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1 A FORTUNA, BOÉCIO E A TRADIÇÃO ANTIGA 1 Boécio abre o De Consolatione Philosophiae com um pequeno poema em que contrasta a alegria de antes de então, num passado feliz com a tristeza de agora, com as lágrimas que se vê constrangido a verter na sua situação actual. E nessas duas pequenas linhas carmina qui quodam studio florente peregi, etc. , Boécio desenha o cenário do teatro que passa a descrever. Esse cenário, o pano de fundo da consolação, não é somente o da tristeza ou aflição em que o autor se encontra agora, mas uma tristeza que sucede ao seu contrário. É certo que a transformação da alegria em tristeza poderia não ter mais efeito do que vincar e agravar a tristeza, mas não é exactamente isso que está em causa no texto; o que lá está, e aquilo que obrigará a filosofia a ter de consolar o autor, depende estruturalmente da passagem de uma coisa para o seu contrário. Não é, por isso, de estranhar que este pequeno poema de abertura termine com uma referência explícita à Fortuna e ao seu rosto. De facto, o núcleo do problema do prisioneiro que fala no de Consolatione é a Fortuna e o modo como se deve lidar com ela e de que forma deve ser interpretada, qual o seu significado. Trata-se, como é fácil de perceber, de um problema central, porque a fortuna corresponde ao humor das coisas e a um humor que, como diz Shakespeare a propósito de um dos seus personagens, "was nothing but mutation". A Fortuna, como se tentará indicar um pouco mais adiante, não tem nem bom nem mau humor, mas é exactamente como se disse o seu humor é variação. Todavia, antes de tentar levar a cabo um levantamento mais ou menos sumário e breve das teses que estão em causa no De Consolatione a propósito da Fortuna, parece necessário fazer algumas advertências prévias, tanto de carácter doutrinal como metodológico. Assim, é necessário ter em conta dois aspectos, principalmente. O primeiro é a notável falta de originalidade no tratamento da noção de Fortuna nos livros II e III do De Consolatione. De facto, Boécio limita-se, por um lado, a resumir e expor o património que o período clássico, sobretudo romano, acumulou sobre a Fortuna, e mesmo esse apenas limitado ao ponto de vista literário. Na verdade, o aspecto cultual ou religioso da Fortuna está praticamente ausente no texto de Boécio. Ora esta falta de 1 COURCELLE, P., La consolation de la Philosophie dans la tradition littéraire, Paris, Études Augustiniennes, 1967; FRAKES, J., The Fate of Fortune in the Early Middle Ages, Leiden, Brill, 1988. Pacuvius, Asclepiadius (De Fortuna), Horácio, Ode livro III, n. 29

Boécio e a Fortuna

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A FORTUNA, BOÉCIO E A TRADIÇÃO ANTIGA1

Boécio abre o De Consolatione Philosophiae com um pequeno poema em que

contrasta a alegria de antes – de então, num passado feliz – com a tristeza de agora, com

as lágrimas que se vê constrangido a verter na sua situação actual. E nessas duas

pequenas linhas – carmina qui quodam studio florente peregi, etc. –, Boécio desenha o

cenário do teatro que passa a descrever. Esse cenário, o pano de fundo da consolação,

não é somente o da tristeza ou aflição em que o autor se encontra agora, mas uma

tristeza que sucede ao seu contrário. É certo que a transformação da alegria em tristeza

poderia não ter mais efeito do que vincar e agravar a tristeza, mas não é exactamente

isso que está em causa no texto; o que lá está, e aquilo que obrigará a filosofia a ter de

consolar o autor, depende estruturalmente da passagem de uma coisa para o seu

contrário. Não é, por isso, de estranhar que este pequeno poema de abertura termine

com uma referência explícita à Fortuna e ao seu rosto. De facto, o núcleo do problema

do prisioneiro que fala no de Consolatione é a Fortuna e o modo como se deve lidar

com ela e de que forma deve ser interpretada, qual o seu significado. Trata-se, como é

fácil de perceber, de um problema central, porque a fortuna corresponde ao humor das

coisas e a um humor que, como diz Shakespeare a propósito de um dos seus

personagens, "was nothing but mutation". A Fortuna, como se tentará indicar um pouco

mais adiante, não tem nem bom nem mau humor, mas é exactamente como se disse – o

seu humor é variação.

Todavia, antes de tentar levar a cabo um levantamento mais ou menos sumário e

breve das teses que estão em causa no De Consolatione a propósito da Fortuna, parece

necessário fazer algumas advertências prévias, tanto de carácter doutrinal como

metodológico. Assim, é necessário ter em conta dois aspectos, principalmente. O

primeiro é a notável falta de originalidade no tratamento da noção de Fortuna nos livros

II e III do De Consolatione. De facto, Boécio limita-se, por um lado, a resumir e expor o

património que o período clássico, sobretudo romano, acumulou sobre a Fortuna, e

mesmo esse apenas limitado ao ponto de vista literário. Na verdade, o aspecto cultual ou

religioso da Fortuna está praticamente ausente no texto de Boécio. Ora esta falta de

1 COURCELLE, P., La consolation de la Philosophie dans la tradition littéraire, Paris, Études

Augustiniennes, 1967; FRAKES, J., The Fate of Fortune in the Early Middle Ages, Leiden, Brill, 1988.

Pacuvius, Asclepiadius (De Fortuna), Horácio, Ode livro III, n. 29

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originalidade é uma vantagem para o leitor, pois poupa-o, em grande parte, ao trabalho

de coligir os vários elementos dispersos sobre a Fortuna na literatura latina clássica,

pois é isso mesmo que Boécio faz. Assim, do ponto de vista metodológico, basta ter em

conta as indicações do De Consolatione, desde que se tenha em conta que todas elas

têm referências anteriores em Horácio ou Virgílio ou Ovídio, etc., referências que, por

outro lado, o comentário ao De Consolatione já inventariou com exaustão. E na medida

em que o que aqui mais interessa é reconhecer a relevância que a noção de Fortuna

possui do ponto vista filosófico – e não a sua inclusão na história das ideias – pode

dispensar-se o trabalho de levantamento das fontes.

O segundo aspecto diz respeito ao facto de aqui apenas interessar a tradição

clássica, antiga, da noção de Fortuna e esta consideração exige gastar algumas linhas.

No De Consolatione encontram-se várias tradições: uma, que abre o livro, como se

disse, é a da Fortuna no sentido antigo. Outra é a do género literário de "consolação",

também ela nada original. E a terceira é a do Cristianismo. Ora é evidente que a tradição

da Fortuna e a tradição do Cristianismo não se dão bem. Isso é claro. E não se dão bem

num âmbito muito mais radical do que aquele em que, por exemplo, a Fortuna contrasta

com o estoicismo. O Cristianismo não tem lugar para a Fortuna. Mas esse facto também

não altera aquilo a que a Fortuna faz referência – o caprichoso humor das coisas. Por

muito cristão que seja, um senador pode muito bem ficar surpreendido e incomodado

por acabar inopinadamente, sem mais nem menos, lançado para a masmorra e

condenado à morte. E o que acontecerá é que na sua perplexa mente ocorre um choque

de "tradições", por assim dizer, ou, mais correctamente, de determinações categoriais.

