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1 TENDÊNCIA SOCIALISMO | BOLETIM #5 | JUNHO 2014 REGULAMENTO DA II ASSEMBLEIA DA TENDÊNCIA SOCIALISMO PROJETO DE MOÇÃO POLÍTICA > catarina martins, joão semedo textos de contributo: > francisco louçã > jorge costa > rui maia

Boletim #5 socialismo

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1TENDÊNCIA SOCIALISMO | BOLETIM #5 | JUNHO 2014

REGULAMENTO DA II ASSEMBLEIA DA TENDÊNCIA SOCIALISMO

PROJETO DE MOÇÃO POLÍTICA > catarina martins, joão semedo

textos de contributo:> francisco louçã> jorge costa> rui maia

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1 – CONVOCAÇÃOa) O processo preparatório da II Assembleia iniciou--se com a aprovação do presente regulamento pela Coordenadora da Tendência, a 14 de junho de 2014;b) A II Assembleia foi convocada para domingo, 29 de junho de 2014, em Lisboa, com a seguinte Ordem de Trabalhos:1 – Discussão e votação das Moções de Orientação Política;2 – Eleição da Coordenadora da Tendência Socialismo.

2 – COMISSÃO ORGANIZADORA DA AS-SEMBLEIAa) A Comissão Organizadora da Assembleia (COA) é composta por Cristina Andrade, Filipa Gonçalves e Tiago Ivo Cruz.b) A COA cessa funções no momento da eleição da Mesa da Assembleia.

3 – MOÇÕES DE ORIENTAÇÃOa) Qualquer grupo de cinco aderentes pode apresen-tar à Assembleia uma Moção de Orientação. Estas moções deverão ser entregues à COA até 21 de junho, serão divulgadas por email no momento da sua entrega e compiladas no boletim da Assembleia #1, a enviar nesse dia (por email). As moções deverão ser entregues em suporte informático através do ende-reço [email protected] e não devem ultrapassar os vinte mil caracteres.

b) Até 21 de junho, qualquer aderente pode enviar textos de contributo que serão enviados no boletim da Assembleia #1. Os contributos entregues entre 21 e 27 de Junho serão publicados no boletim da Assembleia #2 a entregar em papel na Assembleia, juntamente com as moções e contributos anteriores. Os textos de contributo deverão ser entregues em su-porte informático e não poderão ultrapassar os cinco mil caracteres.

c) Na Assembleia, qualquer aderente pode propor adendas e alterações à moção de orientação na qual se reconheça na generalidade. Se o fizer antecipada-mente e por escrito, essas propostas serão publicadas no boletim #1 ou #2. As adendas e alterações não incluídas pelos proponentes das moções poderão ser levadas a votação na Assembleia.

4 – LISTAS PARA COORDENADORAa) As listas candidatas à Coordenadora deverão ser apresentadas à Mesa da Assembleia Geral por um mínimo de cinco inscritos.b) Os órgãos eleitos respeitarão o princípio de atribui-ção de mandatos pelo método da proporcionalidade direta.

REGULAMENTO DA II ASSEMBLEIA DA TENDÊNCIA SOCIALISMOLisboa, 29 de Junho de 2014

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PROJETO DE MOÇÃO POLÍTICA DA TENDÊNCIA SOCIALISMOLisboa, 29 de Junho de 2014

Catarina Martins, João Semedo

II  Assembleia  da  Tendência  Socialismo,  29  de  junho  2014  Projeto  de  moção  política  Catarina  Martins,  João  Semedo      1.   Os   resultados   europeus   das   eleições   para   o   Parlamento   Europeu   evidenciam   de   forma  muito  clara  os  processos  de  desagregação  que  ameaçam  a  União  Europeia:  o  centralismo  e  autoritarismo  acentuam  o  confronto  de  interesses  de  vários  países  com  a  política  da  UE;  onde  a  esquerda   for   fraca,  o  esvaziamento  da  democracia  pelo   federalismo  e  pela   financeirização  da  política  afasta  os  cidadãos  e  abre  o  campo  a   respostas  ultraconservadoras;  a  UE  promoveu  a  militarização   das   suas   fronteiras     e   alimenta   estratégias   de   tensão   com   graves   efeitos  permanentes  (Ucrânia,  Médio  Oriente).  Esta  UE  não  é  reformável,  o  que  impõe  e  define  a  nossa  estratégia  europeia:  proteger  Portugal  desta  UE,  recusar  a  agressão  dos  tratados  europeus  e  da  austeridade,   estimular   todas   as   alianças   com   as   esquerda   europeia   por   uma   União   da  democracia  contra  a  União  da  finança.          2.  A  desagregação  do  sistema  político  português  vai  acelerar-­‐se,  aumentar  a  pulverização  e  o  campo   para   novos   fenómenos,   mesmo   que   efémeros,   e   manter   fortes   tendências  abstencionistas.  Sem  uma  esquerda  forte,  é  grande  o  risco  de  um  governo  do  bloco  central  ou  do  PS  com  uma  política  austeritária  e  centrista.  Este  risco  é  agravado  pelo  empenho  do  PS,  com  o   apoio   do   PSD,   numa   nova   lei   eleitoral   destinada   a   eternizar   no   poder   os   partidos   da  alternância.    3.  O  nosso  foco  estratégico  é  a  reestruturação  da  dívida,  para  acabar  com  a  austeridade,  fazer  crescer  a  economia  e  o  emprego,  defender  a  democracia  constitucional.  A  dívida  é  o  pretexto  para  a  austeridade,  a  destruição  dos   serviços  e  empresas  públicas  e  o  ataque  à  Constituição,  com  a  troika  e  agora  com  a  aplicação  do  Tratado  Orçamental.  Por  isso,  a  reestruturação  que  a  esquerda  tem  que  defender  implica  um  forte  abatimento  da  dívida  que  assegure  a  autonomia  do  país  a  longo  prazo  diante  dos  mercados  financeiros.  É  em  torno  desta  proposta  e  deste  foco  estratégico   que   fazemos   alianças.   Não   se   pode   perder   mais   tempo.   Se   essa   reestruturação  profunda  não  ocorrer  em  tempo  útil,  o  povo  português  terá  de  escolher  entre  a  existência  do  estado   social   e   a   continuação   do   país   no   euro.   Nesse   contexto,   o   Bloco   não   aceitará   mais  sacrifícios  sobre  o  povo  para  pagar  a  permanência  na  moeda  única.      4.  A  nossa  hipótese  política  essencial  para  o  futuro  próximo  é  que  o  Tratado  Orçamental  vai  ser   aplicado  por  um  governo  do  bloco   central  ou  do  PS.  Para   responder  a  essa  hipótese,   é  necessário   construir   uma   forte   alternativa   à   esquerda   do   PS,   a   partir   da   convergência   das  forças  que   rejeitam  a  austeridade  e  qualquer  governo  que  a  aplique.  Esta  convergência  deve  disputar  mais  de  20%  dos  votos  e   inclui   a   força  decisiva  de  muitos   independentes  e  ativistas  sociais   para   poder   apresentar   ao   país,   pela   primeira   vez,   uma   resposta   unida   aos   problemas  

