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67 CR˝TICA MARXISTA Os tipos de Estado e os problemas da anÆlise poulantziana do Estado absolutista ARMANDO BOITO JR.* O trigØsimo aniversÆrio da publicaªo de Poder poltico e classes sociais, de Nicos Poulantzas, Ø uma boa oportunidade para se fazer um balano da originalidade, do avano terico, da influŒncia e tambØm dos problemas desse tratado de teoria poltica marxista. Para este artigo de Crtica Marxista, decidimos abordar um tema histrico presente nesse tratado: o tema da natureza de classe do Estado absolutista. O Estado absolutista seria, como pretende Poulantzas, um Estado capitalista? Essa caracterizaªo do Estado absolutista como Estado capitalista Ø consistente com a anÆlise terica dos tipos de Estado (escravista, feudal, capitalista), que Poulantzas desenvolve no mesmo tratado? Como o leitor pode perceber, o tema histrico a natureza de classe do Estado absolutista remete diretamente a um tema terico a caracterizaªo dos tipos de Estado de classe. Esse tema terico, do modo como Poulantzas o equaciona, constitui uma das contribuiıes decisivas do autor para a teoria poltica marxista. Poulantzas vincula a natureza de classe do Estado sua estrutura jurdico-poltica. A natureza de classe de um tipo de Estado (escravista, feudal ou capitalista) estÆ inscrita na prpria estrutura desse Estado, e nªo apenas na poltica implementada por ele. Mais do que isso, a poltica de Estado, isto Ø, as medidas econmicas, sociais e repressivas implementadas pelos agentes governamentais estªo, elas prprias, limitadas pela estrutura do Estado. Esclarecemos esses pontos ao longo de nossa exposiªo, mas queremos, desde jÆ, chamar atenªo do leitor para o carÆter ensastico das notas que seguem. * Professor do Departamento de CiŒncia Poltica da Unicamp.

Boito- Os Tipos de Estado e Os Problemas Da Análise Poulantziana

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Armando Boito Jr. Os tipos de estado e os problemas da análise poulantziana

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  • 67CRTICA MARXISTA

    Os tipos de Estadoe os problemasda anlisepoulantziana doEstado absolutista

    ARMANDO BOITO JR.*

    O trigsimo aniversrio da publicao de Poder poltico e classessociais, de Nicos Poulantzas, uma boa oportunidade para se fazer umbalano da originalidade, do avano terico, da influncia e tambm dosproblemas desse tratado de teoria poltica marxista. Para este artigo deCrtica Marxista, decidimos abordar um tema histrico presente nessetratado: o tema da natureza de classe do Estado absolutista. O Estadoabsolutista seria, como pretende Poulantzas, um Estado capitalista? Essacaracterizao do Estado absolutista como Estado capitalista consistentecom a anlise terica dos tipos de Estado (escravista, feudal, capitalista),que Poulantzas desenvolve no mesmo tratado?

    Como o leitor pode perceber, o tema histrico a natureza de classedo Estado absolutista remete diretamente a um tema terico acaracterizao dos tipos de Estado de classe. Esse tema terico, do modocomo Poulantzas o equaciona, constitui uma das contribuies decisivasdo autor para a teoria poltica marxista. Poulantzas vincula a natureza declasse do Estado sua estrutura jurdico-poltica. A natureza de classe deum tipo de Estado (escravista, feudal ou capitalista) est inscrita na prpriaestrutura desse Estado, e no apenas na poltica implementada por ele.Mais do que isso, a poltica de Estado, isto , as medidas econmicas,sociais e repressivas implementadas pelos agentes governamentais esto,elas prprias, limitadas pela estrutura do Estado.

    Esclarecemos esses pontos ao longo de nossa exposio, masqueremos, desde j, chamar ateno do leitor para o carter ensastico dasnotas que seguem.

    * Professor do Departamento de Cincia Poltica da Unicamp.

  • 68 OS TIPOS DE ESTADO E OS PROBLEMAS DA ANLISE POULANTZIANA...

    1. A tese de Poulantzas sobre o carter capitalista do Estadoabsolutista e a historiografia marxista

    Entre os autores marxistas existem, basicamente, dois tipos de anlisesobre o carter de classe do Estado absolutista.

    De um lado, e em posio aparentemente minoritria, encontram-seautores, como Poulantzas, que, seguindo indicaes de Engels, sustentam atese de que o Estado absolutista um Estado capitalista.1 Algumas passagensde Marx, como o trecho dedicado ao Estado absolutista em seu O DezoitoBrumrio de Lus Bonaparte, tambm autorizam, pelo menos indiretamente,essa tese.2 Os procedimentos de Marx, Engels e Poulantzas nos textos citadostm, no geral, um ponto em comum: eles consideram, na anlise, tanto aestrutura jurdico-poltica do Estado absolutista o direito e o modo deorganizao do corpo de funcionrios civis e militares do Estado quanto apoltica desse Estado para, ento, concluir pela adequao desses dois aspectos,estrutura e poltica, aos interesses do capitalismo nascente.

    Engels refere-se ao renascimento do direito romano a partir do sculoXIII direito que consagra a propriedade privada em oposio propriedade condicional de tipo feudal, e que fornece normasdesenvolvidas no mbito do direito comercial e centralizao poltico-administrativa, efetuada pelo Estado absolutista, como elementosfundamentais para a afirmao da burguesia. Refere-se, ainda, aosurgimento do exrcito permanente que, por oposio ao exrcitoarregimentado ocasionalmente e fundado nos laos feudo-vasslicos,representaria, j, a constituio de um exrcito de tipo burgus.

    Poulantzas caminha no mesmo sentido. Destaca, em primeiro lugar, ocarter centralizado do Estado absolutista, em oposio descentralizaodo Estado medieval, para fundamentar sua natureza capitalista.3 Sustenta,a seguir, no que diz respeito estrutura jurdico-poltica do Estadoabsolutista, o carter burgus do direito sob o absolutismo nvel deformalizao e de generalizao j avanado desse direito e o cartertambm burgus da burocracia desse mesmo Estado as funes deEstado teriam superado o particularismo classista, tpico da Idade Mdia,

    1. Nicos Poulantzas, Poder poltico e classes sociais, Porto, Portucalense Editora, 1971, captuloII, item O Estado absolutista, Estado capitalista, p. 179-186; F. Engels, La decomposicin delfeudalismo y el surgimiento de los Estados Nacionales. Esse artigo est publicado em apndicede uma edio da obra Guerra camponesa na Alemanha. Ver F. Engels, La guerra campesina enAlemania, Moscou, Editorial Progresso, 1981, apndice p. 180-193.

    2. Esse poder executivo, diz Marx, com a sua imensa organizao burocrtica e militar (....)constituiu-se poca da monarquia absoluta, poca de declnio da feudalidade, que ele ajudouliquidar. Karl Marx Le 18 brumaire de Louis Bonaparte, Paris, ditions Sociales, 1976, p. 124-125.

    3. Ao contrrio do tipo de Estado feudal (....), o Estado absolutista aparece como um Estadofortemente centralizado. Poulantzas, op. cit., p. 180.

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    e adquirido o carter de funes pblicas.4 Dotado de um direito queapresentaria (...) os caracteres de abstrao, de generalidade e deformalidade do sistema jurdico moderno e de um corpo de funcionriosrecrutado em todas as classes sociais, o Estado absolutista estaria emcondies de, ao contrrio dos Estados de tipo pr-capitalista, produzir aidia de interesse geral, de povo-nao, e de apresentar-se comorepresentante desse coletivo nacional.5 No que diz respeito poltica doEstado absolutista, Poulantzas refere-se ao mercantilismo, cuja funoseria a de dirigir a acumulao primitiva de capital expropriaogeneralizada dos pequenos proprietrios e fornecimento de fundos parauma industrializao de tipo capitalista. Em suma, pela sua estrutura epela sua poltica, a funo social do Estado absolutista seria, segundoPoulantzas, a de destruir as antigas relaes de produo feudais einstaurar as relaes de produo de tipo capitalista.