Ora o choque entre Fortuna e Cristianismo pode ser visto de vários modos. Um deles

tem que ver com o próprio Cristianismo. De facto, o poder da Fortuna pode muito bem

obrigar a recategorizar a compreensão da existência que o Cristianismo diz possuir, quer

dizer, pode obrigar a ter de pensar com mais cuidado e sem tanta pressa que tipo de

compreensão é essa e que é que se pode esperar dela. Esse é um aspecto interessante,

mas que não vai ser estudado aqui de forma nenhuma. O outro é o seu inverso: o

Cristianismo pode obrigar a recategorizar a Fortuna – e foi exactamente isso que Boécio

fez, também no De Consolatione, a partir do livro III até ao fim. Ora isso significa que

se, por um lado, a Fortuna, nos dois primeiros livros, corresponde à sua forma

tradicional clássica, ela sofre depois um tratamento de domesticação sob o poder do

Cristianismo. A Fortuna não desaparece, porque dificilmente poderia desaparecer, mas

passa a estar subordinada a um outro ponto de vista, que a localiza, lhe impõe limites e

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até, coisa curiosa, lhe dá sentido e uma função existencial edificante. Ora é este Fortuna

domesticada que passará para a tradição posterior, para toda a tradição medieval, onde

ela está permanentemente presente, sempre à espreita e sempre, uma e outra vez, presa e

manietada. A Fortuna aparecerá assim no Roman de la Rose, e continuamente, e no

Inferno da Divina Comédia, e no The Monks Tale, de Chaucer e em Christine de Pisan,

no Livre de la Mutation de la Fortune, de Boccaccio, no De Casibus Virorum

Illustrium, etc., etc. A literatura medieval parece sofrer continuamente o choque entre

ponto de vista cristão e a falta total de ponto de vista que corresponde à Fortuna e, por

isso, parece continuamente empenhada em conciliar essas duas categorias

contraditórias. O que significa que a Fortuna não desaparece, mas muda de rosto e de

figura, e já não é, de maneira nenhuma, a da tradição clássica. Passa a desempenhar um

papel importante na vida, mas está, como se disse, domesticada – diz-se perceber a que

é que corresponde e qual a sua função vital.

Deve, no entanto, ter-se em conta que esta tradição medieval da Fortuna, a

amansada, tem algumas excepções, de tal modo que o seu aspecto antigo pode

permanecer, sobretudo em pontos de vista mais selvagens e menos apaziguados com a

variação das coisas, como é o caso dos poemas goliardos, por exemplo. A Fortuna, nos

Carmina Burana, é ainda, em muitos aspectos, a antiga, a da tradição pagã, e isso é

assim porque os Carmina Burana pertencem a várias tradições, e a pagã é claramente

uma delas. De facto, em muitos dos poemas não parece haver nenhuma reconciliação

com a Fortuna, mas, pelo contrário, o poeta assume-se sob o seu poder rebelde.

Como se disse, aqui apenas interessa a visão antiga da Fortuna e deixa-se de lado

o tratamento que Boécio lhe infligiu e o seu legado. Por essa razão, as referências que se

fizerem deverão ser entendidas apenas como reflectindo a visão da tradição, sobretudo

latina, da Fortuna.

Posto isto, pode voltar-se ao poema de Boécio e começar a tentar perceber a que

é que corresponde, em traços gerais, a Fortuna. Na linha 20 do poema, lê-se: "Nunc quia

fallacem mutauit nubila uultum...". Nubila refere-se à Fortuna, o que significa que é

próprio dela ser nublada, encoberta, ou funesta. É algo embuçado ou sombrio, porque

dela se diz que possui um rosto falso, mentiroso, falaz. E trata-se, portanto, de algo que

tem que ver com a identificação de um rosto, de um aspecto das coisas. Ou melhor,

trata-se de tentar identificar que é que se passa connosco na vida, no sentido de tentar

saber que estilo tem a ocorrência das coisas, de que forma é que a vida se passa. Há,

evidentemente, um objectivo nessa identificação, que é o de sobreviver e aprender a

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lidar com essa personagem. Mas antes de mais nada – e por isso mesmo – é preciso

saber com que personagem nos temos de haver, quer dizer, a que tipo de

comportamento estamos ou não sujeitos e que é que podemos fazer relativamente a isso.

E isto significa muitas coisas e difíceis. De facto, se nós pensamos que a ocorrência das

coisas corresponde, como se disse, a um personagem e a um comportamento, é porque

pensamos que há uma qualquer forma de organização no que se passa e não podemos,

provavelmente, deixar de pensar assim. Porque é que é assim e até que ponto isso é

inevitável, são questões que não vão aqui ser examinadas. O que importa reconhecer

aqui é que a noção de Fortuna corresponde a um peculiar modo de organização da vida,

quer dizer, equivale – parece ser a melhor expressão – ao facto de percebermos a vida

como possuindo um certo estilo, de tal forma que a produção dos eventos e a sua

sucessão se exprime num modo subjectivo, por assim dizer, na medida em que, à

partida, nada impediria que fosse de outro modo, com outro estilo. É por isso que

falamos em caprichos da Fortuna, como se se tratasse de um ponto de vista infantil, que

tanto é assim como é, ou podia ser, de outro modo.

Por isso, o primeiro ponto a ter em conta nesta identificação da Fortuna tem que

ver com o facto de ela estar personificada. Isso pode parecer demasiado óbvio e

demasiado trivial para merecer comentário, dado que a personificação é um

procedimento retórico banal. De qualquer forma, não parecer ser só – ainda que no De

Consolatione o possa ser fundamentalmente – um procedimento retórico e isso é assim

porque a Fortuna era considerada como uma deusa e honrada como tal – com templos e

culto próprios – na Roma antiga. Mais ainda, pelos vistos, o panteão romano acabou por

colapsar numa única divindade universal, a Fortuna Panthea2. E se é certo, como atrás

se indicou, que Boécio omite todo este aspecto da Fortuna, ela tem toda a razão de ser.

Prova disso é que, por exemplo, no Roman de la Rose se criticam aqueles que

consideram a Fortuna como deusa. Ora é muito pouco provável que na Idade Média

houvesse templos dedicados à deusa Fortuna. Mas a Fortuna tem, todavia, todas as

condições para ser uma deusa do panteão pagão. A deificação da Fortuna pode derivar,

parece (se é assim ou não, não importa para aqui: basta a ideia), da noção de que nós

estamos sob um poder, agimos e movimentamo-nos sob ele. Quer dizer, não só as coisas

não ocorrem como as queremos forçar a ocorrer, mas ocorrem de uma certa maneira. E

isso tem relevância para nós, porque nós sofremos essa maneira. Não se trata, como

2 Frakes, 13

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certas apresentações da Fortuna por vezes levam a crer, de que a maneira das coisas é

uma espécie de Providência maléfica, como Thomas Hardy a representa, que conduz

tudo para o pior possível, ainda que, como veremos, é difícil não pensar assim em face

da fortuna. Independentemente do rosto desse poder, trata-se, todavia, disso mesmo, de

um poder, de algo com o qual temos de nos defrontar, de que nos distinguimos e que

nos domina, exactamente como se fosse um deus. Bem se aplicam aqui as palavras do

personagem de Aristófanes, que dizia acreditar nos deuses, porque o perseguiam. A

Fortuna é uma deusa porque domina o mundo, Fortuna Imperatrix Mundi, é ela que o

conduz e dispõe. Em qualquer dos casos, é algo perante o qual estamos e que exerce

sobre nós o seu poder sem nos consultar. Num certo sentido, é algo que não tem que ver

connosco, não no sentido em que não sofremos o seu poder, evidentemente, mas no

sentido em que exerce o seu poder sem olhar a quem, sem ter em conta aqueles sobre os

quais se abate. Tudo isto é óbvio, faz parte de toda a tradição literária antiga e pode

passar-se, assim, a desenhar o estilo desse poder, da Fortuna.

A deusa Fortuna tem um âmbito de acção, um âmbito que à primeira vista parece

extraordinariamente vasto, mas que, como se tentará indicar mais adiante, é muito mais

restrito do que aparenta. O seu campo de acção é o das res humanas, que se traduzirá à

letra por coisas humanas, os bens da vida humana, e, portanto, do seu oposto, dos seus

males. Este é um aspecto em que Boécio insiste com frequência, até do ponto de vista

da terminologia. Boécio repete que aquilo que está sob o poder da Fortuna são os bona e

tem o cuidado de os distinguir do summum bonum. Os bens, os dons, são, assim, algo

em si mesmo plural e de impossível recondução à unidade: a saúde, a riqueza, o bem-

estar, o poder, a fama, etc., etc. É claro que, se se puser de parte a inteligibilidade da

noção de summum bonum enquanto noção que se opõe e distingue dos bona, estes

passam a ocupar todo o campo da vida humana, todos os aspectos das coisas humanas,

e, se assim for, o campo da acção, e portanto o poder, da Fortuna aumenta

consideravelmente. De facto, é isso mesmo que normalmente acontece, tanto mais que

tendemos a pensar que o summum bonum deve consistir numa reunião mais ou menos

estável e consistente de bens e não de qualquer coisa que esteja para além deles, que

possa fazer abstracção deles, o que, a acontecer, tornaria duvidosa a razão pela qual

dizemos que são precisamente bens. Não é este, por agora, o problema que interessa

discutir, mas trata-se somente de vincar que o raio de alcance da Fortuna são as coisas

humanas, aquilo que nos acontece e em que nos encontramos existencialmente

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envolvidos e que temos por bom ou por mau para a consecução dos nossos fins. E aqui

há vários pontos a ter em consideração, uns mais estruturais do que outros.