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nacionais   e   à   desagregação   social.   Uma   tal   iniciativa   política   teria   um   efeito  muito   forte   na  atração   de   setores   independentes   e   seria   um   poderoso   fator   de   resistência   social   e   até   de  pressão   sobre  o  PS,   condicionando  desenvolvimentos   futuros.  Quebrar  o   centro  e  polarizar  à  esquerda   continua   a   ser   a   chave   para   um   governo   de   alternativa   cuja   política   rompa   com   a  austeridade   e   respeite   a   Constituição.   A   um   governo   do   PS   ou   do   novo   bloco   central  contrapomos   uma   maioria   e   um   governo   de   alternativa.   Para   isso   é   essencial   alargar   já   os  diálogos   à   esquerda,   sem   sectarismo   nem   formalismo,  mas   que   construam   as   bases   para   as  convergências  necessárias  àquela  alternativa.      5.  Deste  foco  estratégico  e  desta  hipótese  política  decorre  uma  linha  de  aliança  alargada  na  recusa  da  austeridade  e  do  Tratado  Orçamental  e  na  prioridade  à  reestruturação  da  dívida  e  à  defesa  da  Constituição.  Este  campo  de  aliança  exclui  qualquer  aproximação  a  um  governo  que  não   inicie  o  processo   legal  de  desvinculação  do  Tratado  Orçamental  e,  pelo  contrário,   implica  um   combate   frontal   contra   tal   governo.  Qualquer   aproximação  política   que  deixe   em  aberto  esta   orientação   ou   cuja   vocação   seja   “adornar”   um   governo   PS,   seria   apenas   uma   fonte   de  equívocos  ou  uma  mera   intermediação  para  o   reforço  da  alternância  e  deve  merecer  a   clara  rejeição  do  Bloco  de  Esquerda.    6.  Nas   eleições   presidenciais,   o   Bloco   deverá   estar   disponível   para   apoiar   um/a   candidato/a  independente  que  possa  juntar  diferenciados  setores,  desde  que  se  coloque  sem  ambiguidade  no  campo  da  luta  contra  a  austeridade  e  as  privatizações,  pela  rejeição  do  Tratado  Orçamental,  pelo   cumprimento   da   Constituição.  Na   falta   de   tal   candidatura,   o   Bloco   poderá   considerar   a  apresentação  dum/a  candidato/a  próprio/a  do  seu  campo  político.    7.   O   Bloco   tem   que   mudar   as   suas   práticas   militantes.   Estão   por   aplicar   algumas   decisões  importantes   da   sua   última   conferência   de   organização,   que   o   calendário   eleitoral   deixou  pendentes.  O  sentido  dessas  decisões  deve  ser  aprofundado  desde  já  e  ao  longo  dos  próximos  dois  anos:  multiplicar  no  Bloco  os  espaços  de  participação  dos  aderentes  e  as  formas  de  relação  com  o  movimento  social,   terrenos  em  que  o  Bloco  se  desenvolveu  de   forma   insatisfatória.  O  Bloco  deve   também  recuperar  e  desenvolver   formas  de  ação  e   intervenção   fora  dos  espaços  institucionais,  que  constituíram  a  imagem  de  marca  nos  tempos  iniciais  do  Bloco.          8.  A  tendência  Socialismo  não  apresentará  uma  moção  própria  na  IX  Convenção.  Encarando  o  debate  interno  a  partir  dos  elementos  aqui  expressos  e  estimulando  o  debate  a  partir  deles,  o  papel  da  nossa  tendência  não  é  constituir-­‐se  numa  fração  do  partido  ou  num  espaço  fechado  de   afirmação.   A   tendência   Socialismo   é   hoje,   mais   do   que   nunca,   um   contributo   aberto   ao  debate  bloquista,  que  procurará  sempre  a  expressão  mais  unida  que  a  coerência  programática  do  Bloco  possa  ter.  Assim  será  também  no  processo  de  preparação  da  próxima  Convenção.    

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Ao longo dos últimos três anos, tem havido dois gran-des debates cruzados: o de estratégia política (o nosso centro deve ser a reestruturação da dívida ou a saída do euro?) e o da proposta programática (como se pode reorganizar, financiar e dirigir a economia portuguesa depois do tsunami da troika: vai ser preciso sair do euro?). Nas páginas seguintes recapitulo esses deba-tes, argumento sobre o que mudou no país e explico como evoluiu a minha posição.

Registo também que estas questões são contaminadas por outra, mais invisível, para os que acham que o alfa e o ómega da vida é saber como participar no gover-no do PS a partir de 2015. Sem detectar essa questão quase incógnita, não se pode perceber porque é que alguns dos que há anos defendiam a saída como pri-meira proposta para a esquerda estão agora a recuar velozmente na sua posição, compreendendo que só participarão no governo se abandonarem a proposta sobre o euro.

Essa evolução é instrumental para o reaparecimento exuberante da proposta do CDS do PS: como o Blo-co não serve para avalizar o governo António Costa, é preciso organizar uma frente a tempo das próximas eleições para “gritar presente” ao PS e assim “evitar o bloco central” (“o mais tardar em Janeiro”, anuncia o seu chefe no inevitável jornal i). O debate sobre as respostas para o país fica abafado por este frenesim de criar novos partidos, todos sempre para “unir” a esquerda. Como de noite todos os gatos são pardos, qualquer programa serve para este propósito.

Também por isso, o debate no Bloco deve ir ao essen-cial para definir uma esquerda com propostas realistas e revolucionárias, concretas e populares. O país está farto dos jogos partidários no Portugal dos Pequenitos, e exige antes que se diga alguma coisa sobre como nos salvamos da troika e do empobrecimento para a vida toda. O texto seguinte discute essa resposta.

1. LEMBRANDO O DEBATE QUE OCORREU DURANTE OS TRÊS ANOS DA TROIKACritiquei ao longo destes três anos os que defendiam o slogan da saída do euro com dois argumentos: (1) não pode ser o nosso centro tático porque não é o que junta uma aliança ampla; é a reestruturação da dívida que junta forças; (2) a saída do euro é a mais difícil das soluções, pelas suas dificuldades económicas e sociais que não podem ser menosprezadas, só podendo ser adoptada se for a última e única solução disponível.

Mantenho os dois argumentos e acho que a experiên-cia demonstrou a validade do primeiro, com o êxito do Manifesto 74. Foi com o Manifesto que, pela primeira vez em grande escala, o debate sobre a dívida se tor-nou um tema central na sociedade portuguesa, afec-tando e dividindo o regime, desafiando a troika e mos-trando um esboço de alternativa. Valeu por isso a pena a disciplina tática que mantivemos durante os longos meses de preparação do Manifesto, desde novembro de 2013 até abril de 2014. Assim sendo, vou só tratar de detalhes do segundo problema, as dificuldades da saída do euro.

1.1. A alternativa da expulsão é uma solução?

Em Março de 2012, publiquei com Mariana Mortágua um livro, A Dividadura, que apresentava o cenário de um governo que, “perante as dificuldades económicas, decide aceitar o ultimato da Alemanha e declarar a sa-ída do euro, para passar a usar o escudo como moeda nacional”. Na nossa opinião, esse governo que aceitas-se o ultimato da Alemanha teria que impor políticas sociais duras, que criticámos. Apesar disso, concluí-mos o seguinte nesse livro:

“Escrevemo-lo com clareza: no contexto atual, a saída do euro é a pior de todas as soluções e só pode ser imposta por vontade do diretório eu-ropeu. Ora, só se pode aceitar pior das soluções

O CDS DO PS, A JANGADA DE PEDRA E A NOSSA POLÍTICA FINANCEIRA: PARA ONDE QUEREMOS IR?Francisco Louçã, junho 2014

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quando não exista rigorosamente nenhuma ou-tra, quando se esgotarem todas as alternativas, quando a sobrevivência o exigir. Só há por isso uma condição em que a saída do euro se pode tornar necessária para o povo português, e essa situação não pode ser liminarmente excluída: se, perante um descalabro das instituições e das regras europeias, a sua independência for posta em causa e Portugal não tiver outra solução que não seja abandonar a União Europeia e, em con-sequência, o euro, para recuperar a capacidade de decisão. E é ainda necessário que a maioria da população esteja empenhada nessa respos-ta, de modo a condicioná-la pela força dos mo-vimentos populares e da defesa dos interesses do trabalho.” (p.28; aqui e doravante, todos os sublinhados são meus)

Por isso mesmo, se se tornar necessária a saída do euro por ser a única alternativa, é preciso que ela apareça como a única resposta possível à violência da Merkel, como um levantamento nacional marchando contra os governantes teutões. Mas a escolha tem de ser nossa, quando e se não houver outra alternativa. Sem esse le-vantamento, sempre duvidei que possa haver maioria suficiente para aguentar os embates desta mudança, que implica atravessar e vencer um período de tensão máxima, como uma guerra contra a oposição da bur-guesia europeia e da portuguesa.