    De outro lado, e em posio aparentemente majoritria, encontram-seos autores marxistas para os quais a funo do Estado absolutista seria, aocontrrio do que sustenta Poulantzas, justamente, preservar as relaesde produo feudais. O Estado absolutista seria, portanto, um Estado feudal,cuja destruio pelas revolues polticas burguesas foi um pr-requisitopara o desenvolvimento do modo de produo capitalista na Europa.Contam entre os autores que defendem essa tese vrios historiadoressoviticos, como Porchenev, historiadores ingleses, como C. Hill e,tambm, o filsofo francs Louis Althusser.6 Esses autores, da mesmaforma que Poulantzas, operam com o conceito marxista de Estado (Estado= aparelho que organiza a dominao poltica de classe), porm o fazemde uma maneira distinta e, no nosso entender, incompleta. Eles consideramapenas a poltica do Estado absolutista; deixam de lado a estrutura jurdico-poltica desse Estado ao procurar demonstrar a funcionalidade doabsolutismo em relao aos interesses polticos dos proprietrios feudais.Voltaremos, logo frente, a essa crtica conceitual. Por ora, precisemosmelhor os argumentos desses autores.

    Alguns deles destacam que a forma desse Estado feudal distinta daforma que assumira o Estado feudal durante a Idade Mdia. Porm, alertam

    4. O seu papel (da burocracia) no aparelho de Estado contudo determinado pelas estruturascapitalistas do Estado absolutista: assiste-se aqui ao nascimento da burocracia na modernaacepo do termo. Os diversos cargos pblicos j no esto diretamente ligados qualidade dosseus titulares enquanto membros de classes castas, antes revestem progressivamente o carterde funes polticas do Estado. Poulantzas, op. cit., p. 183.

    5. Assiste-se formao dos conceitos de povo e de nao como princpios constitutivos deum Estado que tido como representante do interesse geral. Poulantzas, op. cit., p. 181.

    6. B. Porchenev Les soulevements populaires en France au XVII sicle, Paris, Flamarion, 1972;C. Hill Comentrio in Do feudalismo ao capitalismo, vrios autores, Lisboa, Publicaes DomQuixote, 1972, 2a ed., p. 159-167; L. Althusser, Montesquieu, a poltica e a histria, Lisboa,

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    que essa mudana de forma, sintetizada no termo absolutismo, no alterao carter de classe do Estado. Pelo contrrio, a forma desptica que adquireo processo decisrio e a centralizao poltica-administrativa soapresentadas, por vrios desses autores, como exigncias para amanuteno do feudalismo num perodo de recrudescimento das revoltaspopulares, tanto no meio rural quanto nas cidades, e de expanso comerciale concorrncia entre as potncias europias. A funcionalidade do Estadoabsolutista para a manuteno das relaes de produo feudais nodeixaria de ser um fato, lembra-nos Althusser, apenas porque osproprietrios feudais mostravam-se insatisfeitos com o declnio de algumasde suas antigas prerrogativas fiscais, judicirias e militares, em decorrnciada centralizao monrquica. A centralizao do Estado absolutista no dimensionada, como em Poulantzas, como indicador da mudana do tipode Estado feudal para capitalista. A insatisfao dos proprietrios feudaispara com o monarca refletiria, apenas, um conflito superficial: o conflitoentre os interesses particulares dos proprietrios feudais e as medidasnecessrias para assegurar o interesse geral do conjunto dessa classe amanuteno das relaes feudais de produo.

    Como se situa este nosso ensaio no interior desse debate? Tentaremosdefender a tese segundo a qual o Estado absolutista um Estado feudal.Logo, a nossa tese no , no essencial, uma tese original. Em um aspectoimportante, contudo, ela , salvo engano, inovadora. Ns estaremos tomandoem considerao no apenas a poltica de Estado, que o que fazem osdefensores citados da tese de que o Estado absolutista um Estado feudal,mas, tambm, a estrutura jurdico-poltica do Estado absolutista.7 Tentaremosmostrar o carter feudal dessa estrutura jurdico-poltica que, primeira vista,pode ser confundida com a burocracia e com o direito de tipo burgus.Ademais, aplicaremos, para demonstrar o carter feudal do Estado absolutista,um conceito de Estado no qual as opes de poltica de Estado so limitadas,no s pela correlao poltica de foras entre as classes sociais, mas tambmpela prpria estrutura jurdico-poltica desse Estado. Por tudo isso, ns pode-mos afirmar que partiremos do conceito de Estado presente no tratado dePoulantzas, o Poder poltico e classes sociais, mas para chegar, na anlise doEstado absolutista, a um resultado diferente daquele a que o prprio Poulantzaschegou nessa obra.

    Editorial Presena, 1972. Outro historiador que caracteriza o Estado absolutista como feudal ofrancs Franois Hincker. Ver o seu artigo Contribuio discusso sobre a transio dofeudalismo ao capitalismo: a monarquia absoluta francesa in Sobre o feudalismo, vrios autores,Lisboa, Editorial Estampa, 1978, p. 65-71.

    7. Perry Anderson , salvo engano, o nico autor marxista que, ao sustentar a tese do carter feudaldo Estado absolutista, toma em considerao a estrutura jurdico-poltica desse Estado. Nessamedida, representa uma exceo. Os conceitos e as anlises que Anderson apresenta do direito edo burocratismo feudal so, contudo, distintos daquele que apresentaremos neste ensaio. Ver PerryAnderson El Estado absolutista, Cidade do Mxico, Siglo Veinteuno Editores, 1982, 3a edio.

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    2. Indicaes mnimas para um esboo do conceito deEstado feudal extradas da obra de Poulantzas

    Nicos Poulantzas, em sua citada obra, efetuou um salto na teoriapoltica marxista ao desenvolver, de modo sistemtico, o conceito de Estadoburgus, centrado na anlise da estrutura jurdico-poltica desse tipo deEstado. Da anlise de Poulantzas, possvel extrair, por analogia e aindaque de modo precrio, elementos para a caracterizao terica da estruturajurdico-poltica dos vrios tipos de Estado pr-capitalistas (desptico-orientais, escravistas e feudais). Foi justamente isso o que fez Dcio Saesem seu trabalho sobre a formao do Estado burgus no Brasil.8 Paraesboarmos algumas das caractersticas do tipo de Estado feudal,estabelecendo as referncias conceituais a partir das quais analisaremos oEstado absolutista, ns nos apoiaremos essencialmente, e exceo feita aalguns desenvolvimentos secundrios, no trabalho de Poulantzas e nodesenvolvimento agregado a esse trabalho por Dcio Saes.

    O conceito de tipos de Estado, tal qual o usamos aqui, filia-se a umaproblemtica mais geral: aquela que compreende o conceito de modo deproduo como uma articulao entre estrutura econmica (relaes deproduo mais foras produtivas) e estrutura jurdico-poltica (o Estado)e sustenta que o contedo dessa articulao a funo do Estado dereproduzir as relaes de produo. Cada tipo de Estado (desptico-oriental, escravista, feudal, burgus) , portanto, uma estrutura jurdico-poltica particular cuja funo reproduzir, de um modo tambm particular,determinadas relaes de produo.

    possvel distinguir dois conjuntos de tipos de Estado. De um lado,formando um conjunto de um s elemento, o Estado burgus e, de outro,um conjunto que rene todos os outros tipos de Estado de classesexploradoras, os Estados pr-capitalistas. O que ope o Estado burgusaos Estados pr-capitalistas a aparente universalidade de suas instituies,o que permite a esse Estado apresentar-se como o representante de umsuposto interesse geral da sociedade. Contrapostos a esse tipo de Estado,o conjunto dos Estados pr-capitalistas afirmam abertamente o carterparticularista de suas instituies, apresentam-se, abertamente, comoEstados de classe. Cada um desses dois tipos de estrutura jurdico-poltica(Estado burgus e Estados pr-capitalistas) corresponde a relaes deproduo determinadas (capitalistas e pr-capitalistas). O esforo paraelaborar o conceito de Estado feudal deve considerar portanto a situaodesse tipo de Estado dentro de um conjunto maior: o conjunto dos Estadospr-capitalistas.