O primeiro diz respeito ao facto de tendermos a pensar que a quase totalidade do

sentido do que se passa tem que ver com as coisas humanas. Isso é assim

provavelmente por várias razões e, algumas delas, boas. Talvez seja assim porque as

coisas humanas referidas – saúde, fama, profissão, etc. – nos serem mais evidentes, ou

nos parecerem existencialmente mais próximas do que nos ocupa em contraste com

outras determinações que fazem também parte do campo de sentido do nosso ponto de

vista. Quer dizer, há muitos aspectos do que chamamos sentido que damos pura e

simplesmente por pressupostos, que achamos normal estarem garantidos, e isso é assim,

talvez, precisamente porque não os reconhecemos como estando sob o poder da

Fortuna. Dito de outro modo, é provável que parte da importância que damos ao que

chamamos coisas humanas, e até a própria definição do seu âmbito, se deva ao facto de

dependerem da Fortuna, de tal forma que somos quase cegos para outros aspectos que

são tão ou mais essenciais, mas em que não reparamos precisamente porque obedecem a

outras regras que não as da Fortuna. Na verdade, se tudo aquilo que constitui sentido na

existência se constituísse ao modo da Fortuna, produzir-se-ia um caos tal que diminuiria

em muito, talvez, o que chamamos coisas humanas. E diz-se talvez, porque não

sabemos bem a que tipo de exposição de coisas isso poderia corresponder. Ou seja, a

restrição do campo de aplicação da Fortuna é, em última análise, uma bênção e não

saberíamos mesmo que seria o seu poder absoluto, uma espécie de Fortuna imperatrix

entis. E, como se disse, é porque o seu poder não é absoluto que tendemos a considerar

como óbvio o facto de haver determinações que lhe resistem e que damos por

pressupostas no modo como se dão e ocorrem. A tuto isto se fará alguma alusão mais

adiante, mas este problema merece, como se disse, alguma tentativa de elucidação e,

para isso, o melhor é, finalmente, dizer a que é que a noção de Fortuna corresponde. O

seu ponto de aplicação é o que ficou dito, o das coisas humanas, algumas mais

intrínsecas do que outras. E o primeiro ponto a ter em conta na relação que temos com

os bens da nossa vida foi também já indicado: a sua distribuição não tem a ver connosco

e o facto de sermos privados deles também não. A Fortuna é estruturalmente cega. Este

traço aproxima curiosamente a Fortuna da justiça, pois nenhuma delas olha a quem:

executa-se friamente sem ter em conta circunstâncias. Todavia, como é evidente, a

cegueira da Fortuna distingue-se claramente da da justiça pelo facto da cegueira da

Fortuna ser essencialmente estúpida, como já dizia Pacuvius, no século II a. C., que era

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tese comum entre os filósofos: "Fortunam insanam esse et caecam et brutam perhibent

philosophi". Quer dizer, a distribuição e privação dos bens não corresponde a

absolutamente nada, ao contrário do que se passa na justiça em que se dá o que é seu e

se retira o que não é seu, mas de outro. Pode haver problemas na noção de seu, na de

ius¸mas a noção é essencial para justiça, pois se desaparecesse, ela ficaria exactamente

igual à Fortuna. Quer dizer, na justiça há uma regra, pelo menos a ideia de uma regra.

Neste sentido, a cegueira da Fortuna é estrutural e a da Justiça não, porque esta é lúcida

para qualquer coisa, precisamente para a regra. A Fortuna é essencialmente insana e

estúpida. Esta lamentação é tão velha como a humanidade: lamentamo-nos de que os

males acontecem aos bons e de que os bens vão ter com os maus, de que gozem de

favores os idiotas e os que merecem sejam desprezados, etc. O costume. É certo que

esta lamentação é unidireccional (e este é um traço curioso da nossa compreensão da

Fortuna), pois não nos queixamos dos bens que cegamente recebemos, não os

recusamos, não os olhamos logo de lado e com desconfiança, não nos parecem

disparatados. Tendemos, pelo contrário, a pensar que esta cegueira já não corresponde à

Fortuna mas à justiça, o que é injusto para a Fortuna, pois é ela que dá os males e os

bens. De facto, à Fortuna corresponde todo o poder sobre as coisas humanas, e isso

inclui tanto os bens como os males e tanto uns como outros são distribuídos de modo

insano, cego e estúpido. Neste sentido, a concepção da Fortuna como dispensadora tanto

de males como de bens deve decorrer de Homero, naquele célebre passo da Ilíada em

que diz "dois são os jarros que foram depostos no chão de Zeus, jarros de dons: de um

deles, ele dá os males; do outro, as bênçãos. Aquele a quem Zeus que com o trovão se

deleita mistura a dádiva, esse homem encontra tanto o que é mau como o que é bom"3.

É certo que o sentido mais imediato do texto não é o da Fortuna, mas o facto de que os

males e os bens virem sempre juntos e que quem recebe uns recebe também os outros à

mistura, mas o texto é claro: são todos dons e, desse ponto de vista, não há privilégio de

uns sobre os outros. É certo que nós dizemos ter tido sorte quando nos chegam coisas

do jarro dos bens e azar quando saem do jarro dos males, mas em última análise sorte e

azar são, também em português, a mesma coisa, como quando dizemos lançar sortes ou

falamos em jogos de azar. Do ponto de vista do sentido, tanto o bom como o mau são

efeito da cegueira, porque em nenhum caso correspondem à justiça, o que significa que

temos tanto direito aos bens como aos males. Na verdade, nem se percebe muito bem de

3 Ilíada, Canto XXIV, 527 e ss.

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onde é que, na vida, nos viriam os direitos, o ter de receber o que, num sentido difícil de

discernir, é nosso.

A bruta estupidez da Fortuna corresponde, como se percebe, à sua total

arbitrariedade. Mas a arbitrariedade não é ainda o traço mais essencial da Fortuna. A

Fortuna poderia ser arbitrária mas, por exemplo, casmurra, quer dizer, o que dava ou

tirava fazia-o sem sentido, mas de um modo definitivo. Ora não é evidentemente isso

que acontece: a Fortuna é estúpida e agrava a sua insana estupidez (e agrava-a

decisivamente) com a sua inconstância. Na verdade, se fosse estável, por muito estúpida

que fosse, restaria ainda ao sujeito alguma margem de manobra na vida, pois

poderíamos estabelecer modos de organizar a nossa existência com o que temos, bom

ou mau. Mas não é assim: a Fortuna é volúvel. As imagens da instabilidade da Fortuna

são as mais comuns: ela é como a lua, sempre a mudar de figura, de crescente para

minguante e vice-versa, com cabelo à frente mas calva na nuca, bifrons como Janus,

mas com uma face prazenteira e agradável e outra feia e má, e não somente, como

Janus, com duas faces, etc. Tal como diz Boécio, possui um rosto falaz. A imagem mais

conhecida e repetida, talvez também a mais antiga, é, como se sabe, a da roda, que pode,

por vezes, ser representada como um globo, a simbolizar o mundo. Em qualquer dos

casos, as imagens têm todas o mesmo sentido: o que é dado pode ser tirado e o que foi

tirado pode voltar a ser dado, pelo menos num certo âmbito. A tese é clara, nas coisas

humanas impera a inconstância, a incerteza, a variação. E este é o núcleo da Fortuna.