1.2. Preparar a saída, porque pode vir a ser a única solução possível

Um ano depois, em maio de 2013, num artigo no Mon-de Diplomatique, defendi de novo que a política que alarga e ataca com mais energia a austeridade é a da reestruturação da dívida, fazendo um inventário do que teria que ser respondido no caso de só restar a última alternativa, a saída do euro:

“Nesse contexto, o governo de esquerda deve estar preparado para todo o conflito, incluindo para a pressão que force uma saída do euro. (...) Devemos preparar-nos para tudo, incluindo para a pior das soluções, se ela vier a ser a única possível.” (“Uma Agenda Não-Condescendente para o Debate sobre a Dívida e o Euro”, Monde

Diplomatique, março de 2013)

Sublinhei no mesmo artigo a necessidade de a esquer-da trabalhar num programa – inexistente até hoje – que responda às dificuldades que ocorreriam se Portugal tivesse que sair do euro:

“acho fundamental que quem queira trabalhar na preparação de um novo governo de esquerda apresente uma proposta não-condescendente, considerando todas as eventualidades, sobre as melhores alternativas para cada problema que se possa vir a colocar no desenvolvimento desse governo, incluindo a saída do euro para a desva-lorização do novo escudo.” (ibid.)

Esse estudo sobre como contrariar os efeitos negativos de curto e de médio prazo de uma eventual saída do euro deveria incluir necessariamente a análise dos ris-cos do atraso da emissão da nova moeda, da dupla cir-culação, das ameaças sentidas pelos depositantes, do aumento do preço das importações, das pressões para fechar os mercados externos, da subida das taxas de juro, da nova realidade da inflação, da redefinição legal dos valores das dívidas internas, incluindo das dívidas hipotecárias, da reestruturação dos bancos, do novo sistema fiscal, da redefinição institucional do Banco de Portugal e da CGD.

Finalmente, o artigo conclui que é preciso estar prepa-rado para medidas que respondam a todos estes pro-blemas. Mantenho o mesmo ponto de vista:

“A minha conclusão é esta: a única agenda que pode criar uma maioria de esquerda é a luta con-tra a dívida. Um governo de esquerda só pode ganhar se constituir uma aliança e essa aliança exige a clareza da anulação de dívida. Esse go-verno deve estar preparado para rejeitar todas as pressões do capital financeiro e para tomar todas as medidas que sejam necessárias nesse sentido, incluindo sair do euro se essa for a única solução que sobrar. Essa preparação exige trabalho de-talhado e cuidadoso, juntando muitos dos e das melhores economistas de esquerda. Esse traba-lho está por fazer.”

Desculpar-me-ão estas citações, mas servem para si-tuar esta parte do debate ou, pelo menos, o que es-

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crevi nesse debate: a saída do euro é a pior solução e só deve ser adoptada se não houver nenhuma outra. O tempo é curto e temos de estar preparados para ela.

Mais ainda, esta última solução vai-se tornando a úni-ca que resta, porque não há mutualização europeia, se não houver reestruturação e se, de uma forma ou de outra, o peso da dívida não for imediatamente re-duzido. Assim, é necessário desobedecer à União Eu-ropeia, mas as palavras só têm sentido se estivermos preparados para desobedecer mesmo. Não se pode desobedecer obedecendo ou desobedecer aceitando, ou seja, cumprindo o Tratado Orçamental, com o pró-ximo governo a cortar mais 7 mil milhões de euros em investimento social (ou a aumentar mais os impostos).

No mesmo sentido, o Congresso Democrático das Alter-nativas explicitava que “uma estratégia que imponha uma ruptura com a política de austeridade e uma re-estruturação da dívida não pode deixar de considerar a saída do euro como um desfecho possível. (...) Um governo que pretende construir essa alternativa tem de estar preparado para desobedecer. Tem de ter uma estratégia para contribuir para a emergência de uma nova Europa, em que os valores do progresso social e da democracia tenham tradução prática – e tem de ter uma estratégia para sobreviver fora da zona euro, se necessário for” (Abreu e outros, 2013, A Crise, a Troi-ka e as Alternativas Urgentes, Lisboa: Tinta da China, p188, 192). Está certo e é uma boa formulação.

2. OS ARGUMENTOS PELA SAÍDA DO EURO TAMBÉM EVOLUÍRAM

Do lado dos defensores da saída do euro, os argumen-tos também foram respondendo à evolução da econo-mia e sociedade portuguesas.

Os que, à direita, defendem a saída do euro, radicaliza-ram a sua posição: “Talvez a principal diferença entre uma (impossível) permanência no euro e a saída seja o nível de salários e desemprego. Dentro do euro, os sa-lários ficariam quase congelados e o desemprego teria muita dificuldade em diminuir. Fora do euro, os salários cairiam drasticamente no início, abrindo caminho para uma mais rápida diminuição do desemprego” (Braz Teixeira, P., 2012, O Fim do Euro em Portugal?, Lisboa:

Conjuntura Actual Editora, p.149). Segundo Braz Tei-xeira, a saída do euro é necessária para reduzir mais depressa e mais radicalmente os salários. Percebemos através dele como é importante ter um plano concreto para a alternativa da saída do euro, para não se tornar num pesadelo insuportável que continue a vitimar os trabalhadores e pensionistas.

Pedro Adão e Silva, analisando o PS, registou o impas-se das políticas do centro: “Os socialistas, por força das circunstâncias, não podiam deixar de aprovar o Tratado (Orçamental), do mesmo modo que, se am-bicionam ter uma estratégia, não podiam votar favo-ravelmente. No fundo, o PS estava perante um dilema do qual sairia sempre perdedor e que vai ter custos po-líticos profundos a médio prazo. Era possível ter feito diferente? Não. Era necessário fazer diferente? Sim” (Adão e Silva, P., 2013, E Agora?, Lisboa: Clube do Au-tor, p.73).

Ou, ainda mais perplexo: “Infelizmente para nós, en-quanto acharmos que é possível pagar a dívida externa com os recursos que resultam da atividade económica doméstica estamos condenados ao fracasso. A ver-dade é dura: ou nos batemos por uma renegociação da dívida, que liberte recursos para a dinamização da economia, ou resta-nos escolher entre aqueles que querem destruir a economia hoje para alimentar a vã esperança de permanecer no euro e os que optam por destruí-la depois de sair do euro. Dois caminhos que podem levar ao colapso político” (ibid., p.95). O autor não faz a sua escolha e não apresenta outra alternativa para o caso de não haver uma renegociação bem su-cedida (mais tarde, veio aser um dos subscritores do Manifesto 74), possibilidade que, evidentemente, não pode ser excluída.

À esquerda, houve também evoluções importantes. O PCP, durante a campanha eleitoral, ensaiou um discur-so mais afirmativo sobre a saída do euro: o seu primei-ro candidato apresentava com insistência essa ideia, mesmo que depois os deputados o desmentissem no Parlamento. Em todo o caso, o estatuto formal desta ideia não é muito evidente, porque o último congresso do PCP rejeitou explicitamente a sugestão de Octávio Teixeira sobre a saída do euro. Registo em todo o caso

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que, ao propor que Portugal se prepare para a saída do euro, o PCP não apresentou ainda o seu programa so-bre como deveria decorrer esse processo. Essa não é uma questão menor.

Por outro lado, o grupo Fórum Manifesto (uma orga-nização política que federa sectores agora do Bloco, mas também no Livre e noutra sensibilidade política) criticou em dezembro de 2013 o partido por ser pouco explícito quanto à implicação da reestruturação da dí-vida (mas não disse nada sobre a posição do Livre, que acabara de se formar): “a proposta da renegociação, abatimento e moratória da dívida – e de uma ruptura com a troika, que tem sido a principal resposta políti-ca do Bloco – têm colocado crescentemente o partido perante a questão da eventual saída do Euro. E nesta matéria as respostas dadas ou são pouco credíveis ou pouco mobilizadoras” (http://manifesto.com.pt/). Em coerência, os membros da Lista B organizaram a sua intervenção na reunião da Mesa Nacional de janeiro de 2014 para insistirem na necessidade de colocar na agenda a saída do euro – o que, para a direção do Blo-co, não tinha sentido precisamente quando estava a colaborar com a preparação do Manifesto 74, que viria a ser publicado três meses depois.