    8. Dcio Saes, A formao do Estado burgus no Brasil (1888-1891), So Paulo, Editora Paz eTerra, 1985. Ver captulo I, item Teoria: o conceito de Estado burgus, p. 22-51.

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    A estrutura do Estado representa uma articulao entre o direito e oburocratismo: vejamos o que significa isso, ainda que de maneira muitobreve e sem extrapolar os limites impostos pelas necessidades deste ensaio.

    O direito burgus caracteriza-se pelo tratamento igual aos desiguais:igualdade de direitos civis para agentes sociais que ocupam posiesdesiguais (antagnicas) no processo produtivo. O efeito ideolgicoproduzido por esse tipo de direito consiste no fato de que, no modo deproduo capitalista, a relao de explorao do produtor direto peloproprietrio dos meios de produo aparece como uma relao contratualem que partes livres e iguais realizam uma troca salrio por trabalho. Aproduo dessa iluso o modo especfico pelo qual o direito burguscontribui para a reproduo das relaes de produo capitalistas.

    O direito pr-burgus, ao contrrio, e em correspondncia com asrelaes de produo pr-capitalistas que ele tem por funo reproduzir, um direito essencialmente inigualitrio. Se o direito burgus converteos produtores diretos em sujeitos plenos de direito, equiparando-os condio jurdica dos proprietrios dos meios de produo, j o direitoescravista nega personalidade jurdica ao escravo, e o direito feudal, porseu turno, embora conceda personalidade jurdica ao servo, o faz demaneira limitada. Tanto o direito escravista quanto o direito feudal,portanto, so inigualitrios: o primeiro em termos absolutos, o segundoem termos relativos.9 O direito feudal, que o que nos interessa diretamenteaqui, corresponde, portanto, a um sistema de normas e a setores mais oumenos especializados do aparelho de Estado que distribuem os agentesda produo proprietrios dos meios de produo e produtores diretos num sistema desigual, fundado numa cadeia de obrigaes e deprivilgios. As ordens (homens livres e servos) e os estamentos (nobreza,clero e plebe), e no a figura do indivduo-cidado, so a criaocaracterstica desse tipo de direito. O direito feudal coage o camponsservo de gleba a prestar servios e pagar tributos ao proprietrio feudal, e esse o modo especfico pelo qual esse tipo de direito contribui para areproduo das relaes de produo feudais: a ideologia jurdica feudalno oculta a explorao, ela a apresenta como necessria.

    O burocratismo modo de organizao dos funcionrios do Estado do Estado burgus regido por duas normas bsicas: a) acesso formalmenteassegurado s tarefas de Estado a todos os agentes da produo; b)hierarquizao das tarefas de Estado pelo critrio da competncia.10 A primeiradessas duas regras a regra fundamental. Ela assegura a todos os cidados,

    9. R. Foignet, Manuel elementaire dHistoire du Droit Franais, Paris, Librairie Arthur Rousseau,1946, 14a edio, p. 163. Ver tambm M. Villey, Le Droit Romain, Paris, Presses Universitaires deFrance, Coleo Que-sais-je?, 1949, p. 52-54.

    10. Nicos Poulantzas em Poder poltico e classes sociais, op. cit., apresenta uma enumeraodas normas do burocratismo burgus cf. Captulo V Sobre a burocracia e as elites. Dcio

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    indivduos livres e iguais criados pelo direito burgus, a capacidade jurdicapara o exerccio das funes de Estado, produzindo, desse modo, a aparnciauniversalista tpica das instituies do Estado burgus. o que Poulantzasdenomina efeito de representao da unidade: o Estado burgus aparece, nocomo um Estado de classe, mas como o representante do povo-nao. desse modo, antepondo virtual unidade de classe do proletariado a ideologiada unidade nacional, que o burocratismo burgus contribui para a reproduodas relaes de produo capitalistas.

    outra a forma de organizao dos Estados de tipo pr-capitalista. Aregra bsica de suas instituies constitui, justamente, o monoplio formale expresso das funes de comando do Estado pelos membros da classedominante. Os produtores diretos, classificados numa ordem subalternapelo direito pr-capitalista, no possuem capacidade jurdica para oexerccio das funes de Estado. As instituies de um Estado pr-capitalista afirmam, abertamente, o seu carter de classe. Tal qual o direito,essa norma do burocratismo pr-capitalista proclama a inferioridade socialdo produtor direto, modo especfico de contribuir para a reproduo deum tipo de relao de produo que se assenta, no na iluso da troca,mas na aceitao, pelo produtor direto, da explorao como umanecessidade (natural, religiosa ou social).

    Atendo-nos, agora, ao burocratismo feudal, que o que mais nos interessaaqui, cabe notar que a hierarquizao das tarefas de Estado no se d, numEstado feudal, tendo por base o critrio da competncia. A hierarquia docorpo de funcionrios de Estado reproduz, de alguma maneira, a hierarquiaestabelecida pelos laos feudo-vasslicos. O caso do exrcito feudal , desseponto de vista, tpico. E ns vimos a crise que se produziu no seio do exrcitoabsolutista quando a hierarquia desse exrcito passou a combinar, comocritrios fundadores, a situao estamental com o critrio da competncia,introduzido pelas academias militares.

    Ao apresentarmos, de maneira sumria, algumas caractersticas bsicasdo direito e do burocratismo feudal, contrapondo-os ao direito e aoburocratismo de tipo burgus, pudemos j indicar a unidade entre o direitoe o burocratismo na estrutura jurdico-poltica do Estado. Vimos que asregras bsicas do burocratismo pr-capitalista e do burocratismo burgus(monoplio ou no-monoplio dos cargos de Estado) pressupem, cada

    Saes, em seu trabalho A formao do Estado burgus no Brasil (1888-1891), op. cit., trabalhasobre essa enumerao, chegando a hierarquizar essas normas numa totalidade articulada.Saes apresenta seis normas secundrias, derivando-as das duas normas que considera as normasbsicas do burocratismo burgus acesso universal aos cargos de Estado, isto , no-monopolizao dos cargos de Estado pela classe dominante e hierarquizao das tarefas deEstado pelo critrio da competncia. Uma norma secundria do burocratismo burgus que nosinteressar de perto a norma da separao entre os recursos materiais do Estado e os bens depropriedade dos membros da classe dominante, norma decorrente da no-monopolizao doscargos de Estado pela classe dominante. Veremos que no Estado absolutista, essa separao,tpica de um Estado burgus, no se verifica.

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    11. Eu sigo aqui a tese de G. Lemarchand, para quem a Europa Moderna , ao mesmo tempo,uma sociedade de classes e de ordens. G. Lemarchand Feudalismo e sociedade rural na FranaModerna in Sobre o feudalismo, op. cit., p. 91-110. Acrescento que a situao (jurdica) deordem no alheia situao (econmica) de classe. Mas, no precisaremos desenvolver, aqui,as complexas relaes que se estabelecem entre ordem e classe social.

    uma delas, um tipo particular de direito (inigualitrio no primeiro caso,igualitrio no segundo). Falta frisar que tambm o direito pressupe umtipo de burocratismo: apenas um judicirio aparentemente universalistapode corporificar as normas de um direito igualitrio, do mesmo modoque um direito inigualitrio como o feudal requer, para a sua aplicao,um judicirio monopolizado pelos membros da classe dominante. Essaunidade interna de cada tipo de Estado condio para que se mantenhaa unidade entre o Estado e as relaes de produo que esse Estado per-mite reproduzir. Dcio Saes, no trabalho j citado, desenvolvendo as for-mulaes de Poulantzas, indicou que as vrias modalidades de rompi-mento da unidade interna do Estado podem gerar diferentes tipos de crisedo Estado. E ns veremos que o Estado absolutista um Estado feudalque, em situaes determinadas, conhece, pelo rompimento de sua unidadeinterna, situaes de crise no seu funcionamento.

