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BOLETIM CONTEÚDO JURÍDICO N. 699
(Ano VIII)
(13/9/2016)
ISSN- -
BRASÍLIA ‐ 2016
Boletim
Conteú
doJu
rídico-ISSN
–-
5
1 Disponível em: http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.56751
Boletim Conteúdo Jurídico n. 699 de 13/09/2016 (ano VIII) ISSN
‐ 1984‐0454
ConselhoEditorial
COORDENADOR GERAL (DF/GO/ESP) - VALDINEI CORDEIRO COIMBRA: Fundador do Conteúdo Jurídico. Mestre em Direito Penal Internacional Universidade Granda/Espanha.
Coordenador do Direito Internacional (AM/Montreal/Canadá): SERGIMAR MARTINS DE ARAÚJO - Advogado com mais de 10 anos de experiência. Especialista em Direito Processual Civil Internacional. Professor universitário
Coordenador de Dir. Administrativo: FRANCISCO DE SALLES ALMEIDA MAFRA FILHO (MT): Doutor em Direito Administrativo pela UFMG.
Coordenador de Direito Tributário e Financeiro - KIYOSHI HARADA (SP): Advogado em São Paulo (SP). Especialista em Direito Tributário e em Direito Financeiro pela FADUSP.
Coordenador de Direito Penal - RODRIGO LARIZZATTI (DF/Argentina): Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino - UMSA.
País: Brasil. Cidade: Brasília – DF. Contato: [email protected] WWW.CONTEUDOJURIDICO.COM.BR
BoletimConteudoJurıdico
Publicação
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SUMÁRIO
COLUNISTA DO DIA
13/09/2016 Carlos Eduardo Rios do Amaral
» Fatiamento da votação do impeachment da presidente Dilma não deve causar
surpresa
ARTIGOS
13/09/2016 Luciana Cláudia Medeiros de Souza » A relativização da coisa julgada inconstitucional e o novo Código de Processo Civil
13/09/2016 José Cláudio Diógenes Porto
» Processos informais de modificação da Constituição: principais aspectos
13/09/2016 Flávia Caram Borlido
» Os princípios da Administração Pública no exercício das funções dos agentes públicos
13/09/2016 Agenor Gabriel Chaves Miranda
» O Direito do Trabalho na Ditadura Civil‐Militar
13/09/2016 Tiago Amorim Pouillard Carneiro
» Direito da construção: a importância da administração de contratos de construção
em tempos de crise
13/09/2016 Tauã Lima Verdan Rangel
» Poder de Polícia e Segurança Alimentar e Nutricional: Tessituras à Vigilância Sanitária
e a Função Fiscalizadora de Produtos e Serviços de Alimentos
13/09/2016 Marcelo Alves Vieira
» "O Caso Dos Exploradores de Cavernas": Uma Breve Análise
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FATIAMENTO DA VOTAÇÃO DO IMPEACHMENT DA PRESIDENTE DILMA NÃO DEVE CAUSAR SURPRESA
CARLOS EDUARDO RIOS DO AMARAL: Defensor Público do Estado do Espírito Santo.
De longa data se diz no Brasil que temos duzentos milhões de técnicos da seleção brasileira de futebol. Todo brasileiro acredita conhecer a melhor escalação e o melhor esquema tático para se vencer uma copa do mundo do que qualquer outra pessoa. E no Direito também não é diferente. Somos um País de duzentos milhões de juristas.
Mas, assim como no futebol, também no Direito, as coisas são bem diferentes na prática. O Direito é uma ciência, a merecer um estudo bem mais aprofundado de seu intérprete para domínio de seus fundamentos e propósitos.
Desde logo é preciso ficar claro ao leitor que o Operador do Direito não aplica a lei em seu sentido estrito para solução das demandas judiciais. É a norma – e não a lei – o instrumento de resolução de todos os conflitos submetidos à interpretação judicial.
O Ministro Eros Roberto Grau, do Supremo Tribunal Federal, de 2004 a 2010, sempre alertava a toda comunidade jurídica sobre a diferença entre lei e norma.
Quando do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 153), ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, para contestar o alcance da Lei da Anistia, lecionou o Eminente Ministro Eros Grau:
“Todo texto normativo é obscuro até sua interpretação. Somente a interpretação de um texto legal transforma-o em norma, dá-lhe efetividade.
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Interpretar é aplicar, é dar concreção ao direito. As normas resultam da interpretação. Só o texto da lei não diz nada, até sua transformação em norma, resultado da interpretação”.
Quando determinada lei em sentido estrito diz que “a” + “b” = “c”, essa conclusão só produzirá efeito jurídico a determinado fato ou fenômeno da vida quando cotejado com todo o ordenamento jurídico vigente, notadamente com o texto da Constituição Federal.
Assim, a conclusão de que “a” + “b” = “c” só poderá ser extraída quando esgotada sua análise frente a todas as fontes da Ciência do Direito, como as leis, os tratados, os costumes, os princípios gerais do direito, a jurisprudência e a doutrina.
Como se vê, a interpretação literal não deve ser considerada uma intrusa na hermenêutica jurídica – arte de interpretar as leis – , mas não pode ser considerada a melhor ou preferencial opção do interprete para melhor solução da lide. Sob pena de criarmos verdadeiras incongruências nos veredictos judiciais.
A interpretação literal é a forma mais cômoda, primeva, de se tentar extrair determinada solução jurídica quando se desconhece a maior parte ou o restante das fontes do Direito e seu conteúdo.
Pois bem. O princípio da proporcionalidade sempre foi aplicado pela nossa jurisprudência para justificar o fatiamento de determinadas disposições sancionatórias que cominem mais de uma pena.
Foi o que aconteceu com os casos de improbidade administrativa anteriores à edição da Lei 12.120/2009, que modificou a Lei 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa).
Na sua redação original, a Lei de Improbidade Administrativa determinava que na sentença condenatória o agente ímprobo deveria ser condenado cumulativamente à perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, ressarcimento integral do dano, quando houver, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de oito a dez anos,
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pagamento de multa civil de até três vezes o valor do acréscimo patrimonial e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de dez anos.
Atentando para a severidade extraordinária da Lei de Improbidade, estabelecendo múltiplas e desproporcionais sanções para um mesmo fato, os Tribunais Superiores houveram por bem decidir reiteradamente que aonde se observa a conjunção aditiva “e”, sugerindo cumulação obrigatória das sanções, dever-se-ia se interpretar que essas sanções poderiam ser aplicadas isolada ou cumulativamente, de acordo com a gravidade do fato. Tudo, a bem do princípio da proporcionalidade, mesmo contra o texto frio e literal da lei.
Vejamos:
“RECURSO ESPECIAL - ALÍNEAS ‘A’ E ‘C’ - ADMINISTRATIVO - AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA - PAGAMENTO INDEVIDO DE HORAS EXTRAS A OCUPANTES DE CARGO EM COMISSÃO - ACÓRDÃO QUE AFASTOU A APLICAÇÃO DA SANÇÃO DE SUSPENSÃO DOS DIREITOS POLÍTICOS POR TRÊS ANOS DETERMINADA PELA SENTENÇA - ALEGAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL DE QUE NÃO HÁ POSSIBILIDADE DE EXCLUIR A SANÇÃO - APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE - POSSIBILIDADE DE INCIDÊNCIA NÃO CUMULATIVA DAS SANÇÕES DO ART. 12, INCISO III, DA LEI N. 8.429/92 - DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL NÃO CONFIGURADA.
A aplicação das sanções da Lei n. 8.429/92 deve ocorrer à luz do princípio da proporcionalidade, de modo a evitar sanções desarrazoadas em relação ao ato ilícito praticado, sem, contudo, privilegiar a impunidade.
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Para decidir pela cominação isolada ou conjunta das penas previstas no artigo 12 e incisos, da Lei de Improbidade Administrativa, deve o magistrado atentar para as circunstâncias peculiares do caso concreto, avaliando a gravidade da conduta, a medida da lesão ao erário, o histórico funcional do agente público etc”.
Ora, em reiteradas decisões o STJ afastou a aplicação cumulativa obrigatória das sanções estabelecidas na Lei de Improbidade, quando apenas em 2009 esse Diploma fora finalmente alterado para se prever expressamente a possibilidade de aplicação alternativa dessas mesmas sanções.
Um outro exemplo pode ser dado de fatiamento de sanções legais abstratas previstas em nosso sistema legal. No ano de 1998 o Congresso Nacional, tomado pelo clamor popular, houve por bem fixar as penas do delito de Falsificação de Medicamentos (Art. 273 do Código Penal) em reclusão de 10 a 15 anos. Perceba-se, temos para este tipo penal uma pena mínima, absurdamente desproporcional, de 10 anos (!).
Evidenciada a desproporcionalidade evidente da conduta abstrata prevista no tipo penal com as penas fixadas, a jurisprudência houve por bem fatiar a disposição legal do crime de Falsificação de Medicamentos para que em muitos casos fosse aplicado como parâmetro o delito de Tráfico Ilícito de Entorpecentes, o qual tem como bem jurídico tutelado também a saúde pública.
Confira-se:
“- A pena do delito previsto no art. 273 do CP – com a redação que lhe deu a Lei nº 9.677, de 02 de julho de 1998 – (reclusão, de 10 (dez) e 15 (quinze) anos, e multa) deve, por excessivamente severa, ficar reservada para punir apenas aquelas condutas que exponham a sociedade e a economia popular a ‘enormes danos’ (exposição de motivos). Nos casos de fatos que, embora censuráveis, não assumam tamanha gravidade, deve-se recorrer, tanto quanto possível, ao emprego da analogia em favor do réu, recolhendo-se, no corpo do
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ordenamento jurídico, parâmetros razoáveis que autorizem a aplicação de uma pena justa, sob pena de ofensa ao princípio da proporcionalidade. ‘A criação de solução penal que descriminaliza, diminui a pena, ou de qualquer modo beneficia o acusado, não pode encontrar barreira para a sua eficácia no princípio da legalidade, porque isso seria uma ilógica solução de aplicar-se um princípio contra o fundamento que o sustenta’ (Fábio Bittencourt da Rosa. In Direito Penal, Parte Geral. Rio de Janeiro: Impetus, 2003, p. 04). Hipótese em que ao réu, denunciado por introduzir, no território nacional, 06 comprimidos de Cytotec, medicamento desprovido de registro e de licença do órgão de Vigilância Sanitária competente (art. 273, § 1º-B, incisos I, V, e VI, do CP), foi aplicada a pena de 03 anos de reclusão, adotado, como parâmetro, o delito de tráfico ilícito de entorpecentes, o qual tem como bem jurídico tutelado também a saúde pública.
- Possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direito que se reconhece, seja porque o delito de tráfico foi tomado apenas como substrato para aplicação da pena, seja porque o remédio importado não era ‘falsificado, corrompido, adulterado ou alterado’ (inciso VII-B do art. 1º c/c o parágrafo primeiro do art. 2º da Lei nº 8.072/90) (grifo nosso) (ACR 200172000036832, PAULO AFONSO BRUM VAZ, TRF4 – OITAVA TURMA, 02/03/2005)”.
Destarte, quando o Senado Federal ao interpretar o § Único, do Art. 52, da Constituição Federal, cassa o mandato da Presidente Dilma Rousseff, mas mantém hígida sua habilitação para o exercício de função pública, nada mais está fazendo do que criar a norma jurídica aplicável à espécie, cotejando a letra fria da lei, o fato imputado e o Direito e suas fontes, notadamente com os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.
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O Jusfilósofo e Mestre Miguel Reale, ao discorrer sobre a Teoria Tridimensional do Direito, lecionava que o Direito se compõe da conjugação harmônica de três aspectos primordiais: o aspecto normativo, ou seja, o aspecto de ordenamento do Direito; o aspecto fático, ou seja, o seu nicho social e histórico; e, ainda, o aspecto axiológico, ou seja, os valores buscados pela sociedade, como a Justiça.
A Teoria Tridimensional do Direito de Miguel Reale contrasta com o normativismo hierárquico de Kelsen, em particular porque nas palavras do Jusfilósofo brasileiro:
“A norma é a indicação de um caminho, porém, para percorrer um caminho, devo partir de determinado ponto e ser guiado por certa direção: o ponto de partida da norma é o fato, rumo a determinado valor. Desse modo, pela primeira vez, em meu livro Fundamentos do Direito eu comecei a elaborar a tridimensionalidade. Direito não é só norma, como quer Kelsen, Direito, não é só fato como rezam os marxistas ou os economistas do Direito, porque Direito não é economia. Direito não é produção econômica, mas envolve a produção econômica e nela interfere; o Direito não é principalmente valor, como pensam os adeptos do Direito Natural tomista, por exemplo, porque o Direito ao mesmo tempo é norma, é fato e é valor” (Teoria Tridimensional do Direito, 5ª ed., Editora Saraiva, São Paulo, 2003, p. 91).
Em conclusão, a equivocada expressão “fatiamento” utilizada para o veredicto do impeachment da Presidente Dilma, deve ser compreendida como a norma jurídica extraída pelo Senado Federal, na condição de julgador, cotejando os fatos imputados à luz do Direito posto, notadamente ante os princípios da proporcionalidade e razoabilidade, que podem muito bem autorizar a neutralização de outra cominação prevista no tipo legal.
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A RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA INCONSTITUCIONAL E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
LUCIANA CLÁUDIA MEDEIROS DE SOUZA: Analista Judiciário do Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba; Especialista em Direito Processual Civil.
RESUMO: Este trabalho se propõe a tratar da teoria da relativização da
coisa julgada inconstitucional, tendo como objetivo mostrar uma visão
jurídica evolutiva sobre a teoria e apresentar em quais hipóteses a coisa
julgada inconstitucional pode ser rescindida no novo código de processo
civil. Vislumbra‐se que o grande questionamento do tema proposto
fundamenta‐se no fato de que não somente os atos do Legislativo e do
Executivo devem ser editados conforma a Carta Magna, mas, também, os
atos do Poder Judiciário, sobretudo as decisão já transitadas em julgado.
Para a elucidação do debate jurídico e uma melhor compreensão do tema,
realizar‐se‐á, inicialmente, um estudo da coisa julgada. Ulteriormente, o
estudo focaliza‐se no conceito de coisa julgada inconstitucional, as
posições doutrinárias sobre a sua relativização, o tratamento da teoria na
vigência do antigo código de processo civil e a sua maior aceitação no atual
CPC.
Palavras‐chave: Coisa julgada inconstitucional. Relativização. Evolução da
teoria. Novo CPC.
SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO. 2 DA COISA JULGADA. 2.1 Coisa Julgada como
proteção Constitucional. 2.2 O Princípio da Segurança Jurídica. 2.3
Conceito. 2.4 Natureza jurídica. 2.5 Classificação da Coisa Julgada. 2.6
Instrumento de revisão da coisa julgada. 2.7 Relativização da coisa julgada.
3 OS EFEITOS DA INCONSTITUCIONALIDADE NA COISA JULGADA. 3.1 Coisa
julgada inconstitucional. 3.2 Posições contrárias à relativização da coisa
julgada inconstitucional. 3.3 Posições favoráveis à relativização da coisa
julgada inconstitucional. 3.4 A relativização da coisa julgada
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inconstitucional e o CPC de 1973. 3.5 A relativização da coisa julgada
inconstitucional e o novo CPC. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS.
INTRODUÇÃO
Nos últimos anos, um dos temas mais discutidos perante a sociedade
jurídica foi a influência das decisões do Supremo Tribunal Federal em
controle abstrato e difuso de constitucionalidade sobre sentenças que
tenham transitado em julgado.
É neste contexto que o presente trabalho que se segue intitulado “A
relativização da coisa julgada inconstitucional e o novo código de processo
civil” abordará o instituto da res iudicata, de modo que se veja a evolução
do tema no ordenamento jurídico brasileiro com a entrada em vigor do
NCPC.
O objetivo do tema proposto é apresentar uma visão jurídica
evolutiva sobre a teoria da relativização da coisa julgada inconstitucional,
mostrando como esta teoria era tratada na vigência do CPC de 1973 e a
sua maior aceitação no atual regime.
Tentando angariar embasamento necessário para a elucidação da
controvérsia, será adotado o método de estudo histórico‐comparativo e
exegético jurídico, realizando consultas a doutrinas, jurisprudências e sites
jurídicos, sempre no sentido de tentar dirimir a crescente discussão sobre
o tema proposto.
Cabe esclarecer que a controvérsia doutrinária baseia‐se no fato de
que o sistema legal brasileiro proclama o princípio da Supremacia da
Constituição como norteador do Estado Democrático de Direito,
subordinando e vinculando todas as leis ou atos normativos à Constituição
Federal de 1988. A partir disso, vislumbra‐se que não somente os atos do
Legislativo devem ser editados conforme a Carta Magna, mas, também, os
atos do Poder Executivo e do Poder Judiciário, sobretudo as decisões já
transitados em julgado.
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É neste ponto, quanto à obrigatoriedade de conformidade das
decisões do Judiciário à Carta Magna, que surgem questionamentos em
torno da relativização da coisa julgada inconstitucional, ou melhor, da
possibilidade de relativização da coisa julgada material quando a decisão
proclamada pelo juiz for contrária às normas constitucionais.
Ademais, para uma melhor compreensão do tema, o presente
trabalho foi estruturado em dois capítulos. No primeiro capítulo estudar‐
se‐á a coisa julgada, partindo‐se do seu conceito, fundamento, regime
jurídico, natureza, classificação, suas formas de revisão, a sua ligação com
o Princípio da Segurança Jurídica e, por fim, verificar‐se‐á a tese da
relativização da coisa julgada. Percebe‐se que será feito um estudo
pormenorizado da res iudicatalevando‐se em consideração a sua
importância na preservação da certeza jurídica.
No capítulo segundo, analisar‐se‐á o foco do presente trabalho, ou
seja, serão trabalhados o conceito de coisa julgada inconstitucional, as
posições contrárias e a favor da relativização da coisa julgada em
desconformidade com a Constituição, o tratamento da teoria na vigência
do antigo código de processo civil e a sua maior aceitação no atual CPC.
Diante disso, cabe dizer que o presente trabalho não tem a intenção
de esgotar o tema, mas, sim, ao contrário, pretende‐se contribuir para o
estudo da coisa julgada inconstitucional, adotando os posicionamentos
doutrinários mais recentes, buscando instigar o estudo sobre ele.
Em face do exposto, o estudo será estruturado com uma coordenada
sistematização e pragmatismo na exposição de ideias e contribuirá de
forma concreta para a área de conhecimento em que se situa.
DA COISA JULGADA
O Estado tem como fim último, na prestação jurisdicional, a
resolução de conflitos de interesses que seus membros levem ao seu
conhecimento. A parte leva seu pedido ao Judiciário, o qual decide se é
procedente ou não, colocando fim à situação litigiosa. Tal decisão deve ser
respeitada por todos e visa dar garantia e segurança para as relações entre
os membros da coletividade.
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Todavia, como o ordenamento jurídico brasileiro adota o sistema do
duplo grau de jurisdição, é possível que essa decisão seja reexaminada e
modificada por um órgão superior. A parte inconformada pode requerer
este exame por meio de recurso, que é um remédio voluntário, que visa à
reforma, à invalidação, ao esclarecimento ou à integração de decisão
judicial. Até aqui, pode‐se falar que a decisão ainda poderá ser alterada,
levando em consideração que ainda não foi dada uma decisão definitiva
ao caso.
Após chegar ao término do processo e com fim de alcançar uma
solução imutável sobre a lide, conferindo força e segurança à decisão,
surge o instituto da coisa julgada, que nada mais é do que a solução
definitiva dada ao litígio, tornando‐o material e formalmente imodificável.
O insigne doutrinador Wambier (2006, p. 501) destaca que “se algo
pode dizer a respeito da coisa julgada é que se trata de instituto ligado ao
fim do processo e à imutabilidade daquilo que tenha sido decidido”.
Assim, a coisa julgada é um instituto que visa dar firmeza a tutela
jurisdicional, tendo como objetivo, após serem esgotados ou não
utilizados os recursos previstos em lei, dar‐se como encerrado o debate,
colocando a decisão como perpétua para garantir estabilidade e
segurança ao ordenamento jurídico.
2.1 Coisa Julgada como proteção Constitucional
A res iudicata é a autoridade que cria para o juiz um impedimento de
proferir nova decisão sobre matéria em que tenha se verificado a
resolução da lide. Está prevista no art. 5º, inciso XXXVI, da Carta Magna,
que dispõe que a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico
perfeito e a coisa julgada.
Em essência, o que aí se veda é a retroatividade da lei, isto é, lei
posterior que passe a reger fatos passados. Entretanto, a proteção
constitucional da coisa julgada não impede que a lei preordene regras para
a sua rescisão mediante atividade jurisdicional.
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Nesse sentido, Silva (2003, p.435) ao dispor sobre este princípio
preleciona que:
A Constituição ao dizer que a lei não prejudicará
a coisa julgada, quer‐se tutelar esta contra a atuação
direta do legislador, contra ataque direto de lei. A lei
não pode desfazer (rescindir ou anular ou tornar
ineficaz) a coisa julgada. Mas pode prever
licitamente, como fez o art. 485 do Código de
Processo Civil, sua rescindibilidade por meio da ação
rescisória.
A ação rescisória, como ação autônoma de impugnação da decisão de
mérito transitada em julgado, não ofende a Constituição, pois não há
retroatividade quando se rescinde sentença, proferindo‐se novo
julgamento, com base na mesma legislação existente ao tempo da
sentença rescindida.
Ademais, apesar do status constitucional que a coisa julgada possui,
cabe ao legislador infraconstitucional traçar o seu perfil dogmático, onde
se pode dá como exemplo a Lei de Introdução às Normas do Direito
Brasileiro, art. 6°, §3°, na qual define que a coisa julgada ou caso julgado é
a decisão judicial de que já não caiba recurso.
2.2 O Princípio da Segurança Jurídica
O Princípio da Segurança Jurídica não é expresso na Constituição
Federal de 1988, este é decorrência lógica do Estado de direito, pois só
poderá haver Direito onde houver Segurança Jurídica, que é
complementado pelo princípio da legalidade, pela garantia à coisa julgada,
ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito, isto é, pelo princípio da
irretroatividade da lei.
A segurança jurídica é a essência do direito, haja vista que se uma
norma cria Direito ou se uma sentença declara direitos, devem ambos ser
protegidos e seguros de qualquer ataque, como forma de evitar surpresas
nas relações entre particulares e entre eles e o Poder Público. Este
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princípio faz parte do corpo de toda sociedade democrática, tendo em
consideração que é primordial para a estabilidade da convivência social.
Aqui, destaque‐se Canotilho (1991, p. 105):
O homem necessita de segurança para conduzir,
planificar e conformar autônoma e
responsavelmente a sua vida. Por isso, desde cedo se
consideram os princípios da segurança jurídica e da
proteção da confiança com elementos constitutivos
do Estado de direito.
Sobre o princípio da segurança jurídica, ainda, elucida SILVA (2003, p.
431):
A segurança jurídica consiste no ‘conjunto de
condições que tornam possível ás pessoas o
conhecimento antecipado e reflexivo das
conseqüências diretas de seus atos e de seus fatos à
luz da liberdade reconhecida’. Uma importante
condição da segurança jurídica está na relativa
certeza de que os indivíduos têm de que as relações
realizadas sob o império de uma norma de perdurar
ainda quando tal norma seja substituída.
Diante disso, percebe‐se que a importância do princípio da Segurança
Jurídica está na confiança que a sociedade deposita no Direito, de que
naquele determinado momento as regras são aquelas e nada poderá
modificá‐las, tendo em vista todo um conjunto de ações que sob ela se
fundaram. Se assim não fosse, o estado de insegurança reduziria
absurdamente a formação de uma idéia acerca da liberdade, já que
poderia haver mudanças repentinas e inesperadas nas normas que
regulavam um fato.
2.3 Conceito
No sistema do ordenamento jurídico brasileiro o juiz ao proferir a
sentença configurará a esta apenas uma resolução de uma situação
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jurídica, na medida em que as partes podem ainda adentrar com recurso,
seja para reformar parcialmente ou totalmente a decisão. Apenas no
momento em que a sentença não está mais suscetível de recurso ou
quando já estiver decido todos os atos impugnados no mesmo, é que
teremos o trânsito em julgado da sentença e consequentemente a coisa
julgada, passando a ser conhecida pela ordem jurídica como a emanação
da vontade da Lei.
Machado (2005, p. 50), referindo‐se a coisa julgada e especificamente
ao trânsito em julgado, estabelece que:
Diz‐se, então, que a sentença terá força de lei
entre as partes, ‘nos limites da lide e das questões
decididas’ (Código de Processo Civil, artigo 468),
sendo que, contra seu conteúdo lógico‐jurídico não
poderão reagir nem os tribunais, proibidos estarão
de decidir novamente a mesma lide (CPC, artigo 471),
nem os legisladores, impedidos estão de legislar,
retroativamente, em prejuízo da res
iudicata (Constituição, artigo 5º, inciso XXXVI).
Cabe frisar que o Código de Processo Civil de 2015, no art. 337, §§ 1°
e 4°, trouxe a positivação do instituto, definindo que a coisa julgada ocorre
quando se repete ação que já foi decidida por decisão transitada em
julgado.
Diante disso, percebe‐se que a coisa julgada ocorre quando a
sentença já não é mais suscetível de reformulação, tendo em vista que a
lei não concede mais recurso, e cuja finalidade é concretizar estabilidade
e segurança as relações jurídicas, fazendo com que não haja uma
perpetuação dos litígios, tendo em vista a paz social e a manutenção da
ordem jurídica.