O texto do Fórum Manifesto inclui pontos importantes, como a percepção da “mudança radical do debate so-bre a Europa” no final do ano de 2013 e nas eleições eu-ropeias de 2014: “No contexto das eleições europeias de 2014, o debate português sobre a Europa sofre uma alteração radical face a anteriores enquadramentos de escolha política. Á luz de dois anos de imposição do Memorando de Entendimento, a centralidade do deba-te europeu na sociedade portuguesa mantém-se, mas assume hoje uma configuração radicalmente diferente. De súbito, a Europa já não surge publicamente como um espaço de modernização social e de desenvolvi-mento da economia portuguesa. Pelo contrário, é o ator principal de um processo de brutal desvalorização

dos rendimentos, de retrocesso de direitos sociais e laborais e de destruição do tecido económico” (ibid.). Concordo com esta afirmação: a União Europeia é ago-ra o “ator principal de um processo de brutal desvalori-zação dos rendimentos” e a percepção pública sobre a Europa está a mudar vertiginosamente.1

Por isso, este texto concluía que é preciso preparar a saída do euro:

“Esta opção significa assumir, de forma plena e de princípio, todas as consequências que se as-sociam a um processo negocial com a Troika, in-cluindo a saída do euro. Mais: apenas assumindo a disposição para ir até às últimas consequên-cias, em resultado de uma convicção consciente e firme sobre a impossibilidade de permanecer num sistema monetário que apenas nos destina a um empobrecimento sem fim, qualquer nego-ciação poderá comportar margens de sucesso.

(...) É esse o problema que se coloca em relação ao euro. O euro é, no atual quadro de correlação de forças políticas, irreformável: correspondeu e continuará necessariamente a corresponder à construção de um fosso intransponível entre centro e periferia europeia, que obrigará a um processo de subdesenvolvimento das econo-mias mais fracas da União. E é justo afirmar que, mesmo que muito mudasse em Portugal e na Europa – e era preciso que muito mudasse em Portugal e na Europa – não há, dentro do euro, futuro para um crescimento económico do país que seja socialmente sustentável.” (ibid.)

Sendo o euro “irreformável” e não havendo nele fu-turo, conduzindo a um “empobrecimento sem fim”, sendo a Europa o “ator principal de um processo de brutal desvalorização dos rendimentos”, a conclusão, para os autores, era evidente: não há futuro sem a sa-ída do euro.

1 - Registo ainda que os autores abandonam a sua posição anterior de um “plano A” e um “plano B”, em que o A era o federalismo e o B a saída do euro, para passarem a defender unicamente o segundo: “Se concluirmos, como só podemos concluir, que apenas a soberania nacional ou um federalismo democrático na Europa podem defender a democracia, então teremos que fazer escolhas. Será avisado defender mais transferências de poder para instituições supranacionais conhecendo, como conhecemos, a adversa correlação de forças sociais e políticas na Europa? Não seria essa opção um suicídio, como o foi o passo em frente na construção da moeda única?”. A ideia do plano A sempre foi estranhamente perigosa e um compromisso com os federalistas do Manifesto (Rui Tavares): o plano A era e é uma solução absolutamente inaceitável para Portugal, porque significa consagrar o domínio da burguesia alemã na Europa e o predomínio do capital financeiro, então legitimado pela eleição de um governo. Um Estado europeu, mesmo que constituído com eleições, será sempre antidemocrático porque anulará a democracia onde ela pode existir com legitimidade, que é o espaço nacional e nenhum outro.

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3. O QUE MUDOU REALMENTE EM TRÊS ANOSTem sentido afirmar que a situação europeia mudou radicalmente, senão no final de 2013 e desde então, pelo menos durante os anos da troika (2011-2014)? Tem todo o sentido. Foi nesse período que foi apro-vado o Tratado Orçamental que institui a austeridade permanente (2012), que foi fechada a porta à mutua-lização, que a social-democracia alemã fez um acordo com Merkel, que Hollande confirmou a pior viragem à direita e que os movimentos sociais recuaram em toda a Europa.

Assim, e também para Portugal, a situação em que dis-cutimos a questão do euro mudou substancialmente em três anos de troika:

a) Não houve reestruturação em 2011, que era exatamente quando devia ter havido. A dívida direta do Estado aumentou 40 mil milhões com a troika. Com tal dimensão do stock da dívida, se os mercados asiáti-cos mudarem de percepção e o juro subir, mesmo que pouco, a dívida dispara de novo quando forem sendo rolados os 100 mil milhões a amortizar nos próximos sete anos.

b) Não há nem haverá mutualização europeia: o acordo entre Merkel e o SPD exclui essa possibilidade e a finança não a aceita. Seria aliás uma solução que prejudicaria a operação de mudança do regime social nos países periféricos, porque aliviaria a pressão que tem destruído os sindicatos e a organização dos tra-balhadores.

c) A reestruturação tem sido rejeitada pela UE e pelo PSD-CDS, como pelo PS. O PS, nos dias feriados, fala de uma “renegociação” desde que garanta que os credores não sejam prejudicados.

d) A exigência da reestruturação tornou-se mais popular, com o sucesso do Manifesto 74. Mas todas as respostas institucionais foram categoricamente nega-tivas.

e) O controlo externo sobre o governo e a eco-nomia será marcado por regras estritas de reporte e de fiscalização direta sobre o Orçamento, tanto pela Comissão e fundos europeus, como pelo FMI.

f) Por tudo isto, e segundo os cálculos do Banco de Portugal, o próximo governo será obrigado a au-mentar mais os impostos ou a cortar mais as despesas sociais em cerca de 7 mil milhões de euros. O próximo governo será pior do que o atual.

Creio que estamos de acordo que estas mudanças são muito importantes e suficientemente ameaçadoras. Mas têm uma conclusão evidente: a reestruturação só pode ser desencadeada por um processo unilateral, admitindo negociações e pressionando-as com uma moratória, mas em braço de ferro.

Sem qualquer dúvida: a reestruturação é um colossal confronto com o capital financeiro e com a União Eu-ropeia.

4. UM ACORDO PARA CRITICAR O TRATADO ORÇAMENTAL É SUFICIENTE PARA FAZER UM GOVERNO?Há muita gente que diz que o Tratado Orçamental é errado. Embora todos os deputados do PS o tenham aprovado e só poucos tenham recomendado que o partido tomasse outra posição, como o fez Mário Soa-res, o certo é que agora António Costa e outros come-çaram a admitir que o cumprimento dessa regra será um problema. Com base nisso, alguns defendem que pode haver uma grande coligação com base numa ati-tude crítica.

Entendamo-nos. Já nos deram um Hollande e foi pa-tético. Outro, não. Se alguém quer mudar o Tratado e quer mandato de governo para isso, não basta chorar o Tratado. Para ser levado a sério – e não ser outro truque à Hollande – é preciso um compromisso totalmente explícito para a desvinculação jurídica desse Tratado, como aponta o texto de Catarina Martins e João Se-medo. Esse corte é necessário e é preciso estar então preparado para o que der e vier.

Protestar contra o Tratado mas aceitar a sua inevitabi-lidade – afinal, são eles quem manda, tentámos mudar mas não conseguimos, etc. – significa simplesmente aceitar o programa dos cortes dos 7 mil milhões de mais austeridade. O Hollande já fez uma coisa pare-cida, não foi?

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Pelo contrário, a desvinculação desse Tratado signi-ficaria que Portugal teria que impor imediatamente a reestruturação da dívida, para evitar ficar dependente da imensa força de chantagem que é o poder das au-toridades europeias que têm o controlo exclusivo do financiamento da liquidez da economia.

5. FAZENDO CONTAS À REESTRUTURAÇÃODediquei-me com alguns colegas a fazer as contas de-talhadas do que poderia ser uma reestruturação viável. Não tem sido um processo fácil, porque foi preciso re-correr a dados não disponíveis, do Banco de Portugal, do IGCP e da banca privada, consultar especialistas, ex-membros do governo, juristas e outros, fazer simu-lações sobre as várias séries de obrigações do Tesouro e sobre as contas da segurança social, o que podem imaginar.

Esse exercício, que vai ser publicado dentro de poucos dias, foi definido tendo os seguintes objectivos: (1) re-duzir o pagamento anual em juros da dívida, ou défice da balança de rendimentos, em cinco mil milhões, (2) conseguir reduzir a dívida direta do Estado para menos de 60% do PIB; e (3) reduzir a dívida externa líquida de Portugal para menos de 40%, o que é considerado sustentável pela literatura económica.

Se estes três objectivos fossem conseguidos, Portugal deixaria de depender de financiamento externo de lon-go prazo, porque a atividade económica financiar-se-ia a si própria e esse é o objectivo mais importante de todos.

