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Boletim Bibliográfico 4 - O Escritor do mês - fevereiro de 2015 - Luís Sepúlveda “Às vezes, os excessos de submissão diante do poderoso avam os mecanismos de resistên- cia que dignificam a pessoa humana” - Luís Sepúlveda, Úlmas Nocias do Sul. Luís Sepúlve- da é um dos grandes escritores da América Lana e tem uma obra interessante e rica em memória daquilo que o move como cidadão. De estudante do Maio chileno de 69, a compa- nheiro e guarda pessoal de Salvador Allende, a guerrilheiro na Nicarágua, a preso políco, a avista da Amnisa Internacional, o escritor tem do uma vida cheia de experiências, emo- ções e de recordações de um tempo histórico violento, mas rico em vivências. A sua obra é um testemunho de uma estéca que procura na vida construir uma éca sobre os valores humanos e sobre os sonhos de minorias e especialmente sobre um território que é o Chile. A Patagónia, imenso território que atravessa a Argenna e o Chile, tem um clima di- cil, extremo, onde o vento e o gelo isolam os espaços desse território. É um dos úlmos locais da Terra que envolve os aventureiros e os sonhadores pela viagem, pela descoberta, pela ca- minhada na respiração de pessoas e de uma cultura própria e não muito divulgada. Território de lendas, sedutor nas possibilidades de descoberta, berço dos índios Pehuenches, Mapuches, Tehuelches, Onas e Yamanas, que foram sucessivamente dizimados pela civiliza- ção das armas e das doenças. Dotada de uma costa de dicil acesso, onde os ventos do Pacífi- co acostam com força, nela Magalhães também conheceu grandes dificuldades de navega- ção. Território ainda em estado selvagem, naquilo que este adjevo tem de belo por estar mais perto da natureza inicial das coisas, foi tardiamente explorado e é em certo sendo in- domável. A Patagónia é um território de dimensões connentais, com paisagens milenares, esculpidas pelos elementos naturais, é um santuário à evasão, dos que ainda acreditam que a natureza do homem reside, como dizia Pascal, “no movimento”. Encontramos na Patagónia os desenhos coloridos da estepe semi - desérca, onde os Andes projetam as cores das baías azuladas, por lagos que fazem deslizar icebergues numa graciosidade selvagem. É nessa Pata- gónia dos pântanos rodeados de vulcões, das árvores desenhadas pelos elementos naturais, dos bosques e das praias de pinguins, que acedemos a uma das mais belas paisagens da Ter- ra. Luís Sepúlveda dá-nos, nas suas páginas, as memórias de um território, os sonhos de pes- soas que face aos elementos criaram uma cultura generosa de hospitalidade. Uma cultura em exnção e a sua parcular respiração é o que Luís Sepúlveda nos oferece em livros fascinan- tes como Patagónia Express, Mundo do Fim do Mundo ou Úlmas Nocias do Sul. “Do conglomerado de crenças que compõe a fé de um escritor, ele cria sobretudo numa delas: naquela que nos adverte do perigo de confundir a vida que flui nas páginas de um livro com a outra, a que fervilha do outro lado das capas. Quando lemos ou escrevemos, realizamos um ato de fuga, a mais pura e legíma das evasões. Delas saímos mais fortes, renovados e até melhores”. Luís Sepúlveda, Úlmas Nocias do Sul “Enquanto espero, penso naqueles dois gringos velhos que moveram os frágeis fios do desno e conseguiram que Bruce Chatwin e eu nos encontrássemos certo meio-dia in- vernoso na esplanada do café Zurich de Barcelona. Um inglês e um chileno. E, como se não fosse suficiente, dois pos com pouco carinho pelos fonemas «pátria». O inglês, nómada, porque não podia ser outra coisa, e o chileno, exilado por idêncas razões. Demónios! Alguém deveria proibir este po de encontros, ou pelo menos garanr que não aconteçam na presença de menores. O encontro, organizado pelo editor espanhol de Bruce, era ao meio-dia e fui com absolu-ta pontualidade. O inglês chegara primeiro; estava sentado diante de uma cerveja a ler um dos perversos livros de banda desenha- da de El Víbora. Para lhe chamar a atenção dei umas pancadinhas na mesa. O inglês levantou a cabeça e bebeu um gole antes de falar. - Um sul-americano pontual é qualquer coisa que consigo suportar, mas um po que de-pois de viver vários anos na Alemanha vai a um primeiro encontro sem trazer flores é simplesmente intolerável. - Se quiseres volto dentro de quinze minutos e com flores - respondi. Com um gesto indicou-me uma cadeira. Sentei- me, acendi um cigarro, e ficámos a olhar um para o outro sem dizermos palavra. Ele sabia que eu sabia dos dois gringos, e eu sa-bia que ele sabia dos dois gringos. - És da Patagónia? - perguntou, quebrando o silêncio. - Não, de mais a norte. - Melhor. Não se pode confiar nem num quarto daquilo que os Patagónicos dizem. São os maiores men- rosos da Terra - comentou, pegando na cerveja. Sen-me obrigado a devolver o to- que. - É que aprenderam a menr com os Ingleses. Conheces as menras que Fitzroy inventou ao pobre do Jimmy Buon? - Uma a uma - disse Bruce, e deu-me a mão. A cerimónia de apresentação acabava sasfatoriamente e desatámos a falar daqueles dois gringos velhos que talvez nos observassem de algum lugar desconhecido nos ma- pas, contentes por serem testemunhas daquele encontro. “ Luís Sepúlveda, (Encontro entre Luís Sepúlveda e Bruce Chatwin), Patagónia Express