2.4 Natureza jurídica
Na doutrina brasileira, a coisa julgada possui duas acepções acerca da
natureza jurídica. A primeira posição considera que a coisa julgada tem
natureza processual, tendo em vista que se dá no plano do processo. Entre
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os processualistas que defendem esta tese, cita‐se: Daniel Carneiro
Machado, Celso Neves e Frederico Marques.
Diferentemente da primeira, a segunda posição defende a ideia que
a coisa julgada é o direito material estabelecido pelos efeitos da sentença
de mérito. Esta teoria é a substancialista, onde os mestres que a
proclamam são os elencados a seguir: Rosemiro Pereira Leal, Fabiano Holz
Beserra, entre outros.
Vale dizer que grande parte da doutrina e o Código de Processo Civil
pátrio seguem a primeira posição, na medida em que a coisa julgada é uma
qualidade dos efeitos da sentença, seguindo claramente a teoria de
Liebman (1981).
2.5 Classificação da Coisa Julgada
O Código Processual Civil no decorrer da sua sistematização divide a
coisa julgada em formal e material, levando‐se em consideração os seus
efeitos para além do processo. A coisa julgada formal ocorre quando não
se pode discutir no processo o que já se decidiu, além do mais, deve‐se
dizer que a sentença prolatada pelo juiz apenas irradia seus efeitos dentro
da relação processual em que foi proferida, decorrendo isto na
imutabilidade pela impossibilidade de interposição de recursos.
Ademais, a coisa julgada formal não impede que o objeto do
julgamento volte a ser discutido em outra demanda, haja vista que atua
apenas dentro da relação processual (relação endoprocessual) em que a
decisão terminativa foi proclamada.
Já em relação à coisa julgada material, esta ocorrerá quando o juiz ao
proferir uma sentença, acolhendo parcialmente ou totalmente o pedido,
estiver solucionando a pendência em determinado processo. Sendo assim,
a partir do momento que a sentença não mais se sujeita a recurso
ordinário ou extraordinário para impugnar o fato resolvido, passa‐se a ter
autoridade de coisa julgada, não podendo as partes bater as portas do
judiciário para resolver novamente o litígio, haja vista que a decisão
emanada já se tornou imutável e com força de Lei para ambos os
litigantes.
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A coisa julgada material tem efeito endo/extraprocessual, a contento
que a imutabilidade dada no processo tem reflexos, também, para fora do
mesmo, impedindo com isso, a renovação da lide em outros processos.
A res iudicata nesse caso só diz respeito ao julgamento da lide, ou
seja, quando o juiz emana uma decisão de mérito solucionando o conflito
de interesses estabelecidos entre as partes. Assim sendo, apenas as
sentenças definitivas produzem a eficácia material da coisa julgada,
deixando as sentenças terminativas com o efeito endoprocessual da coisa
julgada formal.
Cabe elucidar a explicação dada por Marinoni (2012, p.639) sobre
como se manifesta a coisa julgada:
Como fixação da lei do caso concreto que é, a
coisa julgada somente se manifesta em relação
às sentenças definitivas, ou seja, em relação às
sentenças que efetivamente examinam o pedido do
autor, acolhendo‐o ou rejeitando‐o (art. 269, I e IV,
do CPC). Somente essa sentença certifica e
estabelece a vontade concreta do direito em face do
caso concreto. Não se produz, portanto, coisa julgada
material sobre as sentenças meramente
terminativas, nem sobre as sentenças
homologatórias (art. 269, II, III e V).
Diante disso, percebe‐se que a coisa julgada material é a
verdadeira res iudicata, tendo em vista que esta realmente importa e
constitui verdadeiramente o âmbito de relevância da coisa julgada.
2.6 Instrumento de revisão da coisa julgada
O Código de Processo Civil permite que a coisa julgada material seja
desconstituída e tenha uma nova reapreciação do seu mérito por meio da
ação rescisória, que nada mais é do que uma ação de competência
originária dos Tribunais por meio da qual se pede a rescisão da sentença
de mérito transitada em julgado.
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O fundamento essencial da citada ação é a necessidade de reparar
injustiças contidas em decisões transitadas em julgado e prover a
reestabilização das relações jurídicas. Para ser proposta deve estar
presente uma das hipóteses de cabimento do art. 966 ou dos arts. 525,
§15, e 535, § 8º, todos do NCPC, respeitando‐se o prazo decadencial de 02
(dois) anos, cujo termo inicial, como regra, é a data do trânsito em julgado
da última decisão proferida no processo (art.975, caput).
Cabe frisar, ainda, as hipóteses previstas nos arts. 525, § 1º, I, e 535,
I, que são meios de rescisão da sentença de mérito transitada em julgado
em que se funda a execução, independentemente de ação rescisória. Essa
impugnação deve ser emanada por vícios transrescisórios, que existem
quando a decisão for proferida em desfavor do réu em processo que, na
fase de conhecimento, correu à sua revelia por falta ou nulidade da
citação. Esta ação é diferente da rescisória por referir‐se a hipóteses de
cabimento mais restritas e por ser imprescritível.
De grande relevância para o presente trabalho, deve‐se citar a revisão
da coisa julgada baseada em sentença inconstitucional, por previsão dos
artigos 525, § 12º, e 535, § 5º, do novo CPC, que proclamam a
inexigibilidade de título judicial fundado em lei ou ato normativo
declarados inconstitucionais pelo STF, ou fundado em aplicação ou
interpretação da lei ou ato normativo tidos pelo Supremo como
incompatíveis com a nossa Carta Magna.
2.7 Relativização da coisa julgada
Em busca pela primazia da justiça, na vigência do CPC/73, alguns
renomados juristas defendiam uma nova disciplina no tratamento da coisa
julgada, no sentido de propor limites à imutabilidade dos efeitos do
julgado. Os mesmos defendiam a rediscussão do que foi afirmado pela
sentença transitada em julgado, argumentando que a indiscutibilidade
da res iudicata não podia prevalecer sobre a realidade, e por isso devia ser
possível rever a conclusão formada.
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A tese era a da relativização da coisa julgada, fora das hipóteses
previstas pelo CPC/73, que seria uma forma de rediscussão de uma ação
que outrora foi solucionada.
No entanto, apesar de ser um tema bastante estudado pelos juristas,
não existia um ponto pacífico, ocorrendo várias divergências acerca do
tema, até mesmo nas decisões dos Tribunais, tendo em vista que a tese
da relativização possui dois pontos antagônicos: os princípios da
Segurança Jurídica e da Justiça Social.
OS EFEITOS DA INCONSTITUCIONALIDADE NA COISA JULGADA
O ordenamento jurídico brasileiro atribui aos cidadãos direitos e
deveres, sendo estes organizados através de normas de direito impostas
pelo Estado. Observa‐se que poderá ocorrer violação de uma norma legal,
ocasionando conflitos de interesses privados entre os cidadãos, sendo
chamada esta desavença de lide ou litígio.
Nesse sentido, estabeleceu‐se a Jurisdição, como o poder que toca ao
Estado de solucionar ou dirimir conflitos de interesses com vista à
pacificação da sociedade, escopo que é alcançado pela atuação da
vontade do direito material que o juiz realiza por meio do processo.
O Juiz analisará a relação processual e formulará o seu
posicionamento, através da sentença, resolvendo assim a discórdia entre
as partes. Vale ressaltar que o juiz ao prolatar a decisão deverá
fundamentá‐la, interligando o fato ao direito normatizado.
Ademais, a fim de não tornar o litígio sem fim, instituiu‐se a coisa
julgada, cujo objetivo é tornar imutável a decisão que dirimiu o conflito,
depois de esgotados ou não utilizados os recursos previstos em lei. Vê‐se,
pois, que a coisa julgada veio para garantir estabilidade e segurança ao
ordenamento jurídico brasileiro, na medida em que afastará surpresas
entre as partes litigantes.
É interessante observar que a lei em que o juiz baseou a decisão deve
está em consonância com a Constituição Federal, respeitando os
princípios e as garantias fundamentais que nela estão consubstanciados.
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Cabe lembrar que a lei contrária às normas constitucionais deverá ser
expurgada do ordenamento jurídico através do controle de
constitucionalidade.
Nesse teor, faz‐se necessário esclarecer que a lei terá presunção de
constitucionalidade até que venha a ser declarada inconstitucional pelo
Supremo Tribunal Federal. Com base nisso, o juiz poderá julgar a lide
baseada em lei considerada supostamente constitucional.
Verifica‐se que esta decisão, passado o trânsito em julgado, formará
coisa julgada e, consequentemente, não poderá mais ser mudada. Surge
a partir disso uma problemática jurídica, uma vez que poderá a coisa
julgada ser emanada de uma sentença cuja fundamentação foi baseada
em lei que foi posteriormente declarada inconstitucional.
Analisando tal fato, percebe‐se que se estará diante, conforme os
doutrinadores chamam, da coisa julgada inconstitucional, que nada mais
é do que a decisão intangível motivada em lei ou ato normativo
inconstitucional. A controvérsia é enorme, tendo em vista que é
necessário saber se a coisa julgada será atingida ou não pela declaração
de inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo.
Theodoro Júnior (2001, p. 3) ao tratar desta problemática, propõe a
seguinte reflexão:
O problema para cuja reflexão se deseja fazer
convite é o de já não mais ser a decisão judicial
inconstitucional passível de impugnação recursal.
Nesta hipótese, existiria um mecanismo de controle
de constitucionalidade da coisa julgada ou esta é
isenta de fiscalização? Ou reformulando o
questionamento: verificando‐se que uma decisão
judicial sob o manto da res iudicataavilta a
constituição, seja porque dirimiu o litígio aplicando
lei posteriormente declarada inconstitucional, seja
porque deixou de aplicar determinada norma
constitucional por entendê‐la inconstitucional ou,
ainda, porque deliberou contrariamente a regra ou
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princípio diretamente contemplado na Carta Magna,
poderá ser ela objeto de controle? Cuida‐se na lição
de PAULO OTERO, ‘de um problema central do actual
momento do Estado de Direito’.
A teoria da relativização da coisa julgada inconstitucional surgiu
defendendo profundas mudanças na res iudicata, para que esta não fosse
considerada um direito absoluto, podendo a decisão ser revista, em
virtude de ser contrária ao vértice do sistema jurídico do país, a
Constituição Federal.
No entanto, nunca existiu um ponto pacífico quanto à relativização
deste instituto, mas sim divergências doutrinárias e jurisprudenciais que
têm como foco o antagonismo dos princípios da Segurança Jurídica e da
Supremacia da Constituição. Tendo em relevo esta problemática e sua
peculiaridade, antes de analisar as mudanças ocorridas sobre o tema com
a entrada em vigor do novo CPC, faz‐se necessário conceituar a coisa
julgada inconstitucional e expor as posições contrárias e a favor da sua
relativização.
3.1 Coisa julgada inconstitucional
Entende‐se por coisa julgada inconstitucional como sendo a decisão
judicial transitada em julgado que for contrária à aplicação de preceito,
princípio ou norma constitucional, assim declarada pelo órgão supremo
do Judiciário.
Esta denominação intitulada pela doutrina trouxe a preocupação de
garantir a Supremacia da Constituição frente a casos julgados
desconforme com as normas constitucionais. O enfoque desta visão
doutrinária está na necessidade de proteger a Constituição,
condicionando a validade de uma lei, ato normativo, ou decisão judicial, à
adequação constitucional, tendo em vista que esta Carta Soberana é uma
emanação de cunho jurídico que expressa a vontade soberana da nação.
Vale lembrar que o Estado Democrático de Direito trouxe a
preocupação de garantir a Supremacia da Constituição, como o único
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meio de assegurar aos cidadãos a certeza da tutela da segurança e da
justiça como valores máximos da organização da sociedade. Assim, a
hierarquia normativa da Constituição, com a afirmação do princípio de
constitucionalidade, veio assegurar que o ato do poder público e o
ordenamento jurídico estejam conforme a lei fundamental do Estado.
Observa‐se que o controle de constitucionalidade é o meio idôneo
para expurgar a norma inconstitucional do mundo jurídico, porém terá
que ser feito através de ação direta, na qual poderá seu julgamento
demorar anos. Nesse lapso temporal, poderá o juiz no caso concreto julgar
a lide conforme a lei viciada, o que acarretará um dissídio, na medida em
que posteriormente essa decisão realizará o trânsito em julgado e
consequentemente a coisa julgada, ocasionando a imutabilidade da
decisão que o juiz prolatou, fazendo lei para ambas as partes da relação
processual.
O problema se torna maior ainda quando a sentença não é impugnada
através da Ação Rescisória, caso em que a decisão se torna
soberanamente julgada, não podendo mais ser reformulada de forma
alguma.
No entanto, os defensores da coisa julgada inconstitucional
pretendem evitar a perpetuidade de ilegalidades e incongruências em
nome do mito da intangibilidade absoluta da coisa julgada, devendo as
decisões contrárias aos preceitos constitucionais serem anuladas, uma vez
que não estão de acordo com o vértice do sistema jurídico do país. Assim,
a execução da sentença se tornaria inviável juridicamente, não podendo
ser cumprida pelos seus destinatários, sob pena de ruptura da própria
ordem constitucional e do Estado Democrático de Direito.
Segundo Theodoro Júnior (2001), a excessiva proteção da coisa
julgada acarreta uma hipervalorização do papel do juiz que o torna
supremo em relação aos demais poderes do Estado. Afirma o referido
autor que a preocupação teria que ser com a constitucionalidade e
legalidade das decisões, não podendo mais, no momento atual, serem
deixadas à margem de um controle efetivo, em virtude de que os atos do
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Poder Judiciário, em especial suas decisões, são também passíveis de
serem desconformes à Constituição.
Para Otero (apud THEODORO JÚNIOR, 2001, p. 5):
Admitir, resignados, a insidicabilidade de
decisões judiciais inconstitucionais seria conferir aos
tribunais um poder absoluto e exclusivo de definir o
sentido normativo da Constituição: Constituição não
seria o texto formalmente qualificado como tal;
Constituição seria o direito aplicado nos tribunais,
segundo resultasse da decisão definitiva e irrecorrível
do juiz.
Nesse sentido, aceitar como válida a noção de Constituição ali
esposada significa, ainda segundo Otero (apud THEODORO JÚNIOR, 2001,
p. 5) que: “todos os poderes públicos constituídos são iguais, porém, o
poder judicial é mais igual do que os outros”.
Diante disso, percebe‐se que a coisa julgada inconstitucional é uma
ideia que surgiu com o fim de garantir o respeito à Constituição,
controlando os atos de todos os poderes, inclusive do Judiciário, uma vez
que as normas que norteiam a Carta Magna devem ser obedecidas, na
medida em que é uma garantia do cidadão que as criou.
3.2 Posições contrárias à relativização da coisa julgada
inconstitucional
Como já enfatizado, a tese da relativização da coisa julgada, afora os
casos expressamente previstos em lei, sempre foi um tema polêmico, não
encontrando posição uníssona, nem na doutrina, nem na
jurisprudência. Na vigência do CPC/73, indagava‐se se era possível e
conveniente, diante de certas circunstâncias, dispensar a ação rescisória
para abrir oportunidade para a revisão de sentenças transitadas em
julgado, principalmente quando esta decisão violar dispositivo
constitucional.
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Para os críticos do movimento da relativização da coisa julgada, a
ponderação que tem que se fazer é basicamente em face do risco que essa
vulnerabilidade pode acarretar à segurança jurídica e à estabilidade das
relações jurídicas, que formam o escopo sociológico do instituto da coisa
julgada. Defendem que a tese da relativização da coisa julgada prega, na
verdade, a própria abolição da coisa julgada.
Criticavam, ainda, informando que já existiam no ordenamento
jurídico brasileiro vários meios de revisão da decisão injusta ou
inconstitucional transitada em julgado, não necessitando, assim, de uma
mitigação ainda maior da coisa julgada.
Parte da doutrina considera que o controle concentrado não surte
efeitos em relação à coisa julgada, ou seja, a res iudicata fica protegida da
declaração de inconstitucionalidade da lei, tendo em vista que a
imutabilidade da sentença é um direito do cidadão de ver‐se protegido de
incertezas jurídicas.
Para Marinoni (2012, p. 677):
A tentativa de eliminar a coisa julgada diante de
uma nova interpretação constitucional não só retira
o mínimo que o cidadão pode esperar do Poder
Judiciário – que é a estabilização da sua vida após o
encerramento do processo que definiu o litígio
– como também parece ser uma tese fundada na
ideia de impor um controle sobre as situações
pretéritas.
Acredita‐se, ainda, que a tese da relativização não fornece qualquer
resposta para o problema da correção da decisão que substituiria a
decisão qualificada pela coisa julgada. Argumentam os incrédulos da
teoria da relativização que admitir que o Estado‐Juiz errou no julgamento
que se cristalizou implica em aceitar que o Estado‐Juiz pode errar
novamente, que a ideia de relativizar a coisa julgada não traz qualquer
benefício ou situação de justiça neste caso.
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Percebe‐se, assim, que o tema sempre foi extremamente divergente,
pois respeitadas vozes do Direito Processual Civil brasileiro não aceitam a
possibilidade da desconstituição da coisa julgada inconstitucional,
optando estes pela intangibilidade das sentenças transitadas em julgado
e pela segurança jurídica. Dentre eles destacam‐se: Barbosa Moreira,
Gisele Góes, Nelson Nery Jr., Ovídio Baptista, Fredie Didier Jr., Greco e
Marinoni, como já exposto.
Para evidenciar a posição destes doutrinadores, deve‐se colocar o
entendimento de Didier Jr. (2007. p.506) considerando que:
A relativização com base na
inconstitucionalidade é problemática, pois a
qualquer momento que a lei em que se fundou a
decisão fosse reputada inconstitucional a decisão
poderia ser descontituída. Com isso, malferir‐se‐ia
frontalmente a garantia da segurança jurídica.
Desta feita, observa‐se que os doutrinadores contrários à
relativização sustentam a inadmissibilidade da revisão da coisa julgada,
por ser esta uma garantia fundamental que deve prevalecer sobre a
unidade constitucional assegurada pelo controle de constitucionalidade.
3.3 Posições favoráveis à relativização da coisa
julgada inconstitucional
Um dos precursores da tese da relativização da coisa julgada foi o
então Ministro do Supremo Tribunal de Justiça, José Augusto Delgado, que
revestiu seu posicionamento da seguinte forma (apudTHEODORO JÚNIOR,
2001, p.17):
Não posso conceber o reconhecimento de força
absoluta da coisa julgada quando ela atenta contra a
moralidade, contra a legalidade, contra os princípios
maiores da Constituição Federal e contra a realidade
imposta pela natureza. Não posso aceitar, em sã
consciência, que, em nome da segurança jurídica, a
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sentença viole a Constituição Federal, seja veículo de
injustiça, desmorone ilegalmente patrimônios,
obrigue o Estado a pagar indenizações indevidas,
finalmente desconheça que o branco é branco e que
a vida não pode ser considerada morte, nem vice‐
versa.
Cândido Rangel Dinamarco (apud ROCHA, 2012) afirma que não é
legítimo eternizar injustiças a pretexto de evitar a eternização da
incerteza, enfatizando que o rigor com que vem sendo encarado o
instituto da coisa julgada chega ao ponto de transformar a realidade.
O que se defende é que a coisa julgada deve existir sem afrontar os
princípios da razoabilidade e proporcionalidade, não podendo prevalecer
sentenças absurdas por terem transitado em julgado. Assim, os
doutrinadores e estudiosos do direito passaram a expor a tese de que não
seria cabível admitir que uma decisão judicial manifestamente contrária a
todos os fins de justiça esperados do Poder Judiciário pudesse produzir
validamente efeitos e não ser desconstituída, ainda que já transcorrido o
prazo legal para a sua rescisão, mormente quando violasse princípios e
regras diretamente encartadas na Constituição Federal.
A possibilidade da relativização da coisa julgada está fundamentada
nos princípios da moralidade, legalidade, razoabilidade e
proporcionalidade, inerentes estes na Lei Maior, e cuja lição foi difundida
por grande parte da doutrina processualista brasileira.
A doutrina, ainda, parte da lógica da instrumentalidade do processo,
advertindo que o processo é um meio para concretização de um direito
material e não um fim em si mesmo. E mesmo sendo a coisa julgada uma
garantia coberta pelo manto da cláusula pétrea não é um valor absoluto e
deve ter uma convivência harmoniosa com outras garantias e princípios
igualmente previstos na ordem constitucional, sobretudo quando se tratar
de direitos fundamentais e do valor constitucional supremo atribuído à
dignidade da pessoa humana.
Dinamarco (apud ROCHA, 2012) é contra a rigidez do procedimento,
pois, conforme o autor, o processo não é um fim em si mesmo, devendo,
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pois, existir a flexibilização de vários institutos processuais, não só da coisa
julgada, mas também do procedimento como um todo, para que não
sejam feitas injustiças em nome de um injustificável culto à forma. Para
referido autor, ainda, a segurança jurídica, argumento utilizado pelos
opositores da teoria relativizadora, só poderia ser decisiva para a não
relativização da coisa julgada se fosse um valor superior à vida e à
felicidade das pessoas.
Alguns tribunais já aderiram à tese da relativização da coisa julgada,
tendo o STJ assim decidido:
PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL.
DÚVIDAS SOBRE A TITULARIDADE DE BEM IMÓVEL
INDENIZADO EM AÇÃO DE DESAPROPRIAÇÃO
INDIRETA COM SENTENÇA TRANSITADA EM
JULGADO. PRINCÍPIO DA JUSTA INDENIZAÇÃO.
RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA. 1. Hipótese em
que foi determinada a suspensão do levantamento
da última parcela do precatório (art. 33 do ADCT),
para a realização de uma nova perícia na execução de
sentença proferida em ação de desapropriação
indireta já transitada em julgado, com vistas à
apuração de divergências quanto à localização da
área indiretamente expropriada, à possível existência
de nove superposições de áreas de terceiros naquela,
algumas delas objeto de outras ações de
desapropriação, e à existência de terras devolutas
dentro da área em questão. 2. Segundo a teoria da
relativização da coisa julgada, haverá situações em
que a própria sentença, por conter vícios insanáveis,
será considerada inexistente juridicamente. Se a
sentença sequer existe no mundo jurídico, não
poderá ser reconhecida como tal, e, por esse motivo,
nunca transitará em julgado. 3. "A coisa julgada,
enquanto fenômeno decorrente de princípio ligado
ao Estado Democrático de Direito, convive com
outros princípios fundamentais igualmente
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pertinentes. Ademais, como todos os atos oriundos
do Estado, também a coisa julgada se formará se
presentes pressupostos legalmente estabelecidos.
Ausentes estes, de duas, uma: (a) ou a decisão não
ficará acobertada pela coisa julgada, ou (b) embora
suscetível de ser atingida pela coisa julgada, a decisão
poderá, ainda assim, ser revista pelo próprio Estado,
desde que presentes motivos preestabelecidos na
norma jurídica, adequadamente interpretada. "
(WAMBIER, Tereza Arruda Alvim e MEDINA, José
Miguel Garcia. 'O Dogma da Coisa Julgada: Hipóteses
de Relativização', São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2003, pág. 25) (...) 5. Verifica‐se, portanto,
que a desconstituição da coisa julgada pode ser
perseguida até mesmo por intermédio de alegações
incidentes ao próprio processo executivo, tal como
ocorreu na hipótese dos autos. 6. Não se está
afirmando aqui que não tenha havido coisa julgada
em relação à titularidade do imóvel e ao valor da
indenização fixada no processo de conhecimento,
mas que determinadas decisões judiciais, por conter
vícios insanáveis, nunca transitam em julgado.
Caberá à perícia técnica, cuja realização foi
determinada pelas instâncias ordinárias, demonstrar
se tais vícios estão ou não presentes no caso dos
autos. 7. Recurso especial desprovido. REsp
622.405/SP, Rel. Min. Denise Arruda, DJU de
14.08.2007.
Em outro julgado, o Superior Tribunal de Justiça admitiu a
relativização da coisa julgada nos seguintes termos:
PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. IMPOSSIBILIDADE DE ANÁLISE DAS QUESTÕES RELATIVAS À TITULARIDADE DO IMÓVEL. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULA 211/STJ.
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VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. NÃO-OCORRÊNCIA. TITULARIDADE DE BEM IMÓVEL INDENIZADO EM AÇÃO DE DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA COM SENTENÇA TRANSITADA EM JULGADO. RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE ATO JURÍDICO CUMULADA COM REPETIÇÃO DE INDÉBITO. QUERELA NULLITATIS. CONDIÇÕES DA AÇÃO. INTERESSE DE AGIR. ADEQUAÇÃO.
[...]4. Ação declaratória de nulidade de ato jurídico cumulada com repetição de indébito, em que a Fazenda do Estado de São Paulo, invocando o instituto da querela nullitatis, requer seja declarada a nulidade de decisão proferida em ação de indenização por desapropriação indireta, já transitada em julgado, escorando a sua pretensão no argumento de que a área indenizada já lhe pertencia, de modo que a sentença não poderia criar direitos reais inexistentes para os autores daquela ação.