    3. O carter feudal do Estado absolutista: contestaoda anlise de Poulantzas

    Nossa tentativa de indicar o carter de classe do Estado absolutistaesbarra em algumas limitaes. Em primeiro lugar, as indicaes tericassistematizadas acima no podem suprir plenamente a falta que faz oconceito de Estado feudal, ainda pouco desenvolvido na bibliografiamarxista. Em segundo lugar, a essa deficincia terica da bibliografiamarxista vem somar-se uma deficincia historiogrfica de ordem pessoal.Nossa referncia predominante ser o absolutismo francs, acima de tudopor se tratar do caso que conhecemos melhor embora se possa lembrarem favor do nosso procedimento que a monarquia francesa foi um casoexemplar de Estado absolutista. De qualquer modo, tais limitaes confe-rem s teses que iremos apresentar um carter tentativo e provisrio.

    3.1 O DireitoO carter essencialmente feudal do sistema jurdico do Estado abso-

    lutista aparece, no nosso modo de ver, na manuteno, sob o absolutismo,das ordens e dos estamentos existentes desde a Idade Mdia. De fato,tanto as ordens quanto os estamentos representam desigualdadesestabelecidas no terreno jurdico e no, como ocorre com as classes sociais,no terreno do processo produtivo.11 A diviso da sociedade em ordens fruto da desigualdade civil que o sistema jurdico impe aos agentes da

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    produo. Desse modo, o proprietrio feudal, como membro da ordemdos homens livres, possui, para retomar a frmula utilizada por Foignet,capacidade jurdica plena, enquanto o campons, se um servo, possuicapacidade jurdica restrita: o campons servo de gleba no usufrui daliberdade de locomoo (ele est adstrito gleba), no possui plenacapacidade de constituir famlia (direito de formariage) e no exerceplenamente o direito de propriedade (seus bens pessoais podem estarsujeitos mo morta; a parte que lhe cabe do produto do seu trabalhotem o seu uso sujeito a determinaes do senhor feudal as banalits).Os membros da ordem dos homens livres, embora possuam condiojurdica civil comum, encontram-se subdivididos em estamentos (nobreza,clero e plebe), em decorrncia de privilgios polticos, fiscais e honorficosatribudos aos estamentos superiores (nobreza e clero). Porm, a divisoestamental uma caracterstica derivada e secundria do direito feudal,pois a diviso em ordens, fundada na desigualdade civil, que incidediretamente sobre a posio dos agentes no processo produtivo ainferioridade civil que constrange o campons servo de gleba a fornecertrabalho excedente ao proprietrio feudal do solo.

    A grande maioria dos historiadores talvez por influncia do juristafeudal Carles Loyseau, que em 1610 publicou o seu muitas vezes reeditadoCinq livres du Droit des Offices, Suivi du Livre des Seigneuries et de celuides Ordres considera apenas a diviso estamental (nobreza, clero eplebe), ignorando que essa diviso se instaura no interior de uma unidademaior a ordem dos homens livres. Sem considerar o estamento comouma subunidade da ordem torna-se difcil explicar o posicionamento dasforas sociais na crise do Estado absolutista. A burguesia francesa, emagosto de 1789 defendeu, simultaneamente, a supresso dos estamentos organizao de uma assemblia de carter nacional e a manutenodas ordens decreto dito de extino dos direitos feudais, de 4 de agostode 1789, que, na verdade, manteve a situao servil do campons, namedida em que imps o pagamento de indenizao para a sua liberao.Esse entrave revoluo provocar uma guerra civil no campo, que sser resolvida, a favor dos camponeses, pelo governo jacobino em 1793.

    Nossa anlise do direito sob o absolutismo choca-se com uma tese muitocorrente, defendida, Dentre outros, pelo historiador Marc Bloch, tesesegundo a qual teria ocorrido, a partir do sculo XIII, um processo deextino gradativa da servido na Frana.12 Essa tese encampada por

    12. Marc Bloch Les caractres originaux de lhistoire rurale franaise, Paris, Librairie ArmandColin, 1976. Ver especialmente captulos III, IV e V. Outros autores procuram negar a existnciada servido na Frana Moderna aludindo, seja monetarizao dos tributos pagos pelo camponsao senhor feudal, seja finalidade, cada vez mais mercantil, da produo agrcola nesseperodo. No convm alongar-me sobre esse ponto. Quero apenas deixar registrados os motivospelos quais no aceito tais argumentos. Os dois argumentos desviam a anlise da relaoexistente entre os agentes no processo produtivo para aspectos que, na problemtica dos modos

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    vrios autores marxistas. Tal tese sustenta-se graas a uma concepo restritada situao servil, identificada com a servido pessoal, fundamentalmente,com a existncia da prtica da corvia. Ora, a partir do sculo XIII, segundomostram os estudos mais reconhecidos, declina acentuadamente a prticada corvia de uma mdia de 150 dias de trabalho gratuito por ano,calcula-se que, no sculo XVII, a corvia encontrava-se reduzida para umamdia de apenas 15 dias por ano. Alm disso, na mesma poca, algunsdireitos do senhor feudal sobre os bens pessoais e sobre a famlia dos servoscaem em desuso como o direito de mo morta e a formariage. Taismudanas levam esses autores a falar em extino da servido.

    Parece-nos necessrio, contudo, operar com um conceito mais amplode servido. Entender a situao servil como a propriedade limitada dosenhor sobre o produtor direto,13 contrapartida da restrio personalidadejurdica do servo. Tal conceito de servido contempla, pelo seu prpriocontedo, a possibilidade de variaes de grau na situao servil Engels, por exemplo, falar em servido pesada e servido atenuada (cartaa Marx de 22 de dezembro de 1882). Dessa perspectiva, e retomando apolmica com a anlise de Marc Bloch para o caso francs, o movimentodas alforrias, que se estende do sculo XIII a meados do sculo XVI,representou, para inmeras regies rurais, o fim da servido pessoal, masno da servido tout court.14 A reduo da corvia e a extino de direitoscomo a mo morta e a formariage so acompanhadas do surgimento dafigura jurdica, oriunda justamente do direito romano, do servo de gleba,o servo preso gleba e no mais, diretamente, pessoa do senhor feudal.De resto, convm lembrar que, no caso francs, ocorre um processo deregresso, ainda que parcial, servido pesada ao longo da segundametade do sculo XVIII. Os estudos de Albert Soboul mostraram aexistncia de um movimento, em grande parte exitoso, dos proprietriosfeudais para recuperar inmeros direitos feudais que tinham cado emdesuso a partir do Sculo XIII. Esse movimento reacionrio, tradicio-nalmente conhecido como reao feudal, afetou tambm, conformeveremos, a estrutura do Estado absolutista.

    A essa manuteno, ainda que atenuada, da subordinao pessoal doservo ao proprietrio feudal do solo, que detm a propriedade da gleba

    de produo, podem ser considerados secundrios. O meio de pagamento (trabalho, produto oudinheiro) no determina o carter social da renda da terra, e nem a finalidade da produo(mercado) constitui a diferena especfica de uma economia de tipo capitalista.

    13. Charles Parrain Evoluo do Sistema Feudal Europeu in Sobre o feudalismo, op. cit., p. 22-39.

    14. O caso francs tem comportado polmicas. Mas para a Europa Central e Oriental difciltentar dissociar o absolutismo da servido: nessa rea da Europa, a formao do Estado absolutistafoi acompanhada do desenvolvimento da chamada segunda servido. Ver sobre a segundaservido, Maurice Dobb Estudos sobre o desenvolvimento do capitalismo, Rio de Janeiro,Zahar Editores, 1969.