Aquilo que é próprio dela, isto é, do regime das coisas da vida humana, não é ser boa ou

má, é ser volúvel e arbitrária nessa instabilidade. Em certo sentido, ela não é assim ou

de outra forma, mas algo que muda e varia sempre sem parar. E este é, por isso, o

significado da roda e o talvez motivo pelo qual foi a roda que mais estavelmente

representa a fortuna. É certo que nem sempre pensamos assim, quer dizer, pensamos

que a Fortuna é inconstante porque tira o que dá, mas isso é unilateralidade, como se

disse, porque se é certo que o rei pode perder a coroa e deixar de ser rei, é igualmente

certo não só que foi rei devido à Fortuna como que pode ser rei quem nunca pensou em

tal. Em si, a Fortuna é somente instável e mais nada: o que é deixa de ser e o que não é

passa a ser, numa rotação sem paragens. E se há paragens, também elas fazem parte da

roda, porque são tão ilusórias como qualquer outra dádiva. A roda nunca pára e quando

parece ter parado está tão a girar como quando parece rodar vertiginosamente, talvez

somente de um modo mais pérfido ou subtil. Ora a partir do momento em que nós

identificamos o que chamamos vida com o que ocorre no palco desenhado pelas coisas

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humanas, esta estrutura da Fortuna produz um juízo claro sobre o que se passa. A vida é

tida como um jogo, um puro jogo, e essa imagem aparece também com frequência,

como seria de esperar, associada à Fortuna, em Boécio e na tradição, tanto anterior

como posterior. Há que fazer, todavia, alguma restrição quanto à comparação da vida

como jogo e para isso pode ser útil recordar, de modo muito breve e sumário, alguns

aspectos referidos por Aristóteles. Tal como Aristóteles o descreve no último livro da

Ética a Nicómaco, o jogo corresponde, antes de mais, a uma actividade racional e isso é

assim porque a actividade que tem esse nome ocorre sob regras determinadas,

reconhecidas pelos participantes, e sem isso o jogo desapareceria. Não há, em princípio,

jogo sem regras, isto é, sem racionalidade. A haver, o jogo seria "injogável", pois não se

teria a mais pequena ideia sobre o modo de proceder, sobre o que esperar, sobre as

formas de interpretar as peças, o que levaria à perda de todo o interesse e ao tédio: não

se trataria de um jogo, mas de coisa nenhuma. Um jogo sem regras impediria o sujeito

de fazer uma jogada, que dizer, impedi-lo-ia de perder ou ganhar, ou, se estivesse de

fora, a apreciar o espectáculo, numa forma qualquer. A ser assim, o jogo seria

exactamente o oposto do que é: um divertimento e relaxamento da tensão existencial.

Ou seja, parte essencial do jogo deriva da sua racionalidade. É certo que a racionalidade

do jogo tem de ser desformalizada: há racionalidade porque a ocorrência está subsumida

sob regras e, nessa medida, há sentido no que ocorre, porque são as regras que doam

sentido aos acontecimentos. Há, porém, uma certa irracionalidade porque é possível que

o jogo não sirva propósito nenhum. Não tem de ser assim, como se sabe. O jogo pode

ter como propósito vencer e ser jogado nessa perspectiva. Nesse caso, há claramente um

fito, uma finalidade, ainda que não se perceba muito bem que significa vencer,

considerado como fito, para além de ser uma determinação de poder, quer dizer, não se

percebe muito bem que é que se adquire quando se vence, porque dá ideia que não se

adquire coisa nenhuma. Mas mesmo não sendo claro que tipo de aquisição acontece

quando se vence, o que é certo é que se pode jogar sem ser para vencer, sem qualquer

fito declarado, o que seria algo como um jogo livre, livre, não quanto às regras, mas

quanto ao propósito. O problema tornar-se-ia mais complexo. Por um lado, isso não

eliminaria, como se disse, a racionalidade da acção. Por outro, a ausência de propósito

tornaria difícil de perceber a que é que tal acção corresponderia. Em geral, ela parece

corresponder à suspensão da vida imediata, suspensão cujo sentido seria a desinstalação

da vida e a libertação daquilo que lhe corresponde, a saber, a tensão que está implicada

necessariamente no modo como nos desempenhamos em ordem a um propósito. É a

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isso que chamamos descanso ou divertimento, à suspensão momentânea do peso que a

vida exerce sobre nós quando queremos ir para qualquer sítio. E é por isso que o jogo

puro não deve ter um objectivo para além de si mesmo, porque isso produziria logo o

contrário do que se pretende: uma tensão existencial. O assunto, como se percebe, é

complexo e não pode ser analisado aqui. Importa apenas ter em mente que é por este

conjunto de razões que Aristóteles diz que seria muito estranho que o significado da

vida fosse o jogo. Como se sabe, no Livro X da Ética a Nicómaco Aristóteles leva a

cabo uma tentativa de desformalização do que seria a vida feliz, isto é, daquilo que seria

o fito próprio da existência humana. Trata-se de saber qual é a actividade que é própria

de nós e cuja execução adequada tornaria a nossa vida em algo pleno, num ente

constituído segundo a sua essência. E, como se sabe, Aristóteles é obrigado a

reconhecer, claramente a contra-gosto, que o jogo cumpre todas as determinações

formais próprias da vida feliz, de modo que poderia ser muito bem ser considerado o

telos da existência humana. De facto, trata-se de uma actividade racional que se exerce

de modo não instrumental, mas que possui um fim em si mesma, quer dizer, que se

realiza por ela própria. Esta forma cumpre-se na filosofia, mas também se cumpre no

jogo. Aristóteles apenas tenta averiguar se o jogo se exerce por si mesmo ou é ainda

uma actividade instrumental. Assim, por um lado, é claro que o jogo se faz por si

mesmo, quando apenas se pretende jogar, tal como com a contemplação das coisas dos

deuses. Por outro lado, Aristóteles afirma que seria muito estranho que existíssemos

para nos divertirmos, e isso deve querer significar que seria estranho que o sentido da

vida estivesse constituído numa forma de desinteresse por ela, ainda que, por outro lado,

seja também isso o que acontece na contemplação das coisas divinas. Parece, no

entanto, que o que Aristóteles quer dizer é que, apesar de cumprir todas as

determinações formais para ser o propósito da existência humana, seria estranho que o

jogo fosse o fito da vida porque, em última análise, não parece estar em condições de

constituir um modo de vida.

Estas breves considerações, que não importa aprofundar aqui, podem ajudar para

perceber melhor a gravidade do que está em causa na compreensão de que as coisas

humanas são um jogo sob o poder da Fortuna. A Fortuna é o jogo – lança os dados – e,

neste sentido, ele não tem propósito nenhum: trata-se de um puro lançar os dados. É um

jogo sem regras definidas para além de que continuamente se lançam os dados. A

tradição insiste fortemente no facto de a única propriedade estável da Fortuna ser a

instabilidade e mais nada. Por isso, ela pode ser representada sentada no meio da roda.

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A inconstância é constante e a única coisa estável nesta vida é a sua instabilidade. Neste

sentido, a Fortuna tem o rosto de não ter rosto nenhum, o que lhe dá uma extraordinária

definição, ainda que absolutamente formal. Ora isso significa que o jogo da vida é

totalmente irracional, não possui nenhum tipo de sentido, porque não se persegue nada,

nenhuma determinação. Nós não podemos deixar de identificar o jogo da Fortuna como

o da orca com a foca ou como o do gato com o rato, porque para nós há propósitos e há

coisas más e coisas boas, mas seria talvez mais correcto pensá-lo como o divertimento

do gato com o novelo de lá – coisa nenhuma –, com a agravante que aqui não há gato,

só há o novelo a ir de um lado para outro, a fazer-se e a desfazer-se sem nexo nem alvo.