5. Segundo a teoria da relativização da coisa julgada, haverá situações em que a própria sentença, por conter vícios insanáveis, será considerada inexistente juridicamente. Se a sentença sequer existe no mundo jurídico, não poderá ser reconhecida como tal, e, por esse motivo, nunca transitará em julgado. A nulidade da sentença, em tais hipóteses, deve ser buscada por intermédio da actio nullitatis.[...] 8. Não resta dúvida, portanto, que o ajuizamento da presente ação declaratória de nulidade de ato jurídico é um dos meios adequados à eventual desconstituição da coisa julgada. REsp 710.599, Rel. Min. Denise Arruda, DJU de 21.06.2007.
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O Supremo Tribunal Federal, com fundamento na prevalência do
direito à personalidade, adotou a tese da relativização da coisa julgada:
EMENTA RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO
PROCESSUAL CIVIL E CONSTITUCIONAL.
REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. AÇÃO DE
INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE DECLARADA
EXTINTA, COM FUNDAMENTO EM COISA JULGADA,
EM RAZÃO DA EXISTÊNCIA DE ANTERIOR DEMANDA
EM QUE NÃO FOI POSSÍVEL A REALIZAÇÃO DE EXAME
DE DNA, POR SER O AUTOR BENEFICÁRIO DA JUSTIÇA
GRATUITA E POR NÃO TER O ESTADO
PROVIDENCIADO A SUA REALIZAÇÃO.
REPROPOSITURA DA AÇÃO. POSSIBILIDADE, EM
RESPEITO À PREVALÊNCIA DO DIREITO
FUNDAMENTAL À BUSCA DA IDENTIDADE GENÉTICA
DO SER, COMO EMANAÇÃO DE SEU DIREITO DE
PERSONALIDADE. 1. É dotada de repercussão geral a
matéria atinente à possibilidade da repropositura de
ação de investigação de paternidade, quando
anterior demanda idêntica, entre as mesmas partes,
foi julgada improcedente, por falta de provas, em
razão da parte interessada não dispor de condições
econômicas para realizar o exame de DNA e o Estado
não ter custeado a produção dessa prova. 2. Deve ser
relativizada a coisa julgada estabelecida em ações de
investigação de paternidade em que não foi possível
determinar‐se a efetiva existência de vínculo
genético a unir as partes, em decorrência da não
realização do exame de DNA, meio de prova que
pode fornecer segurança quase absoluta quanto à
existência de tal vínculo. 3. Não devem ser impostos
óbices de natureza processual ao exercício do direito
fundamental à busca da identidade genética, como
natural emanação do direito de personalidade de um
ser, de forma a tornar‐se igualmente efetivo o direito
à igualdade entre os filhos, inclusive de qualificações,
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bem assim o princípio da paternidade responsável. 4.
Hipótese em que não há disputa de paternidade de
cunho biológico, em confronto com outra, de cunho
afetivo. Busca‐se o reconhecimento de paternidade
com relação a pessoa identificada. 5. Recursos
extraordinários conhecidos e providos. RE
363889/DF, Rel. Min. Dias Toffoli, DJU de 16.12.2011.
Percebe‐se, assim, que a tese da relativização da coisa julgada aos
poucos vinha ganhando espaço nos nossos tribunais na vigência do CPC de
1973.
É nessa linha de raciocínio que nasceu na doutrina e jurisprudência
pátrias a teoria da coisa julgada inconstitucional. Trata‐se de fenômeno
teórico‐jurídico que também objetiva a flexibilização ou desconsideração
de provimentos jurisdicionais imutáveis, porém, não com fulcro nas
hipóteses expressamente previstas no CPC, mas, sim, com fundamento
constitucional, cujo substrato decorreria da própria interpretação
conferida pelo Supremo Tribunal Federal ao texto magno quando do
julgamento da constitucionalidade ou inconstitucionalidade das leis ou
atos normativos federais ou estaduais.
Segundo os estudiosos, conforme acima explanado, a teoria da
relativização da coisa julgada inconstitucional defende a possibilidade da
desconsideração do dispositivo sentencial transitado em julgado fundado
em lei ou ato normativo declarado incompatível com a Constituição pelo
Supremo Tribunal Federal. Dita acepção teórica tem por pressupostos: a
natureza relativa e infraconstitucional da coisa julgada, o aquilatamento
constitucional de princípios de mesma grandeza, a consagração da
supremacia constitucional e a não soberania dos atos judiciais.
O Supremo Tribunal Federal já pacificou o entendimento de que a lei
declarada inconstitucional em ação direta é nula de pleno direito, tendo a
decisão eficácia ex tunc, invalidando‐se, consequentemente, todos os atos
praticados com base na lei inconstitucional. Cabe frisar, entretanto, que
para o órgão supremo essa nulidade refere‐se apenas a lei, não
alcançando o caso concreto, ou seja, a coisa julgada.
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Porém, seguindo o raciocínio da nulidade da lei, os justificadores da
coisa julgada inconstitucional atestam que a decisão que for baseada em
uma lei posteriormente declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal
Federal deverá ser anulada, uma vez que está agredindo a Constituição.
Assim, a coisa julgada que tenha revestido sentença baseada em lei
declarada inconstitucional, não terá validade jurídica diante dos efeitos da
declaração de inconstitucionalidade exarada pelo Supremo Tribunal
Federal, uma vez que a Supremacia Constitucional deverá prevalecer
sobre a Segurança Jurídica.
Para Machado (2005) a res iudicata será atingida pelos efeitos da
declaração de inconstitucionalidade em virtude que a Constituição da
República de 1988 não fez qualquer ressalva em relação ao controle de
constitucionalidade. Além do mais, o mesmo expõe que a lei já ressalvou
a possibilidade de proteger a segurança jurídica e o relevante interesse
social, em face da Lei n. 9.868/99 que restringe os efeitos da
inconstitucionalidade, permitindo que sejam preservados de forma
expressa na decisão os atos pretéritos que se basearam naquela lei ou ato
normativo declarado inconstitucional.
Machado (2005, p.97) conclui seu raciocínio lecionando que:
Portanto, sustentável é, juridicamente, a
relativização da coisa julgada material, pelos
seguintes motivos: não é crível, num Estado
Democrático de Direito, eternizar decisão judicial
inconstitucional em prol da imutabilidade absoluta
da coisa julgada quando um valor ou direito maior,
garantido pela Constituição foi, está sendo, ou será,
frontalmente violado pelo referido ato judicial; os
atos dos poderes Executivo e Legislativo podem ser
revistos e declarados inconstitucionais a qualquer
tempo; logo, as decisões judiciais, inclusive as já
transitadas em julgado, também o devem ser; assim
como uma lei inconstitucional é nula, uma sentença
que ofende a Constituição da República e seus
princípios não pode ser considerada ato jurídico
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válido, mas nulo, o que impede que a coisa julgada
que sobre ela se forme imunize seus imaginários
efeitos, já que, em sendo nula, não poderia produzi‐
los; finalmente, admitir que a coisa julgada
convalesça no tempo, tornando‐se soberanamente
transitada em julgado, seria o mesmo que dar a ela,
importância maior que a própria Constituição da
República.
Assim sendo, verifica‐se que para os defensores da teoria da coisa
julgada inconstitucional a validade de um ato estatal está condicionada à
sua compatibilidade com a Constituição. Não existindo esta relação de
conformidade, o ato jurisdicional padece de um vício tão grave que nem a
coisa soberanamente julgada terá o poder de convalidá‐lo.
No contexto enfatizado, percebe‐se que o grande antagonismo entre
os doutrinadores, está no conflito de princípios, uma vez que de um lado
permanece a Segurança Jurídica em favor da coisa julgada, e do outro lado
o da Supremacia da Constituição.
3.4 A relativização da coisa julgada inconstitucional e o CPC de 1973
Em que pesem os posicionamentos a favor da relativização da coisa
julgada inconstitucional, cabe ressaltar que o CPC/73 só permitia que a
coisa julgada inconstitucional fosse desconstituída por meio da ação
rescisória, na hipótese do art. 485, V, ou nos casos dos artigos 475‐L, § 1º,
e 741, parágrafo único, quando o título executivo era tido por inexigível,
eis que fundamentado em lei ou ato normativo que já haviam sido
declarados inconstitucionais pelo STF, ou fundado em aplicação ou
interpretação de lei ou ato normativos já tidas pela Corte Suprema como
incompatíveis com a Carta Magna.
3.4.1 Os efeitos da declaração de inconstitucionalidade e a ação
rescisória
Ao ser declarada a inconstitucionalidade de uma norma, esta
produzirá efeitos somente para as partes (inter partes), ou para toda
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sociedade (erga omnes), dependendo do tipo de controle executado, ou
seja, difuso ou concentrado, respectivamente.
Diante da coisa julgada inconstitucional, merece razão interpretar
esses efeitos de acordo com o ordenamento jurídico, para poder analisar
os possíveis reflexos sobre a res iudicata.
No controle difuso o julgador não anula ou invalida lei ou ato
normativo, mas apenas lhe recusa aplicação a uma espécie litigiosa
concreta. Vale lembrar que neste tipo de controle qualquer interessado
poderá suscitar a questão da inconstitucionalidade, em qualquer
processo, seja de que natureza for, qualquer que venha ser o juízo.
Os efeitos da decisão no referido método de controle, portanto,
são inter partes, ou seja, o ato normativo questionado permanece válido
no que se refere à sua força obrigatória perante terceiros. Ademais, os
efeitos também são retroativos, desfazendo desde a origem todos os atos
pretéritos que tenham sido praticados com base no ato normativo
questionado, mas desde que os atos sejam referentes às mesmas partes
processuais.
Assim sendo, os efeitos da inconstitucionalidade no controle difuso
são inter partes e ex tunc. É importante ressaltar que mesmo que a
matéria chegue ao Supremo Tribunal Federal, mediante recursos cabíveis,
a decisão continuará surtindo efeitos apenas perante as partes, por se
tratar de controle difuso.
Cabe esclarecer, contudo, que o Supremo Tribunal Federal já
entendeu que, mesmo no controle difuso, poderá ser dado efeito ex
nunc ou pro futuro. Assim, em situações excepcionais, tendo em vista
razões de segurança jurídica ou relevante interesse social, poderá o STF,
por dois terços de seus membros, outorgar efeitos meramente
prospectivos (ex nunc) à sua decisão, ou mesmo fixar um outro momento
para o início de sua eficácia (art. 27 da Lei n. 9.868/99).
Verifica‐se, também, que se o órgão supremo declarar, de forma
incidental, a inconstitucionalidade de lei, por decisão definitiva, poderá o
Senado Federal expedir resolução suspensiva dos efeitos da norma,
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conforme autoriza o art. 52, X, da Constituição Federal. Neste caso, a
resolução do Senado estenderá os efeitos da decisão para todos (erga
omnes).
Diante dessas considerações, observa‐se que a decisão emanada em
sede de controle difuso não tem o condão de causar impacto direta e
automaticamente nas decisões que transitaram em julgado
anteriormente ao pronunciamento do guardião da Carta Magna. Isso
porque o controle difuso de constitucionalidade não invalida ou
reconhece a nulidade da lei ou ato normativo questionado, ele apenas
reconhece a inconstitucionalidade no caso concreto, tendo a eficácia
apenas inter partes.
Nesse sentido, já se pronunciou Theodoro Júnior (apud MACHADO,
2005, p. 108):
Não há em nosso sistema jurídico, nem mesmo
na Constituição, regra alguma que torne
absolutamente nula e desprovida de efeitos jurídicos
a decisão que eventualmente aplique norma que o
Supremo Federal considere, incidentalmente, como
contrária a Carta Magna. O julgamento incidental da
Suprema Corte não retira a vigência da lei averbada
de inconstitucional, que, portanto, continua vigente
e eficaz, não obstante a censura que o tribunal maior
lhe tenha feito. O alcance da
inconstitucionalidade incidental tantum não
ultrapassa a lide e as partes perante as quais a
declaração se deu.
Por sua vez, as decisões definitivas de mérito proferidas pelo Supremo
Tribunal Federal nas ações do controle concentrado produzirão eficácia
contra todos e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do
Poder Judiciário e à administração Pública direta e indireta, nas esferas
federal, estadual e municipal.
Pode‐se afirmar então que a decisão do referido órgão, no controle
abstrato, é dotada de eficácia contra todos (erga omnes), efeitos
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retroativos (ex tunc), e efeito vinculante. Verifica‐se que a decisão tem
eficácia erga omnes porque alcança todos os indivíduos que estariam
sujeitos à aplicação da lei ou ato normativo impugnado; tem efeito ex
tunc porque fulmina a lei desde sua origem; e vinculante, uma vez que
todos os órgãos do Judiciário e todos os órgãos da Administração Pública
direta e indireta, nas três esferas de governo, ficam vinculados à decisão
proferida pelo Supremo Tribunal Federal.
Cabe dizer que esses efeitos decorrem da adoção pelo Supremo
Tribunal Federal da tradicional tese jurídica segundo a qual o ato que
desrespeita a Constituição é nulo, atingindo até o nascedouro da lei. Esse
posicionamento decorreu da necessidade de se preservar a unidade da
ordem jurídica constitucional, consagrando o princípio da Supremacia da
Constituição.
A este respeito o Ministro Celso de Melo (apud MACHADO, 2005, p.
111) no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin)
652/MA, estabelece que:
Esse postulado fundamental de nosso
ordenamento normativo impõe que preceitos
revestidos de menor grau de positividade jurídica
guardem, necessariamente, relação de
conformidade vertical com as regras inscritas na
Carta Política, sob pena de ineficácia e de
consequentemente inaplicabilidade. Atos
inconstitucionais são, por isso mesmo, nulos e
destituídos, em conseqüência, de qualquer carga de
eficácia jurídica.
Acontece, porém, que a Lei n. 9.868/1999 trouxe importante
inovação no controle concentrado, uma vez que introduziu a técnica da
manipulação dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade, podendo o
Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros,
restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha
eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que
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venha a ser fixado, mas desde que seja em razão de segurança jurídica e
interesse social.
Em que pesem os efeitos da declaração de inconstitucionalidade no
controle concentrado, observa‐se que eles apenas se operam no plano
abstrato‐normativo, sem atingir diretamente os atos concretos já
praticados com base na lei ou ato normativo. A decisão, assim, apenas
torna possível que os atos já praticados sejam desfeitos por meio das
ações cabíveis, se ainda houver tempo hábil.
Segundo Paulo (2007) a declaração de inconstitucionalidade não
atingirá automaticamente a coisa julgada. O Supremo Tribunal Federal
apenas cria condições para que a parte prejudicada intente na via
adequada para obter o desfazimento da res iudicata, que se dá através da
ação rescisória. Lembre‐se que exaurido o prazo legal sem ajuizamento da
citada ação, ocorrerá a coisa soberanamente julgada, não podendo mais
a decisão ser alterada.
Assim, segundo esse entendimento, ainda que o ato sentencial
encontrasse fundamento em legislação que, em momento posterior, fosse
declarada inconstitucional pelo STF, quer em sede de controle abstrato,
quer no âmbito incidental de constitucionalidade, só poderia a sentença
de mérito transitada em julgado ser desconstituída mediante o
ajuizamento de ação rescisória, com fundamento no art. 485, inciso V, do
Código de Processo Civil de 73, proposta na fluência do prazo decadencial
de dois anos, pois, com o exaurimento do referido lapso temporal, estar‐
se‐ia diante da coisa soberanamente julgada, insuscetível de ulterior
modificação.
Contudo, os defensores da relativização da coisa julgada
inconstitucional proclamavam que a res iudicata deveria ser anulada
independentemente de ter passado o prazo exíguo de dois anos.
Instado a se manifestar sobre o assunto, o Supremo Tribunal Federal,
em sede de repercussão geral, no RE 730462/SP, julgado em 28/05/2015,
em sentido contrário à tese da relativização da coisa julgada
inconstitucional, decidiu que a decisão do STF que declara a
inconstitucionalidade de preceito normativo não produz a automática
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reforma ou rescisão das decisões proferidas em outros processos
anteriores que tenham adotado entendimento diferente do que
posteriormente decidiu a Suprema Corte. Para que houvesse essa reforma
ou rescisão, seria necessário a interposição do recurso próprio ou, se for
o caso, a propositura da ação rescisória, nos termos do art. 485, V, do
CPC/73, observado o prazo decadencial de dois anos, contados da data do
trânsito em jugado da decisão rescindenda.
Assim, verifica‐se que na égide do CPC de 1973, após a declaração de
inconstitucionalidade pelo STF, a única alternativa cabível era, desde que
não se tratasse de coisa soberanamente julgada, ajuizar ação rescisória.
Se já houvesse transcorrido o prazo de dois anos, a coisa julgada
inconstitucional tornava‐se imutável, prevalecendo os princípios da
segurança jurídica e da intangibilidade da coisa julgada.
3.4.2 Os efeitos da declaração de inconstitucionalidade e os artigos
475‐L, § 1º, e 741, parágrafo único, do CPC de 1973
O Código de Processo Civil de 1973 ainda permitia que a coisa julgada
inconstitucional fosse desconstituída nas hipóteses dos artigos 475‐L, § 1º,
e 741, parágrafo único, ou seja, quando o título executivo era tido por
inexigível, eis que fundamentado em lei ou ato normativo que já haviam
sido declarados inconstitucionais pelo STF, ou fundado em aplicação ou
interpretação de lei ou ato normativo já tidas pela Corte Suprema como
incompatíveis com a Carta Magna.
Tais dispositivos traziam a previsão de matérias que podiam ser
alegadas em sede de defesa típica do executado (na impugnação ao
cumprimento de sentença ou nos embargos à execução contra a Fazenda
Pública) e que afastavam a imutabilidade da coisa julgada material.
Assim, ainda que a sentença já tivesse transitado em julgado, ou seja,
durante a sua execução definitiva, o executado conseguiria se livrar da
execução, afastando a imutabilidade da sentença, característica típica da
coisa julgada.
Pendia no Supremo Tribunal Federal uma ação direta de
inconstitucionalidade (ADI 2418/DF) sobre o referido art. 741, parágrafo
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único, do CPC/73, sob o argumento de que ele violaria o instituto da coisa
julgada, protegido pelo art. 5º, XXXVI, da CF.
Em 4/5/2016, o Supremo Tribunal Federal julgou a referida ADI,
decidindo pela constitucionalidade do parágrafo único do art. 741 do CPC
de 73. Segundo o STF, tal dispositivo busca harmonizar a garantia da coisa
julgada com o primado da Constituição e agregam ao sistema processual
brasileiro um mecanismo com eficácia rescisória de certas sentenças
inconstitucionais, com hipóteses semelhantes às da ação rescisória (art.
485, V, do CPC 1973).
Para o STF, a inexigibilidade do título executivo a que se refere o
referido dispositivo se caracterizaria exclusivamente nas hipóteses em
que: a) a sentença exequenda estivesse fundada em norma
reconhecidamente inconstitucional, fosse por aplicar norma
inconstitucional, fosse por aplicar norma em situação ou com um sentido
inconstitucionais; b) a sentença exequenda tivesse deixado de
aplicar norma reconhecidamente constitucional; e c) desde que, em
qualquer dos casos, o reconhecimento dessa constitucionalidade ou a
inconstitucionalidade tivesse decorrido de julgamento do STF realizado
em data anterior ao trânsito em julgado da sentença exequenda.
É de se deixar claro, portanto, que, na vigência do CPC de 1973, se a
decisão do Supremo Tribunal Federal que declarava a norma
inconstitucional tivesse sido proferida após o trânsito em julgado, a
matéria não poderia ser alegada em defesa executiva, mas em ação
rescisória, com prazo de dois anos, contados da data da sentença a ser
rescindida.
Esse era o panorama da relativização da coisa julgada
inconstitucional a égide do Código de Processo Civil de 1973, sendo
necessário analisar, neste momento, se o atual CPC alterou esse regime.
3.5 A relativização da coisa julgada inconstitucional e o novo CPC
O novo CPC não acolheu a tese dos defensores da relativização da
coisa julgada inconstitucional, havendo nítida resistência a essa
possibilidade. Contudo, houve uma mudança significativa do panorama
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anterior, com uma maior possibilidade de revisão da sentença
inconstitucional.
Isso porque, conquanto a decisão emanada do STF em sede de
controle de constitucionalidade continue a não ter o condão de causar
impacto direta e automaticamente nas decisões que transitaram em
julgado anteriormente ao pronunciamento do guardião da Carta Magna,
sendo necessário, portanto, o ajuizamento de ação rescisória, o NCPC
(arts. 525, § 15º, e 535, § 8º) inovou ao prever que o prazo decadencial de
dois anos para a referida ação conta‐se do trânsito em julgado da decisão
proferida pelo STF.
Os arts. 525, § 15º, e 535, § 8º, permitem, assim, que a ação rescisória
fundada em inconstitucionalidade da norma que fundamentou a decisão
rescindenda tenha como termo inicial do prazo de dois anos a data do
trânsito em julgado da decisão proferida pelo STF declarando tal
inconstitucionalidade, e não mais a data do trânsito da decisão que se
busca rescindir.
O termo inicial passa a depender da data da decisão da Corte
Constitucional, possibilitando o novo código a ação rescisória e, portanto,
a relativização da coisa julgada inconstitucional, mesmo depois de
transcorridos vários anos da última decisão proferida no processo.
No que diz respeito às hipóteses dos dispositivos do CPC/73 que
traziam a previsão de matérias que podiam ser alegadas em sede de
defesa típica do executado (na impugnação ao cumprimento de sentença
ou nos embargos à execução contra a Fazenda Pública) e que afastavam a
imutabilidade da coisa julgada material, não houve mudança significativa
com o NCPC.
Da mesma forma que no antigo regime, o título executivo, nos termos
dos arts. 525, § 12º, e 535, § 5º, do NCPC, considera‐se inexigível quando
fundamentado em lei ou ato normativo já tidos por inconstitucionais pelo
STF, ou fundado em aplicação ou interpretação de lei ou ato normativos
já havidas pela Corte Suprema como incompatíveis com a Carta Magna.
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O que se verifica é que o novo CPC, em consonância com o
entendimento atual do STF, deixa claro que a decisão da Corte Suprema
declarando a inconstitucionalidade da norma deve ter sido proferida antes
do trânsito em julgado da decisão exequenda. Vale dizer, o executado
poderá alegar a pronúncia do STF apenas quando a sentença exequenda
houver aplicado lei que já havia sido declarada inconstitucional ou tiver
adotado interpretação que já havia sido declarada incompatível com a
Constituição.
A novidade é que, diferentemente do CPC/73, o atual código prevê
expressamente que a decisão do Supremo pode ter sido proferida em
controle de constitucionalidade concentrado ou difuso.
Diante de todo o exposto, percebe‐se que o atual regime (CPC/2015)
não adotou a teoria da relativização da coisa julgada inconstitucional nos
exatos termos propostos pela doutrina a seu favor, já que os únicos meios
possíveis de desconstituir a coisa julgada continuam sendo a ação
rescisória e as defesas do executado, conforme previsão dos arts. 525, §
12º, e 535, § 5º, do NCPC. Contudo, ainda que minimamente, houve o
acolhimento da citada tese, na medida em que o NCPC permite, sendo a
decisão do STF sobre a inconstitucionalidade superveniente ao trânsito
em julgado da sentença exequenda, o cabimento de ação rescisória, com
prazo contado do trânsito em julgado da decisão proferida pelo Supremo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A abordagem fática do presente trabalho teve como objetivo
demonstrar a grande divergência existente no campo jurídico quanto à
tese da relativização da coisa julgada inconstitucional e a pequena
aceitação da referida teoria no novo Código de Processo Civil
Não se tem dúvida que a coisa julgada é um dos institutos
processuais mais polêmicos e fascinantes, pelo fato de estar relacionada
à estabilidade dos efeitos da prestação jurisdicional. A partir disso, foi
iniciado o trabalho abordando a res iudicata,delimitando os seus
objetivos, classificação, natureza jurídica, tendo em vista que era preciso
conhecer o tratamento conferido pelo ordenamento jurídico à coisa
julgada, eis que pertinente com o objeto do trabalho.
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Em seguida, foram demonstradas as posições doutrinárias
contrárias e favoráveis à relativização da coisa julgada inconstitucional,
bem como a forma como o tema era tratado na vigência do antigo CPC.
Ao final, restou demonstrado que embora o Novo CPC não tenha
adotado a teoria da relativização da coisa julgada inconstitucional nos
exatos termos propostos pela doutrina a seu favor, houve, ainda que
minimamente, o acolhimento da citada tese, na medida em que o NCPC
passou a permitir, sendo a decisão do STF sobre a inconstitucionalidade
superveniente ao trânsito em julgado da sentença exequenda, o
cabimento de ação rescisória, com prazo de dois anos contados do
trânsito em julgado da decisão proferida pelo Supremo.
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PROCESSOS INFORMAIS DE MODIFICAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: PRINCIPAIS ASPECTOS
JOSÉ CLÁUDIO DIÓGENES PORTO: advogado e Fiscal do Município de Fortaleza com atuação no PROCON. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Pós-graduado em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Aprovado nos concursos públicos para Defensor Público do Estado do Ceará (2015) e Juiz Substituto do Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba (2016).
RESUMO: A Constituição Federal de 1988 estabelece um processo formal para a modificação de suas prescrições. Para além dessa possibilidade de modificação formal, são reconhecidos os processos informais de modificação da Constituição. Os processos informais correspondem às mutações do Texto Magno, podendo ser constitucionais ou inconstitucionais. São reconhecidas as modalidades de mutação por interpretação constitucional, por construção constitucional e pelas práticas constitucionais.
PALAVRAS-CHAVE: processos informais, mutações, modalidades de mutação.