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    qual o servo est vinculado, isto , a essa manuteno da norma jurdicaservil corresponde a preservao, durante o perodo absolutista, da jus-tia senhorial, isto , das jurisdies senhoriais existentes em cada feudo.Como demonstra Edmond Seligman, apesar de o Estado absolutista tercentralizado o poder judicirio, reduzindo a esfera de competncia dasjurisdies senhoriais, essas no foram jamais abolidas sob o absolutismo.Assim, a estrutura do judicirio, sob o absolutismo, em correspondnciacom a manuteno da norma jurdica da servido, preserva, tambm, esseaparelho de justia privada do senhor feudal que so os tribunaissenhoriais.15

    O sistema jurdico do Estado absolutista, na medida em que distri-bui de maneira desigual os agentes da produo num sistemahierrquico de ordens e estamentos e que se corporifica em instituiesparticularistas, bloqueia, justamente, e ao contrrio do que afirmaPoulantzas, a formao da ideologia da cidadania e da figura ideo-lgica do povo-nao, efeitos particulares de um Estado de tipoburgus. Sob o Estado absolutista a ideologia do igualitarismo jurdicoe do povo-nao, isto , a ideologia da cidadania e do discursonacional forma-se, precisamente, em contraposio a esse Estado eser um componente de sua crise final. O sistema jurdico inigualitrioe particularista do Estado absolutista no permite a concluso dePoulantzas segundo a qual tal sistema j se caracterizaria por um nvelavanado de formalismo e de generalizao.

    3.2 O burocratismoO burocratismo do Estado absolutista, tal qual o direito, tambm de

    carter feudal. Dois fenmenos muito estudados pelos historiadores doperodo absolutista, o carter estamental do exrcito e a venalidade decargos do Estado, ilustram, de modo exemplar, essa nossa afirmao.

    As foras armadas representam um setor fundamental da burocraciade qualquer aparelho de Estado. Em todos os Estados absolutistaseuropeus, o acesso condio de oficial na instituio militar estevevedado aos membros da ordem dos servos, o que incapacita a classedominada fundamental, os camponeses servos de gleba, para o exercciodas funes de comando nesse ramo do aparelho de Estado.16 Bastariaesse fato para provar que esses Estados esto organizados de acordocom a regra fundamental do burocratismo de tipo pr-capitalista (e

    15. Edmond Seligman La Justice en France pendant la Rvolution 1789-1792, Paris, LibrairiePlon, 1901.

    16. A mesma interdio vigora para a burocracia civil administrao e judicirio. Porm, aminha anlise restringir-se- s foras armadas do Estado absolutista.

  • 78 OS TIPOS DE ESTADO E OS PROBLEMAS DA ANLISE POULANTZIANA...

    feudal): o monoplio dos cargos de mando no aparelho de Estado pelosmembros da classe dominante. Porm, o carter particularista dosexrcitos abslolutistas apresenta-se ainda mais acentuado quando, empocas e pases diversos, a seleo para a oficialidade passa a basear-seno mais apenas ao critrio de pertencimento de ordem, mas, tambm,na situao estamental do indivduo. justamente esse o caso da Franana segunda metade do sculo XVIII, quando se acabou quase porrestringir o acesso oficialidade do exrcito a apenas um setor restritode um dos estamentos da ordem dos homens livres a nobreza deespada. Eis algo que contradiz frontalmente as anlises que, como aefetuada por Tocqueville, insistem na suposta vocao modernizadorado absolutismo francs.17

    O processo conhecido como a reao feudal no exrcito francs inicia-se com o edito real de 1758, que estabelece a exigncia de ttulo de nobrezapara os candidatos s escolas militares. Em 1776, a monarquia francesaprobe a venalidade de cargos no exrcito, cortando o caminho que restava,a partir do edito de 1758, aos burgueses plebeus para ingressarem naoficialidade. E, finalmente, em 1781, o regulamento do ministro Sgurestabelece a exigncia de quatro graus de nobreza para os candidatos sescolas militares, barrando, agora, o acesso da prpria nobreza de togarecente ao oficialato. s vsperas da Revoluo de 1789, o carter esta-mental da instituio militar encontra-se enrijecido.18

    A venalidade de ofcios outra caracterstica indicadora do carterpr-burgus da estrutura dos Estados absolutistas, e ela uma prticacorrente em toda Europa.19 o monoplio das funes de Estado pelosmembros da classe dominante, norma bsica do burocratismo pr-burgus,que possibilita a existncia da venalidade de ofcios, prtica que atesta avigncia, nos Estados absolutistas, de uma das normas secundrias doburocratismo pr-burgus que a no-separao entre os recursosmateriais do Estado e os bens pertencentes aos membros da classedominante. De fato, apenas instituies estatais particularistas podem fundiros cargos e os recursos do Estado com o patrimnio privado dos seusocupantes, que aparecem, ento, como funcionrios-proprietrios do

    17. Alexis de Tocqueville, O antigo regime e a Revoluo, Braslia, Editora Universidade deBraslia, 1979.

    18. Segue existindo, verdade, o ingresso de plebeus no oficialato, pela via da carreira realizadana tropa os chamados oficiais de fortuna. Contudo, o nmero de plebeus entre os oficiais pequeno. Em 1789, 90% dos oficiais do exrcito francs eram nobres 9 mil num total de 10 miloficiais em servio. Nesses 9 mil deve existir um contingente de pessoas enobrecidas atravs daaquisio, permitida at 1776, de um cargo de oficial. J. P. Bertaud, La rvolution arme, lessoldats-citoyens et la Rvolution Franaise, Paris, Robert Lafont, 1979.

    19. P. Goubert, Un problme mondial: la venalit des offices in Annales, 1953, v. 8.

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    Estado. Tal fuso invivel em instituies estatais formalmenteuniversalistas, isto , burguesas.20

    A venalidade de ofcios, tal qual o carter estamental do exrcito,amplia-se (crescimento do nmero de cargos venais) e se aprofunda (apropriedade do ocupante sobre o cargo torna-se plena) justamente sob oEstado absolutista. No caso francs, pelos editos de 1467 e de 1520, otitular do ofcio declarado inamovvel, salvo nos casos em que sejapaga uma vultuosa soma a ttulo de reembolso pelo cargo perdido, ou noscasos em que a destituio autorizada aps um longo e complexoprocesso judicial. Em 1524, Francisco I cria o Tesouro das Partes Casuaise Inopinadas que servia como uma espcie de loja para a venda dessanova mercadoria, no dizer de R. Mousnier, autor de um livro clssicosobre a venalidade de ofcios. E finalmente, em 1604, o decreto do ministroPaulet instaura a hereditariedade plena do ofcio. O resultado dessaevoluo legislativa que na Frana do Sculo XVII nada menos quedois teros dos cargos de Estado so venais e ocupados por officiers. Aafirmao progressiva, sob o absolutismo, de um sistema no qual o cargode Estado propriedade privada passvel de comercializao e detransmisso por herana outra tendncia a contradizer as anlises queinsistem na vocao modernizadora do Estado absolutista.

    Outra prtica dos Estados absolutistas que ilustra essa no-separaoentre os recursos do Estado e os bens de propriedade da classe dominante aquilo que na Frana era chamado de sistema de arrematao. Consistia,esse sistema, na outorga da autoridade fiscal do Estado a companhiasparticulares. Nem a venalidade de ofcios, nem o sistema de arrematao,foram objeto, salvo engano, de uma anlise que rompesse com oempiricismo. Na verdade, falta aos historiadores o conceito deburocratismo pr-capitalista para a anlise desses fenmenos. No caso davenalidade de ofcios, ela explicada pela necessidade que o Estadoabsolutista tem de aumentar suas receitas. Entre a necessidade de dinheiroe a deciso da monarquia de ampliar a venda de ofcios omitido o elofundamental da explicao: a estrutura de Estado que permite que o reilance mo da venda de cargos do Estado. Em certas pesquisas, a ausnciado conceito de burocratismo pr-capitalista leva os autores a um moralismoanacrnico. Eles passam a denunciar a institucionalizao da corrupopermitida pela prtica da venalidade de ofcios. Nada mais, nada menos,

    20. Sobre a venalidade de ofcios consultar: a) Pierre Chaunu Ltat dOffices, captulo IV deLtat in Histoire economique et sociale de la France, tomo I, Paris, Presses Universitaires deFrance, 1979; b) Lucien Febvre La venalit des offices in Annales, 1948, v. 3; c) G. Durand Lepersonnel administratif in tat et Institutions XVI-XVIIIme Sicle, Paris, Armand Colin, 1969; d)H. Lapeyere La venalidad de los cargos administrativos in Las monarquias del Siglo XVI,Barcelona, Coleo Nueva Clio, 1979; e) P. Goubert Un Problme Mondial: La Venalit desOffices, op. cit.