Este tipo de acontecimento lúdico pode significar, pelo menos, duas coisas. A

primeira corresponde uma vez mais, a uma das imagens usadas para descrever os bens

da Fortuna: o facto de poderem ser dissolvidos. Na medida em que os bens,

precisamente aquilo que consideramos bens, são dados exactamente como podem ser

tirados – quer dizer, são bens de "tirar e pôr" –, nessa medida desses bens só se diz que

são nossos por catacrese, quer dizer, porque não temos outro termo para nos referirmos

à relação que têm connosco. Todos os bens das coisas humanas estão em nós como se

não estivessem, e é isso que significa dizer que nos podem ser tirados. Num sentido

mais rigoroso, podemos dizer que tais bens não nos podem ser tirados, pois só

metaforicamente é que nos foram dados. Dito de outro modo, o que chamamos

instabilidade das coisas humanas significa, no sentido próprio do termo, a natureza

acidental (e no sentido mais fraco que o termo pode receber) do que chamamos bens.

Daqui os estóicos tiraram as conclusões que facilmente se percebem: em sentido estrito

nenhum desses bens é próprio e, por isso, também num sentido rigoroso, é sequer um

bem. E, se se quiser saber que é, então, bem, a haver, a tarefa é fácil: basta descobrir que

é que não está sob o poder da Fortuna. De facto, todos os bens da Fortuna são solúveis

no tempo. Este carácter estruturalmente fugidio dos bens da Fortuna – e a

correspondente noção de bem próprio – levanta o problema de saber como é que se dá a

apropriação, quer dizer, que é e como se produz a aquisição do que quer que seja.

Trata-se, como se percebe, de um problema sério, pois a vida inclui uma petição de

aquisição. Não é aqui o local para discutir este assunto, mas percebe-se claramente que

a oposição entre Fortuna e propósito desformaliza-se, também, na oposição Fortuna e

aquisição.

O segundo aspecto prende-se de muito mais perto com o do propósito ou fito. Os

bens são o que está em jogo no jogo. Ora o jogo não possui nenhum tipo de regra ou

Page 12: Boécio e a Fortuna

12

racionalidade e não possui também nenhum propósito, pois não aproveita a ninguém,

quer dizer, pode eventualmente e por acaso aproveitar a alguém, mas, como jogo, não

aproveita ao sujeito que joga, à Fortuna. O jogo é, como se disse, completamente livre,

não se vislumbra nele nenhuma finalidade. Também aqui há vários aspectos a

considerar. O primeiro é que nós não conseguimos pensar o despropósito total e

absoluto do jogo, ou, o que é a mesma coisa, não conseguimos estar nisto, no meio do

que chamamos bens, sem pensar, sem tentar perceber. Se o conseguíssemos,

deixaríamos de ter os bens por bens e os males por males e não haveria nada. Haveria,

talvez, dor e prazer, mas não o que chamamos bem e mal. Ora não é isso que acontece,

por mais estóico que se seja. Também eles eram homens e se a Fortuna os obrigava a

considerar que os bens não deveriam ser considerados fins, nem por isso deixavam de os

considerar preferíveis: algo de bem deve haver naquilo que não é bem, pois de outro

modo não se perceberia porque é que deveriam ser preferidos aos seus contrários. Não

são só os cépticos que têm dificuldades em se despojarem do que é ser homem. Isto

significa que nós, por mais que reconheçamos que a vida sob o poder da Fortuna é um

jogo sem regras, uma roda que se limita a girar, tirando e pondo ao calha, apesar de tudo

pensamos isso. É por isso que Ovídio dizia que a Fortuna tem ódio à humanidade. E é

também por isso que nós nos opomos à Fortuna, lutamos com ela, resguardamo-nos

dela.

Esta luta contra a Fortuna pode ser vista de dois modos. Um deles é puramente

conceptual e, sendo fundamental, importa menos por agora. A Fortuna, sendo a

produção de acontecimentos em virtude de um puro jogo caótico, traz consigo um

problema de inteligibilidade total das coisas, quer dizer, opõe-se à própria estrutura da

causalidade. Este problema será considerado mais adiante. O segundo modo de

considerar a luta contra a Fortuna é o que ocorre no âmbito das coisas humanas. E aqui

é claro que nós lidamos com o jogo da Fortuna. Esta participação no jogo possui várias

formas. Uma delas é a recusa do jogo, a tentativa de não participação, forma que

corresponde à tese segundo a qual é possível resguardar-se da Fortuna por meio da

virtude. Mas a forma mais normal consiste mesmo na participação no jogo, e isso

implica a pressuposição, com pouco fundamento, de que é possível vislumbrar restos de

racionalidade na Fortuna. Há, a este respeito, teses bastante ingénuas, como a

tradicional de que a Fortuna ajuda os audazes, o que só pode querer significar que os

audazes aqui em causa são apenas aqueles a quem a Fortuna ajudou, que é uma tese

insignificante, como é óbvio. Mas, mesmo pondo de parte a audácia, o que é certo é que

Page 13: Boécio e a Fortuna

13

nós admitimos certa inteligibilidade nos acontecimentos, e isso é assim porque

prevemos, antecipamos, nos precavemos, por vezes pensamos até ter feito jogadas

decisivas e definitivas, etc., quer dizer, jogamos xadrez com a vida. Trata-se de um jogo

evidentemente cómico porque estamos a tentar impor regras àquilo que não as admite,

mas não conseguimos deixar de pensar, de tentar perceber que é que se passa, que

sentido tem esta ou aquela disposição de peças no tabuleiro e que é que nós podemos

esperar disso. E só por isso nos queixamos de que, na maior parte dos casos, a Fortuna

não tem fair play. Mas isto é, como se disse, cómico. Também por isso dizemos que a

Fortuna atraiçoa, que é má, pérfida, escarninha, etc. Trata-se de uma inevitável ilusão,

pois essa percepção do desenrolar das coisas deriva de nos parecer que ele ainda assim

tem de obedecer a regras e que não o está a fazer quando devia, quer dizer, que a

estrutura mediante a qual pensamos as coisas tem forma de dever ser. E isso é mesmo

inevitável, pois não estamos em condições de eliminar essa inclinação: há canones de

sentido de que não abdicamos, nem mesmo quando o queremos fazer. Mas em si mesma

a Fortuna não é coisa nenhuma, porque não tem propósito: as coisas giram, são e

deixam de ser, transformam-se no contrário, etc. Mais nada. Mas isso tem para nós

forma de mal, pela óbvia razão de que o arbitrário é a eliminação de qualquer tipo de

fim e o fim é a própria definição de bem, quando é o que se persegue. Mais ainda: nós

suportaríamos, talvez, algum mal que se opusesse ao bem contrário, quer dizer, algo de

que reconhecêssemos um significado na medida em que se opõe ou nega qualquer coisa

que perseguimos e que está a nosso favor. Mas a Fortuna é radicalmente má, para nós,

porque, ao condenar todos os bens e males a serem solúveis, como que mina o próprio

campo onde há bem e mal, faz que esse âmbito seja insignificante, e, assim, como que

desclassifica o que nos faz andar, tanto perseguindo como fugindo das coisas. A Fortuna

como que afecta a própria estrutura básica dos sentidos vitais e, por isso, ela é pérfida

porque como que nos tira o tapete da vida. Ao transformar uma coisa noutra, um mal

num bem e um bem num mal, desorienta-nos totalmente e deixamos de saber que é bom

(porque pode ser, enquanto tal, o princípio de um mal) e que é mau (porque pode ser,

enquanto tal, princípio de um bem). Passamos, por isso, a olhar de esguelha tudo o que

nos acontece, e deve ser isso que significa dizer que a Fortuna tem um rosto mentiroso.

Não se trata, assim, de um fim negativo, de qualquer coisa de que fugimos para ir ao

encontro de outra coisa que queremos, mas do arbitrário. O que ocorre com a Fortuna é

que ela transforma a vida em qualquer coisa como "a bolt of nothing, shot at nothing",

coisa nenhuma, e pura suspensão do significado dos opostos no campo das coisas

Page 14: Boécio e a Fortuna

14

humanas: "a vida não e bela nem feia (...). Afigura-se-me antes estapafúrdia (...). Se a

tivesse descrito a alguém que não soubesse o que era, a um ser desprovido do nosso

senso comum, esse alguém ficaria boquiaberto perante esta enorme construção sem fito.

