, os documentos da estudante foram analisados pela

FAMEVAÇO no ato de inscrição para o exame.

Desse modo, “não poderia a autoridade coatora, depois da aprovação da

apelada, impedir a sua transferência pela simples inadequação da grade curricular das

matérias de primeiro período” (MINAS GERAIS, 2008). Assim, com base na boa-fé

objetiva, entendeu o TJMG: “não pode a instituição de ensino negar a matrícula de

candidato a transferência de curso, depois de permitir que este realize o exame

previsto, no qual logrou-se aprovado. Aplicação da teoria do venire contra factum

proprium” (MINAS GERAIS, 2008).

O factum proprium, nesse caso, é a conduta da instituição em permitir que a

estudante realizasse o exame de transferência. Esse fato criou na aluna a confiança de

que, aprovada no exame, poderia se matricular na Instituição. Sendo assim, após a

aprovação da aluna, a faculdade não poderia realizar uma conduta diversa da

objetivamente extraída do factum proprium.

O STJ também se valeu do princípio da boa-fé objetiva para negar declaração

de nulidade a título executivo que não continha a assinatura do vice-presidente

Page 24: Boa-f objetiva como fonte de obriga es secund rias

Revista da Associação Mineira de Direito e Economia

137

financeiro de clube de futebol em contrato de compra e venda dos direitos

federativos de atleta profissional de futebol, apesar de o estatuto do clube

expressamente determinar a assinatura do vice-presidente. O recorrente, mesmo

tendo dado causa a nulidade, pois foi ele que durante a contratação infringiu a regra

contida no estatuto do clube, pleiteou que fosse declarada a nulidade do título. Assim,

da ementa do acórdão do STJ depreende-se:

(...) a almejada declaração de nulidade do título exeqüendo está

nitidamente em descompasso com o proceder anterior do

recorrente (a ninguém é lícito venire contra factum proprium).

Interpretação que conferisse o desate pretendido pelo recorrente,

no sentido de que se declare a inexeqüibilidade do contrato

entabulado entre as partes, em razão de vício formal, afrontaria o

princípio da razoabilidade, assim como o da própria boa-fé objetiva,

que deve nortear tanto o ajuste, como o cumprimento dos negócios

jurídicos em geral. (BRASIL, 2007)

Dessa forma, mesmo o contrato estando eivado de vício formal, o STJ tutelou o

interesse do recorrido, por entender que a conduta do recorrente era contrária à boa-

fé objetiva, mais precisamente à figura do venire contra factum proprium. Além disso,

nessa hipótese, deve ser levado em consideração a teoria da aparência, pois o

recorrido acreditava que estava firmando o contrato com pessoa legitimada para o

ato.

Page 25: Boa-f objetiva como fonte de obriga es secund rias

Revista da Associação Mineira de Direito e Economia

138

6 Considerações Finais:

objetivo do artigo foi investigar como a boa-fé objetiva pode, por si,

modificar, extinguir ou criar novas obrigações a partir de uma obrigação

principal previamente constituída entre as partes e realizar uma ligação

entre ela e as normas sociais. Para, dessa forma, aplicar na boa-fé objetiva as teorias

de observação das normas sociais com base no custo social.

Ao conceituar a boa-fé objetiva e a boa-fé subjetiva percebeu-se que o

conceito de cada uma delas está bem delimitado na doutrina. Após a conceituação da

boa-fé objetiva passou-se a análise da boa-fé como fonte das obrigações e chegou-se

a conclusão que a boa-fé objetiva é fonte de inúmeras obrigações secundárias que

decorrem da obrigação principal e que ela também é fonte de obrigações que surgem

antes da formação de um vínculo jurídico entre as partes, mais especificamente, na

fase das tratativas; ela também é fonte de obrigações que surgem após o

adimplemento da obrigação. Além disso, após a análise da doutrina e jurisprudência,

pode-se afirmar que a boa-fé objetiva é fonte inclusive da obrigação principal, pois

nenhuma obrigação pode surgir no ordenamento jurídico sem que a boa-fé objetiva

seja observada. Isso evidencia que a boa-fé objetiva representa no Ordenamento

Jurídico Brasileiro as normas sociais, que devem ser observadas no Direito

Obrigacional e Contratual.

Também pode-se concluir que a cláusula geral da boa-fé objetiva, inserida no

Código Civil, permite o juiz, ao interpretar o contrato no caso concreto, modificar as

O

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Revista da Associação Mineira de Direito e Economia

139

obrigações. Quanto à possibilidade de extinguir a obrigação com base na boa-fé

objetiva, observou-se que o interesse do ordenamento jurídico é que o vínculo entre

as partes permaneça, portanto, só em último caso, o juiz extinguirá uma obrigação

com fundamento na boa-fé objetiva.

Ao analisar o instituto também observou-se que algumas figuras decorrentes

da boa-fé objetiva têm sido elencadas pela doutrina e aplicadas pela jurisprudência,

como o venire contra factum proprium, a surrectio e a supressio. Essa figuras surgiram

com fins de elucidar hipóteses de aplicação da boa-fé objetiva no caso concreto, elas

não restringem a aplicação da cláusula geral da boa-fé objetiva.

Conclui-se que o conceito de boa-fé objetiva, por ser fonte de todas as

obrigações, tem sido largamente utilizado para fundamentar decisões pelos juízes e

tribunais. Contudo, mesmo diante da ampla utilização da boa-fé objetiva para

fundamentar decisões judiciais, afirma-se que não se pode delimitar o seu conceito.

A boa-fé objetiva foi recepcionada como cláusula geral justamente para se

adequar ao caso concreto e para que as normas sociais pudessem ser aplicadas no

Direito, a fim de que decisões compatíveis com os anseios de uma sociedade

organizada com base no Estado Democrático de Direito pudessem ser tomadas.

Page 27: Boa-f objetiva como fonte de obriga es secund rias

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