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    21. O chamado despotismo esclarecido outro aspecto da poltica absolutista que costuma serassociado a um projeto de transio (no caso, uma transio conservadora, pelo alto) para ocapitalismo. No desenvolveremos, aqui, a crtica dessa tese. Albert Soboul j o fez de modoconvincente. Ver Albert Soboul La fonction historique du absolutisme clair in Albert SoboulComprendre la Rvolution, Paris, Librairie Franois Maspero.

    do que examinar o Estado feudal com os culos fornecidos pela ideologiaburguesa do Estado.

    No possvel falar, ao contrrio do que pretende Poulantzas, emfunes pblicas para caracterizar as instituies e funes do Estadoabsolutista. Do mesmo modo que na anlise do direito, Poulantzas parececonfundir a descentralizao medieval com particularismo e a centralizaoabsolutista com universalismo, quando essa ltima se deu sob o signo domonoplio dos cargos de Estado pelos membros da classe dominante. Deresto, Engels tambm parece ter incorrido nesse amlgama, ao opor oexrcito arregimentado ocasionalmente pelo senhor feudal ao carterpermanente do exrcito monrquico que seria, enquanto instituiopermanente, uma instituio de tipo burgus.

    O Estado absolutista, com seu direito inigualitrio e com suasinstituies particularistas, desempenha a funo de reproduzir as relaesde produo feudais. Um governo que procurasse implementar umapoltica de transio ao capitalismo esbarraria num limite estrutural preciso:o Estado absolutista impede o desenvolvimento de um mercado de trabalhopois isso supe a existncia de um direito igualitrio, isto , supe aexistncia de um Estado cuja estrutura distinta da estrutura do Estadoabsolutista. Da, a estrutura do Estado absolutista determinar o carter(feudal) das polticas que esse Estado est apto a implementar.

    3.3 A poltica mercantilistaA tese de que a estrutura (feudal) do Estado absolutista determina o

    carter (tambm feudal) da poltica desse mesmo Estado traz imediata-mente ao esprito a existncia do mercantilismo, poltica correntementetomada como expresso de um projeto estatal de transio para ocapitalismo. O mercantilismo no representa o conjunto da poltica dedesenvolvimento do Estado absolutista, mas apresentado, correntemente,como a prova maior da natureza capitalista desse Estado. ao mercanti-lismo que Poulantzas se refere quando sustenta que a poltica do Estadoabsolutista destri as relaes de produo feudais e desenvolve as relaesde produo capitalistas. Isso nos obriga a tecer algumas consideraessobre esse ponto.21

    A assimilao, muito comum, do mercantilismo a uma poltica detransio para o capitalismo est, acredito, associada a dois equvocos.De um lado, a um equvoco historiogrfico: a maioria dos historiadores

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    imputa poltica mercantilista prtica que ela, de fato, no parece terensejado. Alguns historiadores tm se dedicado a corrigir esse erro factual.Procuram mostrar que a poltica mercantilista reiterou as relaes deproduo feudais, ao invs de ensejar, como correntemente se supe, aprtica do assalariamento do produtor direto. De outro lado, parece-meque a caracterizao do mercantilismo como uma poltica de transiopara o capitalismo est associada a um equvoco terico: a identificaoda genealogia dos elementos de um modo de produo com a implantaoda estrutura desse modo de produo. Vejamos.

    O mercantilismo a poltica de desenvolvimento comercial emanufatureiro implementada, em pocas distintas, pelos diversosEstados absolutistas. O carter feudal dessa poltica aparece nesses seusdois aspectos. Em primeiro lugar, e o mais importante, aparece no planodas relaes de produo: as chamadas manufaturas criadas graas aosincentivos da poltica mercantilista no merecem, na grande maioriados casos, essa denominao, pois so estabelecimentos que utilizam otrabalho servil, e no o trabalho assalariado, como demonstram asinvestigaes do historiador sovitico Joseph Koulischer.22 Em segundolugar, o carter feudal dessa poltica aparece no plano do desenvolvimentocomercial: o comrcio estimulado pela poltica mercantilista apenasdentro dos limites permitidos pelas relaes de produo e pela estruturajurdico-poltica feudais.

    A prtica corrente na Frana, na Alemanha e na Rssia absolutistas autilizao do trabalho compulsrio nas manufaturas. Vagabundos, men-digos, criminosos, soldados, idosos, doentes e crianas so submetidos,por instituies ocupadas de sua tutela, como as casas de caridade, cadeias,quartis, asilos, hospitais e orfanatos, ao trabalho compulsrio numamanufatura a servio de um empresrio. Koulischer mostra a exis-tncia de verdadeiros asilo-manufatura, orfanato-manufatura, hos-pital-manufatura, etc. Cita documentos que atestam que essas instituiesso criadas com a finalidade expressa de fornecer trabalho servil smanufaturas que as monarquias absolutistas visavam estimular. tambm muito comum, principalmente na Alemanha e na Rssia, a fi-gura do servo de ganho, o campons servo de gleba que alugado,pelo senhor, a um proprietrio de manufatura. A dominncia do tra-balho compulsrio nesses estabelecimentos no decorre simplesmente doscostumes da poca. Resulta, isto sim, do funcionamento da estruturajurdico-poltica feudal do Estado absolutista, obstculo ao desenvol-vimento do trabalho livre assalariado. Diante disso, difcil aceitar a tese

    22. Joseph Koulischer La grande industrie au XVIIe et au XVIIIe sicles: France, Allemagne,Russie in Annales, 1931, v. 3.

  • 82 OS TIPOS DE ESTADO E OS PROBLEMAS DA ANLISE POULANTZIANA...

    de Poulantzas segundo a qual o Estado absolutista difunde as relaes deproduo capitalistas.

    Nicos Poulantzas alude, tambm, prtica do cercamento dos camposna Inglaterra, os enclosures, quando sustenta o carter pr-capitalista dapoltica do Estado absolutista. Esse , de resto, um argumento muitocomum. A julgar pelo captulo de Marx sobre a acumulao primitiva,existe nesse argumento um erro factual. Antes da Revoluo Inglesa de1640, o Estado estabelece uma srie de leis que inibem a prtica dosenclosures. Marx fala que, sob o absolutismo, o cercamento uma prticaprivada e desestimulada pelo Estado. apenas aps a revoluo, isto ,aps o fim do Estado absolutista, que o Estado passar a estimular ocercamento dos campos. Tal se d, principalmente, a partir da Revoluode 1688. Marx falar ento dos cercamentos como uma prtica legal,estimulada pelo Estado.23

    Quanto ao desenvolvimento comercial, o segundo aspecto da polticamercantilista, so as limitaes que lhe so impostas que indicam o carterfeudal desse desenvolvimento. O Estado absolutista no removeu asbarreiras que o modo de produo feudal antepunha ao comrcio. Aausncia de um mercado nacional unificado (manuteno das alfndegasinternas, fortalecimento e ampliao das corporaes e dos monoplioslocais) e a ideologia feudal (lei da usura, estigmatizao das atividadesmercantis, consideradas aviltantes) limitavam a expanso mercantil edesviavam parte do capital acumulado no comrcio para a compra deofcios e de terras nobres as vias comuns de enobrecimento de umaburguesia limitada em sua ao e atrada pelo mundo feudal. O resultadodisso aquilo que muitos historiadores caracterizam como aartificialidade do desenvolvimento manufatureiro e mercantilpropiciado pelo mercantilismo. Grande parte das companhias e manu-faturas criadas na Frana, na Prssia e na Rssia no sobreviveram aColbert, a Frederico, o Grande e a Pedro, o Grande. Situao que contrastacom a consolidao do desenvolvimento comercial e manufatureiro quese verifica na Inglaterra e na Holanda, isto , justamente nos dois pasesem que o Estado feudal absolutista havia sido destrudo por revoluespolticas burguesas j no sculo XVII.