Perguntar-me-ia: «como podem suportá-la?» (...) ... quanto mais pensava no caso, mais

me convencia de que o meu adjectivo se aplicava perfeitamente à existência. Seria até

inútil olhá-la de fora para verificar as suas extravagâncias. Bastava lembrarmo-nos de

tudo o que nós tínhamos esperado dela para nos compenetrarmos da sua estranheza e

chegar à conclusão de que o homem foi decerto colocado por erro num mundo que não

era o seu"4. Quer dizer, a Fortuna parece, em última análise, corresponder a uma radical

heterogeneidade entre o modo como as coisas acontecem e o modo como nós não

podemos deixar de pensar, com se uma coisa não encaixasse noutra, como se a chave

que nós temos não tivesse nada que ver com a fechadura da porta que temos mesmo de

abrir. No fim de contas, a Fortuna equivale somente à pergunta retórica "A quoi bon?",

dirigida à totalidade das coisas humanas, pergunta que, por muito retórica que seja, não

deixamos de fazer.

O facto de a Fortuna fazer que as coisas humanas sejam algo de inane e vazio

deve ser vincado, porque se opõe à categoria de fim, ou, na formulação leibniziana, de

razão suficiente. Ora, o que está em causa na tese de Leibniz é que há identidade entre

ente e razão, de tal forma que, em última análise, à noção de Fortuna não corresponde

nenhum conceito. É isso que Leibniz pretende dizer com a metáfora da sucessão de

pontos dispostos aparentemente ao calha numa folha de papel. E o que ele diz, como se

sabe, é que, por mais arbitrário que tal possa parecer, essa sucessão de pontos

corresponde necessariamente a uma linha que os une, e na mesma ordem em que foram

desenhados, linha que equivale a uma função, isto é, a uma ordem ou racionalidade. Ou

seja, não há sucessão de ocorrências que, por si mesma, não possa – nem que seja

simbolicamente – ser pensada sob a noção de regra, o que significa que qualquer uma

delas tem um sentido. Isto parece não significar mais do que o constrangimento em que

o nosso ponto de vista se encontra de pensar tudo em função de uma ordem. Ora quando

confrontada com a Fortuna e com a sua roda, ou esta tese é modificada ou então tem de

ser modificada a Fortuna. Assim, o sujeito pode perfeitamente pensar que o que se passa

se organiza segundo regras de sentido e finalidades que são para nós completamente

transcendentes. E também pode pensar o contrário, isto é, que dadas as coisas do mundo

4 Svevo, 328-329

Page 15: Boécio e a Fortuna

15

e o modo como variam, não há tais regras transcendentes, quer dizer, mesmo que

existam, de facto não existem porque tudo se passa como se não existissem. Quer dizer,

o facto de ser possível haver ordem não tem significado nenhum, porque se trata de algo

puramente simbólico. Não importa tentar determinar qual das soluções para o confronto

entre sentido e Fortuna possui um maior grau de verosimilhança. O que importa é que o

simples facto de haver respostas tão diferentes para o mesmo problema – que tanto

podem restringir a arbitrariedade como torná-la absoluta e, neste caso, tanto no seu ser

apenas arbitrária quanto no seu ser pérfida – tem um claro significado para a natureza da

Fortuna: ela é, de facto, em si mesma uma flecha de nada lançada ao nada, quer dizer,

pode receber significados diametralmente opostos porque não tem significado nenhum.

Dito de outra forma, a haver sentido ou não sentido, terá de ser, tanto num caso como

no outro, uma tese transcendente, porque nas coisas humanas vigora a Fortuna. Isto é

um modo de dizer que há sempre teses transcendentes a categorizar o que se passa,

mesmo que essas tais teses tenham por conteúdo negar que haja teses transcendentes.

Não estamos em condições de pôr de parte o facto de pormos teses para pensar as coisas

no modo como as pensamos, sob as categorias de fim e propósito. E quando o queremos

fazer, o resultado é que a vida nos surge como traiçoeira, falaz, etc., quer dizer, outra

vez categorizada. Em si mesma, de modo abstracto, o humor da vida é somente

variação, nem isto nem aquilo, mas sim a variação disto para aquilo, e de tal forma que

o pretenso significado imediato que qualquer coisa parece possuir fica imediatamente

anulado pelo facto de o seu ser estar na variação para o contrário. Neste sentido, e

considerada abstractamente, há na vida como que uma negação do princípio de

contradição. S. Agostinho dizia que a isto não se pode chamar vida porque o seu ser é

caminho para a morte, que é o contrário da vida, de tal forma que, no sentido rigoroso

do termo, não se pode dizer que estamos na vida. E isso mesmo se pode dizer de tudo:

cada coisa está dada no caminho para o seu contrário, na passagem para o seu oposto. E

é precisamente a isto que corresponde a inanidade da vida, ao facto de uma coisa não

conseguir evitar o seu contrário.

Ora este modo de ser das coisas humanas é, como se sabe, uma das principais

razões pelas quais os antigos negavam a possibilidade de constituir uma ars uiuendi, um

saber viver. Por questões de comodidade, e porque se trata de um compêndio de

cepticismo, pode recorrer-se a Sexto Empírico para expor brevemente este assunto, que

o trata expressamente no livro XI do Aduersos Mathematicos, habitualmente conhecido

por Aduersos Ethicos.

Page 16: Boécio e a Fortuna

16

Os argumentos que Sexto Empírico utiliza para negar a existência de uma ars

uiuendi são de vária ordem, alguns meramente formais, outros, por vezes, de validade

duvidosa, como é costume, mas um deles é especialmente relevante para a noção de

Fortuna, na medida em que depende expressamente dela. De facto, Sexto Empírico diz

que não pode haver um saber da vida porque a Fortuna impede que do seu eventual

objecto possa haver uma apresentação cataléptica5, uma apresentação de que possa

haver captação de algo como real, como sendo o que é, uma apreensão ou conhecimento

de qualquer coisa. Não é evidentemente possível estudar aqui a noção estóica de

apresentação cataléptica. Para efeitos de comodidade, e dado que Cícero traduziu por

perceptio, traduzir-se-á por percepção, tendo sempre em conta que o que está em causa

em perceptio tem que ver com captação, apreensão de algo real, pois perceptio deriva

de capio. A tese de Sexto Empírico é, então, a de que para que possa haver algum tipo

de saber, seja ele qual for, é necessário que possa haver um domínio do seu objecto, um

acompanhamento dele no que se refere às suas determinações. E para que possa haver

tal coisa requer-se, por sua vez, que o objecto possa ser dominado, captado ou

apreendido como isso mesmo que é. Ora isso implica que o campo do ente a que esse

eventual saber se pode referir tem de ser estável, quer dizer, a ele tem de responder uma

identidade. Seria, na verdade, impossível constituir um saber acerca de x se x estivesse

permanentemente a mudar, quer dizer, se x não se mantivesse enquanto tal, pois isso

seria exactamente a mesma coisa que dizer que não haveria x nenhum.