1. INTRODUÇÃO
A experiência humana se sujeita a modificações as mais variadas. Mudam-se os conceitos, as fórmulas, o modo de agir e de pensar da sociedade, as teorias econômicas, etc. O mundo, portanto, o que não é de difícil percepção, está em constante mudança.
As constituições, sendo produto humano, também não são eternas. São elas organismos vivos que, sob pena de perderem o bonde da História, aderem às novas exigências políticas, econômicas, sociais, culturais e jurídicas do Estado e da sociedade.
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Nesse sentido, inerente à experiência constitucional, reconhece-se uma tensão existente entre a necessidade de durar e o anseio de mudanças. Trata-se da convivência de dois elementos aparentemente contraditórios: o estático e o dinâmico. O primeiro atende aos reclamos da segurança jurídica; o segundo, às exigências dos novos tempos.
De modo a promover, pois, um equilíbrio entre os dois citados elementos, as constituições rígidas permitem a modificação das disposições constitucionais através de um procedimento rigoroso e complexo. É o que se denomina de mudanças formais da Constituição, isto é, aquelas que alteram o texto escrito.
Nada obstante, decorrem também desse elemento dinâmico mudanças informais, as quais, sem alterar o texto da Constituição, promovem modificações em seu sentido e alcance. Essas mudanças são produto do poder constituinte difuso, e delas trataremos no presente trabalho, consignando, pois, os seus principais aspectos.
2. TERMINOLOGIAS
Inexiste consenso na doutrina a respeito da terminologia para designar as modificações informais da Constituição. São vários os termos e expressões a que se referem os autores, a saber: mutação constitucional, vicissitude constitucional tácita, mudança constitucional silenciosa, transições constitucionais, processos de fato, mudança material, processos indiretos, processos não formais, processos informais, processos oblíquos[1].
No escólio do magistério de Anna Cândida da Cunha Ferraz[2], utilizaremos indiscriminadamente as expressões processos informais, processos indiretos ou processos não formais de modificação da Constituição. Entendemos, ainda com supedâneo na doutrina de Anna Cândida da Cunha Ferraz, que os processos informais de modificação incluem as mutações constitucionais e as mutações inconstitucionais. Em outras palavras, os citados processos não formais correspondem às mutações do texto constitucional, as quais, por sua vez, podem ser constitucionais ou inconstitucionais.
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3. CONCEITO
Diante das ideias expostas acima, temos que os processos informais de modificação da Constituição, quer constituam mutações constitucionais ou inconstitucionais, são os mecanismos pelos quais a Lei Magna, sem suportar qualquer modificação formal em seu texto, adquire novos sentidos e significados, adaptando-se às novas realidades e anseios sociais.
As constituições, portanto, como organismos vivos que são, incorporam as tendências sociais, políticas e econômicas que, embora não alterem a letra do texto constitucional, propiciam modificações na substância, significado, alcance e sentido dos dispositivos.
A esse respeito, valendo-se da expressão mutação constitucional em sentido genérico, são ilustrativas as palavras de Uadi Lammêgo Bulos:
Assim, denomina-se mutação constitucional o processo informal de mudança da Constituição, por meio do qual são atribuídos novos sentidos, conteúdos até então não ressaltados à letra da Lex Legum,quer através da interpretação, em suas diversas modalidades e métodos, quer por intermédio da construção (construction), bem como dos usos e costumes constitucionais[3].
4. CARACTERÍSTICAS
Assim como em relação aos demais aspectos já abordados, o tema das características inerentes aos processos informais de modificação da Constituição não encontra consenso na doutrina. Para melhor otimização do assunto, no entanto, deter-nos-emos, aqui, às lições de Uadi Lammêgo Bulos e Anna Cândida da Cunha Ferraz, os quais examinaram o assunto tomando por base as mutações ditas constitucionais (em oposição às mutações inconstitucionais).
Segundo Bulos[4], são características das mutações constitucionais por que passa o Texto Magno: o fato de serem
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constitucionais, isto é, não gerarem deformações maliciosas nem subversões traumatizantes; a natureza fática dos processos informais, sendo que as mudanças ocorrem natural e espontaneamente; e, por fim, o desenvolvimento das mutações em momentos cronologicamente distintos, perante situações diferentes.
Por seu turno, Anna Cândida da Cunha Ferraz também enumera três características essenciais às mutações constitucionais. Nas palavras da própria Autora:
Em resumo, a mutação constitucional, para que mereça o qualificativo, deve satisfazer, portanto, os requisitos apontados. Em primeiro lugar, importa sempre em alteração do sentido, do significado ou do alcance da norma constitucional. Em segundo lugar, essa mutação não ofende a letra nem o espírito da Constituição: é, pois, constitucional. Finalmente, a alteração da Constituição se processa por modo ou meio diferentes das formas organizadas de poder constituinte instituído ou derivado.[5]
À exceção da exigência de que as mutações não contrariem a letra da Constituição, julgamos que os aspectos levantados pelos referidos autores também se aplicam, de igual modo, às mutações inconstitucionais.
5. MUTAÇÕES CONSTITUCIONAIS E MUTAÇÕES INCONSTITUCIONAIS
Dissemos que os processos informais de modificação da Constituição constituem mutações constitucionais e mutações inconstitucionais. Expliquemos, pois, em que consiste cada uma dessas espécies do fenômeno da mutação.
Em linhas gerais, tomando por pressuposto que as mutações são processos informais que modificam a compreensão do significado material da Constituição (não havendo, assim, qualquer alteração no texto formal), podemos fazer a seguinte distinção: denomina-se mutação constitucional a modificação que não viola a literalidade ou o espírito do Texto Magno; ao revés, as
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mutações inconstitucionais são aquelas em que a nova significação conferida à Carta Magna não se amolda perfeitamente à literalidade ou ao espírito das prescrições constitucionais.
Por oportuno, outra vez são pertinentes as considerações de Anna Cândida da Cunha Ferraz:
A expressão mutação constitucional é reservada somente para todo e qualquer processo que altere ou modifique o sentido, o significado e o alcance da Constituição sem contrariá-la; as modalidades de processos que introduzem alteração constitucional, contrariando a Constituição, ultrapassando os limites constitucionais fixados pelas normas; enfim, as alterações inconstitucionais são designadas mutações inconstitucionais. [6]
Sem maiores considerações, reafirmemos: conforme se ajustem ou não ao texto constitucional escrito, as mutações podem ser chamadas de constitucionais ou inconstitucionais.
As mutações constitucionais, por seu turno, podem se dar tanto de forma restritiva quanto de maneira ampliativa, consoante restrinjam ou ampliem o sentido e o alcance dos dispositivos constitucionais. Num e noutro caso, desde que se amoldem ao conteúdo da Constituição, citadas mutações permanecem sendo constitucionais.
No mesmo sentido, as mutações inconstitucionais também podem ser ampliativas ou restritivas, e isso, por razões já expostas no parágrafo anterior, torna-se clarividente. Aqui, no entanto, cabem maiores comentários. Segundo Anna Cândida da Cunha Ferraz[7], as mutações inconstitucionais se subdividem em processos manifestamente inconstitucionais (perante os quais a modificação afeta a letra ou o espírito da Constituição) e processos anômalos, consistentes na inércia dos poderes constituídos, desuso dos preceitos constitucionais ou mudança tácita da Constituição.
Segundo a autora, ressaltemos que as mutações manifestamente inconstitucionais podem ser verificadas, por
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exemplo, quando de interpretações legislativas, administrativas ou judiciais contrárias às disposições constitucionais, bem como por ocorrência dos chamados costumes contra constitutionem; de outra banda, configura-se inércia dos poderes constituídos a ausência, de forma provisória e intencional, de plena aplicabilidade dos dispositivos; o desuso constitucional, por sua vez, ocorre quando da inobservância uniforme, consciente, reiterada e pública de preceitos; e, finalmente, a mudança tácita da Constituição é verificada quando de reformas formais (emendas constitucionais, por exemplo) imprecisas ou contrárias às disposições constitucionais que lhes sejam anteriores.
Dadas as dimensões desse estudo, que não nos permitiria maiores discussões, trataremos, de maneira genérica, as mutações inconstitucionais como sendo aquelas em que há afronta ao texto ou ao espírito da Constituição.
Em conclusão, convém, ainda, que façamos algumas observações elucidativas, a saber: 1) o texto insculpido no artigo 5º, XI, da CF/88, que estatui ser a casa asilo inviolável do indivíduo, configura-se exemplo de mutação constitucional[8], tendo em vista que a garantia nele consubstanciada passou a ter significação ampla, abrangendo qualquer espaço não aberto ao público e no qual exista uma expectativa de privacidade; 2) não obstante controvérsia doutrinária e jurisprudencial acerca da matéria, o remédio constitucional do mandado de segurança coletivo, inserto no artigo 5º, LXX, da CF/88, seria igualmente exemplo de mutação constitucional (obviamente, para os que entendem que o mesmo tenha sofrido modificação informal), porquanto poderia ser manejado para a defesa de direitos difusos[9]; 3) por fim, o artigo 52, X, da CF/88, no entender de parte da doutrina, teria sofrido revogação em face de processo indireto de modificação da Constituição, não se exigindo mais a intervenção do Senado; o Supremo Tribunal Federal rechaçou a tese acima esposada, porém, caso a tivesse sufragado, ter-se-ia, ao nosso sentir, uma mutação inconstitucional.
6. MODALIDADES
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Além das mutações constitucionais e inconstitucionais, sobre as quais não seria errado dizermos de uma classificação baseada no resultado do processo, são reconhecidas, desta feita sob o enfoque do meio e/ou do próprio processo de formação, outras modalidades de modificação informal da Constituição.
Também a respeito dessas modalidades (as quais, conforme critérios oportunamente analisados, podem ser constitucionais ou inconstitucionais), a doutrina não guarda uniformidade. Utilizaremos, aqui, tendo em vista os limites do presente artigo, a classificação de Uadi Lammêgo Bulos, que elenca as mutações operadas em virtude da interpretação constitucional, as decorrentes das práticas constitucionais e as originadas por construção constitucional[10].
6.1. Mutação por interpretação constitucional
Os que se destinam à interpretação da Lei das Leis promovem, no exercício do poder constituinte difuso, modificações quanto à amplitude, sentido e conteúdo das disposições do Texto Magno. Da interpretação constitucional, destarte, quer se lhe atribua ou não uma especificidade em relação às demais formas de interpretação, pode resultar mudanças informais na Constituição (isto é, mutações).
Nessa toada, sem embargo de outros tantos aspectos a que não nos deteremos, importa diferençarmos aqui a interpretação orgânica (realizada pelos órgãos estatais - poderes Legislativo, Judiciário e Executivo) da interpretação inorgânica (produto da reflexão dos juristas e estudiosos do direito). A primeira (interpretação orgânica) tem grande relevo para o nosso estudo, porquanto se reveste de atuação concreta e, tratando-se do Poder Judiciário, dos atributos da obrigatoriedade e definitividade.
6.2. Mutação por construção constitucional
Na esteira da doutrina de Uadi Lammêgo Bulos[11], há uma diferença entre interpretação stricto sensu e interpretação lato sensu. Interpretação stricto sensu é aquela em que o sujeito busca todos os elementos interpretativos no próprio Texto Constitucional, não
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extrapolando os limites prescritos pelo legislador constituinte. Por sua vez, interpretação lato sensu consiste na atuação interpretativa para além dos limites do texto da Constituição, realizando um diálogo com outras fontes e saberes. O fenômeno da construção constitucional corresponde, precisamente, à interpretação lato sensu; a exemplo, poderíamos citar as audiências públicas de que tem se utilizado o Poder Judiciário para fins de aprimoramento do debate e melhor embasamento de suas decisões.
6.3. Mutação pelas práticas constitucionais
Práticas constitucionais, no dizer de Uadi Lammêgo Bulos[12], correspondem aos usos e costumes que se formam à luz da Constituição, englobando, também, as praxes, os precedentes e as convenções constitucionais. As praxes são práticas às quais lhes falta a certeza da obrigatoriedade; os precedentes, decisões não judiciais de ordem política; as convenções, acordos ou consensos entre os protagonistas da vida político-constitucional; os costumes, condutas de observância geral, constante e uniforme, compostas de um elemento objetivo (o usus) e um elemento subjetivo (convicção generalizada de sua exigibilidade).
Ainda a respeito dos costumes, por especial relevância para o nosso estudo, ressaltemos que os mesmos se comportam segundo três formas diferentes, a saber: secundum constitutionem,praeter constitutionem e contra constitutionem. O costume secundum constitutionem é aquele disciplinado na Constituição, ao qual se reconhece o dever de observância; o costume praeter constitutionem é aquele que complementa a Constituição, exercendo um papel supletivo; por fim, o costume contra constitutionem é aquele contrário à Lei Magna, manifestando-se de maneira oposta às prescrições constitucionais.
Todas essas práticas, especialmente os costumes, podem resultar em mudanças informais na Constituição, sendo oportuno reafirmarmos que o costume contra constitutionem gera mutações inconstitucionais.
7. CONCLUSÃO
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Tendo em vista que o objeto do presente trabalho é a análise dos principais aspectos relacionados ao tema dos processos informais de modificação da Constituição, importa, em conclusão, procedermos a um apanhado do estudo realizado. A saber:
As modificações informais, conquanto a doutrina não guarde unívoco entendimento acerca da terminologia empregada, podem ser indiscriminadamente denominadas processos informais, processos indiretos ou processos não formais de modificação da Constituição. Citados processos correspondem às mutações do texto constitucional, as quais, por sua vez, podem ser constitucionais ou inconstitucionais.
Assim, os processos informais de modificação da Constituição, quer constituam mutações constitucionais ou inconstitucionais, são os mecanismos pelos quais a Lei Magna, sem suportar qualquer modificação formal em seu texto, adquire novos sentidos e significados, adaptando-se às novas realidades e anseios sociais.
De outro turno, tem-se a distinção entre mutação constitucional e inconstitucional. Denomina-se mutação constitucional a modificação que não viola a literalidade ou o espírito do Texto Magno; ao revés, as mutações inconstitucionais são aquelas em que a nova significação conferida à Carta Magna não se amolda perfeitamente à literalidade ou ao espírito das prescrições constitucionais.
Tomando por base as mutações constitucionais, tem-se a dizer que, segundo Bulos[13], são características das mesmas: o fato de serem constitucionais, isto é, não gerarem deformações maliciosas nem subversões traumatizantes; a natureza fática dos processos informais, sendo que as mudanças ocorrem natural e espontaneamente; e, por fim, o desenvolvimento das mutações em momentos cronologicamente distintos, perante situações diferentes.
Por sua vez, Anna Cândida da Cunha Ferraz também enumera três características essenciais às mutações constitucionais: alteração do sentido, do significado ou do alcance da norma constitucional; não ofensa à letra nem ao espírito da Constituição; a alteração da Constituição se
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processa por modo ou meio diferentes das formas organizadas de poder constituinte instituído ou derivado.
Por fim, diga-se da classificação de Uadi Lammêgo Bulos, que elenca as seguintes modalidades de mutações: as operadas em virtude da interpretação constitucional, as decorrentes das práticas constitucionais e as originadas por construção constitucional.
São essas, pois, as considerações que, diante do objeto proposto e dos limites do presente trabalho, era pertinente traçarmos.
8. REFERÊNCIAS
BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997.
FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Processos informais de mudança da Constituição: mutações constitucionais e mutações inconstitucionais. São Paulo: Max Limonad, 1986.
NOTAS:
[1] BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação Constitucional.São Paulo: Saraiva, 1997, p. 58.
[2] FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Processos informais de mudança da Constituição: mutações constitucionais e mutações inconstitucionais. São Paulo: Max Limonad, 1986, p. 12.
[3] BULOS, Uadi Lammêgo. Op Cit., p. 57.
[4] BULOS, Uadi Lammêgo. Op Cit., p. 61.
[5] FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Op Cit., p. 11.
[6] FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Op Cit., p. 10.
[7] FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Op Cit., p. 213.
[8] BULOS, Uadi Lammêgo. Op Cit., p. 119.
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[9] BULOS, Uadi Lammêgo. Op Cit., p. 120.
[10] BULOS, Uadi Lammêgo. Op Cit., p. 71.
[11] BULOS, Uadi Lammêgo. Op Cit., p. 146.
[12] BULOS, Uadi Lammêgo. Op Cit., p. 172.
[13] BULOS, Uadi Lammêgo. Op Cit., p. 61.
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OS PRINCÍPIOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO EXERCÍCIO DAS FUNÇÕES DOS AGENTES PÚBLICOS
FLÁVIA CARAM BORLIDO: Mestre em Administração, Pós-graduada em Gestão de Pessoas e graduada em Administração. Atua como Analista de Administração Pública (cargo atualmente ocupado).
RESUMO: O principal objetivo deste estudo foi analisar a importância dos
princípios da Administração Pública, visando demonstrar o impacto que
causam no exercício das funções dos agentes públicos. A Constituição de
1988 estabeleceu a constitucionalização das normas básicas do Direito
Administrativo, ao conduzir que a Administração Pública direta e indireta
de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios se submeterá aos princípios de legalidade, impessoalidade,
moralidade, publicidade e eficiência, os quais são estabelecidos no artigo
37, caput da Constituição Federal. É através da eficácia dos princípios da
Administração Pública que se leva em conta o estado ideal de coisas que
eles visam promover, permitindo a formulação de regras para impedir o
comportamento potencialmente violador de seus agentes. Cabe à
comunidade jurídica zelar pela aplicação efetiva dos princípios da
Administração Pública, punindo‐se as práticas ofensivas ao Estado e, à
sociedade cabe protestar contra os casos de flagrante violação por meio
de denúncias dos violadores.
Palavras‐chave: Direito Administrativo. Princípios da Administração
Pública. Agentes Públicos. Funções.
Introdução
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O presente trabalho tem com tema principal a abordagem sobre os
princípios da administração pública no exercício das funções dos agentes
públicos.
Medauar (2010) define o Direito Administrativo como o conjunto
de normas e princípios que dirigem o desempenho da Administração
Pública, versando fundamentalmente da organização, meios de ação,
formas e relações jurídicas da Administração Pública.
A Constituição de 1988 estabeleceu a constitucionalização das
normas básicas do Direito Administrativo, ao conduzir que a
Administração Pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União,
dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios se submeterá aos
princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e
eficiência, os quais são estabelecidos no artigo 37, caput da Constituição
Federal.
Diante do exposto, a questão norteadora deste estudo se baseia
em: os princípios da administração pública geram impactos diretos no
exercício das funções dos agentes públicos?
O objetivo se baseia em analisar a importância dos princípios da
Administração Pública, visando demonstrar o impacto que causam no
exercício das funções dos agentes públicos.
Este estudo se justifica pela relevância do estudo dos princípios da
Administração Pública como fator gerador de impacto no exercício das
funções dos agentes públicos, uma vez que coíbem a prática de atos de
improbidade administrativa.
Princípios da Administração Pública
Segundo Moraes (2011), a constitucionalização dos princípios
básicos da Administração tem como desígnio garantir a honestidade na
gerência da res pública e possibilitar a responsabilização dos agentes
públicos que se afastarem dessas diretrizes obrigatórias. Esses princípios
têm ainda a finalidade de dar unidade e coerência ao Direito
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Administrativo, controlando as atividades administrativas de todos os
entes que integram a federação brasileira (União, Estados, Distrito Federal
e Municípios).
Art. 37 - A Administração Pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte [...] (BRASIL, 1988).
Conforme Cretella Júnior (apud DI PIETRO, 2010, p. 80), “princípios de uma ciência são as proposições básicas, fundamentais, típicas que condicionam todas as estruturações subsequentes. Princípios, nesse sentido, são os alicerces da ciência”.
Segundo Larenz (1985, p. 14 apud MEDAUAR, 2010, p. 139), no direito “os princípios são fórmulas nas quais estão contidos os pensamentos diretores do ordenamento, de uma disciplina legal ou de um instituto jurídico”, que, conforme Reale (1974, p. 339 apud Medauar, 2010, p. 139), “consistem em enunciações normativas de valor genérico que condicionam e orientam a compreensão do ordenamento jurídico para sua aplicação e integração e para a elaboração de novas normas”.
Segundo Meirelles (2010), os princípios básicos da Administração Pública são divididos em doze regras, sendo elas: legalidade, moralidade, impessoalidade ou finalidade, publicidade, eficiência, razoabilidade, proporcionalidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, motivação e supremacia do interesse público. Entretanto, os cinco primeiros se encontram descritos no art. 37, caput, da CF de 1988 e trata-se de padrões que devem pautar todos os atos e atividades administrativas de todo aquele que exerce o poder público, sendo que qualquer ato que viole alguns desses princípios poderá ser passível de punição por improbidade.
Di Pietro (2010) afirma que os princípios concebem papel de grande relevância na esfera do direito admitindo à Administração e
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ao Judiciário constituir o indispensável equilíbrio entre os direitos dos administrados e os benefícios da Administração.
De acordo com Medauar (2010), os princípios são de grande seriedade, uma vez que amparam na concepção e concretização de seus institutos, principalmente de viabilizar o recurso de fatos não previstos, admitindo melhor entendimento dos extensos textos, bem como o confronto da segurança dos cidadãos em relação à extensão dos seus direitos e deveres.
Princípio da Legalidade De acordo com Di Pietro (2010), o princípio da legalidade
surgiu do Estado de Direito e se estabelece em uma das fundamentais seguranças de respeito aos direitos individuais no qual enquadra o conceito de que, na relação administrativa, a ambição da Administração Pública é a que deriva da lei. Não confere direitos de nenhuma natureza, instituir obrigações ou estabelecer restrições aos administrados devido depender da lei.
De acordo com Meirelles (2010), o princípio da legalidade até um período atrás era protegido pela doutrina, tornando-se uma determinação legal pela lei direcionada da ação popular e, desde a Constituição Federal de 1988, tornando-se um princípio constitucional.
Segundo Medauar (2010), é através do princípio da legalidade que
as atividades da Administração Pública são informadas e traduzidas de
maneira simples quando é afirmado que a Administração deve submeter‐
se às normas legais.
Moraes (2011) afirma que o princípio da legalidade se justapõe à
Administração Pública de maneira austera e específico, em que o
administrador público unicamente poderá fazer o que for totalmente
permitido em lei e nas demais condições normativas, não ocorrendo caso
de vontade subjetiva.
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Princípio da Impessoalidade
Conforme Di Pietro (2010), o princípio da impessoalidade promove
margem a diferentes interpretações sendo ainda que, a requisição da
impessoalidade da administração pode constituir que essa qualidade deve
ser analisada no que diz respeito aos administrados como à oportuna
Administração.
Mello (1994, p.58) sustenta que esse princípio “se traduz a idéia de
que a Administração tem que tratar a todos os administrados sem
discriminações, benéficas ou detrimentosas”.
Meirelles (2010) relaciona a impessoalidade ao princípio da finalidade, o qual está relacionado ao atendimento do interesse público, isto é, o administrador permanece restringido de procurar outra finalidade ou de exerce-la no mérito próprio ou de terceiros. O princípio da impessoalidade é o antigo princípio da finalidade que estabelece ao administrador público que é unicamente a técnica do ato para o seu fim legal, sendo aquele que a cláusula de direito sugere de maneira anuncia o objetivo do ato de formato impessoal, afastando também a promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos sobre suas realizações administrativas.
Na visão de Medauar (2010), o princípio da impessoalidade é interpretado de diversas maneiras por meio da doutrina brasileira e ainda se confunde com os princípios da moralidade e publicidade, devido ao fato de que a impessoalidade está relacionada ao meio para atuações dentro da moralidade e da publicidade que, com isso, bloqueia medidas desfavoráveis à moralidade e impessoalidade. Quanto à moralidade administrativa, esta sugere atenção à impessoalidade e à publicidade.
Segundo Moraes (2011), o princípio da pessoalidade, em geral, se
localiza no mesma esfera de caso dos princípios da igualdade e da
legalidade. Este princípio conclui o conceito de que o administrador é um
executivo do ato, servindo como transporte de revelação da vontade
estatal e, por sua vez, as efetivações administrativo‐governamentais não
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são do agente político, mas da ente público em designação da qual
operou.
Princípio da Moralidade Segundo Di Pietro (2010), existem doutrinadores os quais não
aceitam a experiência desse princípio por apreenderem que o conceito de moral administrativa é indefinido e duvidoso ou que termina por ser concentrado pelo próprio conceito de legalidade.
Para Meirelles (2010), a moralidade administrativa estabelece a hipótese de legitimidade de todo ato da Administração Pública. “Por considerações de Direito e de Moral, o ato administrativo não terá que obedecer somente à lei jurídica, mas também à lei ética da própria instituição” (MEIRELLES, 2010, p. 89). A moralidade do ato administrativo, ao lado de sua legalidade e intuito, afora da sua adaptação aos demais princípios, formam conjecturas de legalidade sem os quais toda presteza pública será ilegítima.
Conforme Medauar (2010), o princípio da moralidade é de complexa expressão verbal. A doutrina procura abrange-lo, atrelando-o a termos e conhecimentos que propiciem seu entendimento e aplicação.
Para Moraes (2011), ainda que a Constituição Federal, quando
inaugurou o princípio da moralidade administrativa como vetor do
desempenho da Administração Pública, inaugurou ainda a obrigação de
proteção à moralidade e responsabilização do administrador público
amoral ou imoral.
Princípio da Publicidade Segundo Di Pietro (2010), o princípio da publicidade noticia
oficialmente o ato da Administração Pública para a informação do público e o começo de seus acontecimentos externos.