Para conseguir os objectivos, há vários procedimentos possíveis. Na dívida direta do Estado, um efeito equi-valente pode ser obtido cortando o capital em dívida (em torno de 50%) e reduzindo o juro do remanescen-te (2%, por exemplo) ou, em alternativa, adiando os pagamentos por muitos anos (para 2045-2054, por exemplo) e impondo um juro ainda mais baixo (1%). Assim, e impondo esta reestruturação aos credores privados e públicos, conseguir-se-ia baixar a dívida direta do Estado de 127% para 53% do PIB. É um cor-te gigantesco e toda a dívida ficaria liquidada naquele

prazo.

Mas não é suficiente. Para evitar que a dívida exter-na volte rapidamente ao nível anterior, é preciso uma anulação muito maior para garantir que a economia se consegue autofinanciar e que os seus recursos não são extraídos. Há várias formas de proceder nesse sentido mas, como é mais difícil afectar os contratos privados das empresa que têm dívida externa, resta essencial-mente um procedimento legal que tem sido muito utilizado, sobretudo nos EUA: além da alteração da dí-vida soberana, acrescentar um processo expedito de resolução bancária, ou seja, a imediata substituição de todos os bancos nacionais por novas entidades ban-cárias anulando pelo menos 35% dos seus passivos anteriores e substituindo-os por ações que podem ser compradas pelo Estado, que assim determina a estru-tura do balanço da banca (e anula de facto essa parte da dívida).

Só conjugando estes dois efeitos brutais (abater o va-lor atual de mais de metade da dívida do Estado e anu-lar mais de um terço dos passivos bancários) se obtém um nível sustentável das contas externas do país. Por outra palavras, para que a reestruturação resulte é pre-ciso anular mais de 250 mil milhões de euros de dívida, muito mais do que o PIB português. Esse é o valor das perdas que é preciso impor ao capital financeiro para nos vermos livres da espiral da dívida e da austeridade.

Acresce ainda que, mesmo com estes objetivos titâ-nicos, isto pode correr mal e pode ser preciso emitir moeda, porque vai ser preciso recapitalizar rapida-mente o Fundo de capitalização da segurança social e os certificados de aforro e do Tesouro, bem como re-capitalizar os bancos, que devem ser nacionalizados. Se a operação não correr como um relógio ou se não obtivermos crédito externo ou interno quando neces-sário (cerca de 20 mil milhões para a segurança social e certificados), vai ser preciso emitir moeda, ou seja, sair do euro.

Lerão o relatório e formularão as vossas opiniões. Mas creio que num ponto todos os estudiosos atentos es-tarão de acordo: com o nível atual de dívida, a reestru-turação terá de ser brutal, será muito difícil e as suas condições políticas – supõe sempre uma negociação

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com os credores, para evitar excessiva litigância – se-rão imensamente arriscadas.

Se (1) não houver reestruturação, ou (2) se este pro-cesso não for acordado com os credores, ou (3) se não for a tempo ou (4) se a reestruturação não for tão ra-dical como indicado, só nos restará recorrer à última solução, a saída do euro. A possibilidade de o evitar é cada vez mais estreita.

6. AINDA FALTA ESTUDAR COMO SE RESOLVEM OS PROBLEMAS DA SAÍDADito isto, mantenho o mesmo ponto de vista que es-crevi no Monde Diplomatique: a solução mais difícil, que pode vir a ser a única disponível, deve ser prepa-rada meticulosamente. Isso ainda está por fazer. Es-pero que em breve seja possível apresentar propostas detalhadas no sentido da combinação exigente entre a emissão do novo escudo e a sua desvalorização, a imposição legal da redenominação das dívidas do Es-tado, a proteção dos salários e pensões, o controlo público da banca e a reorganização do sistema fiscal, a resposta à litigância internacional dos credores, os planos de contingência para importar medicamentos e combustíveis, e um mar de problemas que têm de ser trabalhados.

Os entusiastas da saída do euro nunca fizeram esse trabalho, o que me surpreende. Trataram sempre tudo como se fosse fácil. Por isso, tenho procurado com um colega estudar o que se pode fazer para evitar o colap-so económico e o agravamento da austeridade se tiver ocorrido uma saída. É preciso um programa de contin-gência para resolver problemas e só se pode discutir uma alternativa realista com esse programa na mão.

Não é fácil, mas é viável, mesmo que sem um acordo negociado com as autoridades europeias, desde que seja imposto um grande nível de reorganização da fi-nança, do orçamento, das relações externas e da eco-nomia no seu todo.

7. O PERFIL POLÍTICO DO BLOCO: NUNCA ABANDONAR A PROCURA DE ALIANÇAS EUROPEIAS PARA FAZER FRENTE À UNIÃO MERKELIANA

O que foi dito atrás não me leva a propor qualquer mudança do centro tático do Bloco: deve continuar a ser a reestruturação da dívida. Mas leva a concretizar essa proposta de reestruturação, para que não fique misturada com a conversa mole do PS a favor de uma putativa “negociação” (ou até do PSD e do CDS, que dizem que já “negociaram” quando adiaram alguns dos últimos pagamentos). Consistentemente, devemos por isso dizer que é preciso uma punição do capital fi-nanceiro e que só há reestruturação se lhe for imposta uma perda grande. Ou, como temos dito, ou Portugal ou a dívida, ou os salários e pensões ou a dívida. Creio que na campanha europeia o manifesto eleitoral e a Marisa representaram esplendidamente esta posição, reforçando-a com o “nenhum sacrifício pelo euro” e tudo o que era preciso.

Ao mesmo tempo, temos dito, como muita outra gen-te na sociedade, que, se não houver reestruturação, já e radical – ou seja, se os credores e autoridades eu-ropeias não aceitarem negociar ou, negociando, não aceitarem as perdas – nunca ficamos sem alternativas e podemos tomar a única decisão unilateral que nos resta, que é a saída.

Deste modo, devemos ter o cuidado de manter as nossas relações e alianças internacionais com outros partidos de esquerda que estão na mesma linha que nós, mesmo que alguns não compreendam bem a ir-reversibilidade da destruição imposta a Portugal (ou à Grécia) com a austeridade, porque a comparam com o que conhecem nos seus países.

O que, em contrapartida, penso que deve ser reforçado é o discurso crítico sobre a União Europeia. Já o fize-mos e bem durante a campanha eleitoral, mas temos de evitar a confusão criada por qualquer aproximação ao centro, evocando uma diluída alteridade utópica, uma conversa sobre “outra Europa”, que não seja de-finida em conflito e na rejeição da União que existe e como existe realmente. Ninguém consegue acredi-tar “noutra Europa” como um remendo da União, da Comissão, dos seus tratados e do seu autoritarismo: depois do Hollande? Depois da aceitação do Tratado Orçamental? Depois de nos terem imposto três anos de troika? “Outra Europa”, mesmo? Não será melhor

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dizermos às autoridades europeias tudo aquilo a que têm direito? Tomarmos um ponto de vista de defesa dos trabalhadores contra os representantes do capital, que são o BCE e a Comissão, e atacá-los assim mes-mo?

Nada melhor protege o futuro da Europa do que a con-denação desta União que é a que existe, porque ela só divide. “A União Europeia vai destruir a Europa”, dizia José Gil (DN, 25 maio 2014). Não tem mesmo razão? Para haver Europa é preciso salvar a democracia da austeridade e do empobrecimento por gerações, é pre-ciso salvar a Europa da União Europeia.

No mesmo sentido, Boaventura Sousa Santos defende a estratégia da jangada de pedra:

“Portugal sai da Europa seguro pela trela curta do euro e do tratado orçamental. Não pode ir muito longe. Arranjará um lugarzito na soleira da porta da Europa, um país sem-abrigo por onde passarão regularmente as carrinhas da sopa hu-manitária. (...) Como em democracia há sempre alternativas, o regime atual é democrático? Cla-ro que não. Haverá então alternativas democrá-ticas, quer a nível nacional, quer a nível europeu, a este regime autoritário? Claro que sim. Para isso, é necessário que a jangada de pedra, tão premonitória, se afaste o suficiente para romper com a trela ou para forçar que ela seja refeita de modo a dar mais margem de liberdade ao movi-mento da jangada.” (Público, 17 maio 2014)

Por isto mesmo, só podemos reforçar a nossa perspec-tiva europeísta de esquerda, a única que tem conteúdo social e militante, a aliança de esquerdas e de povos contra a finança e a exploração das rendas que im-põem aos povos. Mostramos desse modo que o único europeísmo que tem sentido para a esquerda é a con-frontação com as instituições que nos oprimem.