Este problema fica muito mais claro se se recorrer às análises de Aristóteles no

começo da Metafísica. Aristóteles, como se sabe, desenha aí uma escala de formas de

apresentação ou apreensão dos objectos. Essa escala tem, entre vários outros aspectos,

duas particularidades que importam para aqui: a primeira é que, a partir da constituição

da memória, a passagem de uma forma de captação das coisas para a forma

imediatamente superior depende de uma acumulação de momentos. No caso que

interessa. No caso da constituição de uma arte, de um saber fazer qualquer coisa,

depende de uma acumulação de experiências. O segundo aspecto parece o contrário do

anterior, pois diz que a forma superior é sempre excessiva relativamente à anterior, de

modo que não deriva analiticamente da mera acumulação, quer dizer, a arte não é sem

mais um monte de experiências. Assim, todo o grau superior é transcendente

relativamente ao anterior. Mas, por outro lado, essa transcendência não implica, de

5

Page 17: Boécio e a Fortuna

17

modo nenhum, uma total arbitrariedade na aplicação do sentido excessivo relativamente

ao acumulado anterior. É certo que a própria acumulação de dados só existe em virtude

de um sentido que a regula, pois a acumulação deve ser feita segundo uma regra

qualquer, o que significa que há já na própria acumulação de dados mais do que aquilo

que em princípio estaria nos próprios dados. Mas, por outro lado, o dado deve ser capaz

de ser subsumido, quer dizer, deve ser passível de acumulação. Se assim não for, torna-

se impossível constituir um saber qualquer, porque não seria possível constituir um

objecto e sem objecto não há saber, dado que a possibilidade do saber é a existência de

um objecto, quer dizer, a possibilidade de reconhecer uma identidade. E de nada serve a

argumentação de Leibniz, que se recordou atrás, segundo a qual não há nenhuma

sucessão de ocorrências que não seja passível de um sentido. Isso pode muito bem ser

assim, mas é completamente insuficiente para constituir um objecto, um ente

identificável, num conjunto de sucessões de fenómenos. Dito de outra maneira, Leibniz

pode ter razão, e não ter provado nada nem ter servido para nada. Assim, por exemplo,

se uma máquina produzisse uma sucessão de pontos sempre diferentes seria possível

determinar um sentido para cada sucessão. Até seria possível, como é o muitas vezes o

caso, produzir uma lei, um algoritmo, de produção de sucessões arbitrárias. Mas isso

não produziria saber nenhum das sucessões produzidas por tal algoritmo, porque as

sucessões não corresponderiam a identidade nenhuma, nem mesmo à do algoritmo.

Quer dizer, faltar-nos-ia completamente a regra que faria desse acumulação de

sucessões uma mera experiência, na linguagem de Aristóteles, e estar-se-ia muito longe

de um saber. E isso seria assim porque não poderia haver unificação de um acumulado,

na medida em que nenhuma sucessão de acontecimentos seria unificável com qualquer

outra, a não ser casualmente, o que é a mesma coisa que dizer que não seria de facto

unificável. Dito de outra forma, não haveria identidade nenhuma no conjunto das

sucessões e isso significa que cada uma delas (mesmo que Leibniz tivesse razão) seria

insignificante, porque não estaria em condições de produzir ou de ser tomada numa

experiência. Seria absolutamente fortuita e avulsa. Em resumo, a possibilidade do saber

implica necessariamente identidade reconhecida numa sucessão de fenómenos. Isto é,

como se sabe, uma banalidade, pois é exactamente o mesmo que dizer que sabemos algo

quando possuímos a regra de produção das suas determinações, quer dizer, quando

conhecemos leis.

Ora é exactamente isso que Sexto Empírico diz não ser possível nas coisas

humanas: não é possível encontrar leis ou regras e por isso não é possível haver uma

Page 18: Boécio e a Fortuna

18

percepção das coisas humanas. Ou, o que é a mesma coisa, não há propriamente

nenhum objecto na vida, no sentido restrito de vida, o de saber como temos de nos

haver com isto, o que esperar, como prever e antecipar, e estar preparados, etc. E isso é

assim porque a vida não é identificável. De aqui decorrem alguns outros argumentos de

Sexto Empírico; por exemplo, o facto de haver várias artes da vida prova que não há

arte da vida nenhuma. De facto, a disputa de seitas apenas significa que não sabemos

bem com que objecto estamos a lidar, pois, se houvesse um objecto bem identificado, a

arte da vida decorreria facilmente dele e a pluralidade de artes que mesmo assim poderia

existir seria completamente diferente daquilo a que assistimos. O que se passa é que as

várias artes da vida têm carácter de aposta e isso é assim porque a vida é em cada caso o

que for e não há, neste sentido, repetição que permita acumulação, experiência, saber.

Vem a propósito, apesar de não ser um texto antigo, mas o fenómeno sim que o é,

recordar o que dizia um autor acerca da ausência repetição e do modo como ela se

simboliza na corneta do postilhão: "Viva a corneta do postilhão! É o meu instrumento,

por muitas razões e precisamente por esta, que nunca com segurança se pode tirar a

mesma nota deste instrumento; pois há numa corneta do postilhão uma infinita

possibilidade e aquele que a usa e põe nela a sua sabedoria (Viisdom) nunca se tornará

culpado de uma repetição e aquele que em vez de uma resposta oferece ao seu amigo

uma corneta de postilhão para uso a bel-prazer, não diz coisa nenhuma mas esclarece

todas as coisas. Louvada seja a corneta do postilhão! É o meu símbolo. Tal como os

antigos ascetas punham uma caveira em cima da mesa, cuja contemplação constituía a

sua visão da vida (Livsbetragtning), do mesmo modo a corneta do postilhão em cima da

mesa sempre me lembrará qual é o sentido da vida. Viva a corneta do postilhão!"6.

Este assunto merece, todavia, ainda algum comentário mais. É certo que as

coisas humanas, porque estão sob o poder das Fortuna, não admitem percepção. Mas

isso é assim somente num certo sentido. Quer dizer, se parece claro que a vida é incerta,

instável e toda ela feita de mudança, isso tem, no entanto, de ser considerado um pouco

mais de perto, pois poderia corresponder a coisas muito diferentes. Assim, a vida é

incerta mas sempre dentro de um certo padrão de constância e de significados. A

instabilidade da vida só se aplica a um determinado número de sentidos e mesmo esses

devem ser categorizados com clareza quanto a essa incerteza. O primeiro ponto a ter em

conta é que o âmbito de incerteza da Fortuna é excepcionalmente restrito relativamente

6 Repetição, SKS, IV, 48

Page 19: Boécio e a Fortuna

19

ao campo total das coisas. De facto, nós vivemos entre objectos, quer dizer, entre

identidades estáveis. A roda da Fortuna não funciona para as propriedades de todas as

coisas, nem para as suas determinações mais básicas. Isso não significa, evidentemente,

a imutabilidade das determinações dos objectos, mas significa que podemos ter

percepção de um conjunto inumerável de entes. Assim, mesmo em objectos fortemente

incertos há padrões de regularidade que permitem uma experiência e isso significa que a

esmagadora maioria das coisas com que lidamos não está, pelo menos não parece estar,

sob o poder da Fortuna. Há uma certa roda que gira em todas as coisas, mas não é a do

absolutamente fortuito. Quer dizer, se exceptuarmos as coisas humanas, o mundo

funciona mais ou menos. Vem também a propósito recordar o que Leibniz dizia do

sonho: quando sonhamos, o mundo exterior parece arbitrário e desregulado, o que não

ocorre quando acordamos, pois então o mundo exterior está constituído sob leis. Mas,

diz, o mundo das coisas humanas, mesmo quando estamos acordado, funciona como o

mundo exterior quando estamos a dormir, quer dizer, sem lei nem regra, sem

possibilidade de percepção. Leibniz apressa-se a tirar uma conclusão edificante, como

sempre faz quando diz algo que pode perturbar o leitor quanto à racionalidade das

coisas. Mas a ideia é clara e a ideia é: há qualquer coisa que chamamos Natureza, quer

dizer, há um âmbito de sentido fixo no desenrolar das coisas, e neste âmbito não rege a

Fortuna. O que significa que há uma oposição entre Natureza e Fortuna. Os antigos

estabeleciam três formas de organização de sucessão de eventos: o fatum, a providência

e a Fortuna. Não é possível desenhar aqui a rede de relações entre os termos. Pondo de

lado a providência, seja ela estóica ou cristã, porque a ela corresponde já a

recategorização da Fortuna a que se aludiu e à introdução de um sentido transcendente,

e o fatum, pois implicaria ter de pensar em que medida e porquê se aplicaria ao campo

das coisas humanas, a oposição mais imediata é a que fica dita: natureza e fortuna.

Também isto é muito antigo e faz parte da tradição. Há coisas que a Fortuna não pode

fazer, que são aquelas que estão sob o poder da natureza. Assim, por um golpe da sorte,

um homem inteligente pode ficar um imbecil, mas não consta que a Fortuna tenha feito

de um imbecil um homem inteligente.