De acordo com Di Pietro (2010), o inciso LX da Constituição de 1988 estabelece que a lei só poderá limitar a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou interesse social o determinarem; o inciso XIV garante a todos a promoção à informação e protege o segredo da fonte, quando imprescindível ao
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exercício profissional; o inciso XXXIII constitui que todos possuem direito a auferir dos órgãos públicos conhecimentos de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, os quais serão comunicados no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressaltadas aqueles cujo sigilo seja indispensável à segurança da sociedade e do Estado; e o inciso XXXIV garante a todos, involuntariamente do pagamento de taxas, o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder e a aquisição de certidões em repartições públicas, para defesa de direito e elucidação de ocorrências pessoais.
Meirelles (2010) afirma que a publicidade não é componente formativo do ato, mas sim uma condição de eficácia e moralidade. O sigilo só é admitido quando se trata de segurança nacional, investigações policiais ou por interesse superiores da Administração, a ser resguardado em processo antecipadamente revelado nos termos das leis e decretos. Como princípio de Administração Pública, a publicidade compreende todo desempenho estatal, não só sob a esfera de divulgação oficial de seus atos, como ainda de propiciação de conhecimento do comportamento interno de seus agentes.
Na visão de Medauar (2010), a prevalência do que é conceituado como confidencial na atividade administrativa do setor público demonstra-se contrária ao aspecto democrático do Estado, devido tal convergência estar alinhada por meio da Constituição de 1988 com o intuito de desenvolver a publicidade que administra as atividades da Administração, invertendo a regra, colocando que o ingresso às informações provenientes dos órgãos públicos incidem não excepcionalmente sobre matérias de interesse do próprio indivíduo, mas ainda sobre matérias de interesse coletivo e geral.
De acordo com Moraes (2011), a publicidade relativa ao princípio que lhe é pertinente, no que tange aos órgãos públicos, ocorre devido à introdução do ato no Diário Oficial ou por edital fixado no lugar adequado para a publicação de atos públicos, para o ciência do público.
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Princípio da Eficiência Segundo Di Pietro (2010), na Constituição de 1988, o princípio
da eficiência é considerado como um dos deveres da Administração Pública.
Meirelles (2010) conceitua o princípio da eficiência da seguinte forma:
O que se impõe a todo agente público de realizar suas atribuições com presteza, perfeição e rendimento funcional. É o mais moderno princípio da função administrativa, que já não se contenta em ser desempenhada apenas com legalidade, exigindo resultados positivos para o serviço público e satisfatório atendimento das necessidades da comunidade e de seus membros (MEIRELLES, 2010, p. 96).
Segundo Meirelles (2010), o princípio da eficiência proporciona dois
aspectos: o caso de ser avaliado no que diz respeito ao estilo de atuação
do agente público, em que se tem a expectativa do melhor papel possível
de suas atribuições, para conseguir os melhores resultados; e, no que se
relaciona à maneira de organizar, estruturar, disciplinar a Administração
Pública, bem como com o mesmo intuito de conseguir os melhores
resultados na prestação do serviço público.
Na visão de Meirelles (2010), o princípio da eficiência se adiciona
aos outros princípios atribuídos à Administração, não sobrepondo‐se a
nenhum deles, principalmente ao da legalidade, sob pena de sérios riscos
à segurança jurídica ao próprio Estado de Direito.
Na visão de Medauar (2010) o princípio da eficiência foi adicionado
por meio da Emenda Constitucional 19/98 (reforma administrativa) e une
o conceito de ação para lançar resultado de maneira célere e concisa e, no
que diz respeito à Administração Pública, motiva que a mesma aja de
forma precisa e rápida, produzindo os resultados acreditados pela
população.
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Para Moraes (2011), o princípio da eficiência avigora a
probabilidade do Ministério Público, fundamentado em seu papel
constitucional de cuidar da essencial consideração dos poderes públicos e
dos serviços considerados proeminentes aos direitos asseverados na
Constituição, originar as medidas imprescindíveis, judiciais e
extrajudicialmente, à sua garantia.
Conclusão
O objetivo principal deste estudo foi analisar a importância dos
princípios da Administração Pública, visando demonstrar o impacto que
causam no exercício das funções dos agentes públicos.
Visando à concreta observância dos princípios inscritos no art. 37
da Carta Magna, evidencia‐se que os mesmos são um instrumento
processual no direito brasileiro, que servem de parâmetro em busca de
uma Administração Pública que atenda às demandas da população de
maneira eficiente e justa.
É através da eficácia dos princípios da Administração Pública que se
leva em conta o estado ideal de coisas que eles visam promover,
permitindo a formulação de regras para impedir o comportamento
potencialmente violador de seus agentes.
Cabe à comunidade jurídica zelar pela aplicação efetiva dos
princípios da Administração Pública, punindo‐se as práticas ofensivas ao
Estado e, à sociedade cabe protestar contra os casos de flagrante violação
por meio de denúncias dos violadores.
A sociedade brasileira relata inúmeros casos de ofensas a esses
princípios, como também de corrupção e descaso com o patrimônio
público, tendo como consequência, a necessidade de uma adequada
responsabilização de seus agentes, tornando‐se imprescindível que os
órgãos públicos atuem com maior controle sobre a gestão dos bens
públicos, evitando‐se, com isso, os atos de improbidade administrativa.
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REFERÊNCIAS
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. Disponível em:
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Acesso em 23 jul. 2016.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 23. ed. São
Paulo: Atlas, 2010.
MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 14. ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro.36. ed.
atual. São Paulo: Malheiros, 2010.
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MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e
Legislação Constitucional. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2011.
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O DIREITO DO TRABALHO NA DITADURA CIVIL-MILITAR
AGENOR GABRIEL CHAVES MIRANDA: Acadêmico do Curso de Direito da Universidade de Brasília.
RESUMO: O presente artigo tem por objetivo analisar os impactos e as questões permanentes do Golpe Civil-Militar de 1964, sob o enfoque do Direito do Trabalho. Dessa forma, apresenta-se uma linha histórica das alterações legislativas que impactaram os trabalhadores brasileiros durante a Ditadura Militar.
PALAVRAS-CHAVES: Ditadura Militar. Direito do Trabalho. Legado Autoritário.
1 INTRODUÇÃO
A justificativa dada pelos golpistas de 1964 foi a interrupção de uma suposta tentativa comunista de tomada do poder. Com a base governista pós-64 formada por grandes empresários e alguns meios midiáticos, é necessário o questionamento sobre o impacto do regime militar no Direito do Trabalho. Durante os 21 anos de governo, ocorreram diversas modificações nas legislações trabalhistas, as quais apresentavam objetivos latentes. Esta pesquisa, por meio de uma revisão bibliográfica e utilização de técnicas históricas e normativas, intenciona compreender essas questões. Ressalta-se a importância do último procedimento, pois para entender as questões não manifestadas no texto legal é necessário mais que a hermenêutica jurídica, e sim uma análise do contexto, a estrutura social, os legisladores e os cidadãos atingidos, neste caso, os trabalhadores. A relevância de se estudar os direitos do trabalho no período ditatorial brasileiro é o impacto cotidiano na vida de grande parte da população, uma vez que os direitos políticos podem não ser conhecidos pela população leiga
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em legislação, contudo ela sabe de alguns direitos trabalhistas que possui, em virtude da difusão oral dos direitos (SILVA, 2010, p. 40).
2 DESENVOLVIMENTO
2.1 Primeiras ações
O Brasil e diversos países passavam por um clima de efervescência política na década de 1960. Vários movimentos revolucionários apoiados pela classe trabalhadora alcançaram seus objetivos, como o cubano. Nessa conjuntura, a demanda trabalhista brasileira se recrudesceu. Contudo, a ditadura militar, apoiada por uma parte do empresariado, considerava muitos desses movimentos como subversivos à ordem social e política vigente.
Segundo Vito Giannotti (2007, p. 174): “A burguesia difundia amplamente a ideia de que
o Brasil era um país ingovernável devido a um punhado de líderes sindicais do CGT. A investida do Ipês na grande imprensa tinha forte ressonância nos mais influentes veículos de comunicação: Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo , o “Estadão”, e os do Grupo Diários Associados ”.
Em 01 de junho de 1964, o governo do general Castelo Branco sancionou a Lei nº 4.330, regulando o direito de greve. Entre questões positivadas neste texto legal, destaca-se a proibição da demissão do funcionário por motivos de greve, exceto em casos não pacíficos, nos termos do artigo 19, inciso II. Todavia, faz-se mister a análise do artigo 22, que trata da reputação de ilegalidade da greve.
“Artigo 22. Inciso II: Se deflagrada por motivos políticos, partidários, religiosos, sociais, de apoio ou solidariedade, sem quaisquer reivindicações que interessem, direta ou legitimamente, à categoria profissional”.
Tal critério, de interesse para a categoria profissional, é considerado arbitrário. Como quase todos os movimentos grevistas estavam envolvidos
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com questões políticas – aliás, a greve é um instrumento político e social – este inciso representa uma abertura às interpretações contra os grevistas. Isso porque os juízes poderiam alegar que houve uma sobreposição de outras questões.
Vale destacar que os servidores públicos, em grande parte, eram proibidos de participar de movimentos grevistas e no setor privado era mais complicado, em vista das exigências de quórum: para a assembleia declarar greve, precisava-se de 2/3 de aprovação dos votantes, na primeira convocação, e 1/3, na segunda convocação. (SIMÕES, 1986, p. 26).
Nesse âmbito, a Lei nº 4.330 tinha como um dos objetivos o controle da classe trabalhadora. O governo militar almejava acalmar os movimentos trabalhistas, tentando manter um aspecto de legalidade, pois a greve no período populista era garantia constitucional, todavia não tinha sido regulamentada. Essa legislação pode ser denominada álibi, conforme o ensino do professor Marcelo Neves: “Através dela o legislador procura descarregar-se de pressões políticas e/ou apresentar o Estado como sensível às exigências e expectativas dos cidadãos” (1994, p. 37).
Em 1964, o governo fez intervenções em 433 entidades sindicais (TRT, 2009). No ano seguinte, foi decretada e sancionada a Lei nº 4.725, regulamentando o reajuste salarial em um valor menor que a inflação. Esta legislação aponta a necessidade de adequação do reajuste às necessidades mínimas de sobrevivência do assalariado e da sua família.
2.2. Principal projeto ditatorial
No ano de 1966, a Ditadura Civil-Militar consolidou seu principal projeto na área do trabalho e que apresenta relevantes consequências hodiernas: o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). Consolidado pela Lei nº 5.107, de 13 de setembro de 1966.
O Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), aberto pelos empregadores em nome dos trabalhadores, recolhia mensalmente 8% da remuneração. Foi responsável pelo fim da estabilidade decenal – a garantia de que, após dez anos de serviços a um empregador, os trabalhadores
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demitidos sem justa causa teriam direito a uma indenização equivalente a um mês de serviço prestado e a uma multa no valor de 10%.
Os dois regimes coexistiram até a Constituição Federal de 1988 estabelecer a exclusividade do FGTS. A maioria dos trabalhadores optou pelo fundo, trocando a opção da estabilidade alcançada após dez anos de serviço por incentivos do governo, uma vez que, além de acesso ao fundo, esses funcionários teriam direito a uma multa de 40%.
Uma questão relevante diz respeito à não aplicação do FGTS aos trabalhadores rurais, visto que eles não possuíam a estabilidade na sua atividade profissional. Desse modo, é necessário tecer algumas considerações sobre as questões latentes dessa legislação. Segundo Carlos Simões:
“À medida que aumentavam os anos de casa dos empregados, crescia o passivo trabalhista das empresas no valor equivalente à média das indenizações a pagar. Isso dificultava a venda, fusão e associação das empresas nacionais com as empresas internacionais. A estabilidade dificultava o consumo intensivo da força de trabalho, criava encargos sociais fixos e permanentes e a consequente imobilização de capitais. Além disso, dificultava a troca de empregados mais antigos com salários mais elevados por outros mais jovens, com menores salários” (SIMÕES, 1986, p. 41)
Nessa ótica, o FGTS foi mecanismo de tentativa da maximização de lucro das grandes empresas, pois elas aumentavam a mão de obra mais eficiente e criava uma menor acomodação dos funcionários. Esse fundo também gera uma alta rotatividade nas atividades trabalhistas, porquanto é mais fácil demitir e a indenização paga será superada com uma maior produção de outro funcionário. Outro objetivo apontando do FGTS é o financiamento para a construção de habitações, por meio do Sistema Financeiro de Habitação. Essa prática é destinada à população de baixa renda.
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Ainda nesse ano foi criado, por meio do Decreto-Lei 72/66, de 21 de novembro de 1966, o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), o qual teve papel de unificar os Institutos de Aposentadoria e Pensões. O INPS representou uma unificação de todos os IAPs (Institutos de Aposentadorias e Pensões). Os benefícios como pensão, aposentadoria, assistência médica foram uniformizados. Isso representou o fim dos poderosos IAPs e a perda da influência sindical sobre a previdência, que passou ao controle da burocracia estatal. O INPS também passou a segurar os acidentes de trabalho, serviço anteriormente exercido por empresas privadas (CARVALHO, 2002, p. 171).
Conclui-se sobre o projeto de INPS, mais uma vez, a expressão do controle da ditadura sobre atividades trabalhistas essenciais. O regime militar, ao unificar as aposentadorias e pensões, pretendia obter legitimidade popular, porquanto são mecanismos que atingem principalmente pessoas de baixa renda e, muitas vezes, um aumento de um dos dois benefícios representa um aumento do poder de compra da população. Além disso, o fator econômico foi um grande aspecto legitimador da ditadura durante o chamado “milagre econômico”. Desse modo, é nítida a influência da questão financeira e a popularização do regime civil-militar.
O final do governo de Humberto de Alencar Castelo Branco foi marcado pelo Decreto-Lei nº 200/67, de 25 de fevereiro de 1967, que estabelecia a possibilidade de prestação de serviços da Administração Pública por empresas privadas. A execução das atividades da Administração Federal deveria ser amplamente descentralizada. De acordo com o §1º, do artigo 10, a descentralização seria posta em prática em três planos principais:
c) da Administração Federal para a órbita privada, mediante contratos ou concessões.
Esta lei apresenta um grande problema que se estende ao cenário contemporâneo: delimitação da esfera pública e privada na administração brasileira. Tais contratos, diversas vezes, privilegiam empresas ligadas com membros do serviço público e favorece a corrupção. Os contratos, conforme noticiado nos meios de comunicação, em casos relevantes, não privilegia a qualidade do serviço prestado. Não há comprovação de práticas
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diferentes durante o regime militar. As concessões, ao retiraram um pouco de controle público, podem desregular algumas práticas e prejudicar o consumidor.
2.3. Legislação trabalhista nos anos de chumbo
Em 15 de março de 1967 foi promulgada a nova Constituição, a qual estabeleceu junto com os Atos Institucionais (AIs) mecanismos legais para as ações da Ditadura Militar. A Carta Magna de 1967 faz questão de destacar o valor do trabalho como condição da dignidade humana (art. 157, inciso II). Analisando esse inciso, percebe-se a intenção do regime militar em incentivar a força de trabalho e evitar o ócio. Pode-se perceber, nessa legislação, uma tentativa de diminuir as reivindicações trabalhistas, pois os funcionários que não trabalhavam por não aceitarem determinadas condições eram vistos de forma hostil pela sociedade, como “indignos”; já que a máxima de Benjamin Franklin: “O trabalho dignifica o homem” tornou-se constitucional.
A constituição de 1967 proíbe greve nos serviços públicos e atividades essenciais, definidas em lei (art. 157, § 7º). Esse ponto apenas ratifica o que foi legislado anteriormente.
Outros aspectos relevantes para o Direito do Trabalho e retratados na Constituição da República são: idade mínima para o trabalho, reduzida para doze anos; proibição de diferença de salários e critérios de admissões por motivo de sexo, cor e estado civil; mudança nos tribunais com a inclusão de vagas destinadas ao Ministério Público e Advocacia.
Acerca das duas primeiras mudanças, é notório o objetivo do regime militar em aumentar o contingente de mão de obra disponível, ao excluir critérios de seleção, assim como Vargas pretendia aumentar a população eleitoral, ao instituir o voto às mulheres. Em relação à mudança da composição dos tribunais é perceptível uma tentativa de criar uma dependência do judiciário em relação ao Executivo devido às indicações dos primeiros serem responsabilidades do segundo e há um grupo maior apto à indicação (SILVA, 2010, p. 63).
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No final da década de 1960, os ministros da marinha de guerra, do exército e da aeronáutica militar decretaram a lei n. 926, de 10 de outubro de 1969. Esse decreto-lei instituiu a carteira do trabalho e previdência social, a carteira de trabalho do menor e do trabalhador rural, este será beneficiado mais tarde com o FUNRURAL.
Nos anos 70, por meio da lei complementar 7, de 07/09/1970, criou-se o Programa de Integração Social (PIS) e a lei complementar 8, de 03/12/1970, estabeleceu o Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (PASEP). Esses planos tinham a finalidade de criar uma integração entre os trabalhadores, exceto rurais e os servidores em regime especial, na vida das empresas por meio de “participação de lucros”. As empresas foram obrigadas a contribuir com o fundo de participação administrado pela Caixa Econômica Federal. Elas tiveram de pagar um percentual de faturamento ou da folha de pagamento, ou uma parcela sobre o imposto de renda, a depender da atividade exercida. Os trabalhadores também passaram a contribuir com o Fundo, na proporção de seus vencimentos ou salários e de seu tempo de serviço. Após o primeiro quinquênio de participação, os que ganhavam até cinco salários mínimos tinham o direito a um salário regional, denominado de 14ª salário pelos trabalhadores (SIMÕES, 1986, p. 92). Em 1975, ocorreu a unificação dos programas sob a mesma sigla PIS/PASEP.
O objetivo dessa lei é enfatizado por Carlos Simões (1986, p. 92): “A instituição do PIS/PASEP, mais do que uma
renda, constituiu, basicamente, uma justificação ideológica oficial para exigir dos operários maior produtividade e, por outro lado, sua pacificação social. É um mecanismo pelo qual, em princípio, a “participação dos lucros” é tanto maior quanto o salário e o tempo de serviço (“trabalhe mais, ganhe mais”), de acordo com os dados informados pelas empresas e entidades estatais à CEF por meio de uma Relação Anual de Salários, RAS, atualmente transformada em Relação Anual de Informações Sociais, RAIS.”.
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Os trabalhadores rurais, que não foram atendidos pelo INPS, tiveram benefício à aposentadoria e pensão com a criação do FUNRURAL (Lei complementar 11, de 25/05/1971). A administração desse fundo tinha sido dissociada do INPS. A renda do FUNRURAL não era paga pelo trabalhador do campo, mas sim por um imposto sobre os produtos rurais e sobre a folha de pagamento das empresas, em ambos os casos os custos eram repassados pelos consumidores. Além das garantias supracitadas, o Fundo Rural também assegurava a assistência médica. A distribuição dos benefícios era de responsabilidade dos sindicatos rurais. Essa atribuição de tarefa que o governo delegou aos sindicatos contribuiu para a redução da atividade política de combate e criou alianças com o governo. O apoio do campesinato ao regime militar é entendido pelo conservadorismo dos trabalhadores rurais, mas também se estruturou na legislação social, a qual não onerava os beneficiários e somado a isso há o desaparecimento do discurso acerca da reforma agrária (CARVALHO, 2002, p. 172). Depois do Fundo Rural, a lei 5.889 fixou normas regulamentadoras do serviço rural, entre elas a equidade salarial mínima entre o maior de dezesseis anos e o trabalhador adulto, a proibição do trabalho noturno de menores de dezoito anos e observação das normas de higiene e segurança estabelecidas pelo Ministério do Trabalho e Previdência Social.
A quase completa abrangência da previdência social ocorreu em 1973, quando a lei n. 5.859 estendeu o benefício aos trabalhadores domésticos. Logo, apenas os trabalhadores informais não tiveram cobertura previdenciária.
2.4 Últimas modificações nas relações de trabalho
Após a regulamentação previdenciária, o regime militar instituiu o trabalho temporário, regulamentando a relação triangular, empregador-empregado-cliente, isto é, desenvolvimento das atividades de terceirização (Lei n. 6.019/74, 03/01/1974). A administração do Estado Brasileiro mostrou novamente uma aliança com os grandes empresários, através da terceirização a rotatividade no trabalho é facilitada e aumenta-se a cobrança pelo trabalho realizado. Como já havia uma possibilidade de contratos e concessões com empresas privadas, a nova lei apenas corroborou essa prática política. Um fator relevante a ser citado é a indefinição do
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trabalhador, uma vez que ele presta serviço em uma determinada empresa, mas não é remunerado diretamente por ela. Resumindo: a lei beneficia a iniciativa privada em dois pontos, a ampliação dos contratos e facilidade de substituição do trabalhador por meio do trabalho terceirizado (SILVA, 2010, p. 55).
Foi criado, em 08/10/1975, por meio da Lei n. 76.402, o Sistema Nacional de Emprego (SINE) com o objetivo de organizar os dados dos trabalhadores e ser um meio de orientação profissional.
Instituiu-se pela Lei n. 6.321/76 o Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT), o qual tem caráter opcional e visa ao atendimento das necessidades nutricionais dos trabalhos e argumenta que a consequência disso é um aumento da produtividade, visto que a alimentação nutritiva evita fadiga, doença e redução dos riscos de trabalho. A consequência assume o papel principal nessa legislação, não é a preocupação com o trabalhador que realmente motiva o desenvolvimento da lei, mas sim os benefícios para o recrudescimento das atividades produtivas.
É importante destacar o impacto da crise do petróleo, em 1973, no desenvolvimento da legislação trabalhista brasileira. Adicionado a este ambiente desfavorável houve o aumento da dívida externa do país. Esses pontos foram significativos para o declínio do “milagre econômico” brasileiro e a perda de popularidade do regime militar. Como a política desenvolvimentista não beneficiava a classe mais baixa, esse momento foi determinante para o retorno das atividades sindicais e a ocorrência das célebres greves no ABC Paulista. Nesse âmbito, o governo Geisel se preocupou com a retomada das ações dos sindicatos (FAUSTO, 1994, p. 499). O Decreto-lei n. 1.632, de 04/08/1978, proíbe a greve em serviços essenciais, ampliando o número de atividades básicas essenciais. É estabelecido no art. 5º: o caráter grave, punível e com demissão ou suspensão, o funcionário público que participar de greve ou para ela concorrer.
Em 30 de outubro de 1979, já no governo de João Figueiredo, é decretada a Lei n. 6.708, a qual estabelece a correção semestral do salário conforme o Índice de Preços ao Consumidor. Esse texto legal mostra-se
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extremamente importante. Tal índice é calculado a partir de cesta básica e mensura o peso de cada bem na despesa de uma família típica brasileira. Sob esta perspectiva, lei em comento apresenta um benefício significativo aos trabalhadores, haja vista a baixa renda das famílias e o peso que os alimentos representam nos gastos.
A última ação do governo ditatorial no campo trabalhista foi a unificação do salário mínimo, isto é, a criação de um salário mínimo nacional, por meio da Lei nº 2.162, de 01 de maio de 1984. O menor valor pago ao trabalhador foi instituído em 1936, contudo, em 1940, dividiu-se por regiões (TRT, 2009).
4 CONCLUSÃO
A postura ditatorial apresentou vicissitudes conforme seus interesses. No início, havia preocupação em controlar a efervescência política. Nesse sentido, a concessão de direitos trabalhistas era uma eficaz. Contudo, a partir da dominação de grupos rebeldes e endurecimento do regime a prática foi oposta, com restrição de atividades sindicais e benefícios ao trabalhador. Se por um lado o regime apresentou uma proposta de direito aos trabalhos rurais, não explorado na CLT; por outro, o regime civil-militar objetivava a desconstrução de movimentos questionadores das leis do trabalho. Logo, a ditadura utilizou as leis do trabalho para sustentar suas concepções políticas e atingir seus objetivos. Nesse sentido, a pesquisa desse artigo permitiu uma conclusão sobre as questões não muito evidentes no próprio texto. As consequências de todas as alterações foram a flexibilização da demissão; restrição a expressão de reivindicações, que gerou um efeito contrário; a moralização da Justiça do Trabalho e ampliação da interferência nos tribunais superiores. A terceira consequência, conforme descreve Claudiane Torres da Silva, refere-se à necessidade de moralizar a Justiça do Trabalho em virtude das críticas dos outros Tribunais, que a classificavam tradicionalmente como uma justiça menor, mas para o regime era estratégia. Diante do exposto, a ditadura militar procurou adequar a legislação trabalhista aos seus interesses econômicos e a utilizou para conseguir legitimidade e firmar práticas populares nas classes mais baixas.
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FAUSTO, Boris. História do Brasil. 2ª ed. São Paulo: Universidade de São Paulo: Fundação de Desenvolvimento da Educação, 1995.
GIANNOTTI, Vito. História das lutas dos trabalhadores no Brasil. Rio de Janeiro: MAUAD X, 2007.
MEMORIAL DA JUSTIÇA DO TRABALHO. Coordenação do Tribunal Regional do Trabalho 4ª região. Apresenta uma linha do tempo sobre os acontecimentos históricos e suas implicações na Justiça do Trabalho. Disponível em: < http://www.trt4.jus.br/linha-tempo/>. Acesso em: 23 de maio. 2014.
NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Acadêmica, 1994.
SILVA, Claudiane Torres. 2010. Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de História. Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2010. Disponível em: <http://www.historia.uff.br/stricto/td/1402.pdf>Acesso em: 26 de maio. 2014
SIMÕES, Carlos. A lei do Arrocho – Trabalho, Previdência e Sindicatos no Regime Militar. Rio de Janeiro: Vozes, 1986.