Boletim Bibliográfico - (fevereiro) - Luís Sepúlveda

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Boletim do mês de fevereiro da Biblioteca (ESRDA).

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Boletim Bibliográfico 4 - O Escritor do mês - fevereiro de 2015 - Luís Sepúlveda

“Às vezes, os excessos de submissão diante do poderoso ativam os mecanismos de resistên-cia que dignificam a pessoa humana” - Luís Sepúlveda, Últimas Notícias do Sul. Luís Sepúlve-da é um dos grandes escritores da América Latina e tem uma obra interessante e rica em memória daquilo que o move como cidadão. De estudante do Maio chileno de 69, a compa-nheiro e guarda pessoal de Salvador Allende, a guerrilheiro na Nicarágua, a preso político, a ativista da Amnistia Internacional, o escritor tem tido uma vida cheia de experiências, emo-ções e de recordações de um tempo histórico violento, mas rico em vivências. A sua obra é um testemunho de uma estética que procura na vida construir uma ética sobre os valores humanos e sobre os sonhos de minorias e especialmente sobre um território que é o Chile. A Patagónia, imenso território que atravessa a Argentina e o Chile, tem um clima difí-cil, extremo, onde o vento e o gelo isolam os espaços desse território. É um dos últimos locais da Terra que envolve os aventureiros e os sonhadores pela viagem, pela descoberta, pela ca-minhada na respiração de pessoas e de uma cultura própria e não muito divulgada. Território de lendas, sedutor nas possibilidades de descoberta, berço dos índios Pehuenches, Mapuches, Tehuelches, Onas e Yamanas, que foram sucessivamente dizimados pela civiliza-ção das armas e das doenças. Dotada de uma costa de difícil acesso, onde os ventos do Pacífi-co acostam com força, nela Magalhães também conheceu grandes dificuldades de navega-ção. Território ainda em estado selvagem, naquilo que este adjetivo tem de belo por estar mais perto da natureza inicial das coisas, foi tardiamente explorado e é em certo sentido in-domável. A Patagónia é um território de dimensões continentais, com paisagens milenares, esculpidas pelos elementos naturais, é um santuário à evasão, dos que ainda acreditam que a natureza do homem reside, como dizia Pascal, “no movimento”. Encontramos na Patagónia os desenhos coloridos da estepe semi - desértica, onde os Andes projetam as cores das baías azuladas, por lagos que fazem deslizar icebergues numa graciosidade selvagem. É nessa Pata-gónia dos pântanos rodeados de vulcões, das árvores desenhadas pelos elementos naturais, dos bosques e das praias de pinguins, que acedemos a uma das mais belas paisagens da Ter-ra. Luís Sepúlveda dá-nos, nas suas páginas, as memórias de um território, os sonhos de pes-soas que face aos elementos criaram uma cultura generosa de hospitalidade. Uma cultura em extinção e a sua particular respiração é o que Luís Sepúlveda nos oferece em livros fascinan-tes como Patagónia Express, Mundo do Fim do Mundo ou Últimas Notícias do Sul.

“Do conglomerado de crenças que compõe a fé de um escritor, ele cria sobretudo numa delas: naquela que nos adverte do perigo de confundir a vida que flui nas páginas de um livro com a outra, a que fervilha do outro lado das capas. Quando lemos ou escrevemos, realizamos um ato de fuga, a mais pura e legítima das evasões. Delas saímos mais fortes, renovados e até melhores”. Luís Sepúlveda, Últimas Notícias do Sul

“Enquanto espero, penso naqueles dois gringos velhos que moveram os frágeis fios do destino e conseguiram que Bruce Chatwin e eu nos encontrássemos certo meio-dia in-vernoso na esplanada do café Zurich de Barcelona. Um inglês e um chileno. E, como se não fosse suficiente, dois tipos com pouco carinho pelos fonemas «pátria». O inglês, nómada, porque não podia ser outra coisa, e o chileno, exilado por idênticas razões. Demónios! Alguém deveria proibir este tipo de encontros, ou pelo menos garantir que não aconteçam na presença de menores. O encontro, organizado pelo editor espanhol de Bruce, era ao meio-dia e fui com absolu-ta pontualidade. O inglês chegara primeiro; estava sentado diante de uma cerveja a ler um dos perversos livros de banda desenha-da de El Víbora. Para lhe chamar a atenção dei umas pancadinhas na mesa. O inglês levantou a cabeça e bebeu um gole antes de falar. - Um sul-americano pontual é qualquer coisa que consigo suportar, mas um tipo que de-pois de viver vários anos na Alemanha vai a um primeiro encontro sem trazer flores é simplesmente intolerável. - Se quiseres volto dentro de quinze minutos e com flores - respondi. Com um gesto indicou-me uma cadeira. Sentei-me, acendi um cigarro, e ficámos a olhar um para o outro sem dizermos palavra. Ele sabia que eu sabia dos dois gringos, e eu sa-bia que ele sabia dos dois gringos. - És da Patagónia? - perguntou, quebrando o silêncio. - Não, de mais a norte. - Melhor. Não se pode confiar nem num quarto daquilo que os Patagónicos dizem. São os maiores men-tirosos da Terra - comentou, pegando na cerveja. Senti-me obrigado a devolver o to-que. - É que aprenderam a mentir com os Ingleses. Conheces as mentiras que Fitzroy inventou ao pobre do Jimmy Button? - Uma a uma - disse Bruce, e deu-me a mão. A cerimónia de apresentação acabava satisfatoriamente e desatámos a falar daqueles dois gringos velhos que talvez nos observassem de algum lugar desconhecido nos ma-pas, contentes por serem testemunhas daquele encontro. “ Luís Sepúlveda, (Encontro entre Luís Sepúlveda e Bruce Chatwin), Patagónia Express

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Ficha Técnica

Redação: Equipa da Biblioteca Biblioteca: Escola Secundária Rainha Dona Amélia Periodicidade: Mensal (fevereiro) Distribuição/Publicitação:

(Afixação na Biblioteca / Plataformas digitais)

Boletim Bibliográfico 4 - O Escritor do mês - fevereiro de 2015 - Luís Sepúlveda

“A literatura transformou-se na minha profissão. Primeiro sou um cidadão e depois sou um escritor. Como cidadão veiculo-me de um ponto de vista rigorosamente ético para com a vida e como escritor vinculo-me com a literatura de um ponto de vista muito estético. Mas sou as duas coisas, escritor e cidadão. E tento dar à literatura a mesma ética com que me confronto com a vida e tento dar à vida a mesma carga es-tética que me confronto com a literatura. Tenho claro muitas coisas. Tenho claro que sou um poeta. Todos os meus livros têm uma carga poética muito forte. Sou um cida-dão e sou um escritor. A literatura fundamentalmente tem que possibilitar ao leitor aquilo que se chama “as possibilidades de evasão”. Quando lemos um livro desliga-mo-nos da realidade e quando regressamos voltamos à realidade em melhores condi-ções, um pouco mais inteligentes, um pouco mais alegres. Enfim, essa é a grande fun-ção do livro. Comprometemo-nos sempre como cidadãos, não como escritores. Es-crevo acima de tudo pelo enorme prazer da escrita. Não procuro os temas, espero que eles cheguem até mim. Ao escrever aprendo sempre algo novo. Sobre o que es-tou a escrever ou sobre mim. Isso é a coisa mais fascinante do ofício da escrita. Tento ser muito rigoroso com os meus livros. Gosto de uma linguagem com grande preci-são, gosto de escrever com frases precisas, gosto que os meus livros tenham uma musicalidade e penso que isso tenha atraído os leitores. E também porque os meus livros são livros que passam entre gerações”. in Encontro de Escritores

"Sonhava que os livros me falavam na sua linguagem silenciosa, me mostravam cada uma e todas as palavras impressas nas suas páginas e exigiam de mim uma promessa: a de me transformar no fiel depositário, no zelador, no amoroso protetor das pala-vras. E eu prometia fazer com que nunca perdessem o seu valor intrínseco, a sua ca-pacidade de nomear todas as coisas e, com isso dar-lhes existência”. (…)

Luís Sepúlveda, O poder dos sonhos

“Daí sai o mais austral dos caminhos-de ferro, o verdadeiro Patagónia Express, o qual, depois de duzentos e quarenta quilómetros de andamento que unem cidades como El Zurdo e Bellavista, chega a Rio Gallegos, na costa atlântica. O comboio, formado por duas carruagens de passageiros e dois vagões de carga, é arrastado por uma ve-lha locomotiva a carvão fabricada no Japão no princípio dos anos trinta. Cada carrua-gem de passageiros tem dois longos bancos de madeira que a percorrem de uma ponta a outra. Numa delas há um fogão a lenha que os passageiros têm de ir alimen-tando e, por cima dele, um quadro com a imagem de Nossa Senhora de Luján.”

Luís Sepúlveda, Patagónia Express