Se a esquerda quer liderar o país, tem de ter uma res-posta para o desafio dos nossos dias. Não pode aceitar viver sob a regras do Tratado Orçamental, do euro e da União que corrói a democracia. Tem de se levantar pelo seu argumento: se o capital financeiro não aceita a reestruturação da dívida, havemos de impor a solu-ção contra a austeridade por todos os meios democrá-ticos ao nosso alcance.

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Este texto volta a momentos importantes do percurso do Bloco nos últimos sete anos e às lições que deles podemos retirar.

2007-2010: ALEGRE

O Bloco atingiu nas eleições de 2009 votações sem paralelo na sua história. Vinhamos do pico da mobilização dos professores contra o governo Sócrates, enquanto Manuel Alegre surgia a defendê-los na própria bancada do PS. O deputado iniciou um percurso de divergência com o PS, expressa em voto parlamentar como poucas vezes sucedeu na história do partido, depois de ter batido a candidatura oficial socialista nas presidenciais de 2006.

O Bloco lançou então um conjunto de iniciativas com Alegre, gerando a expectativa de uma diferenciação nova no campo do PS. À combatividade do Bloco, capaz de atrair jovens eleitores, juntavam-se os resultados daquela ofensiva forte sobre o eleitorado tradicional socialista, influenciado pela crítica de Alegre, que em 2009 levou o Bloco até perto dos 10% e o espaço à esquerda do PS a máximos históricos. A recandidatura presidencial de Alegre surge neste contexto. Havendo no Bloco opiniões favoráveis a Fernando Nobre, o apoio à candidatura de Alegre foi unânime na equipa de direção e antecipado pela imprensa logo após a Convenção de Fevereiro de 2009, bem antes das legislativas, como sequência natural das iniciativas conjuntas realizadas até ali.

Porém, ao longo do ano 2010, o curso da campanha foi mostrando um candidato que mudava de registo, descrente quanto à continuidade da sua orientação desde as presidenciais de 2006, independente do apoio do PS e crítica do seu governo. Com lealdade e transparência, o Bloco procurou influenciar a candidatura, mas a reabsorção de Alegre pelo oficialismo do PS foi a marca de uma campanha frouxa e perdida. Fernando Nobre acabou por ficar (por pouco tempo) com os créditos de um perfil crítico e independente.

Naquela circunstância, depois de aberta uma brecha à esquerda na área socialista e de iniciativas públicas com centenas de pessoas em todo o país, julgo que teria sido errado (e ninguém o propôs na direção) que o Bloco apresentasse uma candidatura do partido contra a de Alegre, em vez de procurar contribuir para a coerência desta. Nas duas opções haveria grandes riscos, mas optámos por ir à luta. Perdemos quando, na campanha, Alegre optou por voltar a fechar o conflito que tinha aberto, provando aliás, mais uma vez, a grande capacidade de auto-regeneração da social-democracia.

O Bloco sofreu as consequências da participação numa campanha capturada por parte do aparelho do PS e por um governo em rota de austeridade acelerada. É aí que começa a perder algum do eleitorado reunido em 2009. Nos meses seguintes, algumas iniciativas públicas contra o governo Sócrates, em particular a moção de censura de fevereiro de 2011, logo após as presidenciais, foram entendidas e julgadas como jogo político superficial, mera tentativa de reparar danos políticos da campanha presidencial.

Com o fim inglório da trajetória crítica de Manuel Alegre e o reagrupamento do campo socialista sob o signo da austeridade dos PEC, fechou-se por bastante tempo a possibilidade concreta - estratégica para o Bloco - de quebrar o campo do PS. Este fracasso e a desilusão que causou perturbaram a imagem popular do Bloco, que chegou desgastado, poucos meses depois, ao momento mais difícil do seu percurso: a aterragem da troika.

2011-2014: TROIKA

Os seis meses entre as presidenciais e a queda do governo (janeiro-junho 2011) são de uma vertiginosa degradação da maioria PS-PSD de apoio aos PECs, sob a pressão da manifestação da “geração à rasca”. A burguesia tira o tapete ao governo (entrevistas dos banqueiros) e o FMI aterra com a Comissão Europeia e

CONTRIBUTO DE JORGE COSTA

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o BCE para apresentar o programa de ajustamento que haveria de ser assinado pelo PS, PSD e CDS.

Diante destes acontecimentos, a sociedade portuguesa é dominada pela ideia da inevitabilidade da “ajuda externa” para “assegurar o pagamento de salários e pensões”. A direção do Bloco não alcançou, nas análises em que baseou as suas escolhas, a profundidade dessas alterações. A demonstração dessa mudança profunda foi a reação de amplos setores da base de apoio bloquista à nossa recusa de reunirmos com a troika. A posição era formalmente correta - tratando-se de um poder ilegítimo e de um plano de devastação inaceitável, como a vida mostrou - mas que o Bloco explicou-a mal, como coisa óbvia, por ter subvalorizado o efeito de pânico criado por meses de intoxicação da população sobre a “bancarrota eminente”.

A importância do episódio da reunião com a troika vai muito além da “crise de comunicação” vivida pelo Bloco naqueles dias. Na verdade, trata-se do revelador das condições gerais da consciência popular em que se iniciou a intervenção externa e que julgo serem o principal fator explicativo do nosso resultado eleitoral em Junho de 2011 - pânico social, reflexo conservador e generalizada deslocação eleitoral à direita. Um ano depois, essas condições já tinham mudado bastante, como mostrou a manifestação Que se Lixe a Troika, em Setembro de 2012. Esse crescimento do protesto, que teve outras expressões relevantes - como as greves gerais - prolongou-se até Março de 2013 (segunda manifestação QSLT), criando uma forte crise de legitimidade do governo (ver carta de demissão de Gaspar), mas não deu origem a expressões sociais permanentes, novos espaços ou sujeitos que pudessem mudar a configuração da oposição de esquerda à austeridade.

O ciclo da troika estabiliza a partir de Julho de 2013, após a crise política. Ao longo das semanas de indefinição, há movimentações à esquerda (convites mútuos para encontros entre o Bloco e o PCP) sem consequência. O Bloco intervém de forma vigorosa contra a sustentação do governo, com a colaboração do PS no plano de Belém e a não convocação de eleições antecipadas. Diante da

tentativa de negócio no bloco central, o Bloco confronta o PS com a sua política e apresenta publicamente os contornos de uma solução à esquerda: a rutura com o memorando e a reestruturação da dívida. O embaraço do PS é evidente e a recusa é imediata e peremptória. O PS é obrigado a mostrar-se definitivamente no campo do memorando e a sua retórica anti-austeridade é gravemente atingida. Mas o campo à sua esquerda continua fragmentado e não polariza. Cavaco ganha o tempo de que precisa para voltar a amarrar os partidos do governo e restabelecer a ordem política. A derrota da esquerda e da oposição social é profunda e vai refletir-se na ausência de mobilizações importantes ao longo de um ano, até agora.

CONCLUSÕES

1. A experiência da campanha presidencial tinha de ser feita. Encerrou a mais importante fratura no centro ocorrida em duas décadas. Saiu cara ao Bloco, como sairá sempre cara toda a convergência que o centro consiga absorver. No caso de Alegre, o futuro não estava escrito.

2. O Partido Socialista reunificou o seu campo em torno do programa de austeridade do final do governo Sócrates. Os quatro anos seguintes, fora do governo, permitiram-lhe uma sofrida gestão de fricções sem nenhuma diferenciação de fundo. O papel do PS na crise política selou a sua convergência essencial com o resto do bloco do Tratado Orçamental.

3. É no exercício do governo que o PS perde a sua hegemonia sobre a esquerda. Continua a ser da fratura do campo socialista e da polarização do protesto que a hipótese de uma maioria social de transformação pode erguer-se.

4. Para enfrentar o próximo governo da austeridade, seja ele do PS ou do Bloco central, é necessário uma nova configuração na oposição à esquerda, que deve ir além de acordos entre os partidos, dialogando com a atual descrença popular no sistema político. Só com programa claro e sentido de unidade pode esta esquerda refazer o mapa político e ser credível como proposta de governo.