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DIREITO DA CONSTRUÇÃO: A IMPORTÂNCIA DA ADMINISTRAÇÃO DE CONTRATOS DE CONSTRUÇÃO EM TEMPOS DE CRISE
TIAGO AMORIM POUILLARD CARNEIRO: advogado especialista em administração de contratos, especialista em Direito Público e estou escrevendo sobre Administração de Contratos de Engenharia, assunto relacionado ao novo ramo do Direito intitulado pela recente doutrina como "Direito da Construção" ou "Direito da Infraestrutura".
RESUMO: O Direito da Construção ou Direito da Infraestrutura vem se
consolidando na doutrina nacional recente como o mais noivo ramo do
Direito, relacionado às regulamentações e contratações de grandes
projetos nacionais do setor imobiliário, de engenharia e de
infraestrutura. Para tanto, a integração estratégica e multidisciplinar
entre os setores técnico e jurídico de grandes projetos, seja na fase pré‐
contratual, de execução do contrato, ou pós‐contratual, é de fundamental
importância para garantia do atendimento às premissas contratuais
essenciais, requisições técnicas, direitos e obrigações contratuais, normas
legais aplicáveis, manutenção ou reestabelecimento do equilíbrio
econômico e financeiro do contrato e gestão do contrato sobre o prisma
técnico e jurídico. Tal integração se dá de forma plena através da
Administração dos Contratos de Engenharia, mediante a atuação de
profissionais com conhecimentos técnico e jurídico‐contratual
imprescindível para a mitigação da ocorrência de riscos, a condução das
tratativas contratuais necessárias diante de conflitos potenciais ou
disputas comerciais entabuladas, e para se evitar a ocorrência e prejuízos
para ambas as partes (contratante e contratado), principalmente em
tempos de estagflação econômica e baixos investimentos em contratos de
infraestrutura que o país tanto necessita.
PALAVRAS‐CHAVE: Direito da Construção; Administração de contratos;
integração técnica e jurídica;
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INTRODUÇÃO:
O Direito da Construção vem se consolidando no meio acadêmico
como uma disciplina autônoma do Direito, dado o seu alto nível de
especialização e interface multidisciplinar com a área técnica da
engenharia nos grandes projetos nacionais do setor imobiliário, de
engenharia e de infraestrutura.
Além das recentes publicações especializadas sobre o tema, dois fatos
de revelam extremamente representativos na consolidação desse novo
ramo do Direito: a fundação do Instituto Brasileiro de Direito da
Construção (IBDiC), em São Paulo, no ano de 2011 e a criação da Comissão
de Direito da Construção da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional de
Minas Gerais, primeira comissão do gênero no país, também no ano de
2011.
Discussões acerca de requisitos legais e técnicos para implantação de
politicas regulatórias e contratação de Project Finance, modalidades de
contratação de serviços e obras de engenharia e infraestrutura,
estruturação de modalidades de concessão de serviços públicos e da
implementação de Parcerias Público‐Privadas, a contratação e a gestão e
garantias financeiras e contratuais, a atuação dos órgãos e mecanismos de
controle de obras públicas, a eleição e operacionalização de distintos
mecanismos de solução de disputas técnicas, jurídicas e comerciais em
contratos de construção e a especial ênfase na interseção dos aspectos
técnicos de engenharia com os aspectos jurídicos e contratuais são temas
recorrentes e de especial atenção no Direito da Construção.
Diante dessa multiplicidade, encontramos temas relacionados aos
mais diversos ramos do direito, tais como Ambiental, Tributário,
Trabalhista, Previdenciário, Imobiliário, Arbitral, Financeiro, Econômico,
Empresarial, Administrativo, Comparado, Internacional Privado, além de
questões técnicas, especialmente na área da engenharia, economia e
contabilidade, consolidando a discussão e a produção de conhecimentos
relevantes e específicos que tem campo fértil de aprofundamento e
especialização nessa nova disciplina Jurídica: o Direito da Construção.
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Nessa perspectiva a Administração de Contratos de engenharia vem
se apresentando como uma relevante e indispensável ferramenta
gerencial de integração entre as áreas técnica e jurídica dos projetos de
infraestrutura e construção em âmbito nacional e internacional, de
natureza complexa e multidisciplinar, principalmente diante dos baixos
níveis de investimento em projetos de infraestrutura no pais, da alta
complexidade dos arranjos jurídico‐contratuais, da potencial
suscetibilidade de riscos contratuais e extracontratuais, da histórica
diminuição das margens de lucro e do aumento das exigências de atuações
em confo0rmidade com o compliance e as leis anticorrupção nos projetos.
DESENVOLVIMENTO:
Eleito como um dos 47 processos do gerenciamento de projetos, a
administração de contratos foi introduzida recentemente pelo Project
Management Institute ‐ PMI[1] como um novo processo da área de
conhecimento sobre gestão de aquisições de Projeto, apresentada
atualmente como condição sine qua non para a sobrevivência e
crescimento sustentável das empresas que atuam no setor de construção
no Brasil e no Exterior.
Segundo o PMI – Project Management Institute:
A Administração de Contratos é o processo de gerenciamento
do contrato e da relação entre o comprador e o fornecedor,
análise e documentação do desempenho atual ou passado de
um fornecedor, a fim de estabelecer ações corretivas
necessárias e fornecer uma base para futuras relações com o
fornecedor e o gerenciamento de mudanças relacionadas ao
contrato e, quando adequado, gerenciamento da relação
contratual com o comprador externo do projeto.” [2]
Ainda de acordo com o PMI:
“A administração de contratos inclui a aplicação dos
processos de gerenciamento de projetos adequados à relação
contratual e a integração das saídas desses processos ao
gerenciamento geral do projeto.”. [ ]
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O êxito de um projeto eficientemente gerido por todas as etapas de
seu ciclo de vida sempre coincide com uma administração contratual bem
executada.
Para tanto é necessária uma gestão adequada de riscos e
oportunidades contratuais e extracontratuais, o conhecimento das
premissas técnicas e contratuais essenciais (preço, prazo, objeto e
qualidade) relacionadas aos serviços contratados, o acompanhamento do
desenvolvimento do contrato e da evolução física e financeira dos serviços
através da construção e sistematização de uma base documental, técnica
e jurídica sólida sob a ótica contratual, subsidiando eventuais soluções de
controvérsias surgidas no curso da execução do contrato e oportunizando
os ajustes contratuais necessários para obtenção dos resultados e metas
esperados.
Segundo BUCKER:
“Deve‐se conjecturar o porquê de as disputas na
construção civil serem peculiares e merecerem tratamento
diferenciado. Certamente existem uma série de fatores
distintivos dos conflitos na construção civil dos demais tipos,
justificando os mecanismos específicos concebidos para o
gerenciamento dos conflitos e a prevenção ou solução de
disputas.”. [ ]
Isto porque os conflitos no ramo da construção civil são
frequentemente muito complexos do ponto de vista técnico,
demandando intensa e profunda investigação dos acontecimentos e
gerenciamento eficiente do processo de reivindicações e reajustes.
A potencialidade de suscetibilidade da ocorrência de conflitos em
projetos de infraestrutura se deve ao grande número de variáveis com
grande potencial de impacto negativo sobre as premissas contratuais
essenciais (preço, prazo, objeto e qualidade) e grande contribuição para a
modificação da base do negocio jurídico celebrado, com desestabilização
da sua equação econômico‐financeira inicialmente considerada.
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A escassez de recursos para novos projetos de engenharia e
infraestrutura, a redução dos investimentos no setor, a recessão e a
estagflação econômica, a diminuição histórica das margens de lucro, a
volatilidade cambial, e o receio dos investidores na implantação de novos
projetos visando a ampliação de parques industriais (obra brownfield) ou
a construção de novas plantas produtivas (obra greenfield), tem trazido
como legado aos projetos de infraestrutura em curso ou a serem iniciados
o peso e a responsabilidade da minimização de riscos e maximização dos
lucros.
Nesta perspectiva, as disputas geralmente surgidas no âmbito da
construção civil tomam especial relevância, pois diante da escassez de
projetos em curso o fluxo de caixa das empresas construtoras se torna
dependente da aderência das previsões físicas e financeiras, fazendo com
que a ocorrência de problemas e interferências ou obstáculos imprevistos
tenham especial atenção e condução para evitar a solução de
continuidade das obras e muitas vezes a bancarrota financeira das
empreiteiras.
Devido a isto JENKINS e STEBBINGS afirmam que:
“As disputas na construção exigem uma solução rápida,
mesmo que temporária, a fim de que os serviços não sejam
obstados ou interrompidos, permitindo que os trabalhos na
obra prossigam. É interesse de todas as partes que o
empreendimento seja concluído no prazo estipulado, ou, pelo
menos, no menor prazo possível, e recorrer a mecanismos
demorados na solução de controvérsias não é recomendável,
pois ao invés de corrigir eventual desequilíbrio econômico e
financeiro, faz com que ele se prolongue, gerando prejuízos e
perdas para ambas as partes.”. [ ]
Para MURDOCH e HUGHES há uma série de funções com habilidades
especializadas de profissionais que contribuem para o gerenciamento dos
projetos. Como consequência sempre há muita confusão, devido a
diversidade de disciplinas e áreas do conhecimento envolvidas.[6]
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Outro aspecto que torna imprescindível uma clara, rápida e objetiva
métrica de solução de disputas é o grande potencial de prejuízo financeiro
decorrente da ocorrência de quaisquer dos riscos contratuais ou
extracontratuais relacionados à execução do contrato (risco regulatório,
risco construtivo, risco geológico, risco financeiro, etc.), o que exige o
acompanhamento diuturno do contrato sobre os prismas técnico e
jurídico, através da administração de contratos e da integração
multidisciplinar e estratégica entre as áreas técnica e jurídica dos projetos.
Há que se considerar a influência de fatores internos e fatores
externos de incerteza que venham a modificar consideravelmente as
condições de trabalho e as premissas sobre as quais foi elaborado o
planejamento executivo e orçado os preços ofertados, tais como
condições inadequadas de acessibilidade, inexistência ou deficiência de
infraestrutura de drenagem, abastecimento de água e fornecimento de
energia elétrica, alteração de preço, prazo e objeto, inconsistência ou
incompatibilidade de projetos, necessidade de execução de serviços
extras, ausência de liberação de áreas, interferência com fatores antes
ocultos, interface e sobreposição de atividades com outras empresas do
site, variação inflacionária exorbitante, alteração de índices econômicos e
alíquotas fiscais, modificação da legislação trabalhista e previdenciária,
índices pluviométricos acima dos históricos normais, problemas
geológicos, geodésicos ou litográficos não previstos, etc.
Como nem todos os riscos podem ser previstos e contemplados no
contrato, a imprevisibilidade é condição constante nos projetos de
construção e infraestrutura, motivo pelo qual a administração de
contratos é de suma importância para realizar o eficiente controle,
acompanhamento, registro e sistematização da alteração das condições
de trabalho, possibilitando as tratativas necessárias para a implementação
dos ajustes contratuais necessários no tempo e na forma devidas e
preconizadas, prevenindo, mitigando ou recuperando perdas e prejuízos,
em razão da manutenção ou reestabelecimento da equação econômico e
financeira do contrato, e da garantia da vigência das premissas contratuais
essenciais inicialmente pactuadas.
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A partir do controle e rastreabilidade do repositório de documentos
corporativos e do registro sistemático da alteração das condições de
trabalho e das premissas contratuais essenciais é possível se elaborar um
mapa de impactos e fortalecer o controle das modificações, que servirá
como subsidio a apresentação de reivindicações de reajustamento do
contrato e reestabelecimento do seu equilíbrio econômico e financeiro,
conversão de riscos em oportunidades e suporte à eficiente gestão dos
contratos de engenharia.
O domínio da engenharia ‐ concepção e custo ‐ do empreendimento
e do seu respectivo processo de produção é pressuposto básico para a
eficácia da Administração Contratual.
Nesta perspectiva é que a doutrina técnica especializada tem
concebido a elaboração e apresentação de pleitos e reivindicações, em
decorrência da realização da administração de contratos, como“...um
requinte adotado por poucas empresas até meados da década de 90.” [7]
Segundo PEDROSA a administração de contratos constitui“...uma
prática recente em empresas de grande porte e ainda pouco usual em
empresas menores.” [8]
Para GARRETT “o objetivo da administração de contrato é assegurar
a conformidade dos termos e condições contratuais, ao longo da execução
do contrato e até o seu encerramento.”. [9]
O instrumento do contrato e os documentos que lhe são anexos
(Requisição e especificação técnica, edital de concorrência, instruções de
saúde, segurança e meio ambiente, condições de acesso de equipamentos
e subcontratados, cronograma físico, marcos contratuais de entrega,
proposta técnica e comercial do contratado, projetos, desenhos, croquis
e layouts, entre outros) constituem as referências para a prática da
Administração de Contratos.
No entendimento de FRISBY:
“Os contratos de construção estão repletos de riscos
potenciais para a empreiteira. (...) É essencial que os ricos
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contratuais também sejam entendidos no contexto da decisão
de ofertar‐se ou não uma proposta. (...) Todas as empreiteiras
deveriam colocar um aviso em seus escritórios, com as palavras:
Leiam o contrato.”.[10]
De acordo com CAVENDISH E MARTIN o ciclo da administração do
contrato:
“...inicia‐se com sua assinatura entre o comprador e o
vendedor, terminando com sua liquidação. Esse ciclo compõe‐se
de todas as ações envolvidas, com a entrega e aceite da obra e
serviços”. [11]
Segundo sugerem Clough e Sears (1991).
“Em alguns casos, há necessidade de pleitear o
cumprimento do contrato, exigindo os direitos inerentes a ele.
Durante o período de execução dos serviços, podem surgir
disputas entre o proprietário e o contratado envolvendo
reivindicações por tempo ou remuneração extra. Caso haja
qualquer alteração das condições originais, deve‐se partir para
uma política defensiva. Assim, será possível ressarcir‐se dos
efeitos decorrentes do descumprimento, por parte do cliente, de
uma obrigação contratual”.
Entretanto, atualmente, a administração de contratos tem sido mais
do que uma ferramenta de controle do gerenciamento de aquisições de
projetos, com extensão e abrangência inclusive anterior à própria
assinatura do contrato, devido à dinâmica das relações comerciais e a
realidade dos projetos de infraestrutura e construção pesada, sendo
verdadeiramente o fiel da balança entre a tênue linha entre a eficaz
condução do ciclo de vida do projeto, com sua consequente conclusão
exitosa, e o desastre do projeto, com acumulo de prejuízos e resultados
indesejáveis.
Grande exemplo disso é a adoção de um procedimento formal de
Administração Contratual pela Odebrecht no exterior. A direção
da Odebrecht Contractors of Florida, Inc. (OFL) estabeleceu desde o
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segundo semestre de 1993 um programa de Administração Contratual em
todas as suas obras, sendo este considerado como um elemento de
capacitação (treinamento em serviço) indispensável para os recursos
estratégicos da empresa e da adaptação destes aos parâmetros da
indústria de construção vigentes no competitivo mercado dos EUA.
O que era considerado um requinte, uma excentricidade usada
exclusivamente para reivindicações, é, nos dias de hoje, a segurança
empresarial de uma compensação por eventual planejamento
inadequado ou pela ocorrência de situações imprevistas ou previstas, mas
de consequências incalculáveis, com repercussão nas premissas essenciais
do contrato e alteração da equação econômica e financeira do ajuste
comercial realizado.
CONCLUSÃO:
O Direito da Infraestrutura ou Direito da Construção vem fazendo com
que os profissionais que atuam nessa área extrapolem o conhecimento
jurídico‐contratual comum as atividade e gestão jurídica e passem a
agregar conhecimentos técnicos, financeiros e econômicos para lidar de
forma eficiente e adequada com os contratos e projetos de infraestrutura
no país, principalmente diante do cenário de crise econômica e reduzidos
investimentos em infraestrutura.
É neste contexto que a Administração Contratual torna‐se
indispensável e uma questão de sobrevivência no mercado da construção
e para adoção das melhores práticas em gestão de contratos, visando à
integração estratégica e multidisciplinar entre as áreas técnica e jurídica
de projetos de construção, ao equilíbrio econômico e financeiro do
contrato e à segurança jurídica para as partes contratantes, sedimentando
cada dia mais a cultura e a prática do Direito da Construção como ramo
autônomo do Direito e como disciplina e técnica jurídica indispensável à
gestão eficiente de contratos de construção em tempos de crise.
NOTAS:
[1] Guia PMBOK@, 3º ed., 2004, Project Management Institute.
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[2] PMI. Um guia do conhecimento em gerenciamento de projetos - Guia PMBOK@, 3º ed., 2004, p. 351.
[3] PMI. Um guia do conhecimento em gerenciamento de projetos - Guia PMBOK@, 3º ed., 2004, p. 290.
[4] BUCKER, Maurício Brun. Gerenciamento de conflitos, prevenção e solução de disputas em empreendimentos de construção civil. Dissertação apresentada à Escola Politécnica da USP. São Paulo: 2010, p. 41-42
[5] JENKINS, J.; STEBBINGS, S. International Construction Arbitration law. Arbitration in context series. 1st ed. AH, Alphen aan den Rijn – The Nederlands: Kluwer Law International: 2006, p. 442.
[6] MURDOCH, J.; HUGHES, W.: Construction Contracts:law and management. 4st ed. Oxon UK: Taylor & Francis Group, 2008, p. 401.
[7] RICARDINO, Roberto. Administração de contratos em projetos de construção pesada no Brasil: Um estudo de interface com o processo de análise de risco. Dissertação apresentada a Escola Politécnica da Universidade de São Paulopara obtenção do título de mestre em engenharia. São Paulo, 2007, p. 07.
[8] PEDROSA, Verônica de Andrade; ROCHA LIMA JR., João.Reivindicações em contratos de empreitada no Brasil. Boletim Técnico da escola Politécnica da USP. Departamento de engenharia de construção Civil, BT/PCC/124, São Paulo, EPUSP, 1994, p. 20.
[9] GARRETT, Gregory A. Glossary of key contrat
managementin: Word class contracting. How winning companies build
successful partnership in the e‐business age, 2000, p. 126.
[10] FRISBY, Thomas N. How to survive (and prosper) in construction. Kingston (USA): R. S. Menas. 1990, p. 120-121.
[11] CAVENDISH, Penny; MARTIN, Martin D. Negotiating and contrating for project management in PROJECT MANAGEMENT INSTITUTE. Principles of project management: collected
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‐ 1984‐0454
handbooks from the project management institute. Newtown Square (USA), PMI, 1997, p. 93.
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PODER DE POLÍCIA E SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL: TESSITURAS À VIGILÂNCIA SANITÁRIA E A FUNÇÃO FISCALIZADORA DE PRODUTOS E SERVIÇOS DE ALIMENTOS
TAUÃ LIMA VERDAN RANGEL: Doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), linha de Pesquisa Conflitos Urbanos, Rurais e Socioambientais. Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Especializando em Práticas Processuais - Processo Civil, Processo Penal e Processo do Trabalho pelo Centro Universitário São Camilo-ES. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário São Camilo-ES. Produziu diversos artigos, voltados principalmente para o Direito Penal, Direito Constitucional, Direito Civil, Direito do Consumidor, Direito Administrativo e Direito Ambiental.
Resumo: O objetivo do artigo científico está assentado em discorrer acerca do poder de polícia, bem como seus aspectos caracterizadores e premissas de atuação. Cuida anotar que o Estado deve atuar à sombra do princípio da supremacia do interesse público. No que tange à atuação do princípio da supremacia do interesse público, como vetor de inspiração na confecção das normas, mister faz-se destacar, com cores fortes e acentuados tracejos, que uma das distinções que bem delineia o direito privado do público, cinge-se ao interesse que busca proteger; o direito privado contém normas de interesse individual e, o direito público, normas de interesse público. Ora, quadra sublinhar, ainda, que a sobreposição da supremacia do interesse público sobre o interesse privado se apresenta como bastião sustentador do Direito em qualquer sociedade. Com efeito, a valoração do interesse público, neste aspecto, se apresenta como conditio sine qua non para a manutenção e preservação da ordem social. Destarte, o corolário da supremacia do interesse público ostenta, como núcleo sensível, a busca pela promoção e alcance dos interesses da coletividade, sobrepujando, por via de extensão, o interesse particular. Assim, quando o Poder Público interfere na órbita do interesse privado para salvaguardar o interesse público, restringindo direitos individuais, atua no exercício do poder de polícia. A partir de tais ideários, a pesquisa desenvolvida está assentada no método de
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revisão bibliográfica, conjugado, no decorrer do artigo, da legislação nacional pertinente, com vistas a esmiuçar os requisitos enumerados.
Palavras-chaves: Poder de Polícia. Vigilância Sanitária. Segurança Alimentar e Nutricional.
Sumário: 1 Poder de Polícia: Ponderações Introdutórias; 2 Competência do Poder de Polícia; 3 O Exercício do Poder de Polícia em prol da Saúde Pública: Primeiras Linhas ao exercício da Vigilância Sanitária como atribuição do Poder Público; 4 Segurança Alimentar e Nutricional e Direito à Alimentação Adequada: Contornos Primários; 5 Poder de Polícia e Segurança Alimentar e Nutricional: Tessituras à Vigilância Sanitária e a Função Fiscalizadora de Produtos e Serviços de Alimento.
1 Poder de Polícia: Ponderações Introdutórias
Em sede de comentários introdutórios, cuida anotar que o Estado deve atuar à sombra do princípio da supremacia do interesse público. No que tange à atuação do princípio da supremacia do interesse público, como vetor de inspiração na confecção das normas, mister faz-se destacar, com cores fortes e acentuados tracejos, que uma das distinções que bem delineia o direito privado do público, cinge-se ao interesse que busca proteger; “o direito privado contém normas de interesse individual e, o direito público, normas de interesse público”[1]. Ora, quadra sublinhar, ainda, que a sobreposição da supremacia do interesse público sobre o interesse privado se apresenta como bastião sustentador do Direito em qualquer sociedade. Com efeito, a valoração do interesse público, neste aspecto, se apresenta como conditio sine qua non para a manutenção e preservação da ordem social.
Neste sedimento, tal como dito acima, em que pese a inexistência de expressa menção do postulado em comento pelo texto constitucional, é impende destacar, com o realce que o tema carece, que “as atividades administrativas são desenvolvidas pelo Estado para benefício da coletividade. Mesmo quando age em vista de algum interesse estatal imediato, o fim último de sua atuação deve ser voltado para o interesse público”[2]. Destarte, o corolário da supremacia do interesse público
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ostenta, como núcleo sensível, a busca pela promoção e alcance dos interesses da coletividade, sobrepujando, por via de extensão, o interesse particular. Assim, quando o Poder Público interfere na órbita do interesse privado para salvaguardar o interesse público, restringindo direitos individuais, atua no exercício do poder de polícia.
Ao lado do exposto, a locução poder de polícia abarca dois sentidos, um amplo e um estrito. Em uma acepção ampla, poder de polícia assume significação de toda e qualquer ação restritiva do Estado em relação aos direitos individuais. Especial relevância assume a função do Poder Legislativo incumbido do ius novum uma vez que apenas as leis, organicamente consideradas, têm o condão de delinear o perfil dos direitos, elastecendo ou reduzindo o seu conteúdo. Trata-se, pois, de reafirmação do corolário da legalidade, expressamente consagrado na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988[3]. Em uma fisionomia mais estrita, o poder de polícia se configura como atividade administrativa, que materializa verdadeira prerrogativa conferida aos agentes da Administração, consistente no poder de restringir e condicionar a liberdade e a propriedade. Substancializa, dessa maneira, atividade tipicamente administrativa e, como tal, subjacente à lei, de forma que esta já preexiste quando os administradores cominam a disciplina e as restrições aos direitos. Neste sentido, Celso de Mello explicita que:
A expressão “poder de polícia” pode ser tomada em sentido mais restrito, relacionando-se unicamente com as intervenções, quer gerais e abstratas, como os regulamentos, quer concretas e específicas (tais as autorizações, as licenças, as injunções), do Poder Executivo destinadas a alcançar o mesmo fim de prevenir e obstar ao desenvolvimento de atividades particulares contrastantes com os interesses sociais. Esta acepção mais limitada responde à noção de polícia administrativa[4].
À luz das ponderações aventadas, com espeque na concepção de José dos Santos Carvalho Filho[5], o poder de polícia materializa a prerrogativa de direito público que, assentada na lei, autoriza a Administração Pública a restringir o uso e o gozo da liberdade e da propriedade em favor do interesse da coletividade. Segundo Celso de
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Mello[6], o poder de policia, em uma conotação mais restrita e assentada em função precípua administrativa, materializa atividade da Administração Pública, sendo expressa em atos normativos ou concretos, de condicionar, com arrimo em sua supremacia geral e na forma da lei, a liberdade e a propriedade dos indivíduos, por meio de ação ora fiscalizadora, ora preventiva, ora repressiva, cominando coercitivamente aos particulares um dever de abstenção (non facere), com o escopo de conformar-lhes os comportamentos aos interesses sociais consagrados no sistema normativo em vigor. Trata-se, em linhas conceituais, do modo de atuar da autoridade administrativa que consiste em intervir no exercício das atividades individuais suscetíveis de fazer perigar interesses gerais, tendo por escopo evitar que sejam produzidos, ampliados ou generalizados os danos sociais que os diplomas legais procuram prevenir.