    Nada disso significa que, apesar dos limites apontados, o mercantilismono tenha permitido a acumulao de capitais em poucas mos e, dessemodo, dado origem a um dos elementos do modo capitalista de produo.Porm, tal fato no pode ser apresentado como prova do carter capitalistado mercantilismo. O mercantilismo permite a acumulao primitiva de

    23. Karl Marx, El Capital, tomo I, captulo XXIV, especialmente o item 2: Como fue expropriadade la tierra la poblacin rural. Utilizo a edio em espanhol do Fondo de Cultura Econmica,cidade do Mxico, 1973, 7a edio.

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    capital, mas, justamente, essa uma acumulao que precede a acumulaode tipo especificamente capitalista. Ao mesmo tempo que propicia oaparecimento de um dos elementos do modo capitalista de produo, omercantilismo orienta esse capital acumulado no comrcio para umaaplicao no-capitalista a explorao do trabalho servil. Omercantilismo contribuiu para a formao de um dos elementos do modode produo capitalista, mas, ao mesmo tempo, bloqueou a formao daestrutura do modo capitalista de produo. nesse ponto que eu considerohaver um equvoco terico entre os estudiosos do Estado absolutista. Agnese de um elemento do modo de produo no pode ser confundidacom o processo de formao de sua estrutura. O comrcio e a concentraode capital em poucas mos tambm ocorreram em outras formaessociais, como aquelas dominadas pelo escravismo antigo, e graas poltica do Estado escravista, sem que, por isso, o modo de produocapitalista tenha se formado no declnio da Antigidade. a formao daestrutura de um modo de produo, e no a gnese de cada um de seuselementos, que configura o processo de transio para esse modo deproduo.24

    3.4 A crise do Estado absolutistaUm mesmo tipo de Estado pode apresentar caractersticas secundrias

    distintas nas diferentes formaes econmico-sociais. A caracterizaodo Estado absolutista como um Estado de tipo feudal no implica negarque esse Estado tenha apresentado diferenas importantes frente ao Estado,tambm de tipo feudal, do perodo medieval. O prprio termo absolutismoindica uma dessas diferenas. O Estado absolutista, ao contrrio do Estadofeudal do perodo medieval, no qual funciona uma democracia para oconjunto da classe dos proprietrios feudais, um Estado feudal queassume a forma ditatorial: o poder decisrio est concentrado nas mosdo monarca, cuja indicao para o comando do Estado no depende denenhuma consulta ao conjunto dos proprietrios feudais e que representa,diretamente, apenas uma frao da classe dominante, aquela que integraa chamada nobreza da corte.25 Porm, uma diferena dessa natureza no

    24. Etienne Balibar Acerca de los conceptos fundamentales del materialismo histrico, inLouis Althusser Ler El Capital, Cidade do Mxico, Siglo Vienteuno Editores, 1970, 4a ed.

    25. Sobre o funcionamento do parlamento medieval como instrumento da democracia dosproprietrios feudais, consultar G. Poggi, A evoluo do Estado Moderno, Rio de Janeiro, ZaharEditores, 1981, captulos II e III. O fato de o Estado absolutista ser uma ditadura (Hill) querepresenta a hegemonia poltica dos grandes proprietrios feudais (Lemarchand) explica osconflitos e divergncias que surgem, de um lado, entre a pequena nobreza de provncia e anobreza da corte e, de outro lado, entre essa e o governo na crise revolucionria aberta em1789. Christopher Hill Um comentrio, op. cit.; G. Lemarchand Feudalismo e sociedaderural na Frana Moderna, op. cit; Albert Soboul, A Revoluo Francesa, So Paulo, Difel, 1974.

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    diz respeito ao tipo de Estado, e pode ser considerada como uma variaono interior de uma mesma estrutura feudal de Estado. A mesma afirmao vlida para a relativa unificao territorial e para a centralizao doprocesso decisrio fenmeno que no se identifica com o despotismomonrquico tambm propiciadas pelo absolutismo.

    A transformao que, esta sim, produziu contradies na estrutura doEstado absolutista foi o surgimento de componentes profissionalizantes-burocratizantes na estrutura desse Estado. O Estado absolutista segue sendoum Estado feudal, mas, diferena do Estado medieval, ele um Estadofeudal contaminado pelo germe do burocratismo burgus. A estrutura doEstado absolutista desenvolve normas contraditrias de organizao. Essacontradio ser um dos fatores ativos na crise do Estado absolutista noperodo das revolues polticas burguesas.

    Essa existncia de normas contraditrias no permite, contudo, quese caracterize o Estado absolutista como um Estado nem feudal, nemcapitalista, tese que poderia ser sugerida por algumas passagens daanlise de Poulantzas. De fato, numa passagem do seu texto, p. 186,Poulantzas refere-se ao Estado absolutista como um Estado com traosmarcadamente capitalistas, embora, ao longo de todo o texto, ele carac-terize o Estado absolutista como Estado capitalista e utilize, regularmente,essa ltima denominao. Vale a pena observar que Max Weber tambmsustenta, a partir de outra problemtica terica, uma idia homloga.Para ele, no Estado absolutista, teramos um equilbrio entre compo-nentes contraditrios patrimoniais (arcaicos) e burocrticos (moder-nos).26 A improcedncia da caracterizao do Estado absolutista comoum Estado nem feudal, nem capitalista, deve-se, a nosso ver, a doisfatores. Primeiro, os componentes de burocratismo burgus presentesna estrutura desse Estado nunca se desenvolveram de modo a burocra-tizar plenamente qualquer ramo do aparelho de Estado. A burocrati-zao existiu apenas em germe. Segundo, a funo social que esse Estadodesempenha no a de dirigir, como estamos tentando demonstrar, atransio para o capitalismo.

    Ilustraremos, mais uma vez, com o caso do absolutismo francs.Franois Hincker e Perry Anderson27 so convincentes ao atribuir o esboode burocratizao das instituies do Estado feudal absolutista aosconflitos comerciais e militares, que ocorrem na chamada Idade Moderna,

    26. Ver Max Weber Feudalismo e Estado estamental in Octvio Ianni (org.) Teorias daestratificao social, So Paulo, Companhia Editora Nacional, 1972, p. 186-239.

    27. Franois Hincker Contribuio discusso sobre a transio do feudalismo ao capita-lismo: a monarquia absoluta francesa, op. cit; Perry Anderson, El Estado absolutista, op. cit.,p. 82 e ss, 115 e ss.

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    entre as classes dominantes feudais europias. a Guerra dos Cem Anos(1337-1453) que impe, na Frana, a criao da taille royale (1439) oprimeiro imposto importante de amplitude nacional arrecadado pelamonarquia e a formao das Compagnies dOrdonnance de CarlosVII, o embrio, com um contingente ainda modesto de cerca de 12 milhomens, de um exrcito permanente. A Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) impe a triplicao da receita do Estado. Durante o reinado deLouis XIV (1661-1714), os conflitos militares sucessivos impem oaprofundamento da tendncia profissionalizao-burocratizao doexrcito monrquico-feudal francs: a funo de oficial passa a apresentarcaractersticas de uma profisso. So criadas as academias militares, introduzido o pagamento regular e o uniforme. O contingente permanentedo exrcito salta de 50 mil para 300 mil homens.