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1. PARTIDO DOS MOVIMENTOS E DOS ACTIVIS-TAS SOCIAIS

A ideia de Movimento que queremos associada a um partido, o nosso, afasta-nos da arquitectura tradicional em que o formalismo dos cargos e das hierarquias par-tidárias têem prioridade relativamente à renovação e multiplicação da capacidade de intervenção. A nossa é uma escolha corajosa e ao mesmo tempo mais difí-cil de implementar. Se queremos ter vida, ideias dife-rentes, força para a convergência e a criatividade da diversidade como formas centrais e permanentes da renovação da capacidade de intervenção então, isto implica afastar, ou pelo menos lidar, com o medo de perder o controlo de uma organização.

É necessário Afirmar o BE como partido de esquerda radical feito por pessoas, activistas dos movimen-tos sociais, das associações, das autarquias ou de sindicatos. É necessário também que essas pessoas possam realizar várias intervenções políticas e so-ciais fazendo parte de uma organização partidária, sem que a sua função no movimento seja o de con-dicionamento sob direcção de um partido. Não exis-te qualquer contradição entre activismo informal, fora do espectro partidário, e activismo partidário ou formal. Complementam-se e devem ser incenti-vados porque se cruzam e alimentam mutuamente. São ambos formas inevitáveis de aprendizam num momento em que ambos são incompletos como for-ma de construção política de base.

Organizações como o PCP não fazem ainda hoje esta escolha pela liberdade e pluralidade de inter-venções e normalmente as suas participações não visam a amplitude dos movimentos, nomeadamente dos movimentos não estruturados. Este tipo de or-ganizações partidárias dificilmente assumirá publi-

camente que os seus militantes fazem intervenção noutras organizações para além da partidário e sin-dicais porque isso contraria a forma com que projec-tam a esquerda. As suas participações são, antes de mais (e quase totalmente), defensivas.

2. NA RUA OU NAS EMPRESAS. ONDE A TENSÃO SOCIAL EXISTA

Os últimos anos trouxeram apenas dois tipos de si-nais positivos à esquerda no que diz respeito ao con-flito de classe nos locais de trabalho: a capacidade de algumas lutas sectoriais, muito pontuais, de sin-dicatos onde ainda existe algum tipo de liberdade de intervenção (ou pelo menos, garrotes menos aperta-dos); e por outro lado, as maiores e mais fortes on-das sociais contra a política de austeridade e desi-gualdade. Estas ondas foram imaginadas, propostas e suportadas por movimentos sociais inorgânicos e a CGTP fez sempre a triste e desgraçada figura de desvalorização daquelas que foram as maiores mo-bilizações das últimas décadas. A fraca e recuada posição da CGTP foi também evidente numa das mais importantes e recentes experiências de luta de trabalhadores precários contra o patronato delin-quente e contra o governo: a Saúde 24. Perante a evidência da repetida incapacidade da CGTP no que diz respeito ao confronto de classe, e da sua afirma-ção clara enquanto blindagem do PCP perante anos da troika (estratégia defensiva largamente maioritá-ria do PCP), o BE deve afirmar-se enquanto partido de combate para a reconstrução da esquerda. Isso significa procurar criar raízes de organização per-manentes em várias áreas sociais, e fazer disso um compromisso e uma cultura de intervenção. Recriar organização onde ela não exista, disputar as direções sindicais onde possível.

NOTAS DESLIGADAS SOBRE ORGANIZAÇÃO E INTERVENÇÃORui Maia

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3. CONTRASTE ENTRE FORMAS DE ORGANIZAÇÃO À ESQUERDA

Existe algum “património” organizativo da esquer-da que não é necessariamente o exemplo último da efectividade ou eficiência na intervenção, do apro-veitamento dos recursos políticos, dos activistas e da capacidade disponível. As formas de organização dos pequenos grupos de esquerda, dos movimentos ou das associações, contrastam quase sempre com a transformação (e tentativa de evolução constante) que existe nas organizações a que se opõem (ao patronato, às grandes empresas,...).

Essas organizações, pensadas para acelerar perma-nentemente a exploração o trabalho - fazem tudo o que é necessário para aumentar a desigualdade, a se-gregação, a dominação, as formas de acumulação, o condicionamento da economia, a política, a democra-cia, a hegemonização de ideias e limitação de interven-ção das suas oposições.

Existe à partida uma enorme desvantagem de recur-sos para a esquerda, mas existe também uma assina-lável incapacidade organizativa que resulta em parte da composição orgânica da esquerda, das experiên-cias pessoais e profissonais dos activistas. Em parte, a esquerda formal ou informal é hoje (ou continua a ser) uma faixa estreita do mundo do trabalho com características eventualmente bastante diferentes do conjunto ou dos balanços das várias camadas do sector do trabalho.

No Bloco de Esquerda...

A identificação de problemas ligados à estrutura fun-cional do BE é corrente. Mas poucas vezes é sublinha-do algo que parece óbvio pelo menos nestes primeiros anos de vida do BE: é a partir de um conjunto de pro-fissionais muitíssimo diminuto, quando comparado com as outras forças políticas com representação na-cional, que Bloco concentra uma enorme capacidade de trabalho e de organização. Uma pequena estrutura como a nossa é extremamente eficiente na resposta às necessidades de intervenção diária. É a partir do Par-lamento e da Sede Nacional que a política do BE tem

continuidade diária e que chega a casa da maioria dos cidadãos ou à rua com regularidade e as organizações locais, Distritais, Concelhias ou de Freguesia não con-seguiram até hoje sistematizar processos de trabalho e de intervenção política que garantam maior profun-didade na acção política do BE. Com justeza se diga também que a operacionalização é muitas vezes leva-da a cabo com o devido empenho de algumas, poucas, centenas(?) de militantes.

Para a permanência da actividade política do BE ao ní-vel local não são necessários milhares de quadros po-líticos disponíveis durante os dias e as noites. É antes necessário que o combate do BE pelo fortalecimento de protagonismos colectivos, de base, pela secunda-rização da política do cabeçudo ou da estrela local, seja também o desafio interno de dissociar a activi-dade política, o compromisso, o programa, da decisão tantas vezes circunstancial e da disponibilidade tan-tas vezes solitária de activistas. Porque a confiança política ou a clareza de um programa, seja ele nacional, concelhio ou de freguesia, não definem por si só a ca-pacidade que o partido terá de o entregar na política diária.

Se por um lado a reconstrução de combates estratégi-cos locais depende de dinamismo pessoal, por outro, o fortalecimento do BE no país depende da capacita-ção de colectivos que devem ser acolhedores e não baseados em hierarquias ou protagonismos formais ou informais. Elas (as hierarquias) não precisam de anuncio verbal, simplesmente aparecem e são lidas por qualquer cidadão em qualquer lado com toda a facilidade. As estruturas distritais podem (devem) ter um papel chave no apoio político local do BE ga-rantindo actividade onde ela não exista, e apoindo os activistas mais solitários sempre na perspectiva da construção de colectivos.

O formato de hoje...

Os grupos locais do BE (incluindo os de Concelhia), colocam hoje os objectivos políticos de intervenção quase totalmente de forma reactiva. Programa-se ac-tividade para reagir a pedidos da política central ou a política local; não são realizadas escolhas estratégicas

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(com excepções raras: linhas de alta tensão, portagens na via do infante...) e formam-se, normalmente, pe-quenos grupos de militantes sem qualquer mapa (ou calendário) de actividade do qual francamente é muito difícil esperar senão uma incógnita no que diz respeito à continuidade da política de rua e de confronto social estratégico. É garantida, é certo, a inevitável presença em AF ou AM.

Mas as direçções locais eleitas do BE têm a obrigação política de garantir aos cidadãos que o BE está pre-sente e tem um plano de actividades de intervenção política, um calendário de presença pública, e que as-sume a exposição do que é a sua política. Numa pala-vra: compromissos.

As coordenadoras concelhias devem por isso acom-panhar os programas eleitorais (provavelmente depois de eleitas) de planos de actividade ou intervenção po-lítica que concretizem o seu programa. Normalmente os programas políticos são relativamente genéricos e apesar de apontarem uma ou outra iniciativa para o pe-ríodo de funções, não se comprometem com nenhum plano de fundo, continuado, do início ao fim das suas responsabilidades. Há várias formas concretas para o fazer e não são necessários, certamente, dezenas de militantes altamente mobilizados. É essencialmente necessário: escolha(s) estratégica de confronto local, sistematização de tarefas políticas, responsabilização (agenda) e transparência.