A oposição entre natureza e Fortuna levanta, todavia, um problema ontológico

complexo, que é o do estatuto dos acontecimentos aparentemente não regulados por leis.

Dito de outro modo, a instabilidade dos acontecimentos da Fortuna obriga a pensar que

este tipo de acontecimentos ocorrem sem razão, sem sentido, isto é, são puro acaso, o

que significa que, num sentido mais rigoroso, não têm causa assinalável. Ora isso

Page 20: Boécio e a Fortuna

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implicaria uma excepção ao acontecimento do que chamamos ente. Por este motivo, o

saber antigo tentou pensar que é que se entende por acaso e, no caso de pertencer ao

ente estar constituído a partir de causas, que relação há entre acaso e causalidade. Como

se sabe, Aristóteles estuda este assunto – a relação entre fortuna, acaso, pura

espontaneidade no acontecimento das coisas e causalidade –, no Livro II da Física, a

partir do cap. 4. Boécio analisa igualmente o problema, de modo muito mais

simplificado e com dependência ainda de S. Agostinho. No caso de Boécio o problema

fica resolvido porque, diz, por acaso, ou acontecimento derivado da Fortuna, nós

entendemos apenas aquilo que é produzido pelo concurso de causas, um concurso que

não está determinado por nenhuma. A tese já vem de Aristóteles. Fica por saber qual o

estatuto do próprio concurso, se é, ele próprio, fortuito ou determinado causalmente. A

análise de Aristóteles é muito mais complexa e não vale a pena segui-la aqui, tanto mais

que, num certo sentido, Aristóteles admite claramente o acaso. Não num sentido

absoluto, mas no sentido em que há acontecimentos que se devem a causas indefinidas,

que não estamos em condições de identificar. O acaso ocorre apenas num âmbito – no

daqueles acontecimentos dominados por propósitos e fitos postos perla inteligência e

reconhecidos como tais – e corresponde à indefinição das causas ou a causas acidentais.

Seja como for, nada de isto altera a argumentação de Sexto Empírico, precisamente

devido à indefinição ou acidentalidade das causas, como Aristóteles claramente o

indica, quando afirma que os acontecimentos devidos à Fortuna não se produzem

segundo regras.

Há ainda um outro aspecto, o último, finalmente, muito diferente deste, mas que

é decisivo para a noção de arte da vida. A Fortuna é a inconstância, com se disse, de um

conjunto de determinações estáveis e passíveis de identificação: saúde, riqueza, fama,

etc. Aquilo que desconhecemos é como é que se comportam essas determinações, dado

que o seu ser é mudança. Mas isso produz vários fenómenos ou pode produzir. O facto

de a forma de qualquer coisa ser variação pode produzir, por exemplo, tédio, porque "à

força de ser diferente acaba por ser monótono". E pode produzir também, como a

tradição antiga também repete, uma certa sabedoria, um tipo de arte da vida. De facto. a

inconstância da vida é a única coisa constante da vida, e isso faz que ela seja, em certo

sentido sempre igual, sempre um déjà vu, algo de que se estava à espera, poderia estar e

deveria até estar. Há, na verdade, uma certa identificação de que as coisas são instáveis

e de que essa instabilidade pertence a um certo tipo de fenómenos. Como dizia alguém,

"o mundo é um ensaio que sempre se renovou do mesmo modo e com o mesmo

Page 21: Boécio e a Fortuna

21

resultado"7. Mas isso, precisamente por ser assim, permite algum saber das coisas, quer

dizer, admite uma peculiar forma negativa de experiência e de arte da vida. De facto, só

as pessoas sem experiência esperam da vida alguma coisa, isto ou aquilo. É por isso que

Sexto Empírico afirma, e parece que com alguma razão, que aquele que é

verdadeiramente sábio quanto às coisas da vida sabe que não há sabedoria alguma disso.

Sexto Empírico diz mais, diz que essa conclusão de saber-não saber conduz ao modo de

viver céptico. Mas isso é tudo manos claro, pois mesmo neste peculiar forma negativa

de arte da vida há falta dela, pois é possível, também aqui, optar por vários caminhos.

Quer dizer, quando sabemos que não sabemos como nos devemos comportar, não se

segue disso, de maneira nenhuma, que a estratégia céptica seja a melhor. Pode

perfeitamente não ser e pode até ser completamente inviável, por mais que Sexto

Empírico tenha querido procurado mostrar o contrário.

Este fenómeno é ambíguo e não pode, uma vez mais, ser estudado aqui com

cuidado. Por um lado, como se viu, num certo sentido a vida admite identificação, mas a

identificação da vida possui a forma daquilo que Musil chamou alguma vez "sentidos

duplos", quer dizer, formas de acontecimento que, sendo de alguma forma unos,

singulares – quer dizer, isto, aquilo, etc. – tanto são assim com totaltamente de outro

modo. Assim, a constância da inconstância da vida faz dela algo com a forma de

"sempre o mesmo", o invariável repetido indefinidamente e isso em muitos aspectos.

Isto é comum, como diz, por exemplo, Séneca: "«Não faço nada de novo, não vejo nada

de novo e também disto se acaba por ter náusea». São muitos os que acham que viver

não é amargo, mas supérfluo”8. Kierkegaard diz o mesmo, quando identifica a Fortuna

com o destino, no que não é nada original, pois isso mesmo se encontra também em

Virgilio e em Lucano: "Miserável destino! Em vão pintas, como uma velha prostituta, o

teu rosto sulcado; em vão fazes barulho com guizos de bobos. Tu entedias-me: é sempre

a mesma coisa, um idem per idem. Nenhuma variação, sempre o requentado. Vem, sono

e morte – tu não prometes nada, tu cumpres tudo"9. Mas isto é assim ao mesmo tempo

em que a vida é, de facto, permanente inconstância e por isso surpresa real, algo de que

não se estava à espera, que é inantecipável, que produz perplexidade, por mais cínico ou

céptico que se seja, etc. Quer dizer, o tipo de identificação das coisas humanas como

que colapsa continuamente, ainda que este mesmo colapso faça parte da sua

7 Bachmann, 178 8 SÉNECA, Ad Lucilium epistulae morales, XXIV, 26. 9 texto de Virgilio: Fortuna omnipotens et inelectubile fatum, Eneida, VIII, 334. Texto de Lucano, Frakes,

17

Page 22: Boécio e a Fortuna

22

identificação. Quer dizer, faz parte da vida ser identificável como algo que

permanentemente foge à sua identificação e é por isso que, havendo algo semelhante a

uma arte negativa da vida, isso não serve absolutamente para nada, contrariamente à

tese de Sexto Empírico.

Isto deve ser assim porque as coisas humanas estão necessariamente reguladas

por fitos e propósitos conscientes, que têm de ser perseguidos e alcançados num mundo

que parece completamente alheio a isso, num mundo que, com se disse atrás,

estranhamente sugere que não foi feito para nós. O que chamamos Fortuna parece assim

corresponder ao facto de o mundo onde desempenhamos a nossa vida ser puramente

gratuito. E, todavia, neste mundo gratuito nós temos de impor fins, porque é assim que

pensamos e não podemos viver de outra maneira. Por isso, na medida em que a nossa

vida está inevitavelmente fiada pelo mundo, quer dizer, não se desenrola nele como

num palco inerte, mas é tecida por ele, o mundo, enquanto potência gratuita, não pode

deixar de surgir como um enorme despropósito, porque é um âmbito livre de

ocorrências que resiste ao que nós não podemos de deixar de querer dele. É certo que a

liberdade dos acontecimentos é restrita, como se disse, pois de outra forma a

sobrevivência seria pura e simplesmente impossível. Mas a Fortuna impede a

orientação, o saber por onde temos de ir para alcançar o que queremos. Nós temos

bússola para a natureza, mas não para as coisas humanas. E apesar de estarmos cá há

tanto tempo, e de isto ter sido sempre assim, e de toda a gente repetir o mesmo, não

temos, como temos para as ruas de Londres, um mapa das coisas.