No que tange ao benefício resultante do poder de polícia, materializa fundamento dessa prerrogativa do Poder Público o interesse público. Logo, a intervenção do Estado no conteúdo dos direitos individuais somente encontra amparo ante a finalidade que deve sempre orientar a ação dos administradores públicos, qual seja: o interesse da coletividade. Noutro ângulo, a prerrogativa em si está alicerçada na supremacia geral da Administração Pública, ou seja, aquela mantida em relação aos administrados, de modo indistinto, flagrante superioridade, pelo fato de satisfazer, como expressão de um dos poderes do Estado, interesses públicos. No que pertine à finalidade, salta aos olhos que o poder de polícia objetiva promover a proteção dos interesses coletivos, o que explicita umbilical conotação como próprio fundamento do poder, ou seja, se o interesse público é o axioma inspirador da atuação restritiva do Estado, há de constituir alvo dela a proteção do mesmo interesse. Cuida anotar que este deve ser compreendido em sentido amplo, abarcando todo e qualquer aspecto.
Em sede de âmbito de incidência, cuida reconhecer que é bastante amplo o círculo em que se pode fazer presente o poder de polícia. Em tal alamiré, qualquer ramo de atividade que possa contemplar a presença do indivíduo possibilita a intervenção restritiva do Estado. Em outros termos, não há direitos individuais absolutos a esta ou àquela atividade, mas, ao reverso, deverão estar subordinados aos interesses
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coletivos. Daí é possível dizer que a liberdade e a propriedade são sempre direitos condicionados, eis que se sujeitam às restrições necessárias a sua adequação ao interesse público. “É esse o motivo pelo qual se faz menção à polícia de construções, à polícia sanitária, à polícia de trânsito e de tráfego, à polícia de profissões, à polícia do meio ambiente”[7]. Em todos esses segmentos aparece o Estado, em sua atuação restritiva de polícia, com o escopo de assegurar a preservação do interesse público.
2 Competência do Poder de Polícia
A competência para exercer o poder de polícia é, em um primeiro momento, da pessoa federativa à qual a Constituição Federal conferiu o poder de regular a matéria. Com destaque, os assuntos concernentes ao interesse nacional ficam sujeitas à regulamentação e policiamento da União; as matérias de interesse regional estão condicionadas às normas e à polícia estadual; e os assuntos de interesse local estão subordinados aos regulamentos edilícios e ao policiamento administrativo municipal. Com destaque, o sistema de competências constitucionais é responsável por afixar as linhas básicas do poder de regulamentação das pessoas federativas, não sendo, entretanto, possível esquecer que as hipóteses de poder concorrente ensejarão o exercício conjunto do poder de polícia por pessoas de nível federativo diverso, consoante se extrai dos artigos 22, parágrafo único, 23 e 24 da Constituição Federal[8].
Carvalho Filho[9] explicita que será inválido o ato de polícia praticado por agente de pessoa federativa que não tenha competência constitucional para regular a matéria e, portanto, para impor a restrição. Igualmente, só pode ter-se por legítimo o exercício de atividade administrativa materializadora do poder de polícia se a lei em que estiver calcada a conduta da Administração encontrar guarida no Texto Maior. Caso a lei seja inconstitucional, os atos administrativos, que com fundamento nela sejam praticados, serão considerados ilegítimos, caso sejam voltadas a uma pretensa tutela do interesse público, substancializada no exercício do poder de polícia. Destarte, conclui-se que só há poder de polícia legítimo se legítima for a lei que o sustenta. Ao lado disso, imprescindível faz-se anotar que, como o sistema de partilha de competências constitucionais envolve três patamares federativos – o
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federal, o estadual e o municipal -, e tendo em vista o contraste de competências privativas e concorrentes, salta aos olhos que, dada a complexidade da matéria, comumente surgem hesitações na doutrina e nos Tribunais quanto à entidade competente para a execução de certo serviço ou para o exercício do poder de polícia. Com o escopo de fortalecer o acimado, cuida transcrever o paradigmático entendimento:
Ementa: Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei Distrital N. 3.460. Instituição do programa de inspeção e manutenção de veículos em uso no âmbito do Distrito Federal. Alegação de violação do disposto no artigo 22, inciso XI, da Constituição do Brasil. Inocorrência. 1. O ato normativo impugnado não dispõe sobre trânsito ao criar serviços públicos necessários à proteção do meio ambiente por meio do controle de gases poluentes emitidos pela frota de veículos do Distrito Federal. A alegação do requerente de afronta ao disposto no artigo 22, XI, da Constituição do Brasil não procede. 2. A lei distrital apenas regula como o Distrito Federal cumprirá o dever-poder que lhe incumbe --- proteção ao meio ambiente. 3. O DF possui competência para implementar medidas de proteção ao meio ambiente, fazendo-o nos termos do disposto no artigo 23, VI, da CB/88. 4. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada improcedente. (Supremo Tribunal Federal – Tribunal Pleno/ ADI 3.338/ Relator: Ministro Joaquim Barbosa/ Relator p/ Acórdão: Ministro Eros Grau/ Julgado em 31.08.2005/ Publicado no DJe em 05.09.2007).
À luz do exposto, incumbe ao intérprete promover detida análise da hipótese concreta, buscando estabelecer uma adequação pertinente ao sistema estabelecido no Texto Constitucional. Oportunamente, convém explicitar que o poder de polícia, sendo atividade que, em algumas hipóteses, acarreta competência concorrente entre pessoas federativas, enseja sua execução em sistema de cooperação calcado no regime de gestão
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associada, encontrando respaldo no artigo 241 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988[10]. Ao lado disso, em tais hipóteses, os entes federativos interessados firmarão convênios administrativos e consórcios públicos destinados ao atendimento dos objetivos do interesse comum.
3 O Exercício do Poder de Polícia em prol da Saúde Pública: Primeiras Linhas ao exercício da Vigilância Sanitária como atribuição do Poder Público
À luz das ponderações estabelecidas até o momento, cuida reconhecer que o poder de polícia é exercido nas mais diversas áreas, em especial na saúde pública, encontrando, com efeito, neste segmento, na execução da parte de suas funções na vigilância sanitária que recebe proeminente destaque. Ao lado disso, prima sublinhar que vários são os níveis que tocam a vigilância sanitária, responsáveis por conferir contornos próprios, como a dimensão política, ideológica, técnica e jurídica e o seu poder normativo, educador e de polícia. Hodiernamente, a Lei Orgânica da Saúde explicita que se entende por vigilância sanitária como um conjunto de ações capazes de eliminar, diminuir ou prevenir os riscos à saúde e de intervir nos problemas sanitários decorrentes do meio ambiente, da produção e da circulação de bens e da prestação de serviços de interesse da saúde, compreendendo: (i) o controle de bens de consumo que, direta ou indiretamente, se relacionem com a saúde, abarcando todas as etapas e processos, da produção ao consumo; (ii) o controle da prestação de serviços que relacionem direta ou indiretamente com a saúde. É, portanto, plenamente observável que o diploma em comento, ao tratar sobre o poder de polícia, conferiu ampliação sensível na locução vigilância sanitária, que passa a incorporar ações que interferem em toda a cadeia de produção, nos servidores prestadores de ações de atenção à saúde e ao meio ambiente.
Em complemento ao acimado, o poder de polícia, em sede de saúde pública, desempenha proeminente papel na seara da vigilância, epistemológica e sanitária, como órgãos fiscalizadores sobre o ambiente de trabalho, atribuição incorporada ao texto legal por meio da inclusão do §3º do artigo 6º da Lei Orgânica da Saúde. Entende-se por saúde do trabalhador, para fins da Lei Organização de Saúde, um conjunto de atividades que se
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destina, através das ações de vigilância epidemiológica e vigilância sanitária, à promoção e proteção da saúde dos trabalhadores, assim como visa à recuperação e reabilitação da saúde dos trabalhadores submetidos aos riscos e agravos advindos das condições de trabalho, abrangendo: (i) assistência ao trabalhador vítima de acidentes de trabalho ou portador de doença profissional e do trabalho; (ii) participação, no âmbito de competência do Sistema Único de Saúde (SUS), em estudos, pesquisas, avaliação e controle dos riscos e agravos potenciais à saúde existentes no processo de trabalho; (iii) participação, no âmbito de competência do Sistema Único de Saúde (SUS), da normatização, fiscalização e controle das condições de produção, extração, armazenamento, transporte, distribuição e manuseio de substâncias, de produtos, de máquinas e de equipamentos que apresentam riscos à saúde do trabalhador; (iv) avaliação do impacto que as tecnologias provocam à saúde; (v) informação ao trabalhador e à sua respectiva entidade sindical e às empresas sobre os riscos de acidentes de trabalho, doença profissional e do trabalho, bem como os resultados de fiscalizações, avaliações ambientais e exames de saúde, de admissão, periódicos e de demissão, respeitados os preceitos da ética profissional; (vi) participação na normatização, fiscalização e controle dos serviços de saúde do trabalhador nas instituições e empresas públicas e privadas; (vii) revisão periódica da listagem oficial de doenças originadas no processo de trabalho, tendo na sua elaboração a colaboração das entidades sindicais; e (viii) a garantia ao sindicato dos trabalhadores de requerer ao órgão competente a interdição de máquina, de setor de serviço ou de todo ambiente de trabalho, quando houver exposição a risco iminente para a vida ou saúde dos trabalhadores.
No mais, as ações da vigilância sanitária estão inseridas em um contexto mais ampliado, a saber: as ações de saúde, buscando a prevenção, a promoção e a recuperação da saúde dos indivíduos, sobremaneira em decorrência do contorno de fundamentalidade conferido ao direito à saúde, expressamente atribuído pelo Texto Constitucional de 1988. Neste talvegue, as ações de vigilância sanitária estão insertas dentro do campo do direito sanitário, um ramo do direito administrativo. Como desenvolve ações de controle sanitário de portos, aeroportos e fronteiras, insere-se no direito sanitário internacional, ramificação do direito internacional público. Assim, ainda no que toca à tal seara de incidência do poder de
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polícia, é plenamente denotável que a vigilância sanitária tem muitas atribuições, e todas, quando verificadas sob a ótica de suas ações, são atividades complexas, porém, na maioria das vezes, normatizadas. Exerce funções relacionadas tanto ao poder vinculado da administração (expedição de licenças) como ao poder discricionário (autorizações). Sublinha-se, entrementes, que todos são atos administrativos e, portanto, limitados por lei no que concerne à competência, forma, fins, motivos e objeto, sempre buscando a satisfação do interesse público a ser protegido, buscando compatibilizar o exercício dos direitos individuais com o bem-estar social.
4 Segurança Alimentar e Nutricional e Direito à Alimentação Adequada: Contornos Primários
Em alinho às ponderações aventadas até o momento, o direito à alimentação adequada realiza-se quando cada homem, mulher e criança, sozinho ou em companhia de outros, tem acesso físico e econômico, ininterruptamente, à alimentação adequada ou aos meios para sua obtenção. O direito à alimentação adequada não deverá, portanto, ser interpretado em um sentido estrito ou restritivo, que o equaciona em termos de um pacote mínimo de calorias, proteínas e outros nutrientes específicos. O direito à alimentação adequada terá de ser resolvido de maneira progressiva. No entanto, os estados têm a obrigação precípua de implementar as ações necessárias para mitigar e aliviar a fome, mesmo em épocas de desastres, naturais ou não. Adequação e sustentabilidade do acesso e da disponibilidade de alimento. Com destaque, quadra reconhecer que o conceito de adequação é particularmente significativo com relação ao direito à alimentação, na medida em que ele serve para salientar vários fatores que devem ser tomados em consideração para determinar se os alimentos ou dietas específicas que estão disponíveis podem ser considerados os mais apropriados, em um conjunto determinado de circunstâncias.
A noção de sustentabilidade está intrinsecamente ligada à noção de alimentação adequada e segurança alimentar, o que significa estar o alimento disponível tanto para a geração atual, como para as futuras gerações. O significado preciso de “adequado” está condicionado, em grande parte, pelas condições sociais, econômicas, culturais, climáticas,
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ecológicas, e outras mais, que prevalecem, enquanto que a “sustentabilidade” incorpora a noção de disponibilidade e acessibilidade em longo prazo. Considera-se que o conteúdo essencial do direito à alimentação adequada consiste do seguinte: (i) a disponibilidade do alimento, em quantidade e qualidade suficiente para satisfazer as necessidades dietéticas das pessoas, livre de substâncias adversas e aceitável para uma dada cultura; (ii) A acessibilidade ao alimento de forma sustentável e que não interfira com a fruição de outros direitos humanos. Por necessidades dietéticas entende-se que a dieta, como um todo, deva conter uma mistura de nutrientes necessários para o crescimento físico e mental, desenvolvimento e manutenção, e atividade física, que estejam de acordo com as necessidades fisiológicas humanas em todas as etapas do ciclo de vida, e de acordo com o gênero e a ocupação. É possível que medidas precisem ser tomadas para manter, adaptar ou fortalecer a diversidade dietética e os padrões de consumo e administração dos alimentos, o que inclui a amamentação, ao mesmo tempo em que se assegura que mudanças na disponibilidade e acessibilidade aos alimentos pelo menos não afetem negativamente a composição da dieta e o consumo.
A necessidade de estar livre de substâncias adversas estabelece requisitos para a segurança do alimento e para um conjunto de medidas, públicas e privadas, destinadas a impedir a contaminação do alimento por adulteração e/ou más condições higiênicas, e por manuseio inadequado nas diferentes etapas da cadeia alimentar; é preciso tomar cuidados para identificar, impedir ou destruir toxinas que ocorrem naturalmente. A aceitabilidade cultural ou do consumidor implica, também, a necessidade de tomar-se em consideração, tanto quanto possível, valores que não estão ligados à valorização do conteúdo nutricional do alimento, mas sim estão ligados ao alimento, em si, ou ao seu consumo, e a preocupações do consumidor bem informado sobre a natureza do suprimento de alimentos disponíveis. No mais, cuida sublinhar que a disponibilidade abrange alternativas de alimentar-se, diretamente da terra produtiva ou de outros recursos naturais, como através de sistemas eficientes de distribuição, processamento, e venda, que possam transportar o alimento de sua origem para onde seja necessário, de acordo com a demanda.
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A acessibilidade abrange tanto a acessibilidade econômica como a física: Acessibilidade econômica significa que os custos financeiros, pessoais e familiares, associados com a aquisição de alimento para uma determinada dieta, deveriam ser de tal ordem que a satisfação de outras necessidades básicas não fique ameaçada ou comprometida. Acessibilidade econômica aplica-se a qualquer esquema de aquisição ou habilitação, utilizado pelas pessoas para obter o seu alimento, e é uma medida da adequação do processo de fruição do direito à alimentação adequada. Grupos socialmente vulneráveis, como os sem terra e outros segmentos empobrecidos da população podem necessitar do apoio de programas especiais. Acessibilidade física significa que uma alimentação adequada deve ser acessível a todos, inclusive aos indivíduos fisicamente vulneráveis, tal como crianças até seis meses de idade e crianças mais velhas, pessoas idosas, os deficientes físicos, os doentes terminais e pessoas com problemas médicos persistentes, inclusive os doentes mentais. Vítimas de desastres naturais, pessoas vivendo em áreas de alto risco e outros grupos particularmente prejudicados, podem necessitar de atenção especial e, em certos casos, ser priorizados com relação à acessibilidade ao alimento. Uma vulnerabilidade particular é aquela de grupos indígenas, cujo acesso às suas terras ancestrais pode estar ameaçado. Denota-se, portanto, que o direito à alimentação adequada, na contemporaneidade, recebeu especial relevo, sobremaneira quando compreende, de maneira determinante, a realização plena do indivíduo, substancializado o superprincípio da dignidade da pessoa humana.
5 Poder de Polícia e Segurança Alimentar e Nutricional: Tessituras à Vigilância Sanitária e a Função Fiscalizadora de Produtos e Serviços de Alimentos
Antes de adentrar no cerne do presente, cuida trazer à colação uma sintética análise dos aspectos caracterizadores do poder de polícia, a saber: autoexecutoriedade e coercibilidade. A Administração pode tomar as providências que modifiquem imediatamente a ordem jurídica, cominando, desde logo, obrigações aos particulares, com o escopo de atender ao interesse coletivo. Assim, diante de tal primado, não pode a Administração ficar à mercê do consentimento dos particulares. Em situação distinta, cumpre-lhe agir de imediato. “A prerrogativa de praticar
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atos e colocá-los em imediata execução, sem dependência à manifestação judicial, é que representa a autoexecutoriedade”[11]. Ao lado disso, tanto é autoexecutório a restrição cominada em caráter geral, como a que se dirige diretamente ao individuo, quando, à guisa de citação, comete transgressões administrativas. O sentido da autoexecutoriedade repousa na premissa de que, uma vez verificada a presença dos pressupostos legais, a Administração pratica-o imediatamente e o executa de forma integral. Ao exemplificar, Celso de Mello esclarece, oportunamente que:
Assim, uma ordem para dissolução de comício ou passeata, quando estes sejam perturbadores da tranquilidade pública, será coativamente assegurada pelos órgãos administrativos. Estes se dispensam de obter uma declaração preliminar do Judiciário, seja para declaração do caráter turbulento do comício ou da passeata, seja para determinar sua dissolução. A interrupção de um espetáculo teatral, por obsceno, será procedida do mesmo modo, pela Administração Pública, sem que esta obtenha prévia declaração judicial reconhecendo e autorizando a paralisação da exibição teatral. A apreensão de gêneros alimentícios impróprios para o consumo, por deteriorados ou insalubres, também é medida coativa passível de ser posta em prática pelo Executivo, sem recurso às vias judiciárias, tão logo constate a irregularidade[12].
Outro ponto que merece ser considerado faz alusão à autoexecutoriedade não depende de autorização de qualquer outro Poder, desde que a legislação autorize o administrador a praticar o ato de forma imediata. Assim, acertada é a decisão segundo a qual, no exercício do poder de polícia administrativa, não depende a Administração da intervenção de outro poder para torná-lo efetivo. Quando a lei estabelece o exercício do poder de polícia com autoexecutoriedade, é porque se faz necessária a proteção de determinado interesse coletivo. Impõem-se, ainda, duas observações. A primeira está assentada no fato de que existem atos que não autorizam a imediata execução pela Administração, a exemplo do que ocorre com as multas, cuja cobrança só é efetivamente materializada pela
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ação própria na via judicial. A outra repousa no ideário de que a autoexecutoriedade não deve integralizar objeto do abuso de poder, de maneira que deverá a prerrogativa guardar compatibilidade com o princípio do devido processo legal para o fito de ser a Administração Pública obrigada a respeitar as normas legais.
A característica em comento explicita o grau de imperatividade de que se revestem os atos de polícia, porquanto, como é natural, a polícia administrativa não pode curvar-se ao interesse dos administrados de prestar ou não obediência às imposições. Destarte, se a atividade corresponder a um poder, decorrente do ius imperi estatal, há de ser desempenhada de maneira a obrigar todos a observarem os seus comandos. Oportunamente, urge explicitar que é intrínseco a essa característica o poder que tem a Administração de empregar a força, quando necessária para vencer eventual recalcitrância. Celso de Mello[13], em seu escólio, oportunamente, frisa que é natural que seja na seara do poder de polícia que se manifesta de modo frequente o exercício da coação administrativa, pois os interesses coletivos defendidos frequentemente não poderiam, para assegurar a eficaz proteção, depender das demoras advindas do procedimento judicial. Ora, tal situação renderia ensejo ao perecimento dos valores sociais resguardados por meio de polícia, observadas, evidentemente, porém, as garantias individuais do cidadão constitucionalmente estabelecidas.
A segurança alimentar e nutricional consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis. A segurança alimentar e nutricional abrange: I – a ampliação das condições de acesso aos alimentos por meio da produção, em especial da agricultura tradicional e familiar, do processamento, da industrialização, da comercialização, incluindo-se os acordos internacionais, do abastecimento e da distribuição dos alimentos, incluindo-se a água, bem como da geração de emprego e da redistribuição da renda; II – a conservação da biodiversidade e a utilização sustentável dos recursos; III – a promoção da saúde, da nutrição e da alimentação da
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população, incluindo-se grupos populacionais específicos e populações em situação de vulnerabilidade social; IV – a garantia da qualidade biológica, sanitária, nutricional e tecnológica dos alimentos, bem como seu aproveitamento, estimulando práticas alimentares e estilos de vida saudáveis que respeitem a diversidade étnica e racial e cultural da população; V – a produção de conhecimento e o acesso à informação; e VI – a implementação de políticas públicas e estratégias sustentáveis e participativas de produção, comercialização e consumo de alimentos, respeitando-se as múltiplas características culturais do território nacional.
Estabelecidos tais marcos e diante da proeminência assumida pelo direito à alimentação adequada, cuida realçar que a regulamentação da temática e a competência de inspecionar e fiscalizar vindicam algumas reflexões. Nesta linha de raciocínio, com a promulgação do Texto de 1988, a fiscalização e a inspeção de alimentos recebeu contornos constitucionais. Nesta esteira, cuida reconhecer que o poder de polícia, no que atina à fiscalização de alimentos, sobretudo se esses atendem, ou não, os critérios estabelecidos pelas normas de padronização e de vigilância sanitária, configura mecanismo imprescindível para assegurar que o direito à alimentação adequada seja substancializado, sobretudo em sede de dimensão de segurança alimentar e nutricional. A fiscalização, in casu, é instrumento imprescindível para que, por meio de padrões rígidos de segurança e qualidade os alimentos possam atender ao ideário de alimentação qualitativa e não apenas quantitativa.
Referência:
BRASIL. Constituição (1988). Constituição (da) República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em 16 mai. 2016.
__________. Lei nº 9.873, de 23 de Novembro de 1999. Estabelece o prazo de prescrição para o exercício de ação punitiva pela Administração Pública Federal, direta e indireta e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em 16 mai. 2016.
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__________. Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: <http://www.stj.jus.br>. Acesso em 16 mai. 2016. __________. Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em 16 mai. 2016.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 24 ed, rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2011.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 23 ed.São Paulo: Editora Atlas S/A, 2010.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo Brasileiro. 30 ed., rev. e atual. São Paulo: Malheiros Editores, 2013.
RIO GRANDE DO SUL (ESTADO). Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br>. Acesso em 16 mai. 2016.
NOTAS:
[1] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 23 ed. São Paulo: Editora Atlas S/A, 2010, p. 64.
[2] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 24 ed, rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2011, p. 35.
[3] BRASIL. Constituição (1988). Constituição (da) República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em 16 mai. 2016.
[4] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo Brasileiro. 30 ed., rev. e atual. São Paulo: Malheiros Editores, 2013, p. 838.
[5] CARVALHO FILHO, 2011, p. 70.
[6] MELLO, 2013, p. 853.
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[7] CARVALHO FILHO, 2011, p. 77.
[8] BRASIL. Constituição (1988). Constituição (da) República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em 16 mai. 2016.
[9] CARVALHO FILHO, 2011, p. 72.
[10] BRASIL. Constituição (1988). Constituição (da) República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em 16 mai. 2016. Art. 241. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios disciplinarão por meio de lei os consórcios públicos e os convênios de cooperação entre os entes federados, autorizando a gestão associada de serviços públicos, bem como a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos.
[11] CARVALHO FILHO, 2011, p. 81.
[12] MELLO, 2013, p. 857.
[13] MELLO, 2013, p. 858.
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"O CASO DOS EXPLORADORES DE CAVERNAS": UMA BREVE ANÁLISE
MARCELO ALVES VIEIRA: Acadêmico de Direito da Universidade de Brasília. Atualmente Graduando de Direito.
Resumo: O presente trabalho se presta a realizar uma análise/resumo da paradigmática obra "O Caso Dos Exploradores de Cavernas", de Lon Luvois Fuller. Trata-se majoritariamente de uma análise acrítica, mas que em sua conclusão traz conjugações com o direito e a sociedade jurídica.
Palavras-chave: exploradores; caso; conflito; normas.
1. Introdução
Em sua obra, Fuller desenvolve um caso fictício de interposição de recursos à também fictícia Corte de Instâncias Gerais do igualmente fictício Condado de Sotwfield, referente à condenação de quatro réus à forca, indiciados pelo crime de homicídio. Este caso é explanado pelo presidente da corte, Truepenny, e se constrói na forma apresentada a seguir. Os quatro réus fazem parte da Sociedade Espeleológica: um grupo de exploradores amadores de cavernas. Durante uma de suas explorações, os réus, em companhia de Roger Whetmore, também membro da sociedade, adentraram uma caverna típica. Quando já estavam todos a uma boa profundidade desta, ocorreu um desmoronamento de terra que bloqueou a única saída conhecida. Após notado seu desaparecimento e por terem deixado na sede da sociedade a localização da caverna que pretendiam visitar, foi promovido o envio de um grupo de salvamento.