4. TRANSPARÊNCIA E PERMEABILIDADE DAS EXPERIÊNCIAS DE INTERVENÇÃO

A sociabilização das experiências concretas que temos nos vários movimentos, associações e participações sindicais é crucial para a aceleração da aprendizagem de cada um dos e das activistas do BE. A observação das experiências recentes de organização de precá-rios, observando os estímulos a que as organizações sindicais mais importantes foram sujeitas e a resposta

que deram - nomeadamente organizações afectas à CGTP – podemos no mínimo avaliar se os esforços de aproximação resultaram ou não num outro patamar de entendimento ou abertura na acção.

A intervenção no seio da CGTP, dos sindicatos, das Comissões de Trabalhores ou organizações informais tem de ser debatida e partilhada. Porque se por um lado a aprendizagem e a contrução do movimento de trabalhadores ou de classe se fazem na intervenção, por outro precisamos de momentos sérios de debate sobre quais as formas de organização que o mundo do trabalho vai (re)construir ou disputar nas próxi-mas décadas. Se esse debate não for claro e continu-ado, simplesmente o caminho será percorrido de for-ma muito mais lenta e haverá certamente quem tenha uma visão sobre o que, entretanto, o mundo das orga-nizações do trabalho deve ser..

Convidar os protagonistas do BE (professores, médi-cos, enfermeiros, precários, desempregados), propor--lhes que abram debates, que se exponham enquanto organizadores, dinamizadores, da acção, dos colec-tivos. Debater o que funciona , o que não funciona... falar, perguntar, perceber, questionar.

Com alguma clareza (espera-se que não em excesso... a ver vamos): esta Coordenadora do Trabalho do BE não serviu até hoje para ampliar ou propor resposta a estes debates para além das respostas óbvias que nos satisfazem enquanto estão escritas num papel. Não resolveu qualquer problema central e não foi mais do que uma miragem de organização do mundo do tra-balho pelo BE. A responsabilidade não é pessoal, mas num partido de esquerda radical que se baseia em boa medida numa visão sobre o conflito capital-tra-balho, certamente, a organização para a intervenção no mundo do trabalho tem de ser melhorada (rapida-mente porque não há dias a perder).

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Em 15 anos o Bloco ocupou um espaço fundamental na esquerda política e soube construir um projeto políti-co coerente. Nunca quisémos estar sozinhos e sempre soubémos que é na articulação entre esquerda política e movimentos sociais que se fazem as mudanças que contam. Nunca abdicámos de “correr por dentro” sem-pre sabendo que o importante é “correr por fora”. Por-que sem hegemonia social não há mudança política.

Mas hoje, mais do que nunca, precisamos de construir essa esquerda social. Sem ela, não há projeto político com força para crescer e muito menos ganhar. Como diz o Podemos, nós “nascemos para ganhar”. Sem gen-te nas ruas, organizada, ativista e militante; sem pro-testos, indignação e resistência; sem uma cultura de esquerda que crie raízes e mobilize; sem estar dentro do dia-a-dia das pessoas que são o nosso povo, dificil-mente chegaremos lá. Precisamos de “correr por fora” e é aqui que nos falta estratégia política e hipóteses com que trabalhar.

A crise e austeridade é muito mais que dívida ou esta-tísticas. Trata-se de uma “tragédia humanitária” como diz o Syriza. E perante a tragédia, não basta ter um pro-grama coerente e propostas bem articuladas, nem fa-zer discursos claros e incisivos no local e na hora certa. As pessoas sabem e percebem o que é a crise e auste-ridade porque a sentem na pele; ou não basta procla-mar ideias para que ganhem consciência e ponham-se de pé. Não há nenhum automatismo entre crise social, lutas populares e crise política. E não, não temos um gene ou uma “tradição” de passividade que nos torna “naturalmente” resignados.

A meu ver precisamos de mudar o discurso, as práti-cas militantes e a forma como construímos proposta política.

No discurso não podemos resumir-nos à denúncia das políticas do governo e de quão trágica é a crise e auste-ridade. Este é um discurso fácil que aplicamos desde a finança à agricultura e corre o risco de ser vazio. Sobre-tudo precisamos de alimentar esperança e o sentimen-to de que as pessoas têm força nas suas mãos. Para depressão já basta a própria crise e austeridade. E um discurso forte de denúncia só ganha realismo se tiver raízes sociais: p.e., as iniciativas de solidariedade que o Syriza fomenta com outra gente na Grécia consolidam a percepção geral da “tragédia humanitária” porque esta é mais que um slogan; é uma realidade material de muita gente com quem se contata e trabalha coleti-vamente no quotidiano.

Isto leva-me às práticas militantes. Precisamos de co-nhecer de perto os problemas concretos das pessoas e agir em conjunto com elas para os enfrentar; de de-senvolver mecanismos que rompam com o seu isola-mento e sentimento de culpa ou vergonha; de criar es-paços permanentes onde as pessoas possam discutir as suas vidas e enfrentar juntas os seus problemas; de fomentar uma cultura de esquerda que junte gente e abra mentes, em especial junto dos e das jovens; de agir em solidariedade com as vítimas da crise porque qualquer projeto político de esquerda não abandona os seus e constrói-se coletiva e solidariamente. E deve-mos fazê-lo com todos e todas da forma aberta, por-que a politização também se faz pelo caminho. Aqui o trabalho dos grupos locais é importante. Este deve estar centrado na rua a falar com as pessoas, discutir com elas, perceber quais são os seus problemas, di-namizar as sedes como espaços permanentes abertos para fora, trabalhar em conjunto com outros coletivos, desenvolver iniciativas práticas de solidariedade com quem está em risco de perder casa, não consegue pôr o pão na mesa, está em greve, etc. É preciso criar no

SOBRE MUDAR AS PRÁTICAS MILITANTESRita Calvário

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19TENDÊNCIA SOCIALISMO | BOLETIM #5 | JUNHO 2014

dia-a-dia espaços e mecanismos de politização, ra-dicalização e ação. Precisamos de ser uma força que conta a nível local para o quotidiano das populações. E precisamos de o fazer reiventando-nos, sem medos e rompendo com os moldes de sempre de fazer política. Isto pode significar abrir-nos a formas de experimenta-ção social que respondam a necessidades concretas e ao mesmo tempo possam contribuir para a construção de proposta política. O mesmo para os grupos seto-riais: é preciso abrir para fora e ter um perfil mais ati-vista e menos de discussão interna ou do projeto-lei a fazer. Mas mais que boa vontade dos e das aderentes, precisamos de um “rumo” de como fazê-lo e de “estru-turas” que apoiem este trabalho.

Sobre a proposta política ela deve ser aprofundada por via deste trabalho aberto para fora. Com isto não quero dizer qualquer substituição das estruturas de decisão do Bloco. Mas devemos estar abertos ao que formas de ativismo e experimentação social têm para nos dizer e articular-nos com elas, promovendo espa-ços comuns de encontro, participação democrática e ação. Dou um exemplo da Grécia: contra o papel das cadeias de distribuição alimentar na crise (os preços dos alimentos não pararam de subir e incrementou a crise do setor agrário), grupos locais de gente do Syri-za com outros decidiram organizar mercados de venda direta entre agricultores e consumidores a preços que beneficiam ambas as partes. Hoje existem mais de 45, sobretudo nas grandes cidades. As pessoas compram alimentos de qualidade a baixo preço, os produtores são melhor pagos, recebem dinheiro direto e melho-ram a qualidade, apoia-se a produção local, fomenta--se a cooperação entre produtores, etc. Não só se res-ponde a necessidades concretas de consumidores e produtores como põe em debate o papel das cadeias de distribuição e é um contributo de proposta política para a restruturação da agricultura e distribuição de alimentos; além de que estes são espaços de encontro e politização.

Com os exemplos que mencionei não quero dizer que devemos centrar-nos apenas em ações de caráter lo-cal. O trabalho parlamentar é importante e deve apoiar

estas ações. Os protestos e mobilizações sociais são fundamentais. Precisamos de mais “momentos” so-ciais, mas sobretudo de conseguir que tenham uma expressão mais permanente, enraizada, junto das pes-soas. Há uma dialética aberta e dinâmica entre todas estas esferas de ação política e umas podem alimentar as outras para construir uma alternativa política e so-cial.

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