    Devemos nos precaver, contudo, contra uma viso unilinear daevoluo das instituies do Estado absolutista. tendncia burocra-tizante ope-se outra tendncia: a do revigoramento da estrutura feudaldesse Estado. De um lado, como j vimos anteriormente, a reao feudalno exrcito logrou, na segunda metade do sculo XVIII, retomarposies perdidas para o processo embrionrio de profissionalizaodos oficiais. De outro lado, as mesmas causas que geram a tendnciaprofissionalizante, isto , a concorrncia comercial e os conflitosmilitares, produzem, tambm, um efeito oposto. As guerras aumen-tam a necessidade de receita do Estado absolutista e levam-no a recor-rer, de forma crescente, como meio para obteno do equilbrio ora-mentrio, venda de ofcios, permitida pela estrutura feudal do Estadoabsolutista. Uma mesma e nica causa produz efeitos contraditrios eaprofunda, dessa maneira, a contradio inscrita na estrutura do Estadoabsolutista. Tal contradio estrutural reflete-se no nvel da prtica dosagentes do Estado.

    Surgem, no seio do exrcito absolutista, dois tipos distintos deoficiais. De um lado, os oficiais plebeus que aspiram pela reforma doregulamento do exrcito. Sua palavra-de-ordem : os cargos devem serdestinados ao talento e ao mrito. O atendimento dessa aspirao exigiriaque se completasse a profissionalizao embrionria existente no exrcito,passando o recrutamento e a promoo na carreira de oficial a serembaseados exclusivamente no critrio da competncia e no mais nocritrio da filiao estamental. Trata-se de uma aspirao, portanto, queimplica a transformao das instituies particularistas do Estadoabsolutista em instituies formalmente universalistas. Os oficiais plebeusobjetivam, em decorrncia de motivaes especficas oriundas de suasituao na estrutura do Estado, a formao de um Estado de tipo burgus.De outro lado, temos os oficiais nobres, vinculados classe dominante

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    feudal que, justamente, se opem, como mostram as leis que configurama denominada reao feudal, presso pela profissionalizao doexrcito.

    Essa luta entre dois tipos de agentes do Estado em torno das normasde organizao do prprio aparelho de Estado um dos fatores ativosna produo da crise de funcionamento do Estado feudal na conjun-tura de 1789. De fato, a monarquia francesa no pde reprimir de modoeficaz as insurreies populares antifeudais de maio-julho de 1789porque, dentre outras razes, os oficiais plebeus negaram-se a reprimirum movimento no qual viam, justamente, a possibilidade de implantar acompleta profissionalizao do exrcito.28 A duplicidade de critrios naqual se assentava a estrutura do Estado absolutista componentesprofissionalizantes versus critrio estamental introduz umacontradio no seio desse Estado. Essa contradio eclode, sob a formade crise do Estado, no final do sculo XVIII, impedindo o Estadoabsolutista de cumprir a sua funo fundamental de defesa da ordemfeudal ameaada pela revoluo.

    Nessa crise do Estado absolutista, deve-se distinguir dois tipos decontradio. Uma, j analisada, que ope oficiais plebeus aos oficiaisnobres e que diz respeito luta pela completa profissionalizao doexrcito. Outra contradio a que corta horizontalmente a instituiomilitar, opondo a sua base popular, a massa dos soldados, ao conjuntodos oficiais. Os soldados resistem ordem de reprimir as massas revolu-cionrias no em decorrncia de motivaes provenientes da posio queocupavam no aparelho de Estado, como ocorre com os oficiais que lutampela profissionalizao, mas, sim, devido aos interesses correspondentes sua situao de classe camponeses, artesos e lojistas.29 Essa segundacontradio , portanto, um simples reflexo no interior do Estado dacontradio de classe que atravessa a sociedade e, no, uma contradiooriunda, como a primeira, do conflito entre normas internas de organizaodo Estado.

    4. Concluso

    Quero reafirmar que estas notas devem ser lidas como um ensaiocercado de limitaes tericas (o desenvolvimento incipiente do conceito

    28. Os cargos ao talento e ao mrito, Igualdade! Igualdade!. A reivindicao do TerceiroEstado percorreu, no exrcito, as camadas do baixo oficialato e dos oficiais de fortuna sados daplebe. As lutas que agitaram o corpo civil ocorreram da mesma forma nos regimentos e impediramo poder de usar o exrcito como fora repressiva. J. P. Bertaud, La rvolution arme, les soldats-citoyens et la Rvolution Franaise, op. cit., p. 35.

    29. Conforme J. P. Bertaud, op. cit, p. 35-46.

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    de Estado feudal) e historiogrficas (nosso conhecimento limitado dahistria do absolutismo). Se ns decidimos, apesar disso, public-las, porque acreditamos que nossa hiptese combina, de modo original, parteda reflexo terica e do material historiogrfico disponveis. Repetida essaadvertncia, apresentamos nossa concluso.

    O Estado absolutista foi, pela sua estrutura jurdico-poltica e pelapoltica que implementou, um Estado pr-capitalista de tipo feudal.Chegamos a essa concluso, ainda que provisria, operando com osconceitos poulantzianos de tipos de Estado e contrariando a anlise que oprprio Poulantzas faz do Estado absolutista no Poder poltico e classessociais. Poulantzas caracterizou o Estado absolutista como um Estado detipo capitalista, tanto por se afastar do seu prprio conceito de Estadocapitalista, apresentando a (relativa) centralizao poltica e administrativaoperada pela monarquia absoluta como ndice ou prova da mudana detipo de Estado, quanto por possuir uma compreenso equivocada de fatose de processos histricos relativos estrutura jurdico-poltica e polticado Estado absolutista.

    Para ns, enquanto Estado feudal, o Estado absolutista reproduzia aestrutura econmica feudal e bloqueava um desenvolvimento de tipo capita-lista. Dessa perspectiva, a revoluo burguesa, entendida como um processopoltico de transformao da estrutura do Estado e da correspondentemudana da classe social que detm o poder de Estado, adquire importnciadecisiva na transio ao capitalismo. Se se considera, ao contrrio, que oEstado absolutista um Estado capitalista, surgem duas opes na abordagemda revoluo. A primeira opo aquela representada por Alexis deTocqueville. Ele considera o Estado absolutista um Estado moderno. ParaTocqueville, a Revoluo Francesa nada mais fez do que dar continuidade obra de modernizao poltica que teria sido iniciada pela monarquiaabsolutista. Rigorosamente falando, e tomando o conceito marxista de revo-luo, para Tocqueville no teria ocorrido uma revoluo na Frana em1789-1794. Poulantzas apresenta outro enfoque. Ele considera que houveum processo de revoluo burguesa e que tal processo foi necessrio, issoporque, para Poulantzas, no Estado absolutista, a nobreza feudal seria aclasse politicamente dominante.30 Chegamos, ento, ao seguinte: o Estadoabsolutista, que um Estado capitalista e tem a funo de destruir as rela-es feudais de produo, organiza a dominao poltica da nobreza feudal.Ou seja, o preo que Poulantzas pagou para manter a tese de que asrevolues burguesas destruram o Estado absolutista, foi o de enredar-senuma contradio: o Estado absolutista seria um Estado capitalista queorganiza a dominao da classe feudal.

    30. Poulantzas, op. cit., p. 184-186.

  • 88 OS TIPOS DE ESTADO E OS PROBLEMAS DA ANLISE POULANTZIANA...

    Ora, porque o Estado absolutista era um Estado feudal, apropriadopara a reproduo das relaes feudais de produo, que foi necessriauma revoluo poltica burguesa para realizar a transio ao modo deproduo capitalista. Essa revoluo criou o Estado burgus e, ao faz-lo,fundiu elementos tecnolgicos, econmicos e sociais, forjados por umlongo desenvolvimento histrico, numa unidade estrutural nova o modode produo capitalista.

  • BOITO Jr., Armando. Os tipos de Estado e os problemas da anlise poulantziana do Estado absolutista. Crtica Marxista, So Paulo, Xam, v.1, n.7, 1998, p.67-88.

    Palavras-chave: Poulantzas; Estado absolutista; Teoria do Estado; Historiografia marxista.