O resgate foi frustrado várias vezes por novos desmoronamentos, um dos quais provocou a morte de dez trabalhadores; e se concluiu apenas no trigésimo segundo dia após a entrada dos exploradores. Desde o momento
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que se soube que os exploradores tinham poucos mantimentos, houve uma preocupação quanto a possibilidade de eles morrerem “de inanição” (FULLER, 2012, p.11). No vigésimo dia, descobriu-se que eles possuíam um rádio sem fio portátil; então, um dispositivo semelhante foi instalado próximo à entrada obstruída, possibilitando uma comunicação entre a equipe de resgate e os homens presos. Estes questionaram quantos dias se passariam até o resgate, a equipe deu a resposta de dez dias; eles então requisitaram uma equipe médica ao rádio, e descreveram a estes a condição em que se encontravam e os mantimentos que possuíam, pedindo uma opinião sobre a perspectiva de sobrevivência deles por mais dez dias sem alimentos, obtendo a resposta de uma possibilidade remota de sobrevivência. Depois de oito horas, Whetmore voltou ao rádio e perguntou, ainda à equipe médica, se a sobrevivência era possível por mais dez dias se eles consumissem a carne de um deles; o líder da equipe respondeu afirmativamente. Whetmore perguntou ainda se seria aconselhável que eles tirassem na sorte quem deveria ser comido, mas a equipe de médicos não emitiu opinião. Whetmore ainda perguntou se havia algum representante oficial do judiciário que pudesse responder tal questão, mas nenhum estava presente. Depois deste momento, mais nenhuma mensagem foi recebida de dentro da caverna. Quando os homens foram libertados, soube-se que no vigésimo terceiro dia após a entrada na caverna, “Whetmore tinha sido morto e comido pelos companheiros.” (FULLER, 2012, p. 13).
“De acordo com o testemunho dos réus, que foi aceito pelo júri” (FULLER, 2012, p. 13), Whetmore foi o primeiro a propor a busca de alimento neles próprios e também o uso de algum método para tirarem na sorte, e a sugerir o uso de dois dados que carregava consigo, proposta que foi aceita pelos réus. A princípio, eles hesitaram em recorrer a tal atitude, mas após o diálogo com a equipe médica, concordaram em seguir tal plano. Depois de discutido um método para a escolha através dos dados, a execução do plano se iniciou; porém, neste momento, “Whetmore declarou que estava se retirando do arranjado” (FULLER, 2012, p. 14), alegando querer aguardar mais tempo antes de adotar tal atitude. Os réus o acusaram de “violação do acordo” (FULLER, 2012, p. 14) e continuaram ao lançamento dos dados; quando chegou a vez de Whetmore, os dados foram lançados por um dos réus, e a aquele foi questionado se havia alguma
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“objeção quanto à justiça da jogada. Ele declarou que não tinha objeções a fazer.” (FULLER, 2012, p. 14). Tal lançamento teve como resultado o estabelecimento de que Whetmore deveria ser morto e comido por seus colegas.
Após certo tempo do resgate, os réus foram “denunciados pelo crime de homicídio de Roger Whetmore” (FULLER, 2012, p. 14). No julgamento, o presidente do júri, um advogado por profissão, requisitou se poderia ser passada ao juiz do Tribunal a decisão final acerca do caso; pedido que foi atendido com consentimento geral. Num longo veredito, o júri decidiu que, com base nos fatos acima relatados, os réus deveriam ser considerados “culpados do crime pelo qual foram indiciados” (FULLER, 2012, p. 15) e deveriam ser condenados. E com base neste veredito, o juiz de primeira instância também decidiu pela culpabilidade dos réus; em consequência, “sentenciou-os à forca” (FULLER, 2012, p. 15). Após o fim do julgamento, os membros do júri enviaram uma “petição conjunta” (FULLER, 2012, p. 15) ao chefe do Executivo demandando a modificação da sentença para reclusão de seis meses. Ato semelhante foi conduzido pelo juiz de primeira instância. Até o momento da discussão do caso na Corte, não houve resposta oficial do Executivo.
2. Desenvolvimento
2.1 Tópico I
Em seu voto, Truepenny mostra seu apoio ao ato dirigido pelo júri e pelo juiz de primeira instância, descrevendo-o como um curso “não somente justo e sábio, mas sim o único curso que lhes restava aberto em face dos dispositivos legais.” (FULLER, 2012, p. 16). O texto da lei vigente em Stowfield não deixa qualquer exceção ao caso dos exploradores, porém “nossas simpatias” (FULLER, 2012, p. 16) podem nos levar a reconsiderarmos o caso, vista a trágica situação em que os réus se encontravam. Neste cenário, Trupenny enfatiza que o recurso ao executivo é o meio mais adequado de “mitigar os rigores da lei” (FULLER, 2012, p. 16); e propõe a seus quatro colegas que sigam a mesma atitude do júri e do juiz e ratifiquem a condenação enquanto apoiam o pedido enviado ao executivo.Truepenny ainda destaca que existe uma grande chance de uma
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resposta positiva a tal recurso, posto que este possui prestígio por ter vindo daqueles que “estudaram o caso e tiveram a oportunidade de familiarizar-se totalmente com suas circunstâncias” (FULLER, 2012, p. 17). Portanto, é de se supor que algum tipo clemência será concedida a esses homens; se assim for, “então a justiça será feita sem prejudicar nem a letra nem o espírito dos nosso estatutos e sem oferecer qualquer estímulo para o desrespeito da lei.” (FULLER, 2012, p. 17).
2.2 Tópico II
Em seu voto, Foster deixa clara oposição frente à decisão do tribunal de declarar os réus como culpados. Ainda enfatiza que a dimensão moral do caso não deve ser ignorada e que “se este Tribunal declara que, sob nossa lei, estes homens cometeram um crime, então a nossa lei é em si mesma condenada no tribunal do senso comum” (FULLER, 2012, p. 18). Se então o regimento vigente leva a uma decisão da qual os juízes se envergonham e a única saída encontrada depende de “um capricho pessoal do Executivo” (FULLER, 2012, p. 18), Foster entende aqui uma evidência da falta de pretensão à justiça de tal regimento. Foster declara acreditar que, em oposição à decisão feita no tribunal, o regimento de Stowfield declara os réus inocentes, por dois motivos independentes.
O primeiro destes se trata do fato que o caso dos exploradores não está subjugado ao regimento positivado da comunidade, mas sim subjugado às chamadas “‘leis da natureza’” (FULLER, 2012, p. 19). Isto está embasada no fato de que o direito positivado pressupõe “a possibilidade de coexistência dos homens em sociedade” (FULLER, 2012, p. 19). Em uma situação em que tal coexistência é impossível, o alicerce de todos os precedentes e estatutos do regimento, deixa de existir; e, portanto, deixa de existir também a “coercibilidade do nosso direito positivo” (FULLER, 2012, p. 19). Dessa forma, Foster propõe que, neste caso, deve ser aplicada a máxima cessante ratione legis, cessat et ipsa lex “ao conjunto de nosso ordenamento jurídico” (FULLER, 2012, p. 19). Foster adiciona ainda que uma jurisdição possui uma “base territorial” (FULLER, 2012, p. 21), ou seja, só pode ser vigente em certa delimitação territorial. Este princípio tem embasamento no fato de que “só é possível impor uma ordem jurídica única a um grupo de homens de uma determinada área” (FULLER, 2012, p. 21).
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Pode-se assim chegar à conclusão de que os réus, devido às circunstâncias em que se encontravam, estavam “tão distantes de nossa ordem jurídica que poderiam estar a mil milhas de nossa fronteiras” (FULLER, 2012, p. 21). Foster conclui então que os réus, no momento em que mataram Whetmore, não estavam sob um “‘estado de sociedade civil’ mas sim num ‘estado de natureza’” (FULLER, 2012, p. 22). Consequentemente, a lei a ser aplicada a tal caso não é a lei positivada, mas sim a adequada às condições de tal caso. Foster completa que não hesita em dizer “que segundo estes princípios eles eram inocentes de qualquer crime.” (FULLER, 2012, p. 22).
Foster mostra ainda que, posta tal situação em que o direito positivado perde seu uso, foi necessário então a construção de um novo contrato entre os homens: o acordo firmado entre eles no interior da caverna. Contrato este que, uma vez estabelecido em consenso, dá justificativa moral aos atos estabelecidos em tal contrato. Foster destaca que tal interpretação será recebida “com um certo desconforto por muitos que venham a vê-la” (FULLER, 2012, p. 25), posto que a vida humana é vista usualmente como um valor absoluto e inegável. Porém essa concepção é ilusória, visto que todo e qualquer empreendimento promovido por qualquer sociedade em qualquer tempo tem como consequências mortes de certos indivíduos; mas estas ainda assim são ditas, por nós, compensadas pelos benefícios advindos de tais empreendimentos. A mesma lógica é aplicável ao caso dos exploradores.
O segundo motivo que corrobora a inocência dos réus está e um argumento de âmbito oposto ao do anterior, neste, os estatutos consolidados de Stwofield tem total prevalência sobre os homens dentro da caverna. Porém, mesmo nesse cenário, a condenação certa destes não existe, posto o tradicional principio de que “um homem pode infringir a letra da lei sem violar a lei em si.” (FULLER, 2012, p. 27). Isto implica que toda lei carece de uma interpretação racional, ligada ao caso. Foster usa o exemplo do casoComunidade v. Staymore, em que um réu foi “condenado tendo em vista uma lei que considera crime estacionar um carro, em certas áreas, por um período superior a duas horas.” (FULLER, 2012, p. 28). Nesse caso, o réu foi impedido de retirar seu carro de tal local por ocasião de uma demonstração politica “da qual ele não participou e não pudera prever.” (FULLER, 2012, p. 28). Assim, levando-se em conta tal contexto, sua
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condenação foi anulada. Como outra evidência, Foster mostra o estabelecimento da excludente de culpabilidade da legítima defesa a casos de homicídio: mesmo sem estar explícita no texto, essa exceção é usada constantemente, visto que o texto legal não é aplicado literalmente. Dessa forma, tal excludente não pode ser emparelhada com as palavras da lei, mas sim com o seu propósito.
Neste caso em específico, tal propósito é a prevenção, ou seja, persuadir os homens a não cometerem homicídios postas as consequências advindas desta ação. Assim, posto que em uma circunstância de legítima defesa não há espaço para prevenção de qualquer tipo, o texto da lei não pode ser aplicado puramente. O mesmo raciocínio pode ser aplicado ao caso dos exploradores: suas decisões de vida não estavam controladas pelo “código penal” (FULLER, 2012, p. 30), mas sim por suas convicções de sobrevivência. Foster destaca que não quer aqui propor a não subordinação do tribunal às leis, mas sim a distinção entre “fidelidade inteligente e não inteligente” (FULLER, 2012, p. 31) ao texto do regimento. Foster conclui que “os réus são inocentes do crime de homicídio (...) e que a decisão de condenação deve ser reformada.” (FULLER, 2012, p. 32).
2.3 Tópico III
Em seu voto, Tatting destaca que geralmente preza pela dissociação dos “aspectos emocionais e intelectuais” (FULLER, 2012, p. 32) ao tomar suas decisões dentro de um tribunal, mas que encontra dificuldades em tal tarefa no julgamento deste caso. Tatting julga o voto de Foster repleto de lacunas e começa demonstrando tais desacertos no primeiro argumento. Neste, Foster diz que os réus estavam sob um “estado e natureza”; porém, tal transição de um estado para outro não se estabelece clara em nenhum momento, deixando espaço para inúmeras arbitrariedades dentro de tal perspectiva. Ainda dentro desse âmbito, na suposição de que os réus estavam sob um “estado de natureza” quando dentro da caverna, este tribunal não seria então capaz de sequer emitir opiniões acerca do caso, posto que o tal Tribunal é uma corte submetida a leis positivadas e não leis da natureza; não sendo portanto um “tribunal da natureza”.
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Tatting destaca ainda o caráter odioso de tal código da natureza, visto que estabelece leis de contratos como mais fundamentais que leis de assassinatos e ainda mais, estabelece uma irrevogabilidade plena a contratos estabelecidos. Todas estas considerações, tornam, para Tatting, “impossível (...) aceitar a primeira parte do argumento do meu colega” (FULLER, 2012, p. 37). Quanto à segunda parte do argumento de Foster, Tatting destaca seu caráter “nebuloso e ambíguo” (FULLER, 2012, p. 37); posto que, ao declarar que nenhuma lei deve ser aplicada de forma a contradizer seu propósito, não completa tal argumento devido ao fato de que uma lei possui, caracteristicamente, múltiplos propósitos. Portanto, a existência de um curso plenamente fixo de uma lei é uma perspectiva meramente simplista do código. Apesar de reconhecer que uma lei deve ser aplicada com apoio de seus propósitos e que isto pode ser efetivamente exemplificado pelo caso Comunidade v. Parry, Tatting demonstra que tal argumento não é satisfatório. Tatting demonstra a impossibilidade de analogia da excludente da legítima defesa ao caso, posto que esta estabelece a não-intencionalidade do assassino ao proteger sua vida enquanto os réus não apenas agiram intencionalmente mas também arquitetaram tal ação por “horas de discussão a respeito do que fariam.” (FULLER, 2012, p. 40). Para reforçar sua contra-argumentação a Foster, Tatting usa o exemplo do casoComunidade v. Valjean, em que um réu foi indiciado “pelo furto de um pão e ofereceu como defesa a circunstância de que se encontrava em uma situação próxima da morte por inanição.” (FULLER, 2012, p. 41). O Tribunal recusou esta defesa. Portanto, se a fome não pôde justificar o roubo de um alimento, aquela igualmente não pode justificar o assassinato de um homem. Dessa forma, aceitar o argumento de Foster é ignorar o caso Comunidade v. Valjean “e muitos outros precedentes construídos a partir deste caso.” (FULLER, 2012, p. 41).
Tatting demonstra ainda que haveria sim certo caráter preventivo em tal circunstância dentro da caverna, posto que, se soubessem que tal ato era “considerado como crime pela lei” (FULLER, 2012, p.), os réus teriam esperado por mais tempo antes te tomar tal atitude. Um outro ponto levantado por Tatting é o da arbitrariedade quanto ao âmbito da exceção que a declaração de inocência dos réus criaria: tal arbitrariedade traria inúmeras divergências e dificuldades em casos semelhantes no futuro, abrindo espaço a vereditos tendenciosos. Ao final de seu voto, Tatting
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demonstra que tem se envolvido demasiadamente com o caso, e que seus sentimentos e convicções o impedem de assumir uma ou outra posição. E então, estando totalmente incapaz de “resolver as dúvidas” (FULLER, 2012, p. 46) que o abatiam cada vez mais, Tatting declara sua retirada da decisão do caso.
2.4 Tópico IV
Keen inicia seu voto estabelecendo distinções entre elementos meramente morais e aqueles verdadeiramente competentes ao Trubunal. A primeira destas está ligada ao parecer emitido ao Executivo: Keen critica a pretensão do presidente do Tribunal de se ver na competência de passar instruções que deveriam ser seguidas pelo chefe do Executivo e ainda sugerir que “alguns inconvenientes irão surgir se tais instruções não forem atendidas.” (FULLER, 2012, p. 46-47). A aprovação ou não da clemência dirigida ao Executivo é de competência exclusiva do próprio Executivo, e não do Judiciário. Keen, em sua condição de cidadão privado, assume que iria até mais longe do que o chefe do Executivo pode ir aprovando a clemência dirigida a este, e “concederia perdão total a estes homens” (FULLER, 2012, p. 47). Porém, na sua condição de juiz, ele destaca que não deve emitir qualquer tipo de instrução ao chefe do Executivo.
A segunda questão se trata da tentativa de estabelecer se o que foi feito pelos homens é “certo” ou “errado”, esse é outro ponto irrelevante à função do juiz. A partir desta noção, é possível eliminar-se a primeira parte do voto de Foster: a fantasia de sua argumentação é deixada bem clara na longa declaração de Tatting acerca da mesma. A única questão diante dos juízes é “se estes réus, na concepção do N.C.S.A. (N.S.) § 12-A, deliberadamente tiraram a vida de Roger Whetmore.” (FULLER, 2012, p. 48); e o texto é bem claro: “‘Quem intencionalmente tirar a vida de outrem será punido com a morte.’ (Keen) Devo supor que qualquer observador imparcial (...) concederá imediatamente que os réus ‘intencionalmente tiraram a vida’ de Roger Whetmore.” (FULLER, 2012, p. 48). As discussões oriundas desse caso surgem simplesmente da insistência na indistinção entre os fatores legais dos aspectos morais deste caso. Keen diz ainda que seus colegas simplesmente “não gostam do fato de que a lei escrita requer a condenação destes réus” (FULLER, 2012, p. 49); o que se estende a ele mesmo. Porém,
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ao contrário de seus colegas, Keen respeita “as obrigações de um cargo que me obriga a colocar as minhas predileções pessoais de lado ao interpretar e aplicar a lei desta comunidade.” (FULLER, 2012, p. 49).
Keen destaca a construção de uma argumentação, por parte do Foster, que dá liberdade ao Tribunal de “desrespeitar o enunciado da lei quando algo não contido nela, chamado de seu ‘propósito’, pode ser empregado para justificar o resultado que o Tribunal considera adequado.” (FULLER, 2012, p. 49). Antes de discutir esse ponto, Keen faz uma explanação histórica acerca do estabelecimento das divisões de poderes em Stowfield: existiu um tempo em que os juízes legislavam com plena liberdade, o que abria espaço a modificações totais na lei por parte do Judiciário; neste cenário, “os princípios aceitos pela ciência politica não designavam de maneira segura a hierarquia e a função dos vários poderes
do Estado.” (FULLER, 2012, p. 50). O que resultou daí foi um confuso embate entre o Judiciário, de um lado, e o Executivo e o Legislativo, de outro. A questão aqui é que estes dias estão no passado, e que hoje reina um “princípio bem definido, que é a supremacia do Poder Legislativo” (FULLER, 2012, p. 51). Esse principio deixa claro o papel do Judiciário de fielmente aplicar a lei escrita, “de interpretá-la de acordo com seu significado evidente.” (FULLER, 2012, p. 51).
O que acontece em casos como o tratado aqui é que alguns juízes, como Foster, ainda não se acostumaram a tal delimitação de seu papel. Keen diz não estar aqui preocupado “se o principio que proíbe a revisão judicial das leis é certo ou errado” (FULLER, 2012, p. 51), mas sim “que este princípio tornou-se uma premissa tácita subjacente a toda ordem jurídica e governamental” (FULLER, 2012, p. 51). Keen descreve o processo de reforma jurídica em três etapas: a primeira é descobrir qual o propósito da lei, o que é feito apesar de nenhuma lei conter um propósito apenas; a segunda se trata de constatar que o legislador deixou lacunas na busca deste propósito; a terceira consiste em preencher esta lacuna. Keen, porém vê todo este processo, quando feito de forma imediata, como ilusório, posto que abre espaço a processos arbitrários e imprecisos, levando a resultados distante da realidade.
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Nessa perspectiva, “se nós não sabemos a finalidade do § 12-A” (FULLER, 2012, p. 55), não há como afirmar a existência de quaisquer lacunas neste. Considerações similares podem ser feitas quanto à excludente da legítima defesa, posto que “a questão não está no suposto propósito da lei, mas sim no seu âmbito.” (FULLER, 2012, p. 57). Dessa forma, sendo o âmbito de tal excludente os casos de resistência a uma ameaça à vida, o caso em questão não pode ser enquadrado neste âmbito; posto que “Whetmore não fez nenhuma ameaça contra a vida destes réus.” (FULLER, 2012, p. 57). Keen destaca ainda que os efeitos a longo prazo de uma decisão tão distante do texto legal como esta são degradantes ao ordenamento jurídico, posto que geram decisões imediatas tipicamente poluídas por “verbalismos e distinções metafísicas” (FULLER, 2012, p. 59); Keen então conclui seu voto reafirmando a condenação.
2.5 Tópico V
Em seu voto, Handy destaca a questão do âmbito humano dentro deste caso, enfatizando que “é uma questão de sabedoria prática a ser exercida em um contexto (...) de realidades humanas.” (FULLER, 2012, p. 61). De forma mais profunda, Handy afirma que o próprio governo é um “assunto humano” (FULLER, 2012, p. 61) e que os homens tem seu governo construído por outros homens, não por teorias ou palavras. O Judiciário se mostra como o segmento mais propenso de se distanciar do homem comum, devido à sua forma de execução marcada por “regras e princípios abstratos” (FULLER, 2012, p. 62) enquanto as massas comuns reagem a “uma situação conforme algumas características marcantes da mesma” (FULLER, 2012, p. 62), ou seja, dimensões amplas. Essa marca do judiciário se mostra de fato como um mal necessário, posto que existem áreas em que a regulação é intrínseca ao próprio funcionamento efetivo da mesma; mas, fora desse âmbito, Handy diz acreditar que “todos os funcionários públicos (...) cumpririam melhor seus deveres se tratassem as formas e conceitos abstratos como instrumentos.” (FULLER, 2012, p. 63). Assim, o bom administrador é o que adequa as diretrizes e princípios ao caso e seleciona “dentro dos formulários disponíveis os mais adequados para alcançar o resultado correto.” (FULLER, 2012, p. 64). Apenas desse modo é possível construir a essencial flexibilidade que mantém as ações
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dos juízes “em concordância com os sentimentos daqueles sujeitos à lei.” (FULLER, 2012, p. 64).
A exposição da decisão exige a introdução de algumas realidades. A primeira destas é a de que o caso despertou “interesse público” (FULLER, 2012, p. 65) e assim, a opinião da massa de que os réus devem ser perdoados se tornou bem clara nas pesquisas conduzidas pela imprensa. Tal constatação torna claro o que deve ser feito pelos juízes se estes desejam “preservar uma harmonia razoável e decente” (FULLER, 2012, p. 66) entre eles e a “opinião pública” (FULLER, 2012, p. 66). Esta decisão não se mostra indigna, mas pelo contrário, coerente e precisa; posto que a opinião pública demonstra seu papel claro dentro das decisões do Judiciário constantemente. Um exemplo possível é o das quatro formas que um individuo acusado de um crime tem de se livrar da punição: a primeira é de fato interna ao direito, se trata da determinação, por parte do juiz, de que tal individuo não cometeu nenhum crime; a segunda, de uma decisão do Ministério Público “não solicitando a instauração do processo” (FULLER, 2012, p. 68); a terceira, uma absolvição por parte do júri; e a quarta, uma comutação ou indulto de pena provindo do Executivo. Dentro desse âmbito, todos os órgãos e indivíduos envolvidos são inegavelmente influenciados pela opinião pública, o que transcende a decisão tomada por aqueles.
Handy demonstra sua repulsa quanto à clemência dirigida ao executivo, embasando-se no fato de que nenhum dos indivíduos interrogados na pesquisa citada anteriormente declarou considerar ideal que dois ramos do governo atuassem para a resolução do caso. Mesmo assim, esta “é uma solução que tem (...) dominado” as discussões dentro do Tribunal, e “que o próprio presidente (...) propõe como um caminho pelo qual podemos evitar cometer injustiças e ao mesmo tempo preservar o respeito à lei.” (FULLER, 2012, p. 71). Porém, a única coisa preservada com essa decisão é a moral do próprio presidente “e não a do povo” (FULLER, 2012, p. 71). Por último, Handy destaca a grande possibilidade de o chefe do Executivo recusar tal clemência, visto que este está decidido em proceder de tal forma pela razão de acreditar na credibilidade da sentença promovida pelo Tribunal, ou seja, a de culpabilidade dos réus. Aqui Handy se embasou em uma “via indireta, porém totalmente confiável” (FULLER, 2012, p. 72), razão pela qual já espera que seus colegas não
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aceitem tal argumento; mas ainda acredita que estes também prevejam tal possibilidade iminente por parte do Executivo. Como conclusão, Handy cita seu primeiro caso como magistrado, em que chegou a um veredito fiel à realidade ao deixar à parte as complexidades legais e analisar o caso com foco nas circunstâncias de tal evento. Ele faz então algo análogo no caso dos exploradores, declarando os réus inocentes e que a condenação deve ser reformada.
4. Conclusão
Truepenny constrói uma demonstração de que a atitude de ratificar a sentença do Tribunal de primeira instância e apoiar o recurso enviado ao Executivo é a única forma de ao mesmo tempo não ferir a lei e ainda assim fazer verdadeira justiça quanto ao caso. Porém, essa atitude é condenável por promover descaradamente a transferência de funções de um poder a outro, o que gera delegações arbitrárias a certos órgãos, tendo como consequência, resultados igualmente arbitrários. Além de colocar em dúvida a independência do judiciário, como é demonstrado nas argumentações de Foster, Keen e Handy a esse respeito.
Foster deixa bem clara sua posição caracteristicamente naturalista em seu primeiro argumento, que se mostra verdadeiramente superficial e simplista, como é demonstrado posteriormente por Tatting e Keen. Mas seu segundo argumento conta com uma surpreendente força devido ao seu caráter profundo e positivado de averiguação, e consegue manter-se de pé mesmo frente às críticas de Tatting e Keen.
Tatting levanta um ponto relevante em sua contraposição à Foster, mas perde boa parte de seu papel no caso ao optar por se abster na votação. Keen se mostra claramente positivista, o que acaba por conduzi-lo a um caminho muito distante da realidade, devido ao atrelamento excessivo ao texto e à letra jurídica. Handy se mostra como o juiz que mais se aproxima de uma decisão que seja juridicamente racional e responsável enquanto também próxima da realidade, principalmente por levar em consideração os fatores humanos presentes no caso: não os permite determinar o veredito, mas os leva em consideração durante todo o desenvolvimento deste. E concomitantemente se atenta à interpretação racional do texto jurídico,
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chegando finalmente à decisão de inocência dos réus. Que, apesar de correta, é frustrada devido ao empate dos votos e consequente ratificação da condenação à morte.
5. Referências bibliográficas
FULLER, Lon Luvois: O caso dos exploradores de cavernas, tradução do original em inglês por Sabrina Lotaif Kheirallah. São Paulo: Hunter Books